heleno de freitas - o craque maldito
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Reportagem do Jornal O Tempo finalista dos prêmios Esso e Embratel em 2006TRANSCRIPT
ESPORTESBELO HORIZONTE • SÁBADO • 18 DE FEVEREIRO DE 2006
PÁGINA A17O TEMPO
Amanhã, o último capítulo: Heleno
nas artes e a estátua imaginária
DERRADEIROS CONTATOSCOM A BOLA
MAURÍCIO MIRANDA/PEDRO BLANKENVIADOS ESPECIAIS
BARBACENA E SÃO JOÃO NEPO-MUCENO - Muitas histórias sãocontadas sobre a passagem de He-leno de Freitas por Barbacena eSão João Nepomuceno durante o
período de sua demência total naqueles anosda década de 50. Contam que o goleador a-tormentado organizou um campeonato inter-no de futebol na Casa de Saúde São Sebas-tião, em Barbacena, e dormia com bolas emsua cama. Mas a loucura de Heleno jamaisteve esse viés romântico. Sua demência eradestrutiva, doente e selvagem. A sífilis queacabava com os neurônios do craque o apri-sionava num mundo que só existia em seusdelírios.
Entre os dias 23 e 26 de janeiro, O TEM-PO percorreu Barbacena, onde Heleno mor-reu em 1959, e São João Nepomuceno, cida-de natal do ídolo botafoguense e novamenteseu lar no começo da demência fatal, con-versando com pessoas – poucas ainda estãovivas – que também foram personagens daderrocada do astro da estrela solitária. Logoque abandonou o América-RJ, em 1951, em
sua fatídica estréia no Maracanã, Heleno,aos 31 anos, se refugiou na casa do irmãoHeraldo. Para se distrair, ia à quadra doMangueira, time amador de Nepomuceno.Foi lá, com apenas 6 anos, em 1926, que oatacante deu os primeiros chutes.
Na quadra, existente até hoje em Nepo-muceno, Heleno tentava se acalmar. Era oano de 1952. Para relembrar seus dias deglória, ele brincava junto com crianças. Aliestava o superartilheiro. Nessas “peladas”,Heleno costuma chutar bolas de basquete deuma trave a outra. No gol, as crianças nadapodiam fazer para segurar os “torpedos”. Oradialista aposentado Adílson Cunha Onóri,66, presenciou uma dessas cenas. “Ele davauns coices naquelas bolas pesadas de bas-quete, algo horrível. Se pegasse de mal jeitonuma criança, matava. O chute era tão forteque a bola batia na parede e arrancava mas-sa”, recorda Onóri, um adolescente à época.
Depois que abandonou o América, Helenojamais jogou profissionalmente. Em Barba-cena, ele atuava eventualmente de dois timesmodestíssimos: o Independente, clube ama-dor e mantido pela Polícia Militar, e o Olim-pic, equipe semiprofissional. O último goleiroque Heleno teve na frente foi Danton, 74. Oex-arqueiro ainda tem nítida na memória a i-magem de Heleno, gordo, furibundo e louco.
Massacre alvinegroNas idas ao estádio Santa Teresa, do O-
limpic, Heleno tinha a vigilância de dois en-fermeiros ou dos médicos Hermont Nasci-mento e José Tollendal, responsáveis pelotratamento de Heleno na Casa de Saúde SãoSebastião e cartolas do clube barbacenense.“Certa vez, um beque nosso, o Borracha, fa-lou: Heleno, você está acabado. Ele pegou abola, driblou uns seis, tirou o goleiro duasvezes e quase furou a rede. Pôs o dedo na ca-
ra do zagueiro e devolveu: sou Heleno, filhoda mãe!”, diz Danton.
O Olimpic está de portas fechadas a-tualmente. O gramado agora é um verda-deiro pasto, sendo utilizado unicamente poratletas das categorias amadoras. Nas de-pendências do estádio, não há um registrosequer de que ali pisou Heleno de Freitas.O único registro histórico no Santa Teresaé sua placa de inauguração, de 14/10/1956,quando o Botafogo – de Garrincha, NíltonSantos e Didi – esteve na cidade para fazera inauguração.
Na oportunidade, Heleno acompanhou,das arquibancadas, o alvinegro enfiar cincogols no Olimpic. Xingou todos de pernas-de-pau e foi embora antes de a partida termi-nar, alegando que o maior atacante do mun-do não poderia ver um jogo tão ruim. Depois,foi visitado por cada um dos atletas na Casade Saúde São Sebastião. Se negou a receberBraguinha, um esforçado ponta-esquerdaque irritou Heleno com tantos cruzamentoserrados durante o período em que brilhoucom a estrela solitária no peito. “Ele conver-sou com todo mundo, menos o Braguinha.Esquisito”, afirma Tollendal.
A luta antimanicomial fechou pratica-mente todas as clínicas psiquiátricas deBarbacena. A Casa de Saúde São Sebas-tião encerrou suas atividades há poucomais de dez anos. Lá, onde eram tratadosdoentes mentais, funciona hoje um hotel,administrado desde 1997 por Sílvio PiresDias, 54. O empresário sempre soube queem um dos mais de cem quartos do prédioHeleno de Freitas havia vivido os últimosdias de sua vida. “Quero fazer um memo-rial para ele”, diz Dias.
A pedido de O TEMPO, o médico JoséTollendal retornou ao São Sebastião, quemantém praticamente inalterado o projetoarquitetônico, e revelou o aposento do go-leador atormentado. É o quarto 25. Apósessa notícia, Dias decidiu que irá fazer nolocal um pequeno museu para Heleno.“Não vou alugá-lo mais. Quem tiver cami-sa do Botafogo, história e qualquer coisadesse grande atacante do futebol brasilei-ro pode me mandar que vou colocar aqui”,declarou.
O quarto, de 4 m x 3 m, é quase o mes-
mo que Heleno morou. O piso de ta-co não foi modificado. No mesmo lu-gar que ficava a cama do botafo-guense, está uma outra. Na direitado aposento, foram feitas obras eo armário que guardava as revis-tas, roupas e fotos do jogador nãoexiste mais. “Era um quartomaior e só para ele. Está do jei-tinho da época do Heleno”, com-parou Tollendal.
O andar inferior do Hotel SãoSebastião mantém o mesmo vi-sual do início de sua construção,em 1948. “É um local que estágravada a história de várias vi-das. Em alguns lugares, chega-sea sentir algumas energias diferen-tes”, afirma Dias.
No ramo de hotelaria há maisde 20 anos, Dias espera que o me-morial consiga aumentar sua ta-xa de ocupação, atualmente nafaixa 40%, e até mesmo subir ovalor da diária, hoje de R$ 25.
Um dos poucos lugares frequentadospor Heleno de Freitas em Barbacena du-rante a sua doença se mantém como o úni-co em pleno funcionamento até os dias dehoje. Criada em 1943, a Tabacaria MinasGerais era ponto de parada obrigatória docraque em seus raros passeios com os en-fermeiros e médicos da Casa de Saúde SãoSebastião. Lá, Heleno se sentia à vontadepara alimentar o seu vício de adquirir osrequintados charutos cubanos. Mas o quedeveria ser uma compra qualquer virou u-ma atração cômica na cidade, pela loucurado atacante.
O médico José Theobaldo Tollendal, 83,lembra bem do seu ilustre paciente entran-do na tabacaria e fazendo o seu rotineiropedido. “Charutos havana (enchia o bolso),eu sou Heleno, e até logo”, dizia o goleadorapós encher o bolso de charutos e sair sempagar. Rindo, o médico fez questão de afir-mar que, ao final do mês, a conta era pagapelo irmão do atacante, Heraldo.
Embora mantenha a sua fachada origi-nal, a tabacaria não mais é dirigida peloseu fundador, José Francisco de Assis, bo-tafoguense mais conhecido como Iéié, já fa-lecido. Os filhos do comerciante, Sebastiãoe Luiz Pereira de Assis, 57, mantêm vivo onegócio. Sebastião não tem muitas lem-branças da passagem do craque, pois eramuito novo na época, mas reconhece a im-portância história de um dia ter passadopor sua loja um cliente tão ilustre. “É umorgulho, pois o Heleno encantou o mundointeiro com a arte do futebol.”
Mesmo enlouquecido e com sífilis devorando seusneurônios, Heleno de Freitas ainda jogou por Olimpic
e Independente, equipes amadoras de Barbacena
Na Casa de Saúde São Sebastião, Helenonunca tocou numa bola. Na clínica, havia umaquadra de cimento. De uma escada, o golea-dor via os companheiros correrem atrás dapelota e chamava todos de “perebas”. “Ouvitanta bobagem, como, por exemplo, que o He-leno dormia com bolas em sua cama na casade saúde, ou que ele tinha montadoum torneio na clínica. Com relação afutebol, a gente o levava, de vez emquando, para descontrair no Olimpic eno Independente”, destaca Tollendal.
O Independente, onde só haviaamadores, possuía um belo campo,com direito a arquibancada. Hoje, sóresta um pedaço do campo, que deulugar a uma escola mantida pelaPM. Nesse espaço que existe apenasna memória dos mais antigos, serviude palco para Heleno disputar ani-madas peladas entre doutores ebancários. Durante uma delas, odoente aprontou. “Eu tinha um Che-vrolet 1952, importado do Canadá, evi o Heleno saindo com ele quandofui bater um córner. Corri atrás como meu sócio e, sem resistir, ele en-tregou o carro dizendo que só ia darum chego em São João Nepomucenoe voltava”, afirmou o médico.
Por causa da debilidadefísica, não suportava mais doque 20 minutos. Esgotado,lhe restava reclamar. Pelomenos no gênio, seguiu Hele-no de Freitas.
Todos eram “perebas”
Atração databacaria
Quarto vai ser memorial
Campo do Independente, onde Helenode Freitas disputou “peladas”
O goleador atormentado também era levado para descontrair no estádio do Olimpic
Sílvio Pires Dias no quarto onde Heleno morreu, quevai virar memorial; a clínica foi transformada em hotel
Sebastião Luiz Pereira de Assis,herdeiro da tabacaria frequentada pelo ex-craque do Botafogo, em Barbacena
FOTOS CHARLES SILVA DUARTE