o príncipe maldito (pdf)(rev)

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Mary del priore

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  • Contra Capa

    Neste livro, os ltimos dias do imprio brasileiro e o amanhecer incerto da repblica

    desfilam na tela grande: h corpos nus, sales empoeirados, militares vacilantes que conspiram,

    jornalistas inflamados, nobres que arrotam, princesas que menstruam. D quase para sentir o

    cheiro do ralo enquanto o elenco de carne e osso vai construindo uma histria viva, voltil, vibrante.

    A nossa histria (...).

    J faz algum tempo que a histria do Brasil vem sendo libertada dos grilhes que a

    aprisionaram aos bancos escolares. Mas o alcance deste O Prncipe Maldito parece ainda maior,

    pois o livro subverte, virtualmente destroa, a frase arrogante de Norman Mailer de acordo com a

    qual a histria escrita por maus romancistas. Aqui est, de corpo inteiro e alma aberta, um

    romance de no-fico: a vida sem obras de Pedro Augusto de Saxe e Coburgo o prncipe que

    sonhou ser D. Pedro III, mas virou sapo quando o imprio das circunstncias cedeu lugar

    repblica dos fatos.

    Eduardo Bueno

    Jornalista e escritor

    Este livro traa um rico painel das ltimas dcadas do sculo XIX, no Brasil. A

    escritora e historiadora Mary Del Priore expe a intimidade da famlia imperial

    brasileira consumida por intrigas, traies e uma profunda melancolia , ao nos

    revelar um personagem fascinante e trgico.

    Orelhas do livro

    Era uma vez, h muito tempo, em um reino sem encanto, um palcio

    recendendo a mofo por onde circulavam um conde odiado, uma princesa carola,

    criados mudos, conspiradores baratos e, claro, um jovem prncipe louco todos

    tramando sob as barbas de um imperador que, embora no vestisse roupas novas, ia

    ficando cada vez mais desnudo aos olhos da corte.

    Sim, voc est diante de um conto de fadas s que s avessas. Primeiro,

    porque no aumenta nem um ponto conta como as coisas foram. Depois,

    porque se passa em um mundo real. Real at demais: comezinho, limitado, medocre

    e, ainda assim, ou por isso mesmo, espantosamente prximo. Se voc, de incio,

  • ficar com a impresso de que a trama se desenrola no reino de To, To Distante,

    s porque a histria do Brasil, embora to perto, ainda se mantm to longe de ns.

    Mas eis que ento, como num passe de mgica, surge a obra de Mary Del

    Priore e tudo aquilo que parecia adormecido volta vida com um sopro. Neste O

    Prncipe Maldito, os ltimos dias do imprio brasileiro e o amanhecer incerto da

    repblica desfilam na tela grande: h corpos nus, sales empoeirados, militares

    vacilantes que conspiram, jornalistas inflamados, nobres que arrotam, princesas que

    menstruam. D quase para sentir o cheiro do ralo enquanto o elenco de carne e osso

    vai construindo uma histria viva, voltil, vibrante. A nossa histria.

    Se a torre de marfim do academicismo no for lenda, Mary Del Priore

    funciona ento como Rapunzel, jogando no as tranas, mas as tramas de uma

    narrativa vivaz, que varre para longe aquele amontoado inspido de datas vazias e

    nomes solenes e arranca as cortinas do palco para nos fazer entender como que

    este pas deu no que deu...

    J faz algum tempo que a histria do Brasil vem sendo libertada dos grilhes

    que a aprisionaram aos bancos escolares. Mas o alcance deste O Prncipe Maldito

    parece ainda maior, pois o livro subverte, virtualmente destroa, a frase arrogante de

    Norman Mailer de acordo com a qual a histria escrita por maus romancistas.

    Aqui est, de corpo inteiro e alma aberta, um romance de no-fico: a vida sem

    obras de Pedro Augusto de Saxe e Coburgo o prncipe que sonhou ser D. Pedro

    III, mas virou sapo quando o imprio das circunstncias cedeu lugar repblica dos

    fatos.

    Se Mary Del Priore e a leva de historiadores da qual ela faz parte continuarem

    escrevendo tanto e to bem, talvez algum dia o Brasil deixe de ser um pas de faz-

    de-conta e ns sejamos felizes para sempre.

    Eduardo Bueno

  • Mary Del Priore, autora de 21 livros sobre

    Histria do Brasil, entre eles Histria das Mulheres no Brasil e Histria da Vida Privada,

    foi duas vezes vencedora do Prmio Casa Grande & Senzala e do Prmio Jabuti,

    para obra de relevo em Cincias Sociais.

    Historiadora com ps-doutorado na Frana, scia honorria do Instituto

    Histrico e Geogrfico Brasileiro e colabora com revistas nacionais e internacionais,

    alm de ser cronista do jornal O Estado de S.Paulo. Lecionou nos departamentos de

    Histria da USP e da PUC/RJ e, atualmente, d aulas de ps-graduao.

    hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee

  • Era noite. O mar parecia um caldo em ebulio. Fazia calor. Mais calor ainda

    dentro da pequena cabine do velho navio. Na parte inferior do beliche, o

    jovem tentava dormir. Mas no dormia. Delirava. Cuspia palavras incoerentes.

    Sob as plpebras, os globos oculares rolavam como bolas de gude. Como

    bolas de gude, os olhos eram azuis. Um fio de saliva grossa se misturava s

    lgrimas dando ao fino travesseiro um cheiro azedo. Ele soluava, o belo

    rosto de boneca enfiado na fronha. Coberto pelo pesado costume escuro, o

    corpo se encolhia sobre o colcho. [pg. 01]

    Na cabine estreita, tudo era suor. A pequena janela apenas deixava passar

    o ar aquecido por lampies de querosene. O beliche em madeira acoplava uma

    escarradeira em loua para enjos. Ela fedia. No cubculo no havia lavatrio

    em pedra mrmore, cama de vinhtico Lus XV, paredes forradas, retrete ou

    espelho, como nas viagens anteriores no Gironde. Nada. O Parnaba, um

    cruzador, fabricado em 1874, com 73,2 metros de comprimento, no oferecia

    acomodaes de luxo. No tivera passageiros de primeira classe em trajes de

    viagem com bolsas a tiracolo, binculos e bons de seda debruados pelas

    amuradas dando adeus aos que ficavam no cais do Arsenal. Abrigava, sim,

    [pg. 02] seis canhes e duas metralhadoras: Ser forte! Voltar! Atacar!

    Canhonear a capital! Vencer!, era o que comandava entre lamentos o jovem

    enfurnado na cama.

    Em meio s lgrimas e marcado por contraes doentias, o rosto do

    rapaz era o espelho de uma alma atormentada. J antes de subir a bordo, ele

    ficara agitado, o corpo sacudido por tremores. O diagnstico do mdico do

    imperador pesava como uma pedra: hiperexcitao nervosa e escapamento do juzo.

    Mal se lembrava de que tentara estrangular o capito Pestana, diante do olhar

    horrorizado da av, a imperatriz do Brasil. Foi impedido pelo baro de

    Muritiba. O jovem no recebeu injees de [pg. 03] arsnico ou cafena ento

    usados normalmente como tranqilizantes. O vidro de valeriana fizera efeito.

  • Trancado no camarote, pouco a pouco, acalmou. Lgrimas e soluos pareciam

    alivi-lo.

    E uma imagem de mulher nasceu do seu choro. Pela porta estreita ele

    ouvia o farfalhar das rendas contra a seda pesada do vestido. Ela vinha beija-

    lo, desejando-lhe boa-noite. Sua figura enternecida se debruava sobre o leito

    trazendo certo conforto ao desespero do jovem. Ele dormia ou acordara? O

    rosto redondo e risonho, emoldurado por cabelos louros repartidos e presos

    na nuca, parecia fazer uma concesso a tanta agitao e tristeza. Me beije,

    [pg. 04] pedia baixinho. O queixo um tanto comprido e quadrado, as

    bochechas coradas, as sobrancelhas acompanhando os olhos claros e fundos,

    um perfume intraduzvel definiam a figura que se aconchegava diante dele. Os

    braos rolios da bela mulher pareciam se estender para aninh-lo. Um beijo

    de paz podia ser o remdio para acalm-lo. Mas o sossego no vinha. A

    escurido da cabine no lhe permitia adivinhar as horas.

    A presena da mulher, contudo, convidava sua alma a fluir para fora do

    corpo. Deslocando-se para outras paragens, ele agora sobrevoava uma plancie

    tambm escura. No porque fazia noite, mas porque a floresta de abetos

    vermelhos [pg. 05] e pinheiros fechava sua carranca em torno de um grande

    castelo. Um vento despojara as rvores de sua cobertura de neve e elas se

    dobravam, negras e sinistras, na luz que definhava. Castelo? No. Era mais

    uma fortaleza. Trs torres coroadas por telhados de ardsia se elevavam na

    monumental muralha. Um arremedo de jardim manchava de verde o centro

    do ptio. Passava-se porta de entrada, primeiro por uma ponte; depois, por

    um prtico renascentista. Dentro da construo principal, ele procurava a

    mulher, atordoado, entre as inmeras imagens que se sucediam nos estuques

    da Sala de Caa. Os tetos profusamente pintados, a marqueteria das paredes,

    os inmeros quadros [pg. 06] e vitrines com toda sorte de objetos preciosos

    confundiam com suas formas e cores seu senso de orientao. Ele a via

    atravessar, silenciosa e rpida, a Grande Sala de Banquetes: o rostinho infantil

  • tinha a sua mesma idade. A luz do inverno filtrava atravs de grandes janelas

    com vitrais opacos, confundindo seus movimentos. Agora, ela corria. Em seu

    delrio, ele ia atrs. Do lado de fora do castelo as rvores se contraam no frio.

    Ele tambm se contraa no beliche ftido: de medo. De raiva. Maman!

    Maman!, gemia, enquanto Leopoldina Teresa Francisca Carolina Micaela

    Gabriela Rafaela Gonzaga se dissolvia nos corredores de uma das maiores

    fortalezas [pg. 07] da ustria. Prostrao nesta madrugada do dia 17 de

    novembro de 1889. O jovem no beliche era Pedro de Alcntara Augusto Luis

    Maria Miguel Rafael Gonzaga de Bragana Saxe e Coburgo, seu filho

    primognito. E ele nunca estivera to perto, e ao mesmo tempo to longe, de

    se tornar o monarca do III Reinado no Brasil. [pg. 08]

  • O prncipe

    maldito

  • traio e loucura na famlia imperial

    O prncipe

    Mary Del Priore

    maldito

  • Captulo I

    O menino que queria ser rei

    O Po de Acar velava sobre a entrada da baa, quando o Boyne cruzou a chegada.

    Eram sete horas da manh do dia 1 de abril de 1872. O Rio de Janeiro era, ainda,

    uma cidade onde africanos fugidos eram caados nas ruas. Onde a febre amarela e a

    varola eram a maior causa de mortes na populao, enquanto poderosos tomavam

    o vapor e atravessavam o Atlntico para tratar de seus incmodos

    hemorroidrios. Onde se tomava leite ao p da vaca e os perus andavam em

    bandos pelas ruas, tangidos pelo vendedor.

    A famlia imperial que chegava da Europa foi recebida com entusiasmo. No

    convs, ao lado do av, o prncipe Pedro Augusto ouvia o distante clamor vindo das

    praias. Dos vapores, escaleres e canoas que aguardavam no canal partiam saudaes.

    Em torno do Arsenal da Marinha, milhares de cabeas, lenos, sombrinhas, chapus

    pareciam lhe acenar. Eram vivas de amor e regozijo, diriam os jornais. Da costa,

    chegava o som de metais e tambores das bandas navais. Das janelas, choviam flores.

    O menino bebia a cena. Era assim, ser imperador? O povo aguardava a famlia

    imperial comprimindo-se ao longo da rua Primeiro de Maro. Acenos, gritos de

    boas-vindas, e os membros do ministrio e os altos funcionrios em fila para o

    beija-mo informal. Tudo era alegria no rosto de D. Pedro II e D. Teresa Cristina.

    Ele mesmo tambm se sentia feliz. Feliz, talvez, pela primeira vez desde que a me

    morrera.

    O av abraava o neto com ternura. Afinal, era o seu menino. A sua cara.

    Durante o primeiro ano em que o pequeno estivera na Europa, como se queixara,

    com saudades. Pedro era o neto to bonitinho, o neto que alegrava, o chibante

    netinho, o galante que promete ser muito inteligente. Agora em suas mos, a

    criana de 6 anos, fluente em [pg. 13] alemo, estava prestes a ser modelada. Caso o

    organismo de Isabel no operasse um milagre, Pedrinho substituiria Pedro. Seria

    Pedro III. Melhor prepar-lo.

    De Paris, seu pai, Luis Augusto Maria Eudes de Saxe e Coburgo, conhecido

    como Gusty, escrevia para a querida mame, ou seja, a av Teresa Cristina: Tive

  • medo que os pequenos sofressem em funo do calor do Rio, mas tambm

    verdade que eles devem se acostumar ao calor. Os outros dois pequenos vo muito

    bem, se desenvolvendo de maneira satisfatria. Os estudos de Jos um pouco mais

    adiantados do que pensei. Assinava Seu obediente filho. As cartas eram curtas,

    quase bilhetes. Contudo, ele se preocupava com a sorte dos dois filhos imigrados.

    Mas o que era ser pai na segunda metade do sculo XIX? Duas caractersticas se

    somavam. Na literatura, eram figuras autoritrias. A severidade era a imagem mais

    comum associada ao genitor.

    Mesmo na simplicidade domstica, os privilgios do pai todo-poderoso no

    eram jamais abolidos. S que o sculo XIX era, tambm, o sculo da

    supervalorizao da afetividade. Ocorria uma espcie de proclamao da

    paternidade como forma de cidadania ao mesmo tempo em que se via a heroizao

    dos papis paternos: Meu pai, meu heri. So Jos entrava no rol do protetor da

    famlia. D. Pedro II no deu o exemplo, escolhendo os professores e gerenciando a

    formao moral de suas meninas? No disse vrias vezes que considerava a leitura,

    junto com a educao das filhas, o maior prazer de sua vida? A ltima etapa desta

    caminhada era a sucesso paterna nos negcios. Ou numa Coroa.

    Era vitoriana, poca, portanto, de valorizao da paternidade. Mas, muito mais

    forte, de valorizao da masculinidade. Masculinidade que era o oposto da

    feminilidade da me. Sem o culto mulher, que era central para a cultura vitoriana, a

    virilidade ficava incompleta. A masculinidade era celebrada com exibicionismo.

    Alguns crticos, entre eles Goethe, se queixavam da presena de efeminados nos

    meios cultivados. Desde cedo, os meninos eram treinados para brigar, boxear, lutar,

    duelar e caar. A [pg. 14] luta pela sobrevivncia este era o sculo de Darwin

    justificava que o mundo animal servisse de exemplo para prticas que se repetiam no

    exerccio burgus da acumulao. Ou no aristocrtico, de acumulao de trofus.

    Gusty passava o tempo atrs de ursos, raposas e lebres. A frouxido de gestos e de

    atos era impensvel. Da a ginstica. A me, princesa Leopoldina, combateu desde

    cedo as pernas de manteiga, o andar de papagaio e a barriga de Pedro Augusto.

    Exerccios, muitos. At os mais violentos. Nas escolas alems e austracas, o duelo

    com facas e espadas era emblema de civilizao. As noes de honra antes

    morto do que desonrado enchiam as cabeas e ditavam a moda.

  • As irmandades nas universidades anglo-saxnicas eram a regra. Bem

    organizada, a camaradagem masculina estabelecia laos com conseqncias no

    mundo poltico e social. Um rosto marcado por cicatrizes de lutas era reconhecido

    como um rosto viril. Nesta poca, Sigmund Freud inaugurou a descoberta do

    inconsciente, debruado sobre a dupla sexo e agresso, enquanto a literatura

    romntica contava a saga de heris msculos e bravos. Foi este misto de virilidade e

    afetividade que Pedro Augusto deixou para trs ao deixar seu pai. Foi deste ninho de

    autoridade e calor que ele alou vo, abandonando o palcio de colunatas brancas e

    os invernos que cobriam os parques vienenses de neve. Por seu lado, Gusty aceitou

    que os avs viessem buscar os meninos mais velhos. Afinal, com a esterilidade de

    Isabel, era preciso preparar o futuro Pedro III para assumir o trono brasileiro. Um

    Saxe e Coburgo nas Amricas, no imenso imprio de caf e acar, consolidava um

    sonho familiar: o de Leopoldo I da Blgica, de Maximiliano do Mxico, de seu pai e

    o seu prprio.

    Depois do desembarque, a boca escura da capela imperial engoliu os mais

    velhos. Mas Augustinho tinha dor de barriga e por isso os dois irmos foram

    levados, em carro aberto, para So Cristvo. Pedro Augusto ainda teve tempo de se

    impressionar com os drages que sustentavam o primeiro arco, com as figuras que

    representavam o comrcio, a indstria, a agricultura e as artes, com os coloridos

    emblemas martimos. S no [pg. 15] conseguiu ler as inscries Gratido e

    Trabalho, na decorao oferecida pelo banco Mau. Os meninos tambm no

    viram os coretos enfeitados pelas luminrias a gs que, noite, se acenderam. E

    acenderam a cidade.

    A convite do imperador, o reitor do Externato D. Pedro II deixara as suas

    funes para tornar-se preceptor de Suas Altezas. Ele era o Joaquim Pacheco da

    Silva, futuro baro de Pacheco: mdico sisudo e educado. Ficaria muito grato se o

    Sr. Pacheco tomasse a seu cargo a educao de meus netos, Pedro Augusto e

    Augusto, ainda na infncia e rfos de me. [...] Bem sei os meninos, muito

    travessos, esto atrasados e falam pessimamente o portugus, apenas conhecem a

    lngua alem, lhe dizia o av.

    Os primeiros anos passaram rpido. Aos 9 anos incompletos, Pedro Augusto

    foi matriculado na escola. Nas fotos com uniforme, exibia um lindo rosto de anjo.

  • Anjo de olhar triste. Na imagem no se viam as cicatrizes internas. O colgio era o

    Pedro II. Mantido pelo imperador e inspirado nos liceus franceses, era o padro de

    ensino secundrio e a nica instituio que possibilitava o ingresso nos cursos

    superiores. Seus exames de admisso, to disputados, eram publicados nos jornais.

    O aluno que completasse o curso recebia o ttulo de Bacharel em Cincias e Letras

    baga do carvalho e ramo de loureiro, a Bacca et laurea e tinha acesso direto s

    Academias. D. Pedro, que costumava se referir a ele como seu colgio, escolhia os

    professores, sabatinava os alunos, assistia s provas e conferia as mdias.

    No incio orfanato, depois seminrio, o colgio era a glria do ensino na

    Corte. Cpia de Eton, na Inglaterra, do Louis-Le-Grand, em Paris, as listas de

    chamadas atestavam a elite que por ali passava. A fachada do externato dava sobre a

    rua Larga e um pouco da paralela, a Camerino. Por trs, salas e corredores se

    espichavam em velhas construes do sculo XVIII. No interior do prdio, se ouvia

    o repique dos sinos da igreja de So Joaquim, anunciando a visita do imperador

    escola. Durante [pg. 16] o recreio, os alunos acompanhavam as acrobacias do velho

    sineiro, um africano de nome Pirro, que caava corujas na torre.

    J o internato, onde meteram o pequeno prncipe, ficava no Engenho Velho,

    na Chcara da Mata: um sobrado com sete palmeiras na frente, prximo ao Largo

    da Segunda-feira. Pintado em azul-anil com alegorias na platibanda e estuques

    imitando bronze, exibia um letreiro colossal: INTERNATO DO COLGIO

    PEDRO II. A entrada central era lavrada em cantaria em meio s nove portas,

    encimadas por nove janelas. O vestbulo branco e cirrgico recebia pais e filhos. As

    aulas comeavam em meados de fevereiro. A entrada era solenizada. Neste dia, se

    enfeitava a palmatria, posta em lugar de destaque. Alm das salas de aula, a

    biblioteca impressionava: mapas, estampas de histria santa, colees botnicas e

    zoolgicas pendiam das paredes. Na sala comum de estudos, grandes armrios de

    portas numeradas permitiam ao aluno guardar cadernos, livros e pertences pessoais.

    Mas, tambm, folhas rendadas, caveiras de passarinho, ovos vazados, cobras em

    cachaa. O pequeno prncipe gostava de pedras. Logo viu onde ia esconder as suas.

    A bagagem era pouca. Toda a roupa e as botinas eram marcadas com o

    mesmo nmero. Guardadas na rouparia, eram arrumadas num escaninho com o dito

    nmero. As camas de ferro, tambm numeradas, traziam plaquinhas identificando

  • os ocupantes. Nos quartos, baldes de mijo ficavam dentro de mveis especiais,

    perto das portas e janelas. O cheiro de creolina mal disfarava o de urina. O

    refeitrio se compunha de quatro imensas mesas de mrmore volta das quais se

    sentavam cinqenta alunos.

    Durante as refeies, um deles lia as cartas que escrevera para a famlia,

    maneira de entreter os demais. Guardar o po da merenda vespertina era maneira de

    ter rao extra, frente ao magro caf-da-manh. Uma sineta estridente marcava a

    passagem do tempo. Uniformes dirios eram fardas verdes, trazendo o PII do

    monarca. As provas exigiam casaca, gravata branca, punhos rendados e luvas de

    pelica. Atrs das mesas cobertas [pg. 17] de veludo bordado a ouro, nos exames de

    fim de ano, se enfileiravam as tnicas pretas do reitor e dos examinadores. Para o

    menino Pedro Augusto, a entrada no colgio foi a passagem para a vida comunitria.

    Dormir junto, comer junto, brincar junto, estudar junto. Chorar... s!

    Ele teria que estudar. E muito. A reprovao nos exames do Pedro II era

    sinnimo de luto familiar. De aluno pestiferado! Sem frias, encerrava-se o menino

    em casa, portas e janelas fechadas. Um chefe da disciplina era o senhor absoluto dos

    destinos: controlava os castigos e as sadas: Comunico-vos que o aluno tal

    perturbou o estudo da noite com cacholetas e besouradas. Sbado, o moleque no

    iria para casa. A cafua priso escolar fora, contudo, suspensa pelo Dr.

    Pacheco. No recreio, cuidados. Nos primeiros dias no faltava o bolo humano!

    Bolo humano!. O novato era enterrado sobre uma montanha de ndegas. Os

    veteranos vinham correndo e se jogavam sobre ele. A chulipa era o cascudo que se

    tinha que passar adiante. Os trotes eram obrigatrios nas semanas iniciais, e,

    esquecido de que era prncipe, o menino no escapou do ritual.

    Entre as aulas, havia um recreio de dez minutos. Servia para correr s privadas,

    para o cigarrinho escondido, para matar a sede nos bebedouros. Em sala de aula, os

    ritos eram de praxe: o arrasta-p demonstrava reao coletiva de insatisfao com o

    mestre ou de riso de um colega. O ensino era fraco. Os alunos bocejavam,

    bestavam, sonolentos. Os professores, com honrosas excees, eram funcionrios

    mal pagos, geralmente pertencendo a um nvel social e de instruo inferior aos

    prprios alunos. Tinham, portanto, que se bater contra eles. Revidavam com

    castigos terrveis as piadas, as caricaturas nas latrinas e a gozao que fermentavam

  • entre os jovens. E no faltavam crticas de alunos a Benjamim Constant que

    lecionou na casa por sab-lo protegido de D. Pedro, mas capaz de maldizer a

    monarquia na frente da garotada.

    Havia amores platnicos. Alguns alunos veteranos sabiam ser paternais,

    fraternais, mesmo maternais. As obsesses erticas, tpicas da idade, [pg. 18] eram

    saciadas em folhetos que circulavam das mos de funcionrios para as dos alunos,

    mediante alguma propina. Saciavam-se melhor ainda nas colees de livros de arte.

    Pinturas e esculturas prolongavam a esfera do que era possvel ver ou imaginar:

    sobretudo, os quadris e seios marmreos. As cabines ticas, nos feriados e frias,

    alimentavam a viso do corpo feminino nu. As feiras populares exibiam

    reprodues anatmicas em cera. As peas erticas encontradas em Pompia

    circulavam em fotografias, instruindo sobre a matria arqueolgica e,

    principalmente, sobre sexo. Completava-se a formao sexual pela contemplao de

    todas as Vnus possveis, em mrmore ou papel. Para se excitar, havia os cabelos

    femininos, to longos que eram capazes de vestir peitos e quadris, verdadeiro fetiche

    vendido a metro na rua do Ouvidor: cabelos de meninas mortas, de meninas virgens

    com os quais os garotos sonhavam. E a lingerie? Seu perfume ou a simples exibio

    de uma pea tinha uma incrvel carga ertica.

    Esta foi a poca dos ladres de lenos femininos, cujo perfume embalava o

    sono dos rapazes adolescentes e adultos. J o leno masculino era o companheiro

    dos punheteiros. Quase nada se dizia, mas os professores estavam alerta para o que

    consideravam uma praga. A masturbao e as perdas seminais influam no

    rendimento escolar. Os meninos emagreciam. Cobriam-se de espinhas. O vcio

    solitrio degenerava em diarrias brabas. Inspecionava-se o dormitrio. Investia-se

    na prtica da ginstica. Era o erotismo romntico ensinado desde a puberdade. Pois

    a meninice dos netos do imperador transcorreu sem maiores problemas entre o

    colgio e a casa do av.

    Instalados no velho Pao, os dois irmos descobriam a casa onde as princesas

    Isabel e Leopoldina passaram a infncia. Nas noites mergulhadas no silncio do

    grande palcio, Pedro Augusto se revirava na cama. Ao lado, Augustinho ressonava,

    exausto, mas ele tinha dificuldade para dormir. Era um suplcio esperar a me que

    no vinha mais para lhe dar o beijo noturno. Para distra-lo da dor, os avs tinham

  • comprado uma lanterna mgica. O aparelho era colocado sobre a luminria a gs, e,

    como [pg. 19] por encanto, as paredes cansadas se revestiam de pequenas aparies

    sobrenaturais, de luzes e cores em forma de arco-ris ou estrelas. Lutando contra o

    cansao, o menino retroagia no tempo.

    Algum lhe contara sobre o bigode espesso, o queixo msculo, o cabelo curto,

    a gravata fina e as mos hbeis. Parecia um homem. Mas era Josefina Durocher,

    parteira e mulher-macho, a pux-lo entre as coxas da me. Era francesa, atendia em

    casa e tinha toda a confiana da famlia imperial. Foi a primeira a demonstrar que

    no se provava virgindade em mulher enfiando um ovo vagina adentro. Era a tarde

    do 19 de maro do ano de 1866. Os canhes das fortalezas e navios no porto da

    Mui Herica e Leal Cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro anunciaram seu nas-

    cimento. Era o primeiro neto de um av de 40 anos que, na juventude, enterrara

    dois herdeiros.

    A luz na palmatria de nquel presa na parede avivou outra imagem: a de um

    crio esculpido e ornado de ouro com quatro peas de dez mil-ris cravadas em

    forma de cruz. Ele iluminava um aparador coberto de veludo verde, sobre o qual

    esticaram a veste alva que o cobriria. J tinha quase um ms quando atravessou o

    cais do Carmo que ligava o pao capela imperial. A penugem dourada da cabea

    sobressaa entre os membros do cortejo solene, gente morena e vestida de escuro.

    Com os pais, igualmente louros, mais pareciam uma trinca de cisnes a atravessar um

    charco de rs pardacentas.

    A fila compenetrada de membros da famlia imperial caminhava sob o badalo

    dos sinos e os vivas do povo. A gente se apinhava nas janelas do hotel Pharoux ou

    nas sacadas que se enfileiravam do largo da Assemblia rua do Cotovelo, da So

    Jos ao beco da Fidalga. Belo como um cromo, ia viver o cerimonial minucioso

    prescrito pelas normas das cortes. Seus padrinhos: o av, Pedro II, e a rainha dos

    franceses, Maria Amlia de Bourbon-Npoles, representada pela imperatriz Teresa

    Cristina. A lentido nas comunicaes os cabos telegrficos submarinos seriam

    instalados somente em 1874 impedia, todavia, de saber que a dinda morrera 16

    dias antes da festa. [pg. 20]

    Emocionados, todos cruzaram a portada em lioz, vinda de Mafra, encimada

    por um medalho, com a Virgem do Carmelo. Emocionados, sim. Afinal, a falta de

  • herdeiros vares era um perigo para a Coroa brasileira. A jovem me, Leopoldina,

    perdera dois irmos: Afonso, falecido aos 2 anos, e Pedro, antes de completar um.

    Sua irm, Isabel, fora doente na infncia e, por duas vezes, esteve em perigo de

    morte.

    Sob a abbada dourada da S, acariciando a nuca leitosa da mulher, com a

    criana no colo, Gusty no podia deixar de pensar que era este o quinto imprio no

    qual pisavam os Saxe e Coburgo. De um pequeno ducado, ou melhor, de dois

    pequenos ducados geminados que compreendiam, em 1867, no mais do que

    168.851 almas, contando somente duas cidades, Gotha e Coburgo, saram, no correr

    do sculo, vrias casas reais ou prncipes para dinastias em crise de varonia. De fato,

    seu pai, Augusto Carlos, duque de Saxe e Coburgo, era aparentado com diversas

    cabeas coroadas; primo-irmo do prncipe consorte da Inglaterra, o famoso

    Alberto, casado com Vitria; primo-irmo do rei honorrio de Portugal, D.

    Fernando; primo do rei Ferdinando, dos blgaros; e, finalmente, sobrinho do rei

    Leopoldo, dos belgas, um dos maiores articula-dores polticos do sculo. Seu sangue

    j pulsava em cinco casas reinantes. Por pouco no fora coroado, aos 19 anos, rei da

    Grcia. Se no fosse to jovem e catlico, as ilhas do mar Jnico no teriam ido

    parar nas mos de um dinamarqus: o duque Cristiano de Sonderburg-Glcksburg.

    Por que no encontraria um trono, para si e para os seus, na longnqua Amrica

    tropical, o Brasil do fumo e do caf?

    Contida ao lado da princesa-me, a mana Isabel sofria. Ah! A envidia. A

    felicidade da irm lhe fazia mal como um espinho enterrado no corao. Trazia

    irritao, vergonha, pois a alegria de Leopoldina era, para ela, um copo de veneno.

    O prazer de uma tornava-se ferida na outra. Inveja no olhar carregado de amargura.

    Olho gordo, olho grande sobre a pequena criatura causadora deste conflito ntimo.

    Frustrao quanto a [pg. 21] este objeto no possudo: um filho! Casara primeiro.

    Seria estril? Maldio. Quantas vezes no fora a Caxambu e Lambari tomar banhos

    de guas milagrosas. O bid de loua inglesa transbordando, e as ablues repetidas,

    na tentativa de tornar o solo fecundo.

    Frialdade ou frigidez era o nome que davam a esta doena. Com quantos

    remdios no tentara solucionar o problema, at os mais populares: ch de erva de

    carrapato ou de figueira-do-inferno. Novenas santa Ana e santa Comba,

  • padroeiras da fertilidade conjugal. Defumadouro das partes ntimas com a erva

    chamada pombinha. No ousara pedir ao marido, Gaston, que urinasse num

    cemitrio pela argola de uma campa. Que untasse a regio pbica com sebo de

    bode, ou que bebesse garrafadas de catuaba. Ele a tomaria por uma primitiva. Riria-

    se dela. Ainda assim, escrevera ao marido: Eu quero tanto ser a me do teu filho,

    ter um filho de quem eu amo tanto, de quem eu amo acima de tudo, meu amor!!!.

    O menino no seio direito da irm, e uma serpente, no seu seio esquerdo. Uma

    sorria, a outra sangrava. Que prazer maior do que a destruio do objeto invejado?

    Minha maninha do corao, mana e amiga, queridinha, nariz de telha, senhora

    laranjeira. Amigas? Desde pequenas, as desavenas entre as princesas eram feitas de

    silncio e discrio. Leopoldina, a bela. Isabel, a feia, destituda de sobrancelhas, o

    que aumentava o seu j comprido nariz. Feia, mas boa e angelical, segundo a

    condessa de Barrai, aia das princesas. Isabel merecia toda a ateno da dita condessa

    e, tambm, da governanta francesa, Madame Templier. Afinal, era a sucessora do

    trono e descrita como muito inteligente. Leopoldina, a segunda na linha de sucesso,

    tinha que viver com as desvantagens de ser a mais moa. Dava o troco: era rebelde,

    irascvel, difcil. Quando no se bicavam era de causar espanto, segundo conta a

    Barrai imperatriz Teresa Cristina por ocasio da viagem do casal imperial ao

    Nordeste.

    A mana foi Glria, queixava-se ao pai Leopoldina, divertimento, e bom

    divertimento; eu j ouvi missa, no acha que eu devo me divertir [pg. 22] a tempo

    que ela se diverte? E a resposta paterna: No tem obrigao de estudar seno

    durante o tempo que marquei; porm quem estuda mais sabe mais... Adeus, seja boa

    menina! Pois, sim, boa menina. Difcil dobrar esta personalidade forte. Minha

    travessa Leopoldina, a chamava a Barrai.

    Pois da mais moa viera o primeiro herdeiro. Da bela, nascera a fera. De

    sangue turings e no francs, era o primeiro herdeiro, promessa de futuro

    imperador do Brasil. Criana gerada sob o signo de La Guerra Grande, a Guerra do

    Paraguai. Da, talvez, ter nascido frgil. Um primeiro batismo, sob comoo dos

    avs e pais, foi in extremis. Depois ganhou cores e fora. Gusty ainda guardava as

    impresses da partida, nove meses antes, com o sogro para Porto Alegre. Viajaram

    na segunda quinzena de julho, logo depois que a notcia da invaso inimiga chegara

  • Corte: Uruguaiana fora ocupada a mando de Solano Lopez. A sada no vapor Santa

    Maria, comboiado por dois transportes cheios de tropas e o povo a acenar das

    praias: inesquecvel. Mas, se perguntava, quando teriam concebido este filho? Os

    anjos na talha do altar-mor da S fizeram-no pensar nos outros. Naqueles outros

    que os vigiavam entalhados na cama de casal, quando ele a procurara, to formosa e

    doce, de quatro, sob metros de pano do camisolo.

    E a cruz, a toda-poderosa cruz do altar-mor, lembrava as missas a cu aberto,

    celebradas nos hospitais de campanha para os combatentes, ou as pequenas igrejas

    caiadas de branco, to pobrezinhas em comparao com a S da capital, igrejas que

    serviam de hospitais aos feridos nos campos de batalha. Lembrou-se de si mesmo,

    um europeu em contraste com os morenos voluntrios da ptria, os zuavos da

    Bahia, negros vestidos com o fardamento do Exrcito francs na Arglia, os

    gachos peludos que compunham os Guardas Nacionais da cavalaria ligeira. J os

    fogos que estouravam do lado de fora da catedral para saudar seu menino

    lembravam o espocar das espingardas a mini, das clavinas e das pistolas usadas pela

    cavalaria no cerco de Uruguaiana.

    O casamento no qual nascera esta criana se realizara um ano antes. Duas

    irms unidas a dois primos, direto do interior da famlia real para o [pg. 23] noivado

    e o casamento. Unies dinsticas eram planejadas com anos de antecedncia.

    Quando Isabel e Leopoldina tinham apenas 9 e 8 anos, D. Pedro especulava sobre

    seus maridos. Um portugus? Nem pensar. Teria a oposio dos brasileiros. Seria

    como voltar aos tempos da colonizao. No havendo nobres brasileiros, os

    maridos tinham que vir de casas reais europias de religio catlica. O importante

    que, dentro dos limites de um casamento arranjado, houvesse pelo menos simpatia

    entre os companheiros escolhidos.

    Escrevendo ao cunhado, o prncipe de Joinville, casado com Francisca, sua

    irm mais moa, a quem encarregara de arranjar maridos para as meninas, D. Pedro

    afirmava que no as obrigaria a casar contra a vontade. Ele jamais esquecera sua

    decepo ao ser apresentado a Teresa Cristina: feia, sem graa e coxa. Diante da

    decepcionante viso, ele passou mal. Quase desmaiou. E ela, por seu lado, chorou

    desesperadamente. Envergonhava-se, pois sabia que no correspondia, nem de

    longe, imagem na miniatura que da corte napolitana tinham enviado ao noivo no

  • Brasil.

    Em maio de 1864, a fala do trono anunciou o casamento das princesas. J

    estavam ambas, como se dizia, ento, colocadas. Nenhuma palavra sobre os

    possveis pretendentes. Uma lei foi baixada, assegurando s duas irms dotes e

    rendas. Na mira, os sobrinhos do cunhado Joinville. Um filho de sua irm,

    Clementina, e outro do irmo, prncipe de Nemours. Para sorte das duas jovens, as

    descries e fotografias mais aproximavam os rapazes da imagem de prncipes de

    contos de fadas do que de sapos. Gusty, belo, bem batido, um pouco frvolo.

    Gaston, o futuro conde dEu, como sua futura noiva, alis, bom, amigvel,

    inteligente. E, como ningum perfeito, um pouco surdo. No se sabia quem

    ficaria com quem.

    Pois a 2 de setembro de 1864 chegavam ao Rio o conde dEu e o duque de

    Saxe. Meu pai desejava essa viagem tendo em vista nossos casamentos. Pensava-se

    no conde dEu para minha irm e no duque de Saxe para mim. Deus e nossos

    coraes decidiram diferentemente, escreveu [pg. 24] Isabel em seu dirio.

    Enquanto isto, Gaston se correspondia com a irm, preparando-a para conhecer a

    noiva: nada tem de bonito no rosto, mas o conjunto, afirmava, gracioso.

    Isabel estaria mais apta do que Leopoldina para assegurar-lhe a felicidade

    domstica. Em resumo: os bonitos, entre eles. E os feios, entre eles. A 15 de

    outubro deste mesmo ano, Isabel se casava com o conde dEu, elevado a marechal

    do Exrcito brasileiro. Em 15 de dezembro, na mesma capela real, os sinos tocavam

    para Leopoldina e Gusty, nomeado almirante da Esquadra Imperial. Eram duas

    crianas: ela, com 17 anos, e ele, com 20. Ele, nem maioridade possua. Foi mesmo

    preciso enviar um diplomata a Viena, a fim de obter do chefe da famlia do jovem

    prncipe os plenos poderes necessrios.

    Incumbindo-me Sua Majestade o imperador de convidar para assistir de

    grande gala, em uma das tribunas da imperial capela, ao ato solene do feliz

    consrcio... Deus guarde V. Exa., dizia o convite.

    Para as irms, o casamento significava o adeus Quinta da Boa Vista, com sua

    alameda de bambus e mangueiras onde brincavam de esconde-esconde e de

    bonecas. Mas, tambm, adeus s aulas de histria do Brasil, ingls, alemo, msica,

    filosofia, botnica, bordado, caligrafia, desenho, fotografia e dana. Era o fim das

  • festas de meninas que rompiam o clima carrancudo do palcio, festas que

    excluam polticos e nas quais encenavam com amigos peas de teatro escolhidas de

    um livro francs o Thtre des Petits Chataux, alternando-se em vrios papis:

    flores falantes, fadas, bruxas. Era o adeus canja de galinha quase diria,

    carruagem de gala fora de moda, voz bem timbrada da imperatriz, que, cada vez

    menos, solfejava Una Voce Poco F de Rossini.

    Deixavam para trs o velho palcio, quase um convento, onde tinham

    crescido, com suas plantas, pssaros, animais favoritos. Era preciso deixar o ninho

    onde se sacrificavam aos ritos familiares. Deixar-se uma outra. Deixar os pais.

    Deixar os quartos e as camas onde sonharam com estes companheiros prometidos.

    Percorriam as peas da casa onde passaram a infncia, que abandonariam para

    sempre. Diziam adeus a cada objeto, ao [pg. 25] piano, aos livros, s caixas de

    costura, aos velhos brinquedos. Em pouco tempo, o assunto tornou-se o cuidado

    com a futura casa, os filhos que viriam, o amor aos maridos. Agora, depois de

    casadas, poderiam, tambm, ir a bailes e teatros que nunca freqentaram. Escutavam

    de olhos baixos, dceis, submissas, tudo o que dizia respeito a tais questes. Sabiam,

    contudo, que estavam sendo empurradas para uma vida nova. E para o nico

    exerccio que dava ento sentido vida das mulheres: a maternidade. O que era,

    ento, uma mulher casada? Algum que desejasse ser me, amar seu marido e

    praticar a arte de agradar.

    Tudo o que se ensinava a respeito da maternidade era contraditrio. Sim, a

    criana era uma graa de Deus. Mas era, igualmente, o comprovante de atos

    grosseiros. Atos quase que repreensveis, mesmo entre esposos, se a procriao no

    os justificasse. A moral ditava as regras para as mulheres. Em vez de lhes ensinar

    apenas o pudor, se lhes impunha a inocncia. Ou seja, a absoluta ignorncia do sexo

    fsico. Eram privadas de qualquer olhar sobre o prprio corpo. Fechar os olhos para

    trocar de roupa era obrigatrio. E a toalete ntima? Esta era tida por algo prximo

    libertinagem. Para estimular o instinto materno, ganhavam bonecas, pequenos

    cachorros e gatos. Encarnavam todo o frescor do mundo, toda a pureza,

    comparadas a lrios, pombas, anjos. Branco era o vestido da primeira comunho, da

    primeira festa e do casamento. Branco era o enxoval. A rosa branca era smbolo de

    virtude, castidade e abnegao, flor da mocidade.

  • O ardor do noivado era feito de negativas. O requinte consistia em resistir

    cedendo a um afago, um suspiro, um olhar, at ousadia de um gesto impaciente de

    ternura. E as surpresas da primeira menstruao ou da noite de npcias? Alguns

    mdicos sugeriam usar a ave-maria e a passagem o fruto do vosso ventre para

    explicaes superficiais e mnimas. As mes? Recuavam. No queriam macular a

    timidez de suas virgens filhas com muita informao. Os maridos? Eram os nicos

    qualificados para iniciar a jovem esposa. Eles buscavam as ignorantes dos jogos

    erticos, a quem iriam despertar com prudncia. [pg. 26]

    As funes que decorriam do casamento se realizavam por instinto, como que

    sob o imprio do sono. A qumica fisiolgica, to complicada, percorria seu

    caminho sem pedir conselhos. A perpetuao da espcie, a continuao da

    linhagem, operada pelo amor e o matrimnio, a constituio da famlia eram, enfim,

    o nico objetivo. O casamento era o sonho legtimo. Mas no s. Para dar ao amor

    conjugai o infinito prazer era preciso sofrer na prpria carne. Quantos filhos

    arrancados do fundo das entranhas? E depois dos gritos e da agonia do parto, do

    permanente cansao e da inquietao, das ansiedades e tristezas em torno de um

    bero, para que servia a mulher seno para engravidar de novo? A medicina, por

    meio das leis da ovologia, at recomendava que uma jovem s se casasse dez dias

    depois do trabalho de ovulao. Era preciso peg-la num momento de esterilidade,

    do contrrio ela ficaria grvida no primeiro ms de casamento. No sobraria tempo

    nem para conhecer o marido.

    Para Leopoldina e Gusty, a cincia do amor tinha ento um recado simples:

    era preciso amar, sem nada precipitar. Deixar fluir as coisas, os passos se sucedendo

    na ordem natural, evitando toda irritao duradoura. Mo na mo. Olhos nos olhos.

    Enquanto o dia D no chegava, os jovens se achegavam. Trocavam bilhetes

    amorosos, pequenas lembranas, ainda tenho que escrever muito a Gusty,

    explicava ao pai, desculpando-se pela falta de tempo... cordiais saudaes e

    saudades a Augusto, a quem no tive ainda o prazer de ver. D-lhe este amor-

    perfeito da parte de Mme. Pica-pau. O que no exprimiam por palavras, diziam,

    um ao outro, com a gramtica do corpo: rubores, piscadelas, olhos brilhantes,

    tremores. Ou era revelado em carta para Isabel:

  • No creia que a carta que Augusto escreveu foi ditada por mim; ele

    escreveu sozinho. O portugus dele tem feito progressos. As soires tm se

    tornado escola. Cada vez eu gosto mais dele como ele a mim. Voc deve, sem

    dvida, sentir o mesmo por Gaston. Eu no [pg. 27] posso mais dizer uma

    coisa a Augusto sem que o papai ou a mame queiram saber. E agora vejo-me

    perpetuamente em calas curtas. [...] Em Petrpolis, hei de ter o prazer de

    almoar com meu benzinho todos os dias que ele no for caa.

    Fragmentos desse processo amoroso revelavam mais alm da felicidade dos

    encontros. Expunham a matriarca por trs das filhas: zelosa, dominadora e,

    provavelmente, ciumenta. Matriarca como as muitas que Freud ir denunciar,

    algumas dcadas mais tarde, como mes castradoras. Mes sufocantes. Maman, as

    slabas midas invocadas na mais extrema dependncia, dolo reclamando preces.

    Mes capazes de expor a ambivalncia dos sentimentos maternos. Como elas, a

    imperatriz colava-se s jovens mulheres. Bebia-lhes a felicidade, num copo de fel.

    Lembrava-se com amargura dos primeiros meses do seu prprio casamento, tempos

    marcados por estranho acanhamento do marido. Na Corte, at correram rumores

    registrados em correspondncia diplomtica uma vergonha! Se ouvira dizer que

    o Daiser escrevera oficialmente a Metternich comunicando que o imperador tem

    impedimento fsico para as funes matrimoniais, com o adendo: a comunicao

    fora documentada com uma atestao do Dr. Sigaud. Um ms depois das bodas, os

    criados que lhes mudavam os lenis murmuravam que no havia sinal de

    intimidade entre eles. O matrimnio das filhas lhe enchiam destas terrveis

    lembranas. Mas havia um alvio nisto tudo.

    Exultava por ver-se, finalmente, livre como confessou a uma dama do pao

    que a cumprimentou , livre insistia da Senhora Barrai. A aia de Isabel e

    Leopoldina, sobre quem corriam rumores de uma ligao amorosa com D. Pedro II,

    foi sempre uma sombra sobre ela. Teria Teresa Cristina jamais entendido que era

    preciso renunciar aos seus desejos de dominao, adaptar-se, reduzir-se figura

    humana, encontrando um meio-termo entre a intruso destrutiva e o devotamento

    sem limites? Doente, envelhecida, nunca bela, me de dois filhos mortos,

    observadora sofrida dos amores concretos ou imaginrios do marido, com quais

  • sentimentos via a felicidade de Leopoldina? [pg. 28]

    Durante o noivado, esta desabafava com a irm: Eu estou com inveja sua por

    causa do bom tempo que voc h de estar passando s com seu Gaston e no sendo

    vigiada pelos olhos incomodativos de mame, que ontem no deixou de despreg-

    los de ns ambos. Eu no posso dizer uma palavra a Augusto sem que mame

    queira saber o que eu disse... Queixava-se tambm sua confidente, a condessa de

    Barrai: Mame muito boa pessoa, mas muito dominadora, gosta que tudo v

    como ela quer. Mesmo papai deve fazer o que ela quer, apesar de que Deus no

    Evangelho diz que a mulher tem que se submeter ao homem... mas voc conhece

    mame e sabe que ns nunca lhe dizamos alguma coisa sem que a Josefina e toda a

    viscondessada soubessem. O que lhe posso dizer que as duas pessoas com que

    meu gnio vai melhor so voc e Gusty.

    Ou ainda:

    Muito querida Isabel

    Voc sabe que quando uma pessoa tem vontade de chorar e lhe dizem

    que ela chore isto ainda d mais vontade. Depois mame est perpetuamente

    dizendo que eu tenho cimes da amizade que ela tem com ele. Diz tambm

    que eu no quero fazer prazer a ele. Como! Eu! Que gosto tanto dele. A minha

    vontade s de agradar a ele. Ele gosta tambm muito de mim. Mas ainda no

    pudemos falar de nossos negcios. Esta cartinha uma lengalenga, mas voc

    sabe que depois de Augusto a voc e condessa que quero contar minhas

    misrias... Tomara j ir para Petrpolis para que Augusto possa se divertir um

    pouco caando e passeando. Coitado, at agora ele tem estado condenado a

    ficar sozinho naquele imenso palcio da cidade. J sei que tem um co

    emprestado e que este chora a separao de sua mulher. Eu compreendo isto

    pela largura do tempo quando no estou com o Augusto. As saudades so

    muitas.

    Todos lhe beijam a mo. [pg. 29]

    Leopoldina e Gusty se casaram. A lua-de-mel foi em Petrpolis. Os

    pombinhos comearam a reformar um palcio prximo ao dos imperadores. O

    chamado pao Leopoldina ficava entre a rua So Cristvo e a rua So Francisco

  • Xavier, comunicando com a Mariz e Barros toda calma neste recanto sossegado

    do chamado Engenho Velho, antiga propriedade rural dos padres jesutas. O lugar

    deve ter agradado ao duque de Saxe. Acostumado a cavalgadas e caadas na regio

    de Ebenthal, onde residia na Europa, soube reconhecer no caminho que passava

    frente da igreja de So Francisco Xavier a trilha para a mata da Tijuca. O governo

    coibira o desmatamento, proibindo a derrubada de rvores nos mananciais dos rios

    Paineiras e Carioca. Quando o casal se mudou, o major Archer j comeara o

    reflorestamento com espcies nativas e exticas.

    A presena da gua, bem como a mata remanescente nas encostas, atraa,

    sobretudo, macacos, papagaios e preguias. Na vizinhana, s chcaras e vivendas.

    Plantaes de caf, aqui e ali, ainda manchavam o pequeno vale. A cidade na qual se

    estabeleceram os recm-casados ainda tinha muito de uma paisagem rural. A frente

    do palcio passava, puxado a burros, o bonde da Companhia Vila Isabel, trazendo o

    dstico Parque Imperial. A campainha da parelha de animais quebrava, de quando em

    quando, a algazarra da passarada.

    Incrustado num lindo parque, de frente para quatro palmeiras, o imvel nada

    tinha de espetaculoso. De estilo neoclssico, parecia uma das construes que os

    discpulos do arquiteto Grandjean de Montigny espalharam pelo Rio de Janeiro na

    segunda metade do sculo XIX. O frontispcio, que ocupava dois andares, era

    dividido em sete janelas sisudas, mas elegantes. Uma escadaria, cortando o prdio ao

    meio, levava ao vestbulo de entrada. Em lugar de telhado, uma fieira de colunatas

    fazia as vezes da cimalha. O interior era decorado ao gosto da poca, com pinturas

    cenogrficas ou de naturezas-mortas. Nos tetos, o estuque trabalhado por artesos

    recm-imigrados da Itlia. Bairros como o Catumbi, Rio Comprido e Tijuca

    comeavam a ser ocupados por manses. [pg. 30]

    Na correspondncia das manas constatava-se o aucarado do dia-a-dia. Um

    mundo a construir. Se Gusty saa para cavalgar ou caar, Leopoldina se recolhia,

    quase que religiosamente. Acalentava seu maravilhoso sonho. Reproduzia cada

    detalhe de um marido terno, generoso e gentil. Ela repassava com doura sua alegria

    e a energia explosiva. Recordava seu rosto, seus gestos. Enrubescia. Queria

    pertencer e depender dele exclusivamente. Saboreava solitariamente as marcas

    humildes da paixo. Se ele atrasava, derramava uma lgrima de impacincia, a

  • imaginao transbordava em imagens torrenciais as flores sobre a mesa arrumada

    e rearranjada no o faziam chegar mais depressa. Mas, de repente, os passos na

    escadaria, e, de dois em dois degraus, o jovem irrompia no salo. Eram felizes.

    Minha querida Isabel

    Como vai passando com seu maridinho? Eu estou em perfeita sade

    assim como o meu. Eu vivo muito feliz com o meu Caro; Gusty excelente

    para mim. Eu fao tudo o que quero, ele quer, bem entendido, porque a

    vontade dele a minha... Mon bien assorti poux meu marido cheio de

    qualidades tem feito lindas caas de pssaros... O tempo que passei sem

    Gusty pareceu-me compridssimo.

    Adeus... saudades a D. Gaston e meus cumprimentos mais afetuosos aos

    outros.

    Sua mana muito do corao e madrinha.

    Como passava uma boa esposa o tempo? Cuidando da casa, dando ordens aos

    domsticos, fazendo a lista da despensa, conhecendo todos os pontos de tapearia e

    bordado, evitando frouxos de riso ou bocejos. E, alm de boa, uma honesta?

    Devotando-se castidade e represso sexual. provvel que as duas jovens

    princesas seguissem as regras da poca vitoriana. A felicidade domstica era o lema

    que pendia sobre o leito conjugai. Maridos tambm tendiam a ser prestimosos e

    devotados. [pg. 31]

    O casal passava temporadas em Petrpolis. L no se tinha vida de castelo e,

    ao contrrio, vivia-se numa exagerada simplicidade. A severidade do cerimonial era

    substituda por um burguesismo sem etiqueta e, segundo alguns, sem gosto. Essa

    falta de afetao era malvista por observadores estrangeiros ou mesmo nacionais,

    que julgavam ter o casal imperial que dar o exemplo. As ms lnguas murmuravam

    que tanta naturalidade amesquinhava a instituio monrquica. Um deles dizia entre

    dentes: Oh! Ce nest pas la cour, cest la basse cour (no a corte, o galinheiro). O

    programa dirio variava entre aguardar na estao os viajantes vindos do Rio,

    passeios por entre chcaras, reunir-se para as celebraes do ms de Maria na igreja

    Matriz, exposies hortculas no Palcio de Cristal, visitas ao hotel Orlans e

    encontros nas duchas. O jornalista e escritor teuto-rio-grandense Karl von Koseritz

  • descreveu, menos cido, o cenrio: Uma populao elegante se acotovela na

    estao; ligeiros cabs, puxados por cavalos de raa, so guiados por senhoras;

    esbeltos cavaleiros caracolam sobre lindos meios-sangues, com um criado de libr, a

    retro. A carruagem imperial circula, seguida de um carro a quatro, com veadores de

    servio e uma dama da imperatriz.

    Em grupos se comentavam produes literrias nacionais e francesas, a

    estao do Theatro Lrico, a impresso dos ltimos espetculos, a voz das cantoras,

    a plstica das atrizes, o valor musical das peas. Crtica fcil e aluses maliciosas

    envolviam o nome de divas como Adelina Patti, Maria Durand, Salvini, Coquelin,

    Sara Bernhardt. Discorria-se sobre os artigos publicados no Dirio de Notcias ou no

    Jornal do Commercio. Ria-se discretamente de mais uma caricatura do imperador na

    Semana Ilustrada. A evoluo das anquinhas e mangas bufantes ocupava as mulheres.

    A sociedade se encontrava e convivia menos nas moradias quietas do que nas

    ruas, na estao, na igreja, nos hotis e nos bailes. A chamada petite tiquette, uma

    etiqueta com menos cerimnias, inspirada na corte [pg. 32] de Napoleo III, se

    harmonizava com o cenrio buclico de montanhas, crregos e hortnsias,

    reduzindo a famlia imperial sua expresso mais singela. Em sua correspondncia,

    Leopoldina se queixava da chuva insuportvel e comentava os passeios a cavalo que

    levavam o casal do Palatinato Rennia, os concertos de sapos ao cair da tarde. Em

    casa, lia-se muito e at exageradamente. No poucas vezes, os moos escondiam os

    livros do imperador, evitando que ele fizesse leituras em voz alta, quando todos

    seriam obrigados a escut-lo, fingindo ateno. Passava-se tempo, tambm,

    adivinhando provrbios, fazendo mmica, olhando lbuns de fotografia, jogando

    prendas, o whist ou o voltarete. s 21 horas, noite calada.

    Se na serra tudo era calma, nos confins do pas rugia a guerra. Era, apenas, o

    seu incio. A rendio de Uruguaiana no fora o fim, mas o comeo de uma

    prolongada luta. Foras e mais foras a Caxias, escrevia o imperador. Acabe-se

    com honra a guerra... cumpre mandar soldados e mais soldados aos nossos

    generais. Escrevendo condessa de Barrai, o imperador anunciava o fim do

    conflito. Ledo engano. A guerra iria durar ainda cinco longos anos.

    Mas foi em fevereiro que veio o sinal. Leopoldina trazia as marcas do amor de

    Gusty. Muito sono e muitos vmitos. Doravante, o brinquedo seria com bonecas de

  • verdade. Este era o sculo da boa me, sculo em que o amor materno tornava-se

    um cdigo de boa conduta para as mulheres. Considerado um valor vitoriano, ele

    idealizava as relaes entre mes e filhos. Leopoldina, aos 18 anos, estava pronta a

    enfrentar a agenda. Enquanto isto, nas academias de medicina, mdicos discutiam se

    as mulheres frias no concebiam mais facilmente do que as amorosas. A

    tranqilidade as ajudaria a guardar o esperma. De repente, o prazer feminino no era

    necessrio procriao, se mostrando no apenas intil, como suspeito. O

    importante era valorizar o pudor: o corao distante dos desejos lbricos. Manter-se

    casta apesar da aproximao do companheiro. O pudor consistindo em no ter sexo

    ou a ignorar que se tinha [pg. 33] um. Desviar a mulher de sua prpria sexualidade

    era consagr-la exclusivamente maternidade.

    Minha querida Isabel

    Digo-lhe tambm que quando h dias passados estava muito enjoada e

    toda mole e tonta, veio o Bonifcio de Abreu me ver e disse que isto era um

    sinal de gravidez... Petrpolis insuportvel com a chuva... Os enjos

    continuam... Hoje estou horrivelmente enjoada. Penso que ser l pelo ms de

    setembro que o duquinho ou a duquesinha de Saxe far sua apario no Brasil,

    mas por ora no sei... o que certo que eu o encomendei para que chegue de

    Paris... Se lembra da asneira que nos diziam quando alguma pessoa tinha tido

    um filho? Por exemplo: veio por este paquete uma criana de Paris... S a

    voc, por ora, que Gusty deu licena para anunci-lo, mas por ora no sei se

    eu vou ter um ou uma como j lhe disse... H de ser muito engraado Gusty

    papai e eu mame, pobre criana, quantas palmadas no levar talvez de papai.

    Eu antes dizia que havia de dar muita palmada, mas agora sei que as palmadas

    se convertero em beijos. Hoje dia de visitas e eu com uma vontade horrvel

    de lanar... Muito enjoada... Meus vestidos esto ficando largos em cima e na

    cintura no posso mais abotoar. Trago por cima cintos largos com fivelonas.

    Cada vez estou mais contente com o meu bom e bonito Gusty. Ele gosta

    muito de mim, tomara que nosso filhinho ou filhinha seja parecido com ele.

    Peo-lhe no dizer nada a ningum do que lhe anunciei.

    Tempo de silncio e segredo. Era preciso conservar o fruto. Faz-lo

  • amadurecer at o fim. O ideal seria uma gravidez vivida na ponta dos ps, como

    entre parnteses, ao abrigo de olhares. Melhor impedir toda agitao, retirando-se da

    cidade para viver a tranqilidade do campo. Nada de cruzar as pernas, evitando

    estrangular a criana. Nada de chaves na [pg. 34] cintura, para evitar lbio fendido.

    Nada de tristezas ou de agonias, para no faz-lo sofrer ou nascer feio. Infinitas

    crenas deviam proteger a criatura em seu ninho. Ninho, tero, matriz: objeto de

    um respeito quase religioso, lugar sagrado onde se reproduzia a vida, onde se

    elaborava um novo ser. Junto com a barriga, crescia o medo e a ansiedade em torno

    do parto. Ou em torno do sexo da criana a chegar. Supersties feitas luz da lua

    deveriam responder a esta questo: menino ou menina? Na Corte, a mulata do

    Castelo, vidente respeitada, previa o futuro da criana a chegar. Homens garantiam a

    linhagem, coisa fundamental numa famlia em que os vares pouco duravam.

    Consultavam-se, ento, as urinas ou a cor dos mamilos da grvida.

    No durou. A 21 de maio de 1865, Leopoldina relatava a perda do Beb:

    Eu esperava fazer-lhe titia no fim deste ano, mas infelizmente o seu

    sobrinho ou sobrinha nasceu muito cedo. No dia 2 de maio s cinco e meia da

    manh, sem que eu sentisse nenhuma dor, comecei a sentir-me molhada e a

    pr sangue. Eu logo disse a Gusty que pensava que eu estava desarranjada.

    Gusty imaginou que devia ser o que tenho todos os meses. Quem dera que o

    fosse. Mas eu fui remexer-me na cama e senti sair uma posta de sangue. Eu

    pus-me a chorar dizendo a Gusty que julgava que aquilo era nossa pobre

    criana. Ele disse que no chorasse porque pensava que isto era impossvel.

    Ele mandou chamar Touvel para ver-me e ele disse que era um sinal de

    aborto. Infelizmente o foi. Eu pus-me a chorar quando recebi a sua carta

    escrita Minha querida Mamezinha... Apesar de ter tido a infelicidade que

    tive, ainda sou a mesma pessoa alegre que voc conhece.

    De fato, muito alegre e, tambm, uma deliciosa mistura de ignorncia e

    desinibio. Apesar da represso sexual, podiam-se enfrentar as [pg. 35]

    conseqncias do funcionamento do corpo sadio ou doente. Uma diarria na cama

    ou um jorro de mnstruo? Nada de vergonhas. Eram como duas crianas grandes

    brincando. Crianas grandes que at faziam uso da linguagem escatolgica como

  • crianas pequenas. A coprolalia servia para identificar as pessoas que circulavam

    volta do casal. Machado Jos Machado Coelho de Castro, fidalgo da Casa

    Imperial era jocosamente apelidado de ma chiade (minha caganeira). De Lamare

    o vice-almirante Joaquim Raimundo, veador do imperador era o lamiral de la

    merde (almirante de merda). E mana, Leopoldina perguntava em bilhetinho, voc

    se borrou com as pastilhas de chocolate? borrou substituindo burrer, que em

    francs significa entupir-se. Assinava-se Leopoldina de Cagaburro!

    Apesar do mau tempo de guerra e sombras, estes eram, para o jovem casal,

    tempos venturosos. Eu vivo muito feliz com meu caro e bom e tudo que h de

    melhor Gusty. Estou ficando um pouco menos elefante. Viviam como se dizia,

    ento em inteligncia entre si. Viviam na multiplicao de alegrias. E, por isto

    mesmo, Pedro Augusto nasceu dez meses depois.

    No quarto, os terrores da jovem me eram vagos. Sendo a ignorncia uma

    parte indispensvel da pureza feminina, ela pouco sabia sobre a concepo ou sobre

    dar luz. Regime alimentar e ternas exortaes serviam para induzi-la a crer que era

    preciso amar aquela criaturinha que sairia de sua via mais secreta. Criaturinha igual

    aos Meninos Jesus de cera que dormiam, envoltos em rendas, nos prespios. A

    orao era um recurso forte. Os conventos da cidade faziam novenas em inteno

    do bom parto da princesa. Milagre que a me no tenha morrido de febre de parto,

    maldio que vitimava milhes, empurrando vivos para um segundo e rpido

    casamento. Esposas eram um recurso renovvel, nesta poca.

    Era conversa feminina falar de receitas para partos complicados, de crianas

    mortas antes de receber o batismo, de jovens mes levadas pela [pg. 36] febre do

    leite. Milagre que a criana no tenha morrido de crupe! Na cozinha e na lavanderia

    do palcio, numa pausa de trabalho, as criadas, molhando a rapadura no caf,

    comentavam sobre a sade da parturiente e do pequeno. De incio houve forte

    hemorragia, assustando a todos. Depois, tudo correu bem.

    As ordens do imperador tinham sido claras:

    Havendo Sua Majestade o imperador por bem que, quando S. A. a Sra.

    D. Leopoldina se achar prximo a dar luz, seja de dia ou de noite, o Senhor

    prncipe ou princesa, cujo feliz nascimento se espera, os ministros de Estado,

  • os conselheiros de Estado e os grandes do Imprio concorram ao palcio da

    residncia de Sua Alteza, para o que lhes servir de sinal uma girndola de

    foguetes soltada da Imperial Quinta da Boa Vista e correspondida por outra

    no morro do Castelo.

    O Jornal do Commercio noticiou a reunio dos grandes no palcio: alm dos

    membros da famlia, ministros de Estado, presidentes das duas Cmaras legislativas,

    conselheiros e oficiais da Casa Imperial. No houve sesso no Senado e uma

    deputao de 14 membros foi felicitar Suas Majestades Imperiais pela chegada do

    neto varo. A moa, gabava-se o av, portara-se com sangue-frio, boa para com

    todos. s 4 horas e 10 minutos nascera um belo rapaz. D. Pedro se derretia: era

    o Pedrinho. [pg. 37]

  • Captulo II

    A dourada esfera da intimidade

    Logo depois do batizado, o casal embarcou com Pedro Augusto no paquete ingls

    Rhone. Via Southampton, porto ao sul da Inglaterra, percorreriam pases europeus,

    apresentando o herdeiro. Leopoldina descobria a Europa e descobria tambm

    aqueles que chamaria de minha gente: os outros membros da famlia Saxe e

    Coburgo. A primavera chegava junto com o pequeno grupo vindo dos trpicos. A

    princesa brasileira conheceria o velho continente que mergulhara em guerras e delas

    saa em sua melhor forma. A Frana vivia uma das pocas de desenvolvimento e

    prosperidade mais importantes da sua histria: o II Imprio. Graas poltica

    voluntarista de Napoleo III, e de sua escolha em favor do livre-comrcio, o pas se

    dotava de infra-estrutura moderna, de um sistema financeiro, bancrio e comercial

    inovador. Em alguns anos, seu atraso frente Gr-Bretanha seria largamente

    compensado.

    Sob a batuta do baro de Haussmann, prefeito de Paris, a cidade que era

    conhecida pela sujeira se transformou numa das mais belas capitais do mundo,

    pontilhada por praas e cortada por largas avenidas. A pera Garnier, verdadeira

    usina de sonhos iniciada em 1861, ilustrava a importncia dada ao mundo do teatro

    e das artes cnicas, elemento dos espetculos em que o imperador afirmava seu

    poder. Apaixonado por histria de sua autoria uma monumental Histria de Jlio

    Csar , Napoleo III desencadeou a febre da arqueologia, criando o Museu de

    Antiguidades Nacionais e inaugurando uma srie de escavaes. Nas livrarias,

    exibiam-se os volumes recm-editados de Flaubert, George Sand, Edmond e Jules

    de Goncourt.

    Os progressos sociais eram inegveis e chamavam a ateno da ilustre

    moradora do ltimo pas escravista nas Amricas: direito greve e organizao dos

    assalariados, sopas populares para conter a fome, primeiros [pg. 39] sistemas de

    aposentadoria, desenvolvimento da educao em massa, sobretudo, para mulheres.

    Esta inovao, ento, fazia-se sob a proteo direta da imperatriz Eugenia, uma bela

  • de olhos claros que se deixava fotografar, em posies lnguidas, por Pierre le Grey,

    inventor do negativo sobre vidro.

    Sobrava estmulo para as pesquisas de Louis Pasteur, amigo de Pedro II,

    inventor da vacina contra a raiva. E apoio aos trabalhos de Ferdinand de Lesseps,

    amigo dos Saxe e Coburgo, construtor do canal de Suez e que faria Leopoldina se

    entusiasmar pelo projeto de abertura do rio Amazonas navegao estrangeira. A

    jovem princesa tambm se assombrava com as novidades do consumo: as jias que

    Chaumet criava para o casal imperial, com as pedras que pertenciam ao tesouro

    francs. Encantava-se com as catedrais de comrcio que eram os grands magazins,

    como o Samaritaine e o Bon March, este ltimo com sua cpula de vidro

    desenhada pelo engenheiro Gustave Eiffel e uma enorme escadaria capaz de criar

    um efeito teatral nesses espaos que serviam ao mesmo tempo para compras,

    exibio e passeio. Na frente das lojas, burricos e carrocinhas entretinham as

    crianas enquanto as mes gastavam. A baixa dos preos dos tecidos e o aumento

    do poder de compra das novas classes sociais incentivavam a multiplicao dos

    primeiros templos de consumo feminino. Eles tambm ofereciam objetos de

    perfumaria, toalete, meias, chapus, armarinho por correspondncia, e entregavam

    em domiclio, graas aos trens que aproximavam a provncia da capital.

    A caminho da Turngia, o jovem casal de prncipes encontrou, na Viena do

    final dos anos 1860, outro cenrio de progresso. Uma nova monarquia

    constitucional nascia, tendo frente Francisco Jos. Os ventos do liberalismo

    sopravam sobre todos os aspectos da vida poltica e econmica, passando pelas

    artes, a msica e a arquitetura. Como um sol poente, declinava suavemente o poder

    da aristocracia e emergia, cheia de sade, uma burguesia culturalmente dominante.

    Audcia financeira, valores liberais, desenvolvimento industrial e dinheiro fresco se

    davam as mos numa ciranda alegre cuja msica era o som do prego da Bolsa. Ou

    [pg. 40] as populares valsas. A vida noturna florescia: bailes de mscaras, moda

    frvola, tudo regado a champanhe, smbolo do sucesso.

    As velhas fortificaes que abraavam a cidade foram destrudas num evento

    que o compositor Richard Strauss comemorou na Polka da Demolio! Um gigantesco

    sistema de ruas, o Ringstrasse, novo corao da urbe, era o palco para as construes

  • que simbolizam o imprio austraco: o palcio Hofburg, a catedral de Santo Estevo,

    museus, teatros, prdios administrativos se encadeavam como um colar de pedras

    raras e caras. No palcio de Coburgo conhecido na cidade como Forte Aspargos,

    graas colunata de mrmore branco que, ainda nos dias de hoje, orna a fachada ,

    o casal teria suas dependncias. Por meio de uma escada suntuosa atravessavam os

    sales Azul e Chins, cujo piso de mrmore rosa e amarelo foi polido pelas valsas

    que a regeu, pessoalmente, Strauss.

    Da, Leopoldina e Gusty seguiram com Pedro Augusto para Ebenthal, vilarejo

    da Carntia, a dois passos da fronteira eslovena. Cerejeiras selvagens pontilhavam os

    caminhos. Velhas fortalezas medievais apontavam suas torres em meio aos

    pinheirais e cortinas de carvalhos. Lagos transparentes se alimentavam do degelo das

    montanhas, que cortavam os morros em cascatas. Umas poucas fazendolas, com os

    telhados cobertos de colmo, se abrigavam nas clareiras das florestas, e delas se

    erguia perfumada fumaa de lenha queimada. A construo neoclssica, recortada

    por enormes janelas com seu salo de festas decorado com afrescos mitolgicos

    pintados por J. F. Fomiller, se assentava beira do lago de Millstttersee. Nas

    fronteiras desta paisagem buclica, contudo, se afiavam as baionetas.

    A pequena corte dos Saxe e Coburgo vira a Europa se transformar a partir da

    Revoluo Francesa. Muitos refugiados vieram se abrigar nas terras tranqilas de

    Coburgo e Saafeld, se beneficiando do socorro oferecido pelo duque Francisco.

    Mais tarde, durante a guerra franco-prussiana, o pequeno ducado pagou um alto

    preo por sua atitude independente frente s vontades de Napoleo III.

    Indenizaes e impostos empobreceram a famlia ducal, que, pressionada pelo

    imperador dos franceses, se aliou [pg. 41] Confederao do Reno. Desde 1862,

    Francisco Jos realizava negociaes secretas com os hngaros tendo em vista

    assumir uma dupla monarquia. A esperana de manter sua influncia na Alemanha

    era grande.

    Os estados germnicos eram 25, e Saxe um deles preferiam uma ustria

    enfraquecida a uma Prssia dominadora e, desde 1862, governada por Bismarck.

    Tarde demais. A ascenso do gigante comeava com a anexao de alguns estados,

    como o Holstein, e o reforo austraco no controle da Confederao da Alemanha

  • do Norte. Os estados do Sul, como a Baviera, malgrado uma existncia

    independente, orbitavam comercialmente em torno da Prssia. Apesar do mau

    tratamento dispensado pelo invasor houve Saxe e Coburgo, como o futuro rei da

    Blgica, Leopoldo, confinados em partes minsculas e geladas de seus prprios

    castelos , os membros da famlia conservaram suas colees de gravuras, de livros

    raros de botnica, de geologia e astronomia.

    Dentre eles, alguns se destacariam entre os mais importantes soberanos

    europeus na primeira metade do sculo XIX. Eles eram a gente de Leopoldina.

    Viajados, conhecedores do grand monde, bem-educados, elegantes, chamavam a

    ateno nas cortes de Viena, Bonn, Londres, Berlim ou Paris. Eram homens

    belssimos, altos, louros ou morenos de olhos azuis ou verdes, considerados pela

    correspondncia diplomtica da primeira metade do sculo XIX pretendentes ideais

    para princesas casadoiras. E foram, de maneira geral, maridos dedicados, capazes de

    gerenciar casamentos felizes. Um exemplo: Charlotte, princesa de Gales, foi

    loucamente apaixonada por Leopoldo de Saxe e Coburgo, a quem escrevia, em

    1816, no teremos que um s corao e uma s alma. Viveram uma bela histria

    de amor. E mais de uma vez a casa reinante de Portugal e Brasil fora alvo do

    interesse do cl.

    Ferdinando de Saxe e Coburgo, mais tarde conhecido como Fernando, tio de

    Gusty, foi o consorte de Maria da Glria, filha primognita de D. Pedro I e tia de

    Leopoldina. As vsperas do casamento, quando do seu primeiro encontro, a jovem

    portuguesa o encantou com sua meiguice e gentileza. Alm do mais, vestira azul, cor

    preferida do futuro marido, s [pg. 42] para agrad-lo. Quanto a ele, era

    apresentado como algum de bom corao, engraado, verdadeiro e natural. Foi,

    em parte, graas aos exrcitos belgas enviados por tio Leopoldo que a batalha do

    Porto foi vencida pelos adeptos de Maria da Glria. Tambm foram felizes.

    O interesse do cl persistia. O rei da Blgica tentou unir, sem sucesso, sua filha

    com D. Pedro V, de Portugal. Mas a bela morena fora mal aconselhada por sua

    governanta. Esta passava o tempo a lhe dizer que Portugal era habitado por

    orangotangos. Carlota preferiu o arquiduque Maximiliano. Irmo de Francisco Jos,

    imperador da ustria, era homem do mundo, jovem almirante sem coroa, cuja

  • ambio poltica terminou numa terrvel experincia no Mxico.

    Uma segunda tentativa de aproximao com o Novo Mundo colocou na mira

    outra unio. A do pai de Gusty, Augusto Carlos, herdeiro presuntivo do maiorato

    dos Koharv, com Januria, tia de Leopoldina. Nos arquivos belgas descansa uma

    carta que no deixa mentir sobre as intenes precoces dos Saxe e Coburgo, desde

    1840 e escrita pelo conselheiro do rei:

    Madame a duquesa de Kent [irm de Leopoldo], vendo o quanto seria

    vantajoso para a famlia transatlntica de Bragana aliar-se duplamente

    famlia de Portugal, assim quanto s famlias da Inglaterra, da Frana e da

    Blgica, no hesitou em me recomendar que escutasse a proposio que

    oferece uma conexo brilhante para a Casa dos Saxe e Coburgo. [...] Sua Alteza

    Imperial tem 16 anos, sua pessoa das mais agradveis e seu carter dos mais

    amveis. Ela tem direito de sucesso ao trono. O imperador um menor de 12

    anos e possvel que ela seja um dia chamada ao trono do Brasil, agora,

    consolidado e baseado sobre princpios aristocrticos. Quanto ao casamento

    proposto, Sua Alteza Imperial, como esposa do prncipe Augusto de Saxe e

    Coburgo, partilharia sua posio na ustria, aportando-lhe por apangio o

    dote a que tem direito, e uma prxima parentela com a famlia imperial

    austraca. [pg. 43]

    Mas Augusto encontrou em Clementina, a filha do rei dos franceses, Lus

    Felipe de Orlans, uma companheira que no se importou em casar com um simples

    major, dando-lhe acesso a um dote que montava a milhes de francos. Ela Alteza

    Real e ele simples Alteza. Mas como escreveu Leopoldo I rainha Vitria: Clem

    est contente com o casamento! Viveram entre Paris, Viena e Coburgo. A

    mensagem, contudo, era clara: o Brasil interessava ao cl Saxe e Coburgo e haveria

    sempre a possibilidade de algum com seu sangue ocupar o trono.

    Mas se a estratgia falhara com a tia, o que dizer das sobrinhas? Quando de

    sua passagem pelo Brasil, o olhar crtico de Maximiliano aprovara Isabel e

    Leopoldina. Quatro anos antes do nascimento de Pedro Augusto, as duas manas

    tambm foram cobiadas pelo rei da Blgica. E por que o poderoso chefe do cl

  • voltou seu olhar para o Novo Continente? O Brasil foi dos primeiros estados a

    reconhecer a independncia da Blgica, com quem assinou, desde 1834, um tratado

    de comrcio. Dez anos depois, uma colnia flamenga se instalou no estado de Santa

    Catarina, dirigida pela Sociedade Belgo-Brasileira. O costume de dotar as princesas

    brasileiras de territrios importantes para promover a colonizao com populaes

    vindas da Europa era um poderoso atrativo. A unio de Felipe, segundo herdeiro do

    recm-criado Reino da Blgica, filho de Leopoldo I, com uma das princesas

    brasileiras teria mltiplas vantagens. Entre elas, oferecer Blgica oportunidades de

    investimentos alm-mar. Afinal, como dizia Leopoldo I, que soberbo imprio!.

    Em 1861, ele tentou convencer o filho de ir ver a terra de promisso e as

    princesas com os prprios olhos. Ambicioso, seu irmo primognito, o duque de

    Brabante, incentivava: estou a par dos planos para levantar nossa estrela e estend-

    la ao Novo Mundo... Qualquer uma, Isabel ou Leopoldina, consideradas ricas,

    charmosas e bem-educadas, conviria. A correspondncia familiar revelou, contudo,

    que se temia, e muito, que a vida de Felipe ficasse restrita a dar tiros em macacos e

    periquitos. Ele deixou o caminho aberto para que os dois rapazes, Gusty e Gaston,

    viessem [pg. 44] depois. O filho de Gusty e Leopoldina cresceria nesse ambiente.

    Ambiente no qual a aspirao era a de ver um Saxe e Coburgo no trono americano.

    Ele jamais esqueceria as primeiras lies. Quem sabe elas no corressem no sangue.

    Da ustria, Leopoldina escrevia num ir-e-vir do tempo de maneira quase

    instantnea: Ns vamos muito bem e o Pedro j foi vacinado; a vacina pegou. Eu

    estou tendo lies de aquarela. A minha gente de c excelente para mim e me

    divirto muito. Saudades da mana nariz de telha. E num fluxo, em vrias pequenas

    cartas: Com a guerra estamos todos dessous dessus (de pernas para o ar). Tomara

    que acabe a guerra l no nosso Brasil. Espero a partida dos prussianos para voltar ao

    palcio de Ebenthal e desinfet-lo. Grassava o clera. O Pedro est muito

    bonitinho... X est em estado interessante assim como la mre Gigone femme Gusty

    (me cegonha mulher do Gusty), brincava, com Isabel, para dizer que estava,

    novamente, grvida!

    Fomos passear no Prather e em Schombrnn [...] D. Gaston, o que traz

    o D. Gaston, um gran narigo [...] o Pedro est ficando muito engraadinho,

  • gosta muito de brincar com um coelhinho branco com olhos escarlates, mas a

    bonne [a criada] no o deixa brincar, pois ele joga o pobre coelhinho com tanta

    fora que ele poderia morrer. Gusty caa ursos [...] Pedro j fica sentado

    sozinho, hoje ele ps um vestido curto pela primeira vez.

    Graas a Deus eu no estou num estado interessante como pensara [...]

    mame Clementina diz que isto acontece muito quando se muda de

    temperatura [...] Gusty mandou fazer um vesturio de eslavo para ele e um de

    paisana hngara para mim [...] Enquanto escrevo para voc, Gusty est

    deleitando os meus ouvidos com uma escala aromtica na sua trombeta [...]

    Em Pohorella: um lugar lindo, tem uma quantidade de flores nos campos e a

    casa rodeada de altas montanhas cobertas de pinheiros, entre outros o

    Knigsberg [...] Ele j come sopa e gosta [...] O clera ainda anda em Viena e

    [pg. 45] nos arrabaldes de Ebenthal [...] Est ficando muitssimo manhoso.

    Chora e grita como um leito quando se no lhe fazem o que quer [...] Temo

    que a guerra v comear outra vez graas ao senhor Bismarck que uma

    grande cabea, mas juntamente um grande traste ... Gusty faz grande matana

    de lebres, enquanto Papai faz bem em no aceitar as condies de Lopez, que

    um traste. Dizem que minha casa est bastante adiantada. Ns temos

    comprado aqui lindas coisas para ela.

    Aprendendo Barbe Bleu de Offenbach [...] o meu Pedro est florescente,

    j se pe de p nos meus joelhos quando eu o seguro e quebra todos os

    bonecos que lhe damos [...] a criada Teresa muitssimo indiscreta, pois

    remexe em todos os papis de Gusty e meus e repete o que l neles. E h

    ainda outros defeitos. Gusty diz que ela s serve para as crianas muito

    pequeninas, pois ela tem muito cuidado quanto ao fsico, mas quando as

    crianas so maiores ela no pode ficar com elas pois muitssimo malcriada

    nas suas expresses e faons [maneiras]. Deus queira que o Caxias faa andar

    aquilo a Guerra do Paraguai. O Pedro j tem dois dentes e j se pe de p

    quando lhe dou as mos. Minha cara D. Isabel de D. Gaston, o grande conde

    dovos de comiches [...] Pedro Malasartes obrigado a beber leite de cabra com

    gua de arroz. A ama enjoada uma senhora veio lhe dar de mamar.

  • Vrias informaes sobre o cotidiano de uma famlia aristocrtica se sucediam

    na correspondncia com a mana nariz de telha. Era comum na casa de Saxe e

    Coburgo que os filhos ficassem sob cuidados diretos da me. A duquesa Sofia, uma

    das matriarcas importantes do grupo, fazia seus filhos dormirem em seu prprio

    quarto, orientava pessoalmente as amas-de-leite, a governanta e os escudeiros que

    serviam aos pequenos. A presena das amas-de-leite, hbito da aristocracia, era

    obrigatria. No era incomum que uma jovem pobre se deixasse engravidar para

    ganhar a vida usando a touca com fitas que as distinguia, aleitando os filhos dos

    ricos. Eram vistas como animais domsticos, mas com uma diferena: detinham

    [pg. 46] um saber antigo sobre o preparo de mingaus e sopas, sobre o tratamento

    do umbigo ou o enfeixamento das costinhas do Beb. No Brasil, o trabalho ainda

    era feito por escravas, amas-de-leite. A vida familiar, entre as classes altas, era

    facilitada por comodidades at ento desconhecidas, como a gua encanada, a

    eletricidade, o aquecimento a gs ou o water closet.

    Neste clima burgus, de consumo e prosperidade, havia espao de sobra para

    frias, festas familiares como aniversrios, batizados e o Natal. Esta, uma ocasio

    nica para mimar os pequenos e surpreend-los com rvores iluminadas por velas.

    A privacidade, esta descoberta maravilhosa, era vivida pelos ricos com todos os

    artefatos do conforto: casas agradavelmente decoradas com madeiras polidas,

    tapetes, pinturas e afrescos. Aos adornos se somava a ampla oferta de roupas e

    mveis. Quadros, estatuetas e presentes que despertassem lembranas sentimentais

    eram bem-vindos. Acessrios em porcelana, cristal e prata criavam um clima sensual

    durante as refeies. A limpeza e o perfume, alm do banho semanal, satisfaziam os

    sentidos. Tudo era deleite: a msica mesmo a trombeta de Gusty ou as operetas

    de Offenbach , o paladar, o olfato as flores de Pohorella. A riqueza estimulava

    o companheirismo entre marido e mulher, bem como entre pais e filhos.

    A tranqilidade, a disponibilidade, a doura de viver, a paz eram valores

    cultivados. A jovem me desmamava o filho somente ao aparecer os primeiros

    dentes, dando-lhe caldo de miolo de po e creme de arroz. Para aliviar as dores da

    gengiva, em vez do mordedor sujo, cascas de po, frutas secas e bastonetes de

    alcauz. O banho era dirio, diminuindo o uso da gua quente, at que a criana

  • fosse lavada, inverno e vero, com gua fria. Havia abundante literatura sobre

    exerccios fsicos e se recomendava engatinhar sem amarras, nem andadeiras.

    Segundo Balzac, a rotina de uma me consistia em saber se a criana estava bem ou

    no. O mais importante: um despertar cheio de beijos, brincadeiras. Uma mulher

    sem filhos era uma monstruosidade!

    E a voz de Leopoldina a contar mana laranjeira: [pg. 47]

    O Pedro cada vez mais espertinho. Ele j tem quatro dentes de cima.

    Pedro bom do catarral. Ele gosta muito de vir comigo. Quando ele quer sair

    do quarto pega no capote e mostra a porta. Ele por ora no fala seno a lngua

    c dele. [...] J engatinha e tem seis dentes. Hoje chegou Mimi de Fernando

    para tomar conta do Pedro. E apesar de ser necessrio para o bem de Pedro

    mandar a throlifus (a ama) embora, me fez muitssima pena despedir-me dela.

    Pedro j se pe de p segurando-se na grade de seu parque e anda segurando-

    se parede. Ele est muito engraadinho mas emagreceu um pouco, creio que

    porque ele foi desmamado. Agora ele come muito. E eu brincalhona como

    sempre. Minha casa, quando estiver pronta, h de ser muito bonita, pena que

    o Brasil no seja ali, j estaria bem contente se fosse assim. Estou fazendo um

    mvel de tapisserie. Cada cadeira tem flores diferentes. Gusty comprou lindos

    quadros para a nossa casa. No pense que no penso na volta. Apesar de estar

    me divertindo muito aqui, tenho bastante saudade de l. Espero que antes do

    fim do ano entre no convento de So Cristvo. Tomara que esta maldita

    guerra com o Paraguai acabe-se bem [...] Pedro muito engraadinho j diz

    Papai, ele grita muito para brincar e corre segurando na beira de seu parque

    quando algum o quer apanhar [...] viu o retrato de Gusty, disse Papai e deu

    um beijo ele est delicioso e se voc o visse havia de se divertir muitssimo. Ele

    se parece muito com Gusty, tem os mesmssimos cabelos encarapinhados.

    Dezenove de maro, um ano de Pedro Malasartes:

    Urubus coroados vm visitar mame. Pedro chama passarinhos pipi. Eu

    no sei que lngua ele falar primeiro, pois ele houve falar como se estivesse na

    torre de babel. Mimi inglesa, tomamos uma sous bonne [uma criada] que irm

  • da retreta da Amelie a qual fala s alemo. Mame fala em francs, Aldina em

    portugus e eu na mistura [pg. 48] de modo que eu creio que ele comear

    por um pot-pourri de lnguas. Tomara que esta Guerra do Paraguai acabe bem

    depressa. Quanto minha volta ao Rio, Gusty conta partir em julho passando

    por Frana, Espanha e Portugal, e embarcar em Lisboa. Gusty tem comprado

    lindos quadros para pr na sala de baile, comprou gravuras de veados de

    Lanzier para pr no corredor, lindssimas. Tudo h de ficar lindssimo.

    Encomendei mveis, canaps, fauteils en tapisserie [poltronas de tapearia]

    em seda e ouro. Partimos pelo paquete ingls de agosto. Pedro muito

    incomodado com febre terrvel e tremores de que eu tive muito medo

    pensando ser convulses, mas felizmente no era nada, uma perturbao da

    digesto. Est andando s. Ficando com apetite de ogro. Fez hoje marcha

    acelerada dando a mo mame para buscar um pedao de po. Quando se

    lhe diz em ingls, beije a mo de mame, ele logo beija a minha. E quando

    Mimi lhe pergunta em ingls o que que o papai disse que fazia se Pedro fosse

    mau, ele logo sacode a mo como se fosse palmada. Pedro abaixou-se perto do

    canap e pegou alguma coisa, eu pensava que era um pedao de papei pintado,

    mas no. Que vontade se me deu de rir quando eu o vi sair do canto

    triunfalmente segurando o penico dele com as duas mos, no sei como este

    carrapato teve fora. Ns iremos trs dias para Paris incgnitos sob o nome de

    baro e baronesa de Esereb, Hotel Mirabeau. Adeus, mana laranjeira.

    Voltaram ao Brasil, em setembro de 1867. Ela j vinha com nova barriga.

    Augusto Leopoldo, o Augustinho, nascia meses depois. O ritual milenar se repetia:

    criadas enchiam a bacia dgua, a parteira molhava as mos para ver que no

    estivesse muito quente, nem muito fria, o sorriso exausto da me quando lhe

    apresentavam o filho. Instalaram-no num bero azul em honra de Nossa Senhora.

    Mais um herdeiro. Sua agonia em relao esterilidade da mana no podia ser

    maior: Tomara j que o Gro-Par [pg. 49] esteja en train, ou seja, chegando. O

    ttulo de prncipe do Gro-Par caberia ao primognito da princesa Isabel que daria

    continuidade monarquia. Mas, nada! No ano seguinte, em 17 de julho de 1868:

    Eu estou com dvida que voc vai ter um outro sobrinho, que eu trocaria bem por

  • um filho para voc. Outra vez, quase culpada, a 12 de dezembro de 1868: Espero

    que as guas virtuosas lhe dem as suas virtudes. Sem mentir, a coisa que desejo

    mais nesta vida que voc tenha um bonito menininho.

    Mas o bonito menininho no chegava, enquanto chegava o vero, em

    Petrpolis. A tia mandava coelhos de presente para o pequeno Pedro, tratado como

    futuro imperador. Leopoldina se queixava das maantes reunies sociais, da chuva,

    da neblina verde, da falta do marido que fora visitar Morro Velho, em Minas, onde,

    ouvira dizer, havia quantidades imensas de ouro. A jovem me lia... Lia a Ilustratton

    Horticole de Binot, aderindo moda das mulheres se interessarem por hortas, pomares

    e cultivo de flores. De volta ao Rio, escrevia mana:

    Lhe mando um cachinho do Pedro. As crianas vo bem. Pedro sempre

    gordo, mas cheio de brotoejas o que o faz muito feio. O Augustinho j est

    desmamado e muito gordinho, ele j quer andar, mas por ora no vai bem seno

    quando se agarra s cadeiras. Passou o ano: Ns fazemos este ano uma rvore de

    Natal para os pequenos. Eles se ho de divertir muito, pois que ambos tm a paixo

    dos brinquedos. Eles j brigam por acharem a galinha do vizinho mais gorda do que

    a minha. E em maio de 1868, de novo, a coisa que mais desejo nesta vida que

    voc tenha um bonito menininho bem parecido com quem sei s. E a criana no

    chegava... Gaston se admirava de sua mulher no ter inveja da irm.

    Aos 3 anos, Pedro comeou a ser ensinado a falar portugus, pois isso far

    gosto a papai. Todos dizem que voc vai viajar para a Europa; eu respondo que no

    sei de nada [...] Augustinho d