heimito von doderer - a flagelação das bolsinhas de camurça seguido de um outro...

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HeimitovonDoderer AFLAGELAODAS BOLSINHASDECAMURA seguidode UMOUTRO KRATKI-BASCHIK traduo JosA.PALMACAETANO ASSRIO&ALVIM ASSIRIO &ALVIM (2004) RUA PASSOS MANUEL. 67 B, 1150-258 LISBOA VERLAG C.H. BECK OHG, MUNIQUE, 1995 EDIO 0786, ABRIL 2004 ISBN 972-37-0810-8 NOTAPRVIA J os A. Pal maCaet ano OescritoraustracoHeimitovonDodererfaleceu em Viena a 23de Dezembro de1966.Cerca de ano e meio antes,a 8de Junho de1965,tinha-me ele concedido uma entrevista que foi publicada no joral d Letrae Artes,deLisboa,n.2 15,de10deNovembrode1965,efimaistardetambmincluda,na suamaiorparte,numapublicaodehomenagem aoescritorapsasuamorte,constitudaportrabalhosdegrandenmerodosseusamigoseorganizadapor XaverSchafgotsch -um livro justamente intitulado Ernnerungen an Heimito von Doderer(Recordes d Heimito von Dodr), publicado pela EditoraBiederstein,deMunique,em1972.Almdisso, esta entrevista fi ainda gravada em disco,nos Estados Unidosda Amrica,peloProfIvarIvask,dequemse falanaentrevistaeparao qualDodererleutambm nesseseroalgunstrechosdasuaobra.Ivarlvask, que era natural deRiga,na Letnia,e tive o prazer de conhecerpessoamenteem Vena,fidurantemuitos anosdirectordarevistaBooksAbroad,daUniversidadedeOklahoma,quepublicounon. 3,vol. 42, 7 Vero de1968,um conjunto de trabahos dedicados aoescritoraustraconumasecoespecialcomo ttuloASymposium onHeimito von Doderer, no qualtambmmefidadocolaborarcomumpequenoestudointituladoTheShortStoriesofHeimito von Doderer,em que,no entanto,considerei apenas o volume Die Peinigung dr Ledrbeutelhen( F/ge/odBolinhadCamura),doqualframextrados os dois contos que neste volume se publicam. Gostaria de acrescentar ainda que o conhecimento quetraveicomHeimitovonDodererfiparamim degrandeimportncia,poisaumentouemlargamedidaointeressequejtinhapelasuaobraedespertou-me a ideia de a estudar com mais profndidade e sobre ela escrever um trabalo. Esse projecto demorou algunsanos,maacabeipor o levar a cabo e o estudo querealizeisobre otema HumoreGrotesconaObra deReimitovonDodererconstituiuaminhatesede doutoramento na Universidade de Viena. Esperoqueapublicaodosdoiscontosque fguramnestevolumepossaserumprimeiropasso paraadivulgaodaobradeHeimitovonDoderer emPortugal,emespeciadosseusromances,quese contam,sem dvida,entreosmaisnotveis da literatura austrac nos meados do sculo X. 8 AFLAGELAO DASBOLSINHASDECAMURA Poucosdias depois do enterrodeCoyle,o velho avarento,apareceuemminhacasaMr.Crotter,em tempososeuamigomaisntimoeonicohemem na nossa cidade,e de maneira geral em todo o distrito, de quem se podia dizer que era anda mais rico que o recm-flecido;naverdade,os seus havereserammesmoconsideradosvriasvezessuperiores.Orelgio marcava exactamente nove horas quando Mr.Crotter chegou.Euestavasentadojuntodolume,ondeacabaradetomaropequeno-almoo,etinhaaindana moa chvena dech.Lfrapairavaemfentedas janelas uma bruma fmacenta de Inverno. -To cedo?!-disseeu,levantando-me e cumprimentandoovelhosenhor.- Halgumacoisa de novo? Eu tencionava passar hoje por sua casa cerca domeio-dia(eueranessaalturaaindaadvogadode Crotter)eosenhord-melogodemanhahonra dasuavisitanaminhamodestacasa -edizendo isto ofreci-lhe uma cadeira e um charuto. -Oia,- proferiuele,apsalgumasfmaas -euiaapassarporaquieveio-meaideiadeque 11 vocum jovembastantesensatoeporissomedecidi a subir imediatamente e aflar consigo sobre um assunto que diz respeito ao fecido Coyle. -A! . . . -disse eu. -Por causa do testamento? -Esteconstituaagoraumassuntofequente deconversananossacidade,oque,pormuitasrazes,pareceabsolutamentecompreensvel. quea princpio,logoapsovelhoharpagotersofido mais uma vez, mas ento defnitivamente,um ataque deapoplexia,nofrapossvelencontrarqualquer apontamentosobre asua ltima vontade;mas agora todaagentepareciacheiadecuriosidadedesaber quedisposieshaverianessedocumento -quefnalmente,comodesdeaantevsperaconstava,fra descoberto -sobreodestinoadaratogrande frtunae se pelo menos aparquiaou umainstituiopblicadebenefcnciateriarecebidoqualquer legado,etc. -Osenhorporventura citadonotestamento -perguntei eu -ou ter mesmo parte na herana? -Isso que eu ainda no sei, -disse Mr.Crot-ter -porqueotestamentoestaserabertoagora. Encontreiporacasoonotriohmeiahoranarua e,dequalquermodo,disse-lhequeestariaaquiem suacasa.Alis,segundoouvidizer,apareceramparentes,umaflhanaturaloucoisaparecida.Equero 12 que voc fque tambm a saber que,verdadeiramente, notenho qualquerraoparacobiarumaherana e,seovelhoCoylemetiverdeixadoqualquercoisa devalor,eu entrego-a imediatamente ao proco,pois nodesejo de maneira nenhuma os tesouros acumulados por esse asqueroso velho avarento. -Desculpe, -disse eu com uma leve admirao -masosenhoreraoseunicoamigo,eramesmo a nica pessoa com quem ele tinha relaes.Era voz corrente que ele nem sequer tinha criados. -Absolutamenteningum.Haviaumavelha qualquerquevinhaduranteodia,cozinhavaetratavadomaisnecessrio.Elecostumavapr-seatrs dela na cozinha,para tomar conta,no fsse ela deitar gordura de mais na figideira.Eu mesmo presencieiisso.Daquidacidadeataovelhopardieiroa que ele chamavaa suacasa tinha deandar unsbons trs quartosde hora e,apesar da idade avanada,fzia-o sempre a p,quando chegava a sair alguma vez docovil.Aopassaremfentedapraadostrens, comumarbamboleante,oscocheiroscostumavam gritar-lheinsolncias.Realmentevoctemrazo, doutor,eleviviacompletamentes.Nomeuentender,tambm no merecia outra coisa.Quando eu ia lacasa -epasseiafaz-losemprenonovocarro decaacomosdoisalazes,porassimdizerparao 13 arreliar -,quandoia,portanto,lacasa,ocriado tinha de arranjara comida para levar;e nem s isso, poisatquandoquerialtomarumachvenade ch,mandavalogolevartudo,servio,ch,acar, mesmoolcoolparaamquinadech.Umavez noleveinada.Elecomeutranquilamentecoma colher,comocostumavafazernoite,assuassopinhas de leite com po j de muitos dias e eu fquei a v-locomer.Ele nunca me ofereceu fsseo que fsse, iem sequer tabaco para encher um cachimbo. - Bem,pode-sedizerrealmente- disseeu, rindo- queasuasrelaescomofalecidoCoyle pelomenosnotiveramquaisquermotivosinteresseiros!Noentanto -perdo,Sir,evidente que eu nadatenhocomisso -,maspoder-se-iaperguntar oquequeteratradoumapessoato jovialeto generosacomo o senhor, justamentenoqueserefere coisasmateriaisda vida,paraessevelho . . .harpago.Querdizer:quasesepoderiaacreditarqueo senhorprecisavadeCoylesimplesmenteparaodetestar . . .sedeoutromodomepermitidaumapequenaincurso na psicologia . . .-De maeira nenuma! -disse ele vivamente, e o seu rosto um tanto grande alongou-se ainda mais, de modoque as sobrancela,dobradasem frma de umtelhadoeaindade um negroprofndo,setrans-14 formaramporassimdizeremchapelinhos pontiagudos. -De maneira nenhuma! -gritou ele de novo. -Nem pensar nisso!Nunca senti averso porCoyle nemoodiei.Oquequevocpensa?No- no fndo eleeraum homem interessantee muito inteligente.Coyleviutodoomundonajuventude.Eu eracapaz de oouvirhorasehoras.Claroque no se podia olhar para ele, pois parecia uma planta bulbosa ouumcepoambulanteecmico.Amdisso,uma pele como a do pipa,o sapo-aru.Enfm,Deustenha a sua alma em descso.No entanto, -e agoraoia bem,meu jovem amigo,pois este o assuntode que euverdadeiramentelhequeriafalar- noentanto, emrelaoaCoyle,euodieidefctonosltimos meses,emesmodafrmamaisviolenta,noofalecido,nemquaquerpessoa,masumacoisamorta ou,maisexactamente,umasriedecoisasmortas. Euvimaquidecertomodoparadesabafarconsigo, oumesmo,seassimquiser,parameconfssar -coisaestranha,eu,umvelho,aconfssar-meaum JOvem. -Asuaconfanaumahonraparamim-disse eu,pois de momento no me ocorreu nada melhor.Euestava desarmado enaturalmentesem saber do que se tratava.-Permita-me apenas -continuei, talveznodesejodeganhartempoe,portanto,de me 15 recompor -,permita-meapenasquetelefneao meucolegaque osenhorencontrouhojede manh, antesdeaquichegar.Talvezelejmepossadizer comoestaquestodotestamento,principalmente no que lhe diz respeito,Mr. Crotter. E,logo aseguir,pegueino auscultador dotelefne. Onotriodisse-me:Nemcomumapalavrinha quefsseelerefriunotestamentoovelhoCrotter, uma coisa no fndoabominvel,j que este fi ainda assimonicoaocupar-sedelenosltimostempos -mas as pessoas deste gnero so assim,mesquinha atparaalmdasepulturaeaindaporcimaingratas -sim,apobreflhavai naturalmente receber tudo,. quetambmnoh ningum queoconteste -tenhoaquiumacartafchada,dirigida"a Mr. Crotter, para serentreguedepoisdaminhamorte"-o velho estaindaaconsigo,doutor?Sim?Vaifcrtavez muito desiludido?!No?Ento tato melhor. Eu mando-lhea acartapelomeu empregado dentro de meia hora. Mr. Crotterqueassineoavisoderecepoeo assunto fca arrumado. Coisasdestas faem-se,semgrandes frmalidades, naspequenascidadesda provncia,onde as pessoas se conhecem umas outras,e mais ainda entre colegas. Participeiaomeuvisitanteoquetinhaacabadode saber,naturalmentesemmencionarasobservaes 16 do notrio. Mr.Crotter manifestou-se pouco interessadoesaoouvirfalarnacquedeviamtrazer dentrodemeiahoralevantouderepenteacabea, parecendosar de uma medtao em que tinha mergulhado durante o meu telefnema. -Oia-me l bem, -disse ele logo a seguir,reatando imediatamente a conversa anterior-pois no lhe ser muito fcil manifestar-me a sua compreenso neste assunto e eu preciso mesmo de mais do que isso, precisofancamentede . . .consolao.Estevelhoh poucofaecidotinha,nodecursodasualongavida, coleccionado as coisas mais variadase,como pode fcilmenteimaginarnocasodeMr.Coyle,notero sido justamente coisas com um mero valor de estimao.Ora um dia levou-me atravs de toda acasa at a umquartoafastadonaalaesquerda -eraevidente que os aposentos atravs dos quais seguamos estavam desabitados,obscurecidosporadufas fchadaseindizivelmente fios.Coyle limitava-se, claro,a um nicoquarto.Quandochegmosaofndo,acendeua lu e abriu,no quarto completamente cheio de p mas bastanteespaosoemquenosencontrvamos,um velhoguarda-fto,que aprincpio no pareciaconter maisquealgumasgabardinasesobretudos.Noentanto,depoisdeMr.Coyleosterafastadoapareceu 17 uma caixa de ferro,uma caixa slida,embora,como verifquei primeira vista, de construo antiqussima, porassimdizerdaeradosafonsinos. Euestouhoje absolutamente certo dequetudooqueentoaconteceufiumamanifestaodamaior,deumaextraordinriaconfanadapartede Mr. Coyle. E isso justamentetornaascoisaaindapiores. Eleabriuo cofe -pude verlogo comoa fchaduraeraprimitiva -edeixouqueeuolhasseparaoseuinterior. L dentro reinava por assim dzer uma ordem perfita. luzfrtedalmpadaelctrica,queincidiadirectamente naparteinterna,vi que a se encontravam-em prateleiras cobertas de um estof espesso de veludo vermelho e dispostaumassobreasoutras,em frma dedegraus,semelhanadoqueacontecenasvitrinasdosmuseus -,sentadasemtrsflas,pequenas bolsasdecamura. Reparebemqueeudigoqueestavam sentads. -Sim -disseeu. - Mastambmsepoderia dizer:estavam em p;ou:estavam deitadas. -No,de maneira nenhuma. Compreenda bem: osentadodestasbolsaseradetalmaneiraevidente, paranodizerpenetrante,queparacadaumadelas fifradoaimaginarimediatamenteumasperninhas,que sebamboleavamdas prateleiras abaixo(eu 18 estavaadmiradocomideiastoinfntisnumhomem jidoso)e,vejabem,doutor,fiissoqueme irritou. Sim. Foi assim que comeou. -Como ... porque que se irritou? -Em rigor ... por causa do sentado. -Como?! -griteieu,ligeiramente enfrecido e,sentia-o,porumaqualquerfrmarepugnantej contagiadoporele. -Masnarealidadenohavia perninhas nenhumas?! -Claro que no. Ela tambm no so absolutamente necessrias para esta sentado. Este estar sentado era provocado antes ... -Desculpe...-interrompi-o eu.-O senhor querdizer:aimpressodeestarsentadoeraprovocada ... -Estbem,seja! -disseele,com umaligeira impacincia.-Aimpressoera,portanto,provocadapelofctodeestessujeitinhosteremverdadeiramenteafrmadecogumelosinvertidos:amplos, graves. O que em seguida notei fique cada um deles tinha fenteum grandenmerona barriga,estampadoaescuronacamuracinzenta. Eramaotodo trinta e seis, os nmeros um a doze na prateleira infrior,treze a vinte e quatro na do meio e vinte e cinco a trintaeseisnadecima,dispostosdaesquerdapara a direita. Coylemostrou-metambmumndiceque 19 estavaafxadointeriormentenaportadocofeeindicavaexactamenteocontedodecadaumadestas criaturas.Porexemplo:nmerovinteetrs,esmeraldas,trintaenovepeas,lapidagem,peso,tudo anotadoempormenor . ..Estavaaliacumuladauma frtuna.Onmerotrintaedoiscontinhaosbrilhantesmaisindescritveis,comoeununcatinha vistojuntos,nem de tal tamanho,nem em tal quantidade.Almdisso,cadapedraencontrava-seainda numinvlucrode camura,que estava marcado com umaletradoalfbetoenarelaodocontedode cadaumadasdiversasbolsinhasfguravamtodosos dadossobrecadapedra.Adosnmerosdezacatorzecontinhamprolasdeumtamanhofbuloso. Nasqueestavam numeradasde dezoitoa vinte e trs estavamencerradososchamados