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BIBLIOTECA DAS MOÇAS VOLUME 122 Heranç a Inesperada Pa trícia Wenthworth Hilda, sobrinha de um tio rico, casou em segredo com Gale. Contudo, este apenas estava interessado na herança que sua mulher receberia quando o tio morresse. Quando descobriu que o tio pretendia deixar todos os seus bens a uma outra sobrinha, que não sua mulher, Gale tratou de a descobrir e, recorrendo a várias manobras, colocá-la sob seu domínio. Ann, a futura herdeira, que de nada sabe, vai passar então por várias aventuras e atentados contra a sua vida. Conseguirá sair ilesa?

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Herana Inesperada

BIBLIOTECA DAS MOAS VOLUME 122

Herana Inesperada

Patrcia Wenthworth

Hilda, sobrinha de um tio rico, casou em segredo com Gale. Contudo, este apenas estava interessado na herana que sua mulher receberia quando o tio morresse.

Quando descobriu que o tio pretendia deixar todos os seus bens a uma outra sobrinha, que no sua mulher, Gale tratou de a descobrir e, recorrendo a vrias manobras, coloc-la sob seu domnio. Ann, a futura herdeira, que de nada sabe, vai passar ento por vrias aventuras e atentados contra a sua vida. Conseguir sair ilesa?

Disponibilizao: Marisa

Digitalizao: Marina.

Reviso: Custdio.

Formatao: Edina

Ttulo original: FEAR BY NIGHT.

I

Sentado em um quarto do segundo pavimento de sua casa, em Glasgow, Elias Paulett bebericava um copo de usque quente com gua. Homem de muitos anos, muito dinheiro e muito sucesso, mas de poucas amizades. Desde a nica vez em que conquistara um afeto sincero, j se haviam passado algumas dcadas. E, com franqueza, no era estimado porque realmente no o merecia. custa do prprio esforo abrira caminho da misria para a abastana; aos vinte e seis anos estabelecera os alicerces da futura fortuna, casandose com a filha e herdeira de Duncan Robertson, o qual possua uma pequena linha de vapores, hoje quase to esquecida como a pobre Jessie Robertson. Elias Paulett usou ambos acabou com ambos, e continuou seu caminho.

Ali se encontrava agora, segurando com fora o copo fumegante, e uma ou outra vez lanando sobrinha Hilda Paulett, um olhar sardnico. A moa lia The Times em voz alta. Bonita, com quase trinta anos. O descontentamento dos olhos negros e a contrao da boca mal humorada proclamavam claramente que no estava interessada nas notcias da City.

Elias Paulett estendeu a mo, detendoa.

Basta. Agora convm que Anderson volte. Quero falar com ele.

Continuou a beber e a sorrir para si prprio. Sorriso desagradvel. Hilda Paulett deixou a sala com uma expresso de alvio.

Pouco depois a porta se abriu novamente e Gale Anderson entrou. Moo bem apessoado, entre os trinta e trs

e os trinta e quatro. Dava a impresso de haver passado

a maior parte da vida dentro de casa; tanto a pele como os olhos e o prprio cabelo eram mais claros do que seria natural. Denotava um autodomnio que se poderia perfeitamente esperar em quem fora por mais de trs anos secretrio de Elias Paulett.

Miss Paulett disse que o senhor quer falar comigo. - Elias acenou que sim. O cabelo espesso e abundante caa de tal modo que lhe dava um aspecto de papagaio. O rosto era um conjunto de rugas muito vincadas, entre as quais brilhavam duramente os olhinhos cinzentos.

Exatamente, exatamente... miss Paulett - disse ele, - minha sobrinha Hilda Paulett. Costuma chamla somente de Hilda?

Se Gale Anderson se perturbou, no deu demonstrao disso. Sorriu levemente.

Bem, o senhor sabe que ns nos conhecemos h cerca de trs anos.

Ento chama?

Chamo, sim senhor.

J a beijou, tambm?

Gale Anderson encolheu os ombros.

Que espera que eu responda a isso, senhor?

Est apaixonado por ela?

Ou a isto?

Elias Paulett olhouo com os olhos brilhando de perversidade.

Ou o senhor haveria de mentir, ou diria a verdade. Pois vou livrlo da dificuldade, meu caro. Est apostando em cavalo errado. No me agradaria vlo cair.

O que se poderia ler no rosto de Gale Anderson seria apenas perplexidade.

Sinto no compreender o que est dizendo, senhor.

Ora. ora. compreende perfeitamente. No tolo

porque se o fosse j teria sido despedido h muito tempo.

O que lhe estou dizendo que est apostando em cavalo errado.

E eu repito que no entendo o que diz.

Elias Paulett depositou o copo na mesa perto do cotovelo, e ergueuse um pouco na cadeira. Vestia um roupo grosso de seda azul escuro e tinha os joelhos protegidos por uma coberta de tart Royal Stuart.

Ontem noite eu no estava dormindo.

Pois continuo sem saber o que est dizendo.

I Elias Paulett riu.

Sua cara boa para o poquer! Ontem noite, quando Hilda o beijou, eu estava acordado.

Tenho a impresso de que andou sonhando, senhor, - respondeu Gale Anderson.

Que andei sonhando?

Elias virouse na cadeira e apontou a escrivaninha. O senhor estava sentado ali, escrevendo: ela entrou e olhou para o meu lado. Depois disse: Est dormindo; atravessou a sala, passou o brao em torno do seu pescoo e beijouo. Com certeza o senhor pensa que eu agora vou lhe perguntar que intenes tem. Pois no vou. No vou perguntarlhe coisa alguma nem quantas vezes j a beijou, nem quando a beijou pela primeira vez, nem mesmo se a coisa ficou s em beijos. No lhe vou perguntar coisa alguma o que vou contarlhe algo. Est apostando em cavalo errado, e vou dizer porque. Alguma coisa o faz crer que meu dinheiro vai ficar para Hilda. Pois no vai. No, fique a mesmo, onde posso vlo bem, e acenda a outra lmpada tambm! Vejamos como vai essa cara de pquer.

Sem dvida Gale Anderson estava muito plido, mas antes tambm o estava, e de tal maneira que era impossvel dizer se agora havia empalidecido mais. Havia uma lmpada acesa no meio do aposento. Virou o boto que comandava as duas da escarpa da lareira e voltou o rosto para o patro.

Muita bondade sua contarme isso, senhor.

Muita, no verdade? - E Elias repuxou a boca com desprezo. - Sempre fui bom para mim mesmo, e pretendo continuar assim. No quero que na sua cabea e na de Hilda surja a ideia de que j tempo de eu me ir, nem que pretendam ajudarme a isso. Quero morrer no dia certo, e no antes.

Tirou do bolso do roupo um molho de chaves e jogouas diante do moo.

Abra a terceira gaveta da esquerda e l ver o rascunho do meu testamento. O original est no cofre de meu advogado onde, naturalmente, ningum pode mexer. Mas pode examinar vontade o rascunho, a menos que considere minha palavra suficiente. Tenho mais uma sobrinha alm de Hilda. Chamase Ann Vernon, e deixo o dinheiro para ela. No a conheo, porque briguei com a me antes do nascimento dela. Se a tivesse visto possvel que lhe tivesse tanta ogerisa como tenho a Hilda. Mas atualmente no tenho e por isso vou deixarlhe o dinheiro caso ela me sobreviva. Se no, Hilda o pega. Mas eu no perderia tempo namorandoa em vista da possibilidade.

Ergueu o copo e esvasiouo.

No quer ler o rascunho?

No creio que seja da minha conta, senhor, - disse Gale Anderson.

Acha que minha palavra suficiente, hein? Perfeitamente. No preciso mais do senhor hoje. O melhor ser ir dizer a Hilda que ela tambm perde tempo se tem esperana de receber os cobres. Vocs dois tm de casar com gente de dinheiro, de modo que o melhor ser ir procurlo onde de fato esteja. De mim no precisam esperar coisa alguma, a menos que Ann resolva sair do caminho enquanto eu ainda estiver vivo.

Gale Anderson saiu do aposento sem pressa. Hilda Paulett esperavao na sala de estar que lhe era reservada. Era um aposento sombrio, e sombriamente mobiliado cadeiras velhas, refugo da sala de visitas, cortinas desbotadas, um tapete de Bruxelas cujos desenhos quase haviam desaparecido e um velho piano com enfeites de seda descolorida.

Ergueu os olhos quando ele entrou. A expresso dos olhos do moo amedrontoua.

Que houve, Gale?

le fechou a porta e apoiouse nela. Passouse um minuto antes que falasse. Quando o fez, dominava perfeitamente a voz.

Por que mentiu a respeito do testamento? - A moa corou.

No menti!

Pareceme que sim. Voc me disse que ele lhe ia deixar o dinheiro.

No vai?

Por que pensou que ia?

A voz de Gale Anderson era fria e calculada. Hilda deu um ou dois passos em sua direo e detevese, torcendo as mos, corando e empalidecendo alternativamente, com a respirao irregular.

Gale... que houve? Voc no diz o que houve. Modificao no testamento? Eu vi o rascunho. Juro que o dinheiro ia ficar para mim. Juro!

Viu o rascunho?

Juro que vi! Foi no dia em que ele assinou o testamento. Quando Mr. Everard saiu, tio Elias deume as chaves e disse: Isto o rascunho de meu testamento. Quero guardlo para qualquer consulta. Ponha na terceira gaveta da escrivaninha e no se esquea de trancla bem. Enquanto eu guardava o papel ele teve um forte acesso de tosse, e veiome a idia de correr os olhos pelo rascunho e ver se descobria para quem ia ficar o dinheiro. A cadeira dele estava virada para o fogo, de modo que eu ficava bem atrs.

E da? - fez Gale Anderson.

Abri o papel e verifiquei que era tudo uma maaroca de linguagem legal, mas cheguei concluso de que ia ficar tudo para minha sobrinha; a a pgina acabava, e no tive coragem de virla, de modo que guardei o rascunho s carreiras, tranquei a gaveta e restitui a chave a meu tio. No acha que vi o bastante?

Gale Anderson endireitou o corpo e caminhou para o lado dela. Seguroua pelo ombro. A moa o olhava entre admirada e medrosa.

Aquelas palavras minha sobrinha estavam no fim da pgina?

Hilda concordou, com a cabea.

Que houve? No estava certo? - Com um movimento do punho ele a atirou longe.

Idiota! No sabe ento que ele tem outra sobrinha?

Ela se encostou no piano e segurouo, para firmarse.

Voc me machucou!

Quem sabe acha que vou pedir desculpas? Grandssima idiota! Ouviu bem o que eu disse? H mais uma sobrinha, e voc no vai receber um penny.

Ela arregalou os olhos; os lbios cheios tremiam.

Gale... Voc no casou comigo por causa do dinheiro? Gale, eu no sabia... Juro que no! Gale!

Cale essa boca! - disse ele, dirigindose para a lareira, onde ficou olhando o papel empoeirado entre as grades.

Hilda o observava, limpando os olhos com o leno; respirava fundo, como quem vai falar, mas perdia a coragem. Quando, afinal, o conseguiu, as palavras saram aos arrancos.

Gale, voc tem certeza? No vou receber nada, nada?

Nada. A menos que acontea algo a Miss Ann Vernon, - disse Gale Anderson.

Ann Vernon subia os degraus do Luxe com o queixo erguido. Se Charles Anstruther estivesse sua espera teria pensado, com um trejeito de admirao divertida, que era muito prprio de Ann dar a impresso de que tinha comprado o globo terrestre, vestida com roupa que at olhos de homem percebiam estar sofrivelmente fora de moda, e atirar o chapu para trs com tanta extravagncia exatamente porque estava patente

que ele j havia suportado o calor e o peso do vero.

Mas Charles estava a uma milha de distncia. Naquela ocasio encontravase muito ocupado com um moo plido e magrio cuja insegurana e respeito das funes respectivas do breque e do acelerador de um carro velhssimo o tinham levado a irromper violentamente de uma rua lateral. As conseqncias, para o carro de Charles, tinham sido de molde a estimular seus j fecundos poderes de invectiva ao mais alto grau. Dia quente. Cheiro forte de petrleo no ar. O agrupamento de todos os desastres. O moo plido balbuciava coisas. Charles se excedia a si mesmo.

E na paz do Luxe Ann Vernon comeou a sentirse justamente aborrecida. Chegara dez minutos atrasada para o lanche; Charles deveria ter chegado dez minutos adiantado, no mnimo. Nunca ela o fizera esperar menos de um quarto de hora. Parecia que Charles estava um pouco desinteressado.

Ann apertou fortemente os lbios, olhou vagarosamente em torno e assentouse de costas para a porta, em um canto oculto por uma palmeira e meia dzia de hortncias. Se Charles preferia atrasarse, podia tambm procurla. Se chegasse depois de cinco minutos, nem a veria. Divertiuse com a idia de mandarlhe um telegrama. Qualquer coisa como Desculpe, esqueci. Ou, ento, podia telefonarlhe No era hoje que eu ia lanchar com voc?

Mas estou com uma fome tremenda, dizia a parte de Ann que no tinha propriamente, orgulho tremenda, tremenda, tremenda. No sei quem foi o idiota que teve a idia luminosa de chamar ao po arrimo do homem, mas aposto que nunca se arrimou nele ao menos com todo o seu peso. Ann, sim. Era quartafeira. Desde sbado que almoava, lanchava e jantava po seco e estava definitivamente ansiosa pelas panelas de carne do Luxe. Se Charles no chegasse dentro de cinco minutos ela sairia pela porta lateral, andaria uns quinze minutos, para depois voltar bem atrasada e orgulhosa e encontrar Charles mordendo os freios de impacincia. Charles atrasado! Mas no queria de maneira alguma ficar com calor, ou com

mais fome que a que j sentia. Porque duro manter superioridade quando se sente calor. Depois, tinha de gelar Charles, e para esfriar os outros preciso estar frio tambm.

Os cinco minutos estavam no fim. Ela ia exatamente inclinarse para o lado e espiar o relgio, quando uma voz disse, do outro lado das hortncias:

Pena que voc no possa casar com ela.

O interesse de Ann pelo relgio desapareceu. Teoricamente escutar s escondidas coisa que ningum faz. Mas na prtica fascinante apanhar retalhos da histria de outras pessoas, repentinamente entrevistas no trem, no nibus, no restaurante, na rua movimentada. Como no conhecemos essas pessoas, o fato pouco lhes importa.

Ann interessouse intensamente pela voz que vinha do outro lado das hortncias. Voz masculina, baixa.

Pena que voc no possa casar com ela, - dizia. - E depois: Tem certeza, a respeito do testamento?

Copos tiniram. Havia ali duas pessoas. Ann nada podia ver, mas ouviu outra voz responder:

Claro que tenho certeza. No fale to alto.

Era intrigante. Alto? Mal e mal se distinguiam as palavras; to sem timbre vinham as vozes que no possuiam individualidade alguma. Ambas podiam ser a mesma voz; acontecia que no eram. Uma respondera outra com aquele fantstico No fale alto.

Ann estava desesperadoramente interessada. Quem s no mundo tem de se interessar por outras pessoas, seno comea a morrer. E Ann possua muita vitalidade. Inclinouse sobre uma hortncia azul e escutou. A hortncia lhe fez ccegas na orelha. Ouviu a segunda voz dizer:

preciso eliminla antes que ela saiba.

A primeira voz no respondeu. Barulho nos copos. A segunda voz continuou:

Se ele morre sai tudo nos jornais. preciso eliminla antes que ela saiba.

Bebiam qualquer coisa com gelo. Que gostosura! A lngua de Ann parecia um biscoito seco. Que gostosura, o som do gelo! E Charles atrasado.

A primeira voz disse:

le no a viu nenhuma vez? E a segunda respondeu:

E nem vai ver. Voc precisa eliminla imediatamente.

E da?

As palavras nem pareciam palavras. No havia som que as acompanhasse. Contudo, Ann as ouvia.

Em um segundo deixou de sentir calor; estava gelada. Um calafrio lhe percorreu o corpo. No queria continuar ouvindo. Queria que Charles chegasse. E da? ystas duas palavras, que realmente ela no podia ter ouvido, pareciam penduradas no silncio. Silncio horrvel. A outra voz no o rompia. Somente depois de um minuto intolervel veio um som rascante, como de cadeira arrastada.

Ann se levantou, e enquanto o fazia a segunda voz tornou a falar, um pouco mais alto: O resto com o diabo! e ouviu som de passos que se afastavam.

Durante um minuto continuou onde estava porque sabia que no podia moverse. Quando olhou alm das hortncias nada mais viu alm de duas cadeiras e uma mesa, e um par de copos vazios.

III

Charles chegou cheio de desculpas, mas ainda mais cheio dos estragos na pintura do carro e das enormidades de um sistema que soltava coelhos abobalhados pelas estradas, em montes antediluvianos de socata.

E ele ainda chama aquilo de carro! - disse Charles, plido de ira. - Disse que estava aprendendo a guilo! Prefere grapefruit ou hors deeuvres? A coisa se desmancharia onde parasse, se no fosse a ferrugem! No posso imaginar como deu partida, nem sei como esteve a pique de me amassar o tanque de gasolina! Voc no devia comer hors 'euvres; estraga o resto do lanche.

Ann, deliciada, encheu a boca de sardinha e ovo. Formidvel comida! formidabilssima! e tanta coisa mais para vir, ainda! Sorriu para Charles, perdoadora, e disse a verdade:

Estou morrendo de fome.

Est bem. No se incomode. Gosto de ver voc comendo. Acho que a nica pequena que come de verdade. Uma noite destas sa com uma pequena, e ela jantou quatro cocktails e duas colheradas de grapefruit. Coisa embaraosa para mim que tinha jogado golfe e estava louco por comer de verdade.

Ann comeu at a ltima migalha de hors d'euvres. Havia milho, cogumelos, salada russa, pepino, sardinha, anchova, ovo, e uma azeitona gorda e verde. Ao terminar o ltimo gro de milho sentiuse melhor. O rosto de Charles foi novamente focalizado, e no fugiu. Coisa reconfortante; esperava que ele no tivesse notado nada, mas nos primeiros minutos a sala tinha estado cheia de fagulhas que dansavam, ofuscantes; e o rosto de Charles ia e vinha no meio delas, como numa brincadeira de mau gosto.

O garon trocou de prato e serviulhe uma sopa cremosa, com talos de espargo. Depois ainda vinha o salmo, a torta, e pche Melba. Sorriu com tanta doura para Charles que ele quase perdeu a cabea, e apenas se salvou recorrendo imediatamente anedota. Estava claro que ele proporia casamento a Ann antes de terminarem o lanche, mas no seria decente fazlo durante a sopa; num caso destes, se a pequena diz que no, pode haver um vcuo durante o resto da refeio. Alm disso, seria melhor falar primeiro a respeito de Bewley. Acabou aos trancos a histria e disse:

Vou pr Bewley venda.

Ann deixou a faca do peixe e o garfo juntos no prato vazio. Hors d'euvres, sopa, salmo e a impresso que tinha era de que havia apenas comeado. Esperava que viesse bastante torta. Ser que se podia pedir repetio no Luxe? Charles tinha falado qualquer coisa a respeito de Bewley. E continuava a falar, com aquela carranca que aparecia to depressa.

Bewley tem de ir embora.

Por que no dizia ela alguma coisa? Haveria diferena? Com Bewley ser que ela o aceitaria, recusandoo sem a propriedade? E ele a quereria, no ltimo caso? No sabia a resposta das duas primeiras perguntas, mas da ltima sabia. Quisesse ela o que quisesse, fosse como fosse, ele queria Ann. Cus, como necessitava de Ann! Disse bruscamente:

Por que no fala nada?

Ann encontrou qualquer coisa para dizer.

Sinto muito. Falta de dinheiro.

Charles viu Bewley sob o sol de agosto: florestas sombrias, o pntano avermelhado pelos tojos. um retalho azul de mar, segurana, quinhentos anos de propriedade, carvalhos que j estavam ali quando os Stuarts reinavam e um Anstruther tinha saido a galope para morrer em Marston Moor.

No posso mais conservla. Est tudo caindo aos pedaos; sai mato de todo canto. No h remdio.

O que voc precisa procurar uma herdeira, - disse Ann despreocupadamente.

Se no falasse depressa e com despreocupao a voz podia tremer e Charles havia de pensar... quando a verdade era apenas o po seco e as caminhadas atrs de emprego.

Charles sorriu; ela gostaria mais que fechasse a carranca.

Quem est venda Bewley, no sou eu.

Devia ser uma herdeira muito bonita, - respondeu

Ann.

Charles concordou de bom humor:

Devia.

Ann sorriu. Tinha chegado a torta. E bastante. Coisa de massa mata a fome. Havia gelia. Trufas. Ervilhas, e batatas admirvelmente novas. Procurou continuar pensando no que comia e em como bom no sentir mais fome.

Se Charles achava que a enterneceria com qualquer coisa assim como Bewley eu posso vender, porque minha; mas eu sou seu, seria melhor que pensasse duas vezes antes de tentar. Uma ideiazinha traioeira apontou e ficou mexendo no fundo do crebro; por qualquer paga sairia para acenar a Charles, a burrinha. Ann no lhe deu ouvidos. Fisgou uma trufa, olhouo com enternecimento, e disse:

Voc faria muito melhor se procurasse uma herdeira.

Obrigado, - respondeu ele, ainda bem humorado. Ann fisgou outra trufa.

Mas srio mesmo. Que mal havia em uma herdeira?

No quero herdeiras, obrigado.

Se voc no quer, Bewley quer. Creio que algum dia voc h de se apaixonar por algum. Porque no seria como uma pequena que tivesse recebido dinheiro? Pode ser que ela fosse conquistadora. No h coisa menos atraente que a pobreza, como voc sabe. Estraga com a pessoa, porque obrigaa a pensar a vida inteira em dinheiro coisas horrivelmente srdidas, como esta ser que d para o nibus? ou posso comprar manteiga hoje? Todo mundo devia ter dinheiro suficiente para nunca ter de pensar nele. Voc nem imagina como eu seria bonita se tivesse mil libras por ano.

Para salvar Bewley seria preciso mais do que isso.

No haver um meio de fazla render?

No sem capital.

No pode alugar, em vez de vender?

De que me adianta, se no poderei mais voltar l? Alm disso, est tudo caindo aos pedaos casas, cerca, tudo. Decadncia sem conserto.

pena.

Charles continuou a falar a respeito de Bewley. Talvez isso o aliviasse. Talvez unicamente porque era to fcil conversar com Ann.

Ann, de seu lado, continuou a ouvir, o que achava muito simples. Sentiase calma e tranqila. Terminou a torta e o ch pche Melba devagar, saboreando bem. A voz de Charles era bonita. Quem sabe, no fim de contas, ele no teria de vender Bewley? Se se casasse com uma herdeira ela no poderia tornar a lanchar com ele. Lanche esplndido, aquele. Comeou a ter certeza de que obteria o emprego de Westley Gardens. No precisava ter pressa, porque o trato era estar l s trs e um quarto. Tudo acabaria bem.

Sorriu para Charles e disse:

Voc que tem tantas tias, primas e parentes, ser que no pode me arranjar um emprego?

Charles ficou um tanto desapontado. Tinha falado a respeito dos impostos trs boladas em dez anos, o bastante para esborrachar qualquer pessoa. Gastou um instante adaptandose questo do emprego.

Precisa de um?

Ora, Charles! Se preciso? para falar verdade, espero arrumar um esta tarde. Algum mandoume um jornal onde vinha sublinhado um anncio.

Quem mandou?

No sei. Acho que Mary Duquesne. Acaba de viajar para a ndia.

Que emprego esse?

Secretria de uma velha, parece. Em Westley Gardens. Vou conversar com ela esta tarde. Mas se no der certo, se voc tiver uma tia na manga...

Charles franziu um pouco o sobrolho. muito bom ter parentes respeitveis, mas isso no ponto de partida para pedido de casamento. evidente que uma prima respeitvel no romntica. Mexeu o caf com energia feroz. A idia de Ann como dama de companhia ou secretria o indignava. Ergueu a cabea e deu com o sorriso dela. Comeava nos olhos com um brilho rpido de tristeza e depois repuxava um pouco os cantos de uma boca muito atraente. A indignao desapareceu. Firmou o cotovelo na mesa.

Se voc quer mesmo um emprego...

E eu quero mesmo.

Acho que tenho um, mas no sei se lhe agradar.

Ann suspirou.

Ora essa... preciso viver.

Mas talvez no goste.

Eu gostaria de ser uma Rica Vadia, mas como no posso... que emprego esse?

Eu.

Ann teve a impresso de que levara uma pancada. Muito vulgar! O traidor oculto na mente mexeuse e gritou Viva!

Voc?

No quer? - disse Charles. A mudana em sua voz buliu com o corao de Ann. Coisa inesperada e descon certante. Veiolhe um engasgo, a impresso de que ia de repente debulharse em lgrimas. Coisa tremendamente desconcertante. Felizmente esse sentimento durou apenas um minuto.

Charles, meu caro, isso no me parece nem um pouco respeitvel. Creio que seria muito melhor uma prima ou uma tia.

Charles inflamouse de clera.

Que que pensa que estou pedindo?

Ann ps os cotovelos na mesa, tambm. Seu rosto, com os olhos ligeiramente tristes e os lbios que no eram to severos como deviam ser, estava poucas polegadas distante do dele.

Pedido de casamento?

Claro que .

Que bondade sua, Charles!

Aceita?

Aceitar, no aceito. Mas muita bondade sua, do mesmo jeito.

Ann! - Ela recuou.

No. no.

Falou um pouco mais depressa, e Charles se inclinou mais.

Por que?

Falta de experincia, - respondeu ela e a tristeza tornou a brilhar nos seus olhos. - a primeira coisa que perguntam: Que experincia tem? e se a experincia nenhuma, ou a gente fica sem o emprego, ou mudam de idia a respeito do ordenado e oferecem 5 shillings por semana para fazer o dobro do que a ltima empregada fazia.

Vai ser mais de 5 shillings. Se eu vender Bewley ficaremos bem. H um candidato compra, um fabricante de sapatos cheio de dignidade e dinheiro.

O ficaremos assustou Ann. Empalideceu um pouco e mudou de tom. Falou, com seriedade:

H quanto tempo voc me conhece, Charles? Dois meses, trs? E que sabe a meu respeito? Encontrouse comigo pela primeira vez em junho no Ciros, em companhia dos Duquesnes. Mary nos apresentou e voc s a havia encontrado duas vezes, antes. Depois disso temos dansado, ido ao rio juntos, nadado e tornado a dansar. Que conhece realmente de mim?

Que que uma pessoa conhece de outra? Gosto de voc. Quero que case comigo, e depois teremos o resto da vida para nos conhecermos melhor.

No est sendo muito apressado? Charles sorriu.

J a conheo muito bem, mas quero conhecla melhor ainda.

Que sabe a meu respeito?

orgulhosa, prtica, generosa, idealista gosta de flertar, um pouco de tristeza, outro nada de mistrio e...

Hesitou.

E o qu?

No sei se convm dizer.

Acho que deve.

uma criatura... desiludida.

Ann acenou que sim. Deixou cair uma das mos no regao e apoiou o queixo na outra.

Voc extraordinrio! Pareceme que est tudo certo. Vou contar alguma coisa a respeito da desiluso, se voc quiser. Assim voc saber por que no convm casarmonos.

No quero saber, respondeu ele rapidamente.

Ann riu.

Ora, ora, Charles! Que coisa mais cavalheiresca! Mas meu passado nada tem de vergonhoso. Sou absolutamente respeitvel. Gostaria que voc ouvisse, se isso no o aborrece.

No aborrece em nada.

Vou tratar de fazer a histria atraente e curta, - disse ela como quem promete grandes coisas. - Romance condensado. Nmero um... No, no convm brincar, porque no a minha tragdia a tragdia de meu pai e de minha me. le era um engenheiro americano, e fugiu com ela. No me parece que tivesse parentes prximos. Alugaram uma casinha no campo, e ele vivia para baixo e para cima, no emprego. Foram tremendamente felizes durante um ano e depois um acidente de rua o matou. Eu tinha um ms de idade. Minha me escreveu imediatamente ao tio, mas ele no respondeu e ela no quis tornar a escrever. Creio que era rico. Ela nunca me falou a seu respeito. Chamavase Elias Paulett. No sei se ainda est vivo.

Conheo uma pessoa com esse nome, - interrompeu Charles. - Uma pequena. Hilda Paulett.

Talvez seja parente. A respeito de meus parentes no sei uma palavra, exceto sobre o tio maldoso, que talvez j esteja morto. Essa Hilda boa pessoa?

Mais ou menos. Costuma hospedarse perto de Bewley, em companhia de pessoas que no aprecio.

A verdade que no quero saber coisa alguma sobre meus parentes. Se algum deles tivesse corao, teria ajudado minha me.

Que fez ela? - Ann corou.

Trabalhou...

Houve uma pausa, e a moa acrescentou:

Trabalho duro, trabalho assassino, tudo quanto aparecia. Quando eu tinha perto de cinco anos trabalhava por dia na casa senhorial da aldeia. A famlia de Mary Duquesne morava l. Davamlhe licena para levarme tambm, e eu brincava na nursery com Mary. s vezes minha me

ficava por ali, costurando; ela costurava muito bem. Depois arranjaram governante para Mary, e eu participava das lies. Mary era delicada. Achavam que eu era uma boa

coisa para ela. Nesse tempo eu no sabia, mas usavamme como recurso educativo como droga engarrafada que se deve tomar diariamente, com cuidado para no se transformar em hbito.

Riu.

Ora. Charles, no faa essa carranca.

medonho, - disse ele.

No tanto. Todos eram muito bons, e eu me sentia bem. Gostava de Mary e no sabia que minha me se matava de tanto trabalhar. Morreu quando eu estava com quinze anos, e a me de Mary me levou para viver com elas. Veio uma governante aperfeioar a educao de Mary, de modo que tive educao cara. Tudo foi muito bem at a ocasio em que Mary foi apresentada sociedade. A surgiu a crise: um homem que haviam convidado por causa dela apaixonouse perdidamente por mim. Eu fui to burra que pensei que ele queria casar comigo. Est claro que no queria.

Charles disse alguma coisa em voz baixa.

Obrigada, - respondeu Ann. Estava sorrindo. - Foi a que aprendi o que significa no ter bero. Voc compreende, era difcil distinguir Mary de mim. Fazamos exatamente as mesmas coisas desde os cinco anos. Uma pessoa de fora no saberia qual de ns duas era a filha e qual... a droga engarrafada.

No fale assim, Ann! - Ela concordou com a cabea.

Estou quase acabando. Mary foi para a cidade fazer a estao. A me arrumoume um emprego de secretria de Mrs. Twisledon Helena Forbes Twisledon, espcie de parente deles.

Gostou disso?

Ann mudou de expresso.

Era a criatura mais temivelmente eficiente que se pode imaginar; no era propriamente humana. Voc

compreende, tudo pelo mtodo. treino muito bom, mas um pouco pesado. Fiquei quatro anos com ela. Depois, morreu de repente, e tive trs empregos atoa. um depois do outro: uma viciada em drogas, um fantasma de velha que pretendia que eu fosse tambm copeira e um homem que sugeria fins de semana em Brighton. Tornei a encontrar Mary em junho. Tinha acabado de casarse com Sir Henry Duquesne. Foram muito bondosos para mim. Eu estava desempregada, e fiquei com eles algum tempo. Foi a que nos encontramos. E assim chegamos atualidade, e voc j sabe por que no quero casarme com voc.

Ser que sei?

Devia saber.

Ann tirou o cotovelo da mesa e endireitou as costas. Quando Charles a olhava daquele modo era difcil manter o sangue frio.

Se voc no se incomodasse de explicar...

Pensei que tivesse explicado.

Pois ento eu no entendi. - Ann suspirou.

Porque no quis. - E, inclinandose novamente:

No compreende, Charles? No tenho sequer uma das coisas que a sua mulher precisa ter bero, posio,

famlia, dinheiro. Qual ser a primeira coisa que suas tias vo perguntar? De que famlia ela?

Ann!

Ela riu, com um pouco de zanga.

E mesmo! E se eu fosse bastante tola para me

casar com voc, nunca mais me deixariam esquecer que

vim do nada. Apenas uma coisa neste mundo me abriria os braos delas dinheiro. Se eu fosse apenas uma moa que herdou fortuna tremenda, no creio que viessem aborrecer me a respeito de meu pai ou de minha me, especialmente sabendo que ambos j morreram.

Estava vermelha, os olhos tinham um azulescuro colrico, mas a voz era calma e doce. Tirou os olhos de

Charles e olhou o relgio do outro lado da sala; empurrou a cadeira para trs.

Tenho de correr.

Charles no respondeu. Pagou a conta e caminhou calado junto dela um par de metros alem da porta giratria que dava para a rua. Ento disse:

Um minuto mais. Quando que vou encontrla

de novo?

No ano que vem... qualquer hora... nunca mais.

Quer jantar comigo hoje noite? - Ela sacudiu a cabea.

E por que no?

No sei porque que voc me convida. Charles olhoua.

Pois ainda no acabei a proposta de casamento. - Ann sentiuse melhor. Gostava de situaes assim.

Ainda no? Pois acho que j acabei de recusar.

No me sinto recusado.

Posso recusar por escrito, se prefere. - Charles sacudiu a cabea.

Eu podia acreditar, e voc ficaria triste. s oito aqui? Ou prefere fazer fitinha? Em tal caso...

Ann ficou com medo. Meio minuto mais, e ela diria que sim. E se dissesse que sim, estaria perdida. Sentia isso nos prprios ossos. Respondeu:

No posso. Charles, vou chegar atrasada no encontro.

Eu a levo de automvel; est fazendo muito calor para se andar a p. Podemos conversar mais pelo caminho.

No taxi voltou carga:

Por que no pode jantar comigo hoje noite? Est com medo?

Ann corou fortemente. Abriu a boca para falar, e tornou a fechla.

Janta?

No.

Charles suspirou alto.

Tenho a impresso de que voc est fazendo o possvel para que eu perca a cabea. Mas no perco; com este calor no convm. Por que no quer jantar comigo?

Quer mesmo saber?

Tenho a impresso de que j se tornou patente esse desejo.

Ela se sentou bem no canto da almofada.

No tenho vestido para noite.

Por que no tem?

Penhorei.

Seguiuse um breve silncio carregado de eletricidade, depois do qual ele a segurou pelo pulso.

Por qu?

Ann sentiuse mal, mas manteve a voz calma.

Por estar desempregada; desde junho. Est claro que eu devia ter economizado alguma coisa enquanto estive com Mrs. Twisledon, mas no economizei. Charles, voc quebra meu pulso.

No creio que chegue a quebrar. Ann, esquea essa entrevista sem graa e vamos a um lugar qualquer onde possamos resolver essa histria toda.

No sem graa: um salvavidas na tempestade. Voc nem imagina como difcil arranjar emprego.

A mo dele apertou mais o pulso.

Pois eu no lhe ofereci um? Olhe aqui, Ann, h apenas um motivo para recusar que voc odeie minha presena, e nunca mais deseje verme.

Pode ser que seja isso.

Sei que no .

Ningum casa com qualquer pessoa a quem no odeie.

Mas voc pode casar comigo.

Ann se ergueu, repentinamente plida e spera.

Faa o favor de largar de mim.

Quando Charles comeou a abrir a mo ela a retirou bruscamente e pla no regao. Charles insistiu:

Ann...

E Ann respondeu, em voz baixa, mas bem distinta:

no, Charles, e ser sempre no.

Tem certeza?

O taxi parou. Ann virou a maaneta e saltou para fora. Tinha subido correndo trs degraus da escada que levava ao pequeno vestbulo rodeado de pilares e tocava a campainha, quando Charles a alcanou. Olhou pelo ombro e sorriu. Podia sorrir tranquilamente agora que a porta estava a pique de abrirse.

Ann, voc me telefona? Acho que no me dar licena para vir esperla?

No, no convm esperar. Eu telefono. Por favor, Charles.

Ann, no fique com esse emprego. No preciso. Espere!

Uma onda de incompreensvel fria passou pelo autodomnio da moa.

Esperar? Estou comendo po seco desde sbado. - E com isso a porta se abriu.

IV

Um empregado moo e alto precedeu Ann em uma escada de tapete espesso. Usava libr cor de chocolate, com botes dourados. O tapete era carmezim, com o tom forte que os hotis preferem. Extraordinariamente parecida com hotel, aquela casa um hotel comercial sublimado.

Numa volta da escada um espelho cuja moldura dourada teria quase meia jarda refletia o esplendor do criado e a pobreza de Ann. O chocolateescuro tinha qualquer coisa que a fazia sentirse ainda mais miservel. E dourados por toda a parte; o papel das paredes tinha vastos desenhos dourados. No era provvel que a inteno do artista fosse representar couvesflores de ouro estendidas num caramancho carmezim, mas a impresso que se tinha era essa. De cada lado da porta da sala de visitas surgia uma palmeira viosa, sobre pedestal de porcelana azul. O criado abriu a porta e anunciou: Miss Vernon.

Ann entrou na sala mais terrvel que jamais vira. Mais tapetes carmezins, mais molduras. Sete aspidistras cada uma em um vaso de porcelana berrantemente colorida. Lm dos vasos em azul, e dois eram corderosa, e dois eram amarelos, e dois eram verdes. Moblia com estofamento muito teso, de cetim ourovelho. Cinco espelhos, no mnimo. Cortinas de lao Nottingham.

De uma das cadeiras ourovelho, surgiu um homem corpulento, de meiaidade, com cabelo ruivo que comeava a acinzentarse. Avanou uma jarda para Ann e inclinouse formalmente.

Miss Vernon?

Vim procura de Mrs. Halliday, - disse Ann. - Escrevilhe a respeito deste anncio.

E mostrou o recorte. O homem acenou com a cabea.

Sei, sei... e recebeu resposta assinada J. Halliday. James Halliday sou eu.

Ann sentiu a mais estranha das sensaes. Por uma frao de segundo pareceulhe que tudo isso j acontecera antes. Em tudo havia incompreensvel familiaridade. Tinha acontecido antes, ou ento nunca acontecera...

Em um instante tudo desapareceu, e ela disse:

Mas foi Mrs. Halliday que eu vim procurar.

Sei disso. Mrs. Halliday, como diz a senhora. Minha me. Quer fazer o favor de sentarse, Miss Vernon?

Ann sentouse em uma das poltronas douradas. Ainda era mais terrfica do que parecia. Mr. Halliday voltou ao seu lugar. Ps as mos nos joelhos e olhoua com ar comercial.

O de que Mrs. Halliday precisa de companhia. E quando falo companhia o que quero dizer exatamente isso. J tem a empregada, que trata dela, vai tirla da cama, levaa cama. e faz o necessrio. Se vier a adoecer, o que, espero, no acontecer, no sero poupadas despesas. Mas precisa de companhia, de algum que a mantenha alegre, que se divirta com ela, ouaa quando ela quiser falar, que a deixe em paz quando quiser sossego.

Correu as mos pela cabeleira, e desarrumoua.

No sei se me entendeu...

Penso que entendi, - respondeu Ann.

Mr. James Halliday alisou o cabelo desgrenhado.

No imagina o trabalho que isso d. Gosta de companhia inteligente, mas sem presuno.

Vou fazer o possvel para agradarlhe, - disse Ann.

Pois exatamente isso. A senhora compreende, o caso ste ela velha, e tem suas esquisitices. Acho que todos ns as temos, mas ela chegou a uma idade em que quer ser tolerada e no o sendo as coisas se complicam. No negarei bom ordenado a uma pessoa que a faa sentirse feliz. Pois a est a coisa toda, Miss Vernon. Seu emprego ste: fazer Mrs. Halliday feliz. Quando pode comear?

Ann ficou um tanto abalada.

A qualquer hora... no tenho compromisso algum.

Ah! - disse Mr. Halliday. - timo! Consultei a pessoa mencionada pela senhora... aquela Lady Gillingham de quem a senhora disse que fora educada com a filha... posso avanar que fez as melhores referncias possveis. Vamos esclarecer nosso caso. Diz a senhora que no tem compromisso. Quer dizer com isso que poderia vir hoje?

Com extraordinria clareza Ann ouviu Charles dizerlhe no taxi: No aceite esse emprego, Ann. Detevese um momento, bateu a porta no rosto de Charles, e respondeu:

Perfeitamente; posso vir hoje mesmo, se Mrs. Halliday julgar necessrio. Ser que posso vla j?

Mr. Halliday levantouse com ar de alvio e levoua de volta s couvesflores do caramancho carmezim. Bateu em uma porta direita e guiou Ann quarto adentro.

Mrs. Halliday estava sentada, direita como uma flecha, em uma cadeira vitoriana de encosto e assento duro e armao de nogueira amarela com entalhes incmodos. Havia no cho uma velha almofada de retalhos que dava a impresso de ter cado naquele momento. Era com alvio que se verificava a ausncia de douraduras no quarto. Tapete antigo, com enormes rosas azuis e corderosa em fundo bege. Sof de crina, com armao de nogueira, e um grupo de estranhas cadeirinhas vitorianas com aplicaes de l. Cortinas de pelcia carmezim com franja e largo debrum. Mesinha redonda com toalha de veludo rodeada de croch, junto ao cotovelo de Mrs. Halliday. Sobre ela um grande lbum de fotografias, com fecho dourado, e uma caixa de costura, de Tombridge.

Mrs. Halliday usava um aventalzinho de seda negra sobre o vestido de casimira escura. Sobre os ombros tinha pequeno chale, e uma touca antiga de malha lhe prendia a cabeleira acinzentada e lisa. O chale estava preso por um broche enorme cujo desenho era um ramalhete formado por cabelos de cores diferentes, circundado por um arco de ouro batido. A touca era enfeitada com rouches de fita estreita de dois matizes do vermelho. Entre a touca e o broche eriavamse as sobrancelhas de Mrs. Halliday, o nariz grande e ossudo e o queixo decidido. Sobrancelhas cinzentas que faziam ferozes linhas oblquas sobre um par de olhos cinzentos muito inteligentes. Rosto longo e fino. Estendeu uma mo ossuda, com um anel onde brilhava avantajado diamante, e disse:

Como vai?

Miss Vernon, mame, - disse Mr. Halliday.

Parecia ter ficado instantaneamente nervoso. Adiantou uma cadeira trabalhada em ponto de cruz corderosa e carmezim, e imediatamente recebeu ordem de colocla em outro lugar.

E pode ir embora, rapaz. Podemos muito bem conversar sem voc. At hoje no vi duas mulheres que se entendessem melhor com um homem perto que sem ele.

Falava com forte sotaque campons, e terminava as frases com um cacarejo. Possuia duas filas de dentes largos e alvos que, coisa admirvel, pareciam ser todos dela mesma.

Quando a porta se fechou sobre Mr. Halliday, voltou para Ann um olhar agudo.

Vernon? E o nome de batismo, qual ?

Ann.

S Ann?

S Ann.

Muito bom nome, - disse a velha com entusiasmo. Minha av deu esse nome a trs de seus quatorze filhos, antes de ver vingar um deles. Mulher extremamente perseverante. Tenho aqui uns fios do cabelo dela, no broche. O ramo de urze branca dela. O cabelo dela ficou alvo que foi uma beleza, antes da morte. O meu parece que vai ficar cinzento at o fim.

Ann olhou encantada o broche com o ramilhete.

Todos parentes? - perguntou. - Quero dizer, cabelos de parentes. Que coisa interessante.

Alguns por afinidade, - respondeu Mrs. Halliday. Desabotoou o broche e inclinouse para ele.

Aquele rannculo do cabelo de minha me, quando mocinha. Claro como um malmequer, no? Dizem que foi a menina mais bonita das redondezas, num raio de cinqenta milhas. No me lembro dela. Essa florzinha a ao lado dela minha irm Jane, com quem ela morreu. A irm de meu pai, que tinha veia potica, escreveu, a respeito, uma elegia:

A me e a linda filhinha

partiram, E nenhuma outra nos nasceu.

Coisa meio sem sentido, ao que nos pareceu, porque nosso pai no era bgamo. Mas poesia assim mesmo. No sei que proveito trouxe a tia Maria. C est o cabelo dela, na haste e acho que s servia para isso mesmo. No passou de uma solteirona.

Prendeu novamente o broche, num arranco, e disse asperamente:

Mas isso no vem ao caso. Que idade tem voc?

Vinte e dois, - disse Ann.

Mrs. Halliday concordou com a cabea.

J faz sessenta anos que tive essa idade. Sessenta e qualquer coisa. Deixa ver...

As sobrancelhas eriadas uniramse.

Fiquei dez anos no mesmo emprego. No comeo para servicinhos leves. Hoje no costumam mandar para o

emprego meninas de doze anos, mas no meu tempo mandavam, porque as famlias eram grandes cinco de minha me, no contando Annie Jane, mais quatro que a segunda mulher de meu pai trouxe consigo do primeiro casamento dela, e mais seis que resolveram ter para terminar. Mas como eu ia contando, aos vinte e dois eu era arrumadeira na casa grande da aldeia, muito satisfeita da vida porque ganhava vinte e seis libras por ano. Como digo a essa gente que hoje aparece dizendo que trabalha. Digo assim: Voc no sabe o que trabalhar; se eu deixasse tanta poeira, no meu tempo, como voc continua a deixar, o que eu apanhava era uma despedida no estilo de antigamente. Mas muita coisa mudou desde que eu tinha vinte e dois anos. Pretende casarse?

Oh, no, - disse Ann. E ouvia a voz de Charles dizendo Ann! nos escaninhos de sua mente.

MrS. Halliday concordou com a cabea.

Tem tempo de sobra, - disse ela. - Se as moas soubessem o que as espera no teriam tanta pressa. Aos vinte e dois eu namorava o moo da estrebaria, bonito rapaz; deu o pior marido que se poderia encontrar em um ms s de domingos. Mas no para mim, graas a Deus, apesar de eu ter chorado at avermelhar os olhos quando ele me deu o fora e foi namorar Dorcas Rudd por causa da carinha bonita dela, coitadinha.

Voltou a jovialidade ao seu rosto.

Que ordenado pretende?

Mrs. Twisledon me pagava cem libras, - respondeu

Ann.

Mrs. Halliday cacarejou com a lngua.

Quanto dinheiro! Mas isto com Jimmy, - E continuou: - Parece que fabricante de dinheiro, Jimmy! Mas no digo que seja mau rapaz; muito bom fillho, tambm. Nunca me negou nada, posso afirmar.

Ento quer que eu venha, Mrs. Halliday? Acha que eu sirvo para o trabalho?

Mrs. Halliday acenou com deciso.

Quando encontro uma dama, imediatamente a reconheo, - disse ela.

V

Ann foi agncia postal mais prxima, de cuja cabine telefnica chamou Charles Anstruther. Quando fechou atrs de si a porta, o estrpido do trfego da movimentadssima esquina vizinha morreu repentinamente. Uma luz brilhou no teto, e logo depois Charles dizia:

voc, Ann?

Ann respondeu fracamente que sim. que havia comprendido naquele momento o que significaria trancar a porta ao mundo e deixlo girar. O mundo rolando l fora, e Charles em companhia dela. Sonho impossvel mas intolervelmente doce, como apenas o pode ser um sonho.

Mas na voz de Charles nada havia de fantstico, ao dizer:

Que foi que houve?

No houve nada.

Por que est falando desse jeito?

No estou falando de jeito nenhum.

Est sim, Ann, voc vai jantar comigo hoje noite?

No posso. Arrumei o emprego, Charles! No maravilhoso? Que acha?

Acho que uma droga.

Animal! E isso depois que eu lhe disse que estava vivendo de po seco!

Ann!

Hoje noite, - disse Ann com voz gulosa, - vou jantar com Mr. James Halliday. Acho que vamos ter pssego de estufa, sopa de truta, aspargo e morangos.

No tempo agora, - disse Charles vagarosamente.

Ora, Charles, mas exatamente por isso. A casa desse jeito. Cheia de pelcias, dourados, fes e erres.

Quem esse indivduo? - perguntou Charles numa voz que fez o telefone trepidar.

Se voc rugir dessa maneira, capaz de derreter o fio, e a eu no poderei contar mais nada a respeito de meu emprego. Mas quem sabe voc no se interessa?

Quem esse indivduo? - repetiu Charles, com voz ainda mais vigorosa.

respeitvel em toda a linha, - respondeu Ann. - Filho da velha Mrs. Halliday. Fui empregada com o ordenado principesco de cento e vinte libras por ano para ouvir o que Mrs. Halliday falar.

Mas ento por que vai jantar com Mr. Halliday?

Porque a me dele no janta. Seu costume somente o que ela chama Um pouco de sopa com cama.

Venha jantar comigo, - disse Charles. E, aps uma pequena pausa, disse o nome dela Ann. Mas disse de tal modo que significava Ann querida.

Ann deu um passo atrs, como se ele estivesse ali em pessoa, tentando arrastla.

No posso, Charles.

Onde voc foi? No a ouo. - Ann avanou novamente.

Eu disse que no posso. Vou comear o trabalho imediatamente. Nesta horinha vou para casa arrumar a mala para a mudana.

E quando que posso ver voc outra vez? - disse Charles tempestuosamente.

No sei, - respondeu Ann.

E, com um At logo colocou o receptor no gancho. No se sentia capaz de continuar ouvindo a voz de Charles. Era perfeitamente idiota que seu corao batesse com tanta fora. Ficou na cabine at que se acalmou, e depois abriu a pesada porta de vidro, deixando entrar o rumor do trfego.

Na casa de Westley Gardens Mr. James Halliday tambm telefonava. E dizia:

voc, Gale? Vai tudo bem. Ela vem hoje noite. E ele, como vai? Na mesma?

Uma voz spera respondeu:

Claro que est na mesma. No haver diferena, enquanto ele no morrer.

Bom, bom, bom, - disse Mr. Halliday. - Quanto a isto no h pressa, como voc sabe. Se o mantivermos vivo mais um ms, tanto melhor.

Um ms? De que adianta falar nisso? Pode morrer amanh, e pode continuar pendurado entre a vida e a morte mais meio ano. Voc tem que tirla do caminho. No momento em que ele perder a respirao vai aparecer uma matilha de reprteres farejando os cantos, e antes de vinte e quatro horas algum deles descobrir os termos do testamento; e, como voc sabe, a primeira coisa a acontecer depois ser que ela h de ver o nome nos jornais embaixo de manchetes assim A Herdeira do Milionrio. Ou voc anda depressa com isso, ou estamos perdidos.

Est certo, est certo, - respondeu Halliday. - Voc fala demais, Gale, como, alis, j sabe. Telefonei para lhe contar uma coisa e voc tagarelou tanto que quase me fez esquecer a coisa.

E o que ?

Alem disso, muito impaciente, tambm. Nessa questo convm andar com cautela. O que eu ia contar que a velha lhe perguntou aquilo de que no tnhamos certeza se pretendia casarse, ou qualquer coisa assim e ela respondeu que no com voz to fria como um pepino.

Atravs do fio veio um som que era demasiadamente indignado para parecer gargalhada.

Voc enjoa a gente! Ento acha que ela iria logo contando a vida toda na primeira entrevista e entrevista comercial, alm de tudo?

Mr. Halliday adotou um tom de ofendido.

O que sei que Mrs. Halliday fez a pergunta com muita sinceridade, e no havia motivos para que a pequena mentisse.

O som indignado se repetiu.

Voc tem a mais perfeita mentalidade respeitvel da classe mdia! ou no , Jimmy?

A voz de Jimmy indicou ressentimento ainda maior.

E que mal h em ser respeitvel? E que mal haveria para a pequena em dizer que tinha namorado, mesmo que no estivesse noiva? Eu acho o seguinte: se tivesse, ela diria que sim. para ter desculpa e sair com ele; mas a velha diz que ela no vacilou em responder que no tem. Houve uma pausa. Mr. Halliday disse: Ainda est a, Gale? - e recebeu um latido em resposta.

Claro que estou aqui! Quando que vocs vo

sair?

Bem... Acho que segundafeira, respondeu Mr. Halliday, duvidoso.

Cinco dias? Muito perigoso.

Mr. Halliday tossiu.

A velha no gosta de viajar sextafeira; acha que d azar. No gosta tambm de viajar sbado, nem domingo.

A propsito de que esse absurdo infernal?

Eu que no vou contrariar a velha, - disse Mr. Haliday.

Que mal h em sair sbado?

Ela no gosta, - disse Mr. Halliday. - No to oposta ao sbado como sextafeira, ou ao domingo, mas no gosta. Vou experimentar de novo.

O homem denominado Gale fez o receptor tremer:

Tem de gostar! Ouviu?

Bem, vou tentar, - respondeu Halliday. - At logo, Gale. - E pendurou o receptor.

Gale estava furioso. Gale sempre ficava furioso. Elias Paulett no haveria de morrer antes de segundafeira. Era dessa espcie de homens que ficam toda a vida, vai, no vai. Mas se havia qualquer risco, o melhor seria mudar para sbado. O pior era ter de lidar com um homem como Gale nunca se sabe at que ponto deve ser levado a srio. Se Gale queria que algum fizesse algo, vinha com uma histria qualquer, e como a gente poderia saber se era verdade ou no? Mas o melhor era sair sbado mesmo. Iniciou imediatamente os preparativos.

Aquela noite Ann dormiuem Westley Gardens. Seu cuarto estava exatamente sobre a sala de estar de Mrs. Halliday. O quarto desta era sobre a sala de visitas, e a empregada, velha robusta, chamada Riddle, tinha seu quarto entre as duas. Este quarto fora feito para vestirio, e servia perfeitamente para Riddle.

O quarto de Ann era um pouquinho menor que o cmodo inferior. Moblia de bordo amareloclaro. Tapete, cortinas, colcha e porcelana de um crderosa vivo; mas a cama era to confortvel que fazia esquecer tudo.

Ann adormeceu, e sonhou que fugia de Charles por um caminho todo florido. No fim do caminho havia uma fogueira que algum alimentava com moblia amarela e porcelana corderosa. A porcelana estalava e se espatifava sob seus ps, mas ela no conseguia parar. Corria para o fogo, e ouvia a voz da velha Halliday dizendo: As moas no teriam tanta pressa se soubessem o que as espera. Ento, repentinamente, o fogo desapareceu, com a luz e o barulho. Tudo pareceu ter parado, e ela se viu na escurido. Um corpo se movia, fora do seu alcance. Aproximavase. Um momento antes de acordar Ann percebeu de que se tratava.

Mas quando acordou j no sabia mais. Sentouse na cama comprimindo o seio com a mo. Tinha a testa mida de suor. O cabelo estava agarrado s tmporas. Algo lhe fizera medo, e por um instante ela soubera de que se tratava. Mas j no sabia.

S muito tempo depois conseguiu adormecer novamente.

VI

Durante o dia seguinte, quintafeira, Mrs. Halliday comunicou a Ann boa parte da histria da famlia. Era estonteante, porque a velha pairava sobre oitenta anos dos quais se lembrava pessoalmente, acrescidos de mais cinqenta ou sessenta cuja histria ouvira narrada por tias e tias,

e da a tirava, como de um saco mgico repleto, querelas, namoros, nascimentos, casamentos e mortes. Nunca se sabia ao certo em que sculo se encontrava a narrativa, num permetro de cinqenta anos. Em certo ponto Mrs. Halliday contava as virtudes infantis de seu filho James O cabelo era aneladinho, e ele pesava dez libras, quando nasceu. Logo em seguida, com a voz transformada em murmrio, comentava detalhes do escndalo que motivara a separao entre seu tio Amos e a mulher mulher sem vergonha como nunca vi outra. No que eu tenha visto alguma vez; j estava morta e sepultada quando eu nasci; deu muito trabalho, vindo misturarse e intrometerse em famlia honesta com aqueles cachinhos e rouge.

A pouco e pouco Ann compreendeu que Mrs. Halliday tinha casado tarde Eu estava com um vestido de casimira cinzenta que a patroa me deu, chapu de palha preta com um lindo ramalhete de centureas de cada lado, e um par de luvas cinzentas, de cabrito, com botes de cobre.

Ao que parecia, Halliday fora marinheiro homem do norte, cheio de manias no bom marido, ao que Ann percebeu. E poucos e raros entre eles o so, filha. O rapaz durante o noivado uma coisa, como marido outra. Melado de mais para durar muito, digo eu, e voc evitar muita decepo se tiver isto em mente. Casase com homem experiente, que tenha qualquer coisa no banco, meu conselho.

D impresso de muita vulgaridade, comentou Ann.

H coisas piores que a vulgaridade, replicou a velha. Por intermdio de uma anedota ilustrativa a respeito

de uma prima em segundo grau que tinha sido to louca a ponto de casar com um rapaz desconhecido, de cara bonita e lngua ativa, o qual, com muita razo, acabou no asilo, voltaram a Mr. James Halliday. Era filho nico, e o melhor filho que se poderia imaginar. Tinha tambm comeado no mar, mas depois entrou para o comrcio, onde foi mais feliz. Tem cabea para o comrcio, Jimmy, e faz questo de que eu tenha tudo o que desejo.

Esta casa aqui sua? - perguntou Ann.

No, Miss Vernon, no . Mas pode ser a qualquer momento, se Jimmy quiser. Alugoua com a moblia, uma coisa a que chamam opo, que d direito de comprar a casa, se ele quiser. A casa de Mr. ggins o Mr. ggins que ganhou o grande prmio no sweepstake irlands coitado.

Coitado por qu?

Ganhou o dinheiro e comprou esta casa; reformoua a capricho, desde o alicerce at o telhado, mobilioua como se fosse o palcio Buckingham, e depois a mulher no quis por coisa nenhuma deste mundo botar os ps aqui dentro. Abriu a chorar ali no hall e disse que no tinha sido criada em casa assim, e que se tivesse de morar numa casa onde nem a cozinha era dela, para sentarse l quando quisesse, e se tivesse de viver com vestidos de veludo, ento era melhor morrer de uma vez, ser enterrada e ficar livre de tanto trabalho. Pobre de esprito, como eu costumo dizer, fezme lembrar minha tia Maria, quando Mr. ggins me contou, e eu disse a ele assim: Se o caso este, o melhor darlhe a cozinha que ela quer, porque o senhor no ter sossego na vida enquanto no der mesmo. Ela chorou o tempo todo. como uma torneira aberta. Ento ele alugou a casa a James.

Fez pequena pausa, e acrescentou: Com uma opo...

Sextafeira de manh chegou a carta de Charles Anstruther. Ann abriua com curioso sentimento de expectativa. Absurdo sentimento, alis. A carta comeava com o nome dela s Ann. Naturalmente isto era muito comprometedor. Muito mais do que se ele dissesse: Cara Ann, porque atualmente todo mundo diz Cara e no quer dizer nada com isso: Ann somente significava: Eu poderia chamla de uma poro de nomes carinhosos, se voc deixasse. No quer ouvir esses nomes, Ann? Apertou os lbios e leu a carta:

Ann, abandone esse emprego. No gosto de saber que voc est a. Tenho certeza de que serei capaz de arranjar um para voc, com mais algum tempo. Espere um pouco, Ann; se voc

der licena eu poderei emprestar alguma coisa, at que voc esteja colocada. Garanto que recebo de volta, quando voc puder pagar, se no quer o emprego que lhe ofereci, tenho certeza de que posso arranjar outro. Voc nada sabe a respeito dessa gente, e no gostei do que ouvi sobre eles. Andei indagando, e ningum soube dizer com certeza onde arrumara dinheiro. Parte, sem dvida nenhuma, vem da fabricao clandestina de rum o resto talvez tenha origem mais duvidosa. Definitivamente, no gosto de saber que voc est empregada a. Nem gostei que lhe mandassem o jornal com o anncio marcado. Como se pode saber que quem enviou foi Mary Duquesne? No creio que o fosse.

Ann fez carranca, e apertou mais os lbios. Sentouse e escreveu a Charles:

Meu caro Charles,

Que impertinncia! Voc andou pelos cinemas. Os Halliday so muitssimo bondosos para mim. Ela uma velha manaca; e ele, o melhor filho deste mundo. Quem o diz a velha, e deve saber o que diz. Tem uma empregada chamada Riddle, que talvez seja a pessoa mais respeitvel da Inglaterra, desde que Mrs. Grundy morreu. Creio que morreu: ou voc teve uma entrevista ntima e sincera com ela, quando me escreveu?

Assinou Ann. e escreveu embaixo: No vire tia solteirona.

Ferva a cabea at as coisas ficarem bem claras. Uma ou duas horas do. (Mrs. Halliday acabou agorinha mesmo de me ensinar a fazer geleia de mocot. Isto deve tranquilizlo, porque os bandidos do cinema nunca fazem geleia de mocot.)

Minhas tias solteiras sempre me disseram que uma moa no deve receber dinheiro emprestado de rapazes.

Sextafeira Ann j se estava acostumando. No era to mau como poderia parecer. Riddle tomava conta de Mrs. Halliday at as onze horas; depois Ann se ocupava com ela. Aps o lanche a velha descansava duas horas sob os cuidados de Riddle: s oito ia dormir. No, no era to mau, e o ordenado era maravilhoso. Se Charles pensava que ela havia de deixar um emprego como aquele s porque Charles queria ser impertinente, o melhor era que ele pensasse duas vezes antes de continuar. Talvez fosse jantar com ele na semana seguinte. Ficou pensando se teria coragem de pedir dinheiro adiantado. No poderia jantar com Charles sem, antes desempenhar o vestido. Arre! Havia algo srdido no pensamento de jantar com Charles com um vestido do prego srdido e salutar. Se corresse perigo de ceder, a lembrana da casa de penhores seria suficiente para revigorla. Sim, jantaria com Charles, exatamente para que ambos se convencessem de que no havia perigo.

E, com isto, Mr. James Halliday entrou na sala e perguntoulhe se j havia arrumado as malas.

Malas?

As sobrancelhas ruivas de Mr. Halliday se ergueram.

Pois ento? Mrs. Halliday no lhe disse nada?

A respeito de malas, nada.

No, no, - lembrouse o outro. - Est claro: a senhora no a viu depois do lanche. Pois, ento, se quer aproveitar o tempo, pode arrumar quase tudo antes do ch.

Mas aonde vamos?

Ann estava em uma das cadeiras ourovelho com um livro no regao. Um raio de sol, quente e poeirento, pairava entre ela e Mr. James, que se encontrava um par de jardas alm correndo os dedos pela folha dura e brilhante da aspidistra do vaso azul.

Vamos viajar em meu iate. Espero que goste do mar. Aqui muito quente para a velha, e por isto que

vamos. J teramos ido, se no fosse o desejo que tenho de atender s vontades dela.

Gosto muito do mar, - respondeu Ann. - Para onde vamos?

Mr. Halliday tirou um leno de seda vermelhoclaro e tirou o p da aspidistra. Tinha olhos cinzentos e agudos, e pestanas ruivas muito espessas. No olhou para Ann.

Vamos costa acima.

E quando samos?

Amanh, s nove da manh, - disse Mr. Halliday, pondo o leno no bolso, e saindo da sala.

Ann no gastou meia hora fazendo as malas. Olhou o relgio e escreveu a Charles a lpis, porque no tinha tinta

no quarto e, embora no soubesse por que, no tinha coragem de escreverlhe sob os olhos dos espelhos e aspidistras da sala de visitas. Escreveu:

Meu Caro Charles,

Voltamos aos filmes! Ttulos: A Casa Sinistra; Ms Companhias; As Sete Aspidistras; Casa do Vcio do Fabricante Clandestino de Rum: O Iate Misterioso, Viagem Inesperada. Respire longamente trs vezes e volte realidade. Samos amanh, em cruzeiro, pela costa,rumo ao norte. No simplesmente emocionante? Adoro viagens por mar. Hei de mandarlhe o endereo, quando o tiver. E se no mandar porque fugi com o fabricante de rum, para o stiooculto em que se encontra o alambique. em

alambique que se faz rum? Estarei em condies de dar todas as informaes sobre o assunto, se novamente nos encontrarmos. Voltemos aos ttulos: Uma Voz do Oceano: Adeus! adeus! adeus! Morre aos poucos.

Ann.

No maravilhosssimo ficar livre de Londres?

Mrs. Halliday desceu para o ch de muito mau humor. Mr. Halliday no apareceu.

E nem me admiro de nada! - exclamou a me, cortando cuidadosamente em quadrados as fatias finas de po. - a mesma coisa que no se incomodar mais com o que eu penso; se ele tiver juzo, tratar de no aparecer enquanto eu no dormir um pouco.

Ps manteiga em um dos quadrados, mel em outro, marmelada no terceiro e gelia de groselha negra, gelia de morango e doce de ma nas fatias restantes.

le devia saber melhor estas coisas, e foi o que eu lhe disse!

No quer viajar? - perguntou Ann.

Mrs. Halliday tomou a fatia com mel com uma das mos, e a de marmelada com a outra, dando mordidas alternadas em cada uma.

Claro que quero viajar! - disse colericamente. - amos sair segundafeira, e segunda muito bom dia para isso: comeo de semana, comeo de viagem.

Terminou o mel e a marmelada, e passou gelia de morango e ao doce de ma.

Viagens de fim de semana parecemse com limpeza de fim de semana do a impresso de que tentamos sair desde segunda, e no o conseguimos. Banho aos sbados s serve para envergonhar. o que sempre me diziam quando eu era moa. Gosto de mais leite no ch. Quente e com bastante leite, trs torres de acar, como eu gosto dele, Miss Vernon. Assim, disse eu a James: Faa como entender, meu caro, mas no me venha culpar se no der certo. Mais um torro de acar, filha, e mais um pouquinho de mel. A conversa no foi muito amena, e se ficar sem ch no mais do que mereceu.

Mrs. Halliday fez pausa, lambeu o mel do indicador e atacou a gelia de groselha.

No vir bem nenhum disso, e foi o que eu lhe disse. Sonhei que estava emalando as coisas, a noite passada, e acordei estremunhada porque Riddle tinha posto meu melhor chapu junto com os sapatos de viagem de Jimmy. Mais uma xcara de ch, querida; no se preocupe com a xcara gosto de deixar um pouco de acar no fundo. J tive sonhos terrveis, em meu tempo, e no gosto de contrariar sonhos. Certa vez sonhei que o arame de estender roupa estava voando; corri para peglo, mas no o alcancei; puxei a mesa da cozinha e subi nela e logo que o agarrei com as duas mos ele me levantou; no consegui sustentar o peso. rasguei minha melhor toalha e fiquei chorando como uma doida. Trs semanas depois daquele dia enganeime no alto da escada, no escuro, e quebrei a perna. Por isto que no gosto de zombar de sonhos.

Quando ela voltou ao bom humor, Ann disse:

Aonde vamos, Mrs. Halliday?

O nariz comprido de Mrs. Halliday se encrespou um pouco. A cabea, com o cabelo comprido e cinzento separado em bands dc cada lado da testa larga, e preso pela touca branca enfeitada com fitas de cetim amarelo, inclinouse com o riso cacarejante.

Espere e ver, Miss Vernon.

VII

Na manh de sbado Charles Anstruther recebeu a carta de Ann. Ficou to preocupado que foi imediatamente a Wesky Gardens onde um jovem empregado em uniforme de servio o informou de que a famlia tinha viajado; a casa ia ser fechada.. Nada sabia sobre o novo endereo. Ante a insistncia de Charles, afirmou que Mr. Halliday, e Mrs. Halliday, e Miss Vernon, e a empregada de Mrs. Halliday, iam fazer um cruzeiro no iate de Mr. Halliday. Sentia muito mas era s o que sabia. Tinha sido empregado para um ms de servio apenas; o mesmo acontecia com os demais empregados. Estavam fechando a casa, cujas chaves seriam entregues a uma agncia alugadora.

Sinto muito, senhor. sinto muito; mas acho que eles tero avisado a agncia postal, para as cartas serem remeTidas nova residncia, de modo que se o senhor escrever para c, com certeza obter resposta.

Charles voltou mais preocupado ainda. Escreveu a Ann, e recebeu a carta de volta, intacta. Estava claro que, fsse o que fosse que Mr. e Mrs. Halliday tinham feito, Ann no tivera oportunidade de providenciar para que suas cartas fossem enviadas a novo endereo, ou no quisera valerse da oportunidade, se a tivesse tido. Tinha prometido mandarlhe o endereo, mas nada apareceu. Comeou a revolver Londres, procura de pessoas que soubessem algo sobre Mr. James Halliday. O homem com quem tinha falado sobre a fabricao de rum era conhecido de longe, do clube, e com a maior inoportunidade possvel havia ido Noruega. Todas as pessoas de quem Charles precisava pareciam estar em qualquer outra parte. Afinal, conseguiu encontrar, sem carter oficial, um dos assistentes da Polcia Metropolitana, e interroglo discretamente. A entrevista no o animou muito. De seu lado, Ann surgiu como uma prima que tinha aceitado o emprego contra a vontade da famlia. de duvidar que o assistente engolisse a camuflagem. Mas no que dizia respeito polcia, Mr. James Halliday no tinha histria. Nunca estivera na cadeia. Nunca estivera nas mos da polcia. Oficialmente, nada havia contra ele.

isto devia ser tranquilizador, mas, coisa estranha, no foi. Enquanto o assistente falava Charles formava a convico de que Jimmy Halliday (que era o nome que lhe dava mentalmente) devia essa situao mais astcia que inocncia. Faz pensar em bebida forte, quando fala lembra bebida forte, e se tiver dessas bebidas metade do que aparenta, j devia ter sido desembarcado h muito tempo. Por muito que Charles insistisse, o homem tinha to pouco a dizer como o empregado de Westley Gardens.

Saiu em cruzeiro, - disse Charles.

Acho que comeou a vida como marinheiro, - redarguiu o assistente.

Miss Vernaon est a bordo, como dama de companhia da me dele.

Ah, ento, no h perigo, - disse o outro, despreocupado. - Pareceme que ele muito bom filho. Sua ami... sua prima est em perfeita segurana com a velha. Posso avislo quando o iate tocar algum porto.

Dez dias mais tarde um bilhete o avisou de que o Emma havia aportado em Oban; logo em seguida recebeu um postal de Ann. Representava a reproduo da Acrpole que, incongruentemente, coroa a colina daquele porto do West Highland. Charles passaria muito bem sem a reproduo e com algumas linhas mais do lpis com que Ann lhe escreveu como seu prezado Charles, avisando que estava vivendo a melhor poca da sua vida, que pensava em empregarse como cabineiro, e conclua com esta observao siblina: Acabouse o cinema; agora a coisa real. Um pequenino Ann quase escorregava do canto para fora do carto.

Charles chamouse idiota sete vezes, dobrou um par de ternos, lubrificou o carro, encheu o tanque de gasolina, e tomou a Grande Estrada do Norte, deixando a venda de Bewley pendente entre a ltima oferta do fabricante de calados e a ltima recusa dele, Charles.

O Emma permaneceu vinte e quatro horas em Oban, recebeu Gale Anderson a bordo sem obstculo algum, e fezse novamente ao mar com o mais ameno dos tempos. Ann divertiase tanto que estava em condies de fazer amizade com qualquer pessoa; mas mesmo em um dia em que cu e mar nadavam junto na neblina azul e ouro, em que apenas tnues nuvens tocavam a gua rumorosa com uma sombra rpida de jacinto ou ametista, teve a impresso de que no era possvel ser amiga de Gale Anderson. Pena, porque seria esplndido ter pessoa mais jovem com quem conversar.

Gale Anderson era jovem; tinha trinta e poucos. Boa aparncia, feies regulares, cabelo bem penteado muito mais bonito que Charles com seu rosto sombrio e feio, positivamente feroz quando fazia carranca. Por outro lado, quando sorria ningum mais pensava em sua feira.

Ann tratou de afastar o pensamento da fisionomia de Charles nas ocasies em que ele sorria. Se isso era perigoso, quanto menos pensasse no assunto, melhor. Desiludido, provavelmente Charles acabaria casando com a filha do fabricante de calados, o que seria esplndido, pois em tal caso no teria de vender Bewley.

Gale Anderson no sorria, nem parecia feroz. Era plido, polido, indiferente. Os frios olhos azuis fitavam Ann com o mesmo interesse com que se deteriam numa bitcula, ou numa fortaleza.

Fazme lembrar um moo que apareceu na casa em que fui empregada, - comentou Mrs. Halliday. - Cortejava Miss Edith; todo o mundo achava que seria uma sorte se ela o pegasse, mas as coisas no foram to bem como se pensava. No que eu tenha algo contra ele, mas olha frio como gelo; at fico arrepiada; no sei se voc entende o que digo.

Ann entendia perfeitamente o que ela dizia, e disseo:

Pois ento melhor no falar mais nisso, porque ele e Jimmy so amigos como dois ladres.

Estas palavras ficaram na mente de Ann. Uma ou duas vezes voltaram enquanto Jimmy Halliday e Gale Anderson subiam e desciam no convs conversando em voz baixa que sempre deixava insatisfeitas curiosidades alheias. Mas est claro que nada havia para excitar curiosidade.

Vagabundearam entre as ilhas, costa acima. Ia tudo s mil maravilhas. O tempo continuava azul e ouro. e assim ficou por dois dias; a, rompeu a tempestade. Um relmpago chicoteou o horizonte, longe, quando o sol se ps, e uma massa de nuvens negras salpicadas de tufos claros como fumaa de canho cobriu o fundo do cu. As nuvens brancas corriam ao longo das escuras, que subiam cobrindo o cu todo. Em um minuto a escurido se fez completa.

Ann no ficou contente ao receber ordem de deixar o convs. O vento subia com violncia de furaco, e mergulhava novamente. Por um instante o mundo susteve a respirao; depois o relmpago rabiscou palidamente o cu,

seguido pelo estrondear do trovo. Quando James Halliday a meteu pela escada abaixo e trancou a porta, segundo golpe de vento feriu o iate e Ann foi arremessada degraus abaixo tendo nos ouvidos um som que abafava o do trovo. Firmouse novamente e cruzou o salo. Quando pegou a maaneta da cabina de Mrs. Halliday a porta cedeu e ela foi arrastada para o interior. O relmpago iluminava a escotilha, mas o rudo do vento no deixava ouvir o trovo. Nunca teria crido que o vento fizesse tal estrondo. Era como trovoada, mais um trem expresso, mais um aoite gigantesco assobiando, mais meio milho de violinistas enlouquecidos.

Firmouse no assoalho inclinado da cabina. O sangue pulsava como se ela estivesse acabando uma corrida furiosa. Tudo muito excitante, mas era evidente que nem Mrs. Halliday nem Riddle se divertiam. Mrs. Halliday estava no leito, com uma touca de dormir amarfanhada na cabea, e um belo chale nos ombros. Plida, mas decidida; de meio em meio minuto dizia: No seja tola, Riddle! Viase que ela o dizia, mas o vento no permitia ouvir coisa alguma.

A impassvel Riddle estava completamente dominada pelo pavor. Derretiase em lgrimas que rolavam pela face plida e caam esquecidas no vestido preto. Sentada no leito, com as pernas penduradas, tinha as mos agarradas barra de ferro. Quando o vento feriu o barco com uma chicotada mais violenta e o assoalho rangeu, ela guinchou. Ann via a boca abrirse, e o grito que saia da garganta, e, quando se tornava possvel ouvir algo, Mrs. Halliday dizia: No seja tola, Riddle! E a escotilha no parava de clarear e escurecer com os relmpagos que brilhavam e morriam. Inesperadamente, a fria da tempestade desapareceu.

Ann subiu para a porta e, a uma Inclinao do barco, foi atirada ao outro lado do salo. Desejava desesperadamente subir outra vez ao tombadilho e ver o relmpago rabiscando as nuvens negras que corriam e o mar encapelado. Caminhava para a escada quando um arranco repentino a atirou contra a porta da cabina onde dormiam Mr. Halliday e Gale Anderson. A porta cedeu e ela foi de encontro a um dos leitos, escorregando. Sentia o pescoo molhado; o metal que as mos agarravam tinha gua escorrendo. O vento atingiu o rosto erguido. A escotilha estava uma polegada ou duas aberta, esquecida da fria do temporal. Chovia torrencialmente e a cada minuto entrava mais gua. Subiu cama para fechar a escotilha, e ouviu a voz de Gale Anderson, to prxima que se assustou.

Que asneira foi aquela de mandla descer? Nunca teremos oportunidade to boa.

A voz vinha pela escotilha aberta. A chuva fustigava o som, sem confundir as palavras. James Halliday respondeu:

A velha gosta muito dela. No quero darlhe aborrecimentos.

Ann continuou escuta, mas nada mais veio. A chuva caa e o barco rasgava o mar pesadamente.

Deixou a escotilha aberta, com chuva entrando, e voltou para a escada. No via sentido nas palavras que acabava de ouvir. Mr. Halliday a tinha obrigado a descer. Mas por que seria isso asneira? Ou era de outra coisa que falavam? E que oportunidade perdida era aquela?

Abriu a porta, e o vento veio ao seu encontro. No a fria raivosa de minutos atrs, mas um vento alegre e acariciador, que vinha cantando superfcie do mar, tangendo a chuva e desaparecendo novamente. Ann segurou a amurada e olhou a gua escura. Ao norte o relmpago fulgia, verde e violeta, e as nuvens negrejavam ao vento. A oeste, no horizonte, uma linha plida de luz verdeacinzentada.

Ann no poderia dizer precisamente quando teve o sentimento de que algum a observava. Se fosse possvel, de alguma maneira, vla ali, seria apenas como uma mancha escura. Por que haveria algum de se interessar por manchas escuras? Ou por Ann Vernon? Chamouse idiota, e ouviu James Halliday gritando que outro pdevento se aproximava. Pensou que teria de descer novamente, mas achou que seria muito mais interessante ficar ali mesmo. Esqueceu o sentimento de que estava sendo vigiada quando olhou para a escurido e ouviu o rugido do tufo que se aproximava. Quando, pesarosa, se voltou para a escada, algo a feriu na cabea, e ela caiu. Seguiuse uma confuso de vento e gua, umidade gelada e rugidos sibilantes. Foi atirada contra um objeto duro. As mos tentaram firmarse, e s encontraram o vazio.

Antes que tivesse tempo para se amedrontar, uma presso forte que magoava cingiulhe os braos e a cintura, e um instante depois ela estava na escada, ouvindo os gritos de Jimmy Halliday. Ouviao, apesar do vento, porque era ele quem a carregava. Em voz que fazia lembrar megafone ele perguntava que idiotice, idiotice, idiotissima idiotice pretendia ela subindo ao tombadilho se ele j lhe dissera que ficasse embaixo. Sua idiota, idiota, idiota, tolinha idiota!

Ann estava to aparvalhada que simplesmente arregalou os olhos e continuou com eles arregalados. Pouco acima havia uma luzinha. Mostrava o rosto de Halliday seis polegadas afastado do dela, desarrumado e rubro, com o cabelo mido, palavras e juramentos furiosos brotando da boca como acleos. Ela devia ficar indignada, ou com medo, ou agradecida, porque quase se afogara, e ele ali estava, praguejando, e obscuramente ela percebia que Mr. James lhe salvara a vida. Mas no se indignou, nem teve medo, nem ficou agradecida, ou qualquer coisa semelhante; ficou entorpecida e surda. A cabea no dava a impresso de ser dela, e quando ele a empurrou escada abaixo, foi sentarse, confusa, no ltimo degrau e fechou os olhos. O vento afogou a voz de Jimmy Halliday e o estrondo da porta, atrs dela.

Teria ficado ali muito tempo se o barco no balanasse tanto. Levantouse e foi para a cabina, onde se deitou. O furaco abrandou. O iate jogava. Certa hora ouviu a voz de Jimmy Halliday, raivosa. Praguejava contra algum o que era confortante. Teve a impresso de que era com Gale Anderson.

A voz se apagou. Ann adormeceu.

Viii

Aportaram na madrugada do dia seguinte. O vento tinha desaparecido e a chuva ainda caa, no pesadamente mas num misto tnue de nvoa e gua que ocultava o mar e as colinas. Praia barrenta, salpicada de seixos, amarelada e ferrugenta. Acima, um retalho de estrada cinzenta na qual havia um carro.

O motorista deixou seu assento, trocou palavras inaudveis com James Halliday e dirigiuse para o iate. Gale Anderson o substituiu ao volante. Mrs. Halliday e Riddle foram auxiliadas na subida. Ann sentouse atrs e foi barricada com cobertores. O restante da bagagem ficou no portamalas; com Jimmy Halliday ao lado do chofer iniciaram a asceno para as colinas invisveis.

Viagem pouco agradvel. A cabea de Ann doa. Riddle com choroso orgulho demonstrava que estava doente. E Mrs. Halliday, com os ps calados por botinas abotoadas at o alto e confortvelmente apoiados em dois cobertores, descansava a cabea na almofada de couro vermelho e dormia. No se contentava com dormir: roncava ritmicamente, lembrando a Ann um solo de cometa em sinfonia modernista. A nvoa dansava em torno. Na traseira do carro algo rangia. Era como quando metal raspa metal, e enervava Ann de tal modo que quase a levava a gritar. Ps a mo na cabea e sentiu o lugar magoado. Algo devia terlhe batido com muita fora para fazer um galo daquela altura. Durante todo o tempo em que deixavam o iate, acomodavam Mrs. Halliday e iniciavam a viagem. Ann pensava, admirada, sobre que coisa poderia ter produzido aquele galo. Tinha plena certeza de que no se machucara por si mesma. Tinha recebido a pancada. Algo a atingira na cabea, e ela cara agarrando o ar com as mos, na direo da gua escura que a esperava embaixo.

Olhou a cabea de fogo de Jimmy Halliday com o cabelo ruivo cortado rente, e sentiu uma gratido tardia. Se

no fosse ele ela no estaria ali, nessa hora. Onde poderia estar? O corpo boiaria de um para outro lado sobre as ondas e ela estaria em outro lugar qualquer. Este pensamento fla sentirse, vagamente, desencarnada. Com dificuldade voltou questo de saber quem lhe batera. Nessa ocasio introduziuse em sua mente a voz de Gale Anderson, e suas palavras: Que asneira foi essa de mandla para baixo? Nunca teremos oportunidade to boa. Rodavam, na nvoa e na chuva.

Mrs. Halliday acordou e contou uma histria muito interessante a respeito do rapaz que foi enforcado por furtar ovelhas.

O ltimo homem enforcado na Inglaterra por esse motivo, um rapazinho de 18 anos, Trabalhava para o pai; certo dia apareceu uma ovelha tresmalhada no rebanho e ele perguntou ao pai o que faria dela, e o pai respondeu: Espere, que o dono reclama. Quando chegou o tempo da tosquia o moo perguntou ao pai: E aquela ovelha que apareceu junto com as nossas? E o pai respondeu: Tosquie tambm, e ele tosquiou. No passou uma semana, depois disso, e apareceu o dono reclamando, e enforcaram o rapaz.

No possvel!

O chapu de Mrs. Halliday estava cado sobre uma das orelhas. Acenou com a cabea, sem levantla da almofada.

Claro que o enforcaram. Meu pai subiu numa rvore para ver, e caiu desmaiado. Muitas vezes ele me contou isso.

Rodaram o dia todo na neblina. As colinas eram vultos mais imaginados que propriamente vistos. O som da gua caindo crescia e morria. s vezes surgia um grande barranco escuro, ou a atmosfera espessa se abria para mostrar um flanco de colina com pinheiros respingantes, ou uma planura onde pretejavam pntanos. A cada momento cruzavam com outro carro, ou passavam diante de cottages de pedra. Mrs. Halliday dormiu de novo. Duas vezes comeram na margem mida da estrada refeies de piquenique. Ann tinha tempo de sobra para pensar. Pensou na noite da tempestade; na pancada recebida; em lanches com Charles no Luxe, Pensou muito em Charles. tardinha pararam junto a uma laguna. Na praia havia um bote. Foi um alvio sair do carro e entrar no bote. James Halliday e Gale Anderson pegaram um par de remos e os mergulharam na gua. A praia se esvaneceu.

Ann perguntou Aonde vamos?, mas ningum respondeu. Podiam estar saindo do mundo. Mergulhou o dedo na gua, levouo aos lbios, e sentiu o gosto salgado. Estaria o iate esperando alm, no nevoeiro? Veio a Ann a idia de que no possua indcio algum sobre o lugar em que se encontravam. Tinham rodado o dia todo, mas poderiam ter corrido em crculo.

Uma linha leve de ondulaes e uma praia estreita e branca surgiu da nvoa. O bote abicou areia, e os dois homens o arrastaram.

Um trilho estreito subia da praia. Em ziguezagues fechados, elevavase em degraus para um descampado breve. E a, alegrando a paisagem, as janelas iluminadas de uma casa.

E o que eu quero agora uma boa xcara de ch, nem que nunca mais possa mastigar ou engolir coisa alguma, - disse a velha.

Jimmy Halliday passou o brao pela cintura dela e colocoua na soleira da porta.

Vai tomar quantas xcaras de ch quiser, minha velha, - disse ele.

IX

Quando Ann se levantou o nevoeiro se dissipara. Correu janela e olhou para fora. Abaixo estava a pequena extenso plana, alm da qual moitas de arbustos e grupos de rvores se dispersavam; mais adiante a gua azul brilhando ao sol, e ao fundo o vulto ainda encapuzado das colinas. Vestiuse rapidamente e correu para fora. Dia maravilhoso. Ar fresco e leve; orvalho abundante que molhava os ps.

Quando olhou a casa, quase riu, de to estranha que parecia, em contraste com o ambiente. Era uma vila pequenina e limpa, janela em arco de cada lado da porta de entrada na qual uma cabea de querubim servia de aldrava. direita estava a sala de jantar, e esquerda a sala de visitas, acima da qual o quarto de Mrs. Halliday mostrava as persianas descidas. O quarto de Ann era sobre a sala de jantar. Tudo to delicado e pequenino que parecia ter sido tirado de Tooting Poderia chamarse Mon Reps ou Sans Souci, ou Il Nido! Os pressgios horrveis do dia anterior tornavamse ridculos.

Rodeou a casa e mais admirada ainda ficou. A fachada da vila mascarava um edifcio antiqussimo. As janelas dos fundos eram pequenssimas com buraquinhos abertos na parede espessa de pedra escura. Um grupo de edificaes ao lado estrebaria, pocilgas, um ptio recoberto de seixos. Sentiase o cheiro das vacas. O rumor dos cascos, da respirao, os mugidos que vinham pelas portas de madeira, mostravam que eram vrias. Um galo voou at o alto da porteira do curral e cantou. Estranha casa aquela, situada nessa ilha solitria, to limpa e graciosa na frente, to velha e tosca nos fundos.

Um trilho subia a colina, entre arbustos. Ann enveredou por ele, s voltas e reviravoltas. As rvores e os abrolhos espessos ocultavam tudo, exceto suas prprias formas. Afinal, chegou a um outeiro cheio de tojos. Desapareceram as rvores e os arbustos, e o trilho terminou. Continuou, com tojos e pedras at os joelhos, at atingir o cume. Tinha resolvido no olhar em torno enquanto no chegasse ao alto; ao olhar, viuse rodeada de gua brilhante e azul que batia as margens a pique da laguna. O sol nascente estava sua direita, de onde um morro sombrio descia a prumo para a gua. Na frente, um rochedo escuro estriado de vermelho sombreava a laguna. Ao voltarse para trs viu, a distncia aparente de uma pedrada, a praia em que tinha desembarcado na noite anterior, e uma curva da estrada.

Ficou pensando em qual teria sido o destino do carro, que j no estava l. Teria virado e mergulhado no buraco negro formado pelo monte coberto de pinheiros de um lado, e pelo outro, nu, que mergulhavam nas nuvens? Quem teria aberto aquela estrada? Teria sido um curso d'gua, antes de se transformar em rodovia? Apenas aquela brecha era visvel na muralha da laguna. Nem se podia saber de que lado estava o mar; se para oeste, as montanhas o ocultavam. Pensou que a brisa vinha daquele lado, e teve a impresso de que trazia consigo vestgios de sal.

A ilha era minscula umas quatrocentas jardas de extenso, possivelmente. Apenas de um lado se via a praia, rochosa e spera. A gua parecia funda. A cor no mudava junto aos rochedos e a gua do mar geralmente se torna esverdeada, ou de amarelo barrento, junto s praias. Ali no se dava isso, e ela pensou na laguna como um abismo que atingia os rochedos, que o emparedavam e detinham. Esses rochedos deviam estar mergulhados fundo, fundo, fundo... Lembrouse de uma laguna da qual lhe haviam dito que tinha uma milha de profundidade. Uma milha... Estremeceu. Longo caminho a percorrer.

Esse pensamento continuou a perseguila, e ao se reunirem para o breakfast perguntou a Jimmy Halliday se a laguna era muito funda. le levantou as sobrancelhas ruivas.

Muito.

Sei, mas que fundura tem?

Suficiente para afogla.

Ann teve a impresso de que uma gota de gua gelada lhe descia pela nuca abaixo. Estremeceu ligeiramente. Mrs. Halliday concordou e comentou:

Voc passeou antecipadamente sobre a prpria sepultura, minha cara.

Ann riu.

Pois vou tomar cuidado para no me afogar, - respondeu.

Jimmy Halliday nada disse durante algum tempo. Depois, abruptamente, perguntoulhe se sabia nadar. Quando ela respondeu que no, voltou ao silncio.

Gale Anderson no apareceu para o breakfast. Parecia que no estava na casa e nem na ilha. Visto que tinha ido embora, e que o carro tambm se fora, era de presumir que tivessem ido juntos. Ann achou que podia suportar perfeitamente a sua ausncia.

Aps a refeio, saiu a explorar a casa. Os dois cmodos da frente eram exatamente iguais, bem como os quartos de dormir que estavam acima deles. Mas a parte posterior da casa era cheia de altos e baixos, de entradas e sadas, com quartinhos do tamanho de pires; a um canto, uma escada em espiral com degraus speros e gastos; levava da cozinha a um quartinho que mais parecia guardaroupa embutido. Na parte da frente havia uma escada, com corrimo pintado e degraus de madeira recobertos por tapete. Atrs, no pavimento trreo, a cozinha e uma enorme lavanderia. Ambas pavimentadas com pedra.

O trabalho da casa era feito por uma mulher fugida da idade mdia, com fisionomia inexpressiva. Alta, magra e encurvada; usava saia escura e um chalezinho cinzento. O cabelo amortecido era enrolado atrs em birote, mas farripas descuidadas caam na testa e nas grandes orelhas plidas. Mantinha a casa sempre limpa e arrumada, cozinhava bem, mas nunca falava. S uma vez ou outra, e em tais ocasies parava o trabalho, endireitava a espinha e olhava o interlocutor atravs dos fios de cabelo cados na testa. Quando fazia isso com Mrs. Halliday a velha atalhava rispidamente: Continua o servio, Maryl, e ela suspirava, curvavase novamente, e continuava o servio.

Agora que haviam chegado Mrs. Halliday estava perfeitamente disposta a conversar sobre a ilha. Todo ano iam para l, e gostava muito do passeio embora Ann no pudesse perceber bem por que, visto que ela mal saa de casa, e nunca ia alm do gramado da frente. Riddle odiava o lugar, como se poderia esperar. Ficava de muito mau humor, coisa que se percebia claramente cada manh.

Que que Mr. Halliday anda fazendo? - perguntou Ann.

Aparentemente, Mr. Halliday pescava. No telheiro da praia havia um barco a motor, juntamente com o barco a

remo que os trouxera. s vezes Jimmy Halliday saa com um, s vezes com outro. Ficava fora umas poucas horas, ou o dia todo, ou um dia e uma noite. s vezes saa de noite e voltava de madrugada. Quando Ann lhe pediu que a levasse junto ficou atnita com a rispidez da recusa.

Mrs. Halliday cabeceava sobre a meia de croch que fazia. Fazia todas as suas meias com fios negros.

Marinheiros no gostam de que algum morra afogado, - disse ela. - E Jimmy to marinheiro como o pai. Acham que os seguem, que sobem do mar para assombrlos. Quanto a mim, no sei direito em que acredito, mas meu marido, o pai de Jimmy, achava que isto to certo como o evangelho.

Ann saiu para escrever a Charles.

Meu caro Charles,

Gosto muito daqui. Seria de esperar que me aborrecesse, mas isto no acontece. Aqui h apenas rochas, tojo, gua, morros e rochas, especialmente rochas...

Carta longa como uma conversao. Quando a terminou, voltou a Mrs. Halliday.

A senhora pode me dizer qual o nosso endereo? Acabei agora mesmo de escrever uma carta...

As agulhas de Mrs. Halliday batiam uma na outra.

Casa da Ilha, Loch Dhu, - disse ela plcidamente. - Dhu nome desagradvel, no acha? Quer dizer, ao que me disseram, preto. No exquisito que falem lngua estrangeira, sendo do mesmo pas que ns? Seria muito mais simples se dissessem apenas Black Lake (Lago Negro), embora no seja propriamente um lago, pois est ligado com o mar.

Ann endireitou as orelhas.

Loch Dhu no perto de Arran? - Mrs. Halliday sacudiu a cabea.

H mais de um lugar com esse nome, e este aqui est muito isolado. Atualmente ningum vem aqui. Havia uma ou duas casas onde a praia no era muito a prumo, mas caram, e os moradores foram embora e no h no mundo coisa que eu odeie mais que uma casa sem telhado.

Por que as casas cairam? - perguntou Ann.

Por que os moradores foram embora e as deixaram, minha cara.

Mas por que foram embora?

Uns dizem uma coisa, outros d