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FUGA DAS TERRAS ALTAS Hannah Howell Título Original Highland Hearts Tess Delgado suspeitava que seu tio fosse aliado dos traidores que planejavam depor o rei Jaime II. Mas foi somente depois de libertar sir Revan Halyard do calabouço do castelo que ela teve noção da gravidade da intriga e dos extremos de que o tio seria capaz para tira-la do caminho e reivindicar a herança que, caso contrário, seria dela. Quando, durante a fuga, Revan raptou Tess, ela acabou se tornando sua aliada... se bem que cautelosa... além de refém. Porque, embora Tess relutasse em confiar no guerreiro do rei e em entregar-se ao desejo que ele lhe despertava, ela não podia negar o destino que ambos compartilhavam. E, enquanto se lançavam numa fuga alucinada dos traidores, ávidos para aniquilá-los e para usurpar o trono, Tess e Revan arriscariam tudo por amor ao rei, à pátria... e um pelo outro!

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FUGA DAS TERRAS ALTASHannah Howell

Título OriginalHighland Hearts

Tess Delgado suspeitava que seu tio fosse aliado dos traidores que planejavam depor o rei Jaime II. Mas foi somente depois de libertar sir Revan Halyard do calabouço do castelo que ela teve noção da gravidade da intriga e dos extremos de que o tio seria capaz para tira-la do caminho e reivindicar a herança que, caso contrário, seria dela.

Quando, durante a fuga, Revan raptou Tess, ela acabou se tornando sua aliada... se bem que cautelosa... além de refém. Porque, embora Tess relutasse em confiar no guerreiro do rei e em entregar-se ao desejo que ele lhe despertava, ela não podia negar o destino que ambos compartilhavam. E, enquanto se lançavam numa fuga alucinada dos traidores, ávidos para aniquilá-los e para usurpar o trono, Tess e Revan arriscariam tudo por amor ao rei, à pátria... e um pelo outro!

Capítulo I

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Escócia, 1455— Veio até aqui para rir da desgraça alheia? — O quê? Quem foi que falou? — Tess assustou-se. Um voz masculina fez seu coração disparar.Na ida, passara pela masmorra do castelo de seu tio e a encontrara vazia. Com extremo cuidado,

aproximou-se da cela e ergueu o castiçal para iluminar aquele canto da prisão.Tess não conteve um gemido gutural. Acorrentado na parede, com os braços e pernas estendidos, o

homem mais bonito que ela já vira. Nem os hematomas, nem o sangue, nem a sujeira ofuscavam-lhe a beleza. Aquele gigante loiro que a encarava não lhe era estranho.

— Quando foi que chegou aqui? — Tess indagou. Revan estranhou o rosto adorável e malicioso encostado nas grades de ferro. E também os olhos negros

e arregalados pela surpresa. Imaginou se Fergus Thurkettle estaria fazendo algum tipo de brincadeira. Nesse caso, seria melhor entrar no jogo.

— Hum.. há pouco mais de duas horas.— E resolveu cochilar pendurado nas correntes de ferro?— Pelo menos é mais limpo de que a cama.Tess reparou no catre roído pelos ratos e teve de concordar.O que seu tio Fergus estaria tramando no momento? Ele exagerava um pouco em suas pretensões de

ser o senhor absoluto e todo-poderoso de tudo que o rodeava. Esse seu objetivo transformara-se em uma obsessão que a deixava com calafrios.

— O senhor não diria isso se soubesse quem estava aqui a semana passada.— Quem era?— Um homem magro e sujo. — O que aconteceu com ele?— Eu não sei. — Tess resolveu guardar para si a teoria que elaborara a respeito. — Eu o vi aqui,

chorando como uma criança. Pelo que pude entender, ele não havia cometido nenhum crime. Eu o teria libertado, mas não tinha as chaves. Quando voltei, o homem já não estava mais aqui.

— Ele sumiu assim de repente?— Bem, não foi tão de repente. Demorei dois dias para voltar. Eu não podia simplesmente roubar as

chaves. Por isso falei com Ian, o ferreiro. Não foi fácil persuadi-lo, mas afinal consegui que ele fizesse uma duplicata das chaves. Quando retornei com elas, o homenzinho tinha desaparecido.

— E para onde acha que ele foi?— Não sei por que estava aqui nem como foi que deixou de estar. Bem, agora me responda. Por que o

senhor está aqui?— Acredito que minhas aspirações ultrapassaram os limites da minha posição social.Tess não entendeu ao que ele se referia e notou a amargura na voz envolvente do prisioneiro. Seu tio,

quando ainda era uma pessoa racional, jamais prendera ninguém por isso. Aos poucos uma idéia desagradável invadiu-lhe a mente.

— O senhor andou se aproveitando de Brenda?— Aproveitando? Eu a estava cortejando.Não fora bem isso. Mas nada confessaria para aquela intrometida. Tinham sido inúmeros momentos de

intimidade com a voluptuosa Brenda Thurkettle.— E por isso o senhor foi preso? — Tess nunca presenciara castigo semelhante infligido a um

admirador de Brenda.— Exatamente.Revan não entendeu a ponta de culpa pela meia mentira que dissera. Um homem irado o acorrentara na

parede, e uma jovem curiosa o enchia de perguntas. Thurkettle pretendia matá-lo. Qualquer coisa seria válida, até mesmo uma inverdade, para se ver livre de tamanha enrascada. Ainda assim, aqueles olhos grandes o faziam se sentir culpado. Recomendou a si mesmo para deixar de idiotices.

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— Essa é uma razão irrelevante para encarcerar alguém. — Tess concluiu que seu tio perdera os últimos resquícios de sanidade. — Não deveria se algemar um homem só pelo fato de o coitado ter o mau gosto de perseguir uma mulher como Brenda — murmurou, procurando no bolso a duplicata das chaves.

Revan teria dado uma risada se não fosse a situação periclitante. Brenda Thurkettle era ruiva de olhos azuis e tinha um corpo capaz de alucinar um defunto. Ninguém poderia acusar um seu admirador de ter mau gosto. Exceto outra mulher.

Ou... alguém que conhecesse a pessoa escondida atrás de tanta formosura. Revan avaliou a jovem que estava diante dele.

— Está pensando em me soltar?— Bem, o senhor tem certeza de que foi só isso que fez? Cortejar a magnífica Brenda?— Nada além disso. A senhora esperava um crime abominável como roubo ou assassinato?Tess deu de ombros e, devagar, tirou a mão do bolso. — Isso está ficando cansativo. Revan não deixava de fitar as chaves.— A senhora mora aqui?Tess não se surpreendeu. Sempre passava despercebida.— Moro. Sou Tess, a sobrinha de Thurkettle. Estou aqui há quase cinco anos. Ah, agora me lembro. Eu

o vi passeando a cavalo com Brenda. Era o senhor, não era?— Era, sim. Bem... — Revan sacudiu os pulsos e os tornozelos, chocalhando as correntes.— Não me apresse, estou pensando. — Tess esfregou o queixo com a mão. — O senhor não é o criado

de sir Angus MacLairn, aquele gorducho? Hum... por isso meu tio não gostou da história. Se o senhor fosse o dono do castelo MacLairn...

— A senhora está pretendendo me soltar ou não?— Não seja apressado. — Ela deixou o castiçal no chão e destrancou a porta da cela. — Vamos lá. —

Pegou a vela, entrou e largou-a sobre a mesa velha ao lado do catre. — O senhor não foi apanhado com a mão na massa, foi?

Seria certo libertar um homem que fosse forçado a casar-se com Brenda? Ora, era sabido que a prima costumava esbanjar favores aos homens das redondezas.

— No quê?— O senhor sabe muito bem a que me refiro. Eu não deveria meter-me no meio de tal encrenca.— Não é o que está pensando, eu juro. Por que imaginou isso?Na verdade, Revan sentia que fora enganado por Brenda e ainda perdera a oportunidade de deitar-se

com ela.— Bem, por que o apanharam. O senhor quer que eu solte primeiro suas pernas ou seus braços?— Minhas pernas — Revan resmungou e franziu a testa quando Tess se ajoelhou para soltar as

algemas. — A senhora está vestida como um rapaz.— Ora, como o senhor é esperto, sir Halyard — ela murmurou, irônica. Levantou-se e não conseguiu

soltar-lhe os pulsos. — Mas que droga, esta é a chave errada.Tess foi até a mesa para examinar as peças sob a luz.— Espere um pouco. Como foi que entrou aqui? Eu não a ouvi descer a escada.— Meu tio mandou construir uma passagem secreta. Uma rota de fuga para ser usada em caso de

necessidade. Ah! Aqui está... — Ela abriu os dois grilhões restantes.Revan sentou-se e massageou os pulsos para apressar a circulação. Enquanto isso, observou sua

salvadora. Era magra e pequena. O gibão e a calça grandes acentuavam sua esbeltez. Aparentava ser bem jovem.

— Deixaram minha espada, meu chapéu e minha capa ali fora.Tess apanhou os objetos do prisioneiro.— O senhor sempre usa a espada para cortejar uma jovem?— Eu tinha intenção de levar Brenda para um passeio. Achei que seria prudente ter a arma comigo. —

Revan calçou as botas.

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Tess entregou-lhe os pertences e observou-o levantar-se. Alto, ombros largos e magro. Um belo homem. O ideal de qualquer jovem, mas que somente estava ao alcance das mais favorecidas, como Brenda. Ele amarrou o cinto e ajeitou a espada na bainha.

Por que Brenda não o defendera diante do pai? Ele era, de longe, o melhor da multidão de seus admiradores.

Tess considerou a idéia de perguntar o que ele fizera para conquistar a antipatia de Fergus, mas se deteve, apavorada. Alguém se aproximava. Escutou o ranger de uma porta e percebeu a luz na escada que dava acesso ao calabouço. Tinham vindo passar a revista no prisioneiro que ela soltara. Tess nem chegou a advertir Halyard do perigo. Ele a agarrou e a arrastou para fora da cela, com o punhal pressionado em sua garganta. Foi impossível reagir.

— Onde é a saída? — Revan sussurrou-lhe, recuando.— Continue indo para trás até a parede — Tess respondeu no mesmo tom. — Sentirá nas costas uma

série de prateleiras. Na verdade, é uma porta.— Como farei para abri-la?— Puxe uma argola de corda que está do lado direito. Ela teve tanto receio do punhal no pescoço quanto de seu tio e de seus fiéis soldados, Donald e

Thomas, que acabavam de chegar.— Pelas barbas do profeta, o que está acontecendo aqui? — Fergus Thurkettle berrou, desembainhou a

espada e apontou-a para Revan.— Será melhor não tentar nada — Revan advertiu-o com voz gélida —, ou cortarei a garganta da sua

sobrinha de orelha a orelha.— Sua maneira de demonstrar gratidão poderia ser um pouco mais sutil — Tess murmurou.Como pudera enganar-se tanto a respeito daquele homem?— Maldição! Como foi que ele conseguiu se soltar?— Bem, tio, esta é uma questão que deve...— Sua retardada! Quem mais poderia ter a brilhante idéia de soltá-lo? Não sabia que é um assassino?

Ele matou Leith MacNeill.— Quem?Revan praguejou. Thurkettle não somente planejara matá-lo como também encontrara uma maneira de

culpá-lo de assassinato.— É o homenzinho que esteve aqui antes — Revan cochichou no ouvido de Tess. — Terá de encontrar

outro tolo para assumir a culpa, Thurkettle — Revan chegou até a parede —, por que este já está saindo! — Os dois estavam encostados nas prateleiras. — Abra a porta! — ordenou para Tess.

Ela conseguiu puxar a corda, e a porta se abriu o suficiente para ambos alcançarem a escada estreita. Viu o tio e os soldados correrem na direção deles. Sem esperar ordem de Halyard, fechou a porta por dentro com a pesada tranca de ferro. Felizmente agira com rapidez. As batidas violentas na madeira maciça não deixavam dúvidas quanto às intenções de seu tio.

— Aonde vai dar esta passagem? — Revan levantou Tess nos braços e adiantou-se no corredor estreito e escuro.

— Na estrebaria. O que parece ser um armário de ferramentas é, na verdade, outra porta. O senhor não poderá selar sua montaria e fugir, se insistir em me carregar.

— Ficaria surpresa se soubesse do que sou capaz de fazer.— Eles estarão à sua espera.— Disso eu não tenho a menor dúvida.— Ah, esta será a última vez que faço um favor para alguém.— Cale a boca!Tess obedeceu, pois não encontrou uma resposta que o fizesse desistir de usá-la como escudo.Revan amaldiçoou o piso escorregadio e considerou-se o pior dos patifes. Nem sempre estar do lado

certo era o mais satisfatório. Antes de Thurkettle aparecer, considerara a hipótese de soltar a jovem.

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Embora detestasse esconder-se atrás de quem o salvara, Tess era a única garantia que ele tinha de escapar da fortaleza de Thurkettle.

Alcançaram a última porta, e Revan ordenou a Tess para abri-la. A luz repentina cegou-o. Estreitou os olhos e observou ao redor. Thurkettle o aguardava, ao lado de cinco homens armados. Andando de costas e de lado, Revan afastou-se da porta em direção à cavalariça.

— Larguem as armas! — Revan sorriu com frieza ao vê-los hesitar. — Não me provoque, Thurkettle. Não tenho nada a perder. — Ele ficou atento aos homens que jogavam as espadas no chão. — O senhor aí — apontou para um estribeira desajeitado e grisalho —, sele meu cavalo e não esqueça nenhuma das minhas coisas, inclusive o arco e o escudo.

O homem obedeceu.— O senhor não conseguirá escapar — Thurkettle sibilou.— Não estou me saindo tão mal assim.— Nós o alcançaremos.— É mesmo? Não chegue muito perto, Thurkettle. Levarei comigo sua sobrinha.— Não poderá ficar com ela para sempre.— O tempo que for necessário. — Revan percebeu que o cavalo estava pronto e fez sinal para todos

entrarem no túnel que acabava de deixar.Thurkettle praguejou e, contrariado, ordenou a seus homens para obedecerem ao fugitivo.Revan fechou a entrada empurrando a porta e disse a Tess para que a trancasse. Agarrou-a pelo braço e

obrigou-a a andar em direção ao cavalo.— Monte!— Vai me levar junto?— Monte! — ele repetiu.Ela obedeceu. Não lhe ocorria nenhuma maneira de desvencilhar-se daquele homem. Ele a sentou atrás

de si, trouxe seus braços para a frente e amarrou-lhe os pulsos com firmeza. Quando o cavalo disparou, Tess rezou para que o tolo não matasse a ambos em um galope desenfreado.

Fergus Thurkettle passou pelos portões da fortaleza a tempo de ver o ex-prisioneiro afastar-se.— Acertem aquele bastardo! — ele gritou aos arqueiros.— Mas... senhor — Thomas protestou —, poderemos matar sua sobrinha.— Que dia é hoje?— O quê? — Thomas mostrou-se confuso.— Que dia é hoje? — Fergus repetiu.— Terça-feira, quinze de março.— Ah... Ontem foi o aniversário dela — Thurkettle murmurou e sorriu. — Dezoito anos.— O que houve? Thurkettle continuou a observar o casal que se afastava. Tess completara dezoito anos. A fortuna da

sobrinha que ele administrava em confiança voltaria para Tess. Se ela morresse, ele seria o único herdeiro. Durante cinco longos anos, ansiara por aquele dinheiro. Aquele seria o momento ideal para matar dois coelhos com uma única cajadada.

— Vão atrás dele!— Mas... senhor — Thomas insistiu. — E Tess?— Não se preocupe com ela. Aquele cão sarnento conhece meus negócios com os Douglas. Logo Tess

também ficará sabendo. O que a torna uma ameaça, não é verdade? Agora vá!Os soldados dispararam para fora do castelo, e Thurkettle entrou. Pegou um jarro de prata e serviu-se

de vinho. Ergueu um brinde silencioso para si mesmo.— Suponho que há poucas chances de sir Revan ser trazido vivo de volta.Fergus espiou por sobre o ombro. Sua filha se aproximava.— Bem poucas.— Ah, que pena! — Brenda examinou seus anéis com expressão de tédio.

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— Necessidade, Brenda. Eu não poderia correr o risco de ele contar ao rei o que ficou sabendo. Minha filha, você poderia ter sido menos ardente nas suas demonstrações de virtude.

— Fiz isso pelo senhor. Só assim para conseguir saber se as suas suspeitas estavam corretas. Não o vejo nem um pouco agradecido.

— E jamais verá. Estava protegendo a si mesma. Se Halyard for trazido vivo para cá, permitirei que fique com ele algumas horas antes de matá-lo.

— Quanta bondade! — Brenda escarneceu. — Quanto a Tess, aconselho-o a se precaver. Ela não é tão tonta quanto parece.

— Não se preocupe com Tess.— Como assim? Não foi ela quem libertou Halyard?— Foi. Aquela estúpida! E também lhe mostrou como fugir. Agora ele a usa para se proteger, mas logo

descobrirá que foi um expediente inútil.Brenda arregalou os olhos.— O senhor pretende matar Tess...— E por que não? Não me diga que morre de amores por ela!— Na maior parte do tempo, nem mesmo a noto. Não será a mim que terá de dar explicações, meu pai.

Mas sim ao bando de parentes daquele homem com quem a tia cometeu a loucura de se casar.Fergus estremeceu ao lembrar-se do casamento da irmã.— Não terei de explicar nada. Será um caso lamentável de rapto e assassinato.— Que nós trataremos de vingar sem demora.— Isso mesmo.— Matá-la não será um pouco drástico demais? Certo que ela soltou Revan, mas...— Brenda, por que não se esforça para enxergar um pouco além do seu belo nariz? Tess deve

desconfiar de alguma coisa sobre as nossas atividades. O patife, que veio para nos espionar, logo ficará ciente da verdade. Juntos, poderão nos levar à forca.

— Sim, suponho que ela deve ter percebido algo nestes cinco anos.— E não é só isso. Tess fez dezoito anos ontem. A fortuna e as terras pertencerão a ela daqui para a

frente.— Tess tem dinheiro?— E muito. Metade das roupas luxuosas que estão na sua arca, Brenda, foram compradas com o

dinheiro dela. Eu fiquei com a despesa de educá-la e por isso tive permissão de retirar uma parte dos fundos. Durante cinco anos pensei em uma maneira de ficar com o dinheiro sem que os Comyn-Delgados viessem bater à minha porta. Agora ela me deu a oportunidade.

— Quer dizer que, se Tess morrer, o senhor ficará com tudo?— Até o último pêni. E posso lhe garantir que há uma montanha deles à nossa espera.— Tem certeza de que o risco valerá a pena?— Trinta mil riders de ouro lhe parecem pouca coisa? — Fergus sorriu ao ver a filha boquiaberta. —

Também estão no jogo um castelo fabuloso ao sul de Edimburgo, assim como terras na Espanha. A menina é muito rica.

— Não posso acreditar que Delgado, aquele pintor cheio de pose, tivesse dinheiro. Ou seria dos Comyn?

— Só a porção espanhola. A maior parte da fortuna era de minha irmã. Nosso pai quis lhe garantir o futuro quando recobrasse o juízo e largasse aquele mestiço com quem se casou.

— Nem os Comyns, nem os Delgados têm direito à fortuna?— Não. Era tudo de Eileen, e agora é de Tess.— Tem certeza de que é um plano fadado ao sucesso? Metade dos Delgados e dos Comyns estão no

exército ou a serviço do rei. Da lei e da Igreja. Não será interessante vê-los bisbilhotando.— Ela será raptada e morta. Quem vai duvidar disso?— Deixarei para comemorar quando o senhor estiver com o dinheiro nas mãos e nenhum membro

daquela reles família atrás de nós.

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Fergus deu de ombros, e Brenda achou-o um tolo por cantar vitória antes do tempo. Sir Revan Halyard era um homem inteligente, e Tess não era nenhuma tonta. Os dois poderiam representar um obstáculo às intenções de seu pai. Seria melhor cuidar dos próprios recursos. Se o pai afundasse, não pretendia juntar-se a ele.

— Não se inquiete em demasia, Brenda.— Creio que o senhor deveria se preocupar um pouco mais. Só sossegarei quando vir Revan e Tess

enterrados.— Então, minha querida, pode tratar de arejar seu traje de luto, pois irá precisar dele logo, logo.

Com o corpo dolorido, Tess gemeu quando Revan a tirou de cima do cavalo. Haviam passado horas galopando em círculos para enganar os perseguidores.

Revan amarrou-lhe as mãos no arção da sela. Ela teve de ficar na ponta dos pés, encostada no animal suado. Xingou o homem cruel e desumano a quem libertara. Na primeira oportunidade, enfiaria o punhal na barriga daquele ingrato. Uma ferida no estômago, difícil de sarar, que não fosse fatal mas que trouxesse grande dose de sofrimento.

— Seu linguajar poderia ser um pouco mais refinado — Revan murmurou, afastando uma pedra larga do caminho.

— Verdade? Pois eu acho que as suas idéias de como tratar quem o ajudou também poderiam ser revistas.

— Desculpe-me, mas se eu não a tivesse usado para fugir, já estaria morto.— E eu sinto ter passado pela masmorra. Mas... que diabos o senhor está fazendo?— Aprontando um esconderijo. — Revan continuou a arrancar ramos da moita.— Quer dizer que não vamos fugir como dois facínoras? Graças a Deus! Estou exausta!— Como gosta de reclamar... — Revan espiou o céu e a lua. — A luz do quarto minguante nos daria

condições para prosseguirmos.— Ah... — Tess também olhou o céu — ...é verdade. O brilho é tamanho que estou ofuscada.Na verdade, o cavalo lhe impedia a visão. Mas podia ouvir Revan mover uma grande quantidade de

pedras e folhagens. Tess não conseguiu virar o animal. Era um malcriado, assim como o dono.— Vamos — ele murmurou ao soltá-la do cavalo e amarrar-lhe novamente os pulsos.— Para onde?Foi puxada, juntamente com o cavalo, para uma caverna.— Hum... bem conveniente — Tess resmungou, ao ser empurrada para dentro.Revan não respondeu à provocação e levou o cavalo para o interior escuro. De novo amarrou os pulsos

de Tess no arção da sela, para não lhe dar oportunidade de fugir, enquanto estivesse ocupado em montar um pequeno acampamento.

Depois de tudo preparado, ele a soltou e disse-lhe para sentar-se no fundo da gruta. Sem desviar a atenção dela, ocultou depressa a entrada, da melhor maneira que pôde, pelo lado de dentro.

Tess caminhou até a manta que Revan estendera e sentou-se. Muito cansada, nem pensava em fugir. Além disso, a noite era escura, e Revan estava de olhar fixo em seus movimentos.

Ela não conseguia entender como se metera naquela enrascada. Não fazia sentido. Agachado ao lado do fogo, Revan concentrava-se em fazer um mingau.

— O senhor matou uma pessoa... não foi? — Acusou-o, mesmo sem acreditar que ele fosse culpado de tal crime.

— Não.— Então o senhor roubou algo.— Nem um vintém.— Mas fez alguma coisa além de arrastar a asa para Brenda.— Não tenho asas. Tess ignorou a rispidez.

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— Meu tio não decidiria executá-lo só porque o senhor resolveu cortejar a filha dele. Se fosse assim, haveria cadáveres empilhados por toda a Escócia.

— Será que notei uma ponta de ciúme?— De maneira nenhuma. O senhor vai responder ou não às minhas perguntas?— Eu já as respondi. — Revan a olhou com interesse. — Agora eu quero saber algumas coisas.— Hum... que extraordinário! Ele não deu atenção ao sarcasmo.— A senhora é mesmo sobrinha de Thurkettle? Não vejo nenhuma semelhança entre ambos.Revan tirou-lhe o chapéu velho da cabeça e desejou não tê-lo feito. Os grampos se soltaram e uma

cascata de cabelos negros e lustrosos despencou até a cintura. Ele entendeu por que o chapéu de copa grande não caíra durante a cavalgada. A massa de cabelos enchera a cavidade e segurara a peça no lugar.

— Se o senhor conhecesse a família, veria alguns traços semelhantes. Vai soltar minhas mãos agora? — Tess estendeu para a frente os punhos amarrados. Revan voltou-lhe as mãos para o colo.

— Pensarei no caso. O seu nome é... Tess Thurkettle?— Contessa Comyn-Delgado. — Tess estava acostumada com a reação de espanto diante de seu nome

completo.— A senhora é espanhola? — ele murmurou, quando voltou a si. — Eu não sabia desses laços de

Thurkettle.— O parentesco é por parte de meu pai. Minha mãe era irmã de Thurkettle. Quando meus pais

morreram, fui morar com ele. — Tess passara da tragédia de perder os pais à infelicidade de morar com parentes que pouco se incomodavam com ela. — A mãe de meu pai era escocesa, uma Comyn, e o pai dele, espanhol. Meu pai não foi considerado um bom partido para uma Thurkettle. Ele era apenas um pintor na corte do rei.

Revan não duvidou das palavras de Tess. Thurkettle era conhecido por suas pretensões. Vivia a vangloriar-se de uma tênue descendência do rei Roberto I, falecido em 1329. Se o pai de Thurkettle houvesse tido metade da soberba de Fergus, a mãe de Tess deveria ter sido muito corajosa para casar-se com um Delgado. A vida não devia ter sido muito agradável para Tess. Afinal, ela era uma lembrança ambulante da excêntrica escolha matrimonial de sua mãe.

— Contudo, isso não me parece motivo suficiente para alguém querer matá-la.— Matar a mim? — Tess indagou, atônita. — Que absurdo! Eles estão atrás do senhor.— E da senhora. Atiravam flechas a esmo, sem a preocupação de protegê-la.Ela percebera muito bem, mas não queria falar sobre o assunto. A verdade era horrível demais para ser

comentada: a rejeição total da família de sua mãe.Mas por que matá-la depois de cinco anos? Não que Fergus não tivesse tentado. E por três vezes!Embora Tess procurasse ignorar uma suspeita insidiosa, os fatos insistiam em vir à tona. Ela não

quisera acreditar que os três episódios específicos houvessem sido acidentais. Afastara os indícios, enganando a si mesma.

— O senhor está equivocado. — Tess afirmou com a dor transformada em raiva.Revan sacudiu a cabeça e entortou os lábios. No começo, pensara que os soldados fossem apenas

estúpidos. O que não deixava de ser uma verdade. Contudo eles jamais fariam nada que contrariasse as instruções de Thurkettle. Se atiravam flechas sem considerar a vida de Tess, era por que cumpriam ordens de Fergus.

Por que desejavam matá-la?Isso não era novo para Tess Thurkettle, Revan cismou, enquanto servia vinho para ambos. Os belos

olhos negros não o enganavam. Também pudera ler neles a luta para negar o fato. Aquele traço de inocência não lhe agradava. Preferia pensar que ela fizesse parte das intrigas e dos planos traiçoeiros de Thurkettle. Se acreditasse em Tess, poderia estar morto.

— Não estou equivocado, a senhora sabe disso. Posso ler nos seus olhos.Tess fitou-o com desdém e aceitou o copo de vinho.— Ah, que bobagem!

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— Pois eu lhe digo que seus olhos são claros e legíveis como a melhor das escritas. A senhora está tentando negar a verdade que a atormenta.

— Essa é uma acusação odiosa. Por que meu tio haveria de querer me matar?— Eu esperava que a senhora me contasse os motivos.— Eu contaria se eles existissem. — Tess tomou um gole de vinho.— Não acredito que Thurkettle esteja agindo dessa maneira por desaprovar a sua árvore genealógica —

Revan murmurou, de olhar fixo em Tess.— Essa desaprovação se traduz apenas em me ignorar. Meu tio não mancharia as mãos de sangue para

se ver livre de mim. O senhor andou atrás de Brenda por algum tempo e nem mesmo me conhecia. Certo?— Sim, a senhora foi uma surpresa para mim.— Eu não disse? Como vê, ele não teria de cometer um assassinato para me afastar da família.— Correto. E qual seria a próxima possibilidade? Um assassino pode encontrar inúmeros motivos.

Ciúme? Não acredito. A menos que haja um triângulo amoroso que eu desconheça.— Nada poderia ser mais ridículo.— Se quer mesmo saber, não creio que o amor faça parte dessa família.Tess escondeu a verdade dolorosa sob uma máscara de pouco caso.Revan experimentou uma pontada de simpatia ao perceber o sofrimento no olhar de Tess. Havia

semanas vinha observando os Thurkettles. Não vira Tess nem ouvira falar dela. Tess não existia para seus parentes. Eles a mantinham afastada como se ela fosse uma mancha vergonhosa. Tess não devia ter re-cordações agradáveis do tempo em que passara no castelo do tio. Mesmo assim, tratou de abafar o sentimento de simpatia por ela. Não tinha certeza de que Tess fosse confiável, mesmo duvidando que ela participasse do sistema de intrigas do tio.

— Dinheiro, talvez. Cobiça. A senhora tem dinheiro?Revan considerava a hipótese remota, pelas roupas grosseiras que Tess usava. Mas não pôde deixar de

notar o lampejo de entendimento que passou naqueles grandes olhos negros.Ela estremeceu ao pensar na hipótese. Dinheiro era a única coisa que Thurkettle amava mais de que a si

próprio. E a partir da véspera, quando completara dezoito anos, Tess passara a ter direito à herança. Uma grande quantia até para um padrão social elevado. Por isso o fato de o aniversário dela haver mais uma vez caído no esquecimento tornava-se pouco significativo. Muitas terras e uma grande quantia de dinheiro passariam para Tess Delgado. Fergus Thurkettle perderia o controle sobre a vida da sobrinha. Não havia dúvida. Por dinheiro, seu tio seria capaz de matá-la.

Os acidentes passados tinham sido tentativas de afastar a única herdeira que se interpunha entre o tio e a fortuna. A verdade era que ele a desejava morta havia anos. Sempre com o cuidado de afastar as suspeitas de sua não tão honrada pessoa. Em uma das vezes, um cavalo, em geral manso e que de repente se tornara arisco, a derrubara. Para infelicidade do tio, Tess não quebrara o pescoço. Em outra, uma pequena missão que a fizera passar várias vezes sobre uma ponte em ruínas. A terceira fora uma construção de pedra que resolvera desabar no exato momento em que ela passava por debaixo.

E, por último, um incidente que caíra dos céus e que resultará em um plano perfeito. Tess fora raptada e seria morta pelo raptor. Mesmo que ela morresse por obra e graça dos arqueiros de seu tio durante a perseguição a Revan, Fergus teria como declarar inocência.

Revan admirou-se em notar como os pensamentos se refletiam na expressão de Tess.— A senhora é dona de alguma fortuna? — ele insistiu. Ela relutou em dizer quanto valia.— Não é grande coisa.— Vamos lá. Thurkettle não se daria a tanto trabalho por pouca coisa.— Poucos milhares de ríders de ouro e alguns pedaços de terras.— Bem, não é tanto como eu imaginava. Mas talvez seja o suficiente para despertar a cobiça de

Thurkettle.Revan entendeu que a verdade não fora completa, mas resolveu não pressionar. Se Tess aceitasse o

fato, a quantia exata não importava. Ele concluiu que a idéia a impediria de tentar uma fuga. Apesar de uma desconfiança residual, tirou o punhal da bainha e cortou o laço que lhe prendia os pulsos.

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— Estou livre? — Ela observou-o guardar a lâmina, pensando tratar-se de uma armadilha.— Se resolver fugir, a senhora não ganhará muita coisa.— É... tem razão.— Tess esfregou os pulsos doloridos. — Parece que há muita gente querendo que eu

morra. — Fitou-o de relance. — Eu ainda não o excluí.— A senhora é inteligente.— Por outro lado, não seria uma idiotice ameaçar-me agora que estou livre?Revan deu de ombros e experimentou o mingau. Estava pronto.— Eu não ganharia nada com a sua morte. — Ele pôs a papa em uma tigela de madeira e serviu Tess,

entregando-lhe uma colher. — Se cumprir minhas instruções, nada lhe acontecerá. Seu tio não lhe daria a mesma chance.

A contragosto, ela foi obrigada a lhe dar razão. A fome deixou o mingau palatável. Assim mesmo, rezou para que o cardápio pudesse variar caso ficassem escondidos por mais tempo. Se tivesse de comer aquele angu dia após dia, talvez o tio assassino não lhe parecesse tão cruel.

Em um piscar de olhos, sua vida passara de ruim a deplorável, Tess refletiu enquanto comia. Sua única esperança seria encontrar a família de seu pai. Eles se encarregariam de seu tio Fergus e também de sir Halyard, o seqüestrador. O problema maior era eles estarem a muitos dias de viagem e só havia uma montaria. A de Revan. Com um agravante. Não estava certa de que poderia encontrar sozinha o paradeiro deles. Os Comyn não eram conhecidos como viajantes consumados. Diziam que tio Sílvio Comyn era capaz de perder-se ao sair da cama.

Exageros à parte, a verdade era que ela e os parentes tinham uma tendência para errar o rumo.Tess convenceu-se de que só lhe restava uma saída: convencer Revan a levá-la até eles. Deu um

suspiro profundo. Talvez Moisés houvesse enfrentado tarefa mais simples ao abrir uma passagem pelo mar Vermelho. Revan a raptara e ameaçara cortar-lhe a garganta. Não lhe agradaria um encontro com os parentes dela. Contudo uma tentativa não iria piorar sua situação.

— Será melhor não prosseguir nas maquinações — Revan comentou ao tomar de Tess a tigela vazia.Ela franziu a testa.— E quem disse que estou tramando algo?— A sua fisionomia matreira. — Ele continuou a bebericar o vinho.— Hum... — Tess serviu-se de mais um pouco da bebida.— Agora que está mais à vontade, vamos falar a respeito de seu tio.— Ótimo. Meu tio quer nos ver mortos. Sabemos os motivos por que ele quer me matar. E quanto ao

senhor? Não creio tê-lo ouvido explicar os motivos por que Thurkettle o odeia. Vamos falar sobre isso!— Digamos que eu conheço alguns fatos que ele gostaria de manter em segredo.— Ah, isso seria suficiente para encher as folhas de um livro.— É mesmo?— Há muitas esposas que devem rezar todas as noites para que meu tio mantenha a língua dentro da

boca. Ele alardeia para todos os cantos as gotas de sangue real que lhe correm nas veias, e as tolas acreditam. — Tess sacudiu a cabeça com desalento.

— Não era a esse tipo de segredo a que eu me referia.— Não? Bem, acho melhor me dizer exatamente no que está interessado. Assim poderei confirmar ou

não a veracidade dos fatos.— Será mesmo? — Revan pôs mais um pedaço de lenha no fogo. — Por que devo acreditar nisso? A

senhora estaria traindo seus parentes.— Caso contrário, o senhor não perderia a oportunidade de me torturar para que eu os traísse. Sir

Revan, meu tio deseja me matar. Isso corta qualquer laço familiar. Somente um tolo ofereceria lealdade cega a um homem que desejasse enterrá-lo.

— O que não é o seu caso.— Não me considero tola na maior parte do tempo. Sendo assim, por que não diz logo por que meu tio

quer vê-lo na sepultura?

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Revan considerou que não havia motivos para manter segredo. Tess encontrava-se sob uma ameaça tão grande quanto a dele. Ela também era bastante arguta para acreditar que pudesse negociar com Thurkettle. Esperava não estar agindo apenas sob a influência de um belo par de olhos negros que o faziam pensar em honestidade. Prometeu a si mesmo que, no futuro, procuraria não fitá-los demais.

— Acredito que ele esteja se dedicando a algumas atividades ilegais — Revan começou, depois de alguns minutos de hesitação.

— Ora bolas! Pensei que o senhor iria me contar algo que eu ignorasse.— A senhora tinha conhecimento disso? — Ele julgou o sarcasmo de Tess irritante.— Meu tio agindo contra a lei? Eu me surpreenderia se ele não estivesse envolvido em alguma coisa do

gênero. Ao que o senhor se refere exatamente?— Traição. Thurkettle está mancomunado com os Douglas contra Jaime II.Tess engasgou com o vinho. Havia muito tempo desconfiava da natureza criminosa das ocupações do

tio, mas não imaginara que ele pudesse estar metido em algo tão sério. Traição contra o rei? Descrente, sacudiu a cabeça. Fergus não poderia ser tão idiota a ponto de macular o nome da família com um crime tão tenebroso.

Por outro lado, ela refletiu após recuperar-se do choque inicial, Fergus queria matar Revan e a própria sobrinha. Revan estava certo. Existia um envolvimento com os Douglas que haviam desafiado o rei.

— Tem certeza disso?— Absoluta. Preciso apenas de provas mais contundentes.— Ah! — Tess fitou-o com olhos apertados. — Por isso o senhor vinha assediando Brenda, a

Magnífica?— Eu não assediei ninguém. — Ele suspirou por causa da mentira. — Pensei em obter algumas

informações que me levassem às evidências de que necessito.— Vejam só. Pelo visto, o senhor não conhece bem a prima Brenda.— Ela é um pouco mais obtusa do que eu pensava que fosse.— Não, senhor. Um pouco mais esperta. Tio Fergus não pode fazer nada sem que sua filha tome

conhecimento.Revan largou o odre de vinho.— Eu imaginei isso enquanto estava preso na parede da masmorra. — Aborrecia-o o fato de ter feito

papel de idiota.— Brenda é um azougue. Uma pergunta a mais, e ela logo fica desconfiada.— E, provavelmente, manteve o pai informado de tudo o que eu fazia — Revan resmungou.— Tire o provavelmente.— A senhora não precisa jogar sal em cima da ferida.— O senhor também não precisa ficar tão mal-humorado quanto a isso. Homens... — Tess sacudiu a

cabeça com movimentos vagarosos. — Basta ver alguns cachos ruivos, belos olhos azuis e um par de outras coisas bem fornidas, para o miolo deles virar mingau e começar a sair pelas orelhas.

Revan reconheceu alguma verdade naquelas palavras, mas fingiu não tê-las ouvido.— Não vai me dizer mais alguma coisa a respeito de Thurkettle?— Bem, eu sempre soube que ele não era um bom sujeito. Mas nunca fui testemunha de alguma coisa

que lembrasse traição. — O cansaço a impedia de raciocinar com clareza. — Talvez o senhor devesse ter-me perguntado isso mais cedo. Nesta altura, acho que até meu nome escapará da minha memória.

Tess parecia mesmo exausta. E Revan também sentia a fadiga abater-se sobre seu corpo e sua mente. Mais tarde poderiam conversar melhor.

— A senhora pode dormir aí mesmo. — Ele cercou o fogo. — Conversaremos amanhã cedo.Tess anuiu, tirou as botas e deixou-as perto do chapéu. Ajeitou-se o melhor que pôde sobre o colchão

fino. Puxou o cobertor e virou-se de costas para o fogo. Apesar dos problemas, entendeu que dormiria logo. Não teve tempo de fechar os olhos. Revan esgueirou-se para baixo do cobertor, e ela deu um grito. Desperta e de olhar arregalado, virou-se e deu com os ombros largos de Revan.

— O que o senhor pensa fazer? — A voz de Tess saiu esganiçada.

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— Dormir, é claro.— O senhor não pode dormir aqui.— Não há outro lugar para isso, madame. Além do mais, estou muito exausto para me importar com os

brios feridos de uma donzela. E também muito cansado para ameaçar qualquer jovem. Trate de acalmar-se e dormir.

Tess considerou que Revan estava certo. E enquanto ela não dormisse, ele não teria sossego, com receio de uma fuga. Fechou os olhos e adormeceu, sem pensar em nenhuma espécie de decoro.

Revan ouviu-a ressonar e fechou os olhos. Por enquanto estavam em segurança. Dias perigosos os aguardavam.

Capítulo II

— Muito bem. Agora podemos conversar. — Revan abaixou-se junto ao fogo, tomou um gole de vinho e tentou ignorar a raiva com que Tess o fitava.

Desde que ela acordara, seu mau humor mostrava-se implacável. Ele imaginara que uma boa noite de sono poderia melhorar-lhe o estado de espírito e que Tess passaria a entender que eles eram aliados, e não inimigos. Em vez disso, ela continuava a encará-lo como se Revan fosse um objeto asqueroso do qual não conseguia livrar-se. O que realmente começava a aborrecê-lo.

— Se a senhora me ajudasse, o benefício também seria seu.Tess viu-o estreitar os olhos e calculou que teria de ser menos agressiva. Quando acordara, ficara

furiosa ao avaliar a situação em que havia sido arrastada. Apesar de censurar a si mesma, não conseguia refrear o temperamento. Reconhecia que Revan tinha problemas, mas ele a levara apenas para proteger-se. E o presunçoso era um alvo certeiro do ódio nascido de sua frustração.

— É mesmo? Assim como foi ajudá-lo a fugir da masmorra do castelo?— Sinto muito, mas eu não tive escolha. Aliás, deveria me agradecer por escapar a tempo do castelo de

seu tio. Não esqueça de que os arqueiros visavam tanto a mim quanto à senhora.— Jamais esquecerei uma coisa dessas. Nem que o senhor ofereceu a meu tio uma maneira perfeita de

me assassinar, sem sofrer as conseqüências!Revan estremeceu diante das palavras de Tess.— Se ele se valeu da oportunidade com tanto afã, a senhora deveria ficar satisfeita de poder se

esconder. Com certeza Thurkettle já vinha pensando no assunto antes. Acredito que a senhora não deva ter percebido as intenções dele em matá-la.

Tess desistiu de uma resposta áspera. A irritação começava a dissipar-se diante da lógica e da veracidade das palavras de Revan. Suspirou e tornou a encher com o vinho diluído o copo amassado de estanho.

— Eu percebi... mas só ontem tive certeza.Revan alegrou-se com a mudança repentina do humor de Tess, sem entender por que ela o perturbava.— Então seu tio já tentou matá-la?— Já. Em três ocasiões... Embora estranhando os fatos na época, procurei pensar neles como

acidentais. Afinal, Fergus é meu tio. Creio que ele estava por trás dos acontecimentos.— É bem provável. A senhora tem outra família?— E grande. Por quê?— Não entendo como Thurkettle pensa em se apoderar da sua fortuna. A senhora fez algum testamento

a favor dele?— Claro que não. A herança era de minha mãe, deixada por meu avô. E a essa, foi acrescentada a do

meu pai. Vovô Thurkettle queria que mamãe tivesse os próprios rendimentos e pensava em protegê-la

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quando, e não se, ela abandonasse meu pai. Mamãe morreu, e vovô passou a administrar os bens. Então ele morreu e...

— E Fergus assumiu o controle.— Isso mesmo.— E depois?— Anteontem, quando fiz dezoito anos, eu me tornei dona de tudo.Revan fitou-a com espanto.— A senhora tem dezoito anos?Tess encarou o assombro dele como um insulto.— Por quê? Quantos anos pensou que eu tivesse?— Bem... suas roupas... — Revan apontou o traje masculino. — Imaginei que fosse bem mais jovem.

Por que, em nome de Deus, usa roupas de homem?Ela sentiu-se ofendida com a desaprovação que notava nos olhos azuis.— Sir Halyard, eu estava limpando a estrebaria e fazendo outras tarefas que costumam sujar as

pessoas. Tenho apenas dois vestidos. Um simples e outro nem tanto. Não poderia estragá-los.Tess tomou consciência das roupas esfarrapadas que usava. Revan era um homem tão bonito, e ela

parecia uma maltrapilha. O que não a impediu de empinar o nariz.Como haveria de envergar seu melhor traje se nem mesmo sabia que iria salvar um príncipe

acorrentado? E que seria arrastada por ele noite adentro?Revan quase se desculpou por tê-la ofendido.— Por que só dois vestidos? E o seu dinheiro?— Eu já lhe disse. Meu tio administrava os gastos.— Hum... Pelo pouco que entendo do assunto, ele poderia usar os fundos para algumas despesas.

Dinheiro necessário para a casa, para as roupas e para a sua educação. Fergus tinha o controle completo?— Não. Havia dois advogados que supervisionavam os procedimentos. Ele era obrigado a especificar a

quantia da qual necessitava e sua finalidade. Vovô Thurkettle não confiava muito no filho, e existem algumas restrições ao meu tio. Acho que Fergus não respeitava as normas.

Revan viu a dúvida expressa no rosto de Tess e concordou com ela. Se pudesse, Thurkettle teria tirado até o último centavo da herança da sobrinha. Por ter direito a despesas, certamente as fizera sem dar nenhum pêni a Tess. E ela sabia disso.

Revan começava a encarar Tess Delgado mais como vítima do que como conspiradora. Imaginou o que ela saberia acerca das atividades do tio. Provavelmente nada, ou, na melhor das hipóteses, muito pouco.

— Está lembrada do que eu lhe contei sobre Fergus estar implicado na traição contra Jaime II?Tess procurou não refletir em como fora cega e tola, nem em como fora maltratada. Raiva e

autopiedade não resolveriam o problema.— Sim. Impossível esquecer um crime desses. Mas como se pode ter certeza?— Seu tio se envolveu demais com a rede dos Douglas, descendentes de Douglas, o Negro,

companheiro de Roberto Bruce e morto em 1330. Impossível eximi-lo de culpa, apesar de nada de concreto ainda ter sido provado contra ele.

— E o senhor achou que por intermédio de Brenda conseguiria dados mais consistentes?— Será que não podemos esquecer Brenda?— Está bem. Não precisa ficar tão mal-humorado.— Não estou mal~humorado!— Oh, claro que não está — Tess zombou. — Qual o seu interesse nesse caso, sir Halyard? — Tess

ainda não se convencera de que podia confiar nele totalmente. — Como posso ter certeza de que a sua espionagem não nasceu da idéia de acusar um pretenso traidor e ganhar posição de destaque entre os Douglas?

A suspeita dela o enfureceu, mas Revan procurou dominar a ira. Tess tinha motivos para suspeitar de qualquer um, depois do que sofrerá e do que descobrira.

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Ele reconheceu que a prudência se fazia necessária, mas o único caminho era relatar-lhe toda a verdade. Qualquer outra coisa aumentaria a suspeita de Tess Delgado, o que a tornaria uma inimiga.

— Há meses venho investigando os seguidores do conde de Douglas e seu tio. Sou um cavaleiro a serviço de Jaime II, ao seu dispor.

— Ah, sim, e eu sou a rainha da Inglaterra. — Tess considerou-se insultada. Revan devia pensar que ela tivesse cérebro de lesma. — O senhor pode provar o que diz?

— Claro que não. Carregar documentos para testemunhar que trabalho sob as ordens do rei resultaria em uma condenação à morte. O homenzinho magro que trabalhava na cavalariça de seu tio também estava a serviço do rei. Ali é um bom lugar para ouvir e ver muitas coisas. Ele nós fornecia informações. Infelizmente seu tio descobriu as atividades do homem, e eu não fiquei sabendo de nada.

— Por isso Fergus deve tê-lo matado.— Não há a menor dúvida a respeito.Tess levantou-se e caminhou até a entrada da caverna. Encostou-se na rocha e espiou pela pequena

abertura que Revan deixara para entrar ar e luz. Procurou organizar as idéias e as emoções. Seu mundo fora virado de cabeça para baixo. Sua vida estava ameaçada. Precisava decidir se poderia confiar em sir Revan Halyard ou em qualquer outra pessoa. E o mais importante: teria de lutar contra a vontade de chorar que lhe apertava a garganta.

Como não se desesperar diante de tantas notícias ruins de uma só vez? De costas para Revan, Tess limpava com os dedos as lágrimas que teimavam em escorrer por sua face. O cavaleiro do rei só abria a boca para falar em delitos e erros.

Que atitude tomar a respeito de Revan?, ela cismou, disfarçando para tirar um lenço do bolso e assoar o nariz. Supôs que teria de confiar nele. Mesmo que não lhe agradasse admitir, ambos tinham alguns laços em comum. Fergus Thurkettle tentara matá-los.

O que a perturbava era a firme intenção de Revan em acusar seu tio de traição. Se ele fosse, mesmo um dos cavaleiros de Jaime II, o propósito seria aceitável. Entretanto seu interesse poderia ter origens mais obscuras. Revan poderia estar metido em conspirações e acusava Fergus para afastar as suspeitas sobre si mesmo. Tess concluiu que teria de apostar no próprio instinto para decidir. E sua intuição, nas atuais circunstâncias, não era muito confiável. O fato, irrelevante até a véspera, de Revan ser um homem muito atraente era um grave comprometimento para a paz de espírito de qualquer mulher.

Revan suspirou e levantou-se. Sabia que Tess estava chorando e lamentou que nada pudesse fazer a respeito. O tio dela era um assassino, um traidor com ganância de poder. Também não poderia prometer-lhe que tudo terminaria bem. Pouco à vontade, aproximou-se de Tess.

— Eu não menti. Sou um dos cavaleiros pessoais do rei. Ela esfregou os olhos com impaciência.— Tenho certeza de que o senhor me perdoará — resmungou —, se eu não acreditar nas suas palavras

com tanta facilidade. Nunca ouvi falar de cavaleiros do rei que raptam pessoas inocentes e ameaçam cortar-lhes a garganta.

— Eu não pretendia matá-la.— Não? E o que teria feito se eles descobrissem o seu blefe?— Eu me mataria.Tess virou-se. Pela expressão triste de Revan, poderia apostar que ele não mentia. O que a fez decidir-

se. Na verdade, não tinha outra saída a não ser confiar em sir Halyard. Isso, porém, não impediria que o avaliasse com atenção o tempo inteiro.

— Muito bem, contarei o que eu vinha observando. A amizade de meu tio com os Douglas aumentou de maneira considerável. Mensageiros iam e vinham. — Tess voltou a olhar para a pequena abertura. — Fergus contratou muitos soldados. Os fabricantes de flechas e o armeiro trabalhavam sem descanso. Eu comecei a recear um assalto iminente ao castelo.

— Por acaso a senhora ouviu comentários de que se preparavam para um ataque?

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— Creio que não. Pelo menos não vi nenhum exército em formação, se é o que deseja saber. Mesmo que houvesse algum plano em andamento, ninguém comentava o assunto. — O conde de Douglas é audacioso, mas prudente.

— O que meu tio teria a ganhar com isso? — Tess fitou Revan. — Ele está longe do trono.— Sei disso, mas os Douglas não. Depois do assassinato de Jaime I, somente um jovem os separava do

trono.— E a morte terrível dos assassinos não será facilmente esquecida. — Tess suspirou e estremeceu. —

Bem, meu tio gastou uma fortuna com armas e soldados. Com certeza deve contar com uma recompensa generosa que ultrapasse as despesas.

— Foi esse esbanjamento de dinheiro que me levou até ele. Tem certeza de não ter ouvido nada que pudesse lhe parecer um plano de ataque? Nem dos tais mensageiros? Se eles vinham a mando dos Douglas ou se os emissários de seu tio levavam recados para eles?

Tess franziu o cenho, encostou-se na parede de pedra e forçou a memória. Nisso os fatos começaram a aflorar, e ela deu um tapa na testa.

— O túnel! — gritou. — Onde eu estava com a cabeça?— Que túnel?Pela expressão de Tess, Revan soube que ela se recordava de algo muito importante. Mas controlou a

excitação, já que poderia se tratar de algo irrisório.— Sabe a passagem escura por onde o senhor me arrastou com o punhal na minha garganta? — Tess

fez questão de enfatizar o perigo que ela correra.— A senhora pretende lembrar-se disso para sempre, não é? Tess admitiu que o aborrecimento de Revan pela referência ao incidente a fazia ter mais confiança

nele.— Não é fácil esquecer que, em retribuição a um ato de bondade, recebe-se uma lâmina de aço

pressionada na jugular. Uma ingratidão básica destinada a perdurar na mente de qualquer um.— Bem, e quanto ao túnel?— Ah, sim. Há dois recintos laterais ao túnel, onde são estocados as colheitas e os dízimos recebidos. E

também coisas que devem ser mantidas resfriadas. Maçãs e vinho, por exemplo. Acho que todos os castelos têm esses depósitos subterrâneos. Ah, mas isso não importa. Há uns dois meses, eu passava pelo túnel e ouvi a voz de meu tio.

— Com quem ele conversava? Seria com um dos Douglas?— Acredito que sim. Devia ser uma pessoa importante no clã. A pessoa falava com tom de

superioridade. Lembrava fatos do passados sobre os quais meu tio não queria falar. Depois perguntou se as mercadorias destinadas aos Douglas não se estragariam, pois não estavam bem acondicionadas. Meu tio assegurou que durariam até o começo de maio.

— Tem certeza disso?— Claro. Havia um clima de segredo no ar. Eles falavam em voz baixa, e eu me esgueirei dali o mais

depressa que pude.— Fez muito bem. Eles a teriam matado se a descobrissem. — Revan bateu com o punho fechado na

palma da outra mão. — Hum... dois meses. Isso combina com o que fiquei sabendo.— E o que foi?— Que um exército de milhares de homens estava sendo treinado para marchar contra o rei.— Inacreditável! Por que meu tio arriscaria a vida e o nome da família?— Se pensar um pouco, acabará encontrando os motivos.— Na certa para obter terras e títulos. Ainda assim, não entendo o interesse dos Douglas em Fergus.

Isso me parece um jogo grande demais. Meu tio prefere riscos menores. Espere um pouco. — Tess recordou-se de mais alguns trechos da conversa. — Essa não deve ser a primeira vez que meu tio se mete em traição.

— Como sabe disso?— O poder que os Douglas têm sobre ele é a prova de que tomou parte no assassinato de Jaime I.

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Revan estava atônito. Era tudo o que precisava saber. Passara um tempo enorme espionando, cortejando Brenda, engajado em mil subterfúgios. Considerou um pouco irritante constatar que, em alguns minutos, Tess lhe contara o que ele não descobrira em meses de investigação.

De repente, ocorreu-lhe que Thurkettle poderia desconfiar de que a sobrinha se tornara uma valiosa fonte de informações. O que daria ao traidor motivos mais consistentes para querer matá-la.

Nesse caso, Tess encontrava-se mais ameaçada do que ele. Resultado: não poderia abandoná-la enquanto Thurkettle representasse uma ameaça. Revan assumira uma responsabilidade que lhe parecia uma tarefa hercúlea. Nem sabia se conseguiria salvar a si mesmo!

— O que lhe contei não adiantou? — Tess perguntou ao notar-lhe o semblante carrancudo.— Ah, sim, ajudará muito. Se eu conseguir levar a informação até o rei ou a seus aliados. Contudo a

mesma notícia não lhe é favorável.— Sei disso. É mais um motivo para meu tio ou os Douglas tentarem me silenciar.— Eu não imaginei que tivesse percebido o perigo.— Não foi difícil. Ele pode supor que eu saiba de algo. De qualquer forma, já havia razões para me

matar. Morte por morte, tanto faz. Ninguém morre duas vezes.Tess procurou aparentar uma calma que não sentia. Deu alguns passos e sentou-se ao lado da fogueira.

Durante seus poucos anos de vida presenciara doenças, inimizades entre clãs e batalhas. Perigos generalizados e enfrentados por todos. Agora a ameaça era pessoal e a perseguiria até que seu tio fosse detido em suas loucuras. Não adiantava apavorar-se. Teria de encontrar energia para encarar os riscos.

Voltar para seu antigo lar seria seu principal objetivo. Queria o conforto e a segurança da família sempre crescente do pai. Os Delgados e os Comyns formariam um círculo coeso ao redor dela que nem mesmo Fergus Thurkettle seria capaz de romper.

Percebeu que Revan se aproximava. Desviou o olhar quando ele se abaixou junto ao fogo. Disse a si mesma que teria de acostumar-se a depender de Revan, da sua boa vontade, proteção e perícia. Como não o conhecia, não poderia afirmar que ele seria capaz de conceder-lhe tudo isso.

— Tess. — Revan hesitou antes de sentar-se perto dela. — Existem apenas duas possibilidades. Ou seu tio deixa de ser uma ameaça para nós, ou nós deixamos de ser uma ameaça para ele.

— O senhor receia que eu tente ajudar meu tio?— Bem... não posso negar que aventei essa hipótese.— Não tema. Sinto muito pelo sofrimento da família de minha mãe e pela mancha da traição que a

atingirá. Mas eu não me deixarei matar por Fergus só para salvar-lhe a vida. Também não acreditarei se ele me disser que terei de lhe obedecer para não ser prejudicada. Eu sempre soube que Fergus era um mentiroso. — Tess lembrou-se de que havia mais alguém envolvido. — E quanto a Brenda, o amor da sua vida?

Revan resolveu ignorar a alfinetada.— Se Brenda foi aliciada...— Pode ter certeza disso. Ela sempre está no meio das intrigas.— Então Brenda terá de acompanhar a derrocada ao lado do pai e dos Douglas.— Tenho certeza de que Brenda não será prejudicada. Ela usará o mesmo charme que usou com o

senhor contra os que a derrotarem. E todos ficarão de queixo caído. Isso, se conseguirem apanhá-la. Brenda é muito esperta e talvez consiga fugir com o dinheiro que tem. Eu sempre a achei mais ardilosa que o pai.

— Vamos esquecê-la? Poderemos discutir isso mais tarde. Não é ela que está atrás de nós com um saco de flechas.

— E o que pretende fazer em relação aos nossos perseguidores? Ficar sentado aqui?— Por enquanto.— Em princípio, esta é uma boa posição defensiva, mas que poderá se tornar uma armadilha.— Eu sei. Teremos de ficar até quinta-feira.— Seis dias? E se formos descobertos?— Espero que isso não aconteça. Tenho um encontro a alguns quilômetros daqui. Foi tudo planejado.

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— E se o senhor não for ao encontro?— Meu parceiro irá à minha procura. Não posso deixar que isso aconteça. Seu tio o mataria. Teremos

de ficar aqui enquanto for possível. Meu aliado levará as informação. O que poderá nos ajudar bastante. Como nenhum dos nossos algozes o conhece, ele tem chance de ser bem-sucedido. Além do mais, poderá nos mandar algum tipo de ajuda.

— Eu posso conseguir ajuda.Tess sabia que ainda era cedo para Revan acreditar nela, mas era a oportunidade de fazer uma proposta:

procurar seus parentes.Revan percebeu a esperança no olhar de Tess. Em outra pessoa, pareceria astúcia. Mas não naquela

jovem de fisionomia sincera. Ela pretendia convencê-lo de algo, e ele teria de esforçar-se para ignorar o apelo daquele olhar grande e negro.

— Conhece alguém que possa fazer isso por nós?— A família de meu pai. Os Comyns e os Delgados. — Tess pensou em algo para dizer, caso Revan

recusasse a oferta.— Seu tio haverá de desconfiar das suas intenções, Tess.— Eu sei, mas ele agirá com cautela. Terá receio de eu ter chegado lá há algum tempo e de tê-lo

denunciado.— Tenho certeza de que eles não hesitarão em protegê-la, mas isso é assunto para os guerreiros do rei.— Mais um motivo para procurá-los. Metade deles trabalha ao lado da lei. Muitos são soldados

experientes. Acho que já lhe disse isso antes. Bem, não importa. Eles poderão nos ajudar. E estão em número suficiente para nos dar proteção.

— Meus aliados poderão fazer o mesmo — argumentou Revan.— Onde eles estão?— Com o rei ou perto dele. Em Stirling.— Meus parentes estão mais próximos. Possuem uma fortaleza em Edimburgo.— Certo. Mas de qualquer modo, teremos de nos esquivar dos homens de Thurkettle. E também dos

Douglas. Como eu já lhe disse, seu tio tentará impedi-la de chegar ao encontro da família de seu pai.— Para alcançar o rei, teremos de passar por territórios inimigos. Poderíamos enganá-los, não é

verdade? — Tess suspirou. — Ah, mas o senhor não confia em mim, não é?O mais estranho era ele confiar em Tess e achar que estava certa, porém não queria que ela soubesse.— Por acaso a senhora confia em mim?— Não muito.— Bem, prometo que pensarei na sua sugestão. Satisfeita?— Estou.Revan levantou-se e foi até a entrada da caverna.— Vou procurar lenha. Não saia daí.— O tonto fala como se eu tivesse outra escolha — Tess murmurou para si mesma.Pelo menos ele dissera que pensaria no assunto. Era melhor do que o não categórico que ela imaginara

receber. Teria seis dias para convencê-lo. Seis dias para fazê-lo mudar de idéia.— Preciso de um banho.Revan praguejou, parou de polir a espada e fulminou Tess com o olhar. Desde que acordara, ela não

falava em outra coisa. Sua teimosia o irritava, ainda mais depois de quatro noites sem dormir direito. Apesar das roupas horríveis que Tess vestia, Revan experimentava uma suavidade perturbadora. Não era fácil ignorar os cabelos negros e brilhantes, os olhos grandes que pareciam duas pedras de ônix e as curvas suaves dela pressionadas em suas costas durante a noite.

— Não pode esperar até que estejamos em local mais seguro? Com as mãos na cintura, Tess devolveu-lhe o olhar feroz.— Não. Eu ia tomar um banho quente quando o senhor entrou na minha vida e estragou tudo. Estou

cansada de sujeira e de ficar com estas roupas imundas dia após dia. O senhor traz baldes de água de algum lugar por perto. De onde?

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— Mas que droga! — Revan largou a espada e levantou-se com um movimento brusco. — Que hora infeliz para tais escrúpulos!

— Estou fedendo!— Não notei nenhum cheiro ruim. — Antes estivesse. Assim não teria de lutar com seus desejos

inoportunos.— Talvez por ter seu próprio aroma para saborear. — Tess tinha certeza de que ele se lavava. O que

era uma injustiça.— Pegue as suas coisas. Esse maldito banho terá de ser rápido, entendeu? — Viu-a pegar o sabão que

ela descobrira nas coisas dele. — Vai precisar de um pano para se enxugar.— Usarei minhas roupas antes de lavá-las.— Pretende lavar as roupas?— Isso mesmo. E não precisa gritar. Só tenho estas e não vou usá-las sujas.— Ora, bolas! — Revan resmungou e achou uma camisa limpa entre seus pertences. — Vista isto,

volte aqui e seque as suas roupas perto do fogo.Tess fitou a peça com desconfiança. Era grande, mas não o suficiente. Ele não lhe deu tempo para

protestar, pois já estava do lado de fora da gruta. Decidida a tolerar um pouco de impudicícia em favor da limpeza, correu atrás de Revan.

Tess teve vontade de bater nele quando chegaram a uma pequena lagoa de água límpida, alimentada por um regato que vinha do alto das rochas. Era bem próxima da gruta e escondida de olhos curiosos. A recusa em compartilhar aquele benefício na certa era por medo de que ela fugisse. Observou-o procurar por alguma cobra.

— Espero que elas o piquem! — Tess sentou-se no chão e arrancou as botas.— Não se demore. Este lugar não é tão protegido quanto parece — Revan advertiu-a antes de afastar-

se.Ela foi obrigada a dar-lhe razão. Embora escondida, a lagoa situava-se no sopé das rochas e era de

acesso fácil. Como não havia ninguém à vista, começou a despir-se. O mau humor de Revan fazia com que Tess temesse até as sombras.

Esfregou as roupas, estendeu-as no gramado para secar e pulou na lagoa. Prendeu a respiração por alguns instantes. A água era muito fria. Passado o choque, entregou-se ao prazer do banho.

Ensaboou-se e considerou que vinha pensando muito em Revan. Nem poderia ser de outra forma, já que estavam juntos dia e noite. Ele a fazia sentir-se mais feminina. Pensava em beijos... e em mais do que beijos. Alimentada pela perigosa proximidade, aumentara sua curiosidade sobre o que acontecia entre um homem e uma mulher.

Procurara defeitos que pudessem refrear a fascinação crescente. Revan os tinha, como todo o mundo. Mas nada que o desabonasse. E quando se aborrecia com ele, seu interesse retornava em seguida.

— É preciso concentrar-se nas imperfeições — Tess murmurou, enquanto esfregava os cabelos.Revan era arrogante, mas ela conhecia outros ainda piores. E, sendo homem de confiança do rei, podia

usar de soberba.Tinha mau gênio. E daí? Ela também tinha.Não era confiável? Não o conhecia direito para afirmar isso.Ele era autoritário. A situação não permitia indecisões.Tess praguejou. As falhas de Revan eram facilmente toleráveis. E muito parecidas com as dela própria.

Seria hipocrisia criticá-las.Como pensar em defeitos quando Revan a fitava, esbanjando compreensão e ternura nos lindos olhos

azuis? Ou quando ela acordava e sentia o corpo forte aconchegado, um pouco além dos limites, no seu? Era vergonhoso lembrar-se de como reagia aos sorrisos de Revan. Sentia-se derreter.

Submergiu para enxaguar os cabelos. Talvez ele suspeitasse do alvoroço que a atingia a todo instante. Tess não sabia disfarçar sentimentos. Urgia assumir uma máscara de impassibilidade. Mas como? Suas emoções eram confusas e fortes. Brincando na água, teve a esperança de que Revan também estivesse perturbado com a intimidade deles.

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Sentado na frente do esconderijo, Revan olhava tudo e nada enxergava. Impossível não pensar no que Tess estaria fazendo. Ansiava para ver o aspecto daquela suavidade que ele experimentara durante as noites.

A frustração minava seu bom senso, e a curiosidade aumentava. Ela era bonita, mas tinha uma língua afiada. Vestida daquele jeito, nem um pouco atraente. Seria a última mulher no mundo que poderia despertar-lhe interesse. Contudo despertava. Muito.

Admoestou a si mesmo para esquecer tais idéias. Na certa Tess era virgem. E para possuí-la teria de parar primeiro diante de um sacerdote.

A velha advertência não serviu para esfriar-lhe o ânimo. Teria de afastar-se de Tess. O que seria irrealizável nos próximos dois dias. Talvez até mais, pois não poderia deixá-la em qualquer lugar. Ela também corria perigo.

— Modere suas ânsias e seus pensamentos, Revan — ele preveniu a si mesmo. — Assim poderá viver sem remorso, quando tudo isso houver terminado.

Franziu o cenho. Perturbado, falava sozinho, o que não costumava acontecer. Suspirou, fitou a lagoa e procurou concentrar-se em indícios de alarme.

Tess despertava-lhe sentimentos que não lhe agradavam. Tinha uma vida planejada. Era um cavaleiro a serviço do rei. Uma posição perigosa que exigia vivência solitária, sem laços afetivos. O prazeres da carne eram inaceitáveis. Mesmo fortes, teriam de ser logo descartados. Mas por trás do desejo que sentia por Tess, havia muitas emoções que o desconcertavam. Independentemente do quanto tentava negá-las, ignorá-las ou lutar contra elas, sabia que eram profundas e, por isso, não descartáveis. Lamentável. Pelo menos, por enquanto, não poderia fugir de Tess Delgado. Convenceu-se de que estava apaixonado. Os olhos dela pareciam enxergar dentro dele e exigiam que ele sentisse muito mais do que desejo.

Queria protegê-la e evitar que sofresse. Gostaria de conhecer a mente atilada que se escondia atrás do rosto bonito. O pior de tudo era a ternura que ela lhe despertava. Uma verdadeira ameaça.

— Quase tão perigosa quanto os cinco cavaleiros que vêm se aproximando — Revan resmungou.Ele demorou alguns segundos para se conscientizar do que acabava de dizer.Olhando fixamente o horizonte garantiu a compreensão. Cinco homens se dirigiam para a lagoa.

Mesmo de longe, Revan reconheceu o estilo relaxado de cavalgar dos soldados de Thurkettle.Ele correu até a margem da lagoa, rezando para que o tempo fosse suficiente para tirar Tess dali.Parou um segundo para recolher as roupas dela.— Vamos embora, Tess. Apresse-se. Temos de voltar para a caverna. Agora!Ela cruzou os braços na altura do busto e abaixou-se até o pescoço dentro da água.— O que houve?— Soldados de Thurkettle vêm vindo para cá.Revan percebeu que Tess se assustou. Felizmente. Ele se aborreceu de estar pensando em assuntos bem

diferentes do perigo que os ameaçava, em um momento tão crucial. Idéias absurdas como largar a roupa de Tess e entrar na água. Ou quantas coisas poderiam ser feitas além de nadar.

— Está bem. Mas eu quero minha roupa. Vire-se de costas.— Não há tempo para se vestir! Teremos sorte se alcançarmos a caverna sem sermos vistos. Nem é

hora para modéstias virginais.— Eu não posso sair correndo... nua.— Por Deus, Tess! Daqui a instantes, cinco homens chegando até aqui. Se demorarmos mais um

pouco, não apenas o seu recato será desrespeitado. Só há dois caminhos. Ou corre para esconder-se nua em pêlo, ou morre.

— Estou indo!Tess disparou para fora da água. Agarrou a camisa ao passar por Revan, e ele demorou alguns

segundos para segui-la. O corpo esguio sem roupas abafou-lhe momentaneamente o juízo. Quando Revan começou a correr, Tess já vestira a camisa e a amarrara.

Chegaram à caverna um atrás do outro. Empurrou-a para dentro e virou-se a fim de ver onde estava o inimigo. Os cinco homens chegavam à pequena lagoa. Praguejou quando viu um deles apontar para as

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pegadas que ele e Tess haviam deixado. O que lhes daria um bom motivo para se demorarem nas re -dondezas.

Revan entrou na caverna e deparou-se com Tess de olhar arregalado. E muito tentadora com a camisa dele. Não poderia pedir-lhe que se vestisse porque as roupas dela ainda estavam úmidas. Tess não era culpada pelo fato de ele não poder controlar emoções desprezíveis para a ocasião.

Ah, se pelo menos ela não tivesse pernas tão bem torneadas!— Eles foram embora? — Tess preocupou-se.— Nem pensam nisso. Nós deixamos pegadas ao redor da lagoa.— Sinto muito...— Não foi sua culpa. Eu falhei na vigilância. Não os pressenti a tempo. Por esse erro, não pude tomar

as devidas precauções, como, por exemplo, limpar os nossos rastros.— Acha que eles ficarão aqui, procurando por nós?— Pelo que Thurkettle deve estar furioso...— Os soldados não irão embora.— É no que estou pensando.— Eles se empenharão muito na busca. O que faremos?— Por enquanto ficaremos aqui. — Revan aproximou-se da fogueira e apagou-a. — Este não é um

lugar muito fácil de encontrar. Se ficarmos quietos, sem sair, temos uma chance de não sermos percebidos. — Levou o cavalo até o fundo da gruta e selou-o.

— Acha que teremos de fugir?— É sempre bom estarmos preparados.— Talvez devêssemos sair daqui agora.— Não poderemos deixar a gruta sem sermos vistos. Eles não nos encontraram, mas sabem que

estamos por perto. Poderemos contar com a sorte de acharem que estamos longe.— A nossa boa estrela anda em baixa.— É verdade. — Revan retomou até a entrada da caverna. — Mas ainda tenho alguns planos.— E quais são eles?— Não se preocupe. Apenas trate de ficar quieta.— Dando ordens de novo — Tess murmurou, ao observá-lo curvar-se diante da pequena abertura.Ela suspirou e abraçou-se. Chegara a hora da espera. Ou seriam descobertos, ou teriam uma tênue

possibilidade de retorno. Temia pela concretização da primeira hipótese. Seu tio linha meios impressionantes de fazer valer sua autoridade quando estava nervoso ou quando temia por sua segurança. Quatro dias de buscas infrutíferas deviam ter exacerbado o temperamento irascível de Fergus. E os soldados, conhecedores das conseqüências, fariam o possível para não voltar de mãos vazias. A teimosia muitas vezes tinha origem na necessidade de atingir um objetivo. E o dos cavaleiros de Thurkettle seria encontrar os fugitivos que estavam pelas redondezas.

Tess estremeceu e, impaciente, começou a andar de um lado pura outro.— Maldição! Que todos vão para o inferno! — Revan sussurrou, levantou-se e fez alongamento para

desentorpecer os músculos.— Eles ainda estão lá? — Tess indagou no mesmo tom.— Estão. E, pelo visto, planejam acampar aqui esta noite.— Não pretendem ir embora de mãos vazias.— Isso eu posso jurar. Pelo tempo que estão aqui, creio que um deles deve ser perito em seguir pistas.

As pegadas junto à lagoa são muito recentes para enganá-los.— De vez em quando, meu tio consegue contratar um idiota com um pingo de inteligência.— Esse pingo pode ser a nossa sentença de morte — Revan declarou, sombrio.— Talvez eu devesse ir até lá — Tess declarou, depois de algum tempo.Ele irritou-se.— Por acaso a senhora pretende assumir o posto de mártir?

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— Ah, sim — ela ironizou. — Sempre imaginei morrer jovem, fazendo um gesto dramático de sacrifício. — Procurou acalmar-se. — Bem, pensei que poderia ter uma possibilidade de continuar viva... por um tempo. O senhor não teria essa chance. Eles o matariam em seguida.

— E como acha que poderia se salvar?— Ainda não posso afirmar, mas pensarei em alguma coisa. Afinal, tenho minha família.— Vai demorar alguns dias até conseguir falar com eles. Eu não poderia ajudá-la por tanto tempo e, se

depender de Thurkettle, não haverá nem mesmo um dia. Tenho certeza de que ele se aproveitará desse incidente para se livrar da sobrinha. Fergus conseguirá o que deseja e ainda se passará por vítima.

— Ah, meu tio adoraria esse final feliz. Então, o que nós faremos?— Nós, não. Eu pensarei em algo. A senhora ficará aqui, escondida e quieta.— Ah, quem é que pretende ser mártir agora? — Tess deu urna risada. — Tem certeza de que é um

cavaleiro, e não um fidalgote? O senhor despeja ordens como um conde.— Às vezes, é preciso ser um pouco de cada. — Revan fitou os pertences deles e esfregou o queixo. —

Preciso afastar os soldados daqui. O estratagema será convencê-los de que a senhora está comigo.Tess aproximou-se.— O que acontecerá depois?— Eu os despistarei e voltarei para cá. — Ele abaixou-se para enrolar o colchão fino.— Um raciocínio esplêndido, se não fosse a saraivada de flechas que eles irão disparar. Não

descansarão enquanto não o derrubarem... morto... da sela.— Isso é óbvio. Mas eu observei que são arqueiros inexperientes. — Revan pegou o colchão enrolado

com a roupa úmida de Tess.Ela aproximou-se mais para ver o que ele estava fazendo.— Se meu tio encontrou um homem capaz de entender de lastros, também pode ter achado um que

saiba usar o arco, mesmo que o alvo se mova rapidamente.— Terei de correr o risco.— Não podemos simplesmente ficar aqui e esperar?— Se eles seguirem as pegadas até aqui, seremos dois contra cinco. Isso no caso de a senhora ter idéia

de como se usa uma espada, uma flecha ou uma adaga.— Tenho uma certa habilidade — Tess afirmou, modesta. — Um pouco mais do que alguns dos

soldados de meu tio. — Ela fitou suas mãos pequenas. — O meu maior problema é que as armas não foram feitas para pessoas da minha estatura.

— Qualquer aptidão é bem-vinda quando tudo o mais falha. Mas eu não gostaria de chegar a esse ponto. Os soldados idiotas de seu tio podem fazer um jogo de paciência até que, por exemplo, sejamos forçados a sair para procurar comida. Nesse meio tempo, poderão ir em busca de mais soldados.

— Chega! — Tess ergueu a mão. — Já entendi. O senhor vai sair agora?Revan anuiu e continuou a fazer o pacote.— Pela posição deles, poderei me esgueirar e escolher o momento propício para ser visto. — Ele se

levantou e examinou o embrulho. — O que lhe parece?Na obscuridade da caverna, o monte de panos enrolados poderia sugerir uma figura humana.— Tem de ficar parecido comigo?— Ah-ah!— Bem, eu diria que sou aleijada de pernas e braços. E a cabeça?— Fixarei o seu chapéu na parte de cima. Vou ficar com o boneco na minha frente. Espero que eles não

notem a falta dos membros superiores e inferiores. Vão me perseguir por trás. Não poderão ver com clareza quem ou o que está na sela diante de mim.

— E como está escurecendo — Tess foi obrigada a admitir —, talvez dê certo.Revan abaixou-se, pegou um bastão e começou a rabiscar na terra.— Se eu não voltar...— Isso não é a coisa mais inteligente para dizer, se pretende que eu mantenha a serenidade — ela

murmurou, sentando-se ao lado dele.

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— A senhora não me parece ser uma donzela que desmaia ao primeiro grito.— Não sou. Mas também não me pareço com um cavaleiro duro na queda. E não faço parte das que

ficam acenando adeuses aos homens que se dirigem ao campo de batalha. Pode ser que não haja outra solução, mas não gosto disso. Sei muito bem que tudo pode sair às avessas. Talvez fosse melhor agirmos como se houvesse uma mínima chance de fracasso. Eu teria uma mentira para enganar a mim mesma. — Tess inspirou fundo ao vê-lo sorrir. — O que o senhor está escrevendo?

— A maneira como alcançar Simon, meu aliado. Também o que deve dizer para que Simon saiba que é uma das nossas, ele poderá levá-la até a sua família. — Revan esperou até Tess memorizar as instruções. — Tem uma adaga?

— Ah-ah! E o senhor? — Ela lutava para disfarçar o medo.— Tenho. Além disso, estou com a minha espada e o meu urco. Duvido que eu chegue a usar qualquer

um deles. Para ser franco, não pretendo deixar que se aproximem de mim. — Revan acariciou-lhe os cabelos úmidos. — Voltarei, Tess.

Tess não acreditou nele. Aterrorizada, fitou-lhe a face escurecida. Aquela poderia ser a última vez que o via. Em um impulso, segurou o rosto atraente nas mãos espalmadas e beijou-o. Espantou-se quando Revan a abraçou e retribuiu o beijo com outro bem mais intenso.

— Boa... sorte — ela balbuciou, depois de terem se afastado. Revan fitou-a. Havia poucos instantes sua mente estava imersa nos planos para tirá-los daquela

enrascada. Esquecera tudo. Só pensava em Tess e na doçura cálida daquele beijo. Desistiria de brincar de esconde-esconde com os soldados de Thurkettle. Queria ficar com Tess. Urgia ver as partes do corpo delgado cobertas pela camisa. Ansiava por beijar e tocar cada centímetro daquela pele sedosa. O beijo fora doce. Perigosamente doce.

Praguejou em silêncio, agarrou o "companheiro" sem vida que o acompanharia na viagem e se aproximou do cavalo. Era imprescindível voltar os pensamentos para a sobrevivência.

Tess ficou sentada em silêncio, enquanto Revan fazia os preparativos.— Revan — ela finalmente falou, quando o viu próximo da entrada. — Talvez isso não tenha um

significado maior. Mas lhe prometo que se o plano fracassar e o senhor não voltar, eu os farei pagar caro por isso.

Revan fixou nela um olhar difícil de se classificar.— Significa muito — ele murmurou e saiu.Tess pegou do chão o punhal de lâmina curta e deixou-o no colo. Depois de alguns momentos de

silêncio, ouviu gritos e galope de cavalos. Fechou os olhos e rezou. Um longa noite a aguardava.

Capítulo III

— Tess? — Revan, que susto! — ela sussurrou, sem sair do canto onde se encontrava sentada, e tirou a mão do

punhal. — Eu poderia tê-lo matado.Ele entrou na caverna puxando o cavalo.— Pelo menos comprovei que estava alerta.Tess observou-o mover-se para a frente e acender o fogo. As chamas revelaram o rosto cansado. Revan

tirou a sela do animal.— Consegui despistá-los por pura sorte, ajudado pela escuridão.— Ainda bem...A presença dele deixava-a feliz. Apavorada e tensa, ficara no fundo da caverna, onde supunha que se

esconderia melhor. Fora um longo período de escuridão e incerteza. Naquele momento, nem mesmo queria levantar-se. Receava tomar alguma atitude tresloucada da qual se envergonhasse depois.

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Tinha vontade de tocá-lo, de sentir-lhe o calor e as batidas do coração. Isso acabaria com a hipótese de que se tratava de um sonho nascido do pavor. O maior medo era onde as emoções poderiam levá-la. Por pura covardia, continuou onde estava.

— Agora que vejo isso mais claramente — Revan sentou-se diante do fogo, rindo, enquanto desmanchava o grande boneco de pano —, não sei como consegui enganá-los. Pelo menos suas roupas secaram.

— Isso é ótimo.— Temos água suficiente para eu me lavar?— Sim.Ele encheu uma tigela grande com água e estranhou o comportamento de Tess. Ela estava sentada no

escuro e mal falava. Revan tirou as botas e ficou de calção. Disse a si mesmo que devia ter sido difícil para Tess esperar sozinha no escuro.

Talvez precisasse de um tempo para se acalmar, ele refletiu, enquanto se lavava.— Eles não voltarão a nos importunar por aqui — Revan assegurou, convicto. — Pensarão que

estamos a quilômetros de distância. Deixei muitas pistas falsas para confundi-los.— Ótimo.Ele terminou de se lavar e virou-se para ela.— Tess, aconteceu alguma coisa?— Não. Não houve nada.— Está mentindo. — Revan estendeu a mão. — Venha aqui, até a luz, onde eu possa vê-la.Ela fitou o homem magnífico à sua frente. O peito largo e desnudo e a mão estendida. Era uma visão

que acabou com o mínimo de bom senso que ainda lhe restava. Levantou-se devagar, emitiu um som que não era nenhuma palavra inteligível. Correu até Revan e atirou-se em seu pescoço.

Espantado diante da súbita mudança de comportamento, ele tropeçou. Caiu sentado em cima do colchão fino onde dormiam havia dias e a abraçou para impedi-la de cair também. Tess não demonstrou o menor sinal de constrangimento. Muito pelo contrário, não o largou e sentou-se em seu colo. Revan deu-se conta de como se sentia bem com ela nos braços e de que estava pouco vestida. E o mais perigoso: recordava-se de como fora doce beijá-la.

— Virgem Santa, pensei que não fosse voltar mais — Tess declarou em voz baixa. Achei que eles o tivessem matado. Cheguei até imaginar o seu cadáver ser comido pelos lobos.

Revan deu uma gargalhada.— Mas que bobagem!— Acho que nunca fiquei com tanto medo na minha vida.— Não tive alternativa a não ser deixá-la aqui sozinha. — Apesar de recriminar-se pela audácia, passou

a mão nas pernas esbeltas de Tess. Cálidas e sedosas como imaginara que fossem.— Bem, não foi só por isso. Eu temia pelo senhor. Poderia ler morrido.Ela refletiu se deveria dar um tapa na mão de Revan. Apesar de sua inexperiência, sabia que não era

correto deixá-lo acariciar-lhe as pernas. E o "incorreto" seria capaz de levá-la à perdição. Nada disse. Nada fez.

— Como pode ver, retornei são e salvo.Ele não encontrava palavras coerentes. A sensação maravilhosa de tocá-la fazia com que ansiasse por

prosseguir com as carícias. Sentia em seu peito o contorno do busto firme. Os quadris que lhe pressionavam a virilha deixavam-no arfante. Se não se afastasse de Tess com urgência, esqueceria todo o seu bom senso.

— Não ficou ferido, nem apresenta hematomas?— Nem um arranhão.Revan sentiu os lábios dela em seu pescoço. O que decuplicou a vontade de beijá-la. Tess ajeitou-se no

colo dele, que gemeu. Revan começava a perder o controle. Teria de dar um basta na situação ou tudo estaria perdido.

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— Bem... — Ele amaldiçoou o tremor da própria voz, uma condição que piorava pelo fato de Tess alisar-lhe as costas — ...por que não se senta perto do fogo enquanto eu preparo alguma coisa para comermos?

— Já estou sentada ao lado do fogo.O movimento dos lábios dela na lateral de seu pescoço era uma verdadeira tortura. Sentiu na pele o

roçar da língua. O desejo que procurara abafar durante quatro dias ameaçava explodir.— Não faça isso, Revan — ele murmurou para si mesmo, enquanto entrelaçava os dedos nos cabelos

negros e sedosos.Tess recuou um pouco e fitou-o, espantada.— Não fazer o quê?O olhar dele escurecera e sua intensidade alvoroçava-a tanto quanto suas mãos. Ela pôs as palmas no

peito largo e musculoso, e sentiu as batidas aceleradas do coração. Perturbou-se ao entender que Revan a desejava.

— Beijá-la. — Ele fitou-lhe a boca carnuda. — Eu não devo beijá-la.A despeito de sua inocência, Tess concluiu que, se Revan a beijasse, não haveria volta. Incorreriam em

um pecado. Não era certo. Não seria uma atitude inteligente. Era um caminho para problemas e sofrimento. Mas nada lhe importava. Umedeceu os lábios com a língua e escutou-o inspirar fundo. O fato de despertar emoções fortes em Revan fez com que se decidisse. Para ele, poderia significar apenas mais uma paixão. Mas o instinto lhe dizia que ela nunca encontraria emoção igual. Aceitaria o que lhe era oferecido e deixaria o futuro para depois. Como seu pai sempre lhe dizia, Tess sempre seguiria o coração.

Ela puxou-lhe a cabeça e roçou os lábios nos dele.— Então... talvez eu devesse beijá-lo.— Não creio que seja sensato. — Revan se contradisse e beijou-lhe levemente a boca.— Mas é tentador.— Tentador demais, Tess. — Ele gemeu, acariciou-lhe os lábios com a ponta da língua e teve uma

retribuição inocente, mas nem por isso menos cálida. — Um beijo poderia ser muito perigoso. Não estou pensando só nisso.

Sentada em seu colo, ela avaliou que Revan não mentia. Ambos estremeceram.— Minha jovem, está brincando com fogo.— Sei disso. Sinto o calor desse fogo.— Não sou homem à procura de casamento, Tess.— Não me lembro de lhe haver perguntado algo a respeito. A risada de Revan foi vacilante.— Por acaso sabe o rumo que estamos tomando? Eu não brincava quando afirmei desejar mais do que

um beijo.— Quanto mais? — Tess se mexia sem parar e adorou sentir a pressão crescente sob as próprias coxas.— Muito mais... Quero tudo.Revan segurou-a pelos quadris para evitar os meneios. Ela enrubesceu e semicerrou as pálpebras. Os

cílios espessos e negros fizeram sombra no olhar. Ambos arfavam. A paixão de Tess era tão desvairada quanto a de Revan. Ele se recriminou.

Como homem mundano, deveria ser comedido. Mas a prudência estava muito longe.— Tess... eu quero tocá-la — murmurou com voz rouca. — Quero experimentar o seu calor e a sua

doçura. Quero me esconder no seu âmago. Já esteve com um homem antes?— Não...— Então, Tess, afaste-se de mim enquanto é tempo, ou não poderá afirmar isso ao raiar do dia.Ela fitou-o e avaliou a situação. Revan dissera não procurar um matrimônio. Só lhe restava tornar-se

amante dele. A única certeza era de que Revan a desejava. Não se tratava do ideal, mas era o que ele tinha a lhe oferecer. Hesitar seria perder a oportunidade de tê-lo a seu lado.

— Para um homem que se diz tão desejoso — Tess provocou-o —, você está demorando demais...— Maldição!

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Revan segurou-lhe a cabeça e escondeu os dedos nas mechas de cabelos negros. Tess gemeu ao ser beijada. Abriu a boca e permitiu a invasão da língua ávida. Faminto, ele a beijou com fervor e estendeu-a no colchão. De costas, debaixo de Revan, Tess não ofereceu resistência.

Ele tirou o calção sob o olhar arregalado de Tess. Nunca vira um homem despido, e a imagem lhe agradou sobremaneira. Revan tinha a pele bronzeada, em contraste com os cabelos loiros. Uma camada leve de pêlos começava no umbigo, ia até a virilha e ficava mais espessa ao redor da masculinidade. De-pois rareava e cobria as pernas fortes e longas.

Ele deitou-se e Tess abraçou-o pela nuca. Revan beijou-a e desatou-lhe a camisa. Apoiou-se em um dos cotovelos e começou a despi-la. Ela retesou-se. Sabia que seu corpo nem de longe lembrava as formas exuberantes de Brenda. Quanto mais se sentia observada, mais ficava nervosa. Esperava a desilusão de Revan ao vê-la nua. Mas o inequívoco olhar ardente com que ele a fitou convenceu-a de que se subestimara. A paixão escurecia os olhos azuis. Uma prova evidente de que a visão lhe agradava. Tess não pôde deixar de sentir-se excitada e orgulhosa. Os resquícios de vergonha desapareceram.

— Você é ainda mais bonita do que eu imaginava que fosse.— Você pensava em mim nua? — Tess sussurrou e estremeceu de prazer quando sentiu o corpo

desnudo de Revan junto ao seu.Ele a abraçou e beijou-lhe a face levemente.— Todas as vezes em que eu acordava e a encontrava aconchegada em mim.Ela nem teve tempo de responder. Revan beijou-a e tomou-lhe os seios com as grandes mãos em

concha. Tess fechou os olhos e gemeu quando ele lhe provocou os mamilos com a ponta dos dedos. Revan prosseguiu as carícias com a língua, e ela contorceu o corpo esguio.

— Tess... — Revan murmurou com voz rouca, sem largar-lhe os seios — ...nunca senti sabor mais doce na minha vida.

Ela gritava e arqueava o tronco. Revan, sem lhe dar trégua, sugava e mordiscava-lhe as pontas róseas dos seios. Tess tremia sob a ação do desejo intenso que a invadia. Por instinto, retribuía o ardor dele no mesmo diapasão. Nem pensou em protestar quanto Revan passou a afagar-lhe os pêlos sedosos entre as coxas e a procurar-lhe a intimidade até ali intacta. Alucinada pelos afagos que nem sequer supunha que existissem, balbuciava o nome dele, como se estivesse em transe.

Revan abaixou-se sobre ela e ergueu-lhe as pernas. Tess abraçou-o pela cintura. Ele se insinuou para dentro dela com movimentos vagarosos. De repente, a pressão tornou-se mais forte, e Tess sufocou um grito quando sentiu uma dor aguda e passageira. Revan ficou imóvel. Ela entreabriu as pálpebras e viu que ele a observava.

— Tess, eu a machuquei?— Não. — Ela também se expressava em um fio de voz, como se falar alto pudesse quebrar o encanto.

— Foi apenas uma ferroada mais intensa.Revan beijou-a e procurou-lhe o interior da boca com a língua, no mesmo ritmo do amor. Tess

arqueava-se em uma agonia inimaginável. Ele ergueu-lhe os quadris para aumentar ainda mais a pressão. Aumentou o ritmo da invasão e a velocidade da dança com a língua. Tess nunca imaginara que pudesse sentir tanto prazer. Quando refletiu que seria incapaz de suportar por mais tempo aquele maravilhoso tormento, foi arrastada em um redemoinho de emoções. Gritou o nome de Revan e ouviu palavras de encorajamento e deleite. Para onde quer que estivesse sendo levada, queria que ele a acompanhasse. Segundos depois, foi a vez de Revan gritar-lhe o nome. Segurando-a com vigor, ficou tenso e estremeceu.

Tomada por uma profunda fraqueza, Tess abraçou Revan com mãos vacilantes, quando ele se largou nos braços dela.

O primeiro pensamento lógico de Tess foi lembrar-se dos olhares e sorrisos que os pais trocavam com freqüência quando ela era ainda menina. Entendeu a satisfação que sempre lhes iluminava as fisionomias. Acariciou as costas de Revan e passou a refletir sobre a perda da virgindade. Isso a perturbou um pouco. Mesmo com a certeza de que jamais lamentaria nenhum daqueles momentos deliciosos ao lado dele, haveria um preço a pagar pela coragem de assumir uma paixão. Considerou o fato com uma dose de

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cinismo. Com a fortuna que herdara, poderia encontrar um marido a qualquer momento. Revan beijou-lhe o alto da cabeça.

— Tess, eu não deveria...Ela o interrompeu, selando-lhe os lábios com a ponta de dois dedos.— Não diga isso.Ele segurou seu pulso e beijou-lhe a palma.— Acho que não entendeu bem. Não sou um devasso, mas desonrei uma jovem. Eu tinha a obrigação

de zelar pela sua virgindade e de impedir que chegássemos a extremos, independente de qualquer emoção que me cegasse.

— Por favor, Revan — Tess murmurou. — Não sinta remorso. Não quero ouvi-lo falar sobre isso, mesmo que seja verdade.

Ele abraçou-a com carinho e beijou-a na testa.— Não me arrependo de nada...— Ainda bem. — Ela pontuou o peito de Revan com beijos carinhosos.— ...mas eu deveria...Tess grunhiu uma imprecação, sentou-se e cobriu o busto com a manta fina. De certa forma, as

palavras de Revan poderiam ser interpretadas como expressão de machismo. Ele não a considerava capaz de tomar as próprias decisões. Era quase um insulto. Não precisava de Revan para ajudá-la a agir.

Ele fitava-a com cautela. Era a primeira vez que se deitava com uma virgem, mas ouvira muitas conversas a respeito. Diziam que elas eram ardentes e provocantes de início. Depois muitas se voltavam contra o homem, acusando-o de libertino.

Tentou supor qual seria a atitude de Tess. Procurou sorrir para acalmar algum início de águas turbulentas.

— Sei que perdi o controle quando fui beijado de maneira tão deliciosa...— Uma pena que você não possa perder um pouco dessa sua arrogância.— Como é? — Confuso, Revan não entendia a causa do aborrecimento de Tess.— Você entendeu muito bem o que eu disse. Arrogância. E o que o faz crer que eu preciso de você

para guiar meus passos ou das suas belas palavras para me ajudar a decidir o que devo e o que não devo fazer. — Ela desviou o olhar, lamentando que seu temperamento irascível estivesse estragando algo tão lindo.

Revan sentou-se devagar.— Está me acusando de ser arrogante?— Bem... não sei como se pode chamar isso. Posso não ser versada em assuntos íntimos entre homens

e mulheres. Mas tenho inteligência suficiente para discernir entre o que é certo e o que é errado, para tomar minhas próprias decisões.

Ele moveu-se, ficou por trás de Tess e abraçou-a. Ignorou-lhe a rigidez e sorriu ao esconder o rosto na massa de cabelos brilhantes. Por mais que se divertisse com a situação inusitada, sabia que ela estava certa. O que não o fazia sentir-se menos culpado.

— Concordo que a sua inteligência é superior a de muitos homens e que sabe tomar as decisões corretas. — Beijou-lhe o ombro e acariciou-lhe os braços. —Mas não consigo impedir a sensação de haver cometido uma falta. Tess, não posso lhe prometer nada em retribuição ao presente maravilhoso que recebi.

— Eu não pedi que me prometesse nada. Além disso, ouvi bem quando afirmou que não pensava em casamento. — Tess descontraiu-se diante dos beijos suaves que recebia. Encostou a cabeça no ombro de Revan e perguntou-se por que ele a fitava com o cenho franzida. — Eu também não lhe fiz nenhum tipo de promessa, fiz?

— Isso poderá lhe causar problemas com o seu futuro marido, quando resolver casar. — Incomodava-o imaginar que Tess viesse a pertencer a outro.

— Revan, talvez eu pense com excessiva frieza. Mas quando decidir me casar, sei que a minha fortuna apagará qualquer mácula da minha vida.

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Ele espantou-se com aquela inexorável verdade. Tess era doce e inocente, mas não ingênua. Deduzira que poderia comprar um marido à hora que quisesse. Contudo Revan culpava-se por sentir que ela merecia muito mais do que passar a vida em uma situação tão desagradável.

Procurou esquecer o dilema e concentrar-se na ninfa maravilhosa que se encontrava em seus braços. Acariciou-lhe os seios com movimentos circulares e, com a ponta dos polegares, provocou os mamilos, que endureceram em segundos.

— Então, por que se entregar a mim se pensa com tanta indiferença quanto ao seu futuro?Tess fechou os olhos e sentiu-se enrubescer com o desejo renovado. Tratou de engolir depressa as

palavras de amor que ameaçavam escapar-lhe dos lábios. A Revan não agradariam votos de devoção. Sem dúvida ele preferia ouvir suspiros ardentes e murmúrios de desejo. Se ela tivesse sorte, poderia chegar o tempo em que Revan apreciasse saber o que lhe ia no coração. Naquele momento, porém, tais declarações poderiam afastá-lo.

— Eu o desejava — Tess afirmou com suavidade.— Só isso?Aquela resposta o deixou desapontado. Embora não quisesse considerar amor e casamento, esperava

alguma coisa além de luxúria por parte dela. Os sentimentos dele eram bem mais profundos do que uma paixão comum. Gostaria de partilhar com Tess a intensidade da fome que o atormentava havia dias. Jamais desejara uma mulher com tanto fervor. Jamais usufruíra um prazer tão intenso. Aborrecia-o pensar que não fosse correspondido.

— Não, mas eu não saberia explicar. — Tess arrepiou-se ao senti-lo acariciar-lhe o ventre. — É como se fosse uma agulhada intensa de desejo... — Os toques cada vez mais eróticos tornavam a explicação mais difícil. — Tive alguns interesses, mas nada que me abalasse. Essa foi a primeira vez em que pensei em me entregar a um homem. E também a primeira vez em que temi perder uma oportunidade tão rara e nunca mais encontrar outra.

— Hum... tão rara... — Revan mordiscou-lhe a orelha.— A mais intensa, a mais rica. A melhor.— Isso mesmo. Sempre achei que para um homem fosse tudo igual.Ele virou-a e beijou-lhe os lábios com suavidade.— E foi, até agora. Eu também nunca experimentei um apetite sensual em doses tão elevadas.Revan tornou a beijá-la e deitou-a no colchão rústico. Agarrada nele, Tess concluiu que fome era um

termo adequado para o que ela estava sentindo. Era realmente como estar esfomeada. Poderia definhar e morrer sem as delícias que Revan lhe oferecia.

Ele afastou-se um pouco e tirou-lhe do rosto algumas mechas de cabelos. A ânsia escurecia-lhe o azul do olhar. Tess espantou-se por Revan sentir apenas desejo, sem nenhuma outra emoção. Para ela, tudo estava tão entrelaçado que nada poderia ser excluído. A paixão dele podia ser uma coisa à parte, independentemente de sentimentos mais complicados.

— Isso mesmo. Apetite... — Tess passou a ponta do dedo na sobrancelha loira e desceu até a ponta do nariz. — E era tão intenso que tive de lutar com ele a todo minuto. Aí precisei engolir o medo de saber que você poderia servir de alvo para aqueles homens. Quando voltou, incólume, foi o mesmo que ter uma segunda chance.

— E soube aproveitá-la. — Revan segurou-lhe a mão e beijou-lhe a palma.— Agarrei-a com unhas e dentes, instigada pela cobiça que somente um grande desejo poderia inspirar.

O pecado passou a ter um significado menor e um preço pequeno a pagar por ele. Na verdade, eu já havia pecado em pensamento.

— Ah, então já vinha pensando nisso?— Ah-ah!— É bom saber que eu não estava sozinho.— Isso também havia lhe ocorrido?— Desde a primeira vez em que dormimos juntos. — Revan beijou-lhe o rosto com leveza. — Depois

nunca mais pude deixar de sentir desejo. Na verdade, tornou-se difícil pensar em outra coisa, até mesmo

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no perigo que corríamos. — Ele cobriu-lhe o pescoço de beijos. — Os dias e as noites que passamos aqui pareceram anos. E infernais, diga-se de passagem.

— Eu tive a mesma impressão.— Creio que a nossa estadia aqui será muito breve para os nossos anseios. — Revan pressionou os

lábios nos dela.Tess retribuiu o beijo e rezou para que o tempo fosse suficiente para tentar, ao menos, conquistar-lhe o

coração— Tem certeza de que é mesmo aqui? — Tess, sentada na clareira, arrancou algumas gramíneas do

solo.Revan sentou-se a seu lado, abraçou-a pelos ombros e beijou-lhe o rosto.— Tenho. Marcamos o encontro na floresta, de onde se pode enxergar através da bifurcação de duas

árvores e ver a colina.— Ah, que diferente. Na Escócia, há tão poucas colinas e árvores bifurcadas!Ele riu e beijou-a com efusão.— Uma língua tão ferina, capaz de beijos tão doces. Tess desconfiou de como Revan pretendia passar

o tempo.— Revan, seu amigo...Ele puxou-lhe a frente do gibão e deu uma piscadela.— Por que não desabotoa isto? Não está com calor?— Patife! — Tess riu. — Nós não...— O velho Simon não vai se incomodar.— Verdade? — uma voz masculina perguntou. — Acredito que o velho Simon vai se incomodar, sim.Tess deu um grito. Revan virou-se e a derrubou de seu colo. Ela achou que fora esquecida quando

Revan bradou alguns impropérios com alegria e levantou-se para abraçar o amigo. Os dois homens bateram nas costas um do outro, com demonstrações de amizade. Tess também se levantou, tirou a grama das roupas e disse a si mesma que era bobagem sentir-se ofendida. Revan agia como todos os homens. Mesmo assim ficou aborrecida.

Simon era forte, moreno e um pouco mais baixo do que Revan. Os dois deviam ter a mesma idade.— Revan, apresente-me sua bela acompanhante — Simon falou depois de alguns momentos.Eles se aproximaram. Tess notou que Simon tinha belos olhos verdes e um sorriso simpático.— A senhora deve ser Contessa Delgado. — Ele fez uma mesura e beijou-lhe levemente as costas da

mão. — Permita-me afirmar que meu amigo não poderia ter raptado uma jovem mais linda.Tess fez uma careta quando Revan puxou-lhe a mão que ainda estava em poder de Simon.— Não exagere.— Então a notícia do rapto espalhou-se, não é? — Revan deduziu, sem largar a mão de Tess.— Infelizmente, sim. Bem, já é tarde. Vamos preparar um lugar para dormir, comer e fazer planos.Tess sentou-se e observou-os. O tom grave de Simon deixava Revan carrancudo. Os movimentos

tornaram-se mais cuidadosos. Ela também ficou inquieta. Não se tratava apenas da traição de Thurkettle.Em silêncio, os três fizeram uma refeição leve, o que pareceu a Tess ainda mais sinistro. Teve a

impressão de que Simon não queria falar e que Revan evitava perguntas. O ambiente era tenso.— Você sabe quem é Tess — Revan alegou, depois de algum tempo. — O tio dela espalhou a notícia

de que foi seqüestrada.— Fiquei sabendo. — Simon tomou um gole de vinho do odre. — Ele ainda afirmou que a sua

intenção era estuprar antes de matar.Revan rangeu os dentes.— Ele apresentou algum motivo para eu cometer tais crimes?— Ah, sim. Vingar-se da família, por Brenda havê-lo descartado.Revan caprichou nas imprecações.— E quem acreditaria nisso?— Os que a conhecem. Dizem que Brenda é muito atraente.

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— Já vi mulheres mais bonitas — Revan resmungou e tomou um grande gole de vinho.Tess conteve-se para não perguntar quem eram as mais bonitas.— Talvez os que conhecem Brenda não tenham sido tão afortunados quanto o senhor.Revan fulminou-a com o olhar.— Não sei por que está tão preocupado — ela continuou. — Eu posso refutar a acusação de rapto.

Embora haja um fundo de verdade nisso, já que um punhal na garganta não pode ser rotulado como um convite cortês!

— A senhora pretende lembrar-me disso até que eu esteja morto e enterrado, não é?— Oh, não por tanto tempo. Só de vez em quando.— Você a ameaçou com uma faca no pescoço? — Simon indagou, entre divertido e preocupado.— Eu contarei a história — Revan respondeu quando Tess abriu a boca. — Se não fizesse isso — ele

concluiu depois de um relato conciso da fuga —, hoje eu seria um homem morto.— Você esqueceu de contar a parte em que ameaçou me cortar a garganta — Tess murmurou.— Tive de fazer a promessa parecer real, ou eles não teriam acreditado em mim. O que eu deveria

dizer? Perdão, senhores, não pretendo machucar a jovem. Eu seria alvejado antes de contar até três.— Lembrar-se do rapto o deixa agastado, não é verdade? — Tess avaliou. — Não se preocupe, repito.

Descartarei a acusação.— Para isso teríamos de falar com o rei.— E não é para onde iremos agora com Simon?— Não. Será mais seguro viajarmos separadamente. Estamos sendo perseguidos.— Então escreverei para o rei, e Simon poderá levar a mensagem.— Você sabe escrever?Tess ofendeu-se com a surpresa de Revan.— Claro que sei!— Isso poderia ajudar — Simon comentou. — Mas não tenho comigo nem pena, nem tinta e nem um

pedaço de pergaminho.— Eu também não. Por enquanto a sua palavra será o suficiente.Simon anuiu.— Uma pena. Escute, Revan, eu lhe asseguro que muitos homens a seu favor e não acreditaram nas

mentiras. A sua família rebateu todas as acusações que lhe foram imputadas.— De que outros crimes fui acusado?— Da morte de Leith MacNeill. Revan espantou-se.— Por que eu haveria de matar um dos aliados do rei? Um homem que me ajudou e que trabalhou

comigo?— Disseram que ele descobriu que você fazia parte do bando dos Douglas.— Tentam me estigmatizar como traidor!— Isso aconteceu há cerca de uma quinzena, quando saí. Os boatos sempre tendem a aumentar de

tamanho. Mas os nosso aliados também se tornam mais ruidosos. Procuram espalhar que tais rumores não passam de mentiras.

— Creio que não será fácil manchar meu nome. Apesar disso, o plano pode funcionar em meio a tantos traidores e com os Douglas agindo livremente. O rei já aprendeu a amarga lição de que não se pode confiar nos outros com tanta liberalidade.

— E ele tem um temperamento terrível — Tess murmurou. Revan e Simon franziram a testa. — Esta é uma verdade e não será traição afirmá-la — ela continuou. — Foram os acessos de fúria do rei que ajudaram a criar tantos problemas. Foi ou não foi ele que, enraivecido, apunhalou o conde de Douglas? Só porque o homem se recusava a romper a aliança com o lorde das ilhas. E o conde estava com um salvo-conduto. Um homem que se entrega levianamente à sua fúria pode não ter a paciência necessária para saber da verdade ou esclarecer as dúvidas. Talvez seja prudente não dizer isso em alto e bom som, embora se deva pesar o valor da afirmação. Os rompantes do rei podem prejudicá-lo, Revan.

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— A jovem está certa — Simon concordou —, embora não possamos afirmar isso em voz alta. Se o rei tiver alguma dúvida a seu respeito, Revan, poderá lhe causar transtornos com os seus acessos temperamentais.

— Eu diria que os soldados do rei e os seus aliados estão ansiosos para arrancar a cabeça de cima dos meus ombros.

— Isso mesmo. Como seja não bastassem os inimigos que têm a mesma intenção.— Hum... Thurkettle e Douglas — Revan murmurou, sentindo que afundava em um atoleiro. — Pelo

menos — ele segurou a mão de Tess — a pecha da traição não a atingiu. — Fitou Simon. — Estou certo?— Sim. Ela tem sido tratada como vítima. Contudo é preciso ser cuidadoso com os soldados e com os

aliados do rei. Alguns podem dar crédito aos boatos no auge da batalha, quando os ânimos ficam exaltados.

Revan anuiu e fitou a mão de Tess na sua. Ambos enfrentavam o perigo. Praguejou em silêncio. Cada flecha ou espada que o ameaçasse, ameaçaria a ela também.

— Não deveria tê-la trazido comigo, Tess — Revan resmungou. — Eu a enfiei nisso até o pescoço.Ela abriu a boca para protestar, mas pensou bem antes de falar. Revan a arrastara para o meio de

grandes problemas, mas não fora o causador dos mesmos. De qualquer forma, acabaria sendo presa na teia maligna de Thurkettle. Revan não deveria culpar-se.

— Isso não deixa de ser verdade. Mas eu não teria escapado dos planos de meu tio. Nesse caso, teria de voltar-me contra ele. E nós dois sabemos que Fergus desejava a minha morte.

— Por que seu tio queria vê-la morta? — Simon perguntou.— Herdei algumas terras e um pouco de dinheiro.— Ela também conhece alguns fatos a respeito de Thurkettle e dos Douglas — Revan explicou.— Isso explica tudo — Simon murmurou e tomou mais um gole de vinho.— Explica o quê? — Revan indagou, prevendo más informações.— Thurkettle e Douglas ofereceram prêmio em dinheiro pela morte de ambos.— Pela morte de nós dois? — Revan abraçou Tess e puxou-a mais para perto.— Isso mesmo. Eu me espantei ao saber que havia recompensa pela cabeça da sobrinha. Mas o nosso

aliado no acampamento dos Douglas me assegurou a verdade. Eles pretendem interceptá-los e impedir um encontro com o rei. Pelo que o nosso amigo me disse, a notícia se espalhou rapidamente. Não se pode confiar em mais ninguém.

— Se o rei souber disso, entenderá que meu tio está espalhando mentiras — Tess afirmou. — Fergus divulgou a história em que aparece como vítima, dizendo que Revan pretende me matar. Logo depois oferece dinheiro pela minha cabeça. Isso deixa claro que Thurkettle não passa de um mentiroso e trapaceiro.

— Foram somente as acusações contra Revan que chegaram aos ouvidos do rei. O restante, não. Mais ainda: espera-se que a senhora dê o traço de veracidade às histórias que Thurkettle espalhou.

— Sir Simon, o senhor não intercederia em nosso benefício? Pode afirmar que estou bem e que não é Revan quem deseja me matar. E que também prestarei testemunho a favor dele.

— E o que farei e espero que isso ajudará os dois. Assim mesmo é preciso ter cautela com os homens do rei. Há muita confusão e um excesso de mal-entendidos. — Simon fitou Revan. — Bem, que tal me dizer o que ficou sabendo?

— Tem certeza de que isso será considerado? Se a minha lealdade foi posta em dúvida, minhas informações serão descartadas.

— Pode ser. Mas tenho certeza de que você tem partidários que acreditarão no que me irá contar. Se eles constatarem que as suas afirmações forem verdadeiras, será comprovada a sua lealdade.

Tess desvencilhou-se de Revan e ficou em pé,— Peço que me perdoem, mas vou dormir. Eu os deixarei discutindo detalhes dos procedimentos. Os

próximos dias exigirão toda a minha energia, e preciso restaurá-la. — Ela desejou uma boa noite aos dois e foi deitar-se sobre o colchão fino que Revan preparara.

— Bonita moça — Simon murmurou, encarando Revan com olhar sério.

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— É verdade. Se o meu destino fosse ficar enredado com uma jovem, Tess seria a melhor de todas.— É visível seu apreço pela jovem. No entanto, a questão mais importante é se ela é confiável.Revan hesitou alguns instantes e anuiu.— Sim, é. No começo desconfiei, mas Tess acabou me contando tudo o que sabia sobre as intrigas de

Thurkettle. Ela também sabe que o tio pretende matá-la e que atentou contra a sua vida algumas vezes. Tess afirmou que somente um tolo prestaria lealdade a um homem que pretende matá-lo.

— E quanto à sinceridade de propósitos dela?— Tenho certeza de que é fiel ao rei e que confia no meu empenho em resguardá-la.— Muito bem. O que foi que descobriu?— Muitas coisas. Ainda assim, creio que não o bastante.Revan relacionou todos os fatos que averiguara de sua espionagem e dos relatos de Tess. Explicou

pormenores e possibilidades. As informações de Simon confirmaram o que Revan havia apurado. Uma guerra seria iminente.

— O rei estará preparado? Ele tem homens suficientes para enfrentar o exército de Douglas? — Revan perguntou, depois de alguns momentos de silêncio.

— Ele está fazendo o impossível para reuni-los. — Simon atiçou o fogo com um graveto.— Douglas pretende o trono.— Ele não tem pensado em outra coisa desde o assassinato de Jaime I. Embora eu diga isso

confidencialmente, o nono conde de Douglas tem um ressentimento justificável. Os lacaios do rei chacinaram o sexto conde e o irmão, que eram ainda rapazes, no famigerado Jantar Negro. Depois o rei matou pessoalmente o oitavo conde. Nas duas vezes, a promessa de salvo-conduto foi traiçoeiramente ignorado pela realeza. Se a coroa não estivesse envolvida, isso não passaria de luta sangrenta entre famílias.

— As terras dos Douglas foram tomadas — disse Revan. — Na verdade, houve erros de ambas as partes. Eu mesmo já comprovei isso. Porém acredito que os condes de Douglas já praticavam traições antes do início dos assassinatos.

— Pode ser. Eles se tornaram ricos e poderosos muito depressa.— Se formos vitoriosos, será o fim desses malditos Douglas.— Ah, meu amigo, os Douglas chamados de Negros poderão cair. Mas os Douglas Vermelhos, de

Drumlanrig, de Dalkeith e de Angus se erguerão sobre as cinzas de seus parentes. Eles tirarão proveito da queda dos Negros.

— Esperemos que o rei tenha a sensatez de impedir que se tornem poderosos.— Rezemos por isso. Revan, tenho convicção de que a vitória lhe trará benefícios financeiros.— Se eu não for executado como traidor. — Revan fez uma careta. — Os ganhos serão obtidos pelos

meus parentes e não chegarão até mim. Meu pai e meus dois irmãos mais velhos colherão as recompensas, como é de direito. Eu recebi a dignidade de cavaleiro e um punhado de moedas. Jamais serei um homem rico.

— Então será necessário casar-se para enriquecer. Não é recomendável passar o resto da vida sendo um homem de armas sujeito ao capricho de reis.

— Não posso me queixar da minha vida. Simon deu de ombros.— Para quem teve negada a fortuna por um acaso de nascimento ou por outras circunstâncias, casar-se

por causa de riqueza e de terras é visto como um ato inteligente. Não há vergonha nisso. Muitas donzelas com dinheiro e propriedades se casam com homens de nível bem inferior ao seu. É preciso decidir-se antes que a idade ou as conseqüências das batalhas não lhe permitam mais pensar nisso. Não adiantará arrepender-se, quando já for muito tarde.

— Está querendo dizer que se eu ficar velho ou aleijado, terei de me conformar com uma esposa enrugada e rabugenta?

— Nem todas as donzelas abençoadas pela fortuna são belas e gentis.Revan não conseguiu afastar a imagem de Tess de sua mente. Era dona de uma beleza e de um

temperamento compatíveis com a paixão que lhe despertava. Possuía tudo o que ele poderia desejar em

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uma mulher, em uma companheira, além dos benditos dinheiro e propriedades. Mas teria de resistir a essa tentação.

— Cada um tem seus pontos de vista, Simon. Para mim, um casamento desse tipo é inaceitável. Eu ganharia tudo e não daria nada em troca. Seria como me prostituir.

— Entendo seus propósitos. Mas procure pensar nisso com imparcialidade. Todas as jovens ricas se casarão um dia. Sir Revan Halyard é muito superior à maioria dos solteiros que eu conheço. Na minha opinião, tais casamentos são a única maneira de filhos mais novos como nós ganharem mais do que um pouco de honra.

— Por que está me pressionando? Simon suspirou e ergueu as sobrancelhas.— Bem, eu pensei...— ...em Tess.— Confesso que sim. Afinal, já são amantes.— Eu nunca afirmei isso.— Nem seria necessário. Está tudo muito claro. Não precisa me olhar com tanta ferocidade. Eu jamais

enlamearia o nome dela. Revan, não se pode deixar de notar o clima íntimo que existe entre ambos. E, como amigo, preciso avisá-lo para que não deixe escapar uma oportunidade... de ser feliz.

— Tess não merece um casamento mercenário.— Pelo pouco que pude observar, percebi que ela teria muito mais do que isso. Por que não quer

admitir que se interessa por ela, Revan? — Simon mudou de assunto diante do silêncio do amigo. — Por onde pretende ir quando sairmos daqui?

— Não será fácil decidir. Há vários caminhos, mas todos estarão vigiados.— Ah-ah! E o trajeto mais curto deve contar com mais homens à espreita.— Penso em usar uma rota mais sinuosa. Ficarei no castelo de meu irmão Nairn por uns dias.— Que também deverá estar sob a mira dos inimigos.— Creio que poderei entrar, a não ser que a fortaleza esteja rodeada por um exército. Eu só preciso de

um cavalo e de provisões. Minha esperança é que haverá poucos homens de prontidão lá.— Pretende deixar Tess no castelo?— Não. Nairn mandou grande parte dos seus guerreiros para o rei. Ele mesmo deverá juntar-se em

breve com os seus soldados. Tess não ficaria segura no castelo. Thurkettle poderia invadi-lo.— Se soubesse da presença de Tess, ele faria isso com certeza.— E não somente pela herança — declarou Revan. — Thurkettle deve ter entendido a ameaça que ela

representa. Tess ouviu e viu muitas coisas.— Bem, e se pedir ajuda aos Comyns e aos Delgados?— Não sei, não. Tess diz que são confiáveis. Mas ela não mora com eles há mais de cinco anos. Nunca

se sabe.— Concordo com Tess. Eles merecem crédito. Não são muito ricos nem muito poderosos, mas a

lealdade deles é indubitável. Costumam dizer que pretendem compensar o fato de seus ancestrais terem lutado contra Roberto I. Muitos estão próximos ao rei, ocupam lugares de destaque na Igreja e trabalham como legisladores. Tenha fé neles. Vá até lá. Irão ajudá-lo a chegar ao palácio e a acabar com essas acusações falsas.

— Você os conhece bem?— O bastante — respondeu Simon.— Eu me lembro vagamente de Delgado, o pai de Tess, o pintor da corte, e de mais ninguém.— Eles assumiram nomes escoceses pelo casamento ou por herdar terras. — Simon começou a apagar

o fogo. — Revan, não hesite em procurá-los. Eles têm trânsito livre no palácio. Quando você chegar às terras de Sílvio Comyn, ele mesmo se encarregará de fazê-lo completar a trajetória em segurança.

— A menos que Sílvio tenha escutado as acusações contra mim.

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— Aqueles homens não se deixam enganar por boatos. Eles são cautelosos e acreditarão na sua inocência. Ainda mais se Contessa empenhar a sua palavra. Agora, meu amigo, para a cama. É preciso descansar.

— Eu gostaria de me oferecer para ficar de guarda. — Revan levantou-se e limpou a roupa. — Mas a fadiga me obriga a aceitar a sugestão.

— O bom senso o fará aceitar o que eu disse há pouco.— É, pode ser — Revan suspirou.— Mais uma advertência. Os Delgados e os Comyns são muito zelosos quanto à virgindade de suas

mulheres.— Quer dizer que acabarei diante de um sacerdote?— Será bom considerar essa possibilidade.— Eu nada direi, e muito menos Tess se manifestará. Quem haverá de desconfiar do que se passou

entre nós?— Eu percebi.Revan concordou com o amigo e tratou de mudar de assunto.— Quando nos encontrarmos novamente, Simon, será para lutar ao lado do rei. — Ele apertou a mão

estendida de Simon.— Se for necessário. Tenho rezado para que tudo não se transforme em uma carnificina.— Simon, acredito que, desta vez, Deus não escutará suas preces.

Capítulo IV

Tess procurava não pensar no frio que sentia. A tarde era garoenta, e as roupas leves que usava não a protegiam. O tempo piorara bastante desde o amanhecer, quando se despediram de Simon.

— Acha que Simon conseguirá chegar ao palácio e falar com o rei a tempo? — ela perguntou.Revan procurava o melhor caminho no declive rochoso.— Ah, sim. Ele é hábil. Conseguirá se esgueirar sem ser visto e despistar seus eventuais perseguidores.

Simon é um dos poucos que têm chance de alcançar o rei. — Revan fez uma pausa. — A menos que Jaime tenha fugido.

— Isso já aconteceu uma vez, não foi? — Tess achava que o poder dos Douglas inspirava medo até no rei.

— Sim, em 1452, quando foi atacado pelo exército do conde de Crawford, o Tigre. O rei pensou em fugir para a França, mas o bondoso bispo Kennedy o persuadiu a ficar. Crawford foi derrotado em Brechin. E o rei cometeu mais uma tolice. Perdoou os Douglas. Veja o que aconteceu.

Revan não encontrou nada mais animador para dizer. Em silêncio, prosseguiu o caminho pela densa floresta que ficava no sopé da colina. Experimentara poucos momentos de paz em sua vida. Embora lutar não lhe desagradasse, às vezes se sentia cansado de tantas batalhas.

Fitou o céu e franziu o cenho. Nuvens escuras acumulavam-se, ameaçadoras. Um prenuncio de tempestade.

— Mais adiante existe uma cabana. Passei a noite lá quando me dirigia para a casa de seu tio. Teremos de procurar abrigo ali. Sei que ainda não anoiteceu, mas o tempo não permitirá que avancemos mais por enquanto.

— Tem razão — Tess teve de concordar. Revan riu e deu uma pancada leve na perna dela.— Imagino o quanto lhe custou dizer essas duas palavras.— Acho melhor concentrar-se na trilha. — Tess evitou rir. — Se é que se pode dar esse nome a um

caminho tão precário.

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Havia muitas estradas nos condados das fronteiras. A maioria era usada por tropeiros que levavam o gado ou os carneiros ao mercado. Porém fora sensato não se arriscar em rotas movimentadas. Tinham sido forçados a usar atalhos estreitos, pouco ou quase nunca freqüentados. Os inimigos precisavam ser despistados. Tess sempre imaginara que viajar seria gratificante, mas não naquelas circunstâncias.

Ela avistou a cabana rústica. Paredes de taipa e telhado de colmo. Se ao menos pudesse tomar um banho quente, ficaria feliz.

Revan apeou do cavalo e ajudou Tess a descer.— É um lugar simples, mas servirá para evitar que fiquemos encharcados. Espere um pouco. Vou ver

se animais não invadiram a cabana.Ele entrou e saiu depois de alguns instantes. Levou o cavalo cansado para dentro. O pobre animal

precisava recuperar as forças tanto quanto eles.Tess seguiu os dois e relanceou um olhar pelo recinto escuro, enquanto Revan cuidava do cavalo. A

cabana era limpa. Tinha uma lareira central. Em uma das paredes, uma cama de lona presa por cordas e um colchão fino de palha. Ela imaginou que era melhor do que o chão duro e foi acender o fogo.

— Vou buscar lenha e ver o que há no estábulo — disse Revan.Perto da entrada, alguns baldes onde se podia aquecer a água.— Será que não haveria uma cuba grande ou uma barrica? — indagou Tess.— Para quê?— Para um banho quente.— Hum... seria uma delícia. Veremos o que se pode encontrar. Primeiro, precisamos de madeira ou

turfa para acender o fogo, e de comida para o cavalo.Revan saiu e Tess decidiu esquentar água. Mesmo que ele não conseguisse um recipiente, ela pretendia

ao menos lavar-se.Desembaraçava os cabelos, quando Revan entrou, trazendo uma grande tina de madeira. Tess não

conteve gritos de alegria.Ele deixou a peça perto do fogo.— Eu a limpei bem e me pareceu que não há vazamentos.— Ah, que maravilha! — Ela pegou um balde para enchê-lo com água. — Parece que não tomo banho

há anos.Tess deu-se conta da completa falta de privacidade somente depois de encher o barril. Fitou Revan, que

estava acocorado diante das chamas, preparando mingau. A chuva já começara, e Tess não achou justo pedir a ele que saísse. Disse a si mesma que não havia por que se envergonhar, já que eram amantes. Assim mesmo, sentiu-se embaraçada.

— Será que se incomodaria de ficar de costas? — Ela odiou sentir que corava.— Minha querida, eu já conheço todos os seus encantos.— Ah, naquelas ocasiões... Eu não me lembrei disso.Revan disfarçou uma risada e atendeu ao pedido. Tess despiu-se depressa e suspirou de prazer ao entrar

na água quente. Cerrou as pálpebras, relaxou os músculos cansados e chegou a cochilar. Espantou-se com o barulho e o súbito movimento da água. Abriu os olhos. Revan entrara na cuba.

— O que está fazendo? — Ela afastou-se para o lado. Ele sentou-se.— Tomando uma precaução. Fiquei receoso de que a água esfriasse para o meu banho.— Eu teria esquentado mais um pouco. — Tess esforçou-se para não admirar a beleza masculina.— Então eu lhe poupei um trabalho extra.— Não acredito que esse fosse seu único propósito.— Jovem inteligente. Dê-me as costas, e eu a ajudarei a se lavar. Depois fará o mesmo comigo.Ela virou-se devagar, olhou para a parede e fez uma tentativa inútil de controle. Revan esfregou-a de

maneira suave e sedutora. Em seguida, puxou-a e lavou-lhe a frente do corpo.Tess sentia o calor da excitação invadi-la aos borbotões. Ele friccionava-lhe a pele delicadamente com

as mãos ensaboadas e, em seguida, derramava fios de água para o enxágüe. Durante todo o processo, beijava-lhe a nuca, os ombros e mordiscava-lhe as orelhas. Trêmula, ela fechou os olhos. Revan espalhou

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espuma nos seios e lavou-os devagar. Tess começou a arfar e gemeu. Ele prosseguiu com as carícias eróticas, descendo pelo ventre.

Revan virou-a pelos ombros. Tess sentiu a excitação crescer ao ver o desejo que se refletia no olhar dele, que a beijou e entregou-lhe o pedaço de sabão. Ela lavou-lhe as costas, enquanto Revan lhe sugava os seios. Com mãos trêmulas, dispôs-se a retribuir as carícias tormentosas. Nos braços, no peito e nas pernas. Evitou criteriosamente a virilha. Sorriu e ensaboou de novo as mãos, sem deixar de fitá-lo. Tess beijou-lhe o pescoço e o tórax, e Revan agarrou-se nos cabelos da amada. Os espasmos involuntários eram uma prova de que ele procurava controlar-se. Tess esperava que Revan desse vazão a seus instintos, pois ela já não conseguia dominar-se.

Revan a segurou pela cintura e, com movimentos precisos, sentou-a sobre ele para amá-la. Tess ficou surpresa com a nova maneira de fazer amor e rotulou-a como divina. Apesar de zonza, notou o olhar azul escurecido e turbulento como o oceano.

— Ah, doçura... — Ele segurou-lhe os quadris. — Sinto como se eu acabasse de entrar dentro uma luva finíssima. Quente, suave, apertada, mas flexível.

— Ah, uma luva, sir Halyard? Pois ela não pode fazer o que eu faço.— E o que é?— Movimentos.Tess adorou o gemido rouco de Revan quando ela começou a mover-se. Os beijos acompanhavam o

ritmo dos movimentos e ecoavam a crescente paixão que os envolvia. Ambos alcançaram o clímax quase ao mesmo tempo. Tess teve a impressão de que iria desfalecer diante das luzes que a cegavam. Agarrou-se em Revan para recuperar o fôlego e encostou o rosto em seu ombro.

Ele roçou-lhe levemente os dedos pelas costas.— Posso jurar que a doce Tess nunca tomou um banho como este.— Claro que não. Costumo também lavar os cabelos. — Ela deu uma risada.— Perversa! Eu me apego a lisonjas e o que recebo em retribuição? Impertinências. Por que está me

olhando desse jeito?— Fico imaginando se lhe dá satisfação saber que foi o primeiro a me proporcionar tais prazeres.— Muita. Qualquer homem ficaria satisfeito com isso.— Interessante. O mais provável é um homem casar trazendo uma bagagem em que quase nada ficou

sem fazer. Pelo menos, no aspecto íntimo. Entretanto o mesmo homem sente prazer em descobrir que desvendou os segredos do amor para a mulher. Muitas vezes essa é uma exigência que, se não for cumprida, penalizará a mulher. Na verdade, os homens querem perder a castidade o mais cedo possível. Se não for esse o caso, a mulher nem fica sabendo que foi a primeira. Então, por que os homens se deliciam tanto em saber que foram os primeiros?

— Uma questão muito justa — Revan respondeu depois de algum tempo.Tess hesitou, antes de comentar:— Hum... Apesar de considerá-la justa, você se mostra relutante em responder.— Talvez eu não tenha resposta. Vire-se, e eu lhe lavarei os cabelos.De costas para Revan, Tess admitiu que era uma delícia entregar-se às mãos que lhe ensaboavam as

madeixas.— Quer dizer que esse é um daqueles fatos imutáveis e incontestáveis que na verdade não têm razão de

ser?Revan puxou-lhe os cabelos e divertiu-se ao ouvi-la praguejar.— Sou obrigado a admitir que sim. Porém nós, escoceses, somos muito menos escrupulosos nesse

aspecto do que, por exemplo, os ingleses ou os italianos. Façamos uma comparação com os sentimentos de um homem durante uma batalha. A maioria sente grande orgulho em ser o primeiro a furar as defesas do inimigo. E com bastante freqüência, paga com a vida por esse privilégio. — Revan enxaguou-lhe os cabelos.

— Ah, mas que pensamento mais reconfortante para o coração de uma jovem ser comparada a uma determinação suicida.

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— Não pode querer que eu responda de imediato a uma pergunta tão complexa e sobre a qual nunca me ocorreu uma consideração maior de que aceitá-la como verdadeira. Mais tarde, depois de eu refletir um pouco sobre o assunto, poderei responder com maior exatidão. Agora é a sua vez de lavar minha cabeça. Depois poderemos jantar.

Tess aceitou a sugestão. A água esfriava rapidamente. Usaram os próprios trajes para enxugar-se e enrolaram-se em cobertores. Tess esfregou as roupas antes de ajudar Revan a esvaziar a tina com baldes, e o restante despejaram pela porta. Ele deixou a cuba perto do fogo, e Tess estendeu na borda as peças de roupa para que secassem ao calor das chamas.

O jantar consistiu em mingau e um pouco de queijo oferecido por Simon. Uma refeição simples e enjoativa, mas Tess não se queixou. Jurou para si mesma que, na primeira oportunidade, regalaria-se com uma banquete digno de um rei.

A tempestade se tornou mais forte. A chuva pesada e o vento uivante esfriaram a pequena cabana. Tess lavou as vasilhas, e Revan puxou o colchão do catre para perto da lareira, onde poderiam esquentar-se. Por cima da cama improvisada, ele estendeu um cobertor.

— Tem certeza de que não encontraremos aí nenhuma aranha? — Tess sentou-se com cuidado e levantou as pontas da manta.

Revan acomodou-se ao lado dela e abraçou-a pelos ombros.— Certeza absoluta. Já dormi aqui antes e não fui surpreendido por nenhuma companhia indesejável.

Limpei tudo e me parece que ninguém esteve aqui depois de mim. Nem as aranhas.Ele pegou o odre, tomou um gole de vinho e ofereceu-o a Tess. Ela se serviu e devolveu o saco feito de

pele de gamo.— Será que amanhã cedo estará chovendo?— As piores tormentas são, em geral, as mais curtas. Espero que a afirmação seja verdadeira desta vez.— O fato de termos parado aproximará de nós os inimigos? — Tess quis saber.— Não. Eles também terão de procurar abrigo e perderão o mesmo tempo. Nosso benefício será a

chuva apagar qualquer rastro que possa ser seguido.— Revan, se as suas informações estiverem corretas, ainda teremos pela frente seis semanas ou um

pouco mais.Ele esfregou o queixo, fitando as chamas.— Isso se tivermos seis semanas e se os nossos informantes estiverem certos. Mesmo nesse caso, é

importante levar as notícias ao conhecimento do rei o quanto antes. Os preparativos para uma batalha são extensos. Sabemos que o rei está armando um exército e que a confrontação será inevitável, embora não se possa precisar uma data. Contudo nenhum homem abandonará sua plantação baseado em suposições. Ele não deixará a família passar fome no inverno porque o rei pensa que haverá uma batalha.

— Eu entendo. — Tess segurou-lhe a mão. — Bem, você pode contar com Simon.— Sei que, em princípio, ele tem condições de atingir o palácio. O que me preocupa é Simon ter,

obrigatoriamente, de passar pelas terras dos Douglas. Qualquer um que fizer isso será considerado suspeito. Os seguidores dos Douglas impedirão qualquer pessoa de se aproximar do rei.

— Simon viaja sozinho. Nesta região inculta, ele terá muitos lugares para se esconder.— Está tentando evitar que eu me preocupe? — Revan sorriu com ternura.Tess beijou-lhe o rosto.— Isso mesmo. E não precisa fazer pouco caso dos meus esforços. Inquietações excessivas nestes

tempos difíceis de nada adiantarão. Não considera Simon um homem esperto? Então procure não perturbar demais a mente. Existem muitas coisas que merecem o nosso reparo. Por que se atormentar com assuntos sobre os quais não temos poder de decisão?

— Muito sensato.— É o que eu penso.— Acho que comecei a refletir demais por ficar escondido aqui.— Ah, tenho uma saída. Vamos nos distrair. — Tess mordiscou-lhe a ponta da orelha. — Agora, se

prefere ficar sentado e se aborrecer com o que não pode resolver, avise-me.

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Tess beijou-lhe o pescoço e sentiu que Revan a abraçava com mais força.— Acho que prefiro a sua distração.Ele segurou-lhe a cabeça por trás e beijou-lhe os lábios. A ansiedade que permeava o beijo

surpreendeu-o. Depois de dois dias e duas noites na caverna em que só haviam feito amor, imaginou que o desejo haveria de arrefecer. Em vez disso, estava mais profundo, mais quente. Ter conhecido o prazer ao lado de Tess aumentava seu tormento. Não podia prever um futuro comum para ambos. Ainda assim, o desejo o invadia e exigia que pensasse no assunto. O bom senso advertia-o para que se distanciasse dela, antes que o mal piorasse. Não poderia fazê-lo. Imaginava fartar-se enquanto podia. Antes de que o relacionamento terminasse.

Com gestos suaves, Tess afastou a manta com que Revan se enrolara. Ele estremeceu ao ser tocado e desejou que ela fosse mais intrépida, embora admirasse sua alegre inocência. Sentado, continuou a beijá-la, enquanto Tess punha em prática suas habilidades instintivas. Não por muito tempo. Revan deitou-a de costas e abaixou-se para abrir a manta que a cobria. Entregou-se aos braços convidativos e passou a fazer uma trilha de beijos do pescoço até o ventre.

— Será que... estou conseguindo... fazê-lo esquecer... as preocupações? — Tess balbuciou com dificuldade enquanto ele lhe provocava os seios com as mãos, os lábios e a língua.

— Com certeza, minha querida. Não conheci outra que executasse a tarefa com tanta perfeição.A voz impregnada de desejo contribuiu para roubar de Tess o poder do discurso coerente. Agarrada nos

cabelos de Revan, entregou-se à paixão. Próximo à realização, Tess gritou o nome dele, e ambos alcançaram juntos o êxtase.

Tess encostou de novo o rosto no peito de Revan e disfarçou um bocejo.— Hum, a minha intenção foi apenas distraí-lo.— E a tarefa foi cumprida à risca. — Ele beijou-lhe o alto da cabeça. — Está com sono, não é mesmo?

Vamos descansar, meu amor. O amanhecer não tardará a chegar.— Assim que estivermos em algum lugar seguro, cumprirei a segunda promessa que fiz a mim mesma.

Dormirei até tarde durante uma semana. Ou melhor, nem mesmo sairei da cama.— Isso me parece uma idéia excelente. — Revan acariciou-lhe as costas. — Ah, e qual foi a outra

promessa?Tess aconchegou-se melhor, bocejou mais uma vez e cerrou as pálpebras.— Participar de um suntuoso banquete. Quero comer frutas, cremes, queijos e carnes. Ah, muita carne.— É... mingau todo dia é enjoativo.— Não pretendi ser crítica.— Sei disso. Acho que poderei satisfazer pelo menos um dos seus desejos. Se acordarmos cedo e a

tempestade tiver passado, irei caçar.— Será seguro?— Não creio que represente um perigo maior. Nosso inimigos não nos encontraram antes da

tempestade e agora não há mais pegadas a serem seguidas. Poderei trazer uma ave ou um coelho, que são de preparo rápido. Comeremos antes de reiniciar a viagem.

— Não vejo a hora de falarmos com o rei.— Eu também. Mas não vejo empecilho nenhum se retardarmos a saída por algum tempo para

melhorar nossa alimentação deficiente. Isso nos fará bem, aumentará nossa energia e... — Revan sorriu — ...sei que terei diante de mim uma jovem adorável e agradecida.

Tess fitou-o com fingido desprezo, antes de fechar novamente os olhos.— Concordo que ficarei agradecida. O problema é o quanto. Isso dependerá do que me for oferecido.— O que acha de algumas belas codornas? Tess sentiu a boca salivar.— Maravilhoso. Ficarei tão grata que terei de pensar muito em uma retribuição adequada.— Mas como pensará se pretende dormir?— Se me trouxer algo melhor de que o mingau, verá que posso refletir enquanto estou dormindo. Não

preciso ficar acordada a noite toda para decidir sobre uma recompensa.

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— Hum, que intrigante! Então durma bem. Vou trazer uma penca de aves.— Uma será o bastante. E reze para não voltar perseguido por um dos nossos inimigos.— Não se preocupe. Pretendo ser o caçador, e não a caça.Tess deixou os alforjes arrumados ao lado da entrada e ergueu o couro endurecido que servia como

porta. Parou na soleira de pedra e observou a mata que circundava a cabana. Nem se deteve na beleza da paisagem. Revan saíra para caçar às primeiras luzes da manhã. No momento em que o perdera de vista, começara a rezar para que ele voltasse. Nada mais lhe ocorria, a não ser o perigo que Revan poderia enfrentar.

Com um suspiro, entrou e sentou-se ao lado do fogo. Vestida, arrumara os poucos pertences. Só lhe restava esperar. Arrancou o capuz, penteou os cabelos com os dedos e começou a trançá-los. Talvez a trança não coubesse no capuz e tivesse de ser desmanchada. Mas precisava ocupar-se com alguma coisa.

Ouviu um ruído. Passos se aproximavam. Não podia ser Revan. Ele teria anunciado a chegada de algum modo. Ergueu os olhos. Era Thomas, um dos soldados de seu tio.

Apavorada, praguejou e ficou em pé. Tarde demais. Thomas, seguido por Donald, cruzou o recinto mais depressa do que ela. Tess conseguiu enganá-los e correr para a porta. Mas foi impedida de sair por mais dois homens armados. Não havia como escapar. O único recurso seria demorar-se ali até Revan voltar. Embora não soubesse como ele poderia vencer quatro guerreiros.

Thomas avançou de novo, e Tess esquivou-se. Agarrou o que viu pela frente e atirou neles. Não havia muita coisa, mas ela jogou tudo, inclusive a lenha e a turfa. Isso manteve Thomas e Donald a distância, porém não lhe deu oportunidade para fugir. Os dois praguejaram e chamaram os companheiros que estavam na entrada. Os outros responderam com apupos e risadas.

Quando não havia mais objetos para serem arremessados, Donald e Thomas foram para cima dela. Tess esquivou-se de Thomas, mas Donald derrubou-a. Nem chegou a levantar-se do chão de terra batida. O rotundo Donald sentou-se em cima dela. Demorou alguns minutos para Tess conseguir falar.

— Saia de cima de mim, seu grande idiota!— Fique aí, Donald — Thomas ordenou, abaixou-se diante dela e, segurando-a pelos pulsos, puxou-lhe

os braços para a frente.— Você não pode levar-me de volta para o tio Fergus — Tess protestou quando Thomas amarrou-lhe

os pulsos com uma corda.— Posso e vou. Ela não fugirá, Donald. Pode se levantar. Donald ficou em pé, e Thomas, para erguer Tess, puxou-a pela corda. Ela tentou atingi-lo na canela,

mas ele se desviou. Tess decidiu testar o amor deles pela própria pele.— Você está participando de um grave crime, Thomas. A esperança dela desvaneceu-se ao vê-lo sorrir.— A culpa de tudo o que lhe acontecer será imputada ao seu belo cavaleiro.— Meu tio quer me ver morta.— Não poderei culpá-lo por desejar isso — Donald resmungou.— Você não achará muita graça quando estiver pendurado na forca. Exposto à sanha dos predadores e

sem nenhum ganho pelo delito praticado.— Sir Halyard é quem será enforcado — Thomas afirmou, enquanto a arrastava para a entrada.— Isso mesmo. Sir Thurkettle planejou tudo — Donald concordou, bamboleando atrás deles.Os dois outros recuaram. Tess praguejou ao ser puxada para fora e tropeçar nas pedras. Aqueles

imbecis achavam Fergus inteligente e capaz de impedir a ação da Justiça.— Meu tio será preso e os senhores o acompanharão. — Tess procurou retardar a marcha de Thomas,

que a conduzia rumo aos cavalos amarrados. — Sem hesitar, ele os atiraria aos cachorros, se fosse para salvar a própria pele.

— Cale-se! — Thomas levantou-a e jogou-a sobre um cavalo. Donald e os outros montaram em seus animais. — Se não fechar essa boca, terei de usar a força. — Ele mostrou o punho fechado antes de montar atrás dela.

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Tess resolveu ficar quieta. Não sabia até onde ia o poder do tio sobre seus homens. Poderia tratar-se de um costume arraigado. Ou eles entendiam que sir Fergus durante muitos anos agira contra a lei e nunca sofrerá nenhuma sanção. Mesmo que ela decifrasse o enigma, isso de nada lhe adiantaria. Eles obedeciam a Thurkettle da mesma maneira que seu tio obedecia aos Douglas.

— Meu tio pretende incriminá-los como traidores do rei. — Tess fez uma última tentativa de evitar que cumprissem cegamente as ordens de Fergus.

— Eu já lhe disse para calar a boca!Ela agarrou-se no arção da sela quando Thomas fez o cavalo disparar em um galope. Os quatro

soldados fizeram uma corrida imprudente pela mata. Tess olhou por sobre o ombro. A cabana sumira de vista. Thomas deu-lhe um tapa na cabeça e ela voltou-se para a frente, um pouco zonza por causa da pancada.

Notou que os homens não se preocupavam em localizar Revan. Rezou para que não houvesse mais nenhum assecla do tio esperando pela volta dele. Era importante para a Escócia que Revan permanecesse livre. Tess estava convicta de que sua vida não era nada em comparação à urgência de impedir que os Douglas se apoderassem da coroa. E Revan era um dos encarregados dessa tarefa.

Ela afastou a sensação de derrota. Revan não poderia arriscar-se para salvá-la. Ele tinha a obrigação de pensar antes na Escócia e no rei Jaime. Contudo recusava-se a aceitar o pior. Estava viva. Onde havia vida, havia esperança.

Seria preciso apegar-se a essa frase. Não poderia deixar o desespero enfraquecê-la.Tess ficou atenta ao caminho que seguiam. Tinha um senso de direção abominável, mas era preciso

orientar-se. Se conseguisse sair daquela situação difícil, poderia voltar para Revan ou encontrar os parentes de seu pai.

Fez um esforço para não pensar na hipótese de nunca mais ver Revan.

Revan deteve o cavalo e tornou a observar o solo. E confirmou o que vinha chamando sua atenção: pegadas recentes de cascos sob as patas de sua montaria.

A alegria por ter apanhado duas aves apagou-se. Não acreditava que os rastros fossem de algum viajante anônimo. Havia muitas pessoas atrás dele e de Tess. Desmontou e amarrou o animal no tronco de uma árvore mirrada.

Uma análise mais apurada revelou que quatro cavaleiros haviam se aproximado da cabana. Revan ficou ainda mais alarmado. Agachado, rastejou rumo à cabana e procurou mais sinais dos invasores.

Ao avistar a choupana, entendeu que os visitantes indesejáveis já haviam partido. Apesar disso, usou de cautela para atravessar o pátio. Abriu a porta. A certeza do que imaginara atingiu-o como uma flechada. Não encontrou Tess. Esqueceu-se das precauções e procurou por todos os cantos e redondezas. Precisava descobrir por onde os invasores tinham escapado.

Pelo estado da cabana, concluiu que Tess fora levada contra a vontade. Do lado de fora descobriu que ela havia sido arrastada e que os cavaleiros tinham se dirigido ao sul, de volta para Thurkettle. Seu único consolo foi constatar que não havia sinais de sangue. Tess não fora ferida. Devia haver uma maneira de salvá-la. Juntou os objetos que lhes pertenciam e correu até seu cavalo.

Montou e seguiu a pista dos bandidos. As pegadas na terra úmida mostravam o caminho que haviam seguido. Quando se certificou de que eram somente quatro homens, começou a fazer planos.

Incomodava-o ter de abandonar a prioridade real por algum tempo. Mas sem sua ajuda, Tess morreria.

— Acamparemos aqui — Thomas anunciou, depois de avaliar o local e deter o cavalo.Haviam cavalgado o dia inteiro por terrenos irregulares. Exausta, Tess teve vontade de lhe agradecer,

mas logo se recriminou por ser tão idiota. Fulminou Thomas com o olhar. Depois de desmontar, ele a arrancou de cima da sela.

— Cuidado, seu imbecil! — Ela procurou equilibrar-se e ficar em pé, apesar da fraqueza das pernas.— Veja lá como fala comigo.

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— E o que pretende fazer? Você está me levando para o cadafalso. Nada será pior do que isso — Tess declarou com altivez e notou Thomas estreitar os olhos.

— Posso fazer um inferno desta sua última jornada.— Já fez, pois tenho de viajar colada em você. Thomas corou diante da zombaria dos companheiros.— Cale a boca e sente-se perto daquela árvore.— Qual delas? Estamos em uma floresta, idiota. Há centenas delas.Ele empurrou-a até um pinheiro que estava mais morto do que vivo.— Sente-se aí!Tess obedeceu. Já tivera a satisfação de insultar e caçoar dele. Desajeitada por causa dos pulsos

amarrados, acomodou-se ao pé da árvore retorcida. Semicerrou os olhos, enquanto os quatro montavam o acampamento.

— Ele virá atrás dela — Thomas afirmou, acocorado ao lado da fogueira. Tomou um gole de vinho do odre. — Um homem como sir Halyard acreditará que é seu dever.

Donald sacudiu a cabeça, balançando os cabelos negros e pegajosos.— Halyard tem por obrigação chegar ao palácio. Não arriscará o pescoço por uma jovem qualquer.— Ora, mas ele é pretensioso. Na certa acha que poderá resgatá-la sem perder muito tempo.— Não custa ficarmos prevenidos — um dos dois outros resmungou. — Nenhum de nós sabe o que ele

pretende fazer.Thomas fez um gesto entusiasmado de concordância com a cabeça.— Donald, escute o nosso amigo John. Posso estar errado em deduzir que, ficando com Tess, faremos

aquele cavaleiro se aproximar. Mas é uma possibilidade. O tempo urge. Thurkettle está ficando nervoso.— Como preparar a armadilha? — Donald perguntou. — O camarada não vai chegar aqui e dizer olá,

vim buscar a jovem. Se estiver mesmo atrás dela, será cauteloso. Halyard é bem astuto. Imaginará que a usaremos para atraí-lo.

— Nós somos quatro e ele é um só. Dois de nós vigiarão o acampamento, e dois ficarão perto de Tess. Podemos trocar o turno de guarda a cada hora ou duas.

— Quando dormiremos? — John indagou.— Não teremos tempo para isso — Thomas admitiu. — Mas se conseguirmos agarrar Halyard,

Thurkettle nos dará uma boa recompensa. Uma noite sem sono não vai nos matar.Tess escondeu de si mesma o pavor que sentia. Aqueles homens eram incompetentes, mas estavam em

maior número. Revan podia ser um ótimo guerreiro, porém seriam quatro contra um. Esperava estar certa. Revan escolheria servir ao rei e à Escócia. Estremeceu ao refletir que poderia ser a causa da prisão e da morte dele.

Revan amaldiçoou Thomas e o plano. Tivera esperança de vir atrás de Tess, sem que eles desconfiassem disso.

Deitado de barriga para baixo na mata cerrada, tinha uma boa visão do acampamento, sem ser visto. Nem adiantava regozijar-se que conseguira chegar tão perto a ponto de ouvir a conspiração do inimigo. Havia muitos empecilhos pela frente.

Seu cavalo não seria descoberto? Tess poderia ser ferida ou até morta em uma tentativa de resgate. Cada plano de ação que delineava tinha inúmeras probabilidades de fracasso.

O que lhe pareceu mais viável também não apresentava segurança total. Mas não lhe restavam outras opções. Teria de diminuir a desvantagem numérica, eliminando os dois soldados que se encontravam fora do acampamento. Isso não apresentaria grandes dificuldades. O maior problema seria quando fosse pegar o cavalo. Esperava que, no intervalo entre silenciar os dois guardas e galopar para agarrar Tess, os dois outros não pensassem em verificar os arredores.

O fator surpresa seria um grande trunfo. Mas era fundamental que Tess pensasse rápido e reagisse da maneira adequada, quando o visse entrar na clareira.

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Tornou a praguejar em silêncio. O lugar que escolhera para esconder-se era muito desconfortável. Espinhos e galhos pontiagudos machucavam-lhe o corpo inteiro. Seria uma noite longa, mas Revan estava preparado para aguardar o momento certo.

Thomas deixou no colo de Tess um prato de metal com mingau encaroçado.— Não vou poder engolir isto.— É tudo o que temos. Trate de comer e pare de falar.— Mesmo que eu quisesse, não poderia fazer nada com os pulsos amarrados.— Acha que sou algum idiota?Tess evitou a resposta afirmativa. Insultar Thomas não resolveria o problema. Precisava das mãos

livres, e não apenas para deglutir aquela papa que estava na sua frente. As mãos ficariam inertes depois de algum tempo. Quando tivesse uma chance de escapar, não conseguiria fazê-lo com as mãos inutilizadas.

— Se não me desamarrar, alguém terá de dar a comida na minha boca.— Maldição! Está bem. Mas somente até terminar de comer. — Thomas desamarrou-a e deu ordens ao

comparsa. — Donald, venha sentar-se aqui. E não tire o olho de cima dela.Donald agachou-se ao lado de Tess, e Thomas foi conversar com os outros dois.Ela demorou alguns minutos para massagear e conseguir movimentar as mãos. Com uma careta, pegou

a colher e comeu o horrível alimento. A papa fria era grumosa e pardacenta. Com certeza, indigesta. Mas a fome a fez consumir aos poucos o pior mingau que provara em toda a sua vida. Para esquecer o gosto, concentrou-se no que Thomas e os outros falavam.

— John, vá fazer com Wallace o primeiro turno de guarda do lado de fora — Thomas comandou.— Por que nós seremos os primeiros? — John queixou-se.— A ordem não importa.— Então vá antes com Donald.Thomas proferiu uma blasfêmia das grandes e chamou o companheiro.— Donald, venha comigo. Vamos fazer o primeiro turno.Donald ficou em pé de um salto e aproximou-se depressa.— Amarre-a primeiro, seu retardado!Donald amarrou-a com força e rudeza. Tess estremeceu. Não tivera o descanso tão grande que

esperara. Viu Donald e Thomas desaparecerem na mata. Observou John e Wallace e enervou-se pela maneira como os dois cochichavam e olhavam para ela. Não demorou a admitir que estar de pulsos amarrados seria o menor de seus problemas. Reconheceu os olhares estreitados e cobiçosos.

Disposta a distraí-los, lutou para ficar em pé. Os dois se levantaram e deram alguns passos em sua direção. Por um momento, pensou em chamar Thomas, mas desistiu da idéia. Não tinha certeza se os outros impediriam que fosse estuprada. Poderiam até resolver fazer parte da festa.

— Aonde pensa que vai? — John fez a pergunta, com expressão maliciosa.— A Canterbury. Preciso ter uma conversa com o arcebispo. Está na hora de começar a peregrinação.— A senhora é esperta e tem uma língua afiada.— Preciso andar um pouco. Cavalgar o dia inteiro me deixou com os músculos doloridos.Tess começou a andar em círculos. John e Wallace acompanharam-lhe os passos.— A senhora já deveria estar acostumada. Aposto que esteve dia e noite na garupa do cavalo de sir

Halyard.— Você é muito inteligente. Na certa passa dia e noite divertindo os guardas da escolta de meu tio.Wallace deu uma risadinha e John corou, lançando olhares ferozes na direção de Tess.— Vou tratar de consertar essa sua linguagem ferina. Pensei em alguma coisa que poderá amansá-la.

— John fitou-a de soslaio.Tess engoliu a seco e, apesar do pânico, procurou manter a fisionomia impassível, enquanto continuava

a caminhada.— Ah, você está pretendendo me estuprar. Mas que surpreendente... — Parou e dirigiu-lhe um olhar

gélido. — Se encostar em mim um de seus dedos sujos, eu o verei arder rio logo do inferno!

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Por alguns minutos os dois a encararam, boquiabertos e com certo receio no olhar. Tess recomeçou a andar. Logo eles concluiriam que sua ameaça fora enganosa. No momento em que fosse entregue a Thurkettle, ela seria morta. Eles nada mais teriam a temer. Nem mesmo o menor castigo pela indignidade que pudessem ter cometido.

Desanimada, concluiu que somente um milagre poderia salvá-la. E ocorrências extraordinárias tinham sido muito escassas em seus poucos anos de vida. Rezou para que, se o inevitável acontecesse, pelo menos que as memórias de seu amor com Revan não fossem maculadas.

Revan largou o corpo inerte de Thomas no chão. Teria sido mais sensato matar Thomas e Donald do que deixá-los desacordados. Contudo nunca tivera coragem de enfiar uma faca em um homem que nada lhe fizera. Ele os agarrara pelo pescoço e os golpeara com uma pedra na cabeça. Era o único ataque clandestino que poderia suportar. Com um último olhar para Tess, antes de sair para buscar o cavalo, disse a si mesmo que estava na hora de repensar tais susceptibilidades.

Ao ver o que se passava no acampamento, tivera de conter-se para não invadi-lo a esmo. As intenções dos dois homens eram flagrantes. Seria um erro precipitar-se. Eles tinham jeito de mercenários, eram mais velhos e mais pesados do que ele. Não teria possibilidade de vitória em um combate direto com dois soldados endurecidos pela guerra. Poderia ser mais heróico e romântico, mas no momento o mais importante seria libertar Tess.

Ela parecia tranqüila, inconsciente do perigo e andava em círculos. Mas as mãos apertadas que deixavam os nós dos dedos brancos denunciavam que lutava para manter a coragem diante da ameaça. Revan nem teve tempo de sentir admiração por ela. Tess precisava de resgate, e não de respeito.

Revan afastou-se com extrema cautela. Assim que se encontrou a uma distância segura, moveu-se com maior rapidez e correu até onde amarrara o cavalo. Não tinha muito tempo. Teria de impedir que os dois soldados tocassem em Tess. Pensar que um outro homem poderia encostar nela, ainda mais à força, deixou-o cego de ódio.

Revan pulou no lombo do cavalo e manteve-o em um passo cauteloso pela floresta. Quando se aproximou da clareira onde fora montado o acampamento, disparou em um galope desenfreado. O retumbar dos cascos poderia ser ouvido ao longe.

Tess retesou-se quando John estendeu a mão, sem, porém, chegar a tocá-la. De cenho franzido, ele mirou a mata que os rodeava. Ela levou alguns segundos para recuperar-se das pontadas na cabeça causadas pelo pânico. E ouviu o mesmo que John ouvira: um tropel de cavalos. O som ecoava de tal maneira pela floresta que ficava difícil afirmar de onde procedia e quantos homens se aproximavam. No instante seguinte, um cavaleiro solitário invadiu a clareira, e Tess conheceu o doce sabor da esperança renovada.

— Revan! — ela sussurrou.Ele veio direto na direção de Tess e na dos dois agressores.Wallace esquivou-se e caiu, mas John foi incapaz de se mover. Ao passar, Revan desferiu-lhe um

pontapé no rosto. Passou velozmente por Tess, virou a montaria e voltou. Ela manteve estendidas as mãos amarradas. Revan diminuiu a velocidade do cavalo, agarrou Tess pela corda que lhe prendia os pulsos e puxou-a para cima da sela, na frente dele. Ajeitou-a da melhor maneira que pôde e saiu a galope.

John e Wallace ficaram em pé e desembainharam as espadas. Procedimento tardio. Revan embrenhou-se na mata, enquanto os dois gritavam por Donald e Thomas. Revan saiu novamente em disparada. Os quatro não tardariam em reunir-se e segui-lo.

Tess não disse nenhuma palavra. Não queria perturbar Revan. Ele precisava prestar atenção no caminho tortuoso que fazia por entre as árvores. Agüentou como pôde ser balançada em cima da montaria como um saco de grãos. Sentia enjôo por causa do estômago, que batia com força na sela dura.

— Revan — ela balbuciou, sem suportar mais a agonia. A voz vacilava no ritmo do galope do cavalo e estava enfraquecida pela falta de ar. — Não dá para suportar mais. Preciso me endireitar.

— Perdoe-me, Tess. — Ele deteve o cavalo e ajudou-a a sentar-se. — Não poderemos parar para um descanso — acrescentou, desatando-lhe os pulsos. — Aquele idiotas virão atrás de nós.

— Depois de cavalgar o dia inteiro, eles nos forçarão a viajar toda a noite.

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— Sinto muito, minha querida. Poderemos descansar quando eu tiver certeza de estarmos a uma distância segura. Teremos de encontrar um lugar adequado para acampar. Aqueles homens não sossegarão enquanto não nos encontrarem. Para eles e para nós, é uma questão de vida ou morte. Thurkettle deve tê-los ameaçado com uma espada caso não voltassem com as presas. Por isso eles se tornarão cada vez mais perigosos. Precisaremos tomar muito mais cuidado do que antes.

Resignada, Tess suspirou. Revan esporeou o cavalo. Ela se agarrou com firmeza e rezou para que não sofressem um acidente, enquanto voavam através da paisagem escura e traiçoeira.

Capítulo V

A luz feriu os olhos de Tess. Ela praguejou e tornou a fechá-los. Poucos minutos antes, haviam parado de fugir dos mercenários contratados por seu tio. Revan não podia ser tão cruel a ponto de acordá-la, pois mal haviam se deitado. Mas não havia dúvida. Ele a cutucava com a ponta do pé calçado. Tess virou-se de costas e resmungou que o chão coberto de musgo não lhe parecia tão macio e confortável como antes, quando estendera um cobertor e literalmente desmaiara sobre ele.

— Por que prometeu que iríamos descansar, sir Halyard? — Ela fitou Revan com raiva. — Nem cheguei a adormecer...

— Minha querida, creio que cometeu um engano. Acaba de dormir profundamente por quase seis horas. Não se lembra de que paramos ao amanhecer? Agora é quase meio-dia. — Ele apontou o sol a pino.

— Meu Deus! Parece que fechei os olhos há poucos minutos.Revan sorriu com simpatia e ajudou-a a levantar-se. Tess espreguiçou-se e massageou as costas. Olhou

ao redor. Encontravam-se em uma ravina situada entre dois morros. Um bom esconderijo. Ele arrumara os pertences de ambos e estava pronto para partir. Por certo haviam demorado demais no local.

Tess foi para trás de uma moita, aliviou-se e voltou. Usou a água do odre da montaria de Revan para fazer as abluções. Sonolenta, comeu em silêncio o infalível mingau. Somente quando montaram, ela viu as duas carcaças de aves balançando em uma corda presa à sela.

— Ah, então conseguiu uma boa caça — Tess comentou.Embora fosse muito agradável montar aconchegada nos braços de Revan, preferia ir atrás dele. Ficaria

mais à vontade e poderia pendurar-se nas suas costas se precisasse levantar-se.— Sim. À noite, quando acamparmos, faremos um belo banquete.— Aguardarei ansiosamente.— Fiquei tentado a prepará-los pela manhã, porém não ousei acender uma fogueira grande. Mas eu os

preparei para assar, enquanto a senhorita roncava.— Eu não ronco!— Não, claro que não.Tess fez pouco caso do risinho de zombaria.— Nem sei como lhe agradecer por ter vindo me salvar. Para ser franca, eu não o esperava. Seu

objetivo principal era falar com o rei. Além disso, você deveria desconfiar que eles preparavam uma armadilha.

— Percebi que pretendiam usá-la como isca. Confesso-me surpreso de haver constatado que a inteligência deles chegou a tanto. Se eu não soubesse o que pretendiam fazer a seu respeito, não teria voltado. — Revan não soube afirmar se dizia a verdade. — Além disso, se for necessário, pedirei seu testemunho para auxiliar a causa do rei Jaime. O que você ouviu e viu no castelo de seu tio é muito importante.

— É importante planejar uma desculpa com antecipação. — Tess sorriu ao vê-lo dar uma risadinha. — Pois eu não me lembro de ter ficado tão alegre em ver alguém.

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— É compreensível para quem enfrentava um grande perigo.— Ah, mas eu estava com um plano de fuga em mente.— Ah-ah...O tom sarcástico a fez insistir.— Estava, sim!Os dois começaram uma discussão amigável a respeito das possibilidades de fuga sem a ajuda de

Revan. Tess estava convencida de que não teria o menor sucesso, mas se sentia na obrigação de diminuir a arrogância dele. Ficara magoada com a explicação de Revan sobre os motivos de ter ido resgatá-la. A evidência de uma camaradagem entre eles suavizava a idéia anterior.

Depois de cavalgarem mais um pouco, ela sentiu sonolência. Largou o corpo e o rosto nas costas largas de Revan. Certa de que ele a chamaria quando necessário, mergulhou em um estado de torpor.

— Tess... — Revan sussurrou. — Tess, acorde. Teremos de nos esconder durante algum tempo.Surpresa por haver adormecido e não ter caído do cavalo, ela lutou para abrir os olhos. Revan conduziu

o animal para um bosque cerrado no cume de uma pequena colina. Tess fitou o céu. Estavam no meio da tarde. Perguntou a si mesma que distância haviam percorrido enquanto dormira encostada em Revan.

Ele parou o cavalo, desmontou e ajudou-a a apear.— Vi alguns homens no vale.— Soldados de Douglas ou de meu tio?Revan enrolou as rédeas em um tronco de amieiro.—Não pude distinguir. — Pegou-a pela mão e foi em direção à beira da colina, de onde se podia

observar a depressão alongada. — Achei que seria melhor nos escondermos primeiro.Os dois se deitaram de barriga para baixo e rastejaram para a frente. Tess admirou-se de Revan não

resmungar por causa das pedras do chão. Uma vez na beirada, ela olhou para baixo e não viu nada.— Revan, tem certeza de que havia homens perto de nós?— Absoluta. Eles espantaram alguns pássaros. Por isso eu os percebi e pude escapar a tempo. Virei o

cavalo e vim por esta colina. Veja... lá estão eles.Tess estreitou os olhos. Cavaleiros entravam no vale entre as duas colinas. Havia pelo menos vinte

homens. Ela estranhou a parelha que liderava o grupo. O homem de polainas brancas, que cavalgava o garanhão preto lhe pareceu conhecido. Ou seria o cavalo que lhe era familiar? Alarmada, fez um esforço para lembrar-se onde e quando vira o sujeito.

— São homens de Douglas — Revan sussurrou. — Estão rumando para juntar forças com o exército do conde traidor.

— Tem certeza? — Tess não reconheceu de imediato as insígnias dos soldados de Douglas. Nunca fora uma estudiosa de heráldica, a ciência dos brasões.

— Tenho. Mesmo sem a bandeira de guerra, a maioria ostenta os brasões do conde. Exceto o cavaleiro do garanhão negro e os dois que vêm atrás dele. Eles não exibem nenhuma identificação — Revan explicou, com o cenho franzido.

— E isso é ruim?— Em princípio, é suspeito. Um homem deve ser fiel aos seus emblemas, seja para ser reconhecido

como amigo ou inimigo. E uma prática que pode salvá-lo de ser morto por seus próprios aliados. Um homem que não traz insígnias receia ser identificado.

— Simon não as usa — Tess comentou.— Simon estava espionando. Um espião deve passar por qualquer homem ou por nenhum. Não deve

ser visto como inimigo por aqueles a quem estiver espionando. Também não quer que os amigos o vejam com o inimigo e pensem que ele é um traidor. A questão que se impõe é a seguinte. O que esse homem teme? Ele está exposto aos amigos ou aos adversários?

— Muito intrigante. O que desejam os que se disfarçam?— Poder, minha querida. Os que não o têm querem ter algum. E os que o têm desejam mais.— Revan, sei que já vi aquele homem antes, mas não consigo precisar onde nem quando. Sinto que é

um detalhe importante e tenho um receio instintivo quando olho para ele.

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— Vamos chegar mais perto. — Ele segurou-a pela mão e começou a rastejar para descer a encosta íngreme. — Talvez a maior proximidade a ajude a se lembrar.

— Não será muito arriscado? Pensei que tivéssemos de ficar escondidos.Eles tinham a mata e as árvores a favor.— Seria melhor que não fôssemos vistos, mas isso pode ser muito importante.— Ou uma tolice. Uma fantasia da minha imaginação.— Não creio que você seja uma pessoa dada a ilusões.— Espero que essa confiança não seja imerecida.Eles pararam no meio da descida, e Tess observou o homem com atenção. Era alto e magro. Tinha

feições aquilinas. Com certeza era conhecido. O sinal de alerta tornou-se mais forte.De onde o conhecia? Ela aproximou-se mais um pouco e um grave imprevisto aconteceu. Algumas

pedras deslizaram encosta abaixo, e o ruído ecoou pelo vale. Tess e Revan ficaram imóveis, mas não adiantou. Um dos cavaleiros ouviu o barulho, viu as pedras e ergueu a cabeça. Apesar de Tess e Revan estarem escondidos na moita, o homem os viu e deu o alarme.

Revan praguejou, agarrou Tess pela mão e subiu a encosta correndo. Nem mesmo parou nas vezes em que Tess tropeçou. Arrastou-a até ela recuperar o equilíbrio. Ao chegar perto do cavalo, colocou-a em cima da sela, desatou as rédeas e montou atrás de Tess.

— Segure-se! — Ele disparou para longe dos homens que os perseguiam. — Enfrentaremos uma corrida dura para escapar desses patifes.

Tess preferiu agarrar-se na crina do animal, pois assim teria maior segurança.Eles desceram a colina, e os inimigos surgiram pela direita, pela esquerda e por trás. Só havia uma

saída. Seguir em frente. Tess sentiu o vento provocado pelas espadas em movimento, mas ela e Revan conseguiram escapar sem um arranhão. Os homens de Douglas gritaram, frustrados, porém logo se recu-peraram e recomeçaram a perseguição.

Tess preocupou-se com o cavalo, que galopava no chão pedregoso. O animal não agüentaria carregá-los por muito tempo naquela velocidade. Os perseguidores estavam a distância. Ocasionalmente, flechas inúteis caíam nas proximidades. Revan não diminuiu o galope veloz, o que fez Tess refletir quais animais se cansariam primeiro. Esperava que não fosse o de Revan.

— Agora ficará mais perigoso, minha querida! — ele gritou. — Segure-se firme. Pretendo dar muitas voltas para despistá-los.

Na frente deles, a floresta densa. Revan queria dificultar a perseguição, mudando de rumo ao acaso. Tess fechou os olhos e, quando se embrenharam na floresta, começou a rezar.

Depois de algum tempo o cavalo diminuiu a velocidade e ela não teve de concentrar-se mais em ficar agarrada na crina. Descontraiu-se aos poucos, e a tensão do medo e da posição foi cedendo. Quando conseguiu ficar ereta sem esforço, Revan já conduzia a montaria em um passo vagaroso. Tess percebeu que o animal estava exausto, mas confiava que ele se recuperaria. Não se notava nenhum sinal dos perseguidores.

— Conseguimos desnorteá-los? — Tess recostou-se em Revan.— Parece que sim, minha querida. Tivemos sorte. Eles devem estar perdidos lá atrás. O último

comando que eu ouvi foi a convocação do líder, que gritava para todos se reunirem perto dele. Afirmou que não tinham tempo a perder com uma perseguição tresloucada.

— Eles devem estar com pressa para se reunir à tropa em breve.— Provavelmente. Por isso não queriam se atrasar mais. — Será que eles nos reconheceram?—Não, com certeza. Ou não teriam desistido de nos agarrar. Devem ter pensado que não passávamos

de dois curiosos.— Ainda assim, vieram atrás de nós. — Tess não acreditava que o perigo houvesse passado tão

depressa.— Nós fugimos. Nada mais natural do que sermos perseguidos. Demoraram um pouco para decidir que

nós não tínhamos condições de escutar nada e de que não valeria a pena submeter os animais a uma carga extra.

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— Espero que esteja certo. E o que faremos agora? Ficar dentro da mata? — indagou Tess.— Não por aqui. Não nos afastamos deles o suficiente e eu teria receio de acender uma fogueira.

Lembra-se de que temos duas aves para assar?— Claro que sim. — Ela sorriu quando o sentiu beijar-lhe a orelha. — Não vejo a hora de me regalar

com o banquete.— Será apenas o tempo de encontrarmos uma clareira. O nosso amigo — Revan curvou-se sobre Tess

e acariciou o pescoço do cavalo — precisa de água e de um descanso. Não gosto de perder horas preciosas do dia, mas ele não agüentará prosseguir sem uma pausa.

— Com certeza. Qual é o nome dele? Nunca o ouvi chamá-lo de nada.Revan pigarreou e fez uma careta quando Tess o fitou por sobre o ombro.— Ele não tem nome.— Não? Coitado! Todo o mundo apelida suas montarias. Ele é seu há pouco tempo?— Não, eu o tenho há três anos, mas nunca pensei em batizá-lo. Eu o chamo simplesmente de Cavalo.— Que falta de sensibilidade. Ainda mais depois do que ele fez por nós. Terei de pensar no assunto.

Precisa de um apelido que faça jus à sua perícia e velocidade. Cavalo... hum! Estou surpresa por ele ainda não tê-lo atirado para fora da sela. Deve estar com o orgulho ferido. — Tess acariciou o pescoço do animal. — Pensarei em um nome que fará este pobre capão se sentir um garanhão novamente.

— Ótimo. Essa nunca foi a minha especialidade. Voltando ao homem que vimos antes. Já conseguiu se lembrar de alguma coisa?

— Estou tentando. Mas, às vezes, a memória falha ao ser pressionada. Quando menos se espera, ela nos dá a informação.

— Está bem. Eu não perguntarei mais. Fique à vontade — Revan murmurou e beijou-lhe o pescoço. — Mais adiante há um lugar para acamparmos. Faz algum tempo, passei por aqui uma ou duas vezes.

Meia hora depois, eles encontraram a clareira. Um círculo de pedras ao redor de uma depressão rasa era uma prova de que viajantes usavam o local para acampar.

Quando Tess apeou do cavalo, percebeu o quanto estava cansada. Revan entregou-lhe um cobertor, uma pedra-de-fogo e uma isca. Ela recolheu alguns gravetos, sentou-se perto do círculo de pedras e preparou a fogueira.

Ele cuidou da montaria, trouxe lenha e, com o punhal, modelou um espeto para assar as aves. Tess usou a água do odre para uma ligeira ablução. Acomodou-se ao lado de Revan, e o cheiro de carne assada fez seu estômago roncar. Não deu confiança para o semblante zombeteiro de Revan e tomou um gole de vinho.

Esperar as aves ficarem assadas foi para ela o pior tormento dos últimos tempos. Receou perder as boas maneiras, quando Revan anunciou que a refeição estava pronta. Fitou-o de soslaio e consolou-se. Ele devorava a carne com sofreguidão. Comeram em silêncio até se fartarem.

— Estava delicioso — Tess afirmou, jogou o último osso no fogo e usou um pouco de água para lavar as mãos e o rosto,

— Ah, que sujeira nós fizemos!— É mesmo. Mas depois de dias sem nada além de mingau, seremos perdoados por essa glutonaria. —

Revan pegou o odre das mãos de Tess e lavou-se.— Deveria ter uma lei que eximisse os famintos de ter modos ao comer.— Comentarei isso com o rei da próxima vez em que falar com ele. Quer mais vinho?— Obrigada. — Tess devolveu o odre de vinho. — Acredito que os dias de privações possam interferir

no meu julgamento, mas devo confessar que nunca comi algo tão saboroso. Pelo menos desde o casamento de meu primo Tomás.

— Tomás?— Sim, Tomás Delgado Mackintyre.Revan fez uma careta, e Tess fingiu ar de superioridade.— Mackintyre, hein? É também parente deles?

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— Só pelo casamento de Tomás com uma herdeira Mackintyre. Ele passou a usar o sobrenome dela, pois havia propriedades envolvidas no matrimônio. Foi uma grande festa e todos se divertiram muito. Estiveram presentes vários membros da corte, pois Tomás é muito querido entre eles. Foi a última vez que estive com a família de meu pai. Meus pais morreram logo depois. Uma tempestade e uma enchente haviam enfraquecido a ponte por onde eles passaram uma noite... — Tess concluiu em um fio de voz.

Perdida nas memórias, mal ouviu as condolências de Revan. Limitou-se a anuir. Recordou-se do enlace do belo Tomás. Enquanto ela brincava com os primos mais jovens, seus pais divertiam-se muito. Conversaram com todos, riram e dançaram como se fosse o casamento deles. As imagens alegres eram ao mesmo tempo dolorosas. Lembrou-se da mãe e do pai erguendo brindes aos noivos, rindo dos chistes de tio Comyn, enquanto um cortesão moreno batia amigavelmente nas Costas de seu pai e flertava com sua mãe...

Era ele! O cortesão! Recordou-se do homem com nitidez. Magro e com feições aquilinas. Sem sombra de dúvida, era o homem que ela vira da encosta. Mas no dia da festa ele usava roupas com as insígnias da coroa para demonstrar a aliança com o rei.

— Virgem Santa! — Tess sussurrou.— O que houve? — Revan segurou-a pelo braço. — Por que está tão pálida?— Descobri quem é aquele homem.— Tess! Sabe o nome dele?— Não. Ele estava rio casamento de meu primo Tomás. Era um dos cortesãos.— Ora, mas isso não deve ser tão grave. Centenas deles perambulam pela corte do rei. Alguns nunca

chegaram a falar com Jaime. Como ele se trajava?— Com os brasões reais. Naquela ocasião, certamente não pretendia se esconder. Receio que esse

homem possa ser perigoso, Revan. Ele estava trajado como os soldados da guarda real.— Deus nos ajude! — Revan levou alguns instantes para recuperar-se do choque. — Tem certeza,

Tess?— Tenho. Tio Comyn me disse. Alguns Comyns tiveram essa honra. Pode ser que ele seja um espião

do rei, como você e Simon.— Eu bem que gostaria que fosse, mas é improvável. Simon e eu fomos escolhidos não apenas pela

nossa perícia. — Revan soltou-a e passou a mão nos cabelos. — Por sermos apenas cavaleiros da armada real, não éramos conhecidos pelos inimigos como freqüentadores da corte.

— Ou como soldados da guarda pessoal do rei. — Tess entendeu por que ver o homem com os traidores a alarmara tanto.

— Exatamente. Isso é terrível.— Talvez eu esteja errada.— Sinto na sua voz que não acredita nisso.— Admito que não. Gostaria que fosse o contrário. Mas a lembrança é muito clara para ser negada.

Posso vê-lo, alto e magro, rindo e dando tapinhas nas costas de meu pai. Deus do céu, será que ele já era traidor na época?

— Não creio, ou os Douglas já teriam usado os serviços dele.— Não pode imaginar de quem se trata? Você é um cavaleiro do rei. Deve conhecer muitos deles na

corte.— Os cortesãos se revezam bastante, embora a admissão no círculo fechado que rodeia Jaime seja um

processo demorado. Meu dever sempre foi lutar em nome do rei, o que me manteve muitas vezes afastado da corte. Não posso negar que esse posto me levou mais para perto do trono e por isso conheci muita gente e até alguns soldados da guarda pessoal. Mas não aquele homem. Nas poucas vezes em que me aproximei de Jaime, o tal homem esteve ausente. O que, em última análise, pode ter sido uma sorte. Ou ele teria me reconhecido. Apesar de minha família ser bem relacionada na corte, apenas no último ano o rei me conheceu pessoalmente.

— Então, qual será o jogo desse homem?

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— Difícil concluir. — Revan cutucou o fogo. — Mas há um aspecto em particular que me preocupa em demasia.

— E qual é?Ele fitou o fogo, perdido em seus pensamentos.— Que ele pretenda matar o rei. Mesmo que os Douglas ganhem a batalha, não poderão proclamar

vitória enquanto Jaime estiver vivo. A pretensão a um trono ocupado pressupõe a morte do rei.— E dos herdeiros — Tess sussurrou, aterrorizada pelo tamanho da conspiração que estavam

desvendando.— Correto. Se os Douglas perderem, mais um motivo para matar quem os derrotou. Isso transformaria

a ruína em uma vitória. É... o assassinato poderá ser necessário em ambos os casos. E quem melhor para executar a tarefa do que um homem sempre próximo ao rei?

— O sujeito também seria um ótimo espião.— O melhor. Ele fica sabendo de muita coisa que é dita, feita ou planejada pelo rei ou pelos seus

aliados.— O que poderemos fazer? Revan abraçou-a pelos ombros.— O que estamos fazendo. Tentando chegar ao palácio o mais rápido possível, mesmo com a hipótese

de que Simon já tenha levado as notícias até Jaime.— Acredito que eles não nos reconheceram. Senão não teriam suspendido a perseguição. Teriam vindo

atrás de nós até nas profundezas do inferno.— Teriam imaginado que poderíamos ter reconhecido o homem e levado o fato ao conhecimento do

rei. — Revan beijou-a no rosto e afastou-se. — Está na hora de descansar. Os últimos dois dias foram exaustivos e teremos de enfrentar outros iguais a esses. Será melhor dormir sempre que tivermos oportunidade.

Tess tirou as botas e deitou-se sobre o cobertor. Revan fez o mesmo e cobriu ambos com outra manta. Aconchegaram-se um no outro, cansados em excesso para fazer amor.

— Não acha que deveríamos dormir em turnos? — Tess perguntou de olhos fechados.— Não. Aqueles homens não estão à nossa procura. Meu cavalo é tão bom como um cão de guarda.

Foi treinado para me avisar de qualquer aproximação. Eu também me acostumei a acordar ao mais leve ruído. Por isso o deixo amarrado tão perto, pois o animal pode sentir e escutar um homem muito antes que eu possa vê-lo.

— E assim mesmo, foi incapaz de lhe dar um nome.— Tem razão. Isso é vergonhoso. Mas agora não temos tempo para isso. Teremos de nos preocupar

com algo muito mais importante. Um acontecimento cujo desfecho pode mudar o destino da Escócia.Tess suspirou. Não gostava de pensar no jogo traiçoeiro em que haviam se enredado. Nem lhe agradava

imaginar o futuro, se perdessem. Procurou na energia de Revan a força para acreditar que seriam vencedores.

Tess andava de um lado para outro, irritada. Recriminou-se pela vontade de acertar um pontapé no inocente cavalo que pastava ao redor. Depois de dois dias e meio de viagem, o animal perdera uma ferradura. O destino continuava a lhes preparar armadilhas. Aquele atraso ameaçava o sucesso da missão deles.

Revan a deixara escondida na mata e fora sozinho procurar um ferreiro na aldeia que se avistava ao longe. Atitude necessária para verificar se não havia inimigos no vilarejo. Ele a instruíra para esperar até o anoitecer. Caso não voltasse, ela teria de encontrar os parentes do pai. Tess ficara tensa com as palavras de despedida de Revan.

Suspirou e chegou mais perto dos limites da floresta. Dali a instantes, ele deixou a aldeia e veio em sua direção. Aliviada, ela teve vontade de chamá-lo, mas se conteve.

— É um lugar seguro? — Tess perguntou, assim que Revan se aproximou.— Bastante. Não reconheci inimigos e ninguém me reconheceu.Ele segurou as rédeas com uma das mãos e estendeu a outra para ela. Encaminharam-se até a aldeia, e

Tess pensou em um banho quente, uma refeição generosa e um lugar macio para dormir. Várias pessoas

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repararam nos dois estranhos, o que não lhes agradou. Como também não gostou de entrar ali vestida como um rapaz. Revan fitou-a e entendeu sua preocupação.

— Também não estou gostando de vir até aqui, mas Cavalo precisa dos serviços de um ferreiro.Tess anuiu e suspirou.— Eu sei. Vamos passar a noite aqui?— Ah-ah! Reservei um quarto na estalagem.— Só para nós?— Todo para nós. Um belo aposento para um lugar tão pequeno. O estalajadeiro disse que muitos

cavaleiros passam por esta aldeia. Afirmou que Douglas em pessoa se hospeda aqui de vez em quando.— Então se trata de um dos vilarejos dele!— Era preferível ter saído das terras de Douglas sem entrar na aldeia. Porém a necessidade nos obrigou

a correr o risco. Enquanto eu levo o cavalo ao ferreiro, compre alguns mantimentos. — Revan soltou-lhe a mão, desatou a algibeira do cinto e a entregou a Tess. — Pouca coisa, pois chegaremos ao castelo de meu irmão Nairn em dois ou três dias. De lá viajaremos ao encontro de seu tio Comyn.

Ela ficou surpresa.— Por que decidiu ir até lá?— Simon me garantiu que os Comyns são confiáveis.— A minha garantia não foi suficiente? — Tess sentiu-se ofendida e magoada.— Sim... e não. Eles são seus parentes, Tess. Este fato poderia tê-la feito fechar os olhos para muitas

coisas, inclusive para a lealdade. — Revan notou que a ferira e procurou mitigar o problema. — Thurkettle não lhe parecia traidor, não é verdade?

Ele tinha razão, e Tess acalmou-se.— Não. Mas também não fiquei surpresa. Talvez eu desconfiasse de Fergus, porém não quisesse

aceitar os fatos. Com a família de meu pai é diferente. Eu jamais suspeitaria de nenhum deles. Só mesmo se visse um Comyn enterrando o punhal no coração do rei.

— Foi o que eu deduzi das suas palavras. Por isso precisava de outra pessoa para corroborar a idéia.— Entendo. A rede de intrigas é muito extensa. Todo cuidado é pouco.Revan segurou-lhe a mão e beijou-lhe a palma.— Se faço isso, é pela nossa segurança. Vamos lá. Depois de comprar as provisões, tentaremos

encontrar outro traje de rapaz. Continuar a se disfarçar de homem é uma boa medida. Assim não chamaremos muitas atenções sobre nós.

Revan esperou até Tess esconder a trança sob o gorro.— Será um verdadeiro escândalo — ela murmurou. — Acho que pode ser contra as leis da Igreja.— A absolvição não será difícil de conseguir. Afinal, trata-se de um pecado a serviço do rei. O que

diminuirá a penitência. — Revan riu.Tess evitou comentar o fato de que deitar-se com ele aumentaria o sofrimento que teria de enfrentar

após a separação. O castigo religioso seria bem mais leve. Preferiu concentrar-se na visão das urzes em flor. Os sinais de temperatura mais quente eram agradáveis.

Eles chegaram à aldeia, e Revan entregou-lhe o odre para ser enchido com vinho.— A estalagem fica depois do mercado. Diga ao estalajadeiro que veio com Wallace Frazer.— Ah, que nome estranho. Não havia outro?— É comum e não despertará suspeitas.— Bem, não se poderia esperar outra coisa de um homem que nem se deu ao trabalho de batizar o

cavalo.Revan fingiu que se ofendia e empurrou-a em direção ao centro do mercado, onde havia um grande

poço.— Estou cansado das suas impertinências. — Ele deu uma piscadela. — Irei encontrá-la na estalagem

assim que puder.Revan virou-se para a esquerda, em direção à ferraria, que ficava no outro extremo da aldeia.

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Tess inspirou fundo, afastou as incertezas e caminhou para a frente. Uma mulher que varria a frente de sua casa parou para fitá-la com severidade. Tess deu um sorriso de conciliação. De repente, a mulher abriu a boca, pasma. Tess entendeu que seu disfarce precário fora descoberto. Esperava que os outros aldeões fossem cegos ou estivessem muito ocupados para notar. Caso contrário, haveria um reboliço difícil de resolver.

Percorreu as lojas. A maneira como os mercadores a olhavam fez com que se apressasse. Entretanto esqueceu a pressa na loja de tecidos. Havia uma boa variedade de trajes usados. Os mais luxuosos eram daquelas pessoas que se desfaziam dos antigos para comprar os novos. Os mais simples, das que vendiam por dinheiro que lhes fazia falta. Encontrou um conjunto masculino que lhe serviu, apesar do gibão muito duro que poderia machucá-la por já estar sem os arremates.

O que mais a encantou foi um vestido azul pouco desbotado e que não estava fora de moda. Tinha mangas curtas e um corpete justo de renda. Acompanhava a roupa de baixo em bom estado. Se Brenda estivesse ali, daria gritos de horror ao vê-la comprar trajes de segunda mão. Ignorou a opinião presumível da prima e a certeza de que o dinheiro de Revan não deveria ser gasto com futilidades.

Tess discutiu com o negociante até chegar a um preço razoável e saiu correndo com os embrulhos. Ansiosa, foi até a estalagem. O dono, um homem obeso, mostrou-lhe o quarto sem hesitar, mas se espantou ao ouvi-la pedir água quente para um banho. Ele saiu sacudindo a cabeça. Tess deu de ombros, dirigiu-se ao quarto e abriu os pacotes. Imaginou a reação de Revan ao vê-la em trajes femininos.

Revan sorriu ao ver o estalajadeiro afastar-se. O homem já achara estranho um cavaleiro, vagueando pela região rural, ao lado de uma jovem vestida com roupas de rapaz. Mas o pior fora Tess ter requisitado um banho quente. Na certa passara a duvidar da sanidade mental dela.

Revan refestelou-se no banco e encostou-se na parede de pedras. Quando solicitara uma das tinas do ferreiro para lavar-se, o camarada se espantara tanto quanto o dono da estalagem. Como previra o que Tess faria, resolvera banhar-se antes de ir ao encontro dela. Para os aldeãos, banho devia ser sinônimo de doença e morte. Eles até haviam esquecido das roupas impróprias de Tess. Ainda bem. A tendência mórbida por limpeza dos dois estranhos suplantava qualquer outro defeito que pudessem apresentar.

Revan tornou a sorrir e bebeu um gole de cerveja.— Revan, meu galante garanhão — uma voz quente o chamou. — Há quanto tempo!Ele endireitou-se e engasgou-se com a cerveja. A última coisa que desejava no momento era ser

reconhecido. Fitou a morena rechonchuda que estava encostada na mesa diante dele. Deu um sorriso amarelo e procurou pensar em uma maneira de mantê-la em silêncio.

— Mary, o que está fazendo aqui? Na última vez em que eu a vi, estava morando em Edimburgo.— Houve alguns imprevistos. Meu protetor se casou com uma jovem muito ciumenta. — Mary

acariciou-lhe os cabelos úmidos. — Eu nasci neste lugarejo. Venho para cá de vez em quando. — Ela passou os dedos pelo rosto de Revan e debruçou-se na frente dele. O decote baixo permitiu uma ampla visão do generoso busto. — Nem pode imaginar como fico feliz em revê-lo. Estou encalhada aqui há meses, sem nada para me distrair, a não ser fazendeiros e viajantes.

Revan resmungou quando Mary aboletou-se em seu colo e abraçou-o pelo pescoço. O beijo apaixonado era o de uma profissional e não provocou o menor efeito nele. Ela se afastou com o olhar estreitado é faiscante. A fúria era pelo desinteresse de Revan. Mary era capaz de enfurecer-se tanto na cama como fora dela. Ela se sentira insultada, e isso representava perigo iminente.

— É bom saber que está bem, Mary — Revan disse com calma e sentou-a no banco.— Pois não parece que ficou contente em me ver. Eu me lembro quando...— Eu também — ele se apressou a falar —, mas isso foi há seis meses ou mais. Minha vida mudou.

Tenho uma nova amante.— Está querendo dizer que é aquela morena minúscula vestida como um menino? — Mary postou-se

na frente de Revan, com as mãos nos quadris amplos. — Por acaso prefere aquela criança raquítica a mim?

Revan controlou a irritação. Fitou a mulher curvilínea e não sentiu desejo. O cheiro forte de perfume mal disfarçava o aroma da pele e das roupas pouco lavadas. Uma mulher cobiçada por muitos e que nada

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mais representava para ele. Revan não se lembrava de haver desfrutado tanto prazer como na companhia de Tess. Mary tinha o fogo e a arte para satisfazer os homens, mas eleja não se considerava parte dessa lista. E Mary percebia isso.

— Certas coisas acontecem de repente. Não lhe devo explicações.A reação de Mary deixou claro que ele deveria ter sido mais sutil.— Nós fomos amantes. Eu me entreguei a você.— E eu acredito que foi bem paga por essa entrega. — Revan terminou de tomar a cerveja e deixou a

caneca na mesa. — Agora não estou precisando de amante. Não se rebaixe, insistindo no assunto. Procure um homem solitário que tenha uma bolsa recheada.

Mary abraçou-o pela nuca e esfregou-se nele.— A fidelidade é muito louvável, sir Halyard. Mas o senhor não deveria permitir que isso lhe roube os

prazeres da vida.— Eu não seria fiel se isso não me agradasse. Não sou tão altruísta. — Revan desvencilhou-se e

segurou-lhe os braços com firmeza. — Agora, escute bem, minha bela Mary. — Enquanto eu estiver aqui, não serei sir Halyard, mas sim Wallace Frazer, um simples soldado. Lembre-se disso quando falar co-migo. E se alguém perguntar, cheguei à aldeia sozinho. Será melhor obedecer às minhas ordens ou perderá essa beleza que lhe permite ter uma boa vida.

Apesar da fúria de Mary, Revan notou traços de medo em seu olhar. O que o fez crer que a advertência seria levada em consideração.

— Você está exigindo muito de mim, e não vejo por que terei de lhe obedecer. — Mary soltou-se e esfregou a pele marcada.

Revan tirou algumas moedas do bolso e deixou-as na mão dela.— São suas. Para segurar essa sua língua, está recebendo um pagamento bem maior do que costuma

merecer por usar seus encantos.— Este insulto será lembrado. — Apesar disso, ela apressou-se em guardar o dinheiro.— Será melhor esquecê-lo. A senhora entrou em um jogo muito mais perigoso do que um pouco de

ciúme ou orgulho ferido. Se eu tiver razões para acreditar que a senhora foi a causa de algum problema para mim, calarei sua boca para sempre.

Revan empurrou-a e ignorou os comentários indignados do grupo de fregueses, inconformados com a rudeza com que fora tratada uma dama tão atraente. Subiu a escada estreita e pensou em como justificar o perfume enjoativo de Mary.

No momento em que entrou no quarto que alugara para passar a noite, esqueceu os problemas, inclusive Mary. Tess estava sentada na cama, sorrindo, nervosa, vestida com um traje feminino. Os cabelos negros caíam sobre os ombros e tinham sido afastados do rosto com dois grampos de osso. Revan fechou a porta. Tess segurou a barra das saias e deu uma volta. O vestido não era moderno, estava descorado e não se ajustava perfeitamente ao corpo esguio. Mas Revan teve certeza de que nunca vira nada mais adorável.

— Ah, Tess, quando comprar roupas dignas da sua fortuna e do seu berço, qualquer escocês que tiver sangue nas veias se renderá aos seus encantos. — Ele deixou o manto e o chapéu em cima de uma cadeira e aproximou-se.

Tess enrubesceu.— Talvez eu tenha errado em gastar seu dinheiro à toa. Mas quando entrei na loja de tecidos, não pude

resistir à vontade de me livrar da vestimenta de rapaz, nem que fosse por alguns momentos.— Como eu poderia me queixar dos gastos, diante de tamanha formosura?Revan tomou-a nos braços e passou os dedos por seus cabelos. Tess retesou-se ao sentir o odor de outra

mulher na roupa dele. Um aroma floral excessivamente adocicado. Franziu o nariz. A voz da precaução avisou-a para ignorar o fato. O perfume ainda se fazia presente, mas a mulher, não. Revan estava com Tess Delgado nos braços. Mesmo assim, o ciúme insinuou-se sem clemência.

Onde ele estivera antes de subir?— O ferreiro deve ser um camarada vagaroso no trabalho — Ela comentou.

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Revan afastou-se e fitou-a. O semblante carrancudo e o belo nariz franzido lembraram-no do cheiro de Mary. Aquilo era o que mais o incomodava, quando tinham sido amantes.

— Fui assediado por uma meretriz ávida por dinheiro.— Você não me deve explicações. — Tess fingiu indiferença.— Sei disso, mas eu acho que elas se fazem necessárias. Por vários motivos e por estarmos juntos em

meio a tantos perigos e traições.Tess ficou satisfeita em ouvir que Revan admitia uma união entre eles, embora não fosse exatamente

esse vínculo que ela almejava. Também lhe agradou a pressa dele em explicar o que acontecera. Esperava não se desiludir com o que Revan tinha para relatar.

— Então foi importunado, hein? — Ela sorriu sem vontade. Qualquer mulher que não fosse cega se sentiria tentada a procurar a atenção dele.

— Ah-ah! Acho que ela sentiu o cheiro das moedas no meu bolso.Revan não chegou a decidir se contava o relacionamento que tivera com Mary. Ouviram uma batida na

porta.— Deve ser o nosso jantar.— Espero que não seja mingau — Tess brincou.— Hum, não sei não... — Revan abriu a porta, e dois garotos entraram com bandejas pesadas.Tess bateu palmas de alegria. As travessas estavam abarrotadas. Carne, pão, mel, queijo e vinho. Os

meninos ainda se encontravam no quarto, e ela já se encarregara de inspecionar o banquete. Ignorou o risinho de Revan, que pôs uma moeda na mão de cada garoto e mandou-os embora.

— Não precisa esperar por mim. Pode começar — Ele a avisou e bateu a porta.Tess puxou um dos pequenos bancos de madeira para perto da mesa, sentou-se e esperou Revan fazer o

mesmo.— Nem sei o que vou comer primeiro.— Acho melhor não pensar muito ou acabarei com tudo. — Ele tirou a faca de comer da bainha e

começou a fatiar o pão ainda morno.Tess pegou uma das fatias grossas e lambuzou-a com uma colher cheia de mel. Revan serviu o vinho e

começou a comer. Com sorrisos ocasionais que não interromperam a mastigação, Ambos terminaram com tudo o que havia nas bandejas.

Revan ofereceu a Tess a última fatia de pão. Ela sacudiu a cabeça e pôs as mãos sobre o estômago.— Acho que vou estourar.— Para isso há um santo remédio. — Ele mastigou a fatia de pão e tomou um grande gole de vinho.— Eu sei. Parar de comer.Revan ficou em pé e aproximou-se de Tess.— A primeira coisa é tirar este corpete apertado.Tess corou ao vê-lo desatar os laços do vestido. Pelo olhar dele, poderia jurar que Revan não pensava

mais nos excessos à mesa. E a conhecida excitação começou a percorrer-lhe as veias.— Assim poderei respirar melhor?— E eu com maior dificuldade. — Revan levantou Tess no colo e levou-a até a cama alta de dossel.— E isso curará as conseqüências do excesso de comida? — Ela perguntou, matreira.Revan deitou-a, sentou-se na beira da cama e começou a tirar as botas.— Digamos que eu tenha a esperança de mudar a fonte da sua gulodice. — Ele estendeu-se ao lado de

Tess.— Era o que eu suspeitava. — Ela puxou-o para mais perto, abraçando-o pelo pescoço. — Ficaremos

aqui a noite toda?— Sim. — Revan beijou-a no rosto.— O cavalo já foi ferrado, mas falta pouco tempo para anoitecer.

Não adiantaria prosseguirmos agora. A noite será curta, pois sairemos ao amanhecer. Assim mesmo, achei que merecemos passá-la em um lugar confortável.

— Para mim será maravilhoso. Mas tem certeza de que não haverá perigo em ficarmos aqui?

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Havia a possibilidade de Mary comentar o que não devia, porém ela gostava muito da própria pele. Mesmo duvidando das ameaças de Revan, não arriscaria a vida ou a beleza para desafiá-lo.

— Ninguém nos perturbará.Mary praguejou e soltou-se das mãos pegajosas dos dois homens a quem estava servindo. Bateu com

força na mesa os canecos de cerveja. Os sujeitos eram até atraentes, mas tinham pouco dinheiro para gastar. E dinheiro era do que ela mais precisava. Sem um punhado de moedas, ficaria enterrada naquele vilarejo minúsculo até sua beleza acabar. Ao ver Revan, pensara que ele fosse uma resposta às suas preces, que a livraria do trabalho enfadonho e do fastio da vida na aldeia.

Voltou ao bar, encostou-se no balcão e amaldiçoou Revan mais uma vez. Ele a desprezara e depois a ameaçara. Apesar de enfurecida, admitiu que não tinha meios de fazê-lo pagar pelo insulto.

A chegada de quatro homens armados distraiu-a. Pediram cerveja, e Mary tratou de atendê-los com presteza. A armadura deles indicava que não deviam ser pobretões. Aproximou-se da mesa em que os sujeitos haviam se sentado e notou que usavam as insígnias de Douglas, o que aumentava as possibi-lidades de lucro. Os Douglas eram donos de metade da Escócia. Homens que trabalhavam para uma família tão poderosa deviam ser muito bem pagos. Talvez tivessem até um certo poder outorgado pelo senhor feudal. Um pouco de lisonja, de provocação sensual, e o dia poderia ser lucrativo.

— Aqui está a cerveja, valorosos soldados — Mary sorriu, insinuante, deixando os canecos na mesa. — É a melhor da região.

O mais alto abraçou-a pela cintura e puxou-a. — E ainda temos uma linda moça para nos servir. Não posso imaginar maneira melhor de terminar

minha busca do que passar a noite nos seus braços.— Passe a noite onde quiser, Howard — um soldado baixo e gordo criticou-o. — Nós continuaremos a

caçada.— Santo Deus, já reviramos todos os cantos da fronteira e não encontramos nada.— Não todos. Será melhor não retornarmos de mão vazias se não pudermos jurar que vasculhamos

tudo. Ele nos enforcará e nos deixará de banquete para os corvos.— O que estão procurando? — Mary permitiu que Howard a sentasse em seu colo.— Não é da sua conta, mulher — o gordo resmungou.— Sei que não, mas talvez eu possa ajudar.— Ah! Vai ver que ouviu falar da recompensa oferecida.— Não ouvi. Há uma recompensa! A história me interessa. O homem abriu a algibeira e pôs vinte e cinco moedas de ouro sobre a mesa.— Esta é a recompensa oferecida para quem ajudar na captura de sir Revan Halyard e da sua

companheira. Se souber de alguma coisa, pode falar.Mary não acreditou na própria sorte. Agarrou as moedas, e o homem segurou-lhe o pulso.— As moedas são minhas, soldado.— Não até eu ter certeza de que as mereceu, rameira. Ainda não me disse nada. Se é que sabe mesmo

de alguma coisa.— Seus idiotas! O homem que vocês procuram está em cima das suas cabeças. — Mary riu quando

eles olharam para cima.— Halyard está aqui... nesta estalagem!— Isso mesmo. Está ocupando um dos quartos de cima. Ele e aquela...— A jovem está com ele?— Isso mesmo. Ela está vestida como um rapaz. Também a estão procurando?— Estamos. — O homem soltou-lhe a mão e recolheu dez moedas.— Ei! — Mary gritou e ficou em pé. — Você disse que a recompensa era tudo isso!— Quero ver a prova do que nos contou. Por que eu deveria acreditar numa prostituta? Como uma

criadinha qualquer pode conhecer um cavaleiro do rei? Seus segredos, suas idas e vindas?— Criadinha, eu? Fique sabendo que recusei homens muito melhores de que você. Sir Revan Halyard

foi meu amante quando eu vivia em Edimburgo. Conheço-o muito bem. No momento, ele se chama

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Wallace Frazer. Revan e a sua amante esquelética estão no melhor quarto. Subindo a escada, primeira porta à direita. Quero o resto do dinheiro.

— Eu lhe darei quando pegar os dois. Vamos, homens —o sujeito ordenou aos outros três, levantou-se e rumou para a escada. — Esta pode ser a noite em que terminará essa busca amaldiçoada.

Mary sorriu ao vê-los subir apressadamente os degraus de madeira velha. Tomou o resto de cerveja de um dos canecos. Quando os ouviu esmurrar a porta, saiu e parou debaixo da janela do quarto de Revan. Se o matassem, queria ter o prazer de escutar. Ele pagaria pela maneira como a insultara.

Capítulo VI

— Abra a porta, Halyard! Uma forte batida seguiu-se ao grito. Revan pulou da cama e amaldiçoou a própria estupidez. O instinto

de guerreiro o alertara quando ouvira sons e vozes, mas o desejo por Tess fizera com que desprezasse sinais de alarme. Em vez de prestar atenção ao ruído inconfundível de quatro homens armados que se aproximavam do quarto, continuara a acariciar c a beijar Tess. Essa distração custara-lhe minutos preciosos. Enfiou as botas, determinado a consertar o erro.

— Estamos encurralados — Tess sussurrou, já em pé e calçando os sapatos.— Não é bem assim. Escaparemos se agirmos depressa. — Revan afivelou o cinturão onde carregava a

espada. — Pegue somente o necessário e saia pela janela.— Halyard! — um dos homens gritou, enquanto os outros esmurravam a porta para arrombá-la. —

Sabemos que está aí. A sua prostituta de Edimburgo nos contou.— Mary! Aquela filha do demônio! Na certa não paguei o suficiente pelo silêncio dela.Tess entendeu que o perfume em Revan não fora deixado por uma criada desconhecida de taverna, mas

o momento não era adequado para argumentações. A mulher os traíra e seria preciso voar dali. Com o alforje pendurado no pescoço, o odre sobre o ombro e um cobertor amarrado na cintura, Tess olhou para fora da janela. Não havia dúvida. Revan escolhera aquele quarto pela facilidade com que poderiam fugir numa emergência. Uma série de anexos em mau estado rodeavam a área e serviriam como uma escada até o solo. Ela empurrou a mesa, segurou as saias, passou uma perna por cima do peitoril e fitou Revan.

— Para onde iremos?— Para a oficina do ferreiro. — Ele empilhava os poucos móveis em frente da porta. — O cavalo está

amarrado nos fundos da forja, com a sela por perto. Pela conversa que tive com o homem, ele está sentindo o cheiro de traição no ar e não quer participar disso. Vá, Tess. Eu irei em seguida.

Tess desceu da janela com cuidado. Era preciso atenção nos passos, pois os telhados eram de colmo. Quando passou pelo último e chegou ao chão, Revan já estava perto dela. Tess virou-se na direção da ferraria... e viu a mulher.

Teve certeza de que se tratava de Mary. Em uma avaliação rápida, não pôde evitar uma agulhada de despeito. Mary era fornida e possuía curvas tentadoras. Ao ver o que agradara a Revan, desconfiou das próprias possibilidades de cativá-lo para sempre.

O pulo de Revan no solo interrompeu os pensamentos lúgubres de Tess e assustou Mary.— Só mesmo uma vagabunda seria capaz de tal traição, Mary! — Ele segurou Tess pelo braço. Não

haveria tempo para uma lição merecida. — Se veio até aqui para escutar os meus gritos de agonia, enganou-se! Os seus, sim, ecoarão noite adentro!

— Eles me forçaram a dizer onde você estava. — Mary encostou-se na parede coberta de hera da estalagem e levantou os braços. — Eu juro. Não tive escolha.

— Nunca vi ninguém mentir com tanta facilidade. Não tenho tempo para tratar disso agora. Mas esteja certa, rameira gananciosa. Não esquecerei essa deslealdade! Sua atitude a colocou ao lado dos traidores

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do rei. — Revan anuiu ao ver-lhe a expressão de terror. — Isso mesmo, traidores. Acabou de ajudar a conspiração do conde de Douglas contra Jaime II. A morte para esse crime nunca é misericordiosa.

— Eu não sabia dos verdadeiros motivos pelos quais eles o procuravam! — Mary protestou. — Eu jamais trairia nosso rei.

— Mas foi o que fez. Espero que a sua pequena vingança seja recompensada com o preço que pagará por ela.

Revan ouviu os gritos dos homens que haviam conseguido entrar no quarto e caíam por cima das peças de madeira empilhadas. Disparou rumo à casa do ferreiro, agarrando a mão de Tess. Os pedidos de perdão e piedade de Mary foram logo abafados pela altura das vozes dos homens que saíram na perseguição do casal.

O cavalo se encontrava onde o ferreiro se comprometera a deixá-lo. Revan selou-o, e Tess ajeitou os pertences deles no lombo do animal. Haviam acabado de montar, Tess diante de Revan, quando os quatro guerreiros de Douglas rodearam a oficina. Revan esporeou o cavalo na direção deles. Os quatro tiveram de afastar-se para não serem atropelados. Os homens bradaram por suas montarias. Revan disparou em um galope veloz em direção à floresta, onde esperava conseguir ludibriar mais uma vez os traidores.

Tess cochilava quando Revan parou o cavalo. Ela esfregou os olhos e olhou ao redor. Não tinha noção de onde se encontravam, nem por quanto tempo cavalgaram. O importante era que haviam despistado o inimigo. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Depois de desmontar, Revan tratou do cavalo, e Tess sentou-se. Teve vontade de chorar só em pensar em dormir de novo no chão duro.

A tristeza aumentou ao reparar no vestido. Não era um dos mais bonitos nem luxuosos, mas a fizera sentir-se como uma dama e provocara a admiração de Revan. Agora estava manchado de lama e rasgado em vários lugares. Irrecuperável. Era ainda pior do que as roupas largas de rapaz. Parecia de novo uma menina maltrapilha.

Tess lutou para não chorar, enquanto tentava tirar a sujeira do tecido. As duas coisas eram difíceis. A silhueta feminina e desejável de Mary não lhe saía da mente. Nem mesmo com a certeza de que ela era uma rameira e que traíra Revan. Tess não se conformava em estar esfarrapada, cheirando a cavalo e sentada em um solo cheio de lama e dejetos. O tremor dos lábios e do queixo era um sinal da derrota contra as lágrimas. Enquanto se esforçava para ser forte, a vontade de desabafar a dominava.

— Creio que não devemos acender uma fogueira. — Revan sentou-se a seu lado e fitou-a sob a luz da lua crescente. — O que houve, Tess? Machucou-se ao pular da janela?

Ela negou com um gesto de cabeça. Se tentasse falar, romperia em soluços.Revan segurou-lhe o queixo com delicadeza, virou-o e mirou Tess com ternura. Apesar da obscuridade,

percebeu o desalento em que ela mergulhara.— Sinto muito por termos abandonado o nosso quarto confortável. Achei que houvesse pago uma

quantia razoável a Mary e que a ameaça fosse suficiente para ela calar a boca.— Ela o reconheceu, não foi?— Foi. O passado de uma pessoa pode voltar e criar problemas. Há mais de seis meses, ela e eu

passamos algum tempo juntos. Eu viajava muito para Edimburgo, e naquela época fomos amantes.— Edimburgo? E por que ela serve bebidas em uma estalagem modesta de uma aldeia minúscula?— Parece que os parentes de Mary moram no vilarejo, e ela teve de fugir de Edimburgo. Pelo que me

disse, o protetor de Mary casou-se, e a mulher era ciumenta. Ela queria reatar comigo.— Mary é bonita e tem um corpo escultural — Tess murmurou e, de esguelha, fitou a própria silhueta

esguia.Revan abraçou-a pelos ombros. O tom ciumento lhe agradava. Tess também experimentava um

sentimento de posse. Como o que ele sentira ao ver os soldados de Thurkettle que ameaçavam estuprá-la. Entretanto as emoções de Tess vinham acompanhados de grande tristeza. Olhara para si mesma como quem lamentava o próprio aspecto. Revan entendia o ponto de vista dela, embora o achasse um absurdo.

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Ele considerou a tristeza de Tess comovente. O bom senso recomendava um comentário leve ou uma lisonja, mesmo que exagerado para a ocasião. Entretanto não queria lhe dizer nem uma palavra que não fosse verdadeira.

Mais uma prova para a emoção que se insinuara em sua mente ao recusar o convite de Mary, mulher bonita e hábil sob os lençóis. Antes de conhecer Tess, iria para a cama com Mary sem hesitar. A negativa fora imediata. Em seguida, no quarto, havia sido invadido por uma ternura incontestável ao ver Tess com o vestido. Gostava muito dela, mas não se deteve na hipótese de que o sentimento pudesse ser ainda mais profundo.

— Não deixa de ser verdade, porém Mary é uma rameira. — Revan beijou a ponta do nariz de Tess. — Mesmo que você não possua as curvas dela, é impossível negar a sua beleza, Tess. Por acaso eu não a preferi, apesar de toda aquela exuberância? Mary não me desperta mais o menor interesse. Eu só queria calar-lhe a boca. O que também não consegui.

— Pelo menos, conseguimos fugir e iludir aqueles mercenários.— Mesmo assim, não acenderemos o fogo. A escuridão que nos esconde poderá escondê-los também.

Não quero arriscar.— Tem razão. — Tess suspirou e olhou a barra rasgada da saia. — Aquela fuga acabou com o meu

vestido, que já não era grande coisa.— Estava linda com ele. Se o nosso jantar não tivesse chegado logo, eu teria demonstrado o quanto

apreciei a mudança...Tess sorriu. Revan não se perdera com frases feitas. O elogio era simples e não fora encoberto por

nenhuma bajulação. O que tornava suas palavras mais dignas de crédito. O olhar ardente de Revan quando a vira com o traje feminino a fizera sentir-se mais bonita. Palavras bombásticas eram inúteis.

— Sinto ter gasto o seu dinheiro sem lhe perguntar antes. Mas quando me deparei com o vestido, não pude resistir. Eu queria que me visse trajada como uma dama e que pensasse em mim como mulher.

— Tess, a partir da primeira noite que passamos juntos, não tive a menor dúvida em enxergá-la como mulher. Para ser bem sincero, depois da surpresa de ver uma jovem usando roupas de menino, não dei a menor importância às roupas que vestia. — Revan a viu estremecer. — Pegarei nossos cobertores.

Tess considerou gratificante saber que ele não ligava para a aparência dela. Por outro lado, isso poderia ser interpretado como uma falta de atenção. Ou até indiferença.

Tess sentou-se em cima da manta que Revan estendera e tirou as botas. Deitou-se de costas, e ele fez o mesmo. Revan se acomodou ao lado dela, cobriu ambos com duas outras peças encorpadas de lã e tomou-a nos braços.

— É verdade que não se importa com que eu vista?— Devo confessar que não presto muita atenção à moda. Preocupo-me mais com o que é adequado ou

não ao momento. — Revan mordiscou-lhe a orelha. — Mas sabe o que pensei quando a vi com a roupa nova? Que uma jovem tão linda deveria ter uma arca cheia de vestidos.

— E o que eu faria com tantos? — Tess começou a desamarrar-lhe o gibão.— Cegaria todos os escoceses, inclusive seu tio e Brenda, que a renegaram.— Esse é um dos menores crimes deles. — Ela concentrou-se na camisa de Revan.— Pois às vezes acho que é o maior.Eles se entretiveram em despir um ao outro, sem dizer nada. Tess enterneceu-se com a preocupação de

Revan pela maneira como fora destratada pelos parentes. Ele não se conformava com os excessos cometidos por Thurkettle. O que lhe deu a esperança de que emoções mais profundas estivessem escon-didas no coração de Revan.

Tess, apenas com a camisa fina, deitou-se sobre ele, que ficara de calção. Ela estava disposta a ser mais agressiva para conquistá-lo. Assim, pelo menos, Revan não a esqueceria tão cedo.

— A tal da Mary era muito experiente? — Tess beijou-o.— Como convém a uma prostituta. Mas não é apenas isso que incendeia um homem. O que falta em

perícia pode ser facilmente compensado pela sinceridade da paixão. Devo lhe confessar que, muitas

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vezes, sua inocência me excita mais do que qualquer outra prática. Em várias ocasiões desejei ter o mesmo nível de ingenuidade. — Revan tomou-lhe o rosto nas mãos e beijou-a.

— Teria sido interessante. — Tess concentrou no pescoço dele uma série de beijos provocantes. — Mas é melhor que ao menos um dos parceiros seja entendido no assunto.

Revan engoliu uma risada. Ela passou a acariciar-lhe o peito de maneira ousada.Tess sentiu-o estremecer quando o beijou no estômago. Ele gemeu e se contorceu. A musculatura do

abdome ficava mais tensa com a sucessão de carícias. O que aumentou a ousadia de Tess. Se Revan apenas lhe concedesse paixão, ela estava determinada a aceitar o que lhe era oferecido. Além disso, des-cobriu que excitá-lo era um poderoso afrodisíaco.

Revan segurou-a pelos braços e ergueu-a para penetrá-la. Tess cavalgou-o até que ambos atingiram o clímax pelo qual ansiavam. Revan enlaçou-a quando ela se largou no peito largo e suado. Ofegantes e trêmulos, procuravam respirar com normalidade. Depois de algum tempo, ele deitou-a a seu lado e puxou os cobertores sobre ambos.

— Minha querida, ainda não tirou a camisa.— Bem, eu não posso pensar em tudo. — Tess esfregou o rosto no tórax musculoso, e Revan

entrelaçou os dedos em seus cabelos.— O que é perfeitamente desculpável. Só espero que o resultado dos nossos delírios não tenha sido

ouvido a distância. O que poderia representar um perigo.— Então foi mesmo um delírio?— Para uma jovem tão inteligente, essa é uma pergunta infundada. — Revan riu e beijou-a no alto da

cabeça.— Não sei, não. Meu primo Tomás sempre dizia que não deveríamos deixar de fazer perguntas pelo

medo de parecermos tolos. Ele afirmava que um pouco de vergonha era mais fácil de suportar do que a ignorância ou a dúvida.

— Isso quer dizer que têm dúvidas, não é? Virgem Santíssima, se alguém se aproximasse, eu teria dificuldade para lembrar o meu próprio nome. Cego quanto ao que nos rodeava, uivei de prazer para que a lua me escutasse. Se os homens de Douglas estivessem a uns dois quilômetros daqui, teriam nos encontrado com facilidade. E o delírio me deixou tão enfraquecido que nem mesmo poderia lutar para nos salvar. Isso responde às suas indecisões, Tess? Juro que jamais conheci prazer tão intenso. Esta minha jovem adorada torna muito difícil a concentração de um homem nos seus deveres.

— Pois eu acho que você os tem cumprido à risca e com astúcia. O rei saberá recompensá-lo. Principalmente depois de enterrar as mentiras que andam circulando a seu respeito. Talvez Jaime não tenha dado crédito aos boatos de que foi traído por sir Revan Halyard.

— Se todos acreditassem nisso, acabariam por convencê-lo. Não se esqueça de que o pai dele foi cruelmente assassinado. Quando criança, Jaime II foi usado como joguete por Livingston, que seqüestrou o jovem rei e sua mãe. Os Douglas nunca deixaram de ser uma ameaça, assim como os lordes das ilhas. Até mesmo alguns dos aliados de Jaime, como os Crichton, duvidaram dele algumas vezes. O rei tem o direito de ter suspeitas. É aflitivo, embora compreensível, que ele desconfie até da própria sombra.

— Não discordo. Bem, logo poderá provar ao rei sua fidelidade e seu apoio integral.— E quando eu fizer isso, terei de apontar os Thurkettle como traidores.—Revan acariciou-lhe o rosto,

de onde afastou uma mecha de cabelos. — Essa é uma mancha difícil de ser lavada.— Revan, não se trata de uma denúncia falsa. Eles enveredaram pelo caminho da traição por achar que

lhes era mais conveniente ou lucrativo. Se o nome dos meus parentes for maculado, a culpa será deles. Devo confessar que isso me perturbou no início. Faço parte da família, e minha mãe era irmã de Fergus. Mas o crime é dele e de Brenda. Não é meu nem de minha mãe. E eles terão de pagar por isso.

— Eu concordo, mas nem todos pensarão dessa maneira, minha querida. Podem acusá-la por seu parentesco. Eu serei a origem de qualquer sofrimento que o ato condenável poderá lhe causar.

— Isso é tolice. Tio Fergus é a causa de tudo. — Tess beijou-o e passou a ponta dos dedos no semblante vincado de culpa e inquietação. — É ele quem está cometendo um crime hediondo contra o rei e contra a Escócia. Você está apenas praticando a justiça e expondo a traição, como é seu dever. Não se

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preocupe comigo. Tenho tantos parentes que ninguém sabe ao certo quantos são. E o nome dos Comyns e dos Delgados é impoluto. Bem, pelo menos depois da bobagem de ficar ao lado da Inglaterra no tempo de Roberto Bruce.

— Muitos assumiram comportamento idêntico. Isso agora não tem mais sentido — Revan abraçou-a de encontro ao peito. — Durma, minha querida. Partiremos ao amanhecer.

— Como sempre... — Tess murmurou e aconchegou-se nele para enganar o frio da noite. — Espero que todos os cães traiçoeiros que nos perseguem também estejam dormindo.

— É com o que estou contando. — Revan verificou se a espada estava ao alcance de suas mãos. — Quando chegarmos ao castelo de meu irmão, descansaremos um pouco antes de prosseguirmos a viagem até a fortaleza dos Comyn. Lá, estaremos seguros.

— Seu irmão deve imaginar que você pretende ir para lá. Quando souber onde se encontra, poderia mandar alguns parentes ao seu encontro.

— Não há como reunir muitos homens sem despertar suspeitas. Além disso, Douglas espalhou seus soldados por todos os cantos considerados estratégicos. Não se preocupe. Nós tivemos sucesso em despistá-los. É o que continuaremos fazendo.

Tess anuiu e fechou os olhos. Ela não acreditava muito na sorte. Mas também não adiantaria perder o sono por algo que ainda não acontecera e que poderia nem acontecer. Havia muitos motivos para preocupações sem os famosos se isso, se aquilo. No momento, o mais importante era descansar. Teria de esquecer os problemas que os aguardavam. Suspirou e pensou apenas em como era maravilhoso estar nos braços de Revan. O sono não tardou a vencer a mente incansável de Tess.

Revan acariciou-lhe os cabelos e olhou para cima. Era uma noite clara e a lua se refletia na copa das árvores. Tess adormecera. A respiração suave era de uma pessoa em paz com a vida.

— Ah, Tess, o que farei a seu respeito? — perguntou a si mesmo.Cada vez mais, ela se apoderava dos sentimentos dele. Tess quebrara todas as regras que o próprio

Revan se impusera em relação às mulheres. Não enxergava nenhuma maneira de parar, de retroceder ou de comportar-se da melhor maneira para os dois.

Chegou a desejar que Tess fosse pobre. Isso solucionaria uma parte dos conflitos. Se continuassem como amantes, não existiria a preocupação de ofender a honra de uma família poderosa. Certo ou errado, tirar a virgindade de uma donzela humilde não representava insulto. E se resolvesse desposá-la, não teria de inquietar-se por haver-lhe comprometido a honra. Eles se casariam em igualdade de condições. Nada teriam como herança.

Com Tess, o relacionamento apresentava tantos perigos quanto a teia de conspirações na qual tinham sido apanhados.

A culpa também o martirizava. Não estava sendo justo com Tess. Ela o amava ou estava muito próxima disso. Entretanto ele não poderia lhe oferecer o futuro que Tess merecia. A honra e a justiça exigiam que se afastasse dela. Mas não encontrava forças para executar uma tarefa tão espinhosa. Não conseguiria dizer adeus diante do olhar terno de Tess e de seu rosto sincero.

Como naquela noite, continuaria a confortá-la, a abraçá-la e a dizer-lhe palavras carinhosas. O que aumentaria as esperanças de Tess de que permaneceriam juntos. Com raiva de si mesmo, Revan admitiu que assumira um comportamento, cruel. Esperava que ela não chegasse à mesma conclusão, quando tivesse de deixá-la.

Após dois dias de viagem cansativa, a abadia em ruínas despertou o interesse imediato de Tess. Desde que haviam fugido da estalagem, era a primeira vez que divisavam sinais de vida no meio da interminável floresta. Ela reconheceu o lugar. Cinco anos antes, quando fora levada para o castelo dos Thurkettle, passara por ali. Na época, a construção ainda estava em pé. Um ataque inglês a incendiara em parte. Outro, com certeza, terminara a destruição. As fronteiras estavam cheias de ruínas semelhantes, o que era desalentador.

Concluiu que deviam ter dado muitas voltas para confundir os perseguidores, pois o local não era longe do castelo de Fergus. Se houvessem seguido um percurso normal, já teriam chegado ao palácio do rei.

— O castelo de seu irmão fica na mesma direção onde moram os meus parentes.

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— Já passou por aqui antes? — Revan se surpreendeu.— Sim. Há cinco anos, quando a família de meu pai me levou para o castelo de Fergus. O local fica a

três dias de viagem da abadia. Mas não tenho certeza se é para o norte, para oeste ou para noroeste.— Acho que é a última opção. — Ele olhou por sobre o ombro e sorriu. — Ainda bem que não

dependemos do seu sentido de orientação para chegar ao nosso destino.— Ora, que insulto! — Tess deu risada. — Revan, a necessidade de viajar em espiral nos custou muito

tempo, não é?— Por umas duas vezes fomos forçados a ir para o sul, quando deveríamos ter ido para o norte. E para

leste, quando nossa meta era o oeste. Ficarmos escondidos também retardou a nossa viagem. — Ele deu uma pancadinha amigável no pescoço do cavalo. — Este rapaz é um herói.

— Não estou me queixando, mas gostaria que estivéssemos mais perto. — Tess mexeu-se na sela.Revan riu ao sentir-lhe o movimento provocante dos quadris.— Eu entendo. Descansaremos um pouco no castelo de Nairn. Tess rezou para que Revan não tivesse intenção de deixá-la na casa do irmão e prosseguir sozinho. Era

vital sua permanência ao lado dele. Embora sentisse uma ternura maior por parte de Revan, ele ainda não lhe dera a menor esperança quanto ao futuro. Ela precisava de mais tempo para tentar capturar-lhe o coração.

— Falta muito para chegarmos ao castelo de seu irmão?— Não. Uns oito quilômetros a oeste. Daqui para a frente, atenção máxima. Com certeza, eles

imaginam que possamos procurar Nairn e estarão vigiando os acessos. Planejo chegar mais próximo e esperar até escurecer. Há um passagem secreta na muralha por onde poderemos entrar.

— E o cavalo?— Conheço um casal idoso que mora em uma cabana perto do castelo. Eles ficarão com o animal até o

dia seguinte, quando um dos homens de Nairn poderá trazê-lo.— E se avistarmos soldados de Douglas ou de tio Fergus?— O ideal seria matá-los, mas nunca fui a favor de execuções sumárias. As terras de Nairn fazem

divisa em três lados com as de Douglas. Capturar ou matar um sectário por ali será perigoso. Além disso, a maioria dos guerreiros de Nairn já deve estar ao lado do rei. O mais sensato será entrar e sair sem despertar suspeitas.

Tess anuiu, mais tranqüila. Entrar e sair. Revan não a deixaria para trás. Já não temia a visita que iriam fazer.

Ainda não escurecera quando Revan deteve o cavalo. Com um sinal para manter silêncio, ele desmontou e ajudou-a a descer. Deixou-a, mais o cavalo, em um bosque de pinheiros e esgueirou-se até uma pequena cabana de pedra coberta de colmo. Tess não pôde evitar o medo depois de ver Revan embrenhar-se na mata. Os camponeses poderiam ficar espantados e, sem querer, despertar a atenção de quem estivesse vigiando. O conde ou Fergus deviam manter homens de plantão ao redor do castelo de Nairn.

Ela sentou-se no chão, sem largar as rédeas do cavalo. Revan não demorou a voltar, carregando um pequeno saco. Tess rezou para que fosse comida.

— O velho Colin me contou que três soldados de Douglas estão emboscados por aqui há uma quinzena. — Revan sentou-se. — Nós os veremos quando sairmos daqui. Estão acampados na divisa, mas do lado de Douglas. Ninguém pode tirá-los de lá, pois não estão invadindo terras alheias.

— O que faremos?— Chegar o mais perto possível da passagem e esperar até de noite. Pensei em ficar na cabana de

Colin, mas ele disse que os homens podem se aproximar, como já fizeram uma vez. Colin não tem condições de afastá-los, e os soldados de meu irmão não podem ficar o tempo todo à espera do inimigo. — Revan sorriu e levantou a sacola. — Sabe o que temos aqui? Pão, queijo e maçãs. Pelo menos não ficaremos com fome enquanto a noite não chega.

— Colin cuidará do cavalo?

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— Sim. Ele tem um lugar para escondê-lo até amanhã cedo. — Revan ficou em pé e ajudou Tess a erguer-se. — Vamos nos aproximar mais.

Dali a pouco, avistaram o castelo. Era uma fortaleza imponente e quadrada. Ao redor, uma muralha alta e larga. Tess e Revan esgueiraram-se furtivamente, escondidos pelas árvores. Vários soldados andavam sobre a muralha. Um momento depois, viram os três asseclas de Douglas, que nem faziam questão de se ocultar. Haviam erguido abrigos para eles e para os cavalos. Mesmo sem constituir ameaça imediata para o castelo, pela distância considerável do acampamento, o inimigo podia vigiar toda a movimentação circundante. Tess teve pena de Nairn Halyard, pois não devia ser fácil ter como vizinho um homem tão poderoso e traiçoeiro como o conde de Douglas.

Em instantes entraram em uma trincheira atravancada com galhos. Engatinharam até encontrar um ponto mais livre de entulho. Ali ficariam escondidos pela galharada que os rodeava e pelo matagal que crescia nas laterais e nas bordas. Revan e Tess sentaram-se com um suspiro de alívio.

— O fosso rodeia toda a fortaleza? — Ela perguntou quando Revan lhe entregou um pedaço de pão com queijo.

— Sim. Meu irmão deixou que a sarça crescesse livremente. Se for necessário, poderá incendiar a vala. Apesar de ser avistada com facilidade, ainda assim pode ser considerada uma boa defesa. — Revan olhou o céu que começava a escurecer. — Em uma hora ou duas, poderemos sair daqui. A passagem fica a oeste. Teremos de rastejar mais um pouco para alcançá-la. Tess fez uma careta e começou a comer.

— Tem certeza de que eles não poderão nos ver daqui?— Tenho se nos mantivermos sentados e falarmos baixo. Ela concordou com um gesto de cabeça e

continuou a comer.Quando terminou, encostou-se em Revan e fechou os olhos. Ele abraçou-a pelos ombros e beijou-lhe

os cabelos. Tess eslava exausta e com frio. Adormeceu.Ela imaginou que não havia passado nem um minuto quando Revan a acordou, e eles começaram a

rastejar pelo fosso no escuro. Apesar do desconforto que sentia ao ser arranhada e espetada pela vegetação, não deu o menor gemido. O fundo da vala estava úmida e lamacenta por causa da chuva recente. Não demorou para a roupa ficar molhada, e Tess começou a tremer, li quase chorou de alívio quando Revan subiu e a puxou. Mas em seguida foi levada por uma passagem com cheiro de bolor, escura e escondida por um cepo de árvore. Esperava que o túnel não fosse muito comprido. Procurou afastar o pensamento dos ratos que passeavam por suas mãos. Só deixou escapar um gemido quando a cãibra em uma das pernas a fez hesitar, antes de bater com a cabeça em uma parede sólida de madeira.

— Empurre, Tess — Revan murmurou a ordem. — Ali é a porta de acesso aos aposentos de meu irmão.

A idéia de que a provação estava no fim deu-lhe forças para empurrar as tábuas grossas. Estava escuro, mas a abertura foi suficiente para passarem. Tess prosseguiu, porém parou ao sentir a ponta afiada de uma lâmina cutucando seu nariz. Uma espada ou um punhal.

A parada brusca fez Revan trombar com ela.— Minha querida, seu corpo é uma delícia, mas temos de continuar. — Revan empurrou-a, porém

encontrou forte resistência.— Se eu andar mais um centímetro, ficarei com três buracos no nariz.Tess sabia que ficava vesga ao tentar ver a ponta da arma que a espetava.— Saia bem devagar — alguém ordenou e afastou a lâmina. Tess não hesitou. Se ela não obedecesse, o dono da voz gélida não hesitaria em enterrar-lhe a lâmina

em qualquer lugar. Rezou para o momento de tensão passar logo e para o homem entender que nenhum inimigo o ameaçava. Nem quis avaliar a hipótese de que o castelo fora tomado.

Ela saiu do túnel e tentou levantar-se. O homem agarrou-a, puxou-a de costas e encostou-lhe o punhal na garganta. Tess ficou imóvel.

— Agora, meu senhor, pode sair bem devagar — o homem ordenou.Revan obedeceu, irritado.— Será que não reconhece mais um parente, seu grande tolo?

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— Achei que poderia ser um dos nossos, mas está muito escuro para distinguir de quem se tratava. Em épocas conturbadas, não se deve arriscar. Sobre a mesa à sua direita há uma lamparina e uma pederneira — ele continuou quando Revan, saiu do espaço apertado e ficou em pé. — Acenda o fogo para eu ter certeza de que a voz combina com o rosto. Devagar, estou com um punhal na garganta da sua companheira. Um movimento em falso, e ela ganhará um novo sorriso.

Revan acendeu a lamparina e fitou o homem com olhar faiscante.— Tudo bem, meu irmão?Nairn soltou Tess, embainhou o punhal e deu de ombros.— Tempos difíceis estes. O que se pode fazer?Tess esfregou a garganta e fitou os dois homens com raiva.— Parece que esta família adora segurar um punhal na garganta das jovens.— Ora, Tess... — Revan procurou defender-se.— E as ameaças são muito semelhantes.Nairn fez uma mesura, sem tirar os olhos azuis de Tess.— Minhas desculpas, senhora. O perigo está em toda parte. Precaução nunca é demasiada.Ela não chegou a responder. Nairn voltou a atenção para Revan. Os irmãos se abraçaram com

entusiasmo, batendo um nas costas do outro. Tess revirou os olhos, aborrecida. Os dois homens trocaram insultos jocosos e mostraram-se felizes por estarem com a saúde perfeita. Mais uma vez, ela fora esquecida.

Tess avaliou o recinto. Uma cama grande e convidativa. Lençóis muito alvos e perfumados. Sentiu-se ainda mais suja c malcheirosa. Deitar-se ali seria uma falta de compostura. Em segundos decidiu que eles bem mereciam um pouco de má educação. Ela continuava sendo ignorada, depois de outro Halyard ameaçar sua vida. Ninguém perguntara pelo seu bem-estar nem se precisava de alguma coisa. Azar o deles.

Tess ergueu apenas o cobertor e largou-se na cama. Teve a Impressão de que jamais conseguiria sair dali. Não tivera tempo de avaliar o tamanho de sua exaustão. Um descanso seria mais do que merecido. Fechou os olhos e refletiu com amargura quanto tempo seria necessário para Revan lembrar-se de que ela não morrera.

— Então a jovem vestida de homem é sobrinha de Thurkettle — Nairn murmurou quando ele e Revan terminaram as longas boas-vindas.

— Isso mesmo. — Revan procurou Tess com o olhar e espantou-se ao vê-la deitada na cama de Nairn. — Tess — correu até ela —, é preciso lavar-se primeiro. — Ele a segurou pelo braço.

Ela abriu um olho e dirigiu-lhe um olhar fulminante.— Tente tirar-me daqui e sentirá na sua garganta a lâmina do meu punhal.— Tess, eu sei que está cansada. Mas esta é a cama de Nairn, e você está um pouco... enlameada.— Estou imunda, e isso é o mínimo que ele merece por ameaçar minha vida. Agora me deixe em paz.

— Ela virou-se de lado, de costas para Revan. — Tomarei banho mais tarde.Foram as últimas palavras antes de adormecer.Revan sacudiu-a com delicadeza, mas foi interrompido por Nairn, que o segurou pelo braço.— Deixe-a descansar. Desconfio que ela foi arrastada por charnecas e pântanos sem tempo para

recuperar as forças. Douglas e Thurkettle devem ter feito uma perseguição implacável.— Bem... sim... Mas isso não justifica a sujeira que ela deixará na sua cama.— Nada disso estragará o meu leito. Nós dois dormiremos em outro quarto.— Eu ficarei aqui.— Acha que é certo?— Pouco importa se é certo ou não. — Revan tirou as botas de Tess. — O mal já foi feito.— Então pretende se casar? — Nairn aproximou-se.— Não. Conhece muito bem a minha opinião a respeito de casamento com uma herdeira. Sou dono

apenas da minha espada e de algum dinheiro.— Então, jamais deveria ter pensado em seduzi-la.

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— Eu não a seduzi — Revan envergonhou-se. — Bem, na verdade, um seduziu o outro.— Então ela não era virgem.— Era.— Donzelas não seduzem um homem, pelo menos não de maneira consciente.— Essa é uma longa história.— Deve ser mesmo. Descanse um pouco. Mais tarde teremos tempo para reconstruir esse grande

romance. — Nairn cruzou os braços na altura do peito e observou Revan desatar a camisa de Tess.Revan fitou o irmão com raiva.— Será que tem aí alguma roupa para que eu possa trocar u dela? E uma toalha para enxugá-la?Nairn saiu e Revan apressou-se em tirar a camisa de Tess. Jogou a peça no chão e puxou a ponta do

cobertor para cobri-la. Seu irmão Voltou com uma camisa e uma toalha. Revan ajeitou melhor a manta para evitar que a nudez de Tess fosse avaliada por estranhos.

— Já vi suas mulheres antes — Nairn murmurou e estendeu a toalha para Revan enxugar Tess.— Pois desta vez gostaria muito que virasse o rosto para que eu possa vesti-la.Nairn atendeu ao pedido, e Revan tratou de secar Tess, tirando a maior parte da sujeira. Arrancou a

camisa da mão do irmão e tentou vestir a peça em Tess. Para sua surpresa, ela deu-lhe um ligeiro tapa.— Agora não, Revan — murmurou. — Estou muito cansada. Talvez amanhã cedo.Nairn deu uma risada, e Revan aborreceu-se ao sentir que enrubescia.— Estou apenas trocando sua roupa suja por uma limpa. Tess não respondeu, e Revan deduziu que ela voltara a dormir.— Pronto — ele murmurou ao terminar de amarrar os fitilhos da camisa. — Pode olhar agora, Nairn.Revan irritou-se com a expressão divertida no rosto do irmão.— Erga a jovem para eu poder levantar os lençóis. Assim poderá arrumá-la de maneira conveniente. E foi o que fizeram. Revan dobrou a vira do lençol sobre o cobertor e apalpou a testa de Tess.— Ela está tremendo e um pouco febril.— Estava exausta e molhada até os ossos. Vai melhorar após uma boa noite de sono. Deixe as

preocupações para depois. Agora vamos tomar um pouco de vinho.Revan deu uma espiada em Tess e acompanhou Nairn até uma pequena mesa que ficava no lado

oposto. Sentou-se em frente do irmão e aceitou uma taça de bebida. Não pretendia se demorar. Esperava que Nairn entendesse isso.

— Quer dizer que passaram pelos homens de Douglas e não foram notados?— Isso mesmo, Nairn. Há quanto tempo eles estão acampados aqui? Colin disse que os viu há duas

semanas.— Faz mais ou menos isso. A única maneira de nos livrar deles seria atacá-los. Mas não se pode mexer

com os sujeitos na propriedade de Douglas.— Entendo.— Revan, por tudo o que escutou por aí, acha que uma batalha é inevitável?— Sem dúvida. Douglas planeja marchar contra o rei no começo de maio. Temos visto caravanas de

homens armados irem ao encontro dele. Thurkettle, o tio de Tess, está reunindo suprimento para os soldados. E os seus guerreiros, Nairn?

— No momento, a maioria dos meus homens está com o nosso soberano. Eu e mais uma pequena tropa iremos um pouco mais tarde. Receio abandonar minhas terras com muita antecedência. Douglas teria tempo para destruir este lugar ou mesmo invadir o castelo. Por outro lado, se eu esperar demais e perdermos a luta, Douglas também poderá devastar as minhas terras.

— Seu maior perigo é agora, Nairn. Ele está aliciando homens, e não há nenhum combate em andamento para mantê-los ocupados.

Nairn concordou e passou a mão nos cabelos castanho-claros.—A minha maior preocupação é com o que acontecerá aqui, se o rei perder ou tentar fugir como já fez

antes. Douglas se encarregará de fazer com que o meu povo e eu paguemos caro pelo apoio dado ao rei. E

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se Douglas perder, também poderá pensar em fazer o mesmo. Nos últimos meses, percebi que a minha posição é precária.

Revan foi obrigado a concordar com o irmão.— Também poderei ser penalizado se o rei ganhar prosseguiu Nairn. — Com certeza haverá de destruir

as propriedades de Douglas, e eu estou no meio delas. Soldados com armas na mãos muitas vezes não distinguem os amigos dos inimigos. E sendo aliado, eles poderão reunir-se aqui e exigir que eu os abasteça.

Revan estendeu a mão em um gesto de conforto para o irmão.— Um Halyard e seu povo não serão deixados à míngua. Lembre-se também de que não estará sozinho

contra o inimigo.— Sei disso. — Nairn forçou um sorriso. — Mas aqueles três abutres não têm colaborado muito para a

minha paz de espírito.— Tem notícias de nosso pai ou de nosso irmão?— A última mensagem que recebi deles foi há três semanas.— Simon não deve ter chegado à corte para relatar a conspiração de Thurkettle e de Douglas. Meu

nome ainda não foi limpo.— Existem rumores, mas não foram feitas acusações. Thurkettle espalhou as calúnias e desapareceu.— É o que fazem os que estão imersos em traições. Não, ousam ficar muito perto daqueles a quem

pensam trair. A culpa os deixa temerosos. Não é a primeira vez que ele pratica o mesmo crime.— Jaime I?— Acertou. Thurkettle participou daquele assassinato. Por isso Douglas mantém o domínio sobre ele.— A sobrinha sabe disso?— Foi ela quem me contou.— Pobrezinha. Tem nas veias o sangue de um criminoso. Ainda bem que os parentes do pai, os

Comyns e os Delgados são honrados. Ela pode contar com o abrigo, o conforto e o bom nome deles.— Como sabe a respeito da família de Tess?— Nosso pai mencionou o fato na última carta. Queixou-se um pouco. Disse que sempre há um do clã

atrás dele. Acha que se revezam para segui-lo dia e noite.— Maldição! Eles devem acreditar que eu raptei Tess e nas outras mentiras que Thurkettle andou

espalhando.— Não. Eles apenas querem notícias de Tess. Parece que os parentes dela não acreditam no palavrório

de Thurkettle. Certo que estão nervosos e preocupados com a honra e a segurança da jovem. Mas eles nos concederam o benefício da dúvida. Resolveram esperar, depois de que papai lhes contou sobre a sua missão, Revan. Estão aflitos como qualquer família ficaria. Ou talvez até mais. O pai de Tess era muito estimado c, segundo nosso pai, há poucas jovens na família. Papai até se surpreendeu de eles terem consentido em separar-se de Tess.

Revan escondeu a própria consternação. Se os Comyns e os Delgados tinham tanta afeição por Tess, o encontro com eles não seria muito fácil. Estremeceu. Não havia mais retorno.

— Nosso pai comentou sobre a honradez deles?— Isso é fora de questão. Por quê?— Porque pretendo ir até Donnbraigh, quando sair daqui, para me encontrar com Sílvio Comyn.— Seria uma decisão sensata?— Necessária, pelo menos. Ele poderá me ajudar a chegar ao palácio, a manter Tess em segurança e a

encontrar o traidor que pertence à guarda pessoal do rei.— Traidor dentro do palácio?— Isso mesmo. Tess reconheceu o sujeito, mas não se lembrou do nome. Ele cavalgava com a tropa de

Douglas.— Deus do céu, é uma ameaça muito próxima do soberano, Revan disfarçou um bocejo.— Tenho mais coisas para contar, mas preciso descansar. Amanhã continuaremos a conversa.— Claro.

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Revan levantou-se e foi até a cama, enquanto Nairn terminava de beber o vinho. Apalpou a face e a testa de Tess e achou-a mais quente que o normal. O tremor cessara. Endireitou-se com a aproximação de Nairn, que o fitou com um interesse constrangedor.

— Tess só precisa de repouso, Revan, e de uma boa alimentação. Ela deve ser mais forte do que aparenta ser.

— Muito mais. Digamos, enérgica em excesso para uma jovem.— Seria uma excelente esposa para um guerreiro.— Ah-ah! — Revan franziu o cenho. — Boa noite, Nairn. Conversaremos amanhã cedo.Nairn foi até a porta e virou-se.— Isso mesmo. Discutiremos a respeito de muitas coisas. Batalhas, traidores e... jovens morenas.

Durma bem, Revan.Revan praguejou quando Nairn fechou a porta. Não lhe agradara o tom do último comentário de seu

irmão. Embora fosse apenas dois anos mais velho, Nairn levava o papel de chefe de família muito a sério. Na certa pretendia passar-lhe um sermão por causa de Tess. Revan tirou a roupa e rezou para que ela se recuperasse logo.

Capítulo VII

— Tem certeza de que está se sentindo bem? Tess revirou os olhos, impaciente. Revan lhe fizera a mesma pergunta uma infinidade de vezes. Se no começo a preocupação a enternecera, naquela altura, a exasperava. Revan hesitava a cada passo, em um passeio pelo pátio. Obrigara-a a vestir-se como se estivessem em pleno inverno, e não sob o sol de abril. O calor que sentia aumentava sua irritação.

— Estou ótima e nem poderia ser de outra forma. Há dois dias não faço outra coisa que não seja comer e dormir.

— Eu não queria que apanhasse uma friagem.— Friagem? Você fez com que eu vestisse uma camisa e anáguas grossas, um vestido de lã, um manto

e este maldito xale amarrado na cabeça. Eu não ficaria com frio nem se me deitasse em cima do gelo! Estou me sentindo um leitão na brasa.

— Exceto a língua ardida, é claro. — Revan segurou-a pela mão e continuaram a caminhar.— Onde foi que encontrou estas roupas? Nairn não é casado.— Uma mulher da aldeia próxima as emprestou. Ele teve a intenção de fazê-la se sentir mais

confortável em trajes femininos.— Certamente, se eu estivesse usando a metade das peças! Tess sentia o suor escorrendo pelo corpo. Prometeu a si mesma que jamais deixaria Revan escolher

para ela o que vestir. Isso, se ficassem juntos. Tess procurou esquecer suas dúvidas. Não queria estragar a felicidade presente com indecisões sobre o futuro.

Revan levou-a até a cavalariça, no outro extremo do pátio interno. Pararam na baia de Cavalo, e Tess acariciou-lhe o pescoço, lembrando-se de que ainda não encontrara um nome adequado para o animal.

— O descanso fez bem ao pobrezinho — ela comentou.— Ah, sim. Mas não foi por isso que eu a trouxe aqui. Foram até o outro compartimento, onde se

encontrava uma égua mana.— Que belo animal! — Tess esfregou carinhosamente o focinho da fêmea.— Meu irmão insiste para que a leve, quando sairmos daqui. Chama-se Rosa Selvagem.Tess sufocou um grito de alegria.— Tem certeza? Ela é muito bonita! — Nairn diz que Rosa Selvagem poderá acompanhar o galope ou a marcha de Cavalo, se formos

forçados a cavalgar por caminhos difíceis.

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— Bem, se ele faz questão... — Tess preocupou-se com a responsabilidade de cuidar de uma égua de tão boa qualidade,

— Faço, sim — Nairn interrompeu-os e parou na frente da cela de Cavalo.Tess sorriu e pensou que os Halyards tinham sido abençoados com uma excelente aparência.

Surpreendia-se de que Nairn não fosse casado. Um homem atraente e rico não costumava ficar solteiro por muito tempo. Provavelmente os Halyards eram contrários ao matrimônio.

— Eu me sinto constrangida de sujeitar uma égua tão linda a um esforço exagerado.— A senhora precisará de uma boa montaria. — Nairn fitou-a com o cenho franzido. — O que houve?

Está muito corada.— Estou morta de calor. Sir Nairn, eu lhe agradeço pela gentileza de me deixar usar Rosa Selvagem.

Eu me empenharei em devolvê-la sã e salva, sem um único arranhão. Agora, se me permite, preciso ir. Preciso tirar um pouco destas roupas. — Tess fez uma ligeira cortesia e caminhou em direção à saída, arrancando o xale da cabeça.

— Vai apanhar uma friagem! — Revan gritou.— Será preferível a me derreter — ela retrucou e apressou-se a sair, sem dar tempo para ele segurá-la.— Forçou Tess a embrulhar-se daquela maneira? — Nairn fez um careta de contrariedade.— Ela esteve doente.— Tudo não passou de uma indisposição.— Ora, e se ficar gravemente enferma?Nairn deu uma risada e sacudiu a cabeça com movimentos vagarosos.Revan praguejou antes de deixar a estrebaria. Seu irmão irritava-o com seus comentários irônicos. Por

isso, Revan preferia evitar referências ao relacionamento com Tess. Quanto menos discutissem, melhor.Tess empurrou o prato e sorriu para Nairn, antes de tomar um gole de vinho. A mesa de Nairn Halyard

era farta. Depois de dois dias com uma alimentação saudável, sentia-se em forma novamente.Nairn, Revan e ela eram os únicos participantes das refeições no grande salão. O que sugeria duas

coisas. Ou os parentes tinham sido afastados do castelo por segurança, ou já estavam reunidos com as tropas do rei. Aquela seria a última noite de Tess e de Revan ao lado de Nairn.

— Se eu ficasse aqui por muito tempo, acabaria obesa —. ela comentou.Os dois homens acharam graça.— Então é bom mesmo irmos embora — foi a resposta de Revan.— Sairemos ao amanhecer? — Tess suspirou ao ver os irmãos anuírem. — Eu adorava o raiar do sol,

quando não o via com tanta freqüência. — Deu um arremedo de sorriso ao ver as expressões caçoísta dos dois. — Iremos até o castelo do meu clã?

— Sim — Revan concordou. — Donnbraigh está situado na metade do caminho até o palácio real. Seria uma temeridade ignorar a ajuda que eles poderão nos prestar. Mesmo que isso signifique apenas cavalos novos e alguma comida.

— Depois disso, nós rumaremos direto até o rei? — Apesar de ansiosa, Tess aparentava calma. — Eu irei sozinho. Terei de deixá-la em segurança com os seus parentes.Ela sentiu uma pontada no coração. Era o que havia suposto e o que mais temera. Não o acompanharia.

E Revan Halyard não voltaria. Ele acabara de declarar nas entrelinhas quais eram seus planos para o futuro. Donnbraigh ficava a apenas dois ou três dias de viagem. O tempo necessário para ser abandonada por Revan.

— A maioria dos Comyns e dos Delgados já devem estar ao lado do rei — Tess alegou, pensando em ganhar tempo.

— Certamente não deixaram o castelo sem ninguém. Assim como Nairn, eles devem temer largar o castelo desprotegido. Creio que devem estar esperando a sua chegada.

— Eles podem ter acreditado nos boatos espalhados por tio Fergus. Talvez seja perigoso para você ir até lá. — Tess esperava que Revan não notasse a contradição de suas palavras.

— Não, não. Eles me escutarão. Meu pai assegurou isso por uma mensagem que mandou para Nairn.

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— Bem... eles conhecem tio Fergus e podem duvidar dele — Tess admitiu. — Mas eu que pensava ir até o fim da missão.

— O final será uma guerra sangrenta, onde não haverá lugar para uma jovem. Mesmo se conseguir me persuadir a deixá-la arriscar sua vida, jamais convencerá seus parentes.

Não havia argumentos para contradizer aquela verdade. Os parentes de seu pai não hesitariam em trancafiá-la na masmorra se ela insistisse naquela idéia.

A tristeza de saber que perderia Revan em tão pouco tempo tirou toda a vontade de Tess de tentar convencê-lo do contrário. Mesmo assim, não haveria de demonstrar o sofrimento que lhe apertava o peito. Precisava ficar um pouco sozinha para recuperar a energia. Não queria estragar o pouco tempo que lhe restava na companhia dele.

— Se me permitem, devo retirar-me agora.— Tenha uma boa noite — os irmãos murmuraram em uníssono.Tess foi para os aposentos que ocupava com Revan, determinada a dominar a amargura presente.

Depois da partida dele, teria pela frente anos e anos repletos de mágoas e tristezas.— Não me lembrava da sua crueldade, Revan — Nairn comentou no momento em que a porta pesada

do grande salão se fechou atrás de Tess.— Por que essa condenação? — Revan espantou-se.— Pela maneira de tratar Tess. Acabou de atingi-la com uma punhalada e nem se deu conta disso.— E quem foi que disse que não me dei contaiRevan observara o sofrimento no olhar e a expressão de tristeza no rosto sincero. Pretendera ignorar o

fato, mas Nairn\ não lhe permitia fazê-lo. Dessa vez seria impossível evitar uma discussão a respeito de Tess. Convinha sair dali depressa.

— Não adianta olhar a porta — Nairn avisou-o. — Se for necessário, mandarei trancá-la por fora.— O que acontece entre mim e Tess não é da sua alçada.— Não? O clã dela pode divergir da sua augusta opinião. O que tem feito com ela muitas vezes

ocasionou infindáveis batalhas sangrentas. Pelo que nosso pai escreveu nas últimas missivas, os Comyns e os Delgados não são pessoas que esquecem um fato desses com facilidade. E quanto a Tess? Por acaso pensou nela?

— Eu já lhe disse que não a seduzi. — Revan sorveu uma razoável quantidade de vinho na tentativa de acalmar a irritação.

— Digamos que eu não duvide mais da sua palavra.—Nairn recostou-se na poltrona e encarou o irmão. — Tenho observado o comportamento de ambos.

— Como aqueles abutres dos Douglas — Revan resmungou.Nairn ignorou a intervenção ácida.— De início foi um pouco difícil acreditar que... um seduziu o outro. Começo a crer que Revan e Tess

nasceram destinados um para o outro.Revan já chegara a essa conclusão, mesmo sem saber os motivos. Talvez Nairn o esclarecesse.— Por quê?— Achei que soubesse a resposta, Revan. É difícil de explicar. Existe um traço de união invisível que

os aproxima. Eu os vejo juntos e acho que é certo, que é adequado. Com palavras não se podem descrever todos os sentimentos. Ora, não adianta esquecer o mais importante.

— Quer falar sobre Tess?— Sim... e não. — Nairn inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos na mesa. — Estou muito

preocupado a seu respeito. Ignoremos a possibilidade de que os Comyns e os Delgados ficarão... digamos... preocupados e o fato de eles presumirem que, depois de tanto tempo juntos... ela foi desonrada.

— Está bem. Deixemos isso de lado. — Revan irritava-se sobretudo por Nairn apresentar-lhe verdades que ele se esforçava para apagar. — Por que não parar com os volteios e ir diretamente ao assunto?

— Como queira. Case-se com a jovem.— Não.— Por que não? Não dá para esconder seu carinho profundo por Tess.

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— Pode ser. — Revan fez pouco caso da risada zombeteira do irmão. — Mas isso não faz diferença. Ela é uma herdeira.

— Mais um motivo para casar-se com ela. Sendo o filho mais novo, nada lhe coube como herança. Embora ser cavaleiro do rei seja um cargo digno de muitas honras, nunca lhe trará grandes lucros. E eis que se apresenta tudo o que alguém poderia almejar. A família de Tess não deixará de ajudar um cavaleiro sem propriedades que resolvesse se casar com ela. Tenha certeza de que será bem-vindo e de que insistirão para que a despose.

— Eu não me casarei por dinheiro nem por terras.— Então case-se por gostar dela. Sei que a ama, seu tolo.— Acha que as pessoas acreditarão que me casei por amor? Dirão que me casei por causa da bolsa de

Tess. Isso envergonharia a nós dois. Ela mesma me disse que compraria um marido na hora em que quisesse. Ora, eu não quero ser comprado e também não quero que outros pensem que isso aconteceu.

— Esse seu orgulho haverá de sufocá-lo algum dia. E muito antes do que possa imaginar.— E quanto ao orgulho de Tess?— Não duvido que ela o tenha em dose exagerada. Mas não seria tão tola a ponto de se sacrificar por

isso.— Eu não me venderei nem quero dar a impressão de que me casei por interesse. — Revan não se

conformava de ser incompreendido.— Mas que droga! Então não durma mais com ela, Revan, se pensa em abandoná-la. A sua

preocupação em não se prostituir, casando-se com uma herdeira, não o deixa ver que está fazendo de Tess uma meretriz!

Revan levantou-se com um pulo e os punhos cerrados.— Nunca me passou pela cabeça tratá-la como uma tal!— Pois será o único a ter essa opinião. Quando um homem se deita com uma jovem virgem de boa

família, tem de se casar com ela. Sabe disso tão bem quanto eu. Entretanto, lépido e fagueiro, vai para a cama dela todas as noites, sem intenção de desposá-la. E quer que eu ache que isso está certo e lhe dê razão?

— Antes que tudo isso começasse, eu expliquei a Tess que não poderia lhe prometer matrimônio. Ela entendeu e aceitou.

— Tem certeza?— Tenho. Afirmou que nada me pediria, como também que não me prometeria nada. Foi quando

declarou que compraria um marido se precisasse de um. Tess compreendeu que eu não poderia lhe oferecer nenhum futuro.

— Talvez ela entenda — Nairn considerou. — Mas será isso o que Tess deseja? Por acaso já lhe perguntou? Teve a curiosidade de saber se ela poderia ser feliz apenas com um romance fortuito? Creio que não. Quer saber o que penso?

— Não, mas terei de escutar de qualquer maneira, não é?— É. Creio que Tess concordou com as suas regras por falta de opção. Ela está apaixonada. Eu

apostaria qualquer coisa nisso. Pode ser que já o amasse quando aceitou ser sua amante. Havia duas alternativas: não ter nada ou aceitar o pouco que lhe era oferecido. Talvez Tess tivesse esperança de lhe modificar os pontos de vista, mas não enxergou o principal. Que nada o demoveria, mesmo que ela chegasse a tocar-lhe o coração. O cérebro de Revan Halyard deve ser de pedra! Não é justo fazer uma pessoa entrar em um jogo sem lhe dizer que ela não pode ter a chance de ganhar.

— Eu nunca lhe dei esperanças — Revan murmurou.— Não? — Nairn sacudiu a cabeça. — Nem sei como um homem pode às vezes ser tão cego. Vá, vá

ter com ela. Duvido que tenha alguma importância a ocasião em que pretende abandoná-la. Se agora ou quando a deixar com a família.

Revan reagiu com raiva, inclinou-se em uma mesura irônica e fez menção de sair.— Obrigado. Ficarei muito mais tranqüilo sabendo que posso contar com a sua bondosa permissão.— Ainda não terminei, Revan.

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Revan escancarou a porta pesada e fitou o irmão com raiva.— Há algum outro crime que você esqueceu de jogar a meus pés?— Não é crime ser um grande tolo, embora devesse ser em casos extremos. Quero apenas lembrá-lo de

uma coisa. O que vai largar de maneira tão insensível não irá apodrecer. Tive o prazer da companhia de Tess por pouco tempo, mas posso dizer com convicção que ela definhará por sua causa. Garanto que os admiradores não serão atraídos apenas pela fortuna ou pela boa estirpe. Para ser sincero, estou pensando eu mesmo em cortejá-la. Mas isso não vai incomodá-lo, vai? Nem vai ferir seu orgulho, não é verdade?

Revan praguejou e saiu. Nairn suspirou e encheu o caneco de vinho. Quando terminou de beber, Thorson, o encarregado de manter a ordem, aproximou-se.

— Milorde falou com ele a respeito da jovem, não foi? — Thorson serviu-se de vinho.— Falei para as paredes, para ser mais exato. Tentei lhe causar ciúme e lhe disse que eu mesmo

planejava cortejá-la. De nada adiantou.— Milorde faria isso?— E por que não? Eu só precisaria ter certeza de que ela se libertou do fantasma de meu irmão.

Contudo ainda tenho esperança de que Revan seja mais inteligente do que vem demonstrando ser.Nairn e seu fiel escudeiro trocaram sorrisos de entendimento.

Tess sentou-se na cama quando Revan entrou. Ninguém poderia avaliar seu sofrimento. Ela o enterrara, disposta a aproveitar o pouco de tempo que lhe restava ao lado de Revan. Afastara qualquer esperança e recriminara-se ao encontrar resquício de alguma. Entretanto, no fundo de seu coração, não aceitaria uma despedida até que Revan lhe dissesse adeus e virasse as costas.

Tess o observou lavar-se e perguntou a si mesma qual seria a causa do mau humor dele. Ela fizera um esforço enorme para controlar as próprias emoções e não gostaria que Revan se encarregasse de tumultuar o ambiente.

Acariciou-lhe o braço quando ele se sentou na beira da cama para tirar as botas. Revan fitou-a de relance e continuou a despir-se.

— O que houve, Revan?— Nada de mais. Apenas uma altercação com Nairn. — Ele forçou um sorriso enquanto desamarrava o

gibão e a camisa. — Perder a disputa me deixou mal-humorado. Mas logo vai passar.Tess não quis pressioná-lo. Se Revan resolvesse contar o que acontecera, teria de fazê-lo de livre e

espontânea vontade. Além disso, não lhe importava muito o que ocorrera no grande salão depois da sua saída.

Ele deitou-se, tomou-a nos braços, e Tess descobriu que a energia a abandonava. Temeu romper em lágrimas e agarrou-se em Revan como se pudesse prendê-lo à força. Saber que ele pretendia deixá-la em Donnbraigh transformava os dias, as horas e os minutos em sofrimento. Nem mesmo tinha certeza se conseguiria fingir que a separação não a incomodava. Isso iria requerer mais forças de que imaginara possuir.

— Tess? — Revan sentiu o desespero com que ela o agarrava. — Sabe que permanecer em Donnbraigh será muito mais seguro do que ficar no meio da batalha entre Douglas e o rei Jaime, não sabe?

— Sei. — Tess não se importava com isso.— Eu já perdi a conta de quantas batalhas enfrentei. Pode acreditar em mim. É muito melhor ficar

longe delas.Tess não entendia o empenho de Revan em fazê-la aceitar que a segurança era o único motivo pelo

qual ele a abandonava. Acreditava na preocupação de Revan. Mas a verdade seria muito dolorosa, quando ele não retornasse depois da luta. Revan precisava saber que não poderia enganá-la por muito tempo. Irritava-se por ele não dizer a verdade nua e crua. Mesmo que não fosse agradável.

— Eu também sei disso, Revan, e não discuti a sua decisão, não foi?— Foi. Mas eu senti o seu desapontamento.— Não posso negar que seja verdade. — Desapontamento era uma palavra pobre demais para exprimir

o que ela estava sentindo.

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Revan segurou-lhe o queixo e virou-lhe o rosto. A luz tremeluzente de uma vela tornava difícil decifrar a expressão de Tess. Porém o sofrimento era quase palpável. Procurou dispersar o sentimento de culpa dizendo a si mesmo que nada lhe prometera e que, desde o início, explicara que não pensava em se casar. Procedimento inútil. Tess não o acusaria de nada, mas ele continuaria a sentir-se culpado. A situação ia além de seu autodomínio mental. Aliás, Revan nem mesmo sabia se poderia aceitar os fatos de alguma maneira. Se existisse destino, devia ser muito cruel. A única mulher que ele não poderia aceitar, por mais que o desejasse, caíra em seus braços.

— Mas ficará em segurança.Tess também não duvidava disso. Segura. E desgraçadamente sozinha.Ela segurou-lhe a nuca e beijou-o. No mesmo instante, a paixão inflamou-a. Tess deixou-se envolver

pelo fogo que começou a percorrer-lhe as veias. Pelo menos isso a faria esquecer o que a aguardava. Era uma emoção intensa que se sobrepunha à lucidez e ao raciocínio. E que abafaria qualquer outro sentimento.

Por um instante Tess pensou na sensatez de continuar sendo amante de Revan. O fato de ele pretender abandoná-la maculava os momentos maravilhosos que havia desfrutado. Fazer amor passava a significar ser usada para satisfazer o amado. Até quando ele não se interessasse mais. Muitos a considerariam uma grande tola em permitir que Revan partilhasse sua cama, depois de saber o que ele planejava.

Revan beijou-a com maior intensidade, e Tess sentiu seu desejo crescer. Mesmo assim, teve vontade de rejeitar o amor de Revan. Era o seu orgulho que se rebelava. No entanto agarrou-se em Revan e retribuiu-lhe o beijo com fúria. Recusava-se n deixar o brio vencer. Durante os próximos dois ou três dias, ela abafaria o amor-próprio. Seria castigada por ele mais tarde, quando ficasse sozinha. Por enquanto aceitaria o que Revan linha para lhe oferecer, mesmo que fosse um amor fugaz. Quando ela voltasse ao seio da família de seu pai, teria muitas noites frias e solitárias para acalentar o orgulho ferido.

O amor de Revan foi lento e terno, embora com os mesmos traços de desespero que a afetavam. Cobriu-a de beijos da cabeça aos pés. No auge da paixão, Tess continuava a perguntar-se como Revan fazia amor daquela maneira e tinha coragem de separar-se dela. Ele pretendia dar as costas às carícias, aos beijos e à total realização. Enquanto escalava os píncaros do êxtase, Tess sentia vontade de chorar.

Nairn praguejou, sem abrir os olhos, e deu um tapa na mão de quem o sacudia. O homem agarrou-lhe o ombro desnudo e agitou-o com maior vigor. Nairn sentou-se num ímpeto, já com um punho fechado e pronto para agredir Thorson, seu fiel e velho escudeiro. Os cabelos grisalhos de Thorson estavam desgrenhados, e ele parecia preocupado.

— Temos problemas, meu rapaz — Thorson entregou-lhe o calção.— Douglas? — Nairn ficou em pé e começou a vestir-se.— Um grande número de renegados juntou-se aos três abutres acampados na fronteira. Pude contar uns

vinte. Contudo nem todos estão usando as insígnias dos Douglas.— Na certa se trata dos malditos soldados de Thurkettle. Devem ter descoberto que Revan e Tess estão

aqui. Mas como?— Imagino que devem ter visto o cavalo na cabana. Nairn enfiou as botas e saiu do quarto de hóspedes, que ocupava desde a chegada do irmão. Aquela

noite iria terminar de maneira abrupta. Nairn entrou nos próprios aposentos, seguido por Thorson, e parou diante da cama.

Uma pincelada de ciúme veio e apagou-se ao fitar o casal. Tess estava aconchegada nos braços de Revan, e seus cabelos negros espalhavam-se no peito dele. Revan a cingia em uma demonstração inconsciente de posse, com a face encostada na cabeça dela.

— Já reparou, Thorson, como os maiores tolos conseguem as maiores recompensas?— Talvez ele queria provar a si mesmo que é menos tolo quanto demonstra ser.— Espero que esteja certo, meu velho amigo. Seria muito triste ver meu próprio irmão se privar, por

orgulho, do que mais deseja. — Sem mais delongas, Nairn sacudiu Revan pelo ombro. — Acorde, imbecil.

Revan piscou e, sonolento, fitou o irmão.

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— O que houve?— Temos uns vinte sujeitos na fronteira.— Fomos descobertos.— Parece que sim. Thorson acha que eles viram o seu cavalo, apesar do cuidado em escondê-lo. Mas

nem todos são soldados de Douglas. Se quiser, poderemos enfrentá-los.— Não vale a pena. De qualquer forma, eu terei de partir.Haverá muitos à nossa espera em Donnbraigh. De nada adiantaria lutar com esses que estão aí. Só

aumentaríamos os seus problemas, Nairn. O melhor será Tess e eu escapar sem sermos vistos. Nós somos peritos nisso.

— Mandarei aprontar comida e os cavalos.Assim que Nairn e Thorson saíram, Revan acordou Tess, penalizado. Haviam feito amor quase a noite

toda. Pensara em afastar a tristeza que ela fora incapaz de disfarçar. Isso sem falar na cupidez de quem sabia que logo não a teria mais a seu lado.

Tess jogou-se para fora da cama e cambaleou até a jarra de água. Lavou o rosto e vestiu as roupas masculinas que haviam sido lavadas e remendadas. Olhou, já com saudade, para os vestidos que Nairn lhe emprestara.

— Ainda está escuro — ela lamentou-se e amarrou o corpete.— Creio que fomos descobertos. — Revan enfiou as botas e encheu os alforjes com os pertences deles.

— Cerca de vinte homens chegaram à divisa e estão vigiando o castelo de Nairn. Tentaremos escapar em meio à escuridão. Eles devem estar esperando que saiamos ao amanhecer.

— Acha que tentariam atacar o castelo?— Sim, se tivessem certeza de que estamos aqui. Com a nossa partida, acredito que Nairn estará a

salvo de um ataque. Pelo menos por enquanto. E se não nos virem sair, também não poderão acusá-lo de nos acobertar. A nossa partida será a melhor defesa de meu irmão. Está pronta?

— Preciso apenas de dois minutos de privacidade. Revan beijou-lhe o rosto e abriu a porta carregando os alforjes.— Eu a esperarei na cavalariça.Ele atravessou com cuidado o castelo escuro. Poucas fogueiras de sentinela se encontravam acesas do

lado de fora. Esgueirou-se pelas sombras até a estrebaria. Os cavalos já estavam selados. Thorson e Nairn esperavam por ele, carregando dois embrulhos.

— Onde está Tess? — Nairn perguntou, enquanto Revan ajustava os alforjes nas montarias.— Ela virá em instantes. — Ele pegou os pacotes e amarrou-os no lombo da égua. — Comida?— Sim — Nairn anuiu. — O suficiente até alcançarem Donnbraigh. Tenham cuidado. Avise Tess para

se manter sempre nas sombras.— Fique sossegado. Ela será cuidadosa. Estou mais preocupado em sair daqui sem sermos vistos.

Nunca vi Tess montar, por isso prefiro não arriscar uma fuga rápida de imediato.— A lua está encoberta. Isso representa alguma vantagem. Abriremos a cancela apenas o bastante para

os animais passarem. Será melhor não montar até alcançarem o interior da mata bem ao norte. Se aqueles canalhas desconfiarem de alguma coisa, faremos o que for possível para retardá-los.

— Eu preferia não vê-lo metido nessa rede de intrigas.— Bobagem. — Nairn sorriu. — Fui apanhado no meio de tudo quando deixei claro meu apoio ao rei.

Mas no momento sou um peixe muito pequeno para que Douglas pense em me apanhar.— Rezemos para que continue assim. Ah, eis Tess —Revan murmurou ao vê-la entrar na estrebaria.

Explicou-lhe que deixariam o castelo furtivamente.— Estou começando a me sentir como um ladrão — ela resmungou e segurou as rédeas da égua, com

um sorriso matreiro. — Você deve ser perito em fugir sem ser visto.— Por que diz isso? — Revan franziu a testa.— Eu sempre percebia os admiradores que entravam e saíam na ponta dos pés dos aposentos

perfumados de Brenda. E nunca o vi, embora você tenha suspirado por ela durante tanto tempo.

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Revan dardejou um olhar feroz na direção de Nairn e de Thorson, que mal continham o riso, e franziu o cenho.

— Tess, nunca suspirei por ela e nem me esgueirava na ponta dos pés. Por que resolveu mencionar. Brenda de novo? Há dias não a ouço falar naquela praga de mulher.

— Que falha a minha...— Tess, chega de absurdos. Por acaso se esqueceu dos homens que estão lá fora?— De maneira alguma. — Ela fez um muxoxo. — Eu estava apenas esperando ordens suas, meu

senhor.— A senhora é sempre tão irritante pela manhã?— Ainda não amanheceu.— Não sei como alguém pode ser tão insolente quando há uma penca de soldados à nossa espreita

como aves de rapina. — Revan caminhou rumo à saída levando Cavalo.Tess apressou-se a segui-lo puxando Rosa Selvagem pelas rédeas.— Pois eu lhe digo uma coisa. O humor pode piorar muito quando se é ameaçada por uma lâmina a

toda hora e quando se tem a morte nos calcanhares dia após dia.— Eu entendo isso — Nairn apoiou-a.— Não a encoraje — Revan repreendeu o irmão em um fio de voz e saiu da cavalariça.Eles foram rumo aos portões, colados na muralha, onde a escuridão era mais intensa. Tess manteve-se

o mais próximo possível de Revan. Apavorada, admitiu que o medo provocara as respostas bruscas. A impertinência e o sarcasmo sempre tinham sido uma maneira de ocultar seus receios. Estava cansada de tudo aquilo. De fugir, de esconder-se, de ser ameaçada.

Nairn e Thorson adiantaram-se para abrir os portões. Tess esperou atrás de Revan. Aumentava sua vontade de chegar ao castelo de seu clã, apesar de isso significar a perda de Revan. Com a proteção da família, não existiriam mais fugas nem pavores.

— Podem ir agora — Nairn sussurrou.Revan apertou as mãos do irmão e de Thorson, e todos se cumprimentaram, desejando boa sorte.

Passou pela abertura estreita. Tess foi atrás dele e deteve-se na frente de Nairn.— Obrigada pela sua hospitalidade e pelas roupas. Agradeça por mim à mulher que foi tão generosa

em emprestá-las. — Para sua surpresa, Nairn beijou-a na boca.— Cuide-se, Tess. E aproveite para vigiar o tolo de meu irmão.Ela não teve tempo de responder. Revan chamou-a asperamente, embora em voz baixa. Com um

sorriso, deu adeus a Nairn e Thorson, e seguiu Revan.— Por que essa demora? — Ele irritou-se.— Eu precisava agradecer a seu irmão e despedir-me dele.— Os agradecimentos devem ter sido exagerados, para uma demora dessas. — Revan segurou as

rédeas e continuou o trajeto.Tess acompanhou os passos dele rumo à floresta.— A conversa não demorou, mas sim o beijo.— Nairn a beijou?— Sim.— Entendo. Ora, um beijo no rosto também não poderia demorar tanto.— É verdade, mas Nairn me beijou na boca.Revan parou de imediato. Tess esperou uma reação, mas ele nada disse nem fez. Em instantes

recomeçou a caminhar. Ela suspirou e acompanhou-o. Deveria ter esperado pelo menos a luz de um raio de luar para contar-lhe sobre o beijo. Assim poderia ter lido a reação no semblante de Revan. Sem palavras o sem vê-lo, limitou-se a deduzir o que ele sentia. Tess não compreendeu por que se preocupava com isso. Afinal, Revan pretendia abandoná-la.

Mesmo assim, ela gostaria de saber se ele se aborrecera. Admitiu que buscava um sinal de que representasse para Revan mais do que uma companheira de perigo e de cama. Isso poderia servir-lhe de consolo depois da partida dele.

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Ora, Contessa Comyn-Delgado, que grande tolice!Dentro da floresta densa, longe dos olhares alheios, Revan deteve o cavalo e parou na frente de Tess,

interrompendo-lhe os pensamentos. Ela pensou em perguntar-lhe o que acontecera, porém não teve oportunidade de fazê-lo. Ele a tomou nos braços e a beijou com paixão. Quando parou para respirar e o beijo terminou, Revan levantou-a e deixou-a em cima da égua. Aturdida, viu-o montar e cutucar o cavalo.

— E os homens ainda têm a ousadia de se queixar do mau humor das mulheres — Tess resmungou e instigou a égua para a frente.

— Disse alguma coisa? — ele indagou.— Nada de importante. — Agradou-lhe perceber que Rosa Selvagem seguia Cavalo de perto e com

cuidado.— Será melhor mantermos silêncio. Espiões podem estar espalhados pela mata e em qualquer outro

caminho nas proximidades do castelo de Nairn. Iremos mais devagar até o amanhecer. Quando clarear e pudermos distinguir o trajeto, prosseguiremos com maior velocidade. Precisamos nos distanciar daqueles carniceiros.

— Acha que eles nos seguirão? — Tess olhou por sobre o ombro. Providência inútil em meio às trevas. — Com certeza. Quando perceberem que não saímos às primeiras luzes do dia, provavelmente se

aproximarão do castelo e exigirão que Nairn nos entregue. E sairão atrás de nós, assim que tiverem certeza de que não estamos lá.

— E se fizerem algum mal a Nairn?— Tenho esperança de que o respeitarão. Meu irmão é inteligente, fala bem e tem o poder do

convencimento. Não lhes dará motivo para agressões. Ele gostaria muito de enfrentá-los, mas sabe que não é o momento para bravatas. Nairn também será favorecido, pois o inimigo sabe que tentamos nos aproximar do rei. Os soldados sairão à nossa procura sem perda de tempo. Poderão até pensar em uma retaliação, mas com certeza nada farão de imediato.

Tess esperava que Revan estivesse certo. Apesar de estarem exaustos, de terem enfrentado tantos percalços e grande falta de conforto, ninguém fora ferido nem perdera a vida. Rezou para que a sorte continuasse do lado deles.

Nairn observou Revan e Tess sumirem nas sombras. Suspirou e começou a fechar os portões. Thorson aproximou-se para ajudá-lo.

— Foi desagradável ter de mandá-los embora como se não fossem bem-vindos.Thorson concordou com gestos lentos de cabeça e ajudou Nairn a passar a tranca.— É verdade, mas essa estratégia foi necessária. Tempos de guerra exigem isso.— Amaldiçoados Douglas e suas malditas conspirações. — Nairn largou-se de encontro à parede fria

de pedras. — Ainda teremos muito o que fazer. Aqueles corvos na certa virão bater a nossa porta quando não virem sinal das suas presas. Eles esperam que Revan e Tess saiam daqui ao amanhecer ou logo depois disso.

— Então, temos pouco tempo para apagar os sinais da visita.— Vamos logo. — Nairn endireitou-se. — Quanto antes terminarmos a tarefa, mais tempo teremos

para nos prepararmos.— Preparar para quê? Acha que eles virão dispostos para lutar?— Não. Teremos de estar prevenidos para demonstrar a maior surpresa quando aqueles malditos

sequazes de Douglas e de Thurkettle vierem perguntar por Revan e Tess.Nairn e Thorson trocaram olhares cúmplices.

No meio da manhã, o pequeno exército de Douglas encaminhou-se para o castelo Halyard. Nairn estava sentado à mesa principal do grande salão e tomava vinho. Sorriu ao escutar os gritos de pedido de permissão de entrada. Os visitantes imitavam a arrogância de seu senhor feudal. Fora-se o tempo de cortesias. Nairn esperava que o rei, dessa vez, não vacilasse nem perdoasse.

Passaram-se alguns minutos antes que alguém aparecesse no recinto. Nairn supôs que Thorson se esmerava em fazê-lo perder tempo. Quando seu fiel escudeiro entrou, veio seguido pela turba de Douglas

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e de Thurkettle. Nairn recebeu os intrusos com um sorriso agradável, embora frustrado pela necessidade de ficar inerte.

Um soldado gordo de altura mediana, ostentando as insígnias de Douglas, empurrou Thorson e aproximou-se da plataforma.

— Onde está seu irmão? — ele berrou, quase na cara de Nairn.— Deve estar com nosso pai. Não é isso, Thorson? Colin não foi junto com meu pai?— Isso mesmo. — Thorson foi para o lado de seu senhor, com a mão firme no punho da espada.— Não queira brincar comigo, Halyard! Sou o encarregado de manter a ordem do batalhão do conde de

Douglas. Estou procurando sir Revan Halyard. Sabemos muito bem que ele está ou esteve aqui!— Thorson — A expressão de Nairn era de absoluta perplexidade —, você não me disse que Revan

tinha vindo para cá!— Talvez eu não tenha lhe dito por que ele não passou por aqui.— Ah, bom. — Nairn virou-se para o assecla de Douglas. — Receio que tenha se enganado, senhor.— Milorde não terá sucesso, se pretende livrá-lo da punição por seus crimes.— Crimes? Do que está falando?— Toda a Escócia ouviu falar das façanhas hediondas de seu irmão.— Toda, não. Eu não ouvi nenhuma palavra sobre isso. Nem soube que Revan havia se tornado um

fora-da-lei.— Ele ainda não foi formalmente acusado. Mas raptou e estuprou a filha de sir Fergus Thurkettle.

Nesta altura, ele pode tê-la matado. Ah, e ainda estão falando em culpa por traição.Foi muito difícil para Nairn conter-se e não golpear o camarada. Teve de tomar um gole de vinho para

acalmar-se.— Ah, a jovem. Ouvi mesmo falar nela. Pode ser que tenham fugido juntos. Revan sempre teve

sucesso com as mulheres.— Ela foi raptada! — O homem bateu com o punho fechado na mesa. — Agora chega de brincadeiras

e entregue-me sir Revan!— Sinto muito, senhor. Receio que eu não possa atender ao seu pedido. Meu irmão não se encontra no

castelo.— Encontra-se, sim! O cavalo dele foi visto por aqui. Um dos aldeões escondeu o animal.— Há muitos cavalos parecidos com o de Revan. Ver um cavalo não quer dizer nada, se não virmos o

cavaleiro. Não vejo Revan há vários meses. Ninguém no castelo o viu. Se quiser, pode perguntar a qualquer pessoa.

— Pretendo fazer mais do que isso. Pretendo vasculhar o castelo... agora!— Bem, se acha que deve... — Nairn deu de ombros e demonstrou um semblante de enfado.O escudeiro de Douglas e os outros soldados apressaram-se a sair do grande salão, fazendo grande

alarido.— Thorson, nosso povo foi avisado? Todos entenderam bem o que devem fazer?— Sim, milorde. — Thorson sentou-se à mesa e serviu de uma taça de vinho. — Haverá soldados por

toda a parte. Quando eu os deixei entrar no pátio, o local estava cheio de gente, e as muralhas, vigiadas por homens armados. Ainda bem que esses lacaios de Douglas não os viram muito de perto. Uma espada e um gibão constituem um bom disfarce, mas não escondem tudo. Será preferível saber que estamos em inferioridade numérica à certeza de que temos moças e velhos montando guarda. — Thorson fez uma careta quando Nairn riu.

— Acalme-se, Thorson. Eles não notaram a artimanha. Rezemos para continuarem cegos. Só correremos perigo se um deles perceber que algum dos homens ou uma das mulheres não lhe for desconhecido.

— Meg assegurou que trocar a echarpe, o avental ou o gorro será suficiente. Se um dos homens disser que viu alguma delas antes, a moça poderá afirmar que é encarregada de tarefas diferentes, ou que a outra era sua irmã ou prima. Não se preocupe. Os aldeões foram bem instruídos e estão mais do que ansiosos para enganar os soldados de Douglas. Eles vêm aborrecendo e ameaçando nosso povo há tempos.

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Nairn anuiu e suspirou. Esperava que Thorson estivesse certo e que os soldados inimigos fossem embora, achando que havia muita gente trabalhando no castelo. Sair dessa época conturbada com as propriedades intocadas e os aldeões ilesos seria uma recompensa pela necessidade de agir com submissão diante de vizinhos tão arrogantes.

Os dois homens terminaram de tomar o vinho e foram para o pátio. Nairn na frente e Thorson atrás. Nairn observou que o número de sentinelas nas muralhas aumentava e entendeu que os soldados de Douglas logo iriam embora. Dali a instantes os inimigos reuniram-se no pátio, e o escudeiro aproximou-se. Pela expressão do gordote, Nairn presumiu que não tinham sido encontrados vestígios de Revan nem de Tess. O que o ajudaria a enfrentar com calma o insolente. Pediu a Deus que lhe permitisse defrontar-se com o sujeito em um campo de batalha.

— Não sei como conseguiu fazer isso, mas eles não estão aqui — o homem resmungou. — Não encontramos nada. — A voz roufenha veio cheia de acusação.

— Talvez seja pelo que eu lhe disse. O senhor está enganado.— Não estou, não! Eu os encontrarei. Montem! — ele gritou para seus comandados. —

Prosseguiremos na caçada. Sir Nairn Halyard, seu irmão não escapará da Justiça e da punição por seus crimes!

— Não há provas de que os tenha cometido.— Provas mais do que suficientes. Pode ser que ele não tenha matado o emissário do rei ou que a

sobrinha de Thurkettle o tenha acompanhado de livre e espontânea vontade. Não importa. Sir Revan levou a esposa de um dos sobrinhos do conde. Terá de pagar por esse insulto.

— A jovem é casada com um Douglas? — Nairn procurou não parecer chocado.— Noiva. O que dá no mesmo. Será melhor preparar a mortalha dele, pois sir Revan Halyard não

chegará ao próximo verão. — O homem montou e liderou a saída de seus homens do pátio de Nairn.No momento em que os portões foram fechados atrás dos camaradas, Nairn e Thorson se entreolharam,

preocupados.— Revan não me disse que a jovem era noiva ou casada — Nairn franziu o cenho.— Talvez ela não tenha dito a ele.— Quem sabe Tess nem soubesse.— É o mais provável — Thorson deduziu. — Ela não me pareceu o tipo de pessoa capaz de guardar

um segredo desse porte.— Concordo. Se considerarmos o que ela contou para Revan, isso se torna ainda mais absurdo. É

possível que o noivado tenha sido combinado sem o seu consentimento. E pode ter sido arranjado depois da fuga de Tess com Revan. Se as outras culpas fossem invalidadas, essa é uma que facilmente perma-neceria. Isso não poderá ser provado, mas lhes dará o direito de matar Revan. Maldição, não tenho meios de mandar avisar meu irmão desse novo delito que foi inventado.

— Não importa. Ele já conta com um número suficiente de ameaças. Uma a mais não aumentará a sua precaução. Quando Revan chegar a Donnbraigh, o fato perderá o valor. Os Comyns e os Delgados lutarão com todas as forças contra esse noivado. Na verdade, logo a união pretendida se tornará inviável. Sofrerá um impedimento. Douglas e seus aliados serão mortos ou continuarão lutando por suas vidas, ou correrão para se esconder em algum canto.

Nairn suspirou, aliviado.— Claro. Se a mancha da traição atingir o conde de Douglas c seus seguidores, nenhum compromisso

de casamento deverá ser honrado. Temos de rezar a Deus para que Revan continue a despistar aqueles que estão ansiosos para matá-lo.

— Ele conseguirá, com certeza.— Agora serão vinte homens atrás de meu irmão.— Esse bando não consegue apanhar nem um veado cego com duas pernas de pau. — Thorson fez uma

careta, e Nairn gargalhou.— Por hoje é só. — Nairn ficou sério. — Nossas orações devem se fixar na esperteza de Revan segurar

aquela jovem adorável, antes que seja tarde demais.

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Capítulo VIII

As imprecações de Revan acordaram Tess, que cochilava. Durante dois dias, a cavalgada fora difícil e veloz, devido à perseguição constante. À noite, dormiram aconchegados, a paixão morta pela exaustão e pela fome. Não ousaram acender a menor fogueira. O número de homens à caça deles aumentara. Havia soldados de Douglas e de Thurkettle por toda parte. Naquela altura, bem próximo de Donnbraigh, Tess desmontou, deitou-se no chão e deixou para Revan a tarefa de avaliar uma possível aproximação do castelo dos Comyns.

Ela desanimou diante da expressão de poucos amigos do amado e sentou-se.— Os demônios estão por toda parte — Revan afirmou e acomodou-se na frente de Tess.— Estou surpresa por tio Sílvio ter permitido que se aproximassem.— E provável que ele os tenha ignorado por estar em inferioridade numérica, como Nairn. Pelo menos

aqui o inimigo não acampa na divisa. Seu tio pode não ter mandado nenhum tomem atrás deles, mas não acredito que os tenha deixado à vontade.

— Mesmo assim, eles representam um impedimento.— Com certeza. Não pude encontrar um centímetro de chão em Donnbraigh que não esteja vigiado.

Nem posso afirmar que durante a noite poderemos alcançar o castelo.— Poderíamos chegar o mais perto possível e disparar rumo nos portões. Sei que não se trata de um

plano brilhante...— Não é. Mas é o único que nos resta. — Revan sorriu sem vontade. — Eu estava imaginando como

lhe dizer isso de uma maneira que soasse sensata e segura.Tess abafou uma risada.— Nem mesmo um sujeito de fala mansa como você conseguiu achar palavras adequadas, hein? —

Ficou séria novamente. — Devemos ficar aqui até escurecer?— Sim, e esperar que ninguém dê pela nossa presença. Logo o sol se esconderá. Os portões serão

fechados ao escurecer. Não podemos ficar do lado de fora. Assim que o sol começar a sumir no horizonte, iniciaremos a aproximação com a maior cautela, até sermos vistos. Naquele exato momento, esporearemos os nossos cavalos direto para os portões de Donnbraigh.

— E rezar para que a minha família não nos tome por inimigos e nos brinde com uma saraivada de flechas.

Revan aproximou-se e desmanchou-lhe a trança.— Quem a vir saberá que se trata de uma mulher. Isso os impedirá de agir com precipitação.— Tem certeza disso?— Tenho. De tudo o que Nairn me contou sobre os Comyns e os Delgados, eles não pensariam em ferir

uma mulher. Você não é da mesma opinião?— Há cinco anos, eu era. — Tess encostou-se em Revan, que lhe penteava os cabelos com os dedos. —

Agora não tenho certeza de nada. Meus parentes também foram apanhados na maré de violência. Não sei se os desenganos lhes endureceram o coração.

— Ainda assim acredito que nada temos a temer deles. Claro que poderão nos agarrar assim que cruzarmos os portões até ter certeza de que você é Contessa. Mas eles não a matarão. Por isso, minha querida, terá de ser o meu escudo.

— Nada mais justo, sir. Você tem sido o meu durante a maior parte desta viagem.— Desta vez nós teremos o inimigo pelas costas. — Revan enlaçou-a e beijou-lhe o alto da cabeça. —

Terá de abaixar-se o mais possível na sela. Se houver arqueiros entre os inimigos, é preferível diminuir o tamanho do alvo.

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— Entendi. — Tess fitou o céu. — Não teremos de esperar muito tempo para pôr em prática esse plano maluco.

Tess gemeu ao ser acordada. Endireitou-se, piscou e compreendeu que adormecera encostada em Revan. A luz do dia começava a se extinguir.

— Não dormi muito, dormi? — Ela ficou em pé e tirou as folhas da roupa.— Não. Mas será melhor nos apressarmos. — Revan levantou-se, beijou-a e segurou-lhe a mão. —

Mantenha os olhos abertos. No momento em que notarmos um dos homens do conde ou de seu tio, sairemos num galope disparado.

— Direto para os portões de Donnbraigh. — Tess montou . e olhou para si mesma. — Uma pena eu não haver trazido o vestido azul. Apesar das manchas e dos rasgões, chocaria menos minha família do que este traje imundo de rapaz.

Revan pulou para cima do cavalo e sorriu-lhe.— Acredite em mim. Depois de tantos dias sem notícias suas, sem saber se estava viva ou morta, nem

onde poderiam encontrá-la, sua família dará pouca importância aos trajes.Tess virou-se e procurou alguma coisa no alforje.— Perdeu algo?— Meu chapéu. Sei que é velho e estragado, mas era de meu pai.— Está nas minhas coisas. Pronta?— E preparada para uma aventura das mais loucas.Revan concordou com um gesto de cabeça e iniciou a marcha rumo a Donnbraigh. Tess ficou bem

próximo dele. A égua andava atrás de Cavalo, e Tess ficou atenta à possível presença do inimigo. A mata que lhes servira de esconderijo começou a adelgaçar-se, e o castelo de Donnbraigh apareceu.

Ela enterneceu-se ao ver a fortaleza alfa em forma de "L". Havia pouca atividade junto aos portões. Em breve as portas pesadas de ferro seriam cerradas, assim como o tenebroso portão de barras de ferro entrelaçadas. Depois disso, ninguém entrava ou saía até o amanhecer. Quando as últimas luzes do poente sumissem, se ouviria o ranger dos portões fechando-se. Quando Tess era pequena, aquele som a assustava. Depois passara a acreditar que representava sua segurança, deixando o perigo para fora.

— Tess, à sua esquerda — Revan avisou-a.O sujeito gritou no momento em que Revan berrou para que ela esporeasse a égua. Tess abaixou-se na

sela e saiu em disparada. Olhou para trás e viu Revan preparar uma flecha no arco. Ela diminuiu a marcha e recebeu um olhar duro dele. Uma ordem clara para continuar. Tess obedeceu e um segundo depois escutou um homem gritar. Depois ouviu um cavalo que se aproximava. Espiou. Revan estava atrás dela. Dissera que a usaria como escudo, mas era ele quem a protegia.

Logo esqueceu o raciocínio ao ver cavaleiros surgirem de três lados. Flechas foram atiradas sem parcimônia. Tess rezou para que sua família os ajudasse, embora os Comyns não pudessem reconhecê-la, só pelo fato de serem perseguidos pelos homens de Douglas.

No momento em que chegaram ao alcance das flechas atiradas de cima das muralhas de Donnbraigh, as preces de Tess foram atendidas. Um dos soldados de Douglas foi atirado para fora da sela com algumas flechas enterradas no peito. Vários outros guerreiros gritaram ao ser atingidos. Embora não lhe agradasse ver homens morrendo, não pôde deixar de sentir-se aliviada. Ela e Revan tinham uma oportunidade de entrar com vida em Donnbraigh.

Passaram pelos portões externos, pela passagem escura que parecia não ter fim e chegaram aos portões internos. Tess olhou para cima. Flechas estavam apontadas para eles através dos buracos do teto. Até que não fosse reconhecida, seria vista como uma provável intrusa.

Ela chegou ao pátio e deteve a égua. O animal, assustado com a parada brusca, empinou-se. Assim que Tess conseguiu acalmar o animal, foi cercada por homens armados que a arrancaram da sela. Revan chegou e também foi brutalmente tirado de cima do cavalo, enquanto a batida dos portões ecoava pelo pátio. Com receio de que Revan fosse ferido, Tess lutou para soltar-se de seus captores.

— Fique quieta! Seu companheiro sofrerá apenas alguns arranhões se ele entregar pacificamente.

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A voz era conhecida de Tess, que se surpreendeu ao virar a cabeça. Era seu primo Tomás, que deveria estar no próprio castelo ou com o rei. Ele franziu a testa, como se procurasse lembranças perdidas. Tess resolveu dirigir-se a Tomás em espanhol, rezando para que ainda soubesse falar o idioma paterno.

— Primo, não se lembra de mim?Tomás arregalou os olhos castanhos e tornou a franzir o cenho.— Acho que sim — ele respondeu, também em espanhol.— Então concentre-se melhor, seu grande tolo. Sou Contessa.— Sua língua é tão ardida quanto a dela. Ainda assim, pode se tratar de uma armadilha. Muitos

canalhas quiseram nos enganar para receber a recompensa por trazê-la de volta sã e salva.— Sua esposa, Meghan, já sabe que você anda e fala enquanto dorme?Tomás empalideceu, e Tess soube que atingira o alvo. Somente a família conhecia aquele hábito

estranho.Tomás segurou-a pelos ombros e virou-a. Encarou-a por longos momentos, e Tess esperou com

paciência que a memória do primo o esclarecesse. De repente, ele deu um grito de alegria, abraçou-a com força e beijou-a. Foi um momento de grande alívio para Tess. Ela fez o possível para responder à enxurrada de perguntas. Ao perceber que ainda falavam era espanhol e rápido, como era o costume, Tess fitou Revan, que a observava, espantado.

Revan, com ar sombrio, foi incapaz de entender uma só palavra da conversa de Tess com o homem atraente e alto que a abraçara e beijara. Perguntou a si mesmo quanto tempo levaria para que se lembrassem de que ele existia. Os dois homens continuavam a segurá-lo, embora sem causar-lhe dano. Tess nem ao menos se preocupava se ele estava vivo ou morto. A familiaridade do espanhol com ela era irritante

— Tess — Revan chamou-a e ignorou o semblante de desaprovação dos guardas. — Agora que os seus parentes já sabem quem você é, o que acha de lhes dizer que não sou um inimigo?

Assustada, ela olhou-o. Suspirou, mais tranqüila. Ele não estava ferido, apenas irritado. Certamente não gostava de ser esquecido. Mas costumava ignorá-la. Propensa a deixá-lo de lado mais um pouco, foi impedida por Tomás de fazê-lo.

— Quem é esse homem, Tess? — seu primo, carrancudo, perguntou em inglês.— Sir Revan Halyard. — Tess espantou-se quando Tomás deu um passo à frente e desembainhou a

espada.— Então, este é o canalha que a raptou!Ela agarrou-se no braço do primo para impedi-lo de avançar. — Não! Por favor, não o machuque. Ele é um cavaleiro do rei.— Não quero saber nem se é irmão do papa. Ele a raptou, não foi?— Bem, sim, mas sir Revan nunca pretendeu me fazer nenhum mal. Ele salvou a minha vida.— Depois de arriscá-la.— Minha vida estava em risco, antes de ele me tirar das garras de Thurkettle.— Essa história não foi muito bem contada. Soltem-no — Tomás ordenou aos guardas.Tess foi para o lado de Revan.— Eles o machucaram?— Não, estou bem.— Iremos até o grande salão para falar com nosso tio Sílvio — Tomás disse e determinou aos guardas

para cuidar dos cavalos dos recém-chegados. — Vamos. — Fez sinal para que Tess e Revan o seguissem.Revan segurou a mão de Tess, e ela se deteve, com receio de enfrentar o tio.— O que houve, Tess?— Talvez não seja uma boa idéia falarmos com tio Sílvio.— Precisamos da ajuda deles. São seus parentes e a receberam muito bem.— Tio Sílvio vai olhar para mim e adivinhar tudo o que se passou entre nós. Tomás e a noiva

anteciparam a noite de núpcias. Eles nunca contaram isso para tio Sílvio. E na primeira vez que meu tio olhou para eles, soube de tudo.

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— Bobagem. — Revan esperava transmitir mais confiança do que na realidade sentia.Ele aproximou-se de Tomás, que os aguardava sem entender a hesitação. Juntos, dirigiram-se ao

castelo. Revan não fez caso do suspiro de resignação de Tess e na sua expressão de mau agouro. Não queria acreditar que Sílvio descobrisse que eles eram amantes, só de olhar para os dois. Mas admitiu que começava a ficar preocupado.

Revan teve idéia da riqueza dos Comyn-Delgados quando entraram no castelo e dirigiram-se ao grande salão. A mesa de donativos, que ficava ao lado da porta, era coberta com uma toalha ricamente bordada e, sobre esta, uma enorme bandeja de prata. Na parede, uma tapeçaria da mais alta qualidade. Ao lado da mesa, uma poltrona entalhada. Somente um homem muito rico poderia permitir-se usar objetos tão dispendiosos para um canto de esmolas para os pobres e para os homens santos que por ali passassem.

A opinião foi ratificada quando entraram no grande salão. Tudo era muito luxuoso. Desde as tapeçarias penduradas nas paredes aos candelabros enormes que iluminavam e aqueciam o recinto. Numerosas poltronas e bancos ao redor das mesas postas com toalhas de linho bordado. Não se tratava de ostentação. Era riqueza aproveitada em função do conforto. Revan deduziu que ali o dinheiro fora ganho licitamente, ao contrário de muitos castelos que conhecia.

Sir Sílvio Comyn era alto, magro e moreno. Parecido com Tomás, só que mais velho. Estava sentado à cabeceira de uma mesa grande, em uma poltrona de espaldar alto, na outra extremidade do salão. Descansava um dos pés enfaixados sobre uma cadeira com almofadas. Quando pararam na frente de sir Silvio, Revan sentiu-se perturbado. Sílvio Comyn tinha os mesmos olhos negros instigantes de Tess. E aquele olhar firme fez com que Revan se sentisse culpado e tivesse vontade de confessar os pecados. O que seria um grande erro.

— Foram esses dois que causaram toda aquela balbúrdia? — Sílvio fitou Tomás de relance.— Sim. Aqueles cães malditos que estão emboscados nas nossas terras estavam atrás deles. Tio Sílvio,

esta é Contessa. Demorei um pouco para reconhecê-la.Sílvio contemplou a sobrinha.— Já se passaram cinco anos.Tess soltou a mão de Revan e aproximou-se do tio.— O senhor não me reconhece? Não posso ter mudado tanto assim. O senhor sempre me chamou de

condessinha, lembra-se?— Ah, sim, condessinha. Embora Vossa Alteza esteja um pouco suja no momento. — Sílvio sorriu e

abriu os braços. — Venha dar um abraço em seu tio, minha criança. Estávamos muito preocupados por sua causa.

Ainda nervosa, Tess correu para abraçá-lo. Vê-lo sempre trazia um toque de tristeza mesclado com alegria. Tio Sílvio se parecia muito com o pai dela.

— O que houve com seu pé? — Tess perguntou depois dos beijos efusivos.— Um dos cavalos imprestáveis de Tomás o esmagou — Sílvio explicou, sem largar a cintura da

sobrinha. — Já está bem melhor. Estou apenas poupando um pouco o pé. Quero estar em forma quando chegar a hora de lutar pelo nosso rei. — Fitou Revan. — Ele deve ser sir Revan Halyard.

— É, tio Sílvio. Mas ele não é culpado dos crimes que Thurkettle e o conde de Douglas lhe imputaram.— Tive certeza de que se tratavam de mentiras. Por isso sir Revan foi poupado quando entrou no meu

pátio. — Virou-se para o sobrinho. — Tomás, providencie comida e bebida, e venha sentar-se conosco. Temos vários assuntos a tratar.

Tess não gostou da entonação, mas procurou acalmar-se. Sílvio sentou-a à esquerda dele e apontou a poltrona à direita para Revan. Quando Tomás voltou, acomodou-se do outro lado de Revan. Tess achou que seus parentes mais pareciam sentinelas. Sílvio poderia estar propenso para escutar, mas também para condenar caso a história não o satisfizesse.

Os criados trouxeram a refeição e o vinho. Depois da saída deles, Sílvio disse a Revan que desejava escutar o que de fato sucedera. Tess tentou intervir, mas foi impedida de fazê-lo pelo tio, o que a aborreceu.

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— Tess, concorda com tudo o que ele disse? — Sílvio perguntou quando Revan terminou de falar. — Não deseja alterar algum fato ou circunstância?

— Não. Na verdade, sir Revan foi mais severo do que eu teria sido. O início não foi tão drástico como ele o fez crer.

— Como assim? Ele não a raptou? Não a arrastou para fora do castelo de Thurkettle com um punhal na sua garganta?

Era evidente que os fatos haviam irritado seus parentes, e Tess procurou apaziguá-los.— Sim, ele fez isso, mas nunca pretendeu me fazer nenhum mal. Foi um plano para escapar de

Thurkettle. Não demorou muito para eu compreender que sir Revan na verdade havia salvado a minha vida. Thurkettle planejava me matar. E ainda pretende fazê-lo.

— Não o chama mais de tio Thurkettle?— Depois de tudo o que tenho passado por causa dele, acho que nem o considero mais parente. Fergus

se tornou meu inimigo e quer me matar.— Tem certeza disso, minha filha?— Absoluta. E não foi apenas por receio de que eu o acusasse de traição. Ele ambiciona minha

herança. Quando sir Revan me sugeriu isso, eu não quis acreditar, embora Thurkettle tivesse tentado me assassinar várias vezes. Muito antes de eu conhecer sir Revan, houve episódios que insisti em classificar como acidentes.

Em seguida, Tess fez um relato resumido do que acontecera.— Desde que fui morar com Thurkettle, ele estava de olho na minha herança.— Virgem Santa! — Sílvio segurou a mão da sobrinha. — Deus nos perdoe por havê-la mandado para

aquele ninho de cobras.— Não há nada para perdoar. O senhor fez o que achou melhor. Eu nem mesmo podia avisá-lo, meu

tio. Sei que teria me ajudado, se soubesse. Se eu, que estava do lado dele, não desconfiei de nada, como o senhor poderia imaginar um desatino desses? Não há do que se culpar, tio Sílvio.

— Pode ser. — Ele bateu-lhe carinhosamente na mão e olhou para Revan. — Foi o senhor que a fez se vestir como um rapaz?

— Não — Tess respondeu por ele. — Eu usava esta roupa para limpar a estrebaria. Estava voltando pelo túnel, quando encontrei sir Revan.

— Tess, conte-lhe sobre o homem que vimos no vale — Revan lembrou-a.Ela descreveu o sujeito que montava o garanhão negro de polainas brancas. Sílvio e Tomás

empalideceram antes de ficarem vermelhos de cólera. Tess perdeu as esperanças de ter-se enganado. Eles sabiam de quem se tratava.

— Aquele traidor sem escrúpulos! — Tomás gritou e bateu na mesa com o punho fechado. — Aquele era Angus MacKinnon!

— Isso mesmo — Sílvio concordou, com ódio. — Ele deve ao rei tudo o que é e tudo o que tem. Ainda assim tem coragem de trair seu soberano. Douglas não se empenharia tanto, nem pagaria tão caro só para conseguir um soldado a mais. Ele comprou um assassino. O que não sabemos é como e quando Douglas quer que MacKinnon ataque.

— Suponho que o assassinato terá lugar durante a batalha. — Revan sugeriu. — Sem Jaime, muitos desistirão da luta. o juramento do compromisso de fidelidade que faz a maioria ficar ao lado de Jaime. Ninguém morre de amores pelo rei. Muitos, mesmo sem lutar ao lado de Douglas, até acreditam, que o conde tenha motivos para ressentimentos. Acredito que se trata de homens que prestaram seus votos à coroa, sem se importar com quem estiver sentado no trono.

— Infelizmente isso é verdade — Sílvio admitiu. — A disputa com os Douglas ocupou boa parte da vida curta de Jaime. Ele não teve tempo de estabelecer alianças estáveis com seu povo. Pois bem. Teremos de enviar um mensageiro ao palácio para avisar a corte de que há um traidor à espreita. Pelo menos MacKinnon não será mais uma ameaça. Gostaria de ver a cara de Douglas quando souber que MacKinnon foi desmascarado.

— Só isso vale uma vitória — Revan murmurou.

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— E verdade. Bem, ainda temos pela frente outros assuntos importantes para serem discutidos. Mas eles poderão esperar até amanhã. Tenho certeza de que os dois gostariam de um banho quente, de uma cama macia e de uma boa noite de descanso. Acertei?

— Tudo isso será bem-vindo — Revan comentou —, mas eu gostaria de ficar de prontidão e de lutar quando for necessário.

— Lutar contra aqueles ordinários que rodeiam as nossas muralhas?— Isso mesmo, sir. Eles podem atacar a qualquer momento.— Acredito que não. Saíram correndo quando disparamos as nossas flechas. E sumiram depois que os

portões foram fechados.— Eles poderão voltar com um número maior de soldados.— É uma possibilidade e por isso teremos de ficar alertas. Porém Douglas não poderá reunir uma tropa

contra Donnbraigh em menos de uma semana. Talvez leve mais tempo. Se ele planeja atacar o rei em um mês, como o senhor nos disse, não poderá mandar mais ninguém para cá. Ele não se permitirá desperdiçar homens e suprimentos para lutar contra mim. Quando ele chegar a Donnbraigh, não haverá mais necessidade de perseguir ninguém.

Revan não discordou, mas teve lá suas dúvidas.— Contudo, sir Revan, o senhor não deve pensar que ambos estarão livres da ameaça. Será melhor não

abandonar a fortaleza. Não tenho homens suficientes para liquidar com todos os espiões de Douglas e de Thurkettle que ainda permanecem por aqui, mesmo que eu me esforçasse ao máximo na busca.

Tess fez uma careta.— Eles não conseguiram acabar com a minha vida, mas me tornaram uma prisioneira.— Minha filha, isso logo terá um fim — Silvio assegurou.— Por favor, Tomás, peça que aprontem um quarto para sua prima e para sir Revan.Tess só compreendeu a insinuação de tio Sílvio quando o primo já havia saído. Engasgou com o vinho

e fitou-o. Pela expressão de Sílvio, era evidente que ele descobrira o relacionamento dela com Revan.Por que Revan aceitava tudo sem reagir?— Tio Sílvio, o senhor... quis dizer... dois quartos, não é? — Tess balbuciou sob os olhares atentos do

tio e de Revan.— Não. Foi o que eu disse. Um quarto. Que bobagem é essa agora? Ninguém fecha a porta da

estrebaria depois de o cavalo fugir.— Tio Sílvio, o senhor está imaginando coisas! O senhor... está me ofendendo. E a Revan também.Era óbvio que o tio não acreditava na postura de inocência ultrajada de Tess.— Ótimo. Minha filha, sua honra é o mais importante para mim. Por isso o seu casamento com sir

Revan será realizado o mais breve possível.— Nós teremos de nos casar? — Tess, aturdida, sussurrou. Esperava que o tio desconfiasse do relacionamento dela com Revan, mas nunca que decretasse o enlace

com tanto sangue-frio. A calma e o silêncio de Revan eram conseqüentes à falta de argumentos. Eles tinham sido amantes. Os costumes e a honra exigiam que Revan a desposasse, se a família dela fizesse questão. Fato que Sílvio deixara bem claro. Contudo Tess não desejava que Revan ficasse a seu lado só por convenções.

— Isso mesmo, minha filha. Ou está querendo me dizer que os dois não foram amantes?— Sim, estou... — Tess fez a afirmativa com absoluta falta de convicção.Sílvio endereçou um olhar quase divertido para Revan.— E o senhor, sir Halyard, também deseja me convencer, por sua honra de cavaleiro do rei, de que não

se deitou com a minha sobrinha mentirosa?— Tio! — Tess protestou, antes de que Revan pudesse responder. — Minha palavra não é o suficiente

para o senhor?— Sir Halyard, não o ouvi empenhar sua palavra. Estarei ficando surdo?

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Revan encarou Sílvio e quase sorriu, embora não se divertisse nem um pouco. Os olhos negros de Comyn era como os da sobrinha. Exigiam a verdade. Seria vantajoso concordar com a mentira de Tess, mas Revan não pôde fazer isso. Sílvio invocara sua honra e fitava-o com intensidade.

— É verdade, sir, fomos amantes. O senhor deduziu, não foi?— Claro, apesar da débil tentativa de minha sobrinha em negar as evidências. O senhor se casará com

ela sem protestar?— Sim. Como o senhor afirmou, a honra exige isso. — Revan olhou para Tess e não duvidou de que

acabava de pronunciar uma frase infeliz.A dor e o ódio lutaram no coração de Tess, e o ódio venceu. Aqueles dois homens achavam-se no

direito de decidir um futuro para ela, e era isso o que mais a machucava. Ressentia-se com o que Revan dissera, mesmo tendo ouvido palavras de carinho dele. Os costumes davam aos homens de sua família o direito de exigir o enlace, se eles assim o desejassem. Era um hábito estúpido e opressor. Podiam, ao menos, ter a cortesia de pedir-lhe uma opinião a respeito.

— A honra que se dane, e os senhores que se danem junto com ela!Sílvio continuou a tomar o vinho, sem se alterar e nem recriminar a sobrinha pelas palavras ásperas.— O que seria o mundo sem a honra, minha filha?— Na certa, um pouco mais pacífico. Não haveria necessidade desse matrimônio que estão tentando

me enfiar garganta abaixo.— Não? A senorita e Revan admitiram que correr do inimigo não foi a única atividade a que se

entregaram nesta última quinzena. Ora, Tess, se um homem se deita com uma donzela, ele fica obrigado a desposá-la.

— Se fosse assim, o senhor já teria de ter-se casado uma centena de vezes.— Menina impertinente! Nenhuma das mulheres com que me deitei antes de casar-me com Kirsten era

virgem. Um homem solteiro tem direito a certas liberdades.— Então uma jovem também deveria tê-las! — Tess começou a imaginar que envolver-se com Revan

tinha sido uma rematada tolice.— De maneira nenhuma. Uma donzela pode ficar grávida. Por falar nisso, não estará...— Claro que não! Por isso não será necessário pensar em matrimônio. Não existe nenhum bastardo à

vista.A dúvida veio logo atrás da enérgica negativa. As Thurkettles não eram mulheres férteis, ao contrários

das Comyn-Delgados. Se houvesse puxado pela família do pai, Revan teria apenas de olhar para ela com cobiça para engravidá-la.

— Ainda é muito cedo para se saber disso — Sílvio afirmou. Tess teve vontade de bater no tio.— Se houver necessidade, poderei comprar um marido.— É melhor desposar um homem honrado agora do que um avaro mais tarde.— Onde está tia Kirsten? Ela não permitirá que o senhor faça isso comigo.— Não tenha tanta certeza, minha filha. Além do mais, sua tia não se encontra aqui. Ela foi com as

crianças ficar com a esposa de Tomás e os bebês. O castelo dele está longe do raio de ação de Douglas, em local mais seguro. Mas Kirsten voltará a tempo de participar do casamento.

Tess deu um grito de frustração e ficou em pé. — O senhor não tem o direito de me empurrar para o altar nem de forçar Revan a fazer o mesmo.— Tess... — Revan não sabia bem o que dizer, mas gostaria de evitar a discussão entre tio e sobrinha.— Fique fora disso, Revan! O assunto não lhe diz respeito!— Desculpe-me a impertinência, Tess. Pensei que eu fosse o noivo.— E que noivo... Aceitou casar-se depois de sentir a espada dos Comyns nas costas.— Eu nem mesmo encostei nele a ponta da minha faca — Sílvio murmurou.— A honra me levará diante do altar. Seu tio me recordou disso e com todo o direito.De novo a maldita honra!

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Tess controlou-se para não atirar o caneco de estanho na cabeça de Revan. O melhor seria sair dali. Fugir daqueles dois homens que a fitavam como se ela fosse uma criança rebelde. Não encontrava nenhum argumento que pudesse demovê-los. Não poderia confessar por que falar em honra a enraivecia. Teria de expor a própria fraqueza. Precisava de Revan, e não de honra. O cansaço exauria-lhe a mente. Precisava descansar e de tempo para raciocinar. Teria de haver um meio de não ser obrigada a aceitar para marido um homem que a encarava como um dever. Muito pior, um dever que o engrandecesse por haver agido de acordo com o senso de honra.

Homens!— Se os gentis cavalheiros me permitirem, preciso retirar-me. — Tess caminhou rumo à porta.— Minha filha, está por acaso pensando em fugir?— Fugir? — Tess abriu a porta pesada e deu meia-volta. — Não. Por que eu faria isso? É que meu

pobre coração feminino está muito alvoroçado com esse romance impetuoso. Por isso preciso deitar-me. Não gostaria de envergonhar minha família e ter uma síncope de alegria no meio do grande salão.

Tess fechou a porta sem fazer ruído e subiu correndo a escada estreita em caracol que conduzia a seus aposentos. Depois de um banho quente, iria para a cama e tentaria refletir com maior clareza. Quando Revan chegasse, pretendia conversar com ele. A sós. Sem tio Sílvio falando em dignidade e obrigação.

Sílvio fitou a porta fechada por alguns momentos, antes de falar com Revan.— Sinto muito, sir Revan. Acho que terá de aceitar essa ironia ferina de Tess junto com ela. Sou

responsável por minha sobrinha. Não poderia lhe cortar a língua antes de levá-la para o altar, pois Tess não conseguiria proferir os votos diante do sacerdote.

Revan sorriu sem ânimo.— Eu já me acostumei com os rompantes dela. Na verdade, muitas vezes isso até me agradava. Acho

que é melhor segui-la e tentar acalmar-lhe o ânimo.— Não. Fique aqui mais um pouco. — Sílvio tornou a encher o caneco de Revan com vinho. — Tess

deve ter se modificado nesses cinco anos. Mas creio que o mau humor dela terá vida curta. Espere a maré baixar. Talvez Tess adormeça, e o senhor não terá de se preocupar mais com isso.

— Pelo menos não esta noite.— Estou percebendo uma certa relutância, sir Revan. Deitou-se com ela, mas não deseja casar-se. É

isso?Apesar de a pergunta ter sido feita em voz baixa, Revan entendeu que Sílvio estava muito próximo da

ira. Seria melhor falar a verdade. Sílvio Comyn o entenderia, mesmo se não concordasse com ele.— Ela é uma herdeira.— Eu estava imaginando se não a teria seduzido por isso.— Esse seria o melhor argumento para deixá-la. O que me pareceu impossível.— Isso não me surpreende. Tess é uma bela jovem. O fato de possuir fortuna e propriedades o

incomoda?— Tenho meu orgulho, sir. — Revan percebeu que Sílvio entendia disso tão pouco quanto Simon ou

Nairn.— O orgulho não alimentará seus filhos nem fará cair do céu um teto sobre a cabeça deles. Muito

menos lhes dará um futuro.— Por isso eu havia decidido permanecer solteiro.— Deitar-se com donzelas não é exatamente o melhor caminho para manter essa decisão.— Sei disso. Eu só vacilei... ao conhecer sua sobrinha. Senhor, em minha própria defesa, juro que não

seduzi Tess.— Foi ela quem o seduziu?— Não! Eu nunca diria uma coisa dessas. Eu... — Revan procurou as palavras adequadas.Sílvio ergueu a mão.— Não se preocupe. Sei o que aconteceu. Dois jovens fogosos forçados a conviver dia após dia. Era

fadado que se tornassem amantes. Não sou tão velho que não possa enxergar esse fato. Por isso o senhor

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argumentou e não se enfureceu. Bem, o senhor se casará com Tess assim que os problemas com os Douglas terminarem.

— Está bem, sir.— Gosta dela, não é?— Gosto, sir.— Então controle seu orgulho e não aja como um tolo. Se gosta de Tess e se a deseja, com a herança

dela poderão ter uma vida confortável. Muitos homens lutariam com unhas e dentes para estar no seu lugar. Por acaso pretende esbanjar tudo o que ela trouxer para o casamento?

— Claro que não.— Então não sei o que o preocupa.— Meu amigo Simon e meu irmão Nairn também não me compreendem.— Talvez o senhor esteja errado. Deixe de lado esse seu brio insensato. Agora vá procurar meu

sobrinho, Tomás, e ele lhe mostrará onde tomar banho. Nesta altura, Tess já deve estar mais calma.Revan saiu, e Sílvio sacudiu a cabeça, suspirando. Decidiu não interferir mais no assunto. Revan e Tess

tinham sido amantes. Independentemente dos problemas que os dois insistiam em carregar, o casamento seria inevitável.

Tomás entrou e refestelou-se numa poltrona ao lado do tio.— Os noivos não me parecem nem um pouco entusiasmados. Talvez o casamento não seja o melhor

para eles.— Tomás, eles foram para a cama juntos. A honra exige um matrimônio.— Sei disso, tio. Mas Tess tem razão. Se ela quiser, poderá comprar um marido. E se precisar, também.— Aquela menina pensa como um homem. Concordo quanto a comprar um marido. Mas isso seria um

erro grave. Revan é o parceiro adequado para ela. Tess deixou isso bem claro quando o aceitou como amante.

Tomás deu de ombros.— Eu pensei que... Bem, fiquei com pena. Eles não me parecem felizes.— E não estão. Os dois estão deixando o orgulho governar suas vidas. Tess quer que Revan fale em

muito mais do que dever e honra. E ele teme que, ao casar-se com uma herdeira, fará de si mesmo o pior dos mercenários.

— Tem certeza, tio Sílvio?— Nunca estive mais certo de alguma coisa em minha vida. Como ela diz que não está grávida,

poderemos dar-lhes algum tempo para que se entendam melhor. Se a informação de Revan estiver correta, lutaremos com o exército de Douglas em um mês. O casamento será logo depois. Talvez até lá eles possam enxergar o que salta avista.

— E o que é?— Que se amam e que foram feitos um para o outro. Espero que a soberba não destrua o futuro deles.

Tess piscou e olhou ao redor, sem entender o que a acordara. Depois de um banho quente, ela se deitara e adormecera em segundos.

Viu Revan aproximar-se da cama e franziu o cenho. Lembrou-se de repente de sua intenção de refletir a respeito de tudo o que acontecera e do que deveria dizer a seu tio. Revan parou para tirar o robe e o calção, e Tess teve dificuldade em concatenar as idéias. Não pretendia dizer nada que expusesse seus sentimentos. Revan só pensava em agir com honradez. Não merecia conhecer a verdade.

Da maneira como se comportara, ela dera muitas pistas acerca das próprias emoções. Apesar disso, estava determinada a não verbalizar nada que o levasse a considerar indícios como fatos concretos.

— Você e meu tio já terminaram de planejar minha vida? — Tess perguntou, assim que ele se deitou na cama.

— Acredito que seu tio é quem resolveu fazer os planos. Como você, eu apenas aceitei.— Pois eu não concordei com nada!— Ah, é verdade. Permita que eu me corrija.

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— Tive esperança de que você se oporia com firmeza às intenções de tio Sílvio.Revan virou-se de lado para contemplar Tess. Foi possível decifrar-lhe a expressão, apesar da pouca

luminosidade que algumas velas lançavam no ambiente. A irritação dela não cedera. Revan entendia e simpatizava com aquela revolta, embora não fosse usual uma jovem lutar contra os planos matrimoniais levados a efeito pelos parentes masculinos.

Por que a recusa de Tess o aborrecia?— Tess, a señorita era uma donzela quando a conheci. Ambos somos bem-nascidos. Nossas famílias

dão grande importância aos preceitos sociais. No momento em que fomos para a cama juntos, nosso destino foi selado. Tentamos ignorar a verdade. Achávamos que estaríamos livres para desafiar os re-gulamentos. Na primeira noite em que nos amamos, o matrimônio tomou-se a única alternativa.

— Não sei por quê.Revan acariciou-lhe os cabelos.— Sabe, sim. Não podemos permitir que as nossas jovens de boa família façam o que tiverem vontade.— Assim como os nossos jovens.— Como tio Sílvio bem disse, os rapazes não têm virgindade a resguardar e nem problema de gravidez.— Não têm mesmo. Eles espalham por todo o país os bastardos que irão procurá-los mais tarde.— Essa também é uma verdade, mas que não anula a precedente. — Revan afagou-lhe o braço e

descansou a mão no abdome de Tess. — As normas foram feitas para ser cumpridas, Tess, embora sentimentos sejam fatores muito importantes. Por que não encerrar essa discussão e me dizer qual o problema em se casar comigo?

Sei que não me ama, sir Revan Halyard. Era o que Tess teve vontade de dizer, mas se conteve. Era difícil aceitar um amor não correspondido.

— Não quero ter um marido que foi forçado a se casar.— Tess, não existe nenhuma ameaça. — Revan beijou-lhe o rosto e chegou mais perto. — Sílvio

apenas me lembrou...— Do seu dever e da sua honra. — Ela pronunciou as palavras como se fossem imprecações. — Nada

muito animador para levar ao leito matrimonial.— Tess... — Revan abraçou-a e beijou-a. — Por acaso a nossa cama tem sido fria? — Alisou-lhe as

costas, e ela moveu-se de encontro a ele. — Claro que não. E o fogo que arde entre nós nos levou a enfrentar as conseqüências.

— Esse fogo não poderá se apagar nas cinzas frias do mesmo dever e da mesma honrai— É isso o que a preocupa? — Revan desfiou beijos leves no rosto de Tess.— Esse é um fato á considerar. — Ela procurou afastar a onda de desejo. Ambos tinham muito o que

discutir.— O peso das convenções não apagará a nossa paixão. Sempre tive pontos de vista arraigados a

respeito de donzelas de boa família e me mantive firme diante delas. Mas nem isso conseguiu me afastar da atração que senti desde que a conheci, Tess. Seus princípios também foram incapazes de impedi-la de se entregar a mim. Pode acreditar, minha querida. Por mais desagradáveis que sejam as normas sociais, elas nada representam diante do calor da nossa paixão.

— Então, por que a sua relutância anterior?— A minha bela Contessa é uma herdeira. Eu não possuo nada. Alguns consideram essa diferença uma

grande tolice. Mas eu nunca pude conviver com a idéia de aceitar dinheiro ou terras que não me coubessem por herança ou por competência.

— Está dizendo isso por causa do seu orgulho? — Tess assustou-se por considerar aquele sentimento altamente destrutivo.

— É verdade. Não me agrada saber que precisaria me casar para ter alguma coisa. É como prostituir-se. E nenhum homem concorda comigo. Acho que sou o único a pensar dessa maneira.

Revan virou-se, e Tess ficou debaixo dele.

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— Mas eu já sei como enganar esse meu preconceito tolo. — Revan sorriu de maneira Cativante.— Pensarei que foi a bendita dignidade que me levou ao altar. Ah, Tess, esqueçamos tudo isso. Aproveitemos as chamas, antes que elas nos consumam.

Revan beijou-a, e Tess retribuiu com muito ardor. Queria afastar de sua mente tudo o que não fosse a grande paixão que os unia. O desespero fez com que se perdesse nos prazeres da carne. Nunca se sentira tão agressiva e corajosa. As respostas entusiásticas de Revan incentivaram-na ainda mais.

Revan ergueu Tess e sentou-a sobre ele. Trêmula, ela acomodou-se e acolheu o amado em sua própria intimidade. Moveu-se devagar, procurando prolongar ao máximo os instantes de satisfação.

De repente, Revan sentou-se, segurou-a pelas costas, para que ela não se desequilibrasse, e passou a lamber-lhe os seios e sugar-lhe os mamilos. Ao ver que Tess não poderia suportar por mais tempo a agonia, ele tomou a deitar-se e permitiu que ela o cavalgasse como uma valquíria alucinada. O êxtase de Revan e de Tess foi alcançado ao mesmo tempo. Milhares de estrelas minúsculas, só visíveis para eles, desprenderam-se do céu e os abençoaram.

Ficaram entrelaçados por um bom tempo antes de Revan levantar-se, providenciar a higiene e tomar a deitar-se. Abraçou Tess. Ela bocejou, jogou as pernas bem torneadas por cima dele e aconchegou-se com um sorriso satisfeito. Revan suspirou e olhou para o teto.

— Minha querida, estamos muito além das frias normas sociais.— É verdade. Sou obrigada a admitir que a sua argumentação estava correta.— E isso foi doloroso, não foi? — Ele achou graça.— O senhor é mesmo arrogante, sir Halyard. — Tess fingiu-se ofendida. — Não é preciso se

vangloriar tanto.— Sílvio desculpou-se por não poder aparar essa sua língua antes do casamento.— Ah, é? Eu o farei pagar por mais esse insulto. — Ela sorriu sem vontade diante das risadas de

Revan.— Então é melhor dormir. Vai precisar de espírito alerta para discutir com Sílvio.— Com certeza. Onde pensa que eu azeito minha língua ferina? Ah, tem razão, precisamos descansar.

Independentemente das contas que tenho para acertar com tio Sílvio, Douglas e Thurkettle ainda estão por aí.

— Não se preocupe, querida. Seremos vitoriosos nessa luta.Tess anuiu e fechou os olhos. Os planos traiçoeiros de Douglas e de Thurkettle não lhe traziam mais

tantas inquietações. Revan e ela estavam junto a seus familiares. Sentia-se mais segura, apesar da batalha pelo trono que os aguardava. O que mais a afligia era pensar que seus entes queridos poderiam ficar feridos ou mortos, mesmo que a vitória fosse do rei. Mas a luta ainda não começara. Não adiantava sofrer antes da hora.

Refletiu sobre Revan e o casamento que os aguardava. O receio não a abandonava. Revan a tranqüilizara e chegara a sugerir que, entre eles, havia mais do que uma explosão de desejos carnais. Mas depois estragara tudo, falando de orgulho e de seu firme propósito anterior de jamais desposar uma herdeira.

Tess admitiu que, embora não houvesse mentido, também não dissera toda a verdade. Ela falara em poucos milhares de riders e algumas terras. Imaginou como Revan reagiria quando descobrisse que os poucos eram trinta mil ou mais e que as propriedades eram imensas e lucrativas. Faltara-lhe coragem para revelar o tamanho da sua fortuna. E que se tornaria ainda maior se recebesse os bens de Thurkettle. Com freqüência a fortuna de um traidor era encaminhada para a coroa. Mas por ela ter fornecido informações importantes a favor do rei, poderia herdar tudo. Se Revan falava em orgulho arranhado, quando descobrisse a verdade ficaria mortalmente ferido.

E ela seria a causa da ruína moral de Revan!, Tess pensou e chegou mais perto dele. O valor total da riqueza herdada deixaria Revan humilhado. Ela estremeceu. Seria o dobre dos sinos, anunciando a morte da felicidade para eles. Revan passaria a odiá-la. A perda da dignidade pessoal aos poucos iria corroer qualquer sentimento que ele pudesse lhe dedicar.

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Tess teve vontade de chorar, mas engoliu as lágrimas. Revan notaria sua tristeza e pediria explicações. Ela contava com apenas um mês para encontrar uma solução que no momento não lhe ocorria. Era preciso atinar com uma maneira de salvaguardar o amor-próprio dele. Se nada lhe ocorresse, teria de libertá-lo das obrigações que tio Sílvio lhe impusera. O sofrimento seria grande, porém a dor seria muito maior se tivesse de testemunhar a humilhação de Revan, destruindo a felicidade dos dois.

Capítulo IX

Tess bocejou, desceu a escada rapidamente e chegou ao grande salão, envergonhada. No terceiro dia, outra vez dormira tanto que se atrasara para o almoço. Atribuiu o excesso de sono ao cansaço da viagem atribulada que enfrentara.

Ainda não desistira da idéia de preservar o orgulho de seu noivo, o que talvez resultasse na separação de Revan em breve. Por isso aborrecia-se em perder horas preciosas que poderia passar ao lado dele.

Admitiu outro motivo para querer desfrutar a presença de Revan. Voltara a usar vestidos e pretendia impressioná-lo. Se estivessem destinados a separar-se, queria lhe deixar uma boa lembrança.

— Ah, finalmente! Ela está viva! — Sílvio ironizou ao ver a sobrinha apressar-se a ocupar o lugar ao lado do noivo. — Eu já ia pedir a Revan para ver se você ainda respirava.

Tess serviu-se com generosidade e corou sob os olhares risonhos dos presentes.— O senhor não deveria ter-me deixado dormir tanto.— A pressão tem sido grande desde que Revan conseguiu tirá-la das garras de Thurkettle. O descanso é

fundamental. Eu estava brincando, minha filha.— Sei disso, porém já estou mais do que descansada. Amanhã não quero dormir até tarde. Isso poderá

se tornar um hábito.— Esta manhã enviamos o terceiro emissário — Sílvio declarou.— Três?— Isso mesmo, Tess. Precisamos ter certeza de que o rei receberá as informações mais recentes.— Por que Revan não foi o enviado?— Precisamos dele aqui. Além disso, os homens de Douglas e de Thurkettle o conhecem e não

perderiam uma oportunidade de atacá-lo.Tess fitou Revan de relance. Ele sorria de leve. também sem acreditar na explicação. Tio Sílvio

preferia que Revan ficasse no castelo até o casamento. De certa maneira, como um prisioneiro. Tess não achou justo, mas não adiantaria argumentar com o tio.

— Algum sinal dos inimigos? Ainda estão emboscados na região?— Devem estar, mas o número de homens diminuiu bastante. Quando chegar a hora, os meus soldados

sairão atrás dos que ainda insistem em se esconder. A caçada será uma recompensa. Já eliminamos vários deles. — Sílvio franziu o cenho quando todos ouviram um tumulto do lado de fora do grande salão. — Não deve ser um ataque — deduziu. — O alarme não soou.

Alguns minutos depois as portas pesadas foram abertas. Dois cavaleiros de Sílvio entraram, arrastando um homem. O sujeito se debatia e os amaldiçoava. As roupas rasgadas e o fio de sangue que escorria pela boca faziam supor que houvera luta. Tess desconfiou que o sujeito levara um soco na boca.

Céus! Era o mesmo que vira no vale. O que montava o garanhão negro de polainas brancas. Os soldados de seu tio haviam capturado Angus MacKinnon, o traidor. Ela estremeceu quando o preso a encarou, antes de fitar Sílvio.

— Parabéns, rapazes. Um bom trabalho — Sílvio cumprimentou os guerreiros.— Eu exijo explicações! O que significa esta afronta, Delgado? — Angus tentou endireitar o traje,

quando os guardas o soltaram.— Meu nome é Comyn.

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O sujeito deu uma risada de pouco caso.— Sua família muda de nome como outros mudam de roupa. Por que fui arrastado até aqui?— Pelo mais hediondo dos crimes, MacKinnon. Terá de responder por ele diante do rei.— Crime? Que bobagem está dizendo, Delgado? Eu estava a caminho do palácio, quando esses

imbecis me agarraram. Por falar em crime, será melhor levar em conta o que está cometendo. Deteve um soldado do rei que está sob as ordens de Sua Majestade, a quem tenho de levar uma mensagem importante.

— Eu sei. Um punhal direto no coração dele. Uma mensagem de Douglas, igualmente traidor.— O senhor ficou maluco, Delgado!Se MacKinnon não fosse um mau-caráter, Tess admiraria sua verve interpretativa. A postura denotava

a mais pura estupefação. Ele nem piscara ao ser incriminado por Sílvio. Apenas uma ligeira palidez denunciava o receio que devia estar sentindo.

— Eu, não, MacKinnon. Mas é provável que o senhor tenha ficado. O que espera ganhar com essa traição? Como teve coragem de voltar-se contra o rei, o homem que lhe concedeu quase tudo o que o senhor possui? É assim que agradece ao nosso soberano? Com traição?

— Quem lhe deu o direito de duvidar da minha honra?— Honra? Traidor não conhece o sentido dessa palavra. Por acaso é como prova, apresento-lhe minha

sobrinha, Contessa Comyn Delgado. — Sílvio ergueu as sobrancelhas ao ver MacKinnon arregalar os olhos de espanto. — E seu noivo, sir Revan Halyard.

— O senhor me chama de traidor e me ameaça como se eu fosse um fora-da-lei, enquanto acolhe esse dois como hóspedes? Não ouviu falar dos crimes de que eles são acusados? Halyard é um raptor acusado de estupro. Delgado, sua sobrinha é suspeita de ajudar esse marginal a trair o rei. Além disso, ela já está noiva... de um sobrinho de Douglas que conspira para usurpar o trono.

— Estou noiva? — Tess fez a pergunta em um fio de voz. — Não pode ser.MacKinnon fitou-a com ódio.— Isso mesmo. De um dos sobrinhos de Douglas, conforme foi anunciado.— Eu não...— Não se preocupe, Contessa — Sílvio acalmou-a. — Isso não passa de uma manobra para disfarçar a

causa deles. Como não conseguiram provar nenhumas das acusações, o fato de Revan estar com a noiva de outro provavelmente seria aceito como ato incriminatório.

— E isso lhes facultaria matar Revan e, se possível, nós dois. — Tess reparou que Revan anuía em concordância. — E de nada adiantaria eu afirmar que nunca fui noiva desse tal sobrinho de Douglas.

— De nada mesmo, minha querida.— Delgado, deixe o castigo de sua sobrinha para depois. Sou um homem muito ocupado —

MacKinnon expressou-se em tom arrogante e com sarcasmo.— Terá um repouso muito em breve, MacKinnon. Mesmo assim, chegar ao descanso final poderá ser

uma jornada penosa. A morte de um traidor não é uma das mais misericordiosas.— Não cometi nenhuma traição, Delgado. Suas palavras carecem de fundamento. Eu me encarregarei

de fazê-lo pagar caro pelo insulto.— Deixe de ser idiota, MacKinnon. Sabe muito bem do que estou falando. Sua conspiração com

Douglas foi testemunhada.— Do que está falando?— Lembra-se de uma tarde em que cavalgava com os seus companheiros bandidos e de ter saído atrás

de uma dupla que os estava espionando? — Sílvio anuiu ao ver MacKinnon empalidecer de novo. Dessa vez, com maior intensidade. — A caçada não chegou ao fim. O senhor pensou que os dois fossem apenas camponeses ingênuos.

MacKinnon não parava quieto. Apoiava-se ora num pé, ora no outro.— Devo lhe dizer, MacKinnon, que cometeu um engano. E devemos lhe agradecer por isso. Eis aqui as

testemunhas. — Sílvio apontou Revan e Tess com um gesto indolente.—Minha sobrinha o reconheceu. Lembrou-se de tê-lo visto no casamento de Tomás. Ela e sir Halyard o viram bem de perto.

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— A palavra dela não terá valor diante da minha.— A dela e a de sir Halyard. Os dois estão prontos para jurar que o viram cavalgando com os

mercenários de Douglas, rumo às terras dele. Agora o senhor se dirigia ao palácio. Jaime ficará ansioso de saber o porquê. Uma pena que os seus companheiros não foram apanhados.

— Eles foram presos, sir — um dos guardas afirmou. — Bem, um foi morto. O outro, apenas ferido. A velha Alice está cuidando dele e assegurou que sobreviverá.

— Vivo para falar, hein, MacKinnon? Creio que o senhor não tardará a se arrepender de não ter lutado com mais empenho contra os meus soldados, forçando-os a matá-lo. Morrer pelas mãos deles teria sido muito mais simples diante do que terá de enfrentar.

MacKinnon praguejou e desvencilhou-se dos soldados. Mas não correu para a saída. Foi em direção a Tess, e ela deu um grito de surpresa. Revan levantou-se e ficou entre o agressor e sua amada. MacKinnon não chegou a andar dois metros. Foi novamente agarrado. Seguiu-se uma luta rápida e violenta, antes de MacKinnon ser dominado com firmeza. O agressor fitou Tess com ódio. Perturbada, ela se escondeu atrás de Revan.

— Vai se arrepender disso, Delgado — MacKinnon falou em voz baixa, desviando o olhar de Tess.— Do quê? De servir com lealdade ao meu soberano, o rei Jaime? Acredito que não. Segurem-no,

homens. Pretendo enviá-lo vivo ao rei.— Haverão de pagar por isso! — MacKinnon berrou enquanto era arrastado para fora. —

Principalmente, ela! — Apontou Tess. — Fergus foi um idiota por não tê-la matado há muito tempo. Eu não seria tão imprudente. Considere-se uma mulher morta! — Foram seus últimos gritos, antes de as portas serem fechadas.

Revan sentou-se com o olhar fixo em Tess. Pálida e com mão trêmula, ela segurou a taça de vinho. Ele apertou-lhe a outra mão. Não entendia por que as ameaças de MacKinnon a abalavam tanto. Haviam passado momentos piores durante os quinze dias em que fugiram dos perseguidores.

— São apenas palavras, Tess. MacKinnon atacou com ameaças vazias. Ele queria assustá-la.— Eu sei. — Ela bebericou um pouco de vinho para aliviar a garganta seca. — MacKinnon quer que

alguém sinta o mesmo pavor que ele está sentindo. Eu já deveria estar acostumada com pessoas que querem me matar. Às vezes, tenho a impressão de que metade da Escócia pretende me enterrar. — Sorriu sem entreabrir os lábios e suspirou.

— Eu já pensei o mesmo. — Revan beijou-lhe a mão. — E nem por isso a vi se acovardar, Tess. Por que recear frases inócuas?

— Na verdade, é uma bobagem, mas por terem sido ditas em voz alta, elas se tornaram assustadoras. Ninguém fez isso antes. MacKinnon não pretende me ver morta para ficar com o meu dinheiro ou para salvar a própria pele. Ele sabe que está condenado. Mas quer que eu morra. Havia muito ódio na sua voz. Sua fúria é particular e foi dirigida a mim. Os que nos perseguiram cumpriam ordens. Esse homem quer que eu desapareça da face da Terra. É difícil aceitar isso.

— Minha filha, procure esquecer a fúria de um condenado — Sílvio pediu. — A próxima parada dele será na masmorra.

— Não duvido, tio Sílvio. Talvez demore um pouco, mas haverei de me livrar dessa impressão horrível que ele me deixou.

Revan e Sílvio concordaram e voltaram a discutir sobre a batalha que os aguardava.Tess ficou entregue a seus pensamentos e receios. Não conseguiu afastar o pavor que a ameaça de

MacKinnon lhe infundira. Talvez as feições aquilinas e o olhar predatório houvessem aumentado o impacto da intimidação. Era preciso esquecer MacKinnon. Ele nada mais poderia fazer contra ela.

Tess parou de escovar os cabelos, determinada a levantar-se mais cedo no dia seguinte. Revan entrou no aposento de ambos e foi até a cama onde ela estava sentada. Depois da refeição do meio-dia, ele saíra com os outros homens e só retornara na hora do jantar. Até Sílvio desaparecera. Tess passara o resto do dia ajudando, nas tarefas domésticas, as poucas mulheres que haviam ficado em Donnbraigh.

— O poderoso caçador lembra-se de voltar para a sua toca somente à noite? — Tess não evitou o sarcasmo.

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— Está com vontade de discutir? — Revan tirou a roupa e ficou de calção.— Quem sabe? — Ela deixou a escova sobre a mesa-de-cabeceira. — Pelo menos é mais interessante

do que escutar Janie falar sobre o bebê, Maura das pernas doloridas ou todos darem palpite a respeito do tempo.

— Passou o dia com as mulheres? Deve ter sido como voltar ao tempo do castelo de Thurkettle.— Lá, eu não me ocupava muito com tarefas femininas. Se o fizesse, teria de ficar muito tempo com a

sua amada Brenda. — De súbito, falar na prima trouxe-lhe uma lembrança que a deixou pasma.Revan terminou as abluções e virou-se para Tess, pronto para uma resposta ríspida por causa de

menção à filha de Thurkettle. Tess estava esquisita, parada.— Querida, o que houve? Está se sentindo mal?— Lembrei-me por que reconheci o cavalo de MacKinnon.— Não foi ao ver o dono? — Revan sentou-se na cama ao lado dela.— Sim, mas foi o cavalo que chamou a minha atenção. Agora entendi que o havia visto antes, e foi o

animal que despertou a lembrança.— Não foi na festa de casamento de seu primo Tomás?— Não, eu não prestei atenção em como as pessoas chegavam ou saíam.— E onde mais poderia ter visto o garanhão de MacKinnon?— No castelo de Thurkettle.— MacKinnon se encontrava com Thurkettle?— Com certeza, embora eu nunca tivesse visto Angus. Mas vi o cavalo. Várias vezes o avistei

amarrado junto ao chalé de Brenda.— E para que Brenda precisava de um chalé?— Ora, não diga que não sabe. Para receber seus amantes, é claro.— Tess, eu nunca fui nesse tal chalé e nem mesmo sabia da sua existência — Revan respondeu com

rispidez. Irritava-o sobremaneira essa outra prova de que Brenda o fizera de tolo.— Muito estranho...— Não vejo por quê. Nunca fui amante dela, Tess.O aborrecimento de Revan mesclava-se a uma humilhação evidente. Tess procurou não rir, mas foi em

vão. Era uma grande alegria ter certeza de que Brenda e Revan não tinham sido amantes. Ele parecia uma criança que não recebera os doces prometidos. Apesar da mão na boca, os risinhos foram inevitáveis. E a carranca de Revan tornava a situação ainda mais hilária.

— Não sei qual é a graça.— Desculpe-me. — Tess fez um grande esforço para ficar séria. — O fato de ela o ter enganado feriu

sua vaidade, não foi? — Novas risadas se seguiram. — Brenda percebeu o seu jogo desde o início.— Parece que sim. E por que está achando tão engraçado, se já sabia disso?— Bem, eu supus que ela o tivesse enganado. Mas nunca imaginei o quanto. Virgem Santa, Brenda é

mesmo diabólica. Pensou que ela fosse inocente?— Bem... não... Tess, eu lhe disse que não tive nada com sua prima.— Não afirmou categoricamente. Apenas negou que babava por ela e que não tinha assumido

compromisso...— Chega! Claro que eu tive de contestar. Nunca babei por Brenda nem assumi compromisso com ela!— Ora, então não é para se admirar que Brenda não o tenha convidado para freqüentar o chalé.Tess deu um gritinho e fingiu-se ultrajada ao ser jogada de costas na cama. Revan beijou-a com desejo,

mas também com muita ternura. Ela encarou aquele beijo como um sinal do amor que procurava e de que precisava. E que temera nunca alcançar.

— Pobre sir Revan.—Tess não resistiu à provocação, quando Revan afastou os lábios. — Tanto trabalho e tão pouco lucro!

—. Eu não diria isso. Claro que a minha vaidade foi arranhada. Afinal, Brenda distribuía seus favores amorosos com grande liberalidade, exceto para mim. Mas estou convicto de ter ficado com a melhor parte da família Thurkettle. — Revan sorriu ao ver Tess enrubescer. — Também fico feliz de não ter ido para a

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cama com Brenda, mesmo antes de eu a conhecer, Tess. Fomos destinados um para o outro, minha querida.

— Será mesmo? — Ela acariciou-lhe os braços.— Alguma dúvida? — Revan afastou-lhe as mechas de cabelo do rosto.— O destino poderia ter sido mais camarada. Não precisávamos de tantos inimigos.— Isso logo estará terminado. Fico satisfeito que tenha enterrado o receio por causa das palavras

coléricas de MacKinnon.— Enterrei em termos. As ameaças ainda me assustam, mas procuro dizer a mim mesma que ele agora

é um prisioneiro. Donnbraigh possui masmorras muito seguras e não temos nenhum traidor aqui para ajudá-lo. Logo nem me lembrarei de Angus.

— Ótimo. — Revan roçou os lábios nos de Tess. — Aposto que tenho meios de fazer com que o esqueça ainda mais depressa.

Ela sorriu e abraçou-o com as pernas.— Então comece logo. Estou ficando apavorada de novo. Os dois riram e tornaram a beijar-se. Por um

tempo, o amordeles faria com que Tess não pensasse em MacKinnon. Embora fosse terrível desejar para alguém a

morte devida aos traidores, ela somente apagaria o medo no dia em que MacKinnon morresse.— Pode ir dormir agora, Jamie. — A nova sentinela do calabouço sentou-se na cadeira que o guarda

acabava de deixar.— Estou mesmo cansado, Dermott. — Jamie cocou o peito e fitou MacKinnon com cara de poucos

amigos. — Sílvio quer que esse sujeito pague pelo que fez. Em geral, não costumamos vigiar prisioneiros tão de perto.

— Sílvio deve ter medo de que alguém resolva ajudar o prisioneiro.— Um traidor em Donnbraigh? — Jamie riu e sacudiu a cabeça. — Aqui não há nenhum — declarou e

desceu a escada estreita de pedras.— Idiota! — Dermott resmungou assim que o outro saiu. Inclinou-se para a frente e fitou MacKinnon.

— O senhor se meteu em uma bela encrenca.— Delgado pagará caro por isso. Tudo não passa de calúnia.— Se fosse eu, desistiria do jogo, meu amigo. O senhor demonstrou suas intenções ao ameaçar a

sobrinha do fidalgo.— Foi um momento de irreflexão, de ódio. Isso não quer dizer nada.— O senhor tem o dom da palavra, mas duvido que as palavras lhe salvem a vida. Essa tarefa terá de

ficar a meu cargo. Não foi por isso que Douglas me mandou para cá, mas terei de dar um jeito. De qualquer maneira, minha tarefa está quase no fim.

— O senhor é um dos seguidores de Douglas? — MacKinnon levantou-se devagar, surpreso, e foi até as barras de ferro.

— Sou, embora já tenha começado a questionar a sensatez da minha escolha. Mas eu a fiz e me manterei fiel a ela. Em resumo, terei de libertá-lo. Uma vez feito isso, acabará minha utilidade em Donnbraigh. Eles saberão quem o soltou e teremos de fugir juntos. — Dermott ficou em pé e pegou as chaves penduradas em uma cavilha na parede. — Precisamos nos apressar até o castelo de Douglas. Quando descobrirem a fuga, estaremos longe.

— Eu não irei embora sem aquela amaldiçoada. — MacKinnon afastou-se da porta.— Ficou maluco? Não posso ir buscá-la agora. Ela dorme com sir Revan.— Então, esperaremos até que possamos pegá-la e levá-la conosco.— Não temos muito tempo, meu amigo. Silvio planeja partir dentro de quinze dias para ir se juntar às

forças do rei. Se o senhor ainda estiver aqui, irá com ele e direto para a morte pelas mãos do rei. Conhece as regras para os traidores, não é verdade?

— Claro que sim. Não pretendo ficar aqui até ser arrastado como uma ovelha para o sacrifício. Mas levarei a sobrinha de Delgado comigo. Quinze dias? Temos algum tempo. O suficiente para que eu alcance a liberdade e a vingança por haver sido traído. Em algum momento a jovem ficará sozinha.

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— Sim, mas não poderemos esperar eternamente.— Então o senhor terá de tomar conta do guarda que está aqui.— Não pretendo arriscar minha vida. O senhor já está condenado ao cadafalso, mas eu, não.— Talvez o senhor fique mais interessado se lhe couber a recompensa oferecida.— Ouvi falar nisso, mas pensei que fosse boato — Dermott murmurou.— Boato coisa nenhuma. Há quanto tempo está aqui? Não foi mandado para cá para deter Halyard e

Contessa?Dermott sacudiu a cabeça.— Vim para cá há meses porque Sílvio e a maioria dos seus parentes têm muita intimidade com o rei e

a corte. Eles sabem de muitas coisas. Douglas queria informações.— Ele também quer Halyard e a sobrinha de Delgado.— Não há como pôr as mãos em Halyard sem agitar Donnbraigh. Ele está sempre acompanhado. —

Dermott esfregou o queixo. — Mas poderemos esperar alguns dias para ver se apanhamos a senorita.— Uma semana. E depois levaremos a jovem para Thurkettle.— Douglas está mais próximo.— Não para mim. Faço questão de levá-la para Thurkettle. Ele se encarregará de matá-la e pagará uma

bela recompensa pela sobrinha. Com a morte de Contessa, Thurkettle ficará muito rico. Herdará a fortuna dela.

— Em sete dias ela será levada para Thurkettle — Dermott concordou, com o olhar brilhante, e voltou as chaves para o lugar. — Esse é o tempo máximo que poderemos esperar, e o senhor terá de deixar Donnbraigh, pois Douglas não quer que seja levado para o rei. Uma semana e o senhor terá de escolher entre a vida ou a vingança.

— Pretendo ficar com as duas.— Sir Revan achou que um passeio lhe agradaria — Dermott explicou.— Por que ele não veio me buscar? — Tess estranhou.— Estava ocupado, senhora, mas determinou o local do encontro.Ela levantou-se e limpou a saia. Estivera semeando o canteiro de ervas medicinais, tarefa tediosa com

que se ocupara na última semana. No entanto não entendia a própria hesitação; em encontrar-se com Revan.

Intrigada, espiou Dermott de revés. Não o conhecia. Era novo em Donnbraigh e, apesar de ser cortês, ele a inquietava.

O convite inesperado de Revan também a preocupou. Ele e Sílvio haviam insistido para que ela permanecesse no interior das muralhas. Mas lembrou-se de Revan haver dito na noite anterior que Donnbraigh estava livre dos soldados de Douglas e de Thurkettle. Uns tinham sido mortos, e outros haviam fugido. Mais aliviada, sorriu para Dermott.

— Espere um momento. Preciso me lavar.Tess iniciou o trajeto de volta ao castelo, porém virou-se para trás.— Iremos apenas nós dois ao encontro de Revan?— Não. Donnbraigh pode estar livre dos patifes, mas não é seguro para a senhora sair apenas comigo.

Outro homem nos espera com os cavalos.Tess anuiu e correu para a fortaleza. Mesmo sem estar convencida da ausência de perigo, era uma

grande tentação passar algum tempo na companhia de Revan. Com certeza ele não a teria mandado buscar, se ela corresse algum risco.

— Onde ela está? — MacKinnon irritou-se ao ver Dermott aparecer sozinho.— Foi se arrumar. Estará pronta em alguns minutos.—Dermott observou os três cavalos encilhados e

certificou-se de que não havia ninguém por perto.— Alguns minutos? Seu idiota! Tess é uma mulher. Mulheres levam horas para se aprontar.— Se ela não aparecer logo, irei buscá-la. Acalme-se, MacKinnon. Tess não é daquelas que perdem

muito tempo com roupas ou penteados. Pare de falar alto ou chamaremos a atenção sobre nós.— Alguém o seguiu?

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— Não. Todos estão calmos. Em sua maioria, os nossos aliados já se foram ou morreram.— O que não nos favorece. Não teremos aliados na fuga.— Nosso maior aliado será o tempo. Se tudo der certo, manteremos horas de dianteira. Além do mais,

eles serão cautelosos na perseguição pelo temor de ferir a senorita. Espero que o seu amigo Thurkettle possa nos abrigar tão bem como Douglas faria. Esse é o maior risco que correremos.

— Se quiser, poderá pegar a sua recompensa e ir embora. Ninguém o deterá.—Exceto os que estiverem à procura da sobrinha de Comyn. Ah, lá vem ela! Não abra a boca.Tess aproximou-se de Dermott, que a ajudou a montar. Ela continuava inquieta. O outro homem, que

usava um elmo, nada disse e nem a olhou. Tess achou estranho, mas deu de ombros.— Iremos muito longe? — Ela perguntou para Dermott assim que começaram a cavalgar.— Não.Tess procurou ignorar um arrepio na espinha. Havia se tornado uma mulher medrosa que temia até as

sombras. O melhor seria concentrar-se no belo dia de final de primavera que passaria ao lado de Revan.Eles trotaram em silêncio, o que não pareceu normal a Tess. Os homens de Donnbraigh eram muito

tagarelas. O castelo desapareceu de seu ângulo de visão assim que entraram na floresta. Tess refletiu que o lugar de encontro não fora uma boa escolha. Virou-se, mas não teve tempo de fazer nenhum comentário. Dermott aproximou o cavalo e arrancou-lhe as rédeas das mãos. Os três estacaram de imediato.

Tess amaldiçoou a própria ingenuidade. Deveria ter dado atenção a seus pressentimentos. Não conseguiu desmontar. O segundo homem amarrou-lhe os pulsos com uma corda.

Traidores em Donnbraigh? Apesar das evidências, parecia impossível.— Por que estão fazendo isso?— Por vingança — o segundo homem alegou.Tess sentiu um gosto amargo na boca quando o sujeito tirou o elmo. Era MacKinnon. Aquele homem a

condenara e não havia como escapar. Passaria um bom tempo até a família dar por sua falta no castelo e entender que ela corria perigo. Abriu a boca para gritar, porém Dermott a amordaçou. A fúria com que Tess fitou os dois homens não os abalou.

— Vamos levá-la para Thurkettle — MacKinnon continuou. — Dermott receberá a recompensa, e eu terei o prazer de vê-la morrer. Poderíamos levá-la até o castelo de Douglas, que é mais próximo, mas Thurkettle haverá de satisfazer melhor minha fome por vingança. Quando acometido pelo ódio, Fergus tem grandes requintes de crueldade.

Tess sentiu um frio na espinha. MacKinnon estava certo. Seu tio era bem conhecido e temido por seus acessos de fúria que resultavam em atitudes mais que desumanas. Aliás, ele jamais demonstrara o menor sinal de bondade ou carinho. Parentesco não tinha o menor significado para Fergus. A não ser que fosse para herdar alguma fortuna. O fato de ter continuado viva, apesar das tentativas de assassinato, somente lhe granjearam o ódio do tio. O que a fez recear a morte dolorosa que a aguardava.

— Chega de falar, MacKinnon! — Dermott falou com rispidez. — Mais tarde poderá conversar sobre os seus planos com ela. Quanto antes sairmos daqui, melhor.

— Temos muito tempo.— Um tempo precioso para nos distanciarmos de Comyn e do amante da senorita. O guarda será

encontrado logo. E possível que Sílvio e Halyard voltem a Donnbraigh mais cedo de que o esperado. Vamos.

Sem largar as rédeas da égua que Tess montava, Dermott esporeou o próprio cavalo. Tess foi jogada para trás e a custo agarrou-se no arção da sela. Por um instante considerou a hipótese de saltar de cima, mas desistiu. Não haveria chance de escapar. Ela se machucaria, e seus captores a amarrariam no lombo da égua. O que seria muito pior. Teria de rezar para Deus lhe conceder uma oportunidade melhor.

Se o guarda dominado por Dermott houvesse acabado de assumir o posto, demoraria muito até a fuga de MacKinnon ser descoberta. O mesmo tempo que Sílvio e Revan levariam para voltar a Donnbraigh. O que tornaria muito difícil, senão impossível, seu resgate.

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Não seria fácil escapar. Estava com as mãos amarradas e fora amordaçada. Não tinha armas, seu senso de direção era péssimo e estava sendo levada por dois homens espertos. Tess tentou não ceder ao desespero,

Revan entrou no pátio de Donnbraigh ao lado dos Comyns e estranhou Tess não ter vindo ao encontro deles. Nisso notou a agitação das pessoas que os aguardavam.

— MacKinnon fugiu! — Calum, homem de confiança de Sílvio avisou-o. — E foi ajudado por Dermott, que deve ser partidário de Douglas. Ordinário! Ele está aqui há meses. Nem quero imaginar o que Dermott ficou sabendo.

— Como foi que MacKinnon escapou? — Sílvio apeou, ajudado por Tomás.— Dermott o soltou. Ele matou o pobre Seumus, que estava de guarda. Norman desceu, não viu

Seumus, mas achou que MacKinnon ainda estivesse preso. Havia um corpo deitado no catre. Depois de algum tempo, Norman desconfiou e abriu a cela. Seumus estava morto no catre, com a garganta cortada e com o cobertor puxado até o alto da cabeça.

— Mas como foi que o bastardo escapou de Donnbraigh?— Com uma artimanha. Dermott disse para nós que sir Halyard havia mandado buscar a senorita

Contessa para um passeio. Como não havia mais inimigos na região, não nos ocorreu questionar a ordem.—Vocês os deixaram sair com Tess?—Revan gritou, pulou do cavalo e agarrou Calum pelo braço.— Não tínhamos motivos para não fazê-lo, senhor — Calum protestou. — Dermott estava aqui há um

bom tempo e era considerado um dos nossos. Na verdade, os soldados acharam o pedido estranho. Duvidaram do senhor, a quem não conheciam, mas não de Dermott.

— Quando a fuga foi descoberta? — Sílvio quis saber.— Há pouco. íamos mandar um homem ao seu encontro e outro para investigar as pistas. Acredito que

eles devem ter saído há umas quatro horas ou um pouco mais.— Virgem Santa! Devem estar a quilômetros de distância. — Revan fitou os portões abertos. O medo

do que poderia acontecer a Tess impedia-o de pensar com nitidez. — Mesmo se formos a toda velocidade, não os alcançaremos antes que eles cheguem à fortaleza de Douglas. — Lembrou-se das ameaças de MacKinnon. — Se Tess não for morta antes. MacKinnon quer matá-la.

— Se ele a levar até Douglas, não terá de sujar as mãos de sangue — disse Sílvio. — E ainda ficará com a recompensa oferecida pela captura de Tess. Acredito que ele a levará viva até o traidor.

— Uma vez que Tess estiver nas mãos dele, não teremos como salvá-la.— Sou um homem teimoso, Revan. Não desisto à toa. Calum, providencie cavalos descansados e

alimentos — Sílvio ordenou e falou com outro soldado: — Martin, apresse-se, homem. Descubra em qual direção eles foram.

Revan fitou o céu, que escurecia.— Temos uma hora, talvez mais, antes de anoitecer completamente.— O importante é saber para onde seguiram. Se tivermos certeza disso, a escuridão poderá nos retardar

um pouco, mas não nos deterá. A lua cheia nos favorecerá.— E a eles também — Revan resmungou.— Eu sei. Se a sorte nos ajudar, eles irão mais devagar do que nós.Revan evitou dizer que a sorte não os favorecera muito desde que ele e Tess haviam escapado de

Thurkettle. Ele gostaria de compartilhar o otimismo e a tenacidade de Sílvio, mas o pavor de perder Tess o impedia de raciocinar com clareza.

Não demorou muito para estarem montados, carregando armas e alimentos. Saíram de Donnbraigh antes de Martin voltar.

Para Revan, aquele pequeno intervalo de tempo parecera uma eternidade. Recriminou a si mesmo. Seria de suma importância recuperar a calma e o controle. O que, diante das circunstâncias, parecia um objetivo inatingível, embora tão importantes para um cavaleiro. Seria preciso concentrar-se tão somente na tarefa de encontrar Tess.

— Martin é um bom rastreador? — Revan perguntou a Sílvio.— O melhor.

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— Acredita que eles possam ter deixado rastros?— É a minha esperança. À maior preocupação deles deve ter sido distanciar-se de Donnbraigh o mais

depressa possível. Não iriam perder tempo em apagar os vestígios. De qualquer modo, vamos imaginar o rumo que tomaram.

— Então, por que perder tempo atrás de pegadas? Por que não saímos em disparada de uma vez? — Revan inquiria com impaciência.

— Não é tão fácil. Eles podem ter seguido por inúmeros caminhos. Douglas possui vários castelos. E ainda existe a hipótese de terem ido para outro lugar. Será melhor e mais proveitoso se tivermos certeza de onde procurá-los.

— Rezo para que encontremos apenas pegadas.— Eu também, Revan. Mas creio que Tess ainda esteja viva. MacKinnon traiu o rei por causa de

dinheiro. Deu as costas a um homem que só lhe trouxe benefícios, por alguém que lhe ofereceu mais terras e mais dinheiro. Isso sugere uma grande cobiça. Ele não perderá a recompensa. Dermott também não. — Em seguida, Sílvio dirigiu-se a Tomás, que cavalgava do outro lado:— Chame Martin. Precisamos saber onde ele está.

Tomás assoprou duas vezes uma trompa de caça e logo se ouviu a resposta de outra.— Isso quer dizer que algo foi encontrado? — Revan indagou.— É bem provável. Quando Martin sai em busca de pistas, fica cego e surdo diante do resto até

encontrá-las. O fato de ter respondido indica que ele pode ter encontrado algo. Escute... Outro chamado. Martin está indicando o local onde ele está. Vamos!

Sílvio esporeou o cavalo e saiu a galope, seguido de perto por Revan e pelo resto do grupo. Urgia descobrir para onde MacKinnon levara Tess e ir atrás deles sem demora.

Martin estava no meio da floresta. Esperou os companheiros se aproximarem e desmontarem.— Três cavaleiros passaram por aqui — Martin mostrou as pegadas para Sílvio.— Ora, eles foram para o leste! — Sílvio examinou as marcas com cuidado. — Seguiu as pistas a partir

daqui?— Sim. E elas continuam nesta direção. — Martin passou a mãos nos cabelos negros. — É estranho.

Por aqui darão muitas voltas para chegar à fortaleza de Douglas.— E nenhuma para chegar ao castelo de Thurkettle — Revan deduziu.— Era nisso que eu estava pensando — Sílvio murmurou.— Mas por quê? O castelo de Douglas é muito mais perto, e o traidor também está oferecendo uma

recompensa para quem levar Tess para ele.— O prêmio de Thurkettle pode ser maior. Para ele, a morte de Tess tem duplo valor. O silêncio e a

fortuna dela. — Sílvio rangeu os dentes. — MacKinnon escolheu Thurkettle para ser o executor de Tess.— Thurkettle não lhe concederá uma morte rápida — Revan sussurrou, com um aperto no coração.— Ele tem a reputação de ser um homem muito cruel quando se zanga. Esse foi um dos motivos por

que hesitei em mandá-la morar com ele.— E por que a deixou ir? — Revan não evitou culpar Sílvio. — Mesmo se ele não tivesse tentado

matá-la durante esses cinco anos, a escolha não foi das mais felizes.— A decisão foi da mãe de Tess. Ela deve ter pensado que seria bom para a filha crescer junto com

Brenda, uma moça da mesma idade. Eileen podia não gostar do irmão, mas não tinha razões para acreditar que Fergus pudesse fazer mal à própria sobrinha. Ainda havia a questão da herança. Thurkettle controlava o dinheiro e as propriedades. Se resolvêssemos intervir, o rei e a corte dariam ganho de causa a ele, por ser tio materno.

— Peço-lhe perdão — Revan cocou a nuca. — O nervosismo fez com que eu culpasse quem estava mais próximo.

— Não precisa se desculpar. Também tenho vontade de lançar a culpa em outra pessoa, mas ela sempre volta para a minha cabeça. Bem... — Sílvio olhou para o rastreador. — Sei que detesta viagens longas, Martin, mas não poderei dispensá-lo. Esta é uma missão da maior importância.

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— Não me importarei em acompanhá-los. Terei a maior satisfação de ajudar Contessa. — Martin sacudiu a cabeça e foi até seu cavalo. — Em vez de pistas eu poderia ter encontrado a senorita. Uma pena não lhe ter ensinado a se orientar.

—Martin, esse seria um encargo destinado ao fracasso. Tess quase se perdeu ao nascer — Sílvio comentou com amargura e montou em seguida. — Vamos. Precisamos cavalgar o máximo até o anoitecer. Depois seremos obrigados a diminuir o passo dos cavalos. Revan, nós a traremos de volta. Não é agradável dizer isso, mas a tendência de Thurkettle pela crueldade poderá representar uma vantagem.

— Como assim?— Thurkettle não a matará de imediato. Vai querer saborear uma provável vitória. Planejar a melhor

maneira de fazer Tess pagar pelos transtornos causados lhe tomará um certo tempo. E é disso que precisamos.

Revan nem queria pensar o que Tess sofreria nas mãos de Thurkettle.— Vamos, Sílvio. Não desperdicemos o pouco de claridade que ainda temos.Revan esporeou o cavalo de volta ao castelo de Thurkettle, de onde ele e Tess haviam fugido fazia

menos de um mês.

— Faça o favor de não gritar, ou teremos de amordaçá-la de novo. E a senorita não poderá tomar nenhuma gota de água.

Tess não teve alternativa exceto obedecer a Dermott. Nem que quisesse gritar, não conseguiria. A boca e a garganta estavam muito secas. A água que o ex-soldado de Sílvio lhe gotejava na boca teve o sabor de néctar divino.

Dermott afastou-se, e Tess olhou ao redor. O luar não conseguia atravessar totalmente as copas frondosas das árvores. Alguns raios pálidos iluminavam pontos esparsos do solo. Os homens haviam resolvido parar para dar água aos animais e deixá-los descansar um pouco. Tess sentou-se no chão, dolo-rida e exausta, pensando em uma maneira de fugir. Fitou a corda que lhe prendia os pulsos e ergueu devagar as algemas grossas de cânhamo até a boca.

—Não perca tempo em tentar roer as cordas. — MacKinnon agachou-se a seu lado. — Será entregue nas mãos de seu tio, antes que consiga livrar-se delas.

Tess amaldiçoou MacKinnon e fitou-o com ódio. Concordava que a tentativa para libertar-se fora uma tolice! Mas o pior era agüentar a ironia.

— Eu só tenho um tio na Escócia. Silvio Comyn.— Ora, Thurkettle é irmão de sua mãe.— Ele não faz parte da minha família. É um assassino, ladrão, mentiroso e traidor. Ele deveria ser seu

parente. Ambos são muito parecidos. — Tess engoliu um grito de dor ao receber um tapa no rosto. — Bater em mim não vai mudar a verdade. Nem a minha morte vai alterar o seu destino. O senhor é um homem morto. Seria mais sensato se começasse a rezar. Peça para que o rei, a quem pensa trair, seja misericordioso e não o faça pagar muito caro pela sua traição.

Tess ficou satisfeita ao perceber o brilho de medo que toldou o olhar de MacKinnon.— Jaime II é que pode se considerar um defunto. Douglas será o rei, mas a senhora não estará viva

para testemunhar o fato. Dizem que Thurkettle está furioso. E quanto maior seu ódio, maior a crueldade. A senhora terá uma morte lenta.

O pavor de Tess desde que fora capturada só aumentava, tomando-se difícil lutar contra ele. Pediu a Deus forças para morrer com dignidade. Não pretendia dar a Thurkettle e a MacKinnon a satisfação que eles prognosticavam. Se aquele destino fosse inevitável, seria importante enfrentá-lo com galhardia.

Ao voltar-se para MacKinnon, Tess esqueceu a resposta cortante que pensava em verbalizar. Ele estava de olhar fixo não em seu rosto, mas em suas pernas. O vestido se rasgara bem acima dos joelhos. A expressão de MacKinnon era inconfundível. Ele imaginava outra maneira de humilhá-la. Tess retesou-se quando MacKinnon lhe acariciou a panturrilha.

— Já vi que a senhora entendeu as minhas intenções. Um pequeno prazer, antes de continuarmos rumo ao patíbulo que a espera.

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— Prazer? Com um traidor? Ora, pare de fazer graça, sr. MacKinnon!— Pois eu lhe digo que me achará muito mais satisfatório do que o lacaio pálido com quem vem se

deitando.— Mas quanta bazófia! — Tess preparou-se para o golpe que não veio.Dermott agarrou o pulso de MacKinnon, evitando o tapa.— Deixe-a, MacKinnon! — Dermott ordenou. — Não podemos perder tempo com isso.— Estamos muito adiante dos nossos perseguidores. Vamos lá, meu amigo. O senhor também terá sua

vez. Não vai me dizer que não lhe agradará semear neste campo.— É claro que eu gostaria. Ela é bonita e limpa. Mas o risco não vale a pena. A minha cabeça é mais

importante do que alguns momentos de prazer.— O senhor resmunga mais de que uma mulher velha, Dermott! — MacKinnon levantou-se.— É mesmo? Melhor isso do que enfrentar as conseqüências depois. Não se trata apenas de

desperdiçar um tempo precioso. Existe um fator que na certa ainda não mereceu a sua consideração. Talvez possamos perder essa corrida.

— O que quer dizer com isso? Saímos muito antes dele.Dermott deu de ombros.— Sempre existe a possibilidade de sermos atrasados por algum imprevisto. Não estaremos seguros até

chegar ao castelo de Thurkettle. Eu lhe faço uma pergunta, MacKinnon. Se falharmos e formos apanhados pela família e pelo amante dela, acha que vão gostar de encontrá-la ferida e estuprada? — Der-mott viu MacKinnon franzir o cenho. — Nem um pouco, não é verdade? Abafe seus desejos, MacKinnon. — Dermott agarrou Tess pelo braço e a ergueu. — Se a quer tanto, peça a Thurkettle permissão para deitar-se com ela. Ele poderá lhe conceder um brinde por havê-la trazido.

— Ah, com certeza. — MacKinnon acariciou o rosto de Tess. — Uma pena, rameira espanhola. Nossos momentos de prazer terão de esperar.

Tess ia cuspir em MacKinnon, mas ele se afastou. Dermott amordaçou-a de novo e jogou-a sobre a sela. Teriam de cavalgar mais devagar por causa da escuridão. Tess pediu a Deus um milagre. Embora soubesse que milagres não existiam, admitiu que somente a intervenção divina poderia salvá-la do destino cruel que a esperava.

Capítulo X

Fergus Thurkettle, com um sorriso largo, rodeou a sobrinha pela terceira vez. Tess fazia um grande esforço para ficar ereta. Haviam cavalgado por um dia e meio, quase sem parar. Exausta, sentia as pernas trêmulas. O cansaço não lhe permitia ter medo. Felizmente.

— Um bom trabalho, MacKinnon. — Fergus olhou para os dois homens que estavam largados nas cadeiras. — Muito bem, Dermott. Tenho certeza de que Douglas os recompensará muito bem.

— Achei que o senhor fosse nos recompensar. — Dermott tomou um gole de vinho do cálice de prata. — Por isso que viemos até aqui. A distância até lá era bem menor. Ela vale muito mais para o senhor de que para Douglas.

Fergus agarrou Tess por um braço e, com rudeza, fez com que a sobrinha se sentasse. Em seguida, ocupou um lugar na cabeceira da mesa. Exceto eles quatro, o grande salão estava vazio. Lamentou ter mandado todos saírem. Se seus soldados estivessem presentes, ele poderia ordenar a execução de Dermott e de MacKinnon. Assim seu dinheiro estaria a salvo. Se os pagasse, seria difícil reaver a recompensa.

— O que o faz acreditar nessa hipótese? Para ser franco, com a batalha final tão próxima, o silêncio de Tess já não é de tão grande importância.

Dermott sacudiu a cabeça.

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— Embora eu torça pela vitória como qualquer um de nós, sempre existe a possibilidade de sermos os perdedores. E isso faria o silêncio dela ainda mais importante. Sua sobrinha poderia testemunhar contra o senhor.

Tess fitou o tio com aparente calma. Sabia que com recompensa ou sem ela, a morte seria inevitável. Mas continuava determinada a não dar a Thurkettle o prazer de vê-la desesperar-se.

— Talvez a minha sobrinha se lembre dos laços de parentesco e mantenha o silêncio em prol do sentimento de lealdade familiar.

— Ou talvez não — Tess respondeu.— Seria capaz de trair o único irmão de sua mãe?— Sim, exatamente como ela faria se estivesse no meu lugar. A traição é um crime que rompe qualquer

laço de parentesco. Minha lealdade é para com o nosso rei. Mesmo que o senhor não fosse a cobra venenosa que é, meu dever seria dirigido a Jaime II, antes de qualquer outra coisa.

— Está arriscando seu pescoço com essas palavras.— Não sou tão idiota para acreditar que eu obteria clemência com um juramento de silêncio. O senhor

quer me matar por outras razões além do que sei a seu respeito. Não chegarei diante de Deus com uma mentira manchando minha consciência.

— A senhora sempre teve orgulho demasiado para quem não é nada. — Thurkettle serviu-se de vinho e tomou um trago. — Dermott, o senhor não me trouxe Halyard. A recompensa terá de ser diminuída. Ele poderá me incriminar.

Dermott lançou um olhar duro na direção de Thurkettle.— Quero o prêmio total e talvez até um pouco mais. Se não lhe interessar, eu a levarei para Douglas.— Por que ele pagaria mais do que eu?— Para conseguir a fortuna da qual ela é possuidora. O compromisso de Tess com o sobrinho dele foi

apenas um estratagema para assegurar ao senhor o direito de ir atrás dela e do amante. Douglas não queria o casamento. Pensava apenas na morte da senorita. Quando souber do valor da herança, com certeza um matrimônio será realizado antes de qualquer execução. Ele e o sobrinho ficarão com toda a riqueza que o senhor ambiciona tanto. Douglas não ficará nem um pouco satisfeito com a trapaça que o senhor cometeu em nome dele.

Thurkettle agarrou o cálice com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.— O senhor está assumindo uma atitude idiota. Lembre-se de que está dentro das minhas terras. Eu

poderei mandar lhe cortar a garganta. É só chamar meus homens.— Chame-os. Depois terá de explicar a Douglas como foi que um dos soldados dele morreu dentro do

seu castelo.Tess analisou o tio. O medo aumentava o ódio dele. Não se poderia precisar se esse receio de Douglas

agiria em favor dela. Contudo era sempre bom conhecer a fraqueza do inimigo.— Embora seja interessante escutar traidores discutirem entre si, o senhor não me permitiria beber

alguma coisa? — Tess encarou com doçura os olhares fulminantes dos três homens. — Se não fosse pedir muito, eu gostaria também de ter os meus pulsos desatados.

— Acredito que ainda não percebeu o perigo que está correndo, menina. — Fergus estreitou os lábios e deu um talho na corda com sua faca.

Tess esfregou a pele machucada e sentiu-a formigar.— Percebi muito bem. O senhor pretende me matar, meu tio. Minha única dúvida é como tenciona

fazê-lo. — Ela segurou o cálice. — Por favor, poderia tomar um pouco de vinho? Thurkettle acedeu ao pedido, sem deixar de fitá-la.— Ou a senhora tem uma capacidade de enfrentar o perigo bem maior de que a de muitos homens ou

tem a esperança idiota de que poderá ser resgatada. Seu destino já foi selado, Tess. Mesmo se aqueles amaldiçoados a quem chama de parentes e o assecla do rei vierem atrás da senhora, serão mortos antes de ultrapassar os meus portões.

— O senhor é um anfitrião maravilhoso. As pessoas sempre se sentem confortadas no seio dos seus familiares.

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— Essa sua maldita língua logo ficará muda.Tess não chegou a responder. Brenda entrou no grande salão, deslumbrante como sempre. Dermott e

MacKinnon avaliaram a moça com admiração e olhares cobiçosos. Eles ignoravam que Brenda poderia deitar-se com um homem em uma noite e cortar-lhe a garganta ao raiar do dia, se isso lhe fosse conveniente.

Fergus apresentou a filha a Dermott. Brenda não perdeu tempo. Flertou com Dermott, apesar de ele ser grande e sem graça. Depois de alguns instantes, ela olhou para a prima. E seu olhar de triunfo deixou Tess apreensiva.

— Ah, vejo que a menina ingrata foi trazida de volta. — Brenda sentou-se à mesa.— Isso mesmo. — Fergus descontraiu-se. — MacKinnon a trouxe para mim.Brenda, convidativa, sorriu para MacKinnon e dirigiu-se ao pai.— Acredito que o senhor pensa em recompensá-lo. Pode contar comigo, papai.MacKinnon cumprimentou-a com um gesto de cabeça.— Sita. Brenda, é uma honra contar com o seu beneplácito.— O senhor não terá de esperar muito — Tess comentou. — Brenda concede seus favores com

freqüência e magnanimidade.— Prima, tenho a impressão de que esses seus pequenos insultos patéticos a fazem se sentir corajosa.— Insultos? Estou falando a verdade. Será que nem mesmo pode reconhecer mais isso?— Espertinha. — Brenda fitou o pai. — Por que Tess está sentada à nossa mesa, bebendo do nosso

vinho, como se fosse alguma convidada? Considerando-se como ela enganou o senhor e os seus homens, deveria ficar em local mais seguro. — Brenda puxou da manga um lenço delicado de renda e levou-o ao nariz. — Antes de mais nada, papai, deveríamos pensar na nossa saúde. Tess está muito suja.

— Peço-lhe perdão, prima. Cavalgar por quase dois dias pode deixar a aparência de qualquer um inadequada. — Tess olhou para si mesma. — Tem razão. Estou mesmo imunda. Estranho que sir MacKinnon não tenha reparado nisso quando tentou fazer amor comigo. Mas é claro, ele não deve ser muito seletivo em questão de gosto.

Tess percebeu que Brenda corava, pois entendera a crítica implícita, e divertiu-se quando a prima fitou MacKinnon com irritação.

Brenda não gostava de partilhar nada, ainda mais quando se tratava de Tess, por quem não tinha a menor consideração. Apesar da sentença de morte que pairava sobre a cabeça de Tess, ela encontrou satisfação na travessura.

— Já estamos fartos dos seus jogos de palavras, Contessa — Fergus declarou. — Dermott, chame os guardas. — Sorriu com ironia. — A senhora ficará na cela do seu amante. Não vai demorar, e ele virá lhe fazer companhia.

— Ele a encontrará morta, quando chegar — Brenda antecipou-se. — Querida prima, não lhe passou pela cabeça que Revan virá para salvá-la, não é?

— Seu pai e eu já discutimos sobre o assunto — Tess retrucou, altiva, mas Brenda a ignorou.— MacKinnon e Dermott são homens de confiança de Douglas — Brenda afirmou. — Os que

pensarem em ajudá-la irão para um dos castelos de Douglas. Quando os idiotas perceberem o erro, os vermes já estarão rastejando por baixo da sua mortalha, minha prima.

Tess ficou abalada com as palavras cruéis. Dois guardas corpulentos entraram para levá-la. Ainda não havia pensado na dificuldade que Revan e o tio teriam para descobrir seu paradeiro. Brenda tinha razão. Pensariam que ela houvesse sido levada para o castelo de Douglas.

Esse detalhe roubaria qualquer chance de ser resgatada. Foi bem difícil manter a postura, enquanto os guardas a arrastavam para a masmorra.

Sílvio deteve a todos quando o castelo de Thurkettle foi avistado.— Por que paramos? — Revan perguntou.— Thurkettle está à nossa espera. Ele é pior do que uma cobra pronta para o bote. — Sílvio fitou a

fortaleza ao longe. — Não será fácil pegá-lo de surpresa.

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Revan mexeu-se na sela. Teve de concordar com Sílvio. Se não estivesse tão perturbado, ele mesmo teria pensado nisso. Era muito difícil ser coerente quando Tess estava tão próxima e tão necessitada de auxílio. Se não fosse tarde demais.

Revan tratou de afastar aquele pensamento terrível. Teria de acreditar que Tess ainda estava viva. Garantiu a si mesmo que Thurkettle e sua corja pagariam caro por cada ferimento que houvessem infligido à sua amada e por cada instante de pavor que ela houvesse agüentado.

— Tomás, está na hora de ver se o nosso dinheiro foi bem gasto — Sílvio falou.— Do que está falando? — Revan quis saber.— Temos um partidário nosso dentro do castelo de Thurkettle. Pelo menos, ele recebeu um extra para

desempenhar o papel a contento.— Ele ficou aí durante o tempo todo em que Tess esteve com Thurkettle?— Não. E não precisa me dizer que foi um erro. Sei disso. Tess nunca me revelou o que foi obrigada a

suportar aqui.— Também a mim não disse muita coisa. Mas o que eu soube já foi mais do que o suficiente. — Revan

observou Tomás desmontar e caminhar rumo ao castelo. — Como Tomás falará com ele?— Nosso homem foi avisado para nos ajudar em eventos como este. Com a chegada de Tess, ele deve

imaginar que viríamos atrás dela. Assim mesmo tenho minhas dúvidas quanto ao sujeito. Ele não nos disse que Thurkettle tentou matar Tess, e está sendo pago há muito tempo. Pelo menos o último acidente ele deve ter testemunhado.

— Pode não ter entendido o jogo de Thurkettle. Tess mesma só se convenceu quando foi forçada a fazê-lo.

— Foi por Deus que minha sobrinha sobreviveu às tentativas de assassinato. Meu irmão deve estar me amaldiçoando no túmulo por eu ter deixado sua única filha nas mãos de um assassino.

— O senhor fez o que lhe foi pedido. Como Thurkettle tinha a custódia da fortuna de Tess, também tinha o direito de cuidar da sobrinha. Não adianta lamentar o passado. Esperemos que Deus nos ajude a encontrá-la sã e salva.

— Revan, Deus os tem favorecido. Apesar de sofrer uma perseguição ferrenha, conseguiram chegar a Donnbraigh sem um arranhão. O senhor e Tess têm sido bafejados pela sorte. Desta vez, ela também não nos faltará.

— O senhor tem razão. Deus não estava disposto a levar Tess. Seria uma bênção se Ele a fizesse saber que o final seria feliz, antes de fazê-la suportar tantos percalços.

— É uma imprudência criticá-Lo no momento. Precisaremos de toda e qualquer ajuda.Revan murmurou uma desculpa. Nada mais poderia ser feito a não ser esperar o retorno de Tomás. A

impaciência deixava-o irritado, mas teria de conter-se.Quando viu Tomás de longe, teve vontade de gritar para que o outro se apressasse. Cerrou os dentes e

enterrou as unhas nas palmas. Disse a si mesmo que Tomás não andaria com aquela calma se a missão houvesse fracassado.

— Nosso homem estava lá? — Sílvio perguntou, assim que Tomás chegou perto deles.— Ele estava esperando. Preocupado, pensando que pudéssemos ter ido a um dos castelos de Douglas.— E Tess?— Ela foi trazida há cerca de duas horas. Nós andamos mais depressa do que os patifes.— Ele poderá nos levar para dentro?— É o que pretende fazer, mas teremos de esperar até o anoitecer. — Tomás montou e fez sinal para

que o seguissem. — Precisaremos ir até a muralha oeste. Há uma pequena porta na lateral.Aquilo não fazia sentido para Revan.— Uma porta? Por que ele iria enfraquecer as defesas?— Acredito que Fergus não sabe da existência dessa porta. A abertura é usada por Brenda para receber

os amantes não aprovados pelo pai. Fergus faz vistas grossas para os mais abonados. Matthew disse que o local é bem disfarçado e que só perceberemos onde é depois de ele abrir a porta. Graças a Brenda, teremos a possibilidade de entrar.

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— O homem pode estar querendo nos prender em uma armadilha— Revan comentou, já montado e ao lado de Sílvio, enquanto trotavam para a direção indicada.

— Não se pode descartar a idéia. — Tomás deu de ombros. - Ah, esqueçamos isso.— Nunca se pode confiar demais em um homem que pode ser comprado.— Esse provérbio é muito radical, Revan. Matthew é um bom sujeito.— Mas exige pagamento. Se quisesse, ele nos ajudaria somente por causa da honra.— Honra não enche a barriga de ninguém. Matthew é um homem pobre, mas prático. Como ele mesmo

diz, nós temos condições de lhe dar uma compensação pelos riscos que está assumindo.— Matthew disse onde Tess se encontra e como ela está passando?— Ele não tem um posto tão elevado que lhe permita ficar sabendo dos fatos de imediato — Sílvio

explicou.— Nosso Matthew é mais esperto do que pensamos — Tomás disse. — Ele sabe onde Tess está e tem

certeza de que ela não foi ferida. Chegou muito cansada, porém Matthew não viu ferimentos nem hematomas. Tess se manteve o tempo todo de cabeça erguida. Foi levada para o calabouço, onde ficará até Thurkettle decidir como ela deverá morrer.

— Desgraçado! — Sílvio não se conformava. — Deve estar planejando alguma coisa que lhe dê prazer. — Por acaso Matthew sabe se Thurkettle está aguardando a nossa visita e se preparou para isso?

— Thurkettle acho que fomos para uma das fortalezas de Douglas, embora esteja preparado para qualquer eventualidade. Isso pouco importa. Matthew acredita que muitos fugiriam ou talvez se rendessem se tivessem oportunidade. Ele conta com o apoio de numerosos homens. Thurkettle inspira mais medo do que lealdade. Se capturarmos ou matarmos Thurkettle, ninguém pensará em vingá-lo.

— Matthew disse isso? — Revan continuava desconfiado. — Ah-ah! Também não gosto de depender de uma só pessoa — declarou Sílvio. -— Por outro lado, sinto que Matthew é confiável. Temos de levar em consideração mais uma coisa. Entre o bando de cães hidrófobos que cercam Thurkettle, há os que não desejam participar do cruel assassinato de uma jovem. Além do mais, Tess viveu aqui por cinco anos. Pode não ter sido bem tratada pelos parentes, mas ela guarda boas recordações dos mais pobres que habitam o castelo.

— Diante da crueza das atitudes de Fergus e de Brenda, Tess deve ter sido um toque raro de bondade para muitos deles — disse Revan.

— Ali está a muralha—Tomás avisou-os.—Matthew falou a verdade. Não vejo nenhuma porta.— Tem certeza de que nos trouxe para o lugar certo? — Sílvio perguntou com ironia.Tomás respondeu com uma referência sarcástica à idade de Sílvio. Revan presenciou uma amável troca

de farpas. Os outros que os acompanhavam também se apressaram a entrar na brincadeira. Reconheceu neles o humor de Tess e desejou poder participar daquele aparente otimismo. Mas a angústia não lhe permitiu o menor traço de alegria. Enquanto Sílvio e seus homens pensavam em vitória, Revan temia que algo pudesse sair errado.

Nunca fora pessimista, mas era a vida de Tess que estava em jogo. Sua família preocupava-se com ela, porém não se deixava abater diante do perigo. Aquele era um sentimento surpreendente e perturbador. Revan não conseguia acalmar-se. Só pensava em como seu treinamento de cavaleiro poderia ajudar a salvar Tess.

— Vejam — Tomás murmurou.Revan foi arrancado de seus devaneios e fitou a muralha. A continuidade das pedras foi ligeiramente

alterada, e uma fresta de luz apareceu. Matthew não mentira a respeito da porta. Restava comprovar que não se tratava de uma armadilha.

— Desmontem — Sílvio ordenou a todos. — Abaixem-se e entrem um por um. Antes de cruzar a clareira, assegurem-se de que as sentinelas da muralha já tenham passado. Quanto mais tarde for dado o alerta, melhor. Irei primeiro — ele avisou Tomás, apeou do cavalo e agachou-se na beira da mata. — Revan e Tomás, venham atrás de mim, mas me esperem entrar.

Abaixado ao lado de Tomás, Revan observou Sílvio adiantar-se. Sílvio Comyn, como os outros, vestia roupas escuras, o que tornava difícil distingui-lo perfeitamente. Mas ele ficou visível quando chegou à

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porta entreaberta e parou diante de uma pessoa que ali se encontrava. Assim que Sílvio desapareceu, Revan começou o trajeto ao lado de Tomás.

Ninguém os esperava quando eles chegaram, o que aumentou a apreensão de Revan. Tomás entrou e puxou-o para dentro. Revan ficou mais aliviado ao ver Sílvio sentado a uma mesa com mais três soldados, nos fundos do defumadouro. Apressados, ele e Tomás caminharam até o pequeno grupo. Foram apresentados ao grisalho Matthew e aos outros.

— Tudo continua igual — Sílvio explicou, quando os dois se sentaram. — Tess ainda está na masmorra. Thurkettle, o crápula, come e bebe ao lado dos seus dois amigos traidores, Dermott e MacKinnon.

— Como poderemos chegar até eles? — Revan indagou. — E o túnel que liga a estrebaria ao calabouço?

— Trancado.— Ora, Senhor... — Revan ficou desapontado, embora o fato fosse previsível.— Fergus o bloqueou logo depois de que o senhor fugiu por ali com a sobrinha dele — Matthew

relatou. — Thurkettle receou que a passagem pudesse ser usada como via de ataque em vez de saída.— Bem, eu teria feito o mesmo. Mas conservei uma ligeira esperança de que Thurkettle ainda não

tivesse pensado nisso.— Fergus é muito esperto quando sente cheiro de perigo.— Então, qual é o seu plano? — Revan olhou de relance os parentes de Sílvio que continuavam a

entrar pela passagem de Brenda. Nenhuma das sentinelas notou o que estava acontecendo.— Esperaremos até estarmos todos reunidos — Sílvio respondeu. — Matthew dará o sinal. Os que o

apóiam têm um entretenimento preparado. Uma discussão que assumirá proporções maiores até desandar em uma briga. Os guardas ficarão atentos à balbúrdia. Metade dos nossos cavaleiros irá para as muralhas, e o restante entrará na fortaleza para pegar Tess e Thurkettle.

— Quantos homens Thurkettle tem disponíveis no momento?— Digamos que a vantagem dele é de dois para um. Há uma dezena de mercenários que lutarão até vê-

lo dominado ou morto. Esses não se preocupam em participar de um crime, nem mesmo que seja o de traição. O passado deles já lhe dá o direito à forca. Thurkettle tem cinco homens que ficarão ao seu lado. Teremos de matá-los para chegar até ele. A maioria dos outros soldados se renderá facilmente. Eles não são muito leais ao canalha e se preocupam com o futuro tenebroso para onde Thurkettle os arrastará. Alguns nem mesmo lutarão.

— Quantos estão vigiando Tess?— Nenhum. Isso não lhes parece necessário, e eles não possuem muitos homens. Douglas exigiu

muitos soldados e ainda há vários que estão procurando pelo senhor e por Contessa. Sílvio deu um tapa amigável nas costas de Revan.

— Viu só, meu filho? Boas novas. A sorte estará conosco esta noite. Libertaremos Tess em pouco tempo e ainda levaremos um traidor para o rei.

— Eu só acreditarei nisso quando tudo estiver resolvido. Não consigo compartilhar as suas esperanças.— Eu já havia notado isso. O senhor é muito pessimista para quem fala em casamento apenas em

termos de dever e de honra.Revan maldisse a perspicácia de Sílvio.— Para mim, essas palavras têm grande significado.— Já percebi isso também — Sílvio comentou, com um sorriso presumido.Revan aborreceu-se por haver revelado a agitação que o atormentava. Não queria discutir os próprios

sentimentos com a família de Tess.O último dos Comyns entrou, e Matthew deu o sinal. Revan abaixou-se ao lado de Tomás e de Sílvio e

os três rumaram para o castelo, seguidos pelos demais. Revan prometeu a si mesmo que pensaria melhor a respeito de seu compromisso com Tess. Não lhe agradavam as novas emoções que o perturbavam tanto. Elas lhe roubavam a sensatez e a destreza. O casamento com Tess poderia fazê-lo perder a única coisa da qual se orgulhava. Sua habilidade de cavaleiro.

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— O que está achando dos seus aposentos, prima? Tess fitou Brenda com desdém.— Poderiam ser um pouco mais limpos.Brenda sorriu, e Tess desejou estar livre para dar-lhe um soco no rosto.Brenda gostava de ver o sofrimento das pessoas. Provocar quem estivesse acorrentado à parede e

condenado à morte era um dos passatempos prediletos da filha de Fergus. Tess jurou a si mesma que não se deixaria abalar por nenhum ato ou comentário da prima. Não lhe daria pelo menos esse prazer.

— É um pouco escuro aqui embaixo. — Brenda encostou-se na grade de ferro. — Dizem que pouca luminosidade é melhor para refletir sobre os erros cometidos.

— Para você, certamente seriam necessárias milhares de horas de reflexão.— Essa sua agudeza de espírito é tediosa. Homens não gostam de língua afiada. Uma jovem da sua

classe não pode se permitir um excesso de defeitos. Isso torna ainda mais difícil prender a atenção de um homem.

Tess gostaria que Brenda a deixasse em paz. Aquele assunto não lhe agradava. Não tinha suficiente confiança em si mesma para enfrentar uma eventual provocação que envolvesse Revan.

— Não me preocupo com isso.— Apenas um homem em dezoito anos de vida? — Brenda deu uma risada caçoísta.— A maioria das mulheres se satisfaz com um homem. O seu excesso de cobiça pode ser considerado

uma característica de rameiras. — Tess percebeu que irritara Brenda. Não era uma atitude das mais inteligentes, mas nem por isso se deteve. — A maior parte dos homens também fica satisfeito com apenas uma mulher.

— Será? Sir Revan me achou muito atraente.— Homens aceitam tudo o que lhes é oferecido. Com freqüência, a mente deles é comandada pelas

entranhas.— Uma mulher pode conquistar qualquer homem apelando para o seu instinto, como eu fiz com

Revan. Se meu pai não tivesse ameaçado a vida dele, Revan ainda estaria na minha cama. Na certa, ele a acha uma substituta insignificante. Mas como você mesma disse, homens aceitam tudo o que lhes é oferecido.

Tess lutou para não levar em consideração aquele ataque frontal. Revan afirmara que nunca fora amante de Brenda. Não deixaria sua prima sabotar a confiança que depositava nele. Reconheceu que não seria fácil. Tinha pouca fé em si mesma. A falta de palavras de amor piorava o quadro. E com certeza, Brenda sentira aquela fraqueza.

— Brenda, se pretende falar sobre cada homem que foi para a sua cama, será melhor avisar seu pai que ele terá de adiar a minha morte em pelo menos um ou dois anos.

— Apesar dessa impressão de que está se divertindo, acredito que esteja com ciúme. Se as circunstâncias não a tivessem forçado a ficar ao lado de Revan e longe do mundo, ele nem mesmo a teria olhado duas vezes. A qualquer momento em que estivermos juntas, prima, os homens sempre escolherão a mim. — Brenda alisou os quadris. — Homens gostam de mulheres fornidas.

— Sua futilidade é extraordinária. Ela me deixa sem palavras.— Pouca coisa nesses cinco anos a fez ficar quieta. Mas em breve ficará calada para sempre. Será

interessante comprovar a maneira como meu pai acabará com essa sua vida inútil. Meu pai é muito inteligente. Muitas vezes eu me espantava com o tempo que ele podia manter um prisioneiro, apesar do sofrimento que lhe impunha. Será fascinante ver o que esse seu corpo frágil poderá suportar.

— Ficarei feliz em poder lhe proporcionar o Maximo de diversão. Eu ficaria muito chateada se você, minha prima, se aborrecesse.

— Muita bondade sua. Sinto que não me desapontarei. Não acredito que Revan lhe sobreviva, mas pode ficar tranqüila. Eu me empenharia para que as últimas horas dele sejam bem agradáveis. Revan e eu tornaremos a saborear a paixão a que nos entregávamos antes que uma lealdade idiota o obrigasse a fugir.

— Ser leal ao próprio rei não é idiotice, Brenda.— Mas é, com certeza, quando o rei nos dá tão pouca recompensa.

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— Revan preserva e dá muito valor à honra. O mesmo não se pode dizer de você e de seu pai, notório traidor.

— Traidor, talvez. Mas vivo e, em breve, muito poderoso. Ainda existe a chance de Revan prestar lealdade a meu pai, quando enxergar que luta por uma causa perdida. Então poderei aproveitar por muito mais tempo a sua habilidade de amante. Seria uma pena perder para os vermes um homem tão atraente e caloroso.

— Acredito que Revan iria preferir os vermes a um traidor assassino cuja filha é uma prostituta.Tess deu um leve sorriso quando Brenda, furiosa, endireitou-se e agarrou as barras de ferro da cela.

Tess chegou a pensar se não teria sido melhor agradar a prima em vez de insultá-la. Bobagem. Não havia o menor vestígio de bondade no caráter de Brenda. Implorar somente aumentaria seu prazer.

— Pode ser que meu pai decida deixá-la acorrentada para apodrecer aí mesmo. Com um pouco de água de vez em quando para ter certeza de que a morte será penosa. Eu adorarei vê-la morrer aos poucos, imersa na própria fetidez. — Brenda virou as costas e saiu.

Tess teve de conter-se para não chamá-la de volta. As imagens que Brenda se encarregara de desenhar eram horripilantes. Tess começou a tremer e a suar frio. Rezou para que Thurkettle não tivesse tempo de brindar a filha com esse tipo de execução. Pediu a Deus para que Fergus quisesse certificar-se da morte da sobrinha, antes de partir para a guerra contra o rei.

Revan foi o primeiro a entrar no castelo e sentiu enorme satisfação ao encontrar MacKinnon e Brenda. Os dois preparavam-se para subir. Ansioso para lutar com MacKinnon, alegrou-se ao vê-lo desembainhar a espada.

— Mate-o, idiota! — Brenda ordenou a MacKinnon. — Assim poderá ficar comigo.— Essa não é uma grande recompensa — Revan falou para ela, sem tirar os olhos de MacKinnon. —

Quase todos os homens da Escócia provaram dessa delícia.— Mate-o! — Brenda gritou. — Corte-o ao meio, MacKinnon, e mostre-me que não é covarde.— Cale-se, rameira dos infernos! — MacKinnon fitou Revan com ódio. — Não me pegará vivo,

Halyard. Não enfrentarei a fúria do rei. Resolveremos o caso aqui mesmo. Terá de matar-me ou me deixar livre.

— Será um prazer liquidá-lo. Pagará caro pelo que fez com Tess.— Tanta coisa por causa de uma magricela de língua afiada. Francamente! Mas o senhor será bem-

vindo ao que restou dela.— Se o senhor a matou... — Revan seria capaz de estrangulá-lo com as mãos.— Não. Eu deixei a tarefa para Thurkettle. Ele é engenhoso nesses aspectos. Devo lhe confessar,

Halyard, que foi uma longa jornada até aqui. Fiquei com vontade de provar o que o senhor protegia com tanto empenho. Foi tão doce que algumas vezes me permiti experimentar o sabor até deixá-la aos pés de Thurkettle.

O ódio de Revan atingiu níveis insuportáveis, mas o controle era fundamental. Se deixasse a ira cegá-lo, poderia cometer um erro fatal. Era exatamente o que MacKinnon planejava. Tratava-se de um truque antigo. Provocar o adversário até que este, cego pelo rancor, perpetrasse alguma imprudência.

— Se o senhor fez alguma coisa com Tess...— Digamos que, agora, o ancoradouro da sua meretriz não esteja tão aconchegante. Acho que o

alarguei um pouquinho. — MacKinnon deu uma risada antes de investir.Revan aparou o golpe com um grito de fúria. Mas era preciso evitar que o ódio o fizesse agir de

maneira impensada. Lutou, ignorando os gritos de Brenda de apoio a MacKinnon. Rezou para que o patife estivesse mentindo.

O combate foi entre iguais. Revan temeu que a luta se prolongasse até que ambos caíssem de exaustão. Mas em minutos, MacKinnon deu um golpe desastrado. Revan revidou e empurrou o adversário até o encurralar na parede. MacKinnon lutou para livrar-se, porém Revan puxou o punhal e enterrou-o na garganta do traidor.

Ele recuou, e o corpo de MacKinnon deslizou até o chão. O estertor da morte chegava ao fim, quando Revan ouviu um farfalhar de saias. Virou-se instantaneamente. Brenda vinha ao seu encontro com um

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punhal na mão. No instante em que ela investiu, Revan torceu-lhe o pulso e a arma caiu no chão. Ele ignorou as ameaças e as imprecações e a arrastou até o grande salão.

Lá estavam Sílvio, Tomás e outros parentes, encarregando-se de afastar os guardas pessoais de Thurkettle, que praguejava sem cessar. Revan entregou Brenda para um jovem que vigiava os feridos e os que haviam se rendido. E foi em direção aos sequazes que protegiam Thurkettle.

Tess parou de rezar. Alguma coisa estava acontecendo no castelo. Os sons eram indistintos. Era preciso uma grande algazarra para algum ruído chegar aos subterrâneos da fortaleza.

Seria uma esperança?Por um instante, Tess distinguiu melhor o burburinho. O entrechoque de espadas, homens berrando e

um grito de dor. Em seguida, um forte baque ecoou pela masmorra. O barulho foi abafado por passos na escada de pedra. E Brenda surgiu, desgrenhada e de olhos esbugalhados, carregando uma espada ensangüentada.

— O que houve? — Tess perguntou, evitando animar-se em demasia.Brenda passou correndo. Tess tentou inclinar-se para a frente, mas foi impedida pelas correntes que a

mantinham presa à parede. Sua suspeita foi confirmada. Ouviu o grito de fúria de Brenda.— Idiota! Amaldiçoado! Ele bloqueou a saída!Brenda voltou correndo. Jogou a espada no chão e tirou as chaves do gancho. Experimentou uma por

uma na fechadura da cela. Apavorada, procurava uma maneira de escapar. Para sobreviver, ela seria pior do que um animal feroz. Na certa, uma tentativa de salvar a prisioneira causara aquele alvoroço. Brenda pegou a espada e entrou na cela, decidida a acabar com as expectativas de Tess.

— Seu pai a escolheu para ser minha executora? — Tess encarou a prima, que se postou à sua frente.— Não. Assim mesmo, quero ter esse prazer.— O castelo foi invadido!— Isso mesmo. Por aqueles seus parentes inúteis e por Revan. Os idiotas que meu pai contratou se

renderam ou morreram. Tudo perdido. Até a chance de ocupar um lugar de destaque na corte de Douglas. Eu poderia ter sido tão rica, tão poderosa... Agora nada mais resta. Meus planos para me livrar de meu pai foram por água abaixo. E tudo por sua culpa!

Brenda estava à beira da histeria, o que a tornava ainda mais perigosa.—Não fui eu quem arrastou seu pai e você nas conspirações de Douglas.— Desde que fugiu com aquele estúpido cavaleiro do rei, nada mais deu certo neste castelo. Nada. Pois

bem, agora eu tenho uma ótima idéia.— Usar a mim para conseguir a liberdade?— Não tenho como fugir. Nenhum daqueles galantes cavaleiros me deixará escapar da punição. Sei

que morrerei, mas eu a levarei junto.— A prima poderia pleitear a misericórdia do rei. — Tess encolheu o estômago. Precisava afastar-se da

ponta afiada da lâmina de folha larga que Brenda pressionava.— Misericórdia do rei? A mesma que a rainha, mãe dele, demonstrou diante daqueles que haviam

conspirado contra o marido? A mesma que os regentes tiveram com os dois jovens condes de Douglas que foram arrastados e decapitados? Ou a que Jaime mostrou ao outro conde de Douglas, que foi apu-nhalado durante aquele jantar? Muito obrigada. Prefiro escolher eu mesma a maneira de morrer.

— Pretende comparecer diante do Senhor com a mancha de assassinato na alma?Brenda riu alto, perturbada.— Ele não distinguiria mais uma mácula dentre tantas. Além disso, estou destinada ao inferno. Mas

quero ter um último momento de prazer, antes de deixar esta fossa terrena de imundices. Em breve, seus amigos a encontrarão. Minha querida prima, o sabor doce da liberdade não chegará aos seus lábios. Eu a matarei antes que possam salvá-la.

Tess sentiu um forte enjôo. Fitou Brenda, os degraus irregulares de pedra e a ponta da espada que lhe raspava a pele do ventre. Seria preciso muita sorte para livrar-se daquele emaranhado de loucuras e traições.

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Revan arrancou a espada do peito do homem que acabara de matar. Virou-se e deu de cara com Fergus Thurkettle, que arfava e suava. Ele usara seus mercenários como escudos humanos. Já não restava mais ninguém. Revan sorriu. Não fora uma luta fácil, mas estava confiante de que venceria.

— O senhor tem a chance de render-se agora, Thurkettle — Revan ofereceu, movido pela honradez.— Para enfrentar uma morte ainda mais cruel nas mãos de Jaime? Não tenho alternativas. Aqui ficarei,

para viver ou para morrer.— Então morrerá.O primeiro golpe de Thurkettle foi facilmente aparado. Sua perícia de espadachim acabara com tantos

anos de inatividade. Não demorou para Fergus começar a respirar com dificuldade e a suar em abundância. Thurkettle cometeu um erro após outro. Revan fez um grande esforço para controlar a vontade de brincar com o homem.

O momento de decisão chegou em seguida. Thurkettle tropeçou ao tentar esquivar-se de uma investida de Revan e foi atravessado pela espada do adversário. Revan só percebeu que Sílvio, Tomás e os outros haviam se reunido em volta dele, quando Fergus caiu segurando com a palma o ferimento que sangrava.

Revan olhou o pequeno grupo de prisioneiros. Notou uma falta.— Onde está Brenda?— Eu não a vi desde que o senhor e Thurkettle começaram a lutar — Tomás respondeu.— Ela estava ali há pouco. Eu a ouvi gritar.— Isso importa?— Bastante. Brenda não é melhor de que o pai dela.— Acha que foi atrás de Tess? — Sílvio perguntou, ansioso.— Tenho certeza. Brenda pensará em usar Tess como barganha ou como vingança. Esperem! — gritou

ao ver Sílvio e Tomás correrem em direção à porta. — Brenda estará à espera de que façamos isso. Talvez queira nos usar também.

— E o que sugere? Que esperemos até que ela se canse do jogo?— Não. Mas não teremos de jogar segundo as regras dela. Revan foi até a parede onde estavam expostas armas em uma decoração macabra. Apanhou uma besta

e encaixou uma flecha.— Para que o senhor precisa dessa arma feita de arco, cabo e corda? A espada não lhe serve?— Brenda impedirá que eu me aproxime. Preciso de algum coisa que a derrube a distância.— E o punhal?— Não tenho pontaria muito certeira com ele. A besta é muito melhor. Se posso abater um gamo com

ela, certamente farei o mesmo com Brenda. Só espero não ter de chegar a esse extremo. Não tenho estômago para matar mulheres, mesmo que sejam rameiras traidoras.

— Pretende ir sozinho... — Sílvio deduziu.— Assim terei a chance de surpreendê-la. Acredito que será mais seguro se apenas um homem a

enfrentar. Se ela vir muitos de uma vez...— Brenda será muito mais drástica — Sílvio concluiu. — Vá, Revan, e que Deus o acompanhe.Revan desceu correndo a escada estreita rumo ao calabouço. Rezou para que Deus ouvisse Sílvio e,

sobretudo, para que não chegasse tarde demais para salvar Tess.— Estou escutando passos. — Brenda ficou tensa e espiou os degraus escuros.— O medo está fazendo com que a sua imaginação trabalhe em excesso — Tess mentiu. Ela também

ouvira o leve rastejar de botas nas pedras.— Bobagem. O combate deve ter acabado. Não se ouve mais nada. Alguém veio salvá-la, minha doce

prima. — Brenda sorriu e pressionou um pouco mais a ponta da espada no estômago de Tess. — Farei com que essa vitória seja muito amarga. Não duvide disso.

Tess encostou-se mais na parede fria e estremeceu. Revan surgiu das trevas, segurando uma arma de caça. A satisfação foi grande ao vê-lo são e salvo. Esperava que não o estivesse vendo pela última vez.

— Afaste-se dela, Brenda — Revan ordenou em voz baixa e calma.— De jeito nenhum.

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— Seu pai morreu e os seus seguidores estão mortos ou foram capturados. Você não ganhará nada ferindo Tess. Isso não lhe dará mais tempo nem dinheiro. Acrescentará apenas um assassinato aos seus crimes.

— Não se pode enforcar duas vezes uma pessoa. Ah, mas um traidor não é enforcado. É esquartejado como um porco. — Brenda continuou a apertar a ponta da lâmina no estômago de Tess. — Contessa nos traiu, e eu me encarregarei de executá-la.

Revan apontou a besta na direção de Brenda. Esperava que Tess se protegesse. Apesar de presa, poderia afastar o corpo no momento certo. E Brenda não a atingiria de maneira fatal. Não poderia orientar Tess sem alertar Brenda. Um suor frio desceu pela espinha de Revan, e ele estremeceu.

— Brenda, abaixe a espada. Ou atingirei esse seu corpo conhecido por grande parte dos escoceses.— Ora, sir Halyard, seria capaz de matar uma mulher? Não acredito que o faça, meu caro.Brenda riu, e Revan não acreditou na própria sorte. Ela se descontraiu e diminuiu a pressão da espada.

Ele atirou e percebeu Tess esquivar o corpo da espada. Estremeceu ao ver a flecha entrar nas costas de Brenda.

Tess deu um grito quando sua prima procurou enfiar-lhe a espada. Contorceu-se, e a lâmina pegou-a de lado. Brenda urrou. A flecha varou-lhe as costas, e ela se agarrou em Tess. Só havia ódio no olhar de Brenda. Nem um vestígio de medo ou de arrependimento. As correntes que prendiam Tess chocalharam quando Brenda caiu, deslizando as mãos pelo corpo da prisioneira.

Revan jogou a arma no chão e arrancou o molho de chaves da fechadura. Correu na direção de Tess e tirou Brenda do caminho. No momento em que a libertou das correntes, Tess caiu em seus braços. Revan praguejou ao sentir o sangue que escorria do ferimento lateral.

— Está doendo muito? — Nada podia ver na obscuridade.— Uma ferida superficial — Tess respondeu, quando ele a tomou nos braços. — Ela tentou fazer a

minha cintura ficar mais fina. — Olhou para a prima. — Está morta?— Lamento muito.— Não deve lamentar nada. Brenda escolheu o seu caminho. Se não fosse impedida, ela teria me

matado. E a você também, se pudesse. Brenda era filha do pai dela.Revan beijou Tess com delicadeza nos lábios escoriados.— Eles a feriram? — Embora Tess não agisse como se houvesse sido estuprada, ele ainda escutava as

palavras de MacKinnon.— Não. Alguns arranhões e assaduras por causa do excessivo tempo de montaria. Nada mais, além do

corte feito por Brenda,— Não foi maltratada durante o trajeto para cá? — Está com medo de eu ter sofrido algum abuso? Não houve nada. MacKinnon bem que tentou, mas

Dermott o dissuadiu do intento. Ele temia pelo castigo caso você ou a minha família os apanhassem. Convenceu MacKinnon que seria melhor esperar até que eu estivesse nas mãos de Thurkettle.

Revan tornou a beijá-la e começou a subir a escada.— Vamos ver como está esse ferimento.— Vencemos a batalha?— E com pouco custo para os nossos homens. Muitos asseclas de Thurkettle desistiram de lutar por

ele.— Thomas, Donald, John e Wallace?— Mortos, assim como MacKinnon, Dermott e Thurkettle. Eles preferiram morrer com a espada na

mão a ser esquartejados. Foram seus próprios executores.— Era o que Brenda pretendia fazer. Ela não queria se render nem ser levada como prisioneira.Revan segurou-a de encontro ao peito.— Eles tiveram uma morte mais generosa do que mereciam.No momento em que saíram da masmorra, Tess foi envolvida pelos cuidados dos familiares. Todos se

preocuparam com o ferimento e com o estado geral dela. Decidiram passar a noite no castelo e rumar para

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Donnbraigh na manhã seguinte. Tess sentiu alívio ao ser carregada para o quarto, apesar de a separarem de Revan. Estava muito cansada.

Mal se viu acomodada na cama, Revan entrou no aposento. Estava sem armadura e com os cabelos molhados. Na certa tomara um banho enquanto a banhavam e limpavam seu ferimento. Ele se deitou, e Tess aconchegou-se com cuidado, por causa da dor.

— Será difícil chegar a tempo para lutar ao lado do rei?— Não. — Revan acariciou-lhe o braço. Sua tensão teria de esperar. — Contudo teremos de nos

empenhar em uma bela corrida.— Sir Revan Halyard será novamente vencedor. Lutará pelo rei e derrotará os traidores.— Nós seremos vencedores. Quando tudo houver terminado, voltarei para nos casarmos.— Para nos casarmos... — Tess repetiu, sonolenta.Ela abraçou-o, sempre com cuidado. Amava-o demais e aguardaria seu regresso. Revan era um homem

honrado e cumpriria seu dever.

Capítulo XI

— Junte-se a nós, minha filha. Tess suspirou e sorriu para tia Kirsten. A esposa de Silvio a observava enquanto amassava o pão. A

pequena casa da prima Isabella estava lotada com a presença das mulheres da família Comyn-Delgado.Após a saída da fortaleza de Thurkettle, haviam levado três dias para voltar a Donnbraigh. Por causa

dos feridos, o trajeto fora vagaroso. Depois seguiu-se uma semana de preparativos frenéticos para a batalha. Mensageiros iam e voltavam entre Donnbraigh e os aliados do rei. Simon falara pessoalmente com Jaime, fizera um relato dos acontecimentos e o convencera da inocência de Revan.

O ferimento de Tess cicatrizara o suficiente para ela poder viajar. Tinham ido para a casa de Isabella, que ficava a dezesseis quilômetros ao norte de Arkinholm, local onde o exército inimigo se reunira. Depois de mais um dia de repouso, ela e Revan haviam feito amor. Um relacionamento rápido no pomar de Isabella. Tinham sido momentos gloriosos e de prazer intenso. Mas não fora o interlúdio romântico que Tess antevia.

E em seguida, corada e com o vestido amassado, tivera de sorrir e acenar adeus ao lado das outras mulheres que se despediam dos maridos que iam para a guerra.

— Olhar pela janela horas a fio não o trará de volta mais cedo, Tess — Meghan, esposa de Tomás, ruiva e em estágio avançado de gravidez, aconselhou-a.

— Eu sei. — Tess aproximou-se da mesa e pôs-se a amassar outro pão. — Eles partiram há uma semana. Já poderíamos ter alguma notícia.

— De tão longe? — Kirsten sacudiu a cabeça, com um sorriso terno. — Minha filha, nós, as mais velhas, sabemos como é ter um ente querido que vai para o campo de batalha. É preciso não se desesperar. Não se pode prever o quanto eles irão demorar, nem de quantas batalhas terão de participar.

— Eu já disse isso a mim mesma várias vezes. Mas em seguida, começo a me torturar com a idéia do que estará acontecendo. Tia Kirsten, o intenso trabalho na cozinha não é uma antecipação pela volta dos guerreiros?

— Não deixa de ser — Kirsten admitiu. — Mas é também uma maneira de manter a mente ocupada. Se voltarem logo, teremos um belo banquete à espera dos heróis. Caso contrário, mandaremos tudo para o campo de batalha.

Meghan deu risada.— O que já fizemos várias vezes. Tomás disse que sempre há muitos homens querendo fazer parte da

tropa, pois os Comyn-Delgados têm muita comida. O estômago dos soldados é um saco sem fundo.— Acha que eu deveria mandar algo para Revan?

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— Ele está no campo dos Comyn-Delgados.— Calculei que Revan estivesse com os Halyards. E tio Sílvio ainda diz que não está com uma espada

nas costas dele.— Nada disso — Meghan negou com malícia. — Nossos homens querem apenas se assegurar de que

Revan não ficará envergonhado, nervoso ou intrépido demais.— Nunca vi Revan se envergonhar nem ficar nervoso.— Pode ter certeza de que essas emoções surgirão quando ele se ajoelhar no altar — Isabella

comentou.Tess observou a prima mais velha descascar maçãs trazidas da despensa e que estavam em um cesto a

seus pés. Maçãs tão enrugadas quanto suas mãos ainda ágeis.— Nem assim. Estarão presentes apenas os amaldiçoados dever e honra, que ele preza tanto.— Não se deve culpar um homem por cultuar essas virtudes. — Isabella cortava em fatias finas as

maçãs e as jogava em uma panela grande.— Filha, por que está tão preocupada? — Kirsten indagou.— Não duvido dos seus sentimentos por Revan. No entanto fala no casamento como se fosse uma

praga.— Temo que possa ser uma maldição fatal...Tess olhou para as demais mulheres que ocupavam o lado oposto do grande recinto principal da casa.

Costuravam e tagarelavam, sentadas em um círculo ao redor da lareira. E voltou a atenção de novo para as três que se encontravam com ela junto à mesa. Não gostava de desabafar emoções. Não estava acostumada a fazê-lo. Mas precisava falar com alguém. A seu lado havia uma jovem, uma mulher de meia-idade e uma bem mais velha. Todas bondosas e com vontade de ajudar. A tentação era grande demais.

— Será que poderiam guardar um segredo? — Tess lhes perguntou, e as três anuíram. — Na verdade, reconheço que é injusto pedir silêncio antes de dizer do que se trata.

— Posso jurar que nós não trairemos a sua confiança, se for para prejudicá-la — Kirsten declarou.Isabella e Meghan concordaram.— Obrigada. É sobre o meu casamento.— Ora, mas que surpresa! — Isabella murmurou, irônica.— De certa maneira, fico satisfeita que Revan passe algum tempo na companhia da minha família. —

Tess fitou com severidade a prima mais velha. — Assim ele verá que o meu jeito de falar não é mal-intencionado. Faz parte da nossa maneira de ser. Posso prosseguir?

— Fale, minha filha.— Muito obrigada. — Tess ficou séria e continuou a amassar o pão. — Casar-me com Revan será um

erro.— Então não deveria ter deixado esse jovem levantar a sua saia — Isabella falou com aspereza. — O

que houve? Ele não a satisfaz?Enrubescida, Tess franziu o cenho para a prima grisalha.— Revan é mais do que satisfatório. Creio que ele deve desempenhar suas funções bem melhor de que

a maioria, embora eu não tenha experiência no assunto.— Ah... eu bem poderia julgar. Já tive minha cota de jovens bem parecidos com Revan. Ah, como eu

me lembro...— Cale-se, Isabella — Kirsten interrompeu-a. — Não queremos escutar nada sobre o seu passado

escandaloso. Tess quer falar a respeito de um assunto muito importante. Continue, Tess. Se ela a interromper de novo, enfiaremos uma maçã naquela boca sem dentes.

Tess apertou os lábios para não rir. Muita coisa mudara naqueles cinco anos, mas tudo continuava na mesma. Isabella ainda ralhava com os parentes e não perdia ocasião de falar sobre sua juventude licenciosa. E todos eram ríspidos com ela. Para um estranho, pareceria uma briga eterna. Puro engano. Nunca houvera desrespeito. O amor era uma constante. Qualquer uma daria a vida pela outra, se preciso fosse.

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— Por que um erro, minha querida? — Kirsten pressionou.— Por eu ser herdeira, e ele um cavaleiro sem vintém.— Os Halyards fazem parte de uma boa família. Nunca ouvi falar que fossem pobres.— Eles não são. Revan é. Ele não tem dinheiro, nem terras, nem esperança de obtê-los por intermédio

da sua família. Enfrenta o mesmo problema de que a maioria dos filhos caçulas.— Então, Revan gostará de receber um dote, minha filha. Sua herança é muito mais do que ele poderia

almejar. Revan não encontraria com facilidade uma jovem com a sua fortuna. Não está com medo de que ele queira se casar só por causa do seu dinheiro, está?

— Não. A verdade é que Revan não queria se casar comigo exatamente por causa disso.— Não estou entendendo.— Escute. Revan tem um ponto de vista diferente da maioria. Para ele, casar-se com uma jovem rica é

o mesmo que se prostituir. Havia jurado que não enfiaria um centavo no bolso por meio de um casamento. Se não pudesse obter dinheiro por conta própria, ficaria sem nada.

—Uma atitude muito louvável — Kirsten comentou.— E estranha, a senhora não pode negar. Nem os homens o entendem. Revan me confessou isso

quando tio Sílvio o pressionou para se casar. Ele é muito orgulhoso e se sentiria humilhado em obter lucro por intermédio do casamento. Creio que pensa que seria... comprado.

— Não se preocupe. Logo Revan esquecerá tudo, minha filha.— Isso mesmo — Isabella concordou. — Nenhum homem morre por causa de um beliscão em seu

orgulho.— Será muito mais do que um beliscão. — Tess suspirou. — Ele não sabe de toda a verdade. Quando

fugimos de Thurkettle e nos escondemos na gruta, conversamos sobre os motivos pelos quais meu tio queria me matar. Concluímos que era para garantir o meu silêncio e também por ganância. Revan me perguntou se eu era rica. Menti sobre o montante da fortuna.

— Ah, Tess — Kirsten segurou-lhe a mão e a deixou suja de farinha. — O que disse a ele?— Que eu tinha poucos milhares de riders e alguns pedaços de terra aqui e na Espanha. — Tess fez

uma careta. — Eu não o conhecia nem tinha certeza de que poderia confiar nele. É difícil explicar os motivos. Eu não temia que Revan me prejudicasse. Apenas não queria revelar tudo.

— E nunca lhe disse mais nada?— Não, tia. Nunca mais tocamos no assunto.— Sílvio também não falou nada?— Ele talvez pense que Revan saiba da verdade. Depois de ouvir o que ele pensava a respeito de se

casar com uma herdeira, não tive coragem de dizer mais nada.— Posso entender o seu receio, minha filha. Infelizmente, terá de falar com Revan em algum momento.

Ele precisará saber.— O que pretende fazer, Tess? — Meghan perguntou.— Não sei. Tentei pensar em uma solução para apaziguar o orgulho de Revan.— E com certeza não encontrou nenhuma — Isabella resmungou. — Não há mesmo. A não ser ficar

tão pobre quanto ele.— Eu não pensei nisso, pois sei que não cabe a mim tal decisão. As terras e o dinheiro passarão por

mim e serão legados aos meus herdeiros. Além do mais, um gesto drástico como esse também traria problemas. Revan sempre poderia questionar um provável arrependimento e uma conseqüente mágoa contra ele. Se ficarmos pobres, nossos filhos poderão se rebelar ao descobrir do que eu desisti. Eu mesma, se ficasse sem condições de alimentar ou vestir condignamente meus filhos, poderia me revoltar. Isso não resolveria o problema. Surgiriam outros com feições diversas.

Tess deu de ombros e suspirou fundo.— Se eu conservar a minha herança e me casar com Revan, também haverá empecilhos à nossa

felicidade. Seu orgulho será despedaçado ao descobrir que o ganho dele jamais chegará aos pés da minha herança. Então passará a me odiar. E para mim, isso seria o mesmo que a morte.

— Vejo que o ama muito, minha filha — Kirsten murmurou.

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— Mais do que seria sensato. Por isso tomei a decisão de libertá-lo do compromisso.— Nossos parentes não concordarão com essa idéia — alegou Meghan.— Preciso conseguir que ele fuja. Com o tempo acabarei convencendo tio Sílvio de que foi a melhor

solução. Se Revan ficar afastado das suas damas de companhia, poderei libertá-lo. Compreendem o que estou tentando fazer?

— Claro — Isabella afirmou. — Acho que está tomando decisão correta.— Isabella! — Kirsten gritou e abaixou a voz ao ver que as outras mulheres voltavam os olhares para a

mesa. — Tess dormiu com Revan!— E daí? Isso não lhe arruinará a vida. Como a própria Tess disse, será uma maldição fatal se tiver de

casar com um homem a quem ama e que aos poucos se voltará contra ela. Pode-se privar um homem de muitas coisas e lhe causar apenas um pouco de raiva ou sofrimento. Contudo, se tirarmos seu orgulho, não poderemos esperar seu amor. Apenas o ódio, como Tess afirmou.

— Talvez não seja tão grave assim — Meghan ponderou. — Pode ser que o valor da fortuna não importe.

— Está enganada, Meghan. Revan fica constrangido diante do pouco que imagina eu ser possuidora. Tem esperança de conseguir amealhar quantia idêntica ou pelo menos chegar perto disso. Ele jamais poderá alcançar uma fortuna igual à que me foi deixada. Se o rei resolver me conceder o que Fergus deixou, a situação haverá de piorar. Acredito que nem mesmo o amor impedirá que Revan venha a me renegar.

Tess sorriu com tristeza diante das três conselheiras.— Agora que sabem de tudo, podem entender a minha relutância em lhes pedir silêncio.— Uma pena que não a ajudamos muito — Kirsten comentou, triste.— Ajudaram, sim. Pelas expressões e pela preocupação por trás das palavras, entendi que os meus

receios são justificados. Embora estivesse certa quanto à minha decisão, ainda pensaria na hipótese de estar atirando pela janela uma oportunidade de ser feliz. Agora acabei de silenciar essa voz contraditória.

— Como fará para ele escapar? Os homens mantêm Revan sob vigilância cerrada, embora amigável.— E que poderá se tornar ainda mais cerrada com a proximidade da data do casamento — Meghan

afirmou.— Ficarei atenta à qualquer oportunidade. Se nada der certo, terei de promover um escândalo diante do

altar. Espero que a chance de libertá-lo chegue antes.— Vai ter de agir rápido, Tess — Isabella comentou, olhando pela janela. — Os homens voltaram.As horas seguintes foram febris. Tess conheceu Thane Halyard, pai de Revan, e Colin, o irmão mais

velho. Nairn e Simon faziam parte do grupo. Tess desconfiou que tio Sílvio insistira para que o acompanhassem. Mais tarde todos se sentaram à mesa. Durante o lauto jantar, falaram sobre a batalha e os futuros acontecimentos.

— Sabemos que foram vitoriosos, mas o senhor não explicou os detalhes, tio Sílvio — Tess comentou e tornou a completar as taças com vinho. — A vitória deve ter sido retumbante ou o rei não teria permitido que voltassem tão depressa.

— A luta não chegou a acontecer — Sílvio falou — Sir James Hamilton desertou do exército do conde de Douglas um pouco antes da batalha, o que ocasionou uma debandada geral na tropa inimiga. Douglas acampou naquela noite com quase quarenta mil homens e acordou na manhã seguinte com o campo praticamente vazio.

— E os combates?— Foram poucos. Antes de Douglas se recolher naquela noite, o exército dele e o do rei Jaime eram

quase equivalentes. As coisas mudaram quando Hamilton se juntou ao rei. Houve algumas lutas em Esk, perto de Langholm. Moray, irmão de Douglas, foi morto. Ormond, seu outro irmão, foi preso e executado.

— E o conde?— Fugiu para a Inglaterra com lorde Balvanie.— Ele largou os dois irmãos? — Tess custou a acreditar.

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— Isso mesmo. Fugiu para salvar a própria pele — Tomás acrescentou. — E pouca coisa além disso. Seus bens foram confiscados.

— Tanto empenho, tanto sofrimento e tudo terminou de maneira ignominiosa — Tess comentou com Revan.

— Confesso que me senti ludibriado.— Por isso o rei permitiu que abandonassem o exército? — Meghan perguntou.— Nós tivemos uma quinzena de descanso. A família de Revan deverá retomar pela manhã. O rei

pretende eliminar todos os aliados de Douglas. Se isso não for feito em quinze dias, ele quer que voltemos ao exército.

Houve alguns minutos de silêncio antes que as conversas fossem retomadas. Tess compartilhou o desapontamento das outras mulheres, que queriam seus familiares em casa. Mesmo que Revan não chegasse a ser seu marido, ela sempre se preocuparia com ele. Kirsten anuiu para a sobrinha, e Tess levantou-se para ajudar as mulheres a tirar a mesa. Duvidou que conseguisse ficar a sós com Revan.

A dedução a entristeceu, mas ela disse a si mesma que seria melhor assim. Estava na hora de começar a distanciar-se de Revan. Talvez, dessa forma, seu sofrimento seria menor quando ele fosse embora.

— Bonita jovem — Thane Halyard comentou com os filhos e com Simon quando foram dormir no celeiro.

— É o que eu acho. — Revan estranhou nenhum parente de Tess subir a escada de mão. — Os Comyn-Delgados não vieram com o senhor? Eles me permitiram passar uma noite sem a companhia encantadora de um deles?

Thane estendeu seu cobertor sobre o feno.— Revan, meu filho, dois deles estão no pé da escada. Outro em cada porta da estrebaria. Creio que vi

alguns também do lado de fora.Revan praguejou e deitou-se no seu cobertor.— Pensei que empenhar a minha palavra fosse o suficiente.— Eles confiam, mas continuarão sendo sua sombra até que o juramento matrimonial seja

pronunciado. O mais correto dos homens pode ser tentado a fugir com a proximidade do enlace. — Thane deitou-se ao lado do filho e cruzou os braços sob a cabeça. — Revan, na certa não está escondendo a sua relutância de modo muito convincente.

— Ora, meu pai, nenhum homem gosta de ser empurrado para o altar. — Revan aborreceu-se por não saber disfarçar seus sentimentos.

— Então não deveria ter tirado o calção, filho.Os outros Halyard e Simon deram risada, e Revan tornou a proferir imprecações.— Eu desconfiava que não conseguiria comiseração da minha família. — Quer apoio? E para quê? É óbvio que Tess o satisfaz. Ela é muito bonita e tem o mais belo par de

olhos que já vi. Apesar de miúda, nota-se que é forte. Prova disso foi ela ter suportado a quinzena que passaram galopando pela fronteira! para fugir dos perseguidores. Tess é inteligente. Isso será muito bom quando a paixão esfriar, como acontece com o decorrer do tempo. Ainda por cima, Contessa tem o dinheiro e as propriedades que eu não pude lhe dar.

— Nunca o culpei por isso, meu pai.— Eu sei, meu filho. E não imagina o quanto lamento as circunstâncias. Por isso fiquei contente

quando se tornou um belo jovem. Tive esperança de que a sua boa aparência o ajudasse a conseguir o que não lhe coube pelos laços familiares.

— O senhor esperava que uma jovem rica me comprasse para marido.— Filho, que idéias mais estranhas. Quer piedade porque vai se casar com uma jovem bonita e de boa

família, a aspiração de qualquer homem. Depois se queixa do dote que virá junto. Durma e descanse, Revan. A exaustão não lhe permite raciocinar com clareza. — Thane sacudiu a cabeça e fechou os olhos. — Uma pena que nenhum dos nossos parentes poderá comparecer à cerimônia. Mas assim que a paz for restabelecida, faremos uma celebração para o casal.

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Revan resmungou algo ininteligível. Sua família não fizera o menor protesto diante da maneira como os Comyn-Delgados o mantinham prisioneiro. Mesmo sem correntes ou espadas desembainhadas, não tinha o direito nem de ir sozinho ao recinto privativo para aliviar-se. Sempre havia um dos simpáticos parentes de Tess a seu lado. Seu pai e seus irmãos deveriam sentir-se ofendidos. Em vez disso, agiam como se os Comyn-Delgados fizessem parte da família.

Revan suspirou e acomodou-se melhor na cama rústica. Era uma infantilidade preocupar-se com insignificâncias. Confiava em si mesmo e não descumpriria uma promessa. E os parentes de Tess tinham o direito de agir daquela maneira. Na verdade, eles se comportavam com surpreendente gentileza. O que o aborrecia era ser obrigado a agir de determinada maneira, sem ter nenhuma outra escolha. Revan prometeu a si mesmo que procuraria afastar aquele sentimento para não fazer Tess sofrer.

Fechou os olhos e fez outro voto. De algum jeito, ganharia dinheiro e terras por seus próprios méritos. Em breve teria uma fortuna igual à de Tess. Assim ninguém o acusaria de viver à custa da esposa.

Tess saiu da cama e, quase sem respirar, rastejou até a porta. Precisava falar com Revan e libertá-lo da promessa de casar-se com ela. Simon e os outros Halyards poderiam ajudá-lo a escapar. Desviou-se das pessoas que dormiam no chão, enquanto repetia o discurso preparado. Conteve a custo um grito quando uma mão ossuda puxou-a pelo braço.

— Aonde pensa que vai, menina?— Isabella?— Pensou que fosse o rei Jaime, sua tola? Tess estirou-se ao lado da prima idosa.— Solte-me — ela cochichou. — Já sabe o que pretendo fazer.— Por um momento pensei que fosse dar uma escapulida para uma sessão rápida com o seu amado.— Prima Isabella!— Aí eu me lembrei do que conversávamos quando os homens chegaram. Sinto que esta noite não é

uma boa oportunidade.— A família de Revan está aqui. Eles podem ajudá-lo a fugir.— Tess, duvido que você chegue até a porta. Nossos parentes estão em todos os cantos. Daqui até na

estrebaria. Não é possível que um deles não perceba a sua escapada e a fuga do nosso herói. Depois da captura, pode ter certeza de que serão vigiados ainda com maior atenção. Terá de esperar mais um pouco, Tess.

— Tem razão, lsabella.— Sei disso. Para chegar até a porta, teria de passar por Sílvio.— Ele está dormindo aqui?— Bem em frente à entrada.Tess teve de aceitar a derrota. Engatinhando, virou-se em direção ao seu catre.— Tess?— O que foi, lsabella?— Se precisar de alguma coisa, seja o que for, fale comigo.— Obrigada, prima. Boa noite.— Boa noite, Contessa.Tess apressou-se, aflita para não ser vista. Enfiou-se debaixo do cobertor e suspirou, desapontada por

não haver conseguido seu intento, mas aliviada por saber que Revan ainda ficaria algum tempo por perto. Esperava que pudesse ser capaz de controlar suas emoções, ou jamais suportaria a dor de perdê-lo.

O grupo entrou na antiga fortaleza de Thurkettle. Revan desmontou e ajudou Tess a apear do cavalo. Como ela previra, o rei lhe destinara as terras e a fortuna de Thurkettle. O que desagradou a Revan. Durante a viagem ele não disfarçara o mau humor.

— Como é que seu tio chamava este lugar? — Revan perguntou, em um esforço de conciliação.Depois de agüentar durante quatro dias o semblante carrancudo e as respostas secas, Tess não sentia

vontade de conversar.

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— Apenas castelo Thurkettle. — Ela deu de ombros quando Revan torceu a boca. — Se quiser, poderá mudar o nome.

— O castelo é seu e a opção da troca será sua. — Revan recriminou-se pela agressividade. — Como sabe, fui incapaz até de dar um nome para o meu cavalo. Lembra-se de que prometeu pensar em um?

— Claro que sim. Eu ia sugerir um apelido. No entanto o seu humor não me inspirou a falar.— Hum... — Revan não conseguiu desculpar-se, mesmo consciente de que a tratara com muita

rispidez. — O que lhe ocorreu?Tess aproximou-se do cavalo dele e acariciou-lhe o focinho.— Na verdade, pensei em dois. Você poderá decidir qual lhe agrada mais. Amistad ou Compañero.— Gostei do som das palavras. Espanhol?— Sim.— Qual o significado delas?— Amistad quer dizer amizade. Compañero tem o sentidos de companheiro e amigo. O meu

vocabulário em espanhol se reduziu muito depois de cinco anos sem praticá-lo. Thurkettle ficava enraivecido quando eu falava espanhol.

— Muitas coisas o irritavam. Quando ele acordar e descobrir que os seus dedos estão assando no fogo do inferno, ficará um pouco mais manso.

Tess abafou um risinho e deu um tapa amigável no braço de Revan.— Psiu! Não se deve brincar com os mortos. Não vai querer que Fergus volte para provocá-lo, não é?— Que Deus tenha piedade de nós. Sílvio e Tomás se aproximaram, e Tess murmurou uma imprecação. Seus parentes acabavam de

interromper a primeira conversa agradável e descontraída depois de quatro dias de amuos.Sílvio e Tomás agarraram Revan pelos braços e apressaram-se em direção ao castelo.— O que estão fazendo? — Tess correu atrás deles.— Como o casamento é amanhã — Sílvio respondeu —, achamos melhor agir com uma dose extra de

segurança. O senhor não se importa, não é, Revan?— O meu ponto de vista não fará a menor diferença — ele resmungou.— Tem razão. Não fará.Eles entraram e desceram os degraus que levavam à masmorra.— Estão pensando em prendê-lo para dormir, tirá-lo pela manhã e depois promover o casamento? —

Tess não se conformava.— Sim, senhora. Sei que não se trata da cerimônia ideal, mas não temos tempo para nada melhor nem

para esperarmos por suas primas e tias. Não teríamos vindo tão longe se não houvesse um sacerdote na aldeia. O de Donnbraigh morreu há um ano. Preferimos vir para cá a ficar correndo de um lado para outro até encontrar um padre.

— Tio Sílvio, o senhor sabe que não era a isso que eu me referia — Tess falou com raiva, tropeçando atrás deles na escada escura de pedra. — Quero dizer que o senhor não pode trancar um noivo no calabouço na véspera de seu matrimônio.

— Segure-o, Tomás. — Sílvio pegou as chaves e destrancou a porta da cela. — Não se preocupe. Revan esquecerá o mau humor na noite de núpcias.

— Não estou pensando em nenhuma noite de núpcias, tio Sílvio — Tess ergueu a voz ao ver o tio empurrar o noivo para dentro da prisão e trancar a porta. — Revan, por que não lhe deu um soco?

— Não creio que essa fosse a maneira apropriada para tratar um futuro parente. — Revan não estava com raiva. Tinha até vontade de rir.

— Pois eles deveriam ser enforcados! Dê-me essas chaves! — Tess tentou arrancá-las da mão do tio, mas ele pendurou-as no gancho que ficava fora do alcance das mãos dela.

— Vai tirá-lo daí ou não?— Não posso fazer isso, Tess. Os dois têm sido cordatos e aceitaram o enlace. Mas a véspera é um

momento crucial. E a hora em que se pode ficar ressentido, nervoso e pensar em fugir quando as dúvidas chegam. Para ser franco, Contessa, acho que as incertezas também a acometeram.

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— Ah, sim. Uma ou duas quanto à sua sanidade mental, tio Sílvio. Agora pare com esse jogo idiota e solte Revan!

— Isso não é nenhum jogo, minha condessinha. Trata-se de sensatez.Tess deu um grito de surpresa quando Silvio a ergueu do chão e a jogou no ombro como se fosse um

saco de grãos.— Solte-me!— Eu o farei assim que chegarmos ao seu quarto. — Sílvio subiu os degraus, sem se importar com os

socos que Tess lhe dava nas costas e gritou para o futuro sobrinho: — Mandaremos lhe preparar um banho quente, Revan! Ah, sim, uma boa refeição e roupas limpas para a cerimônia. Pode pedir roupa de cama para o rapaz que trouxer a água quente.

— Está bem.Depois de Tess ter sido levada pelos familiares, Revan sentou-se no catre e riu sozinho. O fato de não

estar enraivecido fazia tudo ficar ainda mais engraçado. Depois de alguns momentos, deitou-se de costas na cama e notou que era nova. Admitiu que, apesar das dúvidas, com o tempo provavelmente chegaria a uma conclusão favorável. Sem ter como adiar o casamento, rezou para não magoar Tess enquanto não definisse as próprias emoções.

Tess continuava deitada de costas na cama, onde fora deixada por tio Sílvio, antes de ele sair e trancar a porta.

Inacreditável!Ela e Revan tinham sido virtualmente mantidos como prisioneiros desde que haviam procurado abrigo

em Donnbraigh. O que fora um fato fácil de ignorar.Esse não!Tess não entendia como Revan não se rebelara. Ele parecera divertir-se com tudo. Ela, ao contrário,

estava possessa!Inconformada, ouviu a porta ser aberta. Servas entraram com o jantar e a água quente. Sentou-se na

cama e observou as moças apressadas terminarem as tarefas e saírem, sem nada comentar.Incapaz de resistir ao conforto, deliciou-se com um banho longo e com o jantar. Lutou contra a

sonolência. Seria capaz de dormir até a manhã seguinte e, assim, perderia a última oportunidade de libertar Revan. A maneira como ele reagira ao ficar sabendo da herança de Thurkettle dera-lhe maior cer -teza do que ela deveria fazer.

Depois de cochilar pela segunda vez, Tess levantou-se. A porta trancada não representava nenhum empecilho. Estava no antigo aposento de Brenda. Foi até o enorme guarda-roupa que ficava na parede oposta e afastou todos os vestidos para o lado. Entrou dentro e abriu a porta dos fundos. Entrou no aposento contíguo, onde sua prima costumava receber seus amantes.

Pé ante pé, Tess chegou ao salão. Cuidadosa, olhando para os lados, correu para fora. Precisava tomar algumas providências antes de soltar Revan.

— Ela adormeceu os guardas e amarrou o cavalariço. — Sílvio encarou Tomás, e os dois riram.— Não há dúvida de que Tess c filha do pai dela — Sílvio afirmou, depois de parar de rir. — Como

será que fez as sentinelas dormirem?— Deve ter posto sonífero na água que o criado serve para os homens durante a ronda. A poção,

provavelmente, estava no quarto de Brenda. Quanto ao pobre moço da estrebaria, levou uma paulada na cabeça por trás, antes de ser amarrado e amordaçado.

— Ela conseguiu libertar Revan? — Sílvio suspirou.— Sim. Tess foi pelo túnel. Talvez o senhor não devesse tê-lo aberto. Facilitou-lhe muito a tarefa. —

Tomás deitou-se na cama enorme dos aposentos que ocupava com o tio. — Tem mesmo certeza de que deveríamos deixá-la fazer isso? Tess não é mais uma donzela e continuará solteira.

— Eu sei. — Sílvio tamborilava os dedos no braço da poltrona onde estava sentado. — Na verdade, não gosto nada disso. Mas Kirsten jurou que seria a atitude mais correta a tomar. Meghan também não disse o mesmo?

— Disse.

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— E as duas estão certas, como também Isabella, aquela velha ardilosa que veio falar comigo antes de partirmos. O senhor foi testemunha de como Revan reagiu ao ficar sabendo que Tess herdou os bens de Thurkettle. Ele não suportará conviver com ela, depois de Tess lhe revelar o valor da própria fortuna. Não creio que as mulheres possam entender o quanto o orgulho está arraigado na mente de um homem. Mas elas sabem o que acontece se um guerreiro fica privado do mesmo.

Tomás anuiu com gestos vagarosos de cabeça.— Ele não é um homem cruel, mas poderia destruir Tess, embora sem a intenção de fazê-lo. Ela o ama.— Mais do que eu poderia supor — Sílvio concordou com tristeza. — É preciso ter um sentimento

muito profundo para fazer o que Tess fez. Preferiu sofrer e abrir mão do amor, só para que esse amor não seja destruído pelo casamento.

— Não entendo como um homem pode ser tão cego. Tenho certeza de que Revan gosta de Tess.— Claro que sim. Quase ficou louco quando ela estava em poder de Thurkettle.— Mesmo assim, concordou em deixá-la.— Muitas vezes, Tomás, um homem tem de encarar uma perda para entender e valorizar o que acabou

de perder.Tomás arregalou os olhos e começou a rir.— O senhor é muito astucioso, tio Sílvio! Acha que Revan não irá longe, não é mesmo?— Não. Digamos que ele chegue até no máximo três quilômetros. Venha, meu rapaz. Vamos dar uma

espiada na muralha, antes que as nossas sentinelas acordem. Às escondidas, para não sermos vistos. Se souberem que Tess contou com o meu pequeno auxílio, os guardas ficarão furiosos.

Revan estranhou a luz que se aproximava pelo corredor. Era Tess. Com um sorriso tímido, ela deixou o lampião sobre a mesa, empurrou a cadeira e subiu nela para pegar o molho de chaves. Revan, vestido apenas com o calção, chegou perto da porta no momento em que Tess a destrancava.

— Pensei que tivesse uma cópia delas.— Eu as perdi quando fugimos do castelo. Revan, precisamos conversar.— Agora, no meio da noite?— Isso mesmo. Amanhã será tarde demais.Tess ajeitou o lampião sobre a mesinha-de-cabeceira e sentou-se no catre, muito séria. Hesitante,

Revan acomodou-se a seu lado e segurou-lhe a mão. Apesar da pouca luminosidade, era possível ver a tristeza do semblante dela.

— O que houve, Tess? Atacaram o castelo?— Não. Preciso dizer algo que não lhe agradará.Revan sorriu, mais aliviado. Nada a respeito de Tess poderia ser tão grave como ela supunha que fosse.— Eu menti. — Tess fitou as mãos entrelaçadas e depois encarou Revan. Ele já não se divertia. — Ou

melhor, não lhe disse toda a verdade.— Toda a verdade a respeito do quê?— Da minha fortuna.Revan ficou tenso. De fato, não lhe agradava o rumo da conversa.— O que há com a sua fortuna!A mera menção à herança de Tess deixou-o precavido e tenso. A irritação começava a aflorar. Ela

conteve a vontade de chorar. Seus bens, que deveriam ser uma fonte de conforto para a sua vida, a fariam afastar-se da única pessoa que a faria feliz.

— Lembra-se de quando conversamos sobre as razões de Thurkettle para me matar?— Sim. — Revan começou a ficar animado. — Você não possui alguns pedaços de terra na Escócia e

na Espanha e nem os poucos milhares de riders?— Essa parte é verdadeira. — Tess suspirou. — Possuo, sim. O que eu deveria ter dito é o tamanho dos

pedaços de terra.Em voz baixa, ela descreveu as enormes e lucrativas propriedades na Escócia e na Espanha que

passaram a pertencer-lhe após a morte dos pais.Revan ficou lívido.

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— E o dinheiro? — ele perguntou, tenso; soltou da mão de Tess e levantou-se.Ela cruzou as mãos no colo.— No mínimo trinta mil riders.— Virgem Santa! — Revan passou a mão nos cabelos e começou a andar de um lado para outro. —

Isso sem contar o que Thurkettle lhe deixou, não é?— É. Ainda não houve tempo para contabilizar tudo. Tess não soube dizer se as passadas de Revan eram sinal de agitação ou se ele procurava solucionar o

problema. O que também não importava. O horror estampado na fisionomia de Revan dizia tudo. Ele não conseguiria conviver com a fortuna dela. E só havia uma maneira de ajudá-lo.

— Vista-se, Revan — Tess pediu e levantou-se.— O quê? — Ele virou-se bruscamente.— Vista-se — ela repetiu.Atordoado com o que Tess lhe dissera, Revan limitou-se a obedecer.— Vamos a algum lugar?— Você vai... deixar o castelo. Não terá de se casar comigo amanhã. — Ela ergueu a mão e impediu-o

de interrompê-la. — Por favor, não diga nada. Não me fale em obrigações ou em honradez. São sentimentos muito belos, mas nós dois sabemos que poucas pessoas o julgarão mal se não for fiel a eles. A maioria dirá que é muito inteligente.

— Eu sei. Mas... fugir? E como eu faria isso?— Irá pelo túnel, como fizemos antes. Tio Sílvio o abriu. Só que desta vez você não fará isso com o

punhal no meu pescoço.Revan fez ouvidos de mercador diante do comentário.— Uma vez fora do túnel, serei apanhado pela sua família.— Não. O caminho está livre. Só terá de encilhar o cavalo e ir embora.— E na estrebaria?— O cavalariço está amarrado e amordaçado.— As sentinelas das muralhas?— Dormindo. Joguei um pouco do sonífero de Brenda na água que seria servida aos guardas.— Você pensou em tudo.— Muito mais do que pode imaginar. Agora vá.— Seus parentes virão atrás de mim — Revan afirmou, calçando as botas.— Talvez no começo seja difícil impedir-lhes a ação. Terá de se esconder por alguns dias. Tentarei

convencê-los a esquecer o passado. Vamos, trate de se apressar. Não sei por quanto tempo os guardas ficarão adormecidos. Será melhor tomar a dianteira o quanto antes.

— Acho errado me esgueirar durante a noite como um ladrão. Eu prometi a seu tio que me casaria com você.

— Sim, mas isso foi antes de saber quanto eu valho. Vi no seu olhar que seria uma tortura aceitar essa idéia. Percebi a sua reação quando o rei me concedeu este castelo e tudo o mais que pertenceu a Fergus. O nosso casamento apenas seria possível se você aceitasse de bom grado a riqueza que eu traria para nós. E isso, nós dois sabemos que é impossível.

— O rei em pessoa talvez não tenha tantos bens. — Revan suspirou. — Perdoe-me, Tess. A irritação não é por motivos pessoais.

— Eu sei. Agora não é. Mas poderá vir a ser. E essa amargura acabará por nos envenenar e o nosso casamento. Por isso é melhor que vá embora, Revan. É a única solução.

Ele admitiu que Tess estava certa, o que não diminuía seu sofrimento.— Cheguei a acreditar que gostasse de mim, Tess. E o que acontece? Está me mandando embora.— Ah, como os homens não enxergam nada. — Tess riu, nervosa. Depois segurou-lhe o rosto e beijou-

o. — Claro que eu gosto. — Passou a ponta dos dedos no contorno da face de Revan. — Às vezes acho que é um gostar excessivo. E por isso devo lhe conceder a liberdade. — Deu um empurrão nas costas dele. — Vá.

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Revan hesitou e nada encontrou para dizer. Depois de um último olhar para Tess, foi para o corredor. Ele mesmo pensara naquilo tudo. Aborrecido com a própria relutância, chegou ao pátio, foi à cavalariça, montou e saiu do castelo.

Por um tempo Revan cavalgou às cegas, incapaz de formar um raciocínio coerente. Dali a pouco o cavalo parou. Revan deu-se conta de que não lhe dera uma direção a seguir. Olhou para trás. Já entrara na floresta. As árvores e as sombras da noite obscureciam a visão do castelo. Era um local do qual deveria afastar-se com alegria. Se bem que alegria era bem diferente daquilo que estava sentindo no momento.

— Deveria ser como se livrar de um peso nos ombros — Revan murmurou e acariciou o pescoço do cavalo. — E nada disso está acontecendo, Compañero. — O animal relinchou. — Ah, gostou, não é? Tess escolheu bem. Qual será o nome que ela dará àquele amontoado de pedras que agora lhe pertence?

Revan proferiu uma imprecação e sacudiu a cabeça. Aquilo não era da sua conta. Tess também não seria mais motivo de preocupação nem faria parte da sua vida. Ela o libertara de todas as obrigações e promessas.

Desapontado, Revan sentiu um aperto no coração. Tudo transcorrera como ele desejara. Com o orgulho intacto, poderia voltar a ser um cavaleiro a serviço do rei Jaime. Um cavaleiro sem obstáculos que interferissem em suas habilidades ou deveres.

Recordações de Tess avolumaram-se em sua mente. O modo de rir. O olhar expressivo e ainda mais profundo nos momentos de paixão. A coragem diante de ameaças constantes à vida de ambos. O rosto pálido e a tristeza no olhar no momento em que o libertava do compromisso. Tess agira daquela maneira para o bem dele.

— Mas que droga! Não estou nem um pouco feliz. — Revan franziu a testa quando o cavalo resfolegou. — E ela também não está! Como pode ser essa a coisa mais certa a fazer? Nunca vi nada pior.

Revan sabia que o único remédio seria triunfar sobre seu maldito orgulho, que constituía a raiz do problema. Era muito orgulhoso para aceitar a fortuna de Tess. Analisando a questão friamente, pareceu-lhe mais inveja do que orgulho.

Tomou a refletir sobre o assunto. Estremeceu ao relacionar os bens e a riqueza de Tess. Sentiu-se um mendigo. Poderia ganhar terras e dinheiro se continuasse trabalhando como cavaleiro do rei. Mas para isso, teria de deixar Tess sozinha durante muito tempo. Sozinha para administrar os bens e defender a família. Ela era provida de inteligência para fazer isso, mas seria sobrecarregá-la demais.

Entretanto havia um motivo para a hesitação que Revan evitava considerar. E naquele momento a verdade surgiu clara, distinta.

Ele amava Tess.Não existiria solução simples por causa daquele vínculo emocional. Mas também seria uma tolice

ignorá-lo. E aceitar aquela verdade trouxe-lhe uma intensa satisfação.Pelo fato de amar Tess, saberia que não se casara com ela pela fortuna. Endireitou-se na sela e mirou as

sombras do castelo. Da mesma forma, Tess se convenceria do fato. Quase todos haveriam de considerá-lo um homem de sorte. Os outros não deveriam ser levados em conta. Era o que os verdadeiros amigos vinham lhe dizendo, mas ele se recusara a escutá-los, firme em sua teimosia. Naquela altura, de frente com a alternativa de viver sem Tess a seu lado ou viver com ela e a fortuna, passou a raciocinar com nitidez. Com certeza ele e Tess encontrariam meios de aplacar o orgulho. Poderiam deixar uma parte da fortuna em custódia para os filhos, da mesma forma que os pais de Tess haviam feito por ela.

Rindo sozinho, Revan virou Compañero na direção da fortaleza. Dessa vez confiava no acerto da decisão tomada. Quando lhe fora oferecida a oportunidade de fugir, sentira-se perturbado e infeliz. Decidido a voltar para Tess, não cabia em si de tanta ansiedade e ventura. Instigou o cavalo a um passo mais rápido. Precisava entrar na cela sem que o vissem, exatamente como saíra. Seria engraçado ver o rosto de Tess quando o encontrasse. Faria uma pausa apenas para desamarrar o pobre cavalariço.

— Aí vem Revan — Tomás alertou o tio. Sílvio empurrou-o para trás da muralha.— Não deixe que ele o veja.— Os dois acabarão por entender que sabemos de tudo. Ah, deveremos contar aos guardas por que

todos dormiram ao mesmo tempo.

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— O mais engraçado — Sílvio piscou para Tomás — será ver como Tess se comportará amanhã cedo.Os dois riram, divertidos.

Capítulo XII

Tess suspirou ao ver seu reflexo no espelho. Trajava um belíssimo vestido de seda dourado. Nos cabelos soltos, enfeites com fitas delicadas de ouro. Nunca se vira tão bonita. E tudo aquilo para nada. Em poucos minutos teria de enfrentar a ira da família. Precisaria fazê-los desistir de ir atrás de Revan. Não seria uma tarefa agradável.

— Está pronta, querida? — tio Sílvio chamou, depois de bater na porta.— Um instante. — Tess ensaiou um sorriso e engoliu a seco antes de abrir a porta.— Ah, minha sobrinha, como está linda! — Sílvio beijou-a no rosto e ofereceu-lhe o braço. — Seu

noivo ficará tão perturbado que nem conseguirá fazer o juramento.— Quem me dera se assim fosse — Tess falou para si mesma, enquanto desciam a escada.— O que foi que disse?— Nada, tio. Encontraram o padre?— Ah, sim. Tomás o trouxe da aldeia há cerca de uma hora. Ele está esperando no grande salão. Assim

que descermos, mandarei buscar o noivo.Tess estremeceu. O que deveria ser o dia mais importante de sua vida iria transformar-se em uma

catástrofe. Gostaria de esconder-se em algum canto e chorar até secar as lágrimas. Mas teria de suportar com firmeza uma forte confrontação emocional. Espantou-se que não houvessem dado pela falta de Revan. Se a fuga fosse descoberta mais cedo, não teria de vestir-se de noiva.

Por outro lado, fora uma vantagem para ele, que tivera mais tempo para distanciar-se do castelo.Entraram no grande salão. Enquanto Silvio a conduzia até o sacerdote, Tess espiou os homens ali

reunidos. Reconheceu alguns dos soldados da muralha, sorridentes e fazendo mesuras à sua passagem. Nenhum dos guardas demonstrou desconfiar de quem colocara sonífero na água.

— Tess, fique aqui com o padre. — Sílvio apresentou-a ao sacerdote e deu uma piscadela. — Ele lhe dará instruções sobre os deveres de uma boa esposa. Escute bem os conselhos do sacerdote. Vai precisar deles. Irei com Tomás buscar o noivo.

Sílvio afastou-se, e o padre levou a sério as ordens que recebera. Iniciou um sermão sobre o comportamento ideal de uma esposa. Tess aborreceu-se não pela monotonia das frases, mas por saber que não lhe diziam respeito. Jamais teria o que mais desejava em sua vida: um futuro ao lado de Revan. Depois de ouvir menções ao dever e à obediência por várias vezes, ela não escutou mais nada. De olhar fixo nas portas pesadas de madeira com tachões de ferro, esperava o clamor que logo se seguiria.

Sílvio, sorridente, aproximou-se da cela de Revan, chocalhando as chaves.— Sua noiva o espera.— Estou pronto. — Revan passou os dedos no gibão azul que usava.Sílvio testou a porta.— Trancada. — Abriu-a.— O senhor mesmo a trancou.— Ah, sim... da primeira vez.Revan olhou para Sílvio e Tomás. Os dois o observavam com sorrisos divertidos. Teve a intuição de

que eles sabiam do ocorrido.— Como está minha noiva? — Revan perguntou ao subir a escada. Por enquanto, nada diria sobre a

fuga.— Muito bonita e tensa como uma corda de arco — Sílvio respondeu, atrás dele.

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Revan tentou imaginar como Tess devia estar nervosa, esperando a fuga ser descoberta a qualquer instante. Gostaria que ela não ficasse muito perturbada pela volta imprevista de seu futuro marido. Hesitou no alto da escada, acometido por um traço de indecisão.

E se estivesse errado quanto aos verdadeiros sentimentos de Tess? Afinal, ela lhe facilitara a fuga. Seus motivos poderiam não ser tão nobres e altruístas como ele pensara que fossem. Talvez não quisesse se casar com ele.

Revan sacudiu a cabeça. Tess não teria ficado tão abalada ao despedir-se se não gostasse dele. Mesmo que não fosse o mesmo amor que ele tinha por ela, sem dúvida era uma emoção semelhante que começava a florescer.

— O senhor teve uma chance e fez sua escolha — Sílvio falou em voz baixa.— Eu sei. — Revan recomeçou a andar. — Foi apenas um leve ataque de incerteza.— Tess agradecerá se o senhor continuar o trajeto. Eu a deixei com o padre. Ele foi encarregado de lhe

ministrar ensinamentos sobre as virtudes de uma esposa cumpridora de seus deveres.— Isso é uma crueldade. Foi com intenção de castigá-la?— A preleção não fará nenhum mal a ela.— Ah, então devo correr para salvá-la novamente. — Revan apressou o passo, seguido por Sílvio e

Tomás, que não continham as risadas.Revan chegou ao grande salão e deteve-se ao deparar-se com Tess. Nunca a vira tão bonita. O tom

dourado do vestido era um complemento ideal para a tez morena. Ou melhor, seria se ela não estivesse tão pálida. Apressou-se em sua direção, com receio de que Tess desmaiasse.

Ela imaginou que a falta de sono, o sofrimento e as crises de choro que se sucederam durante a noite fossem responsáveis por aquela visão. Só teve certeza de que não se tratava de nenhum tipo de alucinação quando Revan aproximou-se e segurou-lhe a mão gelada. Ele estava a seu lado, trajado como um noivo e a olhava com preocupação.

— Revan — Tess pronunciou a palavra em um fio de voz. — Você está aqui...— E onde mais ele poderia estar? — Sílvio perguntou.A cinqüenta quilômetros de distância, ela teve vontade de responder.Seu tio pediu ao religioso que iniciasse a cerimônia. Tess ajoelhou-se ao lado de Revan, com inúmeras

perguntas fervilhando em sua mente. Ele não parecia ter sido arrastado de volta. Estava muito calmo. Incapaz de encontrar alguma resposta, Tess deixou-se levar pela solenidade.

— Um brinde aos noivos! — Sílvio gritou, em pé e com a taça de vinho erguida.Tess pegou o cálice quando Revan levantou-se e puxou-a para ela fazer o mesmo. Custara um pouco

para começar a raciocinar. Tinha a impressão de não haver participado pessoalmente da cerimônia de casamento nem do banquete. Pela primeira vez desde que Revan entrara no grande salão, desligava-se da idéia de estar encerrada em um sonho estranho.

Ergueu a taça e sorriu para os homens reunidos ao redor da mesa. Todos esperavam que Tess bebesse primeiro. O que era curioso, pois ela era a homenageada. Tess franziu a testa. Os indecisos eram as sentinelas da noite anterior.

Os guardas sabiam!Espantada, Tess tomou um grande gole da bebida para acalmar-se. Imediatamente, eles a imitaram,

confiantes de que não havia sonífero no vinho. Tornaram a sentar-se, e Tess refletiu sobre o fato. A surpresa transformou-se em aborrecimento. Se os guardas sabiam que ela fora a responsável pelo sonífero, Sílvio e Tomás não desconheciam o fato. A tentativa de libertar Revan não fora secreta. Não se surpreenderia se estivesse sendo vigiada desde que saíra do quarto. Passara horas angustiante! por nada. Tess fulminou o tio com um olhar feroz.

— O senhor sabia de tudo desde o início, não é? — ela falou com rudeza. — Fui eu que entrei no seu jogo. Não o senhor no meu.

Revan levantou-se depressa, segurou a mão de Tess e a fez ficar em pé.— Minha doce esposa e eu desejamos ir para os nossos aposentos.— Mas já? O sol nem se pôs. E eu ainda não terminei de falar com meu tio, conivente na...

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— Terminou, sim.Tess deu um grito quando Revan levantou-a e jogou-a por sobre o ombro. A saída deles do grande

salão foi seguida por um clamor de irreverências e obscenidades leves. Tess desabafou a raiva da maneira costumeira. Batendo nas costas do marido com os punhos fechados.

— Ponha-me no chão, seu idiota!— Isso é jeito de uma esposa falar com o marido? Pensei que o padre lhe tivesse dado algumas

instruções.— O sacerdote vomitou um monte de baboseiras que eu nem me dei ao trabalho de escutar. Agora

ponha-me no chão.— Quando chegarmos aos nossos aposentos.Tess proferiu uma imprecação e recebeu um tapa no quadril. Quando entraram no quarto, Revan jogou

a esposa sobre a cama grande de dossel. Ela sentou-se depressa e fitou-o com irritação. Nervosa, tirou os cabelos revoltos dos olhos.

De fato, não estava bem certa de qual seria o motivo de sua raiva contra Revan. Concluiu que era somente pela presença dele a seu lado. Passara uma noite terrível. Sofrerá pela partida do amado. Preocupara-se com as conseqüências da fuga. Para depois entender que fora uma agonia inútil.

— Eles o encontraram e o trouxeram de volta? — Tess perguntou.— Não. — Revan começou a tirar a roupa. — Cavalguei alguns quilômetros e resolvi regressar.— Mas eu fiz a sua vontade...Ela procurou manter a coerência diante de um assunto tão importante. Não teve sucesso. Quando

Revan tirou a camisa de Unho, só pôde pensar que ele tinha um tórax magnífico.— Uma vontade que eu pensava que tivesse. — Revan tirou o calção, foi até a cama e passou a mão

nos cabelos de Tess.Ela ajoelhou-se e encarou-o.— E agora...Ele levantou as saias e acariciou-lhe a coxa.— Eu a quero, Tess...Com a respiração acelerada, ela procurava evitar a atração que sentia pelo marido. Pôs as mãos no

peito dele e tentou empurrá-lo. Mas a pele quente e o coração disparado sob suas palmas a demoveram de qualquer intenção de imparcialidade. Revan começou a despi-la e beijou-a. Tess desistiu de reagir. As carícias dele eram o que mais lhe importava no momento.

Revan jogou o vestido de Tess em uma cadeira e terminou de tirar-lhe as peças íntimas. Deitou-a no colchão de penas e estendeu-se sobre ela. Tess estremeceu quando os corpos nus se tocaram. A noite que passara, pensando que nunca mais o veria, aumentava a ansiedade que sentia por Revan.

Ela correspondeu aos carinhos e aos beijos. Não se cansava de sentir a tepidez da pele de Revan e o gosto de seus lábios. Esforçou-se para reprimir o desejo de realização imediata. Gostaria que o prazer e a doce proximidade durassem para sempre.

Revan encarregou-se da união dos corpos ardentes. O grito de Tess foi uma mistura de deleite e desapontamento por saber que o ato de amor logo terminaria. Ela se agarrou em Revan, retribuiu o beijo selvagem e arqueou o corpo ao máximo para sentir toda a pujança do marido. Nem mesmo percebeu que o êxtase a fazia confessar o que estava guardado no fundo de seu coração. Só ouvia Revan chamá-la com voz rouca. Tess abraçou-o com as pernas, e ambos alcançaram a realização.

Depois de algum tempo, Tess observou-o sair da cama, lavar-se e voltar para brindá-la com mais daquela intimidade.

Ela sentou-se para arrumar as cobertas. Só então notou que uma carta fora deixada sobre a colcha. Nenhum dos dois percebera a missiva. Tess arregalou os olhos. Tinha o lacre real, e o destinatário era Revan. Estendeu-lhe a carta. A surpresa dele foi idêntica.

— Devem ser novas ordens — Revan comentou e abraçou a esposa pelos ombros. Divertiu-se por ver que Tess abaixava os olhos para não ler, até descobrir do que se tratava. — Recebi como recompensa

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todos os bens de MacKinnon — Revan falou em voz baixa. — Uma bela propriedade, além de todo o di-nheiro e outros bens.

— Ah, Revan, que notícia maravilhosa! Já não era sem tempo para que o rei reconhecesse a sua lealdade.

Tess beijou-o e aconchegou-se a seu lado. Estava feliz por ele ter recebido um prêmio mais do que merecido. Mas também porque dali para a frente Revan teria sua própria fortuna e os dois, o mesmo nível de riqueza. Estranhou o cenho franzido de Revan.

— O que houve? O rei quer que parta amanhã para alguma missão?— Não é isso. Diga-me uma coisa, Tess. Quando lhe foram concedidos os haveres de Thurkettle,

disseram-lhe mais alguma coisa?— Bem, tio Sílvio afirmou que havia algumas condições curiosas, mas que as discutiríamos depois.— Que patife! — Revan murmurou e depois riu, balançando a cabeça.— O que há?— Acho que seu tio sabia da sua decisão de me libertar.— Talvez tenham lhe dito antes de deixarmos a casa de Isabella. Por quê?— Nós estávamos fazendo o jogo dele. Essa é a única razão por que Sílvio nada disse sobre as tais

condições curiosas. A fortuna de Thurkettle seria inteiramente sua, se eu rompesse o noivado. Contudo, agora é metade minha, pois cumprimos as regras.

Tess arrancou a carta das mãos de Revan. Leu-a duas vezes.— Ele pode fazer isso?— Ele é o rei. — Revan beijou-lhe o rosto. — Pode agir de acordo com a sua vontade. Ficou com

raiva?— Claro que não. — Ela meneou a cabeça. — Tio Sílvio esteve brincando conosco. Se ele lhe contasse

a verdade...— Eu teria ficado? Sílvio deve ter imaginado que seria uma razão muito pequena para um casamento.

E estava certo. Ele queria que eu voltasse por sua causa, Tess. Por descobrir que realmente era isso que eu queria. E não porque o rei, bondosamente, nos deixou em pé de igualdade. Seu tio queria que eu vencesse meu orgulho antes do casamento.

— Foi o que aconteceu, Revan?Os dois se deitaram. Revan abraçou Tess e encostou o rosto em seus cabelos.— Exatamente. Acredito que eu precisava enfrentar a perda para entender o que mais me importava. —

Ele deu de ombros.— Descobri também que, para ser bem honesto, meu orgulho vinha com traços de inveja.— Por que inveja? Eu não fiz jus ao que possuo. Herdei tudo de pessoas mortas. Ao contrário de sir

Revan Halyard, que mereceu cada moeda ganha.Revan virou-a de frente para ele.— A doação deste castelo foi bem-merecida.— É, pode ser. — Tess corou, com um pouco de orgulho.— Saí daqui achando que a sua decisão fosse correta. Mas isso por eu não ter analisado a mim mesmo

com atenção. Todos diziam que não importava o dinheiro, se eu tivesse certeza de que não me casava apenas por um punhado de moedas. Entendi isso quando saí do castelo.

— Revan, jamais pensei que estivesse atrás da minha fortuna. Nem mesmo quando lhe menti sobre o valor dos meus bens. Eu não saberia explicar o motivo que me levou a não revelar a verdade.

— Talvez estivesse prevendo o grande tolo que eu era. Estava pronto para jogar fora a nossa felicidade e trazer sofrimento a nós dois por causa de um preconceito. Quando fui embora, senti-me confuso, hesitante e infeliz. E tudo isso desapareceu no instante em que tomei a decisão de voltar. Por causa desse meu maldito orgulho, eu ia abandonar o que mais queria neste mundo. Uma jovem morena, linda e charmosa que me ama muito mais do que eu mereço.

As palavras dele a deslumbraram, exceto a última frase.— Eu nunca disse isso. — Tess abaixou as pálpebras.

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— Disse, sim. — Revan sorriu e virou-lhe o rosto, segurando-o pelo queixo. — Confessou não faz muito tempo...

Tess cobriu-lhe a boca com a mão.— Ah, foi apenas o calor do momento. — Ela se lembrava vagamente do que dissera.Revan beijou-a.— Tess, eu a deixei temerosa de me amar?— Não! É que...— Ah, então também se trata de orgulho! — Ele deitou-a de costas e impediu-a de levantar-se.— Todo o mundo tem um pouco...— Eu sei. Teremos de encarar esse sentimento com precaução para que não nos cause danos.— Eu não me deixo governar por ele — Tess protestou. Era pura covardia não abrir o coração para Revan, mas ela não pensava em confessar.— Então, olhe bem nos meus olhos e diga que não me ama. Tess fulminou-o com o olhar. O jogo era injusto. Ambos sabiam que ela, como mentirosa, não

convencia ninguém. Poderia dizer que não o amava, mas o próprio olhar a desmentiria.— Ora, por que não vai fazer alguma coisa e pára de me atormentar? Uma ótima idéia seria dar uma

surra em tio Sílvio.Revan riu e beijou-lhe o pescoço.— Diga logo que não consegue mentir.— Ah, está bem. Chega! Eu o amo? Está feliz agora? Como resposta, ela recebeu um beijo ardente.— Ah, quanta doçura... — Revan caçoou da maneira intempestiva de Tess falar. — Isso é que é saber

agradar a um homem. — Riu quando ela deu-lhe um tapa no peito. — Ora, Tess, qual é o problema de nos amarmos? Por que esse receio?

—Nos amarmos? — ela repetiu as palavras em um sussurro. — Quer dizer que... você me ama?— O que acha que me trouxe de volta?— Dever... honra... seu cavalo.Revan fingiu não ter escutado o último absurdo.— Nenhum dever ou honra seriam suficientes para me curar do meu orgulho destrutivo. Eu amo você.

— Ele abraçou-a, e Tess encostou o rosto no tórax musculoso. — Foi o que me fez entender que o meu regresso era a única alternativa correta que me restava.

— Quando descobriu que me amava?— Bem, é difícil dizer. O orgulho regia minha vida. Eu tinha certeza de que, se a amasse, agiria contra

esse excesso de dignidade pessoal. O amor estava lá, mas eu tentei ignorá-lo. Mesmo quando a vi em poder de Thurkettle e fiquei louco de medo, evitei admitir a verdade. E quando descobriu que me amava, Tess? — Revan esfregou o queixo no alto da cabeça da esposa.

— Na caverna. Naquela noite em que você saiu para despistar os soldados de Thurkettle. Ao vê-lo voltar são e salvo, entendi o que se passava comigo.

Ela ficou agarrada em Revan por um longo tempo, saboreando a certeza de que ele a amava. Teve de dominar uma vontade incrível de verter quantas lágrimas tivesse. Ele, como todos os homens, não entenderia o desabafo de alegria e de libertação de todos os temores.

— Agora está tudo bem, Revan?— Está, meu amor, minha condessinha morena. Reservarei meu orgulho para coisas mais importantes.

Como, por exemplo, para a minha adorável esposa de olhos negros e para todos os lindos filhos que tivermos. As bobagens que eu pensava foram enterradas na floresta onde eu fiquei por algum tempo, lutando contra o meu coração.

Tess fechou os olhos e suspirou, aliviada. As palavras de Revan convenceram-na de que nenhum sentimento destruidor ameaçaria a felicidade deles.

— Está mais tranqüila, Tess?— Estou.— Mais nenhum receio?

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— Bem... eu não diria isso. — Ambos riram. — Casamento é um assunto muito sério. Quero fazer tudo certo e agir de acordo com as regras, para que a nossa vida possa ser feliz.

— Sei que terá o maior sucesso nessa empreitada, meu amor. — Revan beijou-lhe os lábios. — Nós nos amamos, e esse é o caminho certo para um bom casamento.

— Acredito nisso. Não será difícil. — Ela acariciou-lhe a panturrilha com os dedos do pé. — já decidiu qual o nome que dará ao seu cavalo?

— Ah-ah! Compañero. E por acaso pensou em um nome para o castelo? — Revan mordiscou-lhe a orelha.

— Castelo de Halyard. Revan? — Tess acariciou-lhe as costas.— O quê? — Ele beijou-lhe o pescoço e começou a perder o interesse pela conversa.— Eu darei o nome aos nossos filhos. — Tess fez uma careta e fingiu mau humor. — Tremo só ao

pensar que os pobrezinhos serão chamados de Menino ou Menina.Revan segurou-lhe o rosto com as mãos em concha.— Teremos os filhos mais lindos de toda a Escócia.— Com olhos azuis e cabelos loiros.— Eu estava pensando em crianças com cabelos e olhos negros.— Será esse o nosso primeiro desentendimento matrimonial? — Tess perguntou, com um sorriso

maroto.— Será ótimo se eles forem sempre tão pequenos. Escute bem. Por mais que eu fique nervoso, por

mais infeliz que seja uma atitude minha, esteja certa de que sempre a amarei, Contessa Comyn-Delgado Halyard.

— E eu também o amarei, sir Revan Halyard. Muito, muito. E até o fim dos meus dias.— Um bom começo, meu amor — Revan murmurou e beijou-a.

F I M

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