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Atenção Primária em Países de Baixa e Média Rendas 1-1 CAPÍTULO e1 ©2013, AMGH Editora Ltda. Todos os direitos reservados. CAPÍTULO e1 Atenção Primária em Países de Baixa e Média Rendas Tim Evans Kumanan Rasanathan O século XX testemunhou o surgimento de uma separação global sem precedentes na saúde. Os países industrializados ou de alta renda experimentaram uma rápida melhora nos padrões de vida, nutrição, saúde e cuidados em saúde. Enquanto isso, nos países de renda baixa e média e de condições muito menos favoráveis, a saúde e os cuida- dos em saúde progrediram de maneira muito mais lenta. A escala dessa separação se reflete nos extremos atuais da expectativa de vida ao nascer, com o Japão na extremidade maior (82 anos) e Serra Leoa na extremidade menor (32 anos). Esta diferença de 50 anos reflete a assustadora gama de desafios para a saúde que é encontrada nos países de renda baixa e média. Essas nações enfrentam não apenas uma mistura complexa de doenças (infecciosas e crônicas) e condi- ções que provocam doenças, mas principalmente a fragilidade das fundações que sustentam a boa saúde (p. ex., alimentos suficientes, água, saneamento e educação) e dos sistemas necessários para o aces- so universal para uma atenção à saúde de boa qualidade. Nas últimas décadas do século XX foi reconhecida a necessidade de diminuir essa distância em termos de saúde global e estabelecer uma igualdade de condições de saúde. A Declaração de Alma Ata em 1978 solidificou uma visão de justiça na saúde independentemente de renda, gêne- ro, etnia ou educação e apelou por uma “saúde para todos até o ano 2000” por meio da atenção primária à saúde. Apesar de muito pro- gresso ter sido feito desde a declaração, ao final da primeira década do século XXI ainda há muito para ser feito a fim de alcançar a igual- dade global na saúde. Este capítulo analisa primeiramente a natureza dos desafios da saúde nos países de renda baixa e média os quais criam essa divisão na saúde. Depois disso ele descreve os valores e princípios de uma abordagem de atenção primária focada nos serviços de atenção pri- mária. Posteriormente, o capítulo revisa a experiência dos países de renda baixa e média para lidar com desafios na saúde através de cui- dados primários e uma abordagem para atenção primária. Por fim, o capítulo identifica de que forma os desafios atuais e o contexto global fornecem uma agenda e oportunidades para a renovação dos cuida- dos de saúde primários e da atenção primária. ATENÇÃO PRIMÁRIA E CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS O termo atenção primária tem sido usado de várias maneiras dife- rentes: para descrever um nível de cuidados ou ambiente do sistema de saúde, um conjunto de atividades de tratamento e prevenção rea- lizadas por pessoal específico, um conjunto de atributos para a forma como os cuidados são oferecidos ou uma abordagem para organizar os sistemas de saúde que é sinônima do termo cuidados de saúde pri- mários. Em 1996 o U.S. Institute of Medicine englobou todos estes diferentes usos ao definir cuidados primários como “a provisão de serviços de cuidados em saúde integrados e acessíveis por médicos capazes de abordar a grande maioria das necessidades em cuidados de saúde pessoais, desenvolvendo uma parceria sustentada com os pacientes e trabalhando no contexto de família e comunidade.”1 Usamos essa definição de atenção primária neste capítulo. A atenção primária desempenha uma função essencial nos sistemas de saúde, fornecendo o primeiro ponto de contato quando as pessoas procu- ram cuidados em saúde, lidando com a maioria dos problemas e en- caminhando os pacientes para outros serviços quando há necessida- 1 Institute of Medicine. Primary Care: America’s Health in a New Era (1996). de. Como fica cada vez mais evidente em países com qualquer nível de renda, sem uma atenção primária forte os sistemas de saúde não funcionam de maneira adequada nem resolvem os desafios da saúde em sua comunidade. A atenção primária é apenas parte de uma abordagem para cui- dados de saúde primários. A Declaração de Alma Ata, firmada em 1978 na International Conference on Primary Health Care em Alma Ata (atualmente Almaty no Cazaquistão), identificou muitas carac- terísticas da atenção primária como sendo essenciais para alcançar o objetivo de “saúde para todos até o ano 2000”. Porém, ela também identificou a necessidade de trabalhar em conjunto com diferentes setores, considerar fatores sociais e econômicos que determinam a saúde, mobilizar a participação de comunidades em sistemas de saú- de e garantir o uso e o desenvolvimento de tecnologia apropriada em termos de cenário clínico e custos. A declaração surgiu das experiên- cias de países de renda baixa e média para tentar melhorar a saúde da população após a independência. Muitos destes países construíram sistemas baseados em hospitais semelhantes aos dos países de alta renda. Esse esforço resultou no desenvolvimento de serviços de alta tecnologia em áreas urbanas enquanto deixava a maior parte da po- pulação sem acesso ao sistema de saúde a menos que viajassem gran- des distâncias até esses serviços urbanos. Além disso, grande parte da população não tinha acesso às medidas básicas de saúde pública. Os esforços dos cuidados de saúde primários visavam levar os cuida- dos para mais perto da população para garantir o seu envolvimento nas decisões sobre seus próprios cuidados de saúde e para abordar os principais aspectos do ambiente físico e social fundamentais para a saúde como água, saneamento e educação. Após a Declaração de Alma Ata muitos países implementaram reformas em seus sistemas de saúde baseadas em cuidados de saúde primários. A maior parte do progresso envolveu o fortalecimento dos serviços de cuidados primários; de maneira inesperada, toda- via, muito deste progresso foi visto em países ricos, a maioria dos quais construiu sistemas que tornam a atenção primária disponível com um custo baixo ou ausente para toda a população e que ofere- cem a maior parte dos serviços em ambiente de atenção primária. Esta mudança também viu o fortalecimento da medicina de família como especialidade para fornecer serviços de cuidados primários. Mesmo nos EUA (uma exceção óbvia a essa tendência) ficou cla- ro que a população dos estados com mais médicos e serviços de atenção primária eram mais saudáveis do que aquelas com menos recursos desse tipo. Também houve progresso em muitos países de renda baixa e mé- dia. Porém, o desafio de “saúde para todos até o ano 2000” não foi alcançado nem de longe. As razões são complexas, mas parcialmente explicáveis por uma falha geral na implementação de todos os as- pectos da abordagem de cuidados de saúde primários, em especial o trabalho conjunto de vários setores para abordar fatores sociais e econômicos que afetam a saúde e a provisão de recursos humanos e de outros tipos em quantidade suficiente para tornar possível o aces- so à atenção primária como em países ricos. Além disso, apesar do consenso em Alma Ata em 1978, a comunidade da saúde global logo rompeu o compromisso com as medidas de longo prazo colocadas na declaração. A recessão econômica diminuiu o entusiasmo com a atenção primária e a tendência mudou em direção a programas que se concentram em poucas medidas prioritárias como imunização, reidratação oral, amamentação e monitoração do crescimento para a sobrevivência de crianças. O sucesso dessas iniciativas sustentou o movimento continuado dos esforços em saúde para longe da abor- dagem mais abrangente da atenção primária e em direção a progra- mas que focam em objetivos específicos na saúde da população. Essa abordagem foi reforçada pela necessidade de lidar com a epidemia de HIV/Aids. Na década de 1990 a atenção primária perdeu espaço para muitas políticas de saúde globais e os países de baixa e média rendas estão sendo encorajados a reduzir os gastos com saúde no setor pú- blico e se concentrar em análises de custo-efetividade para fornecer um pacote de medidas de cuidados de saúde que supostamente ofe- rece os maiores benefícios. endas

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©2013, AMGH Editora Ltda. Todos os direitos reservados.

CAP ÍTULO e1Atenção Primária em Países de Baixa e Média RendasTim Evans

Kumanan Rasanathan

O século XX testemunhou o surgimento de uma separação global sem precedentes na saúde. Os países industrializados ou de alta renda experimentaram uma rápida melhora nos padrões de vida, nutrição, saúde e cuidados em saúde. Enquanto isso, nos países de renda baixa e média e de condições muito menos favoráveis, a saúde e os cuida-dos em saúde progrediram de maneira muito mais lenta. A escala dessa separação se reflete nos extremos atuais da expectativa de vida ao nascer, com o Japão na extremidade maior (82 anos) e Serra Leoa na extremidade menor (32 anos). Esta diferença de 50 anos reflete a assustadora gama de desafios para a saúde que é encontrada nos países de renda baixa e média. Essas nações enfrentam não apenas uma mistura complexa de doenças (infecciosas e crônicas) e condi-ções que provocam doenças, mas principalmente a fragilidade das fundações que sustentam a boa saúde (p. ex., alimentos suficientes, água, saneamento e educação) e dos sistemas necessários para o aces-so universal para uma atenção à saúde de boa qualidade. Nas últimas décadas do século XX foi reconhecida a necessidade de diminuir essa distância em termos de saúde global e estabelecer uma igualdade de condições de saúde. A Declaração de Alma Ata em 1978 solidificou uma visão de justiça na saúde independentemente de renda, gêne-ro, etnia ou educação e apelou por uma “saúde para todos até o ano 2000” por meio da atenção primária à saúde. Apesar de muito pro-gresso ter sido feito desde a declaração, ao final da primeira década do século XXI ainda há muito para ser feito a fim de alcançar a igual-dade global na saúde.

Este capítulo analisa primeiramente a natureza dos desafios da saúde nos países de renda baixa e média os quais criam essa divisão na saúde. Depois disso ele descreve os valores e princípios de uma abordagem de atenção primária focada nos serviços de atenção pri-mária. Posteriormente, o capítulo revisa a experiência dos países de renda baixa e média para lidar com desafios na saúde através de cui-dados primários e uma abordagem para atenção primária. Por fim, o capítulo identifica de que forma os desafios atuais e o contexto global fornecem uma agenda e oportunidades para a renovação dos cuida-dos de saúde primários e da atenção primária.

ATENÇÃO PRIMÁRIA E CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS

O termo atenção primária tem sido usado de várias maneiras dife-rentes: para descrever um nível de cuidados ou ambiente do sistema de saúde, um conjunto de atividades de tratamento e prevenção rea-lizadas por pessoal específico, um conjunto de atributos para a forma como os cuidados são oferecidos ou uma abordagem para organizar os sistemas de saúde que é sinônima do termo cuidados de saúde pri-mários. Em 1996 o U.S. Institute of Medicine englobou todos estes diferentes usos ao definir cuidados primários como “a provisão de serviços de cuidados em saúde integrados e acessíveis por médicos capazes de abordar a grande maioria das necessidades em cuidados de saúde pessoais, desenvolvendo uma parceria sustentada com os pacientes e trabalhando no contexto de família e comunidade.”1 Usamos essa definição de atenção primária neste capítulo. A atenção primária desempenha uma função essencial nos sistemas de saúde, fornecendo o primeiro ponto de contato quando as pessoas procu-ram cuidados em saúde, lidando com a maioria dos problemas e en-caminhando os pacientes para outros serviços quando há necessida-

1 Institute of Medicine. Primary Care: America’s Health in a New Era (1996).

de. Como fica cada vez mais evidente em países com qualquer nível de renda, sem uma atenção primária forte os sistemas de saúde não funcionam de maneira adequada nem resolvem os desafios da saúde em sua comunidade.

A atenção primária é apenas parte de uma abordagem para cui-dados de saúde primários. A Declaração de Alma Ata, firmada em 1978 na International Conference on Primary Health Care em Alma Ata (atualmente Almaty no Cazaquistão), identificou muitas carac-terísticas da atenção primária como sendo essenciais para alcançar o objetivo de “saúde para todos até o ano 2000”. Porém, ela também identificou a necessidade de trabalhar em conjunto com diferentes setores, considerar fatores sociais e econômicos que determinam a saúde, mobilizar a participação de comunidades em sistemas de saú-de e garantir o uso e o desenvolvimento de tecnologia apropriada em termos de cenário clínico e custos. A declaração surgiu das experiên-cias de países de renda baixa e média para tentar melhorar a saúde da população após a independência. Muitos destes países construíram sistemas baseados em hospitais semelhantes aos dos países de alta renda. Esse esforço resultou no desenvolvimento de serviços de alta tecnologia em áreas urbanas enquanto deixava a maior parte da po-pulação sem acesso ao sistema de saúde a menos que viajassem gran-des distâncias até esses serviços urbanos. Além disso, grande parte da população não tinha acesso às medidas básicas de saúde pública. Os esforços dos cuidados de saúde primários visavam levar os cuida-dos para mais perto da população para garantir o seu envolvimento nas decisões sobre seus próprios cuidados de saúde e para abordar os principais aspectos do ambiente físico e social fundamentais para a saúde como água, saneamento e educação.

Após a Declaração de Alma Ata muitos países implementaram reformas em seus sistemas de saúde baseadas em cuidados de saúde primários. A maior parte do progresso envolveu o fortalecimento dos serviços de cuidados primários; de maneira inesperada, toda-via, muito deste progresso foi visto em países ricos, a maioria dos quais construiu sistemas que tornam a atenção primária disponível com um custo baixo ou ausente para toda a população e que ofere-cem a maior parte dos serviços em ambiente de atenção primária. Esta mudança também viu o fortalecimento da medicina de família como especialidade para fornecer serviços de cuidados primários. Mesmo nos EUA (uma exceção óbvia a essa tendência) ficou cla-ro que a população dos estados com mais médicos e serviços de atenção primária eram mais saudáveis do que aquelas com menos recursos desse tipo.

Também houve progresso em muitos países de renda baixa e mé-dia. Porém, o desafio de “saúde para todos até o ano 2000” não foi alcançado nem de longe. As razões são complexas, mas parcialmente explicáveis por uma falha geral na implementação de todos os as-pectos da abordagem de cuidados de saúde primários, em especial o trabalho conjunto de vários setores para abordar fatores sociais e econômicos que afetam a saúde e a provisão de recursos humanos e de outros tipos em quantidade suficiente para tornar possível o aces-so à atenção primária como em países ricos. Além disso, apesar do consenso em Alma Ata em 1978, a comunidade da saúde global logo rompeu o compromisso com as medidas de longo prazo colocadas na declaração. A recessão econômica diminuiu o entusiasmo com a atenção primária e a tendência mudou em direção a programas que se concentram em poucas medidas prioritárias como imunização, reidratação oral, amamentação e monitoração do crescimento para a sobrevivência de crianças. O sucesso dessas iniciativas sustentou o movimento continuado dos esforços em saúde para longe da abor-dagem mais abrangente da atenção primária e em direção a progra-mas que focam em objetivos específicos na saúde da população. Essa abordagem foi reforçada pela necessidade de lidar com a epidemia de HIV/Aids. Na década de 1990 a atenção primária perdeu espaço para muitas políticas de saúde globais e os países de baixa e média rendas estão sendo encorajados a reduzir os gastos com saúde no setor pú-blico e se concentrar em análises de custo-efetividade para fornecer um pacote de medidas de cuidados de saúde que supostamente ofe-rece os maiores benefícios.

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DESAFIOS DA SAÚDE EM PAÍSES DE RENDA BAIXA E MÉDIA

Os países de renda baixa e média, definidos por renda bruta nacional per capita <12.000 dólares americanos por pessoa ao ano, represen-tam >80% da população mundial. A expectativa de vida média nes-ses países é bem menor do que nos países de alta renda: enquanto a média de expectativa de vida é ao nascer nos países nos países mais ricos é de 74 anos, ela é de apenas 68 anos nos países de renda mé-dia e de 58 anos nos países de renda baixa. Essa discrepância tem recebido cada vez mais atenção nos últimos 40 anos. Inicialmente a situação se caracterizava primariamente em termos de alta fertilidade e elevadas taxas de mortalidade materna, infantil e de lactentes nos países pobres, com a maioria das mortes e doenças sendo atribuível a doenças infecciosas ou tropicais em populações distantes e princi-palmente rurais. Com o crescimento da população adulta (e especial-mente de idosos) e as mudanças no estilo de vida relacionadas com as forças globais de urbanização surgiu rapidamente um novo con-junto de desafios para a saúde, caracterizado por doenças crônicas, aglomeração ambiental e lesões por acidentes automobilísticos (Fig. e1.1). No mundo todo a maioria das mortes relacionadas ao tabaco ocorre atualmente em países de renda baixa e média e o risco de uma criança morrer por um acidente automobilístico na África é mais que o dobro em relação à Europa. Dessa forma, os países de renda baixa e média no século XXI enfrentam um amplo espectro de desafios na saúde – infecciosos, crônicos e relacionados a acidentes – com inci-dências e prevalências muito maiores do que aquelas documentadas nos países de alta renda e com muito menos recursos para vencer estes desafios.

Porém, lidar com estes desafios não significa simplesmente es-perar o crescimento econômico. A análise da associação entre po-der econômico e saúde nos diferentes países revela que, em qualquer nível de economia, há uma variação substancial na expectativa de

vida ao nascer que persistiu apesar do progresso global na expecta-tiva de vida nos últimos 30 anos (Fig. e1.2). As condições de saúde nos países de renda baixa e média variam muito. Nações como Cuba e Costa Rica têm expectativa de vida e taxas de mortalidade infan-til semelhantes ou até melhores do que em países de alta renda; por outro lado, países na África subsaariana e no antigo bloco soviético experimentaram pioras significativas nestes marcadores de saúde nos últimos 20 anos.

Conforme Angus Deaton afirmou na conferência anual WIDER (World Institute for Development Economics Research) de 29 de setembro de 2006, “as pessoas nos países pobres não adoecem pri-mariamente por serem pobres, mas em função de outras falhas na organização social, incluindo a oferta de saúde, que não melhoram de maneira automática com uma renda maior”. Essa análise coloca em dúvida estudos clássicos sobre fatores sociais que explicam a boa saúde em locais pobres como Cuba e estado de Kerala na Índia. As análises realizadas nas últimas três décadas realmente mostraram que é possível haver uma rápida melhora na saúde em vários contex-tos diferentes. O fato de alguns países terem índices bem piores pode ser explicado por uma comparação das diferenças regionais no pro-gresso em termos de expectativa de vida ao longo deste período (Fig. e1.3). Enquanto a maioria das regiões teve um progresso importante, a África subsaariana e os antigos estados soviéticos apresentaram es-tagnação ou, até mesmo, piora.

Como os níveis de saúde médios variam entre regiões e países eles também variam dentro dos países (Fig. e1.4). De fato, as dis-paridades dentro dos países costumam ser maiores do que aquelas encontradas entre países de alta renda e baixa. Por exemplo, se os países de renda baixa e média pudessem reduzir sua taxa global de mortalidade infantil para o nível dos 20% mais ricos da população, a mortalidade infantil global diminuiria em 40%. As disparidades na saúde costumam resultar de fatores sociais e econômicos como

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2030

Lesões intencionaisOutras lesões não intencionaisAcidentes automobilísticos

Outras doençasnão comunicáveis

Câncer

Doença cardiovascular

Problemas maternos,perinatais e nutricionais

Outras doenças infecciosas

HIV/Aids, TBC e malária

Ano/países agrupados conforme a renda per capita

2004 2015 2030 2004 2015 2030 2004 2015

Figura e1.1 Projeções de carga de doença até 2030 em países de alta renda, média e baixa (esquerda, centro e direita, respectivamente). (Fonte: Organi-

zação Mundial de Saúde, 2008b.)

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problemas da vida diária, acesso aos recursos e possibilidade de participação nas decisões que afetam a vida. Na maioria dos países o setor de cuidados de saúde na verdade tende a exacerbar as desi-gualdades da saúde (a “lei de cuidados inversos”); como resultado da negligência e da discriminação as comunidades pobres e mar-ginalizadas têm probabilidade muito menor de se beneficiar dos serviços de saúde pública em relação às outras pessoas. A reforma dos sistemas de saúde em direção a uma atenção primária centrada nas pessoas fornece uma oportunidade para reverter essas tendên-cias negativas.

Os serviços de saúde falharam em fazer sua contribuição para re-duzir essas desigualdades sociais perversas assegurando o acesso uni-versal às intervenções existentes, cientificamente validadas e de baixo custo como redes de cama tratadas com inseticidas para a malária, taxação para cigarros, quimioterapia de curto prazo para a tubercu-lose, tratamento antibiótico para a pneumonia, modificação dietética e medidas de prevenção secundária para hipertensão arterial e níveis

elevados de colesterol e tratamento da água e terapia de reidratação oral para a diarreia. Apesar de décadas de “pacotes essenciais” e campanhas de saúde “básica” a efetiva imple-mentação daquilo que já se sabe que funciona parece ser (de maneira ilusória) difícil.

Análises recentes começaram a focar em “como” (em oposição a “o quê”) oferecer cui-dados em saúde, explorando as razões para o progresso na saúde ser lento e moroso apesar da abundância de intervenções comprova-das para os problemas de saúde nos países de renda baixa e média. Foram identificadas três categorias gerais de razões para isso: (1) insuficiências no desempenho dos sistemas de saúde; (2) condições de estratificação social; e (3) desvios na ciência.

■ INSUFICIÊNCIAS NO DESEMPENHO DOS

SISTEMAS DE SAÚDE

Os problemas de saúde específicos costumam precisar do desenvolvimento de intervenções de saúde específicas (p. ex., a tuberculose pre-cisa de quimioterapia de curto prazo). Porém, a oferta de diferentes intervenções costuma ser facilitada por um conjunto comum de re-cursos ou funções: dinheiro ou financiamento, trabalhadores de saúde treinados e instalações

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1975

Expectativa de vida ao nascer (anos)85

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Namíbia

África do Sul

Botsuana

Suazilândia

40.000

PIB per capita em dólares em 2000

0 5.000 10.000 15.000 20.000 25.000 30.000 35.000

Figura e1.2 Produto interno bruto (PIB) per capita e expectativa de vida ao nascer em 169 países,

1975 e 2005. Apenas os países fora do padrão são nomeados. (Fonte: Organização Mundial de Saúde, 2008a.)

Estados árabes

Ásia Oriental e Pacífico

América Latina eCaribe

Sul da Ásia

África subsaariana

ECO e CEI

OCDE de alta renda

1970-1975

52,166,9

60,570,4

61,171,7

50,163,2

45,846,1

6968,1

71,678,8

90Expectativa de vida (anos)

40 50 60 70 80

2000-2005

Figura e1.3 Tendências regionais na expectativa de vida. ECO e CEI, Euro-

pa Central e Oriental e Comunidade de Estados Independentes; OCDE, Organização

para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. (Fonte: Commission on Social De-

terminants of Health, 2008.)

300

250

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Rural

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0Bangladesh

2004Colômbia

2005Indonésia

2002-3Moçambique

2003

Quintil mais baixo

Quintil 4

B

Urbano

Quintil 2 Quintil 3

Quintil mais alto

RuandaNigéria Paquistão Filipinas

Figura e1.4 A. Mortalidade de crianças com menos de 5 anos conforme o local

de residência em cinco países. (Fonte: Dados da Organização Mundial de Saúde).

B. Cobertura de imunização básica (%) conforme grupo de renda. (Fonte: Dados da

Organização Mundial de Saúde, 2008a.)

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com suprimentos confiáveis e adequados para vários propósitos. In-felizmente, o estado atual dos sistemas de saúde nos países de renda baixa e média é, em grande parte, disfuncional.

Na grande maioria dos países de renda baixa e média o nível de financiamento público para a saúde é muito insuficiente: enquanto os países de renda elevada gastam em média 7% do produto interno bruto em saúde, os países de renda média gastam <4% e os de renda baixa <3%. O financiamento externo para a saúde por meio de vários canais de doação cresceu de maneira significativa com o tempo. Ao mesmo tempo em que estes fundos para a saúde são significativos (~20 bilhões de dólares [EUA] em 2008 para países de renda baixa e média) e têm crescido na última década, eles representam <2% dos gastos totais com saúde em países de renda baixa e média e, dessa forma, não são suficientes e nem uma solução a longo prazo para a crônica falta de financiamento. Na África, 70% dos gastos com saúde vêm de fontes domésticas. A forma predominante de financiamento de cuidados em saúde – a cobrança dos pacientes na hora do serviço – é a menos eficiente e a mais desigual, deixando milhões de famílias na pobreza todos os anos.

Os trabalhadores da saúde, os quais representam outro recurso fundamental, não costumam receber treinamento adequado e nem recebem apoio em seu trabalho. Estimativas recentes indicam uma falta de >4 milhões de trabalhadores da saúde, constituindo uma cri-se que é em grande parte exacerbada pela migração de trabalhadores da saúde dos países de renda baixa e média para os de alta renda. A África subsaariana carrega 24% da carga de doença global, mas tem apenas 3% da força de trabalho em saúde (Fig. e1.5). A International Organization for Migration estimou em 2006 que havia mais médi-cos da Etiópia trabalhando em Chicago do que na própria Etiópia.

Diagnósticos e fármacos essenciais não costumam chegar até os pacientes que necessitam em função de falhas na cadeia de suprimen-to. Além disso, as instalações não conseguem fornecer um cuidado seguro: novas evidências sugerem taxas muito maiores de eventos ad-versos em pacientes hospitalizados em países de renda baixa e média em comparação com os de alta renda. Falhas governamentais no pla-nejamento, regulamentação, monitoramento e avaliação estão asso-ciadas com a comercialização desenfreada e desregulada de serviços de saúde e com a caótica fragmentação destes serviços à medida que os doadores levam adiante seus respectivos programas prioritários. Com fundações tão frágeis não chega a ser surpresa que intervenções de baixo custo, disponíveis e validadas não cheguem até as pessoas que necessitam delas.

■ CONDIÇÕES DE ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL

Os sistemas de oferta de cuidados em saúde não existem em um vácuo, mas sim estão envoltos em um complexo de forças sociais e econômicas que costumam estratificar de maneira injusta as oportu-nidades para a saúde. Mais preocupante são as forças perversas de de-sigualdade social que servem para marginalizar populações com ne-

cessidades de saúde desproporcionalmente grandes (p. ex., os pobres de regiões urbanas; as mães analfabetas). Por que se deveria esperar que um pobre favelado sem renda conseguisse dinheiro para pagar o ônibus necessário para viajar até uma clínica para saber os resultados de um exame de escarro para tuberculose? Como é que uma mãe que mora em um distante vilarejo rural e cuida de um lactente com con-vulsões febris irá encontrar os meios para levar seu filho até o local para cuidados adequados? Sistemas de seguridade social cambalean-tes ou inexistentes, ambientes de trabalho perigosos, comunidades isoladas com pouca ou nenhuma infraestrutura e discriminação sis-temática contra minorias estão entre a miríade de forças contra as quais se deve lutar para conseguir uma oferta de cuidados de saúde mais igualitária.

■ DESVIOS NA CIÊNCIA

Ao mesmo tempo em que a ciência obteve grandes avanços na saúde em países de alta renda, com alguns respingos nos países de renda baixa e média, muitos problemas de saúde importantes continuam a acometer primariamente países de renda baixa e média cujos in-vestimentos em pesquisas e desenvolvimento são muito insuficientes. A última década testemunhou esforços crescentes para ajustar esse desequilíbrio com investimentos em pesquisas e desenvolvimento para novos fármacos, vacinas e diagnósticos que supram de maneira efetiva necessidades de saúde específicas das populações nos países de renda baixa e média. Por exemplo, o Medicines for Malaria Ventu-re revitalizou a anteriormente “seca” fonte de novos fármacos para a malária. Este é apenas um dos vários esforços desse tipo, mas muito mais precisa ser feito.

Conforme discutido anteriormente, a principal dificuldade para melhores condições de saúde nos países de renda baixa e média se re-laciona menos com a disponibilidade de tecnologias em saúde e mais com a sua oferta efetiva. Na base de sistemas e desafios sociais para uma maior igualdade na saúde está um grande desvio com relação ao que constitui “ciência” legítima para melhorar a igualdade na saúde. A parte principal do financiamento de pesquisas em saúde é dire-cionada para o desenvolvimento de novas tecnologias – fármacos, vacinas e diagnósticos; em contraste, virtualmente nenhum recurso é direcionado para pesquisas sobre como os sistemas de oferta de cui-dados de saúde podem ficar mais confiáveis e superar as condições sociais adversas. A complexidade dos sistemas e do contexto social é tal que este problema de oferta necessita de um enorme investimento em termos não apenas de dinheiro, mas também de rigor científico, com o desenvolvimento de novos métodos e medidas de pesquisa e com maior legitimidade no ambiente científico.

Esses desafios comuns para países de renda baixa e média expli-cam de forma parcial o ressurgimento do interesse na abordagem de cuidados de saúde primários. Em alguns países (principalmente de renda média) tem sido obtido um progresso significativo na expan-são da cobertura dos sistemas de saúde com base na atenção primária e mesmo na melhora dos indicadores da saúde da população. Mais países estão embarcando na criação de serviços de atenção primária apesar dos desafios que existem, em especial nos países de baixa ren-da. Mesmo quando estes desafios são reconhecidos há muitas razões para otimismo pelo fato de os países de renda baixa e média poderem acelerar o progresso na construção da atenção primária.

CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS NO SÉCULO XXI

A última década viu o ressurgimento do interesse em cuidados de saúde primários como uma maneira de lidar com os desafios de saúde globais do novo milênio. Esse interesse tem sido desencade-ado por muitos dos mesmos problemas que levaram à Declaração de Alma Ata: disparidades rapidamente crescentes na saúde entre e dentro de países, custos de cuidados de saúde crescentes em um momento em que muitas pessoas não conseguem cuidados de qua-lidade, insatisfação das comunidades com os cuidados que obtêm e falha em abordar mudanças nas ameaças à saúde, em especial nas epidemias de doenças não comunicáveis. Estes desafios necessitam de uma abordagem abrangente e de sistemas de saúde fortes com atenção primária efetiva. As agências de desenvolvimento de saúde

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África

Pacífico ocidental

Mediterrâneo oriental

EuropaAméricas

% da força de trabalho global455 10 15 20 25 30 35 40

Figura e1.5 Carga de doença global e força de trabalho em saúde. (Fonte:

Organização Mundial de Saúde, 2006.)

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global reconheceram que ganhos sustentados em prioridades de saú-de pública como em HIV/Aids necessitam não apenas de sistemas de saúde robustos, mas também com o manejo de fatores sociais e econômicos relacionados com a incidência e a progressão da doença. Sistemas de saúde fracos têm se mostrado um obstáculo importan-te para a oferta de novas tecnologias, como a terapia antirretroviral, para todas as pessoas que as necessitam. Mudanças nos padrões das doenças levaram a uma demanda por sistemas de saúde que possam tratar pessoas como indivíduos, independentemente de consultarem com o problema de saúde pública “prioritário” (p. ex., HIV/Aids ou tuberculose) do local onde ela está buscando ajuda. A experiência com a atenção primária em países de renda baixa e média é discutida em maiores detalhes adiante. Em primeiro lugar, consideraremos as características dos cuidados de saúde primários e da atenção primá-ria conforme o entendimento atual.

■ REVITALIZAÇÃO DOS CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS

Na World Health Assembly (um encontro anual de todos os países para discutir o trabalho da Organização Mundial de Saúde [OMS]) de 2009 foi aprovada uma resolução reafirmando os princípios da Declaração de Alma Ata e a necessidade de os sistemas nacionais de saúde se basearem os cuidados de saúde primários. Essa resolução não sugeriu que nada tivesse mudado nos 30 anos desde que foi feita a declaração e nem que ela não necessitasse de uma reformulação em função das mudanças nas necessidades de saúde pública. O World Health Report da OMS em 2008 descreveu como uma abordagem de cuidados de saúde primários é “mais do que nunca” necessária para lidar com as prioridades de saúde globais, especialmente em termos de disparidades e novos desafios na saúde. Ele saliente quatro amplas áreas onde há necessidade de reformas (Fig. e1.6). Uma dessas áreas – a necessidade de organizar os cuidados de saúde de maneira a colo-car as necessidades das pessoas em primeiro lugar – se relaciona fun-damentalmente com a necessidade de serviços de cuidados primários fortes nos sistemas de saúde e com o que essa necessidade acarreta. As outras três áreas também se relacionam com a atenção primária. Todas as quatro áreas necessitam de ação para levar os sistemas de saúde em uma direção em que reduzirão as disparidades e aumenta-rão a satisfação das pessoas atendidas. As recomendações do World Health Report apresentam uma visão de cuidados de saúde primários baseada nos princípios de Alma Ata, mas diferindo de muitas outras tentativas de implementação de cuidados de saúde primários feitas nas décadas de 1970 e 1980.

Reformas na oferta de serviços para tornar os sistemas de saúde

centrados nas pessoas

Os sistemas de saúde costumam ser organizados conforme as ne-cessidades daqueles que fornecem os serviços de saúde, como os médicos e os políticos. O resultado é uma centralização dos servi-ços ou a provisão de programas verticais que visam doenças espe-cíficas. Os princípios dos cuidados de saúde primários, incluindo o desenvolvimento da atenção primária, reorienta os cuidados para as necessidades das pessoas atendidas pelos serviços. Essa abordagem “centrada nas pessoas” visa fornecer cuidados de saúde mais efeti-vos e adequados.

O aumento nos casos de doenças não comunicáveis em países de renda baixa e média oferece um estímulo adicional para a reforma urgente na oferta de serviços para melhorar o cuidado com doenças crônicas. Conforme discutido anteriormente, um grande número de pessoas não recebe intervenções de custo relativamente baixo e que reduziram a incidência dessas doenças nos países mais ricos. A oferta dessas intervenções precisa de sistemas de saúde que tra-tem de problemas múltiplos e que lidem com as pessoas ao longo de um extenso período em suas comunidades, ainda que muitos países de renda baixa e média estejam apenas agora começando a adaptar e construir serviços de cuidados primários que possam lidar com doenças não comunicáveis e com doenças comunicáveis que preci-sam de cuidados crônicos. Mesmo alguns países (p. ex., Irã) que con-seguiram sucesso significativo na redução de doenças comunicáveis e na melhora da sobrevivência infantil têm sido lentas para adaptar seus sistemas de saúde para a epidemia rapidamente crescente de doenças não comunicáveis.

O cuidado centrado nas pessoas necessita de uma resposta segu-ra, abrangente e integrada para as necessidades daqueles atendidos pelos sistemas de saúde, com tratamento no primeiro ponto de con-tato ou encaminhamento para serviços adequados. Como não há um limite preciso entre as necessidades das pessoas para promoção de saúde, intervenções curativas e serviços de reabilitação em diferentes doenças, os serviços de cuidados primários devem lidar com todos os problemas que surgem de maneira unificada. Satisfazer as neces-sidades das pessoas também envolve melhorar a comunicação entre pacientes e seus médicos, que devem ter tempo para compreender o impacto do contexto social do paciente sobre os problemas que apre-sentam. Esse aumento da compreensão é possível por meio de me-lhorias na continuidade de cuidados de forma que a responsabilidade ultrapasse o tempo limitado que as pessoas passam nos serviços de cuidados primários. A atenção primária tem o papel vital de levar as pessoas através do sistema de saúde; quando as pessoas são encami-nhadas para outros serviços, os fornecedores de cuidados primários devem monitorar as consultas feitas e realizar o acompanhamento. Também com muita frequência as pessoas não recebem os benefí-cios de intervenções complexas realizadas em hospitais por perderem contato com o sistema de saúde após a alta hospitalar. A abrangência e a continuidade dos cuidados são mais facilmente alcançadas garan-tindo-se que as pessoas tenham uma relação pessoal continuada com a equipe de cuidados.

Reformas na cobertura universal para melhorar a

igualdade na saúde

Apesar do progresso em muitos países, a maioria das pessoas no mundo só consegue receber cuidados de saúde se pagarem no mo-mento do atendimento. As disparidades na saúde são causadas não apenas por falta de acesso aos serviços de saúde necessários, mas também pelo impacto dos gastos na saúde. Mais de 100 milhões de pessoas são jogadas na pobreza a cada ano pelos custos dos cuidados de saúde. Dessa forma, a cobertura universal é uma importante prio-ridade nos países de renda baixa e média. O aumento da cobertura dos sistemas de saúde pode ser considerado em termos de três eixos: a proporção da população que recebe cobertura, a gama de serviços oferecidos e a porcentagem dos custos que é paga. A evolução para uma cobertura universal precisa garantir a disponibilidade de todos os serviços de cuidados em saúde para todos, a eliminação de bar-reiras ao acesso e a organização de mecanismos de financiamento

REFORMAS NAOFERTA DESERVIÇOS

Para tornar os sistemas desaúde centrados nas pessoas

REFORMAS NACOBERTURAUNIVERSAL

Para melhorar aigualdade na saúde

REFORMAS NALIDERANÇA

Para tornar mais confiáveisas autoridades da saúde

REFORMAS EMPOLÍTICAS PÚBLICAS

Para promover e protegera saúde das comunidades

Figura e1.6 As quatro reformas da revitalização dos cuidados de saúde

primários. (Fonte: Organização Mundial de Saúde, 2008a.)

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como taxação ou seguros para que o usuário não pague no momento do serviço. Isso também requer medidas além do financiamento, in-cluindo a expansão dos serviços de saúde em áreas com atendimento precário, a melhora na qualidade dos serviços em comunidades mar-ginalizadas e o aumento da cobertura de outros serviços sociais que afetam de maneira significativa a saúde (p. ex., educação).

Reformas em políticas públicas para promover e proteger a saúde

das comunidades

As políticas públicas em setores que não os cuidados em saúde são fundamentais para reduzir as disparidades na saúde e para alcançar o progresso em direção aos objetivos da saúde pública global. Em 2008 o texto final da Commission on Social Determinants of Health da OMS forneceu uma extensa revisão sobre as políticas intersetoriais necessárias para lidar com as desigualdades na saúde em nível local, nacional e global. Os avanços contra grandes desafios como Aids/HIV, tuberculose, novas pandemias, doença cardiovascular, câncer e acidentes necessitam da efetiva colaboração de setores como trans-portes, residência, trabalho, agricultura, planejamento urbano, co-mércio e energia. Enquanto o controle do tabaco fornece um ótimo exemplo do que é possível se diferentes setores trabalharem juntos para alcançar objetivos na saúde, a falta de implementação de muitas medidas baseadas em evidências para o controle do tabaco em vários países também ilustra as dificuldades encontradas nesse trabalho in-tersetorial e o potencial não reconhecido das políticas públicas para melhorar a saúde. Em nível local, os serviços de atenção primária podem ajudar a fazer políticas públicas de promoção da saúde em outros setores.

Reformas na liderança para tornar mais confiáveis as

autoridades da saúde

A Declaração de Alma Ata enfatizou a importância da participação das pessoas em seus cuidados de saúde. De fato, a participação é im-portante em todos os níveis da tomada de decisões. Os desafios atuais na saúde precisam de novos modelos de liderança que reconheçam o papel do governo na redução das disparidades na saúde, mas que também reconheçam os vários tipos de organizações que fornecem serviços de cuidados de saúde. Os governos precisam guiar e nego-ciar com esses diferentes grupos, incluindo organizações não gover-namentais (ONGs) e o setor privado e promover uma forte regulação quando for necessária. Essa difícil tarefa precisa de reinvestimento volumoso em liderança e capacidade de governança, em especial se for necessária a implementação efetiva de ações em diferentes seto-res. Além disso, os grupos em desvantagem devem ser capazes de expressar suas necessidades de forma a influenciar de maneira ativa a tomada de decisões.

■ EXPERIÊNCIAS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM PAÍSES DE RENDA

BAIXA E MÉDIA

Os aspectos dos cuidados de saúde primários descritos anteriormen-te com ênfase nos serviços de cuidados primários foram implemen-tados em várias escalas por muitos países de renda baixa e média nos últimos 50 anos. Conforme discutido anteriormente, algumas dessas experiências inspiraram e informaram a Declaração de Alma Ata, a qual levou muitos países a tentar a implementação de cuidados de saúde primários. Essa seção descreve as experiências de uma seleção de países de renda baixa e média na melhora dos serviços de cuidados primários e que aumentaram o nível de saúde de suas populações.

Antes de Alma Ata, poucos países tentaram desenvolver cuida-dos de saúde primários em nível nacional. Em vez disso, a maioria focava na expansão dos serviços de cuidados primários em comu-nidades específicas (em geral nas localidades rurais), fazendo uso de voluntários da comunidade para compensar a ausência de instalações para a realização dos cuidados. Por outro lado, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, a China investiu em atenção primária em escala nacional, e a expectativa de vida duplicou dentro de apro-ximadamente 20 anos. A expansão chinesa dos serviços de cuidados primários incluiu um volumoso investimento em infraestrutura de saúde pública (p. ex., sistemas de água e saneamento) ligado a um uso

inovador de trabalhadores da saúde nas comunidades. Esses “médi-cos descalços” viviam e expandiam os cuidados nos vilarejos rurais. Eles recebiam um nível básico de treinamento que permitia que eles fornecessem imunizações, cuidados maternos e intervenções médi-cas básicas, incluindo o uso de antibióticos. Por meio do trabalho dos médicos descalços a China conseguiu cobrir toda a sua população com cuidados básicos de saúde com baixo custo, grande parte da qual não tinha acesso prévio aos serviços.

Em 1982 a Rockefeller Foundation organizou uma conferência para revisar as experiências da China juntamente com aquelas da Costa Rica, Sri Lanka e o estado de Kerala, na Índia. Em todos es-ses lugares, pareciam ter sido obtidos bons cuidados de saúde e de baixo custo. Apesar do baixo nível de desenvolvimento econômico e de gastos na saúde, todos esses lugares juntamente com Cuba, ti-nham indicadores de saúde que se aproximavam – e em alguns ca-sos superavam – daqueles de países desenvolvidos. A análise dessas experiências revelou uma ênfase comum nos serviços de cuidados primários, com expansão dos cuidados para toda a população de graça ou com baixo custo, em combinação com a participação da comunidade na tomada de decisões sobre os serviços de saúde e tra-balho coordenado em diferentes setores (em especial a educação) visando objetivos na saúde. Durante as três décadas após o encon-tro Rockefeller alguns desses países aumentaram esse progresso en-quanto outros apresentaram problemas. As experiências recentes no desenvolvimento de serviços de cuidados primários mostram que a mesma combinação de características é necessária para o suces-so. Por exemplo, o Brasil – um país grande e com uma população dispersa – tem obtido grandes avanços no aumento da disponibili-dade de cuidados de saúde nos últimos 20 anos. Na última década, o Programa de Saúde da Família no Brasil expandiu de maneira pro-gressiva por todo o país com cobertura de quase todas as áreas. Esse programa fornece às comunidades o livre acesso às equipes de aten-ção primária formadas por médicos de atenção primária, trabalha-dores da saúde da comunidade, enfermeiros, dentistas, obstetras e pediatras. Essas equipes são responsáveis pela saúde das pessoas em uma área geográfica específica – não apenas daquelas que compa-recem aos serviços de saúde. Além disso, os trabalhadores da saúde individuais da comunidade são responsáveis por uma lista de nomes de pessoas dentro da área coberta pela equipe de atenção primária. Os problemas de acesso aos cuidados de saúde persistem no Brasil, em especial nas áreas isoladas e favelas urbanas. Porém, sólidas evi-dências indicam que o Programa de Saúde da Família já contribuiu com ganhos expressivos na saúde da população, em especial em ter-mos de mortalidade infantil e desigualdades na saúde. De fato, esse programa já teve um impacto marcante na redução da mortalidade infantil em áreas menos desenvolvidas (Fig. e1.7).

O Chile também melhorou os serviços de cuidados primários existentes na década passada, visando melhorar a qualidade de cui-dados e a extensão da cobertura em regiões remotas, acima de tudo para as populações mais carentes. Esse esforço foi feito de maneira conjunta com medidas visando reduzir as desigualdades sociais e acelerar o desenvolvimento, incluindo benefícios sociais para famí-lias e grupos em desvantagem e melhora do acesso a serviços edu-cacionais para a primeira infância. Como no Brasil, esses passos me-lhoraram a saúde materna e infantil e reduziram as desigualdades na saúde. Além de aumentar de maneira direta os serviços de cuidados primários, Brasil e Chile instituíram medidas para aumentar a res-ponsabilidade dos fornecedores de cuidados em saúde e a participa-ção das comunidades na tomada de decisões. No Brasil, assembleias de saúde nacionais e regionais com altos níveis de participação públi-ca são parte integrante do processo de criação das políticas em saúde. O Chile instituiu um documento para os pacientes que especifica de maneira explícita os direitos dos pacientes em termos da gama de serviços aos quais estão habilitados.

Outros países que obtiveram progresso recente em cuidados de saúde primários incluem Bangladesh, um dos países mais pobres no mundo. Desde sua independência do Paquistão em 1971, Bangladesh testemunhou um aumento dramático na expectativa de vida e as ta-xas de mortalidade infantil são agora mais baixas do que nos países

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vizinhos como Índia e Paquistão. A expansão do acesso aos serviços de cuidados de saúde primários teve um papel importante nessa me-lhora. Esse progresso foi liderado por uma vibrante ONG da comuni-dade que concentrou sua atenção na melhora da vida e do sustento de mulheres pobres e de suas famílias por meio de microcrédito inova-dor e integrado, educação e programas de atenção primária.

Os exemplos anteriores, junto com outros nos últimos 30 anos em países como Tailândia, Malásia, Portugal e Omã, ilustram a forma como a implementação de uma abordagem de cuidados de saúde pri-mários com uma maior ênfase na atenção primária melhorou o aces-so aos serviços de saúde – uma tendência que não ocorreu em mui-tos outros países de renda baixa e média. Por sua vez, essa tendência contribuiu para a melhora na saúde da população e para reduzir as desigualdades na saúde. Porém, à medida que essas nações progri-dem outros países mostram como ganhos anteriores com a atenção primária podem ser facilmente perdidos. Na África subsaariana, o enfraquecimento dos serviços de atenção primária contribuiu para pioras catastróficas em desfechos de saúde catalisadas pela epidemia de HIV/Aids. Países como Botsuana e Zimbábue implementaram es-tratégias de cuidados de saúde primários na década de 1980, aumen-tando o acesso aos cuidados e obtendo melhora expressiva na saúde infantil. Desde então ambos os países foram gravemente afetados pelo HIV/Aids, com diminuição pronunciada na expectativa de vida. Contudo, o Zimbábue também sofreu uma desordem política, um declínio da saúde e de outros serviços e a fuga de pessoal da saúde,

enquanto Botsuana manteve os serviços de atenção primária de maneira mais ampla e conseguiu organizar o acesso disseminado à terapia antirretroviral para pessoas com HIV/Aids. Dessa forma, a situação da saú-de no Zimbábue ficou mais desesperadora do que em Botsuana.

A China fornece um exemplo muito importante sobre como mudanças em po-líticas de saúde relevantes à organização de sistemas de saúde (Fig. e1.8) podem ter consequências rápidas e de longo alcance na saúde da população. Enquanto a confe-rência Rockefeller de 1982 estava celebran-do os avanços da China em atenção primá-ria, seu sistema de saúde estava mudando. A decisão de abrir a economia no início da década de 1980 levou à rápida privatização do setor de saúde e à perda da cobertura universal. Como resultado, no final da dé-cada de 1980 a maioria da população, em

especial os segmentos mais pobres, estavam pagando diretamente do próprio bolso pelos cuidados de saúde e quase nenhum chinês tinha um seguro de saúde – uma dramática transformação. Houve colapso do programa de “médicos descalços” e a população passou a pagar pelos cuidados em hospitais ou simplesmente passou a não ter acesso aos cuidados. Esse enfraquecimento do acesso aos serviços de cuida-dos primários no sistema chinês e o aumento resultante no empobre-cimento por doença contribuiu para a estagnação dos progressos em saúde na China ao mesmo tempo em que a renda aumentou em taxas sem precedentes. A piora na atenção primária fez com que a China encare agora problemas de saúde semelhantes àqueles que ocorrem na Índia. Em ambos os países o rápido crescimento econômico esteve ligado a mudanças no estilo de vida e a epidemias de doenças não comunicáveis. Os sistemas de cuidados de saúde em ambos os paí-ses dividem duas características negativas que são comuns quando a atenção primária é fraca: uma concentração desproporcional em serviços especializados realizados em hospitais e a comercialização desregulada de serviços de saúde. A China e a Índia testemunharam a expansão dos serviços hospitalares privados que atendem a classe média e as populações urbanas que podem pagar por eles; ao mesmo tempo centenas de milhões de pessoas em regiões rurais lutam atual-mente para ter acesso aos serviços mais básicos. Mesmo no primeiro grupo, a falta de serviços de cuidados primários esteve associada com a apresentação tardia de doenças e com investimento insuficiente em abordagens de prevenção primária. Essa negligência da prevenção

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Cobertura do PSF (% da população coberta)

Figura e1.7 Melhora na mortalidade infantil após o Programa de Saúde da Família no Brasil. IDH,

Índice de Desenvolvimento Humano; PSF, Programa de Saúde da Família. (Fonte: Ministério da Saúde, Brasil.)

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Gasto emseguridade social

Outros gastosgovernamentaisgerais

Figura e1.8 Mudanças na fonte de gastos com saúde na China nos últimos 40 anos. (Fonte: Organização Mundial de Saúde, 2008a.)

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traz risco de epidemias de grande escala de doenças cardiovasculares, as quais poderiam ameaçar o crescimento econômico continuado. Além disso, os sistemas de saúde de ambos os países depende atual-mente de pagamentos do próprio bolso ao usar os serviços para a maior parte de seu financiamento. Assim, uma proporção importante da população sacrifica outros benefícios essenciais como resultado de gastos com saúde ou é levada à pobreza por este custo. A natu-reza comercial dos serviços de saúde com regulação inadequada ou ausente também levou à proliferação de charlatães, cuidados inade-quados e pressão para que as pessoas paguem por cuidados caros e, algumas vezes, desnecessários. Os fornecedores comerciais têm in-centivos limitados para o uso de intervenções (incluindo medidas de saúde pública) que não podem ser cobradas ou que são limitadas às pessoas que pagam por elas.

Ao encarar esses problemas, China e Índia implementaram re-centemente medidas para o fortalecimento dos cuidados de saúde primários. A China aumentou o financiamento governamental dos cuidados de saúde, evoluiu em direção à restauração do seguro-saúde e definiu o objetivo de acesso universal aos serviços de cuidados pri-mários. De maneira semelhante, a Índia mobilizou fundos para uma grande expansão dos serviços de cuidados primários em áreas rurais e está atualmente repetindo esse processo em regiões urbanas. Am-bos os países estão cada vez mais usando recursos públicos de suas crescentes economias para financiar os serviços de cuidados primá-rios. Essas tendências encorajadoras ilustram novas oportunidades para a implementação de uma abordagem de cuidados de saúde pri-mários e para o fortalecimento dos serviços de atenção primária em países de renda baixa e média.

■ OPORTUNIDADES PARA CONSTRUIR A ATENÇÃO PRIMÁRIA EM

PAÍSES DE RENDA BAIXA E MÉDIA

Os objetivos da saúde pública global não serão alcançados a menos que os sistemas de saúde sejam fortalecidos de maneira significati-va. Atualmente está sendo gasto mais dinheiro em saúde do que em qualquer outra época. Em 2005, o gasto global com saúde totalizou 5,1 trilhões de dólares americanos – o dobro da quantia gasta uma década antes. Embora a maioria dos gastos ocorra em países de alta renda, o gasto em muitos países emergentes de renda média acelerou de forma rápida da mesma forma que a alocação de dinheiro para esse propósito pelos governos e por doadores para países de renda baixa. Essas tendências unidas – maior ênfase na construção de sis-temas de saúde baseados na atenção primária e alocação de mais dinheiro para cuidados de saúde – fornecem oportunidades para lidar com muitos dos desafios discutidos anteriormente em países de renda baixa e média.

A aceleração do progresso necessita de uma melhor compreen-são sobre como as iniciativas globais em saúde podem facilitar de maneira mais efetiva o desenvolvimento da atenção primária em países de baixa renda. Uma recente revisão do Maximizing Positive Synergies Collaborative Group da OMS se concentrou em progra-mas financiados pelo Global Fund to Fight Aids, Tuberculosis and Malaria; Global Alliance for Vaccines and Immunisation (GAVI); U.S. President’s Emergency Plan for Aids Relief (PEPFAR); e Banco Mundial (HIV/Aids). Esse grupo concluiu que as iniciativas de saúde globais melhoraram o acesso e a qualidade dos serviços de saúde ava-liados e levaram a melhores sistemas de informação e a financiamen-tos mais adequados. A revisão também identificou a necessidade de um melhor alinhamento das iniciativas de saúde globais com outras prioridades de saúde nacional e a utilização sistemática de potenciais sinergias. Se as iniciativas de saúde globais implementarem progra-mas que funcionem em conjunto com outros componentes dos sis-temas nacionais de saúde sem prejudicar a formação das equipes e a obtenção de suprimentos, elas terão potencial para contribuir de maneira substancial para a capacidade de os sistemas de saúde forne-cerem cuidados de saúde primários abrangentes.

As iniciativas de saúde globais continuam a obter cada vez mais financiamentos. Em 2009, por exemplo, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou o aumento da assistência dos Es-tados Unidos ao desenvolvimento da saúde global, destinando um

valor de 63 bilhões de dólares ao longo do período de 2009-2014. No-vos financiamentos também são prometidos através de várias outras iniciativas focadas particularmente em saúde materna e infantil nos países de baixa renda. A tendência geral é a coordenação deste finan-ciamento para diminuir a fragmentação dos sistemas nacionais de saúde e para uma maior concentração no fortalecimento desses sis-temas. A atenção primária abrangente em países de baixa renda deve inevitavelmente lidar com a rápida emergência de doenças crônicas e a crescente proeminência de problemas de saúde relacionados a trau-mas; assim, a assistência ao desenvolvimento da saúde internacional deve ter maior responsabilidade sobre essas necessidades.

Além dessas novas correntes de financiamentos para os servi-ços de saúde, existem outras oportunidades. O aumento da partici-pação social nos sistemas de saúde pode ajudar a construir serviços de atenção primária. Em muitos países, a pressão política a partir de representantes da comunidade por um cuidado mais holístico e res-ponsável bem como iniciativas empresariais para o aumento dos ser-viços baseados na comunidade através de ONGs acelerou o progresso na atenção primária sem grandes aumentos nos financiamentos. A participação da população na provisão de serviços de cuidados pri-mários e na tomada de decisões relevantes costuma obter serviços que atendam às necessidades da população como um todo em vez de prioridades mais restritas para a saúde pública.

A participação e a inovação podem ajudar a lidar com problemas importantes com relação à força de trabalho em saúde nos países de renda baixa e média por meio do estabelecimento serviços de cui-dados primários efetivos centrados nas pessoas. Muitos serviços de cuidados primários não precisam ser oferecidos por médico ou en-fermeiro. As equipes multidisciplinares podem incluir trabalhadores comunitários pagos com acesso a um médico em caso de necessida-de, mas que possam fornecer pessoalmente uma variedade de ser-viços de saúde. Na Etiópia, mais de 30.000 trabalhadores de saúde comunitários foram treinados e preparados para melhorar o acesso aos serviços de cuidados primários e há evidência crescente de que essa medida está contribuindo para melhores desfechos em saúde. Na Índia, mais de 600.000 defensores da saúde das comunidades foram recrutados como parte da expansão dos serviços de cuidados primá-rios rurais. Após a Declaração de Alma Ata as experiências com tra-balhadores da saúde da comunidade foram mistas, com problemas em especial com o nível de treinamento e a falta de pagamento. Os programas atuais não estão imunes a esses problemas. Porém, com acesso ao apoio de médicos e com o desenvolvimento de equipes al-guns desses problemas podem ser contornados. Evidências crescen-tes em muitos países indicam que a alocação de tarefas apropriadas para trabalhadores da atenção primária que tenham tido treinamento mais curto e barato em relação aos médicos será fundamental para lidar com a crise de recursos humanos.

Por fim, melhorias recentes em tecnologias de informação e co-municação, em especial a telefonia móvel e os sistemas de Internet, criaram o potencial para implementar de maneira sistemática ini-ciativas de saúde eletrônica (e-health), telemedicina e melhora dos dados em saúde em países de renda baixa e média. Esses desenvolvi-mentos aumentam a possibilidade de que os sistemas de saúde nesses países, que ficaram por muito tempo atrasados em relação aos países mais ricos, mas que são menos comprometidos com sistemas antigos difíceis de modernizar em várias situações, possam ultrapassar seus parceiros mais ricos na exploração dessas tecnologias. Embora os de-safios impostos por uma infraestrutura ruim ou ausente em muitos países de renda baixa e média não possam ser subestimados e devam ser abordados para tornar real essa possibilidade, o rápido surgimen-to de redes móveis e seu uso em saúde e outros serviços sociais em muitos países de baixa renda em que o acesso a linhas de telefone fixo era anteriormente muito limitado são uma grande promessa na construção de serviços de cuidados primários nos países de renda baixa e média.

CONCLUSÃO

Ao mesmo tempo em que continua a preocupação em vencer as de-sigualdades na saúde global há um compromisso crescente para re-

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parar esses notórios problemas, conforme exemplificado pela mobili-zação global ao redor dos United Nations’ Millennium Development Goals. Esse compromisso inicia primeiro e principalmente com uma visão clara da importância fundamental da saúde em todos os países independentemente da renda. Os valores da saúde e da igualdade em saúde são compartilhados através de todas as fronteiras e os cuidados de saúde primários fornecem um panorama para a sua efetiva tradu-ção para todos os contextos.

A tradução desses valores fundamentais tem suas raízes em qua-tro tipos de reformas que refletem os desafios distintos e interliga-dos para (re)orientar os recursos de uma sociedade com base nas necessidades de saúde de seus cidadãos: (1) organizar os serviços de cuidados em saúde conforme as necessidades das pessoas e co-munidades; (2) subordinar os serviços e setores além dos cuidados de saúde à promoção e proteção da saúde de forma mais efetiva; (3) estabelecer mecanismos de financiamento sustentáveis e justos para a cobertura universal; e (4) investir em liderança efetiva de toda a sociedade. Essa agenda comum de cuidados de saúde primários salienta a importante semelhança, apesar das enormes diferenças de contexto, na natureza e direção das reformas que os sistemas de saúde nacionais devem realizar na promoção de uma maior igualda-de na saúde. Essa agenda comum é complementada pela realidade crescente da interconectividade da saúde global devido, por exem-plo, ao compartilhamento de ameaças biológicas, à superação da di-versidade etnolinguística, ao fluxo de migração de trabalhadores da saúde e à mobilização de fundos globais para apoiar as populações mais necessitadas. Para um progresso sustentado na saúde global é fundamental obter solidariedade na saúde global ao mesmo tempo em que se fortalece os sistemas de saúde usando uma abordagem de cuidados de saúde primários.

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