helio oiticica e a cena americana em entrefalas de gloria ferreira - modulo 1

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r 2011 Editora Zouk Sumário Projeto gráfico. Alexandre Dias Ramos Revisão gramatical. Júlia Carolina de Lucca Copidesque e Editoração. Anna Cláudia Fernandes & William C. Amaral Por respeito a todos os profissionais que trabalharam neste livro (autores, tradutores, revisores, diagramadores, editores, impressores, distribuidores e livreiros), pedimos que não seja feito xerox de nenhum trecho. A compra do exemplar, além de prestigiar estes profissionais, permite à editora manter este livro em catálogo e publicar novas obras que beneficiarão o público leitor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ, Brasil) E52 Entrefalas / [entrevistas realizadas por) l Parto Alegre, RS: Zouk, 2011. (Arte: ensaios e documentos; 4) Inclui bibliografia ISBN978-B5-8049-013-8 l" edição l. Artistas - Entrevistas. 2. Críticos e curadores - Entrevistas. 3. Arte contemporânea - Século XX. 4. Arte contemporânea - Século XXI. I. Ferreira, Glória, 11-2435. CDD 709.04 CDU 7.038.6 direitos reservados à Editora Zouk r. Garibaldi. 1329. Bom Fim. 90035.052. Porto Alegre. RS. você também pode adquirir os livros da zouk pelo www.livrariazouk.com.br www.editorazouk.com.br f. 51. 3024.7554 À guisa de apresentação O avesso das coisas entrevista com Amilcar de Castro Greenberg, um crítico na História da Arte entrevista com Jean-Pierre Criqui Entendo Shakespeare, posso até participar, mas falo como Dante entrevista com Luciano Fabro Reinterpretar a Modernidade entrevista com Thierry de Duve Hélio Oiticica e a cena americana entrevista com Silviano Santiago "... sem comunicar a ninguém eu ia tecer as minhas teias" entrevista com Lygia Pape Encontros com o outro entrevista com Maurício Dias e Walter Riedweg Domínios, dimensões, escalas entrevista com Nelson Felix Cingindo o vazio entrevista com Helena Trindade 7 13 33 45 63 87 117 135 157 165

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Helio Oiticica e a Cena Americana Em Entrefalas de Gloria Ferreira - Modulo 1

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Page 1: Helio Oiticica e a Cena Americana Em Entrefalas de Gloria Ferreira - Modulo 1

r

2011 Editora Zouk Sumário

Projeto gráfico. Alexandre Dias Ramos

Revisão gramatical. Júlia Carolina de Lucca

Copidesque e Editoração. Anna Cláudia Fernandes & William C. Amaral

Por respeito a todos os profissionais que trabalharam neste livro (autores, tradutores,revisores, diagramadores, editores, impressores, distribuidores e livreiros), pedimos quenão seja feito xerox de nenhum trecho. A compra do exemplar, além de prestigiar estesprofissionais, permite à editora manter este livro em catálogo e publicar novas obras quebeneficiarão o público leitor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ, Brasil)

E52

Entrefalas / [entrevistas realizadas por) lParto Alegre, RS: Zouk, 2011.(Arte: ensaios e documentos; 4)Inclui bibliografiaISBN978-B5-8049-013-8

l" edição

l. Artistas - Entrevistas. 2. Críticos e curadores - Entrevistas. 3. Arte contemporânea - Século XX. 4. Artecontemporânea - Século XXI. I. Ferreira, Glória,

11-2435. CDD 709.04CDU 7.038.6

direitos reservados à

Editora Zoukr. Garibaldi. 1329. Bom Fim.90035.052. Porto Alegre. RS.

você também pode adquirir os livros da zouk pelo

www.livrariazouk.com.brwww.editorazouk.com.br

f. 51. 3024.7554

À guisa de apresentação

O avesso das coisas

entrevista com Amilcar de Castro

Greenberg, um crítico na História da Arte

entrevista com Jean-Pierre Criqui

Entendo Shakespeare, posso até participar, mas falo como Dante

entrevista com Luciano Fabro

Reinterpretar a Modernidade

entrevista com Thierry de Duve

Hélio Oiticica e a cena americana

entrevista com Silviano Santiago

"... sem comunicar a ninguém eu ia tecer as minhas teias"

entrevista com Lygia Pape

Encontros com o outro

entrevista com Maurício Dias e Walter Riedweg

Domínios, dimensões, escalas

entrevista com Nelson Felix

Cingindo o vazio

entrevista com Helena Trindade

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ausência do espectador pelo rubor da mulher que se vê no quadro. Esta soluçãoencontra pelo menos dois ecos na arte contemporânea, em Lannonce amoureusede Sylvie Blocher e em Pícture for Women de Jeff Wall (notem: quadro dirigidoàs mulheres!), que é um remake do Bar.

O senhor se interessa pela literatura? Paralelamente à questão da figuração,talvez seja este o lugar onde se coloca com força o relato autobiográfico comotentativa de reapropríação de uma experiência em declínio, que retoma seusentido porque é compartilhada.

Não. Não me interesso o suficiente para responder. Não tenho muitacultura literária. Sinto multo, mas este handicap é também uma vantagem.Tenho esse preconceito típico de muitos artistas, sobretudo os modernos, deacreditar que as artes plásticas são fundamentalmente antiliterárias. Vocêsconhecem a frase de Valéry (que era portanto um homem de letras): "Todo oresto é literatura". Vocês poderão dizer que é uma afetacão de minha parte, mascultivo minha singularidade neste ponto de vista. A maior parte dos filósofosde arte assimila as artes e a literatura. Tento pensar filosoficamente a partir dofenómeno plástico como tal e dentro do meio de uma cultura muito específicae contemporânea, que eu nomeei arte em geral. É porque não chego a meinteressar pelo retorno da narrativa na arte hoje em dia - digamos, géneroPatrick Corillon. Quanto à autobiografia, ele está sempre presente na grandearte, mas quando a arte é só autobiográfica deixa de ser interessante.

E quanto à afasia do sujeito?

A afasia do sujeito é muito menos o sujeito que fala para além da obra dearte, e que chamamos de autor; que precisamente o sujeito a quem a obra fala. Otrabalho sobre Duchamp visava devolver a palavra ao juiz, ao espectador comojuiz. Mas talvez seja insuficiente. Quando dizemos "Isto é arte", que podemosdizer a mais? Dizer por que fomos tocados? Está à beira do indizível, se a obra éverdadeiramente boa. Ao mesmo tempo, se a obra é verdadeiramente boa, elapassa um testemunho e reencontramos a palavra testemunhando. Eu não possofalar pelos outros e, portanto, isso existe em todo testemunho. Não mais falarnem escrever sozinho, é o estatuto que de minha parte desejo à crítica e à teoria.

Hélio Oiticica e a cena americana

entrevista com Silviano Santiago12

com a colaboração de Guilherme Bueno

Seu encontro com Hélio Oiticica se dá em Nova York. Quando você vai para os

Estados Unidos?

Vou para os EUA muito cedo, em 1962, mas só em 1964 é que voumorar na região de Nova York. Regresso ao Brasil em dezembro de 1973.Passei esses dez anos na região de Nova York, primeiro em New Brunswick(estado de New Jersey) e depois em Buffalo (estado de Nova York). Emboranão estivesse exilado nem fosse autoexilado, vinha pouco ao Rio de Janeiro,também ia muito pouco a Belo Horizonte. Foi por volta de 1967 que um diaapareço na casa do Rubens Gerchman. Morava ele então com Anna MariaMaiolino, numa espécie de loft na parte sul de Manhattan. Tivemos umrelacionamento longo. Ele, inclusive, fez um silk screen de um poema meu,"Pedro Álvares Cabral".13 Numa das noites, apareceu o Hélio Oiticica vestidobem a caráter, com uma capa negra, imensa, figura semelhante ao TorquatoNeto que apareceria no filme Nosferatu, de Ivan Cardoso. Era inverno econversamos um pouco, e ficamos de nos encontrar. No fundo, nunca moreiem Nova York. De 1964 a 1967 morei em New Jersey, na cidade de NewBruswick. Durante o ano letivo de 1968/69 morei em Toronto e fui morar em

Buffalo em fins de 1969, onde fiquei até dezembro de 1973, época em quedeixei os Estados Unidos. Quando morei em New Bruswick e Buffalo, iamuito a Nova York. Constantemente encontrava o Hélio e outros artistas,

como o Neville d'Almeida, de quem tinha sido amigo em Belo Horizonte nosanos 1950. Mas, hoje, estamos falando do Hélio. Então, comecei a conversar

11 Entrevista feita no Rio de Janeiro, dia 9 de outubro de 1998. As notas, salvo indicação, são deSilviano Santiago.

13 É um poema de uns 15 versos, em que se desconstrói o nome do navegante português.

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com o Hélio e, é gozado, alguns temas iniciais do diálogo acabaram aparecendodireta e indiretamente em textos que ele fazia na época. Uma dos autores quecomecei a discutir com ele foi Nietzsche (ele o havia lido no passado, quando

jovem, criança até, por indicação do avô). Chamei sua atenção para o fato deque toda a questão de Nietzsche estava de volta, em particular entre os teóricosfranceses, como Gilles Deleuze. Passei-lhe alguns livros e, lembro-me que,num texto para a revista Pó/em (Oiticica, 1974a), ele se refere a Nietzsche.Vejo que acabava havendo certas referências ao papo descontraído- Outro livroque parece ter sido importante para ele foi um de Freud, praticamentedesconhecido dos não especialistas, que é Úber Coca. [Sobre Coca]. Haviaconseguido uma edição bilíngue desse livro e passei para ele. Logo depois, eleescreveu um poema em quatro páginas, naquele bloco de papel amarelado,típico norte-americano... o poema se chamava "Tupac Amaru", se não meengano. Em determinado momento do poema, na segunda ou terceira página,ele faz um jogo muito bonito, ao colar um papelote de cocaína na folha amarelae em baixo ele escreve: "Homenagem a Malevitch". Devo dizer que o papelotedo Hélio era extremamente bem feito, praticamente uma obra de arte, brancosobre o branco. Ele era muito agradecido ao Ivan Serpa, que o ensinou acortar e a dobrar papel. Era muito, muito agradecido ao Ivan Serpa, sobretudo,porque tinha que esconder a coca dos olhos alheios e o conseguia. Sobrepunhaduas folhas de papel branco. Na superior fazia uma incisão invisível. Eracomo se fosse um envelope aberto/fechado de papelão. E o corte era tão bemfeito que não parecia que havia um cone na folha, então a coca ficava exatamenteescondida entre duas folhas de papelão e você nunca veria esse corte. Umanti-Lucio Fontana. Sempre dizia que isso, ele aprendeu com Ivan Serpa:fazer um corte no papel ou numa tela, que não parecia ser um corte e, poroutro lado, dele aprendeu também a fazer dobras. Foi através dos livros deNietzsche e de Freud, e depois de um livro de poemas meu (havia acabado depublicar Salto [Santiago, 1969]). Ele cita um trecho do poema "Man" narevista Navilouca (Oiticica, 1974b). Foi dessa maneira que a gente seaproximou, uma maneira que eu diria menos existencial e mais literária... Eu

não morava em Nova York, mas o encontrava com certa frequência, e quandoo encontrava a gente ficava conversando. Muitas vezes eu ia até a casa dele,onde estavam outros amigos. Nessa época, o Romero estava sempre lá. Estavatambém o irmão mais novo do Wally Salomão... Então, pintava uma conversalegal, às vezes surgiam outras pessoas inesperadas.

Você chegou a dormimos Ninhos?14

Não, nunca, pois eu tinha onde ficar em Nova York. O que aconteciaé que, de repente, por volta de nove horas, ele tinha de trabalhar - Hélio trabalhavatodas as noites da semana, ali numa transversal da 5a Avenida, na rua 46, ou47, por ali. Trabalhava num escritório de traduções. Ele fazia traduções durantetoda a noite, é o que lhe dava basicamente o dinheiro, depois da bolsa doGuggenheim [1970] ter terminado. (Ele não sobreviveu em Nova York vendendococaína, que isso fique muito claro. Ele pagava por ela e por isso trabalhavacomo tradutor praticamente todas as noites da semana. Dominava o português,é claro, o espanhol, o francês e o inglês). Durante o dia, essa firma recolhia nasvárias firmas da cidade o trabalho a ser traduzido durante a noite e a ser entreguena manhã seguinte, já feito. O grupo trabalhava à noite. Então, por volta deduas, três da madrugada o Hélio saia e muitas vezes eu continuava a noite pelomeu lado e ia esperá-lo na Quinta Avenida. Caminhava com ele de volta até suacasa e depois ia para o apartamento dum amigo, onde eu ficava hospedadoquando na cidade. Havia muitas conversas, difíceis de serem recapituladas,

mas que já traduziam uma amizade - sim, eu poderia chamar nossorelacionamento de amizade. Ele me falava dos seus projetos, claro, em particularos dessa época. Trabalhava o dia inteiro montando uma série de maquetes, naesperança de as verem construídas na cidade. Ele tinha alguns contatos com a

prefeitura (desconheço a fonte), e os projetos seriam levantados no CentralPark. Apesar de muitas dificuldades, pois morava só e não tinha ninguém queo secretariasse, as maquetes foram feitas com habilidade e cuidado. Uma delasse chamava Éden, e era a mais elaborada de todas, era a em que ele mais trabalhouna época e mais punha esperanças... Muito trabalhada, com um número grandede penetráveis. Um deles, o da entrada, era uma espécie de S, invertido, todo

forrado de borracha, ou látex, e você depois de forçar caminho pelo S invertido,espremido entre uma parede e a outra, no escuro, chegava a um jardimdeslumbrante. Depois, havia um segundo penetrável, em que você eraparticipante para depois ser espectador. Você já estava no segundo espaço, uma

M Ninhos foi apresentado na exposição Information, em 1970. Em seus lofis em Nova York,constrói os Babylonets. Ninhos foi reconstruído por ocasião da exposição Hélio Oiticica e acena americana, com curadoria de Glória Ferreira, no Centro de Arte Hélio Oiticica, em1997. Projeto para o qual foi realizada esta entrevista com Sílviano Santiago. (N. de G. F.)

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espécie de palco, e era, de repente, instado a vestir alguma das roupas queestavam no cabide. Já vestido, era jogado em cena, devidamente iluminado por

spots. Você continuava a caminhar pelo palco do Éden e, de repente, uma

escada à sua frente, você tinha de subír, já estava lá no alto, e de lá via outras

pessoas na situação de participante, no palco em que você esteve antes etc.

Como você veria por esses seus projetos relacionados ao que acontecia emNova York nesse momento, por exemplo, os projetos da Land art...

Hélio, de todos os artistas que conheço dessa época, era sem dúvida, omais afinado com o que se poderia chamar hoje, na pós-modernidade, do novo,

ou do experimental, no sentido quase laboratorial do termo. Naquela época,

não sei se se chamaria o que ele fazia de novo, mas hoje, obrigatoriamente,

teria que chamar de novo. Hélio era o artista brasileiro mais afinado com o

novo... valendo-me da expressão de Ezra Pound, make it new. Estou dizendo

que de todo o grupo brasileiro que o cercava, ele era sem dúvida o mais afinado

com o novo. Ao contrário também dos outros, era pessoa extremamente

permeável ao diálogo. Nessa época, parecia que os outros artistas plásticos

brasileiros já tinham descoberto, por assim dizer, o próprio caminho, e eles nãoestavam interessados em estar a par do que acontecia. Sabiam, é claro, do que

acontecia, mas eram pouco permeáveis à cena nova-iorquina, e o Hélio não. Ele

era muito sensível, por exemplo, às artimanhas do Andy Warhol: todo seu

interesse pela foto, pelo cinema, pelas celebridades, certo exibicionismo também...

Um cerro dandismo, talvez próprio de Nova York?

Não, diria exibicionismo sabe, mais do que dandismo, porque o Hélio não

era uma pessoa bonita, não tinha muitas roupas, mas ele tinha, ponhamos, uma

aparência muito peculiar. Não fazia o género hippie. Vestia-se como um qualquer,

segundo as estações do ano. Mas, dândi?... não sei, nada a ver com o escritor TomWolfe, este, sim, um dândi, um jornalista de sucesso todo emperiquitado. (Você

sabe tenho formação francesa e, naquela língua e sociedade, a palavra tem sentido

bem preciso.) Hélio fazia um determinado exercício, ou esforço, para exteriorizar

sua própria beleza, as qualidades do seu físico extremamente saudável. Nunca o vi

com gripe, ou resfriado, ou se queixando de problemas estomacais. Não diria que

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era um dândi, o Hélio era mais... um anacoreta em pleno East Village. Havia uma

coisa meio exibicionista, sem o sentido pejorativo da palavra, claro, meio malandro

de morro carioca. Um exibicionismo sedutor...

Hélio tem a mesma idade dessa geração americana que estava começando, a

geração do Robert Morris, Robert Smithson, no entanto já vai para os Estados

Unidos com um passado, já tem uma história, já havia feito história no Brasil...

Quando vai para os EUA, eleja tem um conhecimento, um contato com a arte

que é feita lá, mas faz certas opções claramente. Por exemplo, o que acontecia

de mais forte nos EUA nessa época era, digamos, o pós-minimalismo, a Arte

Conceituai, e a. sua visão crítica é, ao meu ver, extremamente lúcida.

É, Hélio tinha um passado, mas era, ao mesmo tempo, permeável aoque via de novidade na cidade. Por exemplo, toda a questão da arte conceituai,

que era forte naquela época, faz com que ele abandone definitivamente qualquer

tentativa de quadro, no sentido clássico da palavra, ou de suporte. Os inúmeroscadernos em que escreve - esses cadernos existem e apresentam uma série

infindável de propostas conceituais. Eu mesmo ganhei duas propostas

conceituais que ele fez para mim, uma delas é para quando eu voltasse aoBrasil; para mim, cada projeto é uma obra de arte. E o Hélio estava, assim, no

maior diálogo com a questão conceituai. Pelo que lembro, ele estava lendo a

grande teórica na época, Lucy Lippard (The dematerialization oftheArt Object,

por exemplo). Lia, podia discordar aqui e ali etc., mas estava lendo... Até comprei

um livro indicado por ele, não vou me lembrar do titulo, mas por ele, me dizia

ele, eu devia me interessar. E aquela apresentação que ele fez na State Universityof New York at Buffalo era nitidamente uma apresentação de arte conceituai...

Como foi a apresentação na Albright-Knox Art Gallery?15

O projeto era simplesmente o que ele chama de uma conferência, tendo

como pano de fundo a apresentação de slides. Ele não levou quadros, não tinha

nada de concreto nas mãos, não dependurou nada nas paredes. Fez uma

11 Museu na cidade de Buffãlo, no estado de Nova York.

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apresentação de slides, no auditório da Albright-Knox. Conversou com aspessoas na plateia, discutiu com as pessoas etc... foi dessa maneira que eledesenvolveu a exposição... Depois, dei um coquetet em casa, onde a conversacontinuou até altas horas da noite.

E os slides eram sobre o quê?

Os slides eram, em geral, de trabalhos antigos dele, de parangolés... Ocartaz da conferência/exibição, por exemplo, mostra um célebre parangolé doHélio, uma foto de parangolé vestido pelo Romero. Muitos slides eram do queele chamava na época - antes de entrar na Cosmococa - de situações de rua.

Determinadas situações de rua que lhe pareciam intrigantes. O projeto tinhamais a ver com o teatro do que com as artes plásticas. Buscava, se não meengano, uma espécie de estetização do cotidiano, uma crítica do cotidiano pelasua apreensão pela câmara fotográfica. Algo que estava vindo muito forte naquelaépoca, por causa do movimento dos hippies e dos movimentos mais politizadosda esquerda. Havia essa permeabilidade dele ao atual, mas ele não queriaapresentar as questões do modo como os artistas gringos as apresentavam.(Não faz sentido dar os nomes dos artistas agora, porque a minha memória daépoca ainda não está quente. Irá esquentando durante a entrevista, espero.)Mas outros artistas estavam pintando ou montando quadros urbanos, que seriamdescritos como cenas da cidade, entende, e ele não ousava chegar a esse pontode pintar um quadro... não queria fazer um quadro de cenas da cidade. Aforma de politização do Hélio não se enquadrava na bitola norte-americana

revolucionária, tampouco, apenas para esclarecer, os slides dele não iam para olado das intervenções do Augusto Boal. Não se pode negar que o Hélio tenhasempre sido politicamente um entusiasta do anarquismo, isso vem do avô, éclaro. Nessa época, Hélio tinha também grande simpatia pelo anarquismo emvirtude do Living Theatre - um dos livros do Julian Beck tem epígrafe do seu

avô, o velho gramático Oiticica. E ele mostrava a epígrafe a todos com muito...muito orgulho. Tinha uma tendência para o anarquismo, por isso disse quesuas cenas de rua são diferentes das intervenções do Boal. Este tinha umaatitude partidária, ideológica no caso, como ficou claro na sua passagem pela

França durante a ascensão do socialismo ao poder. No caso do Hélio, a intençãoera a de criar determinada situação quase de... "pânico" na rua, que mudaria a

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percepção automatizada que as pessoas tinham do real. O artista se exibia noplano do real e isso causava certo mal-estar numa sociedade que tem em altaconta a prívacy, a privacidade. Em particular, muitas das cenas se passavam, eu

não sei se essas fotos existem, se esses slides existem... muitos se passavam naplataforma do metro, ou dentro do metro.

Sim, tem algumas no catálogo... (cf. Hélio Oiticica..., 1997). Você poderiadescrever um pouco mais como foí o contexto do evento na Albright-Knox An

Gallery?

Quando fui para a State University of New York at Buffalo comoprofessor, por incrível que pareça, como professor de literatura francesa, pudetrabalhar muito mais a favor do Brasil que antes. Minha formação académica éem literatura francesa, mas ensinei nos Estados Unidos de 1962 a 1969,literatura e cultura brasileira. Como tal, fazia parte do Departamento deEspanhol e Português, sem nenhuma importância junto à estrutura de poderna universidade em que ensinava. Ao passar para o prestigioso Departamentode Francês, a situação mudou. Pense-se no prestígio que o pensamento francêstinha na época, invadindo rincões como Johns Hopkíns, Yale e Cornell.Juntamente com mais dois brasileiros que estavam no campus como professores,o matemático Ubiratan d'Ambrósio e o artista e ativista negro Abdías doNascimento, organizamos diversos eventos artísticos em torno do Brasil. ComHélio, foi em 1973, quando voltei de viagem ao Brasil em 1972. A gente tinhalevado antes o Glauber Rocha, com exibição de todos os seus filmes. Aapresentação dos filmes no auditório maior da universidade e a discussão coma plateia etc. - isso, no auge da carreira do Glauber Rocha, quando a ColumbiaPictures se interessou por ele para filmar Wiíd Palms, romance de WilliamFaulkner (projeto gorado). Também foi levado a Buffalo o espetáculo Arenaconta Zumbi, com o elenco original. Boal, na época, estava em Nova York e oelenco original também. Lima Duarte e Zezé Motta entre tantos outros foramtransportados de avião até Buffalo para a apresentação. Essas coisas eram feitascom certa repercussão na cidade. Havia também, paralelamente, discussões,seminários etc., sobre o Brasil. Num deles, falei sobre Lévi-Strauss e o Brasil.Tornei-me amigo de pessoas influentes na cidade, isso também foi outracoincidência, em particular fiquei amigo do dono, ou maior acionista, do banco

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mais importante da cidade. O banco era o M&T Bank e a família amiga eraDiebold. Esse pessoal, por sua vez, tinha relações estreitas com a Albright-Knox An Galery, o que é normal, até mesmo porque o citado Diebold eraaquarelista. Aquela coisa americana: a grande burguesia tem relações muitoestreitas com as instituições culturais da comunidade. Foi através deles quepropus um dia assim, em um coquetel em homenagem a um banqueiro mexicano,que o Hélio devia ir lá para fazer uma apresentação. Eles saberiam alguma coisasobre o Hélio, sobre quem eu falava com constância. E a sugestão vingou.Então, daí a um número x de dias, a coisa foi organizada e o Hélio foi a Buffalo

e ficou hospedado lá em casa - eu tinha um pequeno apartamento, e houveuma festa para ele logo depois, uma festa de arromba. Foram todos os professoresamigos nossos, todas as pessoas que circulavam pelo museu etc. Como erauma apresentação de slides, a conferência/exibição foi no auditório - eles tinhamum auditório lindíssimo. Hélio apresentou os slides e depois houve um debate,uma discussão no estilo meio dele, meio agressivo, meio irónico, até meioirritante... e funcionou muito bem. Era para ser o que foi, porque exatamente

naquele momento ele não queria ter compromisso de exposição, no sentidohabitual da palavra, queria exatamente algo mais conceituai. Queria, de cenamaneira, intervir no modus operandi da própria Albright-Knox Art Gallery,que é um museu muito bom, de altíssimo nível, não sei se ainda o é, mas naépoca era de altíssimo nível, com coleções maravilhosas. Então, o evento causouaté certa estranheza nos organizadores, quero dizer que os curadores domuseu - refiro-me aos funcionários graduados - boicotaram um pouco aexposição, porque aquilo fugia da concepção que tinham obviamente de museu.A conferência/exibição (gosto da combinação de palavras) do Hélio correspondiaa uma atitude meio ducharnpiana, atitude que agradava ao Hélio na época. Eraimportante para ele fazer uma intervenção no museu, no caso apresentandoslides, fotos... e falando aos borbotões. Coisas um pouco desconexas, um poucosem sentido, só aparentemente...

Não lineares...

Não lineares e, ao mesmo tempo, uma linha reta de negações. Naquelaépoca Hélio tinha a mania de usar três "nãos". O lado crítico e temperamental doHélio se manifestava a partir duma afirmação de nãos: o não ritual, o não mítico

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e o não teatral... O Hélio adorava esse tipo de afirmação pela negativa. Acreditoque estava querendo dizer: "por favor, não estou querendo mostrar o ritual davida urbana" - era comum no teatro norte-americano e nas artes plásticas deentão, nos happenings e nas performances, era comum apresentar um espetáculomeio ritualístico (talvez houvesse ali uma crítica velada ao Rubens Gerchman daépoca, que caminhava para a coisa do índio, para a coisa mais ritualízada - nessaépoca Gerchman fez umas exposições em Manhattan, em particular na NewYork Univcrsity,16 com determinadas ligações com a vida cotidiana dos índios).1?

O outro lado seria o não mítico, crítica ao Jung, então muito forte na cenaamericana, em especial nas manifestações alternativas de religiosidade ligadas aoinconsciente, sei lá. E, finalmente, o não teatral, talvez crítica às intervençõespolíticas do Boal (na época, Boal tinha ganhado todo um número da TuíaneDrama Review, revista de grande prestígio). Talvez desejo de aproximação do"teatro da crueldade" de Julian Beck, a que ele se sentia muito ligado. Essasafirmações pelo não eram o Hélio. Ele quis deixar bem claro aos presentes noauditório do museu que o que estava fazendo era uma obra-de-arte-não. Masuma obra de arte plástica, no sentido muito preciso da palavra.

Esse foi o único projeto que você fez com ele?

Não. Há outro projeto. Lamento muito que tenha acontecido o queaconteceu, porque teria sido, se não me engano, o único livro - pelo que eusaiba - que o Hélio teria idealizado na sua integralidade. Era um livro de poesia

que se chamava 35 em algarismos romanos, xxxv. Um novo livro de poemasmeus. Hélio quando o leu pediu para fazer a boneca, para fazer todo o livro.Entreguei-lhe uma cópia final do livro e ele tirou seis fotos minhas só dorosto - não sei se ainda existem os negativos, eu perdi as cópias, aliás, todoesse material sobre que vou falar agora eu o perdi na década de 1980... Ele tirou

16 "4 Young Artists, na New York University. Loeb Student Center", 1971.17 Lembro-me que lhe recomendei naquela época a leitura de Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss.

Como ele tinha uma preocupação grande com olfato/perfume, indiquei-lhe duas passagensdo livro que me encantavam: a primeira, "ainda hoje eu pense primeiro no Brasil como numperfume queimado", e a segunda, "o Novo Mundo, para o navegador que se aproxima,impõe-se primeiramente como um perfume [...]" (Lévi-Strauss, 1998: 45 e 74,respectivamente).

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essas fotos porque o livro tinha, marcadamente, um sentido autobiográfico.Tinha acabado de fazer 35 anos (nasci em 1936). Fez uns cortes em cada foto,às vezes cortes verticais assim pegando parte dos óculos, o nariz e um pedaço

da boca; às vezes era só os olhos, ou só a boca... era dessa maneira que ospoemas iriam se sucedendo. A capa, por assim dizer, era muito bonita. Eramfolhas recortadas que se iam superpondo, formando o algarismo xxxv, eramfolhas que iam se superpondo. O x inicial se superpunha a outro x, que sesuperpunha a outro e a um v, a um cinco em algarismo romano. Fez a bonecacom todo o carinho, e é algo que lamento muito. Hélio programou página porpágina em papel de seda e, além do mais, para que os cortes nas fotos ficassemperfeitos punha um papel impermeável em cima da foto, com o desenho do

corte, como o recorte deveria ser feito etc. Esse foi o projeto maior que a gentefez junto. Ele também queria que a Lygia Pape o executasse. No final, escreveuum cartão dando todas as regras de como o projeto deveria ser executado...aquela coisa obsessiva dele. Esse foi o projeto, ponhamos aqui, que infelizmentenão existiu,18 pois quando voltei ao Brasil, voltei meio sem dinheiro e fuitrabalhar na PUC-RJ. Nos EUA, ganhava bastante bem como professor. Chegoaqui e fui ser professor, houve o problema da defasagem no salário, e naquelaépoca o Hélio ainda não tinha tanto nome junto a uma possível editora. E eumenos ainda. Não encontrei uma editora que financiasse o projeto. Para vocêter uma ideia da situação financeira, ele vende, na época, o Cara de Cavalo pormil dólares... Enfim, ele fez dois projetos conceituais para mim. Um "perguntas- respostas" e um outro que seria o projeto Vigília, sobre o meu retorno aoBrasil - mais ou menos como eu deveria me comportar no Brasil ao regressar,

aquelas coisas... Estão nos cadernos, tenho absoluta certeza, porque o que eleme deu foram fotocópias. Do poema chamado TupacAmaru, eu tinha o originalporque ele o dedica a mim, em agradecimento por eu ter lhe dado o Úber Coca.O projeto Vigília é o da volta, e o outro era uma espécie de um questionário queele fez com várias pessoas.19

" Passei os anos de 1982 a 1984 como professor visitante na Sorbonne Nouveile, em Paris. Meuapartamento carioca foi emprestado ao meu irmão, Rodrigo Santiago, que nele passou amorar. Sendo ator, recebia muitos amigos e companheiros em casa. Quando regresseidefinitivamente de Paris, descobri que o grande envelope com toda a papelada do Hélio tinhadesaparecido. Não posso ir além da constatação. Não a declarei naquela época por delicadezaem relação a meu irmão, hoje já falecido.

19 Os dois projetos foram publicados na íntegra pelo Frederico Coelho, e saíram na revistabilíngue Margens/Márgenes, de que fiii editor.

Como você vê a relação entre arte e poesia, essa expansão de limite que écaracterística do Hélio? Aliás, um parêntese: embora seja uma leitura muitorecorrente do neoconcretismo como algo antagónico ao concretísmo paulistaetc., o Hélio vai ter relações das mais intensas com os poetas concretos...

A impressão que tenho é a de que o Hélio - quando o conheci - era

antes de mais nada o artista da palavra. Ele tinha um comando de falaextraordinário. Como se expressava bem, como escolhia a palavra perfeita, comotudo que enunciava era muito preciso, muito exato! Não estou falando doescrito, mas da oralidade. Ele tinha uma capacidade de articulação oral que eudiria..., nunca encontrei em outro artista plástico. Os artistas plásticos emgeral, deixam muito a desejar quando falam, refiro-me pelo menos aos que tivea oportunidade de conhecer mais de perto. Em Hélio era impressionante essecomando da linguagem, capaz de dizer o que queria dizer e dizer muito bem.Capaz de comentar os trabalhos dos colegas com uma noção muito precisa dotrabalho de cada um. Falava como se fosse um crítico de arte. Acho isso muito

raro em artista plástico. Repito, nunca vi um igual...

Nesse momento, vamos encontrar uma série de artistas que tomam a palavra...

Tomam a palavra, mas por enquanto estou em oralidade.

Sim, mas tomam a palavra mesmo como por exemplo, Robert Smithson...

Ah, não, estou falando dos brasileiros, em particular da geração doHélio. Não cheguei a conhecer esses grandes artistas norte-americanos, possotê-los visto em programas de televisão e vídeos, coisas assim, mas aí, já é umafala meio ensaiada, meio falsa, já é produto de montagem... ao passo que nocaso do Hélio não... a gente estava conversando e de repente ele começava afalar sobre x e sobre y, entende? Ou sobre um determinado livro que estavalendo, ou sobre determinadas coisas do mundo da arte e era impressionante.

Tenho a impressão que deve ter sido isso talvez que tenha encantado tanto aosirmãos Campos, ao Décio Pignatari, ao Quentin Fiore etc. Era uma pessoa comquem você podia manter um diálogo de igual para igual, não havia desnível de

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linguagem no diálogo, como se ele tivesse treinamento de poeta, ou de ficcionista.Acho-o muito extraordinário.

E em um sentido, digamos, mais estrutural nessa relação da arte compoesia...

E, comecei por ali, vou adiante. Então, ele era uma pessoa muito atentaà palavra, muito atento à linguagem, como aliás a maioria dos artistas brasileirosna época. Mas havia uma diferença substantiva. Os artistas brasileiros na época,eles... posso estar errado porque não sou crítico de arte nem nada... eles emgeral trabalhavam um slogan ou frase-feita, sabe, trabalhavam segmentos curtosde linguagem, ao passo que o Hélio não, ele se detinha, atava e desatava... Teriaque rever melhor esses cadernos que ele nos legou, mas a impressão que eutinha é que ele escrevia a cada dia nos cadernos, então para ele o escrever eraum exercício diário e constante, é diferente de você pegar num determinadoquadro do António Dias ou do Gerchman, onde existem determinados segmentoscurtos de linguagem, bem trabalhados. Não sei se António Dias e Gerchmanmantêm cadernos também, pois não os conheço assim com intimidade, mas oHélio sim, ele mantinha esses cadernos e com a folha de papel em branco eledialogava da mesma maneira que um poeta ou um ficcionista dialoga com aobra que está escrevendo. Já mencionamos o diálogo com o outro. Podia serconversa com o Haroldo de Campos, o Décio Pignatari ou eu, ou qualqueroutro que aparecesse no seu apartamento. Tinha também aquele rapaz gringo,de que ele gostava muito, o Quentin Fiore, que tinha feito um trabalho com oMarshall McLuhan e morava em Princeton. Ele gostava muito, muito do QuentinFiore. Hélio era uma pessoa de diálogo, e isso era importante. Era permeável,como já disse.

Quando sai do Brasil, Hélio já havia desenvolvido uma crítica contundente aocircuito da arte, ao qual se referia como "essas ditas artes plásticas". E, umaleitura da história da arte refutando qualquer concepção de autonomia. Desdeo final dos anos 1950, e no contexto do neoconcretismo, seus textos já refletem

isso, com uma compreensão, por exemplo, de Mondrían, de Malevitch, e deKandinsky também, que na verdade a leitura oficial da história da arte tendia aencaixar em um certo formalismo...

9S

E é exatamente disso que estou falando, ele tinha um comandoextraordinário da linguagem crítica nas artes (não era apenas um produtor,como seus contemporâneos). Parece uma pessoa treinada para a crítica, muitomais do que um artista que aparentemente não fora treinado para se exprimirdessa forma, mas de outras formas, as não conceituais. Voltando ao que estavatentando expor: a maioria dos amigos do Hélio nessa época, por amigos excluoum pouco as amizades, ponhamos, de caráter mais sentimental, estou mereferindo agora às amizades de caráter mais intelectual - embora o Hélio fosseuma pessoa muito fraterna, você percebia um pouco quando a amizade erasentimental ou quando tinha uma tonalidade intelectual. Nunca classificariaessas amizades só de intelectual. Você vê que as pessoas mais interessantescom quem ele convive são escritores, como, por exemplo, sua intensa admiraçãopelos Campos nesse período. É pelo menos curioso o seu diálogo com os Campos,com o Décio Pignatari também, que é uma pessoa até um pouco mais difícil doque o Haroldo. Minha formação também era uma formação nitidamente literária.Ou então o diálogo com pessoas assim como o Neville, que naquela época nãotinha ainda se definido como cineasta. Naquela época, Neville era uma pessoade perfil indefinido no campo das artes. Era isso, acho eu, que fascinava oHélio. Ele era mais indefinido do que o Júlio Bressane, por exemplo, o Bressanejá era um cineasta e o Neville não. Talvez seja essa uma das razões pelas quaisa Cosmococa foi feito com o Neville, porque o Neville nunca teria dito aoHélio: vamos fazer um filme. Havia feito dois filmes: um curta-metragem,chamado O muro, e um segundo filme, Jardim de guerra, excelente aliás, comscrípt escrito pelo Jorge Mautner, então tomado pela teoria sobre o Kaos. Olonga de Neville foi censurado20 e alcançou sucesso junto ao públicoespecializado. O segundo filme saiu um tempo antes do ano em que MaurícioGomes Leite, nosso colega nos anos 1950 no Centro de EstudosCinematográficos de Minas Gerais, apresentou uma produção bem comercial,Vida provisória.2^ Neville não era o cineasta de A dama do lotação. Havia feitoapenas esses dois filmes e era meio livre atirador naquele momento. Não sei sevocê sabe que o Neville trabalhou durante muito tempo como garçom em NovaYork, no restaurante Brasserie, ao lado do irmão Brasil. Trabalhou também na

20 Refiro-me, em particular, a uma longa sequência de tortura que tem como acompanhamentomusical a Ave-Maria.

11 Maurício fez antes, em 1967, um documentário de sucesso, O velho e o novo (Otto MariaCarpeaux).

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loja BIoomingdale's. (A propósito, ele, sim, fazia o género dândi.) Nesse sentido,acho, NeviSle era uma pessoa mais interessante para o Hélio do que alguém quejá tivesse um perfil profissional bem delineado.

Tenho a impressão de que o diálogo do Hélio com certos artistas do chamado

pós-minimalismo americano daquele momento, relaciona-se também à

indefinição, ou seja, a escolha da indefinição: possibilidade da expressão artísticase dar através de qualquer meio...

Isso o entusiasmava muito, muito. Em suma, a ideia de que há um

potencial inexplorado no campo das artes e de que você não canalizanecessariamente esse potencial através de uma forma pré-estabelecida, seja pela

tradição, seja pelo cânone, seja pelo que seja. O horror que ele tem de quadro

nessa época, de moldura, era tema constante nas nossas conversas (já imagina

que pessoalmente sou louco por museus, de toda espécie). O horror da moldura.

Era muito gozado, qualquer coisa que lembrasse moldura... lá ia o Hélio a

perder completamente as estribeiras e xingando... Possivelmente é esse fascínio

pelo indefinido que ele vai encontrar nos diferentes objetos e manifestações

pop, que no fundo eram expressões de arte, não há dúvida alguma. Capa de

longplaying, de livro, eram coisas que lhe fascinavam demais. Ele fez algumas

capas - lembro-me da capa de disco da Gal, o cabelo da artista todo composto

com fotozinhas etc. Ele gastou tempos e tempos fazendo aquela capa, recortando

e colando fotos, foi um trabalho insano... Pessoalmente, na época, até cunhei

conceito e definição para o que seria você curtir uma capa de disco, por exemplo.

Curti-la, enquanto escutava a música, podia ser tão interessante quanto aexperiência de ler um livro maravilhoso de 400 páginas.22 Você gastaria seu

tempo lendo aquela capa, passando pelo impacto dos detalhes em bríc-à-brac,

de tal maneira como você tivesse lendo algo de linear por 300 páginas. Hélio era

muito sensível a esse tipo de experimento, que depois, nos anos 1970 em

particular, a partir das capas do Beatles, ficou muito comum. Mas, naquela

época, acho que o Hélio é um dos primeiros artistas de peso a experimentar no

mundo propriamente pop. Há também uma coisa do Hélio, de que o Caetano

22 Cf. o ensaio "Os abutres", em Uma literatura nos trópicos; e ainda, no mesmo livro, "Bomconselho" e "Caetano Veloso enquanto superastro".

100

vai se valer, se não me engano, porque às vezes essas genealogias são falsas,

que é o gosto pelo fragmento. Muitas vezes, o artista não quer ler o livro

inteiro, fica satisfeito com o fragmento de dez linhas, bem rico, que acabou de

absorver. Fica horas pensando em cima etc., e isso lhe parece ser maisinteressante que ler todo o livro. São coisas importantes a dizer em termos da

questão da palavra em tempos dos desastres da galáxia de Gutenberg. Você

acha que na leitura de um fragmento, ainda que de obra filosófica, você teria,entre aspas, a "mensagem do livro". Bastava você ler um trecho, ler bem aquele

trecho, curtir aquele trecho, fazer brincadeiras, bordar, e daí surge essa coisa

muito importante do Hélio nessa época, e também de outros artistas brasileiros,

que é o jogo - ou a brincadeira - com a palavra. Acho que é por aí que esses

artistas plásticos se aproximam da poesia concreta... Para o Gerchman é

importante o jogo com as palavras, quer dizer, fazer aquela caixa que lembra oestojo de menino na escola primária...23 são objetos muito importantes e

proporcionam grande fascínio.

Silviano, se tentarmos en tender as opções do Hélio, sobre o que ele vai se interessar

mais no meio de arte americano, não deixa de ser interessante, por exemplo,o

fato de ele recuperar as questões do início dos anos 1960, do Fluxus, da Yoko

Ono etc. Pessoas que, naquela época, de cena maneira, estavam começando a ser

colocadas um pouco de lado. A ideia do Fluxus, através do Maàunas, por exemplo,

estava sendo muito criticada. E ele vai fazer essa opção. A meu ver-e é uma

hipótese - digamos que optou por uma marginalidade radical...

Ah, sim. Isso sem dúvida, porque uma das coisas por exemplo - mesmosem saber se o que vou dizer seja falso ou não, porque obviamente não convivia

com ele 24 horas - que acho extraordinária no Hélio: ele não ia a museus, não

o vi indo a museus, não o vi indo a galerias... era muito raro o Hélio ir a

galerias...

Mas ele ia a. cinemas alternativos, undergrounds...

Refiro-me ao estojo que contém várias caixinhas de plástico, todas com nome, intitulado Ai,50x70cm, 1969 (tiragem de 100 exemplares).

10!

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Ah, sim... por isso digo que o relacionamento dele não podia sercom uma arte que está se institucionalizando, encontrando lugar e valor nocircuito. A impressão que tenho é que ele se atualizava mais através deleituras, de informações, ou através de espetáculos, ou através das saídas

noturnas, ou coisas desse género, do que através das formas institucionaisde se atualizar, ou seja, fazendo o circuito das galerias todo sábado, umadas manias que começou nessa época. Fazer o circuito das galerias todosábado, ou fazer o circuito dos museus depois da abertura das grandesexposições etc. Nunca vi Hélio indo a grandes exposições no Museu de

Arte Moderna ou a grandes exposições no Metropolitan, no Guggenheimou semelhantes. Não sei se ele realmente não ia, mas não o vi indo. Setivesse ido, não comentava. Havia duas ou três galerias que ele apreciava,essas clássicas do pop, como a do Leo Castelli, então já no Soho. Tambémtinha enorme fascínio pela Galeria Denise René, de Paris, por causa dosconstrutívistas, mas ele era antes de mais - se não me engano - uma pessoacuriosa por catálogos, revistas e jornais. No fundo, o Hélio saia pouco decasa. Quando saía, era para o trabalho, praticamente todas as noites dasemana, pelo menos nos períodos em que convivi com ele, e depois haviaainda as saídas vampirescas... Ele não tinha uma vida que eu chamaria, umavida, ponhamos, de alguém que chega a Manhattan interessado em conhecero circuito das artes de Nova York. Eu, por exemplo, conhecia pessoas e aténão brasileiras que queriam porque queriam conhecer o circuito de arte.Hélio estava interessado em determinados jogos sociais. Ele tinha um bomamigo no Museu de Arte Moderna de Nova York,24 uma pessoa com quemele conversava; tinha um bom amigo dentro de não sei onde, e isso era osuficiente para ele... não me lembro do Hélio ser uma pessoa gregária,tentando se juntar ao maior número de pessoas num coquetel ou numafesta, ao contrário de outros artistas brasileiros ou norte-americanos queatuavam publicamente dessa forma naquela época. Hélio podia até ir a umcoquetel, mas fazia figura assim meio estranha dentro desse coquetel. Passavamuito rapidamente por lá. Às vezes, ele ia vestido, como já disse, de umamaneira meio extravagante. Aparecia e todo o mundo o enxergava logo...

24 Refiro-me a Kynaston L. McShine. A respeito do trabalho apresentado pelo Hélio na exposiçãoInformation, cf. Oiticica, 2006.

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Mesmo um pouco antes de sair, de ir para Nova York, e mais particularmentelá, ele optara por uma extrema radicalidade. Há uma opção da estética e da. éticajuntas, de arte/vida... nos Ninhos, na maneira de viver, na droga, na questãohomossexual etc. Radicalidade que talvez a própria cena americana oferecesse

naquele momento...

Será? Não sei se o Hélio estava tão impressionado assim com a cenanorte-americana, às vezes eu me pergunto. Acho o Hélio uma pessoa introvertidae obsessiva, e você lendo suas cartas, vê como ele é introvertido e obsessivo...o trabalho de arte dele é um trabalho a ser feito a partir de si próprio.25 Não épor casualidade que existe o parangolé, e coisas semelhantes no seu percurso.

O espectador como participante. Nesse período que o conheci ele era umapessoa para quem o aperfeiçoamento na vida e na arte se daria pelo desejo. Umdesejo não passível de controle. Uni desejo assim meio incontrolável, meioanárquico que o levava a situações realmente perigosas. Hélio tinha um gostopelo perigo, muito grande... E a situação de perigo poderia acontecer tanto noBrasil como lá, tanto na França, quanto na Inglaterra. Não vejo assim umacoisa específica da cena norte-americana que o motivava, cena, aliás, que não eramenos perigosa do que as outras. O próprio Hélio se viu em - e me descreveu -algumas situações muito, muito perigosas. Perigosas no sentido amplo. Sair àrua e encontrar x ou y, que pode degolá-lo ou quase; meter-se com pessoas eenfrentar perigos institucionais. Um dia em que eu estava na casa dele, eracedo, de repente tocam a campainha lá em baixo, mostram o distintivo. Eram

dois caras do FBI que queriam fazer uma vistoria no apartamento dele.

Salvo pelo Malevítch...

Não, pelo Ivan Serpa... e os dois queriam fazer e fizeram uma vistoria noapartamento dele. Uma amiga sua, modelo de profissão, havia chegado à cidade(não é o caso de dar nomes, é claro) e havia sido presa no aeroporto Kennedy. Aúnica coisa que trazia no bolso era o endereço do Hélio. Então, imediatamente,

: Visivelmente influenciado por Hélio, Waly Salomão escreve nessa época e publica "Na esfera daprodução de si mesmo".

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foram lá saber se havia uma relação ou não entre o que aquela pessoa traziaescondido e o Hélio. Claro que não encontraram absolutamente nada noapartamento, mas é um tipo de vida que... Sabe aquele mito de se você for para osEUA você vai ter mais liberdade? Acho que o Hélio nunca buscou isso. Não eramais liberdade o que buscava, talvez fosse o que eu próprio chamo a condiçãoviajante. Não ter parentes ao redor, não ter ninguém te aporrinhando, nenhumchato te enchendo o saco etc. Isso é que proporciona certa liberdade. Mas oHélio, no fundo, era muito carinhoso com os familiares, acrescento. Enormecarinho pelo César, falava constantemente dele, eu mesmo trouxe cartas, pacotespara o César. O pai... falava do pai, ih! quando começava a falar do pai nãoterminava... que ganhou a bolsa Gughenhein porque estudava borboletas, erafotógrafo e não sei o quê mais; o avô era gozado, ele não demonstrava curiosidadepelo avô, mas a impressão que eu tinha é que ele não sabia muito sobre a vida doavô. Sei que ficou muito orgulhoso, e já o disse, quando viu a frase do avô comoepígrafe no livro do Julian Beck. Mas não falava longamente dele, ao passo quefalava longamente sobre o pai, os irmãos, o irmão, acho que arquiteto de profissão,que estava então fazendo um trabalho na Amazónia, um determinado tipo deprojeto de casa tropical. Voltando ao que você havia perguntado, eu diria que eraa condição de viajante, de estar ali de passagem que o encantava em Nova York...

Em muitas canas suas, nas próprias cartas para a Lygia, quando está se mudandopara Nova York, demonstra uma expectativa: o que vai acontecer? que NovaYork é o único lugar que ele quer ir, é o único lugar onde as coisas podemacontecer, e você vai vendo depois uma visão crítica ou senão mais...

E, é porque ele estava saindo por uma longa temporada do Brasil... Enaquela época eu diria, vou ser um pouco cruel, era de bom tom você fazercontrastes do estrangeiro com o Brasil, já que a situação nossa era terrível. Masolha, vim ao Brasil em 1970 e diria que do ponto de vista da permissividadesexual não havia diferença. Fui ao Sótão, à Galeria Alaska..., não havia diferençaentre a cena nova-iorquína e a carioca. Não estou falando de política no sentidotradicional do termo, mas da famosa atitude comportamental que hoje se chamapromiscuidade, era impressionante. Diria até que o Sótão (situado no posto 6 deCopacabana) era mais livre do que 90 por cento dos bares gays de Nova York. NoSótão, via as pessoas se beijando, se abraçando etc., ao passo que num bar norte-

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americano, a não ser quando se entrava no ambiente do darkroom, tinham umcomportamento meio pequeno burguês, drinque das cinco... é um lugar de

encontro, só homossexuais, não há dúvida nenhuma, mas não havia assim umaliberalidade de costumes no ambiente. A permissividade, ou a promiscuidadesexual no Rio de Janeiro é algo a ser estudada, em particular nesse período daditadura. Depois a coisa se complica... Mas, vamos voltar ao que interessa, o

período nova-iorquino. Certamente, Hélio, como todos nós - eu também decerta maneira saí achando que ia encontrar o ouro lá fora. A viagem ao estrangeiropropicia isso. Acho que ele sofreu uma primeira decepção em Paris. Em Londres,não se decepciona, porque tem um cicerone fantástico, o Guy Brett. Facilita ascoisas para ele e está por detrás da exposição na galeria White Chapei etc. Quandochega a Paris, depois de Londres... você vê que é um momento inclusive em queas relações dele com a Lygia se estremecem, em particular quando a conversa gira

em torno da galeria Denise René. Eles vão a uma festa, acho, em casa de umargentino, o Júlio Lê Pare talvez, que nessa época, era muito famoso, e aí pinta oproblema de como se aproximar da Denise René com vistas a uma exposição, e o

Hélio se vê nitidamente preterido. Estou falando de tudo isso, obviamente, semconsultar documentos, sem nada de presencial, mas acho que a questão teria deser vista e analisada por um especialista. Agora, que ele estava entusiasmadíssimocom Nova York, estava. Sobretudo com os projetos políticos libertários. Querdizer, ele acreditava piamente, acreditava mesmo, que ia fazer aqueles trabalhosenormes no Central Park, aliás, se consultados os projetos, neles deve estar apalavra Central Park... Com o Museu de Arte Moderna já estava decepcionado. Jásabia que lá não haveria muito lugar para ele; nas galerias de arte também nãohaveria muito lugar para ele... Havia uma moça que até outro dia eu reencontreipor acaso, que tinha certo carinho por ele e acabou sendo, creio, a única pessoaque fez um artigo para uma revista, não de ótima qualidade, mas de certo prestígio.A moça é a conhecida crítica Jacqueline Barnitz (1972: 45-48). Publicou o artigona An Magazine, uma revista, ponhamos, que não é de primeira categoria, mascom certo prestígio, e a Jacqueline Barnitz, que não é americana, é uma judiaargentina, estava tentando fazer carreira em Nova York. O artigo de Jacqueline odeixa muito envaidecido. Enviou-me cópia xerox a BufFalo. Entre parênteses: édos poucos textos que saem, assim, substantivos sobre o Hélio em Nova York, eentão você constata que houve um lento processo de desilusão, embora o pior dadesilusão se dê no momento sobre o que ainda não falei. Ele quer publicar um

livro. Arranjei um encontro dele com o pessoal da Something Else Press, onde

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um conto meu traduzido ao inglês, "Labor Dei", bem becktiano, tinha saídonuma antologia.26 Esse livro, ele me falou desse livro à exaustão, teria uma forma...

Um livro dessesprojetos? Havia também oprojeto do Conglomerado, com reuniãode trabalhos de várias pessoas...

Olha, era sempre um livro muito pessoal, livro meio mallarmaico que elenunca explicava direito o que era, mas ele queria... ele chegou a fazer contatos com

editoras alternativas norte-americanas para poder publicar esse livro. Teria um

formato meio estranho porque queria que fosse um livro diferente, assim, que oslados fossem em diagonal, evitando a forma retangular, de paralelepípedo. E aí, a

partir daí surgiriam vários outros projetos de livro. No fiando, os cadernos de

anotações deveriam eventualmente se transformar em livros. É uma das maneiras

também, acho, de compensação por um, entre aspas, "fracasso", a desilusão com a

cena novaiorquina do ponto de vista de exibição dos seus trabalhos... se eu não meengano, ele não faz nenhuma exibição em Nova York, não é isso?

Além da Information, em 1970, antes de ir moraria, não.

Ele andou tendo alguns contatos, fez alguma coisa com o Brooklyn

que na época era muito importante para ele. O Brooklyn Museum começa a ser,

então, um lugar alternativo muito simpático, inclusive porque não estava em

Manhattan, mas tenho a impressão de que nada disso chegou a ser concretizado.

Estou ainda pesquisando, mas tenho a impressão de que não se concretizaram.

Concretiza-se o projeto na AIbright-Knox, queelefazcom você...

É, que era uma coisa pequena, uma noite, que, de certa maneira, tem

certa importância porque, no fundo, é o quase-nada que ele fez lá, numainstituição de prestígio, um museu.

26 Refiro-me a Richard Kostelanetz, cuja antologia Breakthrough fictioneers deve ter saído em1973.

106

Até porque, como já comentamos, há uma posição dele contra as exposições...

é crítico em relação a esse sentido formal...

É, exatamente, daí a coisa conceituai, o amor pela palavra...

Ele se refere muitas vezes criticamente ao conceitua!, digamos "à Ia Kosuth",

de transformar proposições linguísticas em uma forma da arte, como discussão

do conceito da arte... e vai recuperar o conceituai, muito mais próximo, ameu

ver, do Fluxus.

Não sei se ficou claro o que eu já disse: o conceituai do Hélio está

ligado ao comportamento, e menos a possíveis representações do real. Ele é o

primeiro artista brasileiro que conheço que chama atenção para o fato de que as

grandes questões da arte vão ser questões de comportamento. Trata-se sempre

duma questão de comportamento. Não interessa saber se ele é homossexual ouse não é homossexual, embora, obviamente, a condição homossexual fosse

muito importante para ele na medida em que era parte dele próprio, não é? Mas

refiro-me é a questão do comportamento per se. Você vê, nesse projeto Vigília,

se você pensa um minuto, eu até me assustei um pouco na época, porque ele

propunha o modo como eu deveria me comportar regressando ao Brasil. E isso.

É o conceituai nesse sentido. Não é um conceituai de divagações abstratas

sobre a arte... Não; é um conceituai ligado ao corpo, ao comportamento, à

atitude vital... à vivência, uma palavra muito forte na época que hoje ficou um

pouco desgastada. Tinha certa originalidade a palavra vivência. Ele era muitoligado a vivência... era um projeto de vida, algo bem nietzschiano, eram conceitos

de vida, não eram conceitos de arte. Acho que isso fica muito nítido.

Concordamos... não é uma ideia da arte como ideia...

De jeito nenhum. Ele odiava essas coisas, qualquer elucubração sobre

a essência da arte, sabe, essência, não sei o quê da pintura... nunca o ouvi

divagar sobre essas questões filosóficas. Talvez seja uma coisa perigosa o que

eu vou dizer, mas o conceituai do Hélio previa uma ação, pressupunha, istosim, uma teoria da ação. Eu nem me lembrava disso mais. Ele previa uma ação,

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não era um texto conceituai que te alijava do mundo concreto. Pelo contrário,

era um conceituai que queria te jogar com mais força no mundo concreto, do

dia a dia. Era muito importante para o Hélio essa questão do mundo concreto.

Agora, é também importante assinalar que ele seja muito sintonizado no EUAcom a arte pop...

Ele vai a Factory...

Foi, fez uma visita. Pelo menos, me falou duma visita. Se não me

engano em companhia do Quentin Fiore. O Quentin o levou, ele foi. Tão simplesquanto isso.

Em que época, assim, você lembra? Em 1971?

Por aí. Ele descreveu para mirn a Factory em detalhes. Ele tinha

sentimentos muito ambíguos em relação ao que estava sendo realizado ali, mas

também fascínio. Uma das coisas pelas quais o Hélio também tinha encanto, daí

eu ter usado antes a palavra exibicionismo, era o glittering,21 uma palavra que ele

usava muito. Glittering, na época, era uma palavra, a meu ver, muito Andy Warhol,

e algo que ele gostava de exibir. Hélio era uma pessoa de peculiaridades, por

exemplo, não sei se você sabe que ele guardava cocaína em um cubinho de prata,

e esse cubinho foi comprado na Tiffanny, situada na Quinta Avenida com a rua

57, custou-lhe uma fortuna, se não me engano trezentos dólares. Um cubinho

que, fechado, era uma espécie de dado, uma caixinha de pílulas, de prata legítima.

Silviano, uma questão de ordem mais geral: os anos 1970, tanto o novaiorquino,

o americano de modo geral e o brasileiro...

Olha, o primeiro dado é que são anos de muita experimentação, umapalavra-chave para entender essa época... Não vejo uma definição clara dos

anos 1970 diferente dos anos 1960. Tem 68, é claro, que é muito importante,

17 Mais tarde, aportuguesada por brilho ou realce.

108

mas não vejo uma divisão muito nítida, a não ser ao final dos anos 1970. A

experimentação seria um dado extremamente importante. E, inclusive, parte

dum processo seletivo do Hélio. Ele seleciona os chamados amigos intelectuais

por fazerem uma arte experimental. Isso é inegável, ele não teria absolutamente

nenhuma paciência com uma pessoa que aparecesse no seu apartamento e lhe

dissesse que escrevia uma poesia de tipo político mais tradicional, como Thiago

de Melo, poeta de grande sucesso internacional na época. Posso estar cometendo

aqui uma heresia, mas não me lembro de ele falar muito de Ferreira Gullar, por

exemplo. Não me lembro.

Ele fala com carinho do Ferreira Gullar do passado...

Ferreira Gullar havia deixado de ser experimental, é isso que estou

querendo salientar no processo seletivo daquela época. Quer dizer, não é que

ele não gostasse do Ferreira Gullar, não misturemos as coisas. E que o Gullar

não entra no seu universo daquele momento, sabe, ele não seleciona o FerreiraGullar como amigo. Ele pode até selecionar pessoas menos interessantes - o

futuro me disse que são menos interessantes, mas naquele momento elas

eram interessantes pelo caráter experimental do seu trabalho. A paixão queele tinha pelo Torquato, por exemplo. Imitava-o mesmo no modo de se vestir.

Para o Torquato tudo era experimento. A paixão que ele tem pelo cinema

chamado udigrúdi, o cinema do Julinho Bressane, do Ivan Cardoso. Eles eramseus amigos.

Do Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzería, ele, por exemplo, gostava

muito.

Gostava, mas não sei se eram amigos. Acho que não. Posso estar

equivocado. Do Ivan Cardoso ele era amigo íntimo e do Bressane também era

amigo íntimo e do Neville, como já falamos. Não o vi mencionar cineastas queeu acho fortíssimos como, por exemplo, Nelson Pereira do Santos ou Leon

Hirschman, ou outros cineastas do género. Não lembro. O processo seletivo

do Hélio é curioso. Funda-se em opções muito radicais. Ele não está querendoestar de bem com a cena. Veja você que o Nelson [Pereira dos Santos] na época

tinha um nome extraordinário pelos Estados Unidos, mas ele prefere deixar-se

10')

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ligar a Julinho Bressane, deixar-se ligar a Ivan Cardoso, que eram pessoas quenão tinham nome. Ou tinham, mas num circuito estreitíssimo, experimental,alternativo etc. Então, eu veria a experimentação como o primeiro dado. Osegundo dado, que, a meu ver, era muito importante para Hélio era a ousadiana vida. Não sei se a expressão é boa.

... a radícalidade no comportamento...

... a pessoa tinha que ser uma pessoa ousada. Não podia ser umapessoa medrosa. Embora ele fosse muito respeitador das, ponhamos, opçõesque não eram as suas, respeitava-as, mas respeitava-as exatamente porque aquelaopção era tão audaciosa quanto a que ele havia feito. Isso era outro dado tambémimportante: Hélio era agudo nesse tipo de conversa, na análise decomportamento. Sabe, ele era dessas pessoas que são capazes de descrever em

duas ou três frases o comportamento de uma pessoa e demonstrar que ela erauma moeda falsa, ou uma moeda verdadeira. Ele tinha isso assim de perceptivo,era impressionante. Era também um critério, a meu ver, tão importante quantoo do caráter experimental da obra. Outra coisa a acrescentar é que Hélio gostavade conversar, saber do que se passava... gostava muito das pessoas com quemele gostava de conversar. A "prima", como ele chamava a droga, possibilitavajustamente isso... Nunca ouvi esse negócio de... "to na minha, desencana", ouatitudes do género. Não; havia uma confraternização muito grande através dodiálogo.

Ainda no sentido mais geral dos anos 1970... a experimentação, é claro, e ocomportamento também, e a literatura?

Nada demais, a literatura está morta nesse período. Está morta. Não

tem grandes contribuições.

Mas tem a poesia marginal...

depois não. A coleção de poemas Salto, de que ele gostava, e esse outro também28

são livros nitidamente concretos. Mas eu diria que a literatura não exerce, então,um grande fascínio. Tinha surgido o boom íatino-americano do romance, comraízes em Barcelona. Hélio se interessa um pouco por Borges, mas não diria queera uma paixão, nem uma obsessão. Ele não se interessa de maneira nenhumapelos outros, Mário Vargas Llosa, Cortázar, Garcia Marquez, essa gente toda, elenão tem o mínimo interesse por eles... Na literatura norte-americana ele gostavade alguns poetas, em particular, poetas cujo nome tinha sido soprado pelo Haroldode Campos, como Louis Zufovsky, ou críticos que trabalhavam com a vanguarda,

como Richard Kostelanetz. Não diria que a literatura causava impacto sobre ele,a não ser a releitura da poesia de Rimbaud, em particular a de Illuminations.Retomando, não é por casualidade que o Hélio se apresente, então, como centrode convergência para muita gente, de matizes e interesses os mais variados. Amaioria dos artistas não tem onde se amparar, e de repente você tern a oportunidadede conhecer uma pessoa tão bem sintonizada quanto o Hélio, que fala muito bem

sobre tudo e todos. Esse acaba sendo outro lado do seu temperamento fascinante.Agora, em termos do que ele fazia em Nova York, devo dizer que a vida festiva,noturna, tinha muita importância, ia-se a clubes, especializados ou não,posteriormente chamados de discoteca. Com o correr do tempo, a questão do

clube vai se tornar inclusive mais demanding, e o Hélio passa a ter fascínio porclubes. Todos nós íamos ao Studio 54. Era parte da vida artística, como no iníciodo século XX a boémia abraçava nossos colegas...

Você fala de clubes, boates, discotecas...

E, não necessariamente gays. Eram boates onde se dançava não sei oquê e era um pouco um ambiente difuso... tudo isso o Hélio via como

performances, onde as pessoas iam fazer performance sem necessariamentebuscar um cunho artístico de autoria, autoral.

Aliás, esse é um tema também interessante, a ideia de autor, porque ele tendea uma coletivização do papel do autor...

Mas é a produção dita concreta que o impressiona. Para falar a verdade,o meu livro de poemas é muito engajado na poesia concreta, nesse período o fui,

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28 Referia-me à coleção de contos, O banquete, publicada no mesmo ano em que Salto, fins de1969.

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Tudo isso já está naquele negócio de espectador participante, não é? Etambém no interesse dele pelo Neville, que é um artista que nunca quis serautor, no sentido nouvelle vague do termo. A atitude era nítida tanto nelequanto na Lygia [Clark], a de dar por terminado o ciclo do autor. Foi bom vocême lembrar disso... Na primeira década do modernismo, Oswald de Andradeabriu a questão e teve muita importância... A apropriação, a arte do usucapião,a posse contra a propriedade etc. Lembro-me que escrevi sobre isso naqueleperíodo (cf. Oiticica, 1975). O dado importante do poema de Oswald de Andradeé que através da paródia você desconstrói a ideia do autor: o texto, a priorí, játem pelo menos dois autores, porque existe o texto primeiro e o texto segundo.Falávamos um pouco disso e víamos muito Nietzsche por aí: é um processo dedeslizamento do significado. O significado não se dá enquanto tal, mas numprocesso de deslizamento de um para o outro, ou os outros. E então, obviamente,a figura do autor único deixa de ser a figura principal na análise daquele textoou na própria confecção da obra. Hélio não lia muito os teóricos, nem os deliteratura, peio que me lembre. Começou a ler muito Nietzsche, a relê-lo nessaépoca. Filosofia gostava, mas teóricos de literatura para falar a verdade, nãolembro muito. Posso estar equivocado, aí teria que examinar a sua bibliotecaetc., mas dessa questão do autor, da autoria, ele gostava. Quer dizer, essa coisade você poder através de uma inscrição sua, através de uma intervenção subvertero sentido, transformar o sentido, e criar novos sentidos.

E o lado duchampiano também...

Era o lado duchampiano, que é o da paródia. Todo o fazer da paródia éretomado nessa época de maneira muito forte. No caso do Brasil e de Oswaldde Andrade, cite-se o Teatro Oficina. Nunca cheguei a falar diretamente aoHélio sobre uma questão paralela à da paródia - o fazer pelo pastiche. De regressoao Brasil, acabei escrevendo o romance Em liberdade,™ que era pastiche deGraciliano Ramos. Mas isso por causa de uma amizade particular minha naUniversidade de Nova York em Buffalo, que era o romancista John Barth.30

Nunca cheguei a falar com o Hélio sobre John Barth, ou sobre a peça Travesties,

de Tom Stoppard, que vi na Broadway. O espírito do Hélio não se interessavapelo pastiche, que já é pós-moderno, no sentido atual do termo, para o Héliodaquela época.

Ele se interessa mais pelo kitsch...

É, porque o pastiche pressupõe que exista um estilo individual, porquese não existisse um estilo individual, não existiria pastiche. Eu próprio passeia estar interessado pela nova questão. Mais interessado do que pela paródia,para falar a verdade. A paródia para mim já era algo teoricamente um poucovelho. Era os anos 1960 e o pastiche era o que estava sendo apontado como onovo, sabe, como pegar determinados textos canónicos e torná-los seus... imitá-los, em suma, mas obviamente fazendo transformações textuais, que seriammais sutis do que as transformações operadas pela paródia. A paródia trabalhacom efeitos de ironia, de riso, de descarga, de derisão... Não me lembro de oHélio falar em pastiche. John Barth, que conheci em 1970, e que gostava muitoda obra de Machado de Assis, de Borges, tem um primeiro grande livro decontos, de 1968, que inaugura sobre a pós-modernidade já nesse sentido queestou tomando que é a literatura do esgotamento.31 Quero dizer que houve umesgotamento na literatura. Tudo já tinha sido dito, tudo já tinha sido tratado.A partir desse dado inicial, era preciso continuar a escrever. A exaustão daliteratura era o tema de Borges e de Beckett, segundo Barth. E isso tinhaacontecido em 1967, um ano antes dos acontecimentos de maio de 1968. Emuito audaciosa a tese de Barth: a única coisa que o artista pode fazeratualmente é repetir. Daí surge a questão do pastiche. Estou simplificandomuito, mas grosso modo seria isso. Não vi o Hélio interessado por isso. Vocêlembrou bem, ele se interessava pela forma do kitsch, mas não do pastiche...sabe, refiro-me a um pastiche elegante, proustiano, não, por isso o Hélio nãose interessava... Às vezes, tenho a impressão de que, talvez, uma opção doHélio teria sido a de se manter nos anos 1960. Nas opções musicais, porexemplo... e talvez até normal que assim o fosse, pois a atitude estava fincadano momento do seu florescimento. Por outro lado, não julgo que seja apenas

2* Comecei a escrevê-lo em 1975, publiquei-o em 1981.

30 Autor de Lost in lhe Funhouse: Fiction for Print, Tape, Uve Voice, 1968.1 John Barth é também o autor de um ensaio de grande influência na época; "The literature of the

exhaustion", publicado na revista Atlantic Monthly, de 1967.

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uma opção, digamos, retrógrada. Tenho a impressão de que a atitude faz partede uma visão crítica do que estava acontecendo a contragosto do seu desejo. Éisso sem dúvida que o leva a ser radical na negação, por exemplo: ele estavamuito próximo, já aqui no Brasil, da revista Avalanche,32 estava por dentro daprodução de todos esses novos artistas, mas prefere uma Yoko Ono a um RobertSmithson, por exemplo... Mantinha suas referências... E sem explicar muitobem o porquê, prefere um John Cage, por exemplo, a uma música que surge nacrítica da questão do acaso. Prefere um Rolling Stones ou um Jimmy Hendrix aum Veivet Underground, por exemplo. Quando você vai vendo o trabalho delena época você não o percebe sintonizado com os novíssimos talentos da música.Ele gosta do Lou Reed, do Zappa, demais, mas o vejo citá-los... E bem informadosobre o que passa, mas sinto que insiste numa tendência à escolha dos anos

1960 em detrimento de alguma coisa de novo... ao mesmo tempo é pelo menoscurioso que esteja muito ligado e goste do Jack Smith, que também é anos1960... ou daquele pessoal que começou a fazer uma espécie de cinema sujo,kitsch, meio sujo, meio debochado...

Nessa sua opção pelos anos 1960, haveria uma negação dos anos 1970...

Não o via fazendo distinções muito grandes entre os anos 1960 e 70...não, o que ele tem raiva mesmo é da mercantilização da arte... isso é uma formaconstante de ódio. Pode ser que nos anos 1970 ele já estivesse vislumbrando amercantil ização da arte. Não há dúvida nenhuma, por exemplo, que toda a

Factory tem um lado de mercantilização da arte muito, muito violento. Porexemplo, o próprio Lou Reed, o Veivet Underground, essas coisas assim, é umunderground - perdoe o trocadilho - meio veivet... Disso o Hélio tinha ódio...a hora que ele percebia que a pessoa estava buscando uma maneira de se lançarno chamado mercado de arte, ele cortava... era nítido o gesto... e algumas dassuas preferências nacionais devem ser lidas, acho, nesse contexto. Ele até gostavado que as pessoas faziam, não os desprezava, mas é a atitude... a atitude dapessoa, que ele já detecta e detesta... ele era muito fino na análise da arte docomportamento. Ele detectava que o cara estava se aproximando de dois ou três

32 Publicada em Nova York, no início dos anos 1970, a revista Avalanche teve como editoresWilloughby Sharp e Liza Bear.

milionários... posso até te dar um nome, mas prefiro não... a hora em que eledetectava o movimento nessa pessoa... olha, era uma fúria só e passava adesrespeitar essa pessoa. Era muito engraçado isso nele... ele percebia qual era

a jogada do cara, e aí ele... O Hélio era mesmo muito gozado... eíe não falavapalavrão, não sei se você sabe. Era uma coisa esquisita: ele não falava palavrão,mas tinha assim um fascínio pelo debochado... quando queria falar um palavrão,

ele o dizia em inglês... shit, não sei o quê mais. Nenhum palavrão em português.Tinha um fascínio peto deboche, por essa coisa, assim, do sujo. Nessa época,havia até certos livros praticamente escritos com palavrão após palavrão... oromance Last exit to Brooklin, de Hubert Selby, por exemplo. Esse tipo de livroexercia sobre ele certo fascínio, mas acho que ele já percebia naquela escritauma coisa de mercado. Não há ali uma experimentação em linguagem. Já épornografia, a pornografia entrando por onde o corpo tinha sido tratado peloartista... e aí, obviamente, ele fica um tanto siderado. Não há dúvida de quehavia um forte componente voyeur na sua personalidade. Sern dúvida, Hélio -o voyant de Rimbaud - é também um grande voyeur. Ele fica siderado, fascinado,mas ao mesmo tempo um pouco repugnado porque está vendo que isso está

virando uma espécie de indústria.

Houve uma crítica, quase preconceiwosa, considerando esse período do Hélio

um período inativo, um período em que ele estaria...

... de jeito nenhum, a não ser que se acredite que a arte seja fazer

quadros. É um período muito ativo, mas não convencionai. Se houvesse umasó forma de fazer arte, eu diria que foi inativo, mas não há uma forma única...esses cadernos, por exemplo, acho e insisto muito quando converso com aspessoas, de que têm de ser publicados, estudados, analisados, interpretados.Quando eles forem publicados, se poderá ver que ele não estava de maneiranenhuma inativo. Era um artista ligado a tudo e fazendo circuitos e curtos-

circuitos extraordinários, colocando gente junto, estabelecendo novos diálogos,novas formas de diálogo etc., tudo... o que se chama de inativo desaparecediante da presença dele. Realmente, ele não fez nenhum metaesquema, não feznenhum quadro, que eu saiba, acho que nem Parangolé novo ele fez... Ah, fezsim... usando filó e uns tecidos mais plásticos. Deve haver muita foto do Romero,

até porque ele fazia muita foto do Romero.

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Depois das exposições internacionais sobre sua obra em Roterdã, Paris,Barcelona, Lisboa e Minneapolis, como se poderia pensar uma recepção doHélio? Começa-se a ter uma dimensão da sua obra, a partir dessas exposições,passível de não colocá-la num canto de uma arte brasileira, mas de uma arteligada ao movimento de arte... Você, por acaso, chegou a ver algumas dessasexposições internacionais?

Não, não vi. Tenho o catálogo só. Não houve coincidência. Acho umacoisa muito trágica no Brasil, que acontece com Machado de Assis, comSouzândrade e vai continuar acontecendo ad aeternum é que, infelizmente,para os artistas que optam por fazer um tipo de arte mais radical, o sucesso épóstumo no Brasil. Não tem muito o que dizer por esse caminho, porque oHélio não teria alcançado o sucesso total em vida. Não havia possibilidade deele ter sucesso na vida, ele não fazia nada por ter sucesso, ou seja, no sentidoque a gente está usando a palavra. Ele tinha enorme sucesso junto aos amigosque tinha. Todas essas pessoas que circulavam ao seu redor, junto com ele.Acho que isso, sim, é o melhor sinal de seu sucesso. Agora, esse sucesso,nesse sentido pecuniário, sei lá... O passaporte artístico dele nessa época eraaquele íivrinho do Guy Brett (l 968)... Era o único passaporte que trazia, porqueo catálogo da Signal é muito pobre. E havia ainda esse artigo da JaquelineBarnitz, que saiu na revista An Magazine, que é quase nada. Então, realmentedo ponto de vista, ponhamos, do que se chama sucesso, hoje, sobretudo nosanos 1990, não era um artista de sucesso. Sua aposta era de outro tipo. Querodizer: ele apostou no futuro.

... sem comunicar a ninguém eu ia tecer asminhas teias"

entrevista com Lygia Pape33

"Entrevista", segundo o Aurélio, tem, além do sentido mais restrito de encontro,conferência de duas pessoas, ode "entrefala", de "encontro marcado". Gostaria,então, que esta nossa "entrefala" fosse uma reflexão sobre o neoconcretismohoje, neste fínalzinho do século. Na nossa primeira entrevista, por ocasião daSala Especial Lygia Clark e Hélio Oiticica, em 1986,™ você dizia que as obras devocês já não se caracterizavam como neoconcretas quando o grupo se desfaz em

1963. Segundo você, os Bólides, de Hélio Oiticica, por exemplo, eram obrasneoconcretas, já os Parangolés não, da mesmo maneira como seus EspaçosImantados também não o eram. A minha pergunta seria então a seguinte: oque ou que traços seu trabalho hoje guarda do Neoconcretismo?

A história do grupo se chamar Neoconcreto foi resultado de umainsatisfação num determinado momento. No grupo todo, formado de paulistas,cariocas e até de alguns cearenses eventualmente, havia um rigor realmente,usava-se a matemática para estruturar o espaço da tela, não se usava o toqueda mão ou coisa subjetiva. Havia um certo controle, uma rigidez, que foicriando uma insatisfação em algumas pessoas. Por acaso, a maioria dessaspessoas morava no Rio, com exceção de Hércules Barsotti e Willis de Castro,de São Paulo, que acompanharam essa dissidência que passou a se chamarNeoconcreta. O que significa isso? Havia uma insatisfação naquele momento;estávamos começando a caminhar por um túnel escuro. Não queríamos maisaquele rigor e aquela clausura do construtivismo. Queríamos partir para algo

33 Entrevista feita no Rio de Janeiro, em agosto de 1999. Texto publicado originalmente nocatálogo LHL: Lygia Clark Hélio Oiticica Lygia Pape (1999).

34 Lygia Clark e Hélio Oiticica, Saia Especial do 9° Salão Nacional de Artes Plásticas, Funarte,1986 (Rio de Janeiro e São Paulo).

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