_heiner muller - sobre o pos-modernismo

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  • 8/3/2019 _Heiner Muller - Sobre o Pos-Modernismo

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    Revista Critica de Ciellcias Socials n," 4/ 5 Outubro J980

    HEINER MOLLER (.)

    SOBRE 0 POS-MODERNISMO1

    Orleu,o cantor, era um homem incapaz de esperar, Tendoperdido a mulher, por dormir com ela cedo demais depots doparto ou por, ao ascender dos Infernos ap6s te-la libertado damorte com 0seu canto, infringir a. proibi~ao de a olhar, regres-sandoela ao p6 antes de aer outra vez carne, ele inventou apederastia, que dispensa 0pacta e esta mals proxima da mortedo que 0 amor a mulheres . .k!,. que desprezara perssgutrsm-no:com as armas dos seus corpos ramos pedras. Mas a cam;anprotege o cantor: 0 que ele tinha celebrado com 0 seu cantonero a pele podia arranhar-lhe, Camponeses, assustados com 0barulho da eacada, abandonaram os arados, para que n a nhouvera lugar na cangao. Assim, 0' seu Ingar foi debaixo dosarados.

    (.) Heiner MUller, nascido em 1929 em Eppendorf, na Saxonia, desem-penha actualmente as t :Ul lyOes de dramaturgistana 'V,o,]ksbUhne de Berlirn('RD.A). Urn dos ma~s iruportan:tes dramatuzges de liong,ua a.lema des nOMOSdias, ele tern sido publieado e representado, a ,partiT, sobretudo, dos aaossetenta, ilIiio s6 na RiF.A. como noueros paises, nomeadarnente nos B.U.AAs suas pecas, concebidas como oo!l1'ribu;i~ii,opara um teatro que seja um labo-ratorio de fantasia social e nao um ernausoleu da .literatura, inserem-se natradi~o brechtiana, mas smma perspective de orig'inalldade cri,tica que sedemarea elaramente da hagjografia oficial. Trara-se, para Minier, de re-pensara fun~.d.o teatro (e da arte em geral) nurn tempo e'l1WD Iugar bern determi-nados {aotes de rnais, (1):3. sociedade do socialismo rea! da R.D.A.), '0 queimplioa necessariamente uma problemabizayii.o profunda e dolorosamente luoida,nan apenas da tradicao ,Hteraxia n3.6 suas diferentes formas, mas eambem dacristalizacao de todo urn 'passado his't6rico nos varies mitos que marcarn '.0quotidiano dessa sociedade, Nesta perspectiva se inserem peyas como Mauser,Zement (Cimento), Germania Tod in Berlin (Germania Morte em Bedim), DieSchlacht (A BoJalha), para oitar apenas a,JglllllS titulos,

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    12 H eil1J& M iil/er2A lfiterratura comtpete (1Q pDVo (Kafka).3

    Escrever em condieoes em que a consciencia do earacterassocial da eserita ja nao p0de ser reprimida, 0 talento e jaem sl urn privtlegio ; 08 privilegios, ha, que paga-los: 0 contri-buto que se d a para a expropriaes de 81 proprio e urn doscriterios do talento, Com a economia de mercado cai tambema ilusao da autonomia da arte, uma condicao previa do moder-nismo, A economia planificada nao deixa a arte de lado, da-lhede novo uma fun~Jio social. 'E'nquanto nao deixar de ser arte(uma actividade limitada, como a via Marx), ela nao pode serlibertada dessa fun~ao.Entretanto, esta actividada e desempenhada - tambemno pais donde venho - por especialistas maw au menos quali-ficados para em. 0 nivel de cultura nan pode ser aumentadose DaO for alargado. No $ m . . O ' 9 dos meios de comunicacao, quetambem no pais donde venho rouba a s massas a visao da aitua-gao real, lhes apaga a memoria e lhea torna a fantasia 'esteriI,o alargamento faz-se a custa do nivel, No re imo da necesOSl idade)realismo e caracter -popular da arte sao duas coisas distintas.o corte passa atraves do autor.No que se refere a s eondicdes do meu trabaiho, encon-tro-me, para ja , desfasado quanta ao problema, que vos oeupa,o aneu papel nao eo-de Polonio, 0primeiro comparatista daliteratura dramatica, e menos que tudo no seu dialogo comHamlet sobre 0 aspecto -de urea certa nuvem, dialogo quedemonstra, na miseria da comparaeao, a miseria real das estru-

    o esforeo para pensar rigorosamente as poss l bWdade.< i e l imites con-eretos da arte e da -lHeratura perante as exigencias e condicionalismos concretesdo aqui e doagora e bern patente rro teno que apresentamos em :tradu!,iio eque constitai a ~'l l i1:erven!;! iiode H. Miil ler no oongresso de 1978 da ModernLanguage Association, associa!;!ao que anualmente organiza em Nova Iorqueum a reuniao magna de especial istas de

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    P 6# . - M odemismo 1' 3turas depoder. Mas tambem nao e , infelizmente, 0 do ciganocia peca em um acto de Lorca q1l transforma 0 oficial daguardia civil que 0 interroga num feixe de nerves aos gritos,ao dar respostas absurdamente surrealistas as perguntas dapolicia sobre a data e 0 local de nascimento, 0 nome, 0apelido, etc,Nao sou capaz de separar a questao do poe-modernismoda politica. A periodiza(]aosera umapoUtica colonialistaenquanto a historia nao for historia universal, 0 que pressup(')a igualdade de opcrtunidades, mas sim 0 dominic de eHrtesatraves do dinheiro ou do poder. Talvez noutras culturas voltea surgir, sob diferente forma, enriquecido desta vez pelas aqui-sif

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    como descrevem 0 mito de Orfeu na versao de Ovidio ou iaprosa de Beckett. Uma cidade que se eonstitui a partir dapropria ruina. Um sistema que. censiste na SUa propria explosao.A metropole do diletantismo: a arte e 0 que se quer, nao 07quese e capazds fazer. Uma cidade isabeHna: a apareneia da livreoJ)!;ao e uma ilusao de liberdade, .

    Warhol em Basileia,Rauschenberg em Colon.a, s a o aeon-tecimentos; no eontexto de Nova Iorque, reduzem-saa aintomas,o teatro de Rober.t Wilson, tao. ingenuo como elitasta, dancaem pontas infantil, jogo matematico de crianca, nao fazdis-tinCao entre 'amadores e profissionais. Perspectiva de urn teatroIpico CO I D O Brecht o eoncabeu e nao realizou, com um minimode esfo:r~ de direccaoe superior it 'psrvereidade de transformarum Iuxo em profissao, As pinturas murals das minoriase a arteproletaria do metropolitano, anonimass feitas com tintas rou-badas, ocupam um espaeo que 0mercado ja nao abrange. Ante"cipaga-o, na roi.seria dos desprivilegiados, do reino da liberdade:.que esta para alem dos privilegios. Parodia da visao marxistada superacao da arte numa sociedade cujos membros sao, entreoutras coisas, tambem artistas,5

    .Enquanto a liberdade se basear na violeneia e 0 axereicioda arte em privllegios, as obras de arte tenderao a ser prisoese as obras-primae cumplices do pader. Os grandes textos doseculo trabalham para a liquidacao da sua autonomia, produtcdo deboche com a propriedade privada, trabalham para a expro-pria(]ao e, em ultima analise, para 0- desaparecimento do autor.o que permanece e o que e fugaz. 0 que esta em fuga perma-neee, Rimbaua e a sua evasao para Africa, da Iiteratura para.0 deserto. Lautreamont, a eataetrofe an6nima .. Kafka, queesereveu para a fogueira, porque nao queria conservar a almacomo 0Fausto de Marlowe; recusaram-lhe as einzas, Joyce, umavoz para alem da literatura. Maiakovski eo seu voo em quedalivre dJosceu d !a pceeia para a arena das Iutas de classes, o seupoema 1 50 M iilJ I,Q e s traz 0nome do autor; 1 50 M ilh Oe B. Osuicidiofoi a resposta a assinatura que nao ve io . Artaud, a Iinguagemdo sofrimento sob a sol da tortura, a unica que ilumina todosos continentes deste planeta ao mesmo tempo. Brecht, que viuo Animal Novo- que vira substitutr o homem, Beckett, a ten-tativa de toda uma vida parasilenciar a propria voz, Duasfiguras da poesia que, na hora da incande scencia , se fundemnoma s6: Orfsu, que canta sob as arados, Dedalo, voando pelosintestinos labirinticos do Minotauro.

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    Pw-M(1dernh,mo ..,

    A literatura participa d a . HistOria participando do moyi-mento da lingua, que comeca per se proeessar nos usos quo-tidianos, e nao no papel, : m neste sentido que ela compete aopovo e que os analfabetos s a o a esperanga cia literatura. Tra-balhar para 0desaparecimento do autor e resistir ac desapare-cimento do homem. 0 movimento da lingua e alternativo:o silencio da entropia ou 0 discurso universal que nada deixade fora e ninguem exclui. A primeira frJrm;a c ia espera~a e 0medb~ a primeira manifestao do novo e 0horror.

    (tradu!;io de Ant6nio Sousa Ribeiro)