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HANNAH ARENDT Pensamento, Revolução e Poder

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HANNAH ARENDT Pensamento, Revolução e Poder

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Edilene Maria da ConceiçãoElivanda de Oliveira

Fábio A. PassosJosé Luiz de Oliveira

(organizadores)

HANNAH ARENDT Pensamento, Revolução e Poder

Editora LumEn Juris rio dE JanEiro

2016

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Copyright © 2016 by Edilene Maria da Conceição

Elivanda de OliveiraFábio A. Passos

José Luiz de Oliveira

Categoria: Filosofia

Produção EditoriaL

Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Bianca Callado

A LIVRARIA E Editora LumEn Juris Ltda.não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características

gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895,

de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados àLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

H243 Hannah Arendt: pensamento, revolução e poder/ Edilene Maria da Conceição ... [et al.] (organizadores). – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2016. 256 p. ; 21 cm.

Trabalhos apresentados no VII Encontro Hannah Arendt, realizado na Universidade Federal de São João del Rei, MG, de 7 a 9 de maio de 2014.Inclui bibliografia.ISBN 978-85-8440-521-3

1. Arendt, Hannah, 1906-1975. 2. Ciência política - Filosofia. I. Conceição, Edilene Maria da.

CDD 320.01

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Sumário

Apresentação .......................................................................... 1

Reflexões sobre Poder e Revolução em Hannah Arendt .... 5Maria Francisca Pinheiro Coelho

A Filosofia à Prova da Política: Arendt e Foucault, Leitores de Sócrates ............................................................... 17

Anderson Aparecido Lima da Silva

Hannah Arendt: El Pensar y sus Metáforas ........................ 27Beatriz Porcel

Arendt: Ação Humana, Educação e a Instabilidade do Mundo ............................................................................... 37

Nei Jairo Fonseca dos Santos Junior

Hannah Arendt e o “Incômodo Problema do Absoluto na Política” ............................................................. 47

Daiane Eccel

Ação e Poder – Crítica da Política na Modernidade ........... 55Nádia Junqueira Ribeiro

Hannah Arendt e o “Poder” da Fundação .......................... 65Sônia Maria Schio

A Questão da Identidade Política de Hannah Arendt e a Identidade Narrativa de Paul Recouer ........................... 75

Edilene Maria da Conceição

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As Revoluções Modernas e o Problema do Fundamento da Constituição ................................................ 85

Bárbara Gonçalves de Araújo Braga

Da Experiência Daqueles que Souberam Pensar: O Exemplo .............................................................................. 93

Maria Cristina Müller

Espaço Público, Poder e Direito ........................................... 103Klelton Mamed de Farias

Mundo e Pensamento ........................................................... 113Rodrigo Ribeiro Alves Neto

Notas sobre o Conceito Arendtiano de Natureza Humana ................................................................. 125

Alfons C. Salellas Bosch

Opinião e Verdade na Teoria da Ação de Hannah Arendt ...................................................................... 135

Geraldo Adriano Emery Pereira

O Conceito de Justiça em Hannah Arendt: A Questão do “Direito a Ter Direitos” ................................ 147

Gustavo Jaccottet Freitas

Hannah Arendt e o “Poder” da Liberdade Política ............ 155Rossana Batista Padilha

Sobre Política e Arte Contemporânea: Um Diálogo com Hannah Arendt ........................................ 163

Cícero Samuel Dias Silva

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Notas sobre o Preconceito e o Juízo Político em Hannah Arendt ................................................................175

José dos Santos Filho

O Judeu como Pária e a Questão da Cidadania no Pensamento Político de Hannah Arendt ........................ 185

Cláudia Carneiro Peixoto

A Figura do Pária Rebelde: Expressão da Polítca e da Liberdade em Hannah Arendt no Contexto da Questão Judaíca ................................................................ 197

Ricardo George de Araújo Silva

A Ascensão do Social e a Privação da Presença Pública ....209Celso Antônio Coelho Vaz

Da Ruptura com a Tradição à Primazia da Ação Política: Arendt, Pensadora Republicana? ................. 219

Elivanda de Oliveira Silva

A Compreensão dos Direitos Humanos nas Perspectivas de Hannah Arendt e Leo Strauss ................... 227

Fábio Abreu dos Passos

A Interpretação Arendtiana de Conceitos Kantianos da Terceira Crítica como Paradigma do Sentido da Política ............................................................................... 239

José Luiz de Oliveira

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Apresentação

São João del-Rei, a “terra onde os sinos falam”, nos dias 7, 8 e 9 de maio de 2014, se inclinou para ouvir as reflexões dos mais importantes estudiosos do pensamento de Hannah Arendt acer-ca dos temas “Pensamento, Revolução e Poder”. As reflexões em torno desses temas transcorreram durante o VIII Encontro Han-nah Arendt, evento acadêmico que é realizado todos os anos, em cidades diferentes do Brasil e da América Latina, e que em 2014 ocorreu nas dependências da Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ –, em Minas Gerais.

Diversos textos apresentados neste evento foram elaborados por importantes pensadores de várias Universidades do Brasil e da América Latina, que há algumas décadas se empenham no estudo aprofundado do pensamento de Hannah Arendt e os quais foram copilados no presente livro. Assim, os textos ora apresentados gra-vitam em torno da filosofia política de Hannah Arendt, funda-mentalmente no que tange às temáticas referentes ao Pensamento, à Revolução e ao Poder.

O VIII Encontro Hannah Arendt, que se imortaliza nas pá-ginas dessa obra, ratifica o alcance e profundidade que a obra de Hannah Arendt tem tido junto à intelectualidade e à vida aca-dêmica de maneira geral, que se empenham na difícil tarefa de pensar o mundo contemporâneo, mundo advindo das entranhas das duas Grandes Guerras, mas que apresentou sua face mais sombria, sobretudo, nos horrores perpetrados durante a Segunda Guerra. O evento da Segunda Grande Guerra pode ser compre-endido como fruto de uma crise que deitou raízes a partir do Sé-culo XX e que se alastra no transcorrer do século XXI, uma crise

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Edilene Maria da ConceiçãoElivanda de OliveiraFábio A. PassosJosé Luiz de Oliveira

envolta em uma sociedade massificada, que pensa o ser humano a partir de critérios de útil e inútil e que perdeu a capacidade de conservar e preservar o mundo edificado por suas mãos. Nessa perspectiva, as reflexões acerca dos temas Pensamento, Revolu-ção e Poder procuram trilhar uma via argumentativa no intui-to de iluminar “tempos sombrios”, que apontam que os transes com que o Ocidente foi submetido por ocasião do fenômeno dos regimes totalitários parecem ganhar contornos mais drásticos e profundos na contemporaneidade.

O tema do pensamento ocupa lugar central na filosofia de Hannah Arendt. Referir-se ao pensamento em Hannah Arendt é voltar-se para o thaumadzein como condição primeira para o des-pertar dessa atividade. O Pensar (Thinking) é para Hannah Arendt a busca de sentido (a distinção kantiana entre pensar e conhecer é aqui ponto nodal) e o que ela quer explicitar é se essa atividade faz parte ou não das condições que levam o homem a evitar o mal e até mesmo o condicionam negativamente em relação ao mal. A tópica da revolução é muito cara ao pensamento político arendtia-no, uma vez que a pensadora lida com o fenômeno das revoluções modernas identificando-os como acontecimentos sem precedentes na história. O fenômeno revolucionário é compreendido enquanto novidade que surge nesse mundo em que habitamos por meio de um começo, cuja característica principal repousa no fato dele ser marcado pela inevitabilidade. “As revoluções são os únicos even-tos políticos que nos confrontam, direta e inevitavelmente, com o problema do começo” (ARENDT, p. 1990, 17). O tema do poder em Hannah Arendt associa a autora ao espaço constituído pelos pensadores que apostam no uso da palavra e na construção da ação em conjunto. Dessa maneira, Hannah Arendt nos apresenta a sua concepção de poder diferindo-o da força e da violência. Pen-samento, revolução e poder são elementos importantíssimos para compreendermos o conjunto do pensamento de Hannah Arendt

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Hannah ArendtPensamento, Revolução e Poder

por eles apresentarem condições de estabelecer interfaces com ou-tros temas abordados pela autora ao longo de sua obra.

A discussão sobre esses temas visa esclarecer pontos nefrál-gicos da obra dessa singular pensadora do Século XX e proporcio-nar ao seu leitor imprescindíveis ferramentas argumentativas para pensar os momentos sombrios do pós Segunda Guerra Mundial, que se alastram por todo o mundo, levando à intolerâncias re-ligiosas, étnicas e, consequentemente, a um apequenamento do verdadeiro sentido do político que, no entendimento de Hannah Arendt, é cuidar do mundo, pois o mundo sem homens é uma contradição em termos. Contudo, o que os tempos mostram é que o verdadeiro sentido da política está sendo esvaziado, uma vez que os fenômenos de intolerância e de ódio ao diferente, ao plural, que é a “lei da terra” tem crescido vertiginosamente.

A todos, uma boa leitura!

Os Organizadores

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Reflexões sobre Poder e Revolução em Hannah Arendt

Maria Francisca Pinheiro Coelho1

Hannah Arendt conceitua o poder como a capacidade hu-mana de construir acordos. Distingue-o da violência por ser de natureza instrumental e, como todos os meios, necessitar de jus-tificativa. Substituir o poder pela violência pode trazer a vitória, mas a um preço muito alto, que “não é apenas pago pelo venci-do, mas também pelo vencedor em termos de seu próprio poder” (AREDNT, 1999, p. 130-131).

Este trabalho procura desenvolver uma reflexão sobre a dis-tinção entre os conceitos de poder e violência na autora, à luz de sua análise sobre a revolução, fenômeno social que conjuga poder e violência. Existe um pensamento comum que permeia a cons-trução dos seus conceitos de poder, violência e revolução? Como combiná-los e distingui-los em seu pensamento? Qual o alcance e quais os limites dessas distinções?

Sustenta-se aqui que as separações muitas vezes rígidas desses conceitos no pensamento de Hannah Arendt, objeto de algumas das mais divulgadas críticas à autora, são diluídas e relativizadas em sua análise de fenômenos sociais concretos como a revolução. Sugere-se, então, que a autora, ao examinar situações reais, que não admitem dicotomias, dilui de certa forma o peso dessas distin-

1 Doutora em Sociologia pela UnB. Professora Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.

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Maria Francisca Pinheiro Coelho

ções, em virtude das soluções e desdobramentos encontrados na própria análise dos problemas.

O texto procura estabelecer um vínculo implícito, mas nem sempre reconhecido pelos leitores e críticos, entre a análise de Arendt de fenômenos concretos e a elaboração de seus conceitos. Deve-se considerar que suas pesquisas históricas se concentram em torno de dois casos extremos: o aniquilamento da liberdade em regimes totalitários e a fundamentação revolucionária da liberda-de política. Essas pesquisas resultaram em seus livros The Origins of Totalitarianism, de 1951, e On Revolution, de 1963.

Considerando o estudo desses dois casos extremos, podemos pensar em uma correspondência entre os conceitos de poder e re-volução, aparentemente contraditórios em seu pensamento, por implicar o primeiro a construção de um acordo; e o segundo, o uso da violência. No entanto, o que une os dois conceitos na aná-lise desses dois casos – o totalitarismo e a revolução, a ausência de poder em um e a plenitude do poder no outro – é o compo-nente da liberdade, que está nas lutas de libertação e no princípio de fundação de novas instituições. Nesse sentido, os movimentos revolucionários se caracterizam por conter em si os elementos da liberdade contra a opressão e os da fundação de uma nova ordem. O fenômeno da revolução se caracterizaria pela sua natureza liber-tária e de foundation.

Com base na relação intrínseca entre os estudos históricos de Hannah Arendt e a elaboração de seus conceitos, o presente tex-to busca relativizar as críticas de Noel O’Sullivan (1982) e Jürgen Habermas (1980) ao pensamento de Hannah Arendt. As críticas desses autores se concentram nas escolhas teóricas de Arendt e consequentemente em uma separação rígida das categorias de esfera pública e esfera privada, bem como dos conceitos de poder e violên-cia, ao abordar as configurações e tensões da sociedade moderna.

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Reflexões sobre Poder e Revolução em Hannah Arendt

As críticas de Noel O’Sullivan e Jürgen Habermas

O que existe em comum nas críticas de Noel O’Sullivan e de Jürgen Habermas a Hannah Arendt é que, para os dois autores, Arendt, no diagnóstico feito da sociedade moderna, teria ficado refém de uma visão da política do mundo antigo, em particular da polis grega e do pensamento aristotélico.

O’Sullivan, apesar de não poupar elogios ao livro Origens do Totalitarismo, por ele considerado um clássico na teoria política, cri-tica a autora pelo seu entusiasmo exacerbado à Antiguidade oci-dental. Segundo o autor, Hannah Arendt, ao situar a ação como atividade humana por excelência, adota a visão dos antigos, assim como sua concepção de que a política ensina os homens a produzir o que é grande e radiante. Coerente com esse enfoque, decorre a análise da autora de que, na sociedade de massa, o comportamento substitui a ação como modo principal da relação humana.

Essa visão positiva da política, segundo o autor, leva Arendt a indagar, com base nas mudanças ocorridas na sociedade moder-na, sobre o sentido da política nessa sociedade. Para Arendt, de acordo com a visão crítica de O’Sullivan,

A felicidade, no sentido moderno, passou, portanto, a significar a invasão da política pela economia. O resul-tado foi a criação de uma nova faceta de vida totalmente desconhecida no mundo antigo e medieval, que Arendt rotula ‘a esfera social’. [...] E ao permitir que atividades de natureza privada assumam o sentido público num tempo relativamente curto, a esfera social ‘transformou todas as comunidades modernas em comunidades de trabalhado-res e empregados’. (1982, p. 231-232).

O’Sullivan critica como rígida a separação de Arendt das es-feras pública, social e privada. Para ele, o que torna a posição da

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Maria Francisca Pinheiro Coelho

autora problemática é a assunção subjacente de que toda atividade pode ser nitidamente classificada como privada, social ou política. Nenhuma atividade é, como quer Arendt, exclusivamente priva-da, social ou pública, pois de fato representa os três aspectos. No entanto, ele reconhece que,

Enquanto o conceito de esferas privada, pública e social pode ter pouco peso na determinação do terreno legítimo da ação do governo, as duas primeiras dessas categorias deram resultados notáveis quando aplicadas por Arendt à análise de uma das mais insólitas características da vida pública do século XX, ou seja, a emergência do totalitaris-mo. (Ibidem, p. 233).

O autor salienta também a importância da análise Hannah Arendt da esfera pública como o espaço de nossa inserção no mundo. Nesse sentido, o declínio da esfera pública se constitui em condição necessária à ascensão do totalitarismo. Se, segundo Arendt, o terror é o meio pelo qual se consegue a fuga da realidade e a sustentação da condição da não verdade, a mentira totalitária é a própria essência dessa forma de governo.

O’Sullivan cita ainda a semelhança da análise de Hannah Arendt com a de Max Weber ao mencionar a autora a aliena-ção do mundo provocada pela sociedade moderna como a marca distintiva da Idade Moderna e não, como tratava Marx, a autoa-lienação. Nesse sentido, para Arendt, segundo o autor, a solução para restaurar a esfera pública é a revolução. Assim, para ela, o gosto pela liberdade só poderá ser readquirido por meio da ação revolucionária, que inclui a violência, quando se visa conseguir uma mudança total da ordem social.

A crítica de Jürgen Habermas, também fundamentada no vínculo de Arendt à tradição helenista, vai se concentrar no seu conceito de poder. Habermas concorda com Arendt sobre a de-

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Reflexões sobre Poder e Revolução em Hannah Arendt

finição do poder como um acordo realizado quanto a uma ação comum, sem violência; mas identifica limitações nesse conceito ao não conceber a ação estratégica, que visa ao êxito, como compo-nente do poder. De fato, argumenta o autor, o poder legítimo só se origina entre aqueles que formam convicções comuns em um pro-cesso de comunicação não coercitivo. Porém, segundo Habermas, o conceito de Hannah Arendt não é suficiente para compreender a competição na sociedade em torno do poder.

Desse modo, de acordo com o autor,

O conceito de político deve estender-se para abranger também a competição estratégica em torno do poder polí-tico e a aplicação do poder ao sistema político. A política não pode ser idêntica, como supõe H. Arendt, à práxis daqueles que conversam entre si, a fim de agirem em co-mum. (HABERMAS, 1980, p. 115).

Para Habermas, a favor da tese de Hannah Arendt há o argu-mento de que a dominação política só é duradoura quando é reco-nhecida como legítima. Contra sua tese, testemunha a experiência de que “as relações sociais estabilizadas através da dominação política somente em casos muitos raros fundam-se numa opinião em torno da qual muitos se puseram publicamente de acordo” (ibidem, p. 115).

Arendt teria permanecido vinculada à constelação histórica e conceitual do pensamento aristotélico. Ao estilizar a imagem da polis grega, transformando-a na essência do político, a auto-ra “constrói dicotomias conceituais rígidas entre o ‘público’ e o ‘privado’, Estado e economia, liberdade e bem-estar, atividade político-prática e produção, não aplicáveis à moderna sociedade burguesa e ao Estado moderno” (ibidem, p. 109).

De acordo com o autor, o conceito de poder comunicativa-mente produzido por Arendt só pode transformar-se em um ins-trumento válido se o desvincularmos de uma teoria da ação inspi-

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Maria Francisca Pinheiro Coelho

rada em Aristóteles. A condução da guerra é um modelo clássico da ação estratégica, mas Arendt não vê isso porque está presa à divisão entre os assuntos da polis e da guerra.

Entretanto, tanto Habermas como O’Sullivan vão destacar a enorme sensibilidade de Arendt para a análise de situações con-cretas. Segundo Habermas, o que interessa a Arendt nos movi-mentos emancipatórios é a desobediência civil com relação a ins-tituições que perderam sua força e legitimidade; a confrontação do poder gerado pela livre união dos indivíduos com os instrumentos coercitivos de um aparelho estatal violento, mas impotente; o sur-gimento de uma nova ordem política; a tentativa de estabilizar o novo começo, a situação revolucionária original, e de perpetuar institucionalmente a gestação comunicativa do poder.

É fascinante observar como H. Arendt percebe em dife-rentes ocasiões o mesmo fenômeno, como quando os re-volucionários se apropriam do poder que está nas ruas; quando a população que optou pela resistência passiva enfrenta tanques estrangeiros, com mãos desarmadas; quando minorias convictas disputam a legitimidade das leis existentes e organizam a resistência civil. (HABER-MAS, 1980, p. 107-108).

Para o autor, em todos esses movimentos, parece afirmar-se a tese arendtiana de que ninguém possui verdadeiramente o poder: o poder surge entre os homens que atuam em conjunto, e desapa-rece quando eles novamente se dispersam. Para Habermas, esse conceito enfático da práxis em Hannah Arendt é mais marxista que aristotélico.

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Reflexões sobre Poder e Revolução em Hannah Arendt

Poder e revolução

Em sua análise sobre a revolução, Hannah Arendt mantém o conteúdo de seu conceito de poder como construção de um enten-dimento, mas acrescenta a necessidade do uso da violência como imprescindível à fundação de uma nova ordem que se impõe como uma necessidade da luta contra a opressão. Para a autora, o início como marco guarda uma relação com o problema da revolução, “porque as revoluções são os únicos eventos políticos que nos co-locam diante do problema dos inícios de uma maneira frontal e inescapável” (2011, p. 47).

De acordo com Arendt, o conceito moderno de revolução está indissoluvelmente ligado à ideia de ruptura, de que algo novo está para se desenrolar, uma história completamente nova, uma história jamais narrada ou conhecida antes. Essa experiência era desconhecida antes das duas grandes Revoluções modernas do sé-culo VIII, a Americana e a Francesa.

Postas em marcha essas revoluções, antes mesmo que os par-ticipantes pudessem perceber se os acontecimentos levariam à vi-tória ou à derrota, “a novidade da história e o significado íntimo de sua trama se fizeram evidentes aos atores e igualmente aos ex-pectadores” (ibidem, p. 56). O enredo da revolução é a liberdade. O primeiro significado dos ingredientes da revolução é o de foun-dation; e o segundo, o do espírito da liberdade. A palavra revolucio-nário só pode ser aplicada a revoluções cujo objetivo é a liberdade.

Assim, para Hannah Arendt, o fundamental para qualquer compreensão das revoluções na Era Moderna é a convergência en-tre a ideia de liberdade e a experiência de um novo início. Como marca das revoluções, a liberdade que as move é a liberdade em relação à opressão. Para a autora, frequentemente fica difícil dizer onde termina o simples desejo de estar livre da opressão e onde começa o desejo de liberdade como modo político de vida.

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Maria Francisca Pinheiro Coelho

A dificuldade de traçar a linha entre a libertação e a liberda-de em qualquer conjunto de circunstâncias históricas não significa que ambas sejam iguais, ou que aquelas liberdades que são con-quistadas em virtude da libertação resumam a história completa da liberdade. Entretanto, na maioria dos casos, nem mesmo os que se lançaram simultaneamente à libertação e à fundação da liberdade distinguiram muito claramente entre elas. Nesse ponto, Hannah Arendt está se referindo mais ao espírito republicano que vai predominar nas tendências dos pais fundadores da Revolução Americana e ao espírito autoritário-redentor predominante nos dirigentes da Revolução Francesa.

A experiência das duas grandes revoluções foi a experiência da capacidade humana de iniciar algo novo, uma experiência que revelava a capacidade do homem para a novidade. Essas duas coisas juntas estão na raiz do enorme pathos das duas grandes Revoluções modernas, a Americana e a Francesa: “Apenas onde existe esse pa-thos de novidade e onde a novidade está ligada à ideia de liberdade é que podemos falar em revolução” (ARENDT, 2011, p. 63).

Para Arendt, o fato de a revolução vir à tona por meio da violência não retira a importância primeira de seus dois elementos identificares: o de fundação e a liberdade. Isso porque a violência é um instrumento da revolução, não seu conteúdo:

Mas a violência, tal como a mudança, não é adequada para descrever o fenômeno da revolução; apenas quando a mudança ocorre no sentido de criar um novo início, quan-do a violência é empregada para constituir uma forma de governo totalmente diferente e para gerar a formação de um novo corpo político, quando a libertação da opressão visa pelo menos à constituição da liberdade, é que se pode falar em revolução. (Ibidem, p. 64).

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Reflexões sobre Poder e Revolução em Hannah Arendt

O enorme pathos de uma nova era encontra-se assim em ter-mos quase idênticos e em variações intermináveis entre os atores da Revolução Americana e da Revolução Francesa. A violência está no nascedouro dos processos revolucionários em suas várias fases, entretanto não constitui o objetivo da revolução, mas um meio. No entanto, de acordo com Arendt, é necessário considerar que a novidade, o início e a violência são elementos associados ao conceito de revolução.

As obras The Origins of Totalitarianism e On Revolution pre-figuram o conceito de poder em Hannah Arendt, retomado depois em seu ensaio On violence, de 1970, no qual a autora prontifica que o poder nunca é propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e existe somente enquanto o grupo se conserva unido. E exemplifica ao mencionar o poder das revoluções:

Onde as ordens não são mais obedecidas, os meios da vio-lência são inúteis; e a questão desta obediência não é re-solvida pela relação ordem-violência, mas pela opinião, e naturalmente pelo número de pessoas que a compartilham. Tudo depende do poder atrás da violência. O repentino e dramático colapso do poder que anuncia as revoluções revela num lampejo como a obediência civil – às leis, ins-tituições, dirigentes – nada mais é que uma manifestação exterior de apoio e consentimento. (1999, p. 126-127).

Considerações finais

Como reconhecem O’Sullivan e Habermas, as suas críticas não invalidam a força interpretativa do pensamento de Hannah Arendt ao analisar situações históricas concretas. Quanto à críti-ca de Habermas em relação a Hannah Arendt não ter incluído em

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Maria Francisca Pinheiro Coelho

seu conceito de poder a ação estratégica, que visa ao êxito e não ao entendimento, os estudos da autora mostram em que situações a violência reveste-se de legitimidade.

Habermas critica o conceito de poder em Arendt a partir da sua própria teoria da ação comunicativa, que inclui a ação instru-mental, a ação estratégica e a ação comunicativa. Para o autor, Arendt teria definido o poder apenas no âmbito da ação comu-nicativa. Entretanto, a definição do poder legítimo em Habermas o aproxima mais que o distancia da autora, ao presumir ele que a legitimidade do poder está na formação da opinião em um espaço público compartilhado.

Está evidente também, nos termos do autor e provavelmente na compreensão de Hannah Arendt, a legitimidade da ação estra-tégica em um ambiente de conflito em torno do poder na esfera política. Nesse sentido, na esfera política, a esfera do poder político – o Estado – teria espaço tanto para a ação comunicativa como para a ação estratégica, que visa ao êxito e não apenas ao entendimento.

Pelo exposto, consideramos, sim, que existe uma coerência en-tre o estudo de Hannah Arendt sobre as duas grandes revoluções modernas e seus ensaios mais conceituais sobre a violência. Claro que, quando se pensa sobre o tema da revolução, o problema da vio-lência está presente, mas sempre como instrumento e não na condi-ção de razão de ser do poder. Mesmo no curso de uma revolução, a violência continua sendo um fenômeno marginal na esfera política. Nos movimentos libertários, o poder se manifesta naqueles atos re-volucionários que fundam novas instituições da liberdade.

Nesse sentido, as próprias críticas de O’Sullivan e de Ha-bermas comportam em si a solução, ao valorizarem os estudos em-píricos de Hannah Arendt, a partir dos quais seus conceitos são elaborados. Seus recursos à filosofia política e à contribuição dos antigos provêm de sua formação em filosofia e estão ligados aos ventos de seu pensamento. As escolhas intelectuais da autora, no

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Reflexões sobre Poder e Revolução em Hannah Arendt

entanto, não contrariam sua intenção de objetividade ao analisar fenômenos sociais concretos.

Referências

ARENDT, Hannah. Da violência. In: ARENDT, Hannah. Crises da República. Tradução de José Volkmann. 2. ed. São Paulo: Pers-pectiva, 1999.

______. On Revolution. New York: Penguin Books, 1990.

_____ . On Violence. New York: A Harvest Book, 1970.

______ . Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

______. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

_____. The Origins of Totalitarianism. New York: A Harvest Book, 1979.

HABERMAS, Jürgen. O conceito de poder em Hannah Arendt. Tradução de Barbara Freitag e Paulo Sérgio Rouanet. In: FREI-TAG, Bárbara; ROUANET, Sérgio (Orgs.). Habermas: sociologia. São Paulo: Ática, 1980.

O’SULLIVAN, Noel. A nostalgia helênica e a sociedade indus-trial. Tradução de Yvonne Jean. In: GRESPIGNY, Anthony de; MINOGUE, Kenneth R. (Orgs.). 2. ed. Filosofia política contempo-rânea. Brasília: UnB, 1982.

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Anderson Aparecido Lima da Silva1

As relações entre o filósofo e a cidade nunca foram simples ou unívocas. Caso paradigmático seria aquele do julgamento e condena-ção de Sócrates pelo júri democrático ateniense em 399 a. C. Sujeição da voz da razão e da consciência à tirania da maioria, incapacidade da cidade de encarar seus pressupostos colocados em questão, intolerân-cia típica de um regime em que o demos, sem instrução, irracional, é incapaz não apenas de compreender o filósofo, mas emprega o poder que detém de forma irresponsável e perigosa. Interpretações diversas que, no entanto, coligem no mesmo ponto, qual seja, a incompatibili-dade ou mesmo a heterogeneidade entre a filosofia e a política.

Este “hiato entre a filosofia e a política” (ARENDT, 2009, p. 47)2 que se abriu com o julgamento e condenação de Sócrates, todavia, não se restringiu ao quadro específico de suas circunstân-cias históricas. Ao ver de Arendt, defrontamo-nos com um ponto de inflexão que, em larga medida, não apenas conferiu certo es-tatuto e “lugar” ao filósofo – e sobretudo ao “pensador profissio-nal” –, como também “estabeleceu nossa tradição do pensamento político” (ARENDT, 2009, p. 70). Trata-se, se quisermos, do pre-núncio da escansão entre vita activa e vita contemplativa. Como afirmará em A condição humana (ARENDT, 1981, p. 26),

1 Doutorando em Filosofia pela USP

2 Versão ligeiramente modificada de “Philosophy and politics” In. Social Reserch, n. 57, vol 1, 1990.

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a noção de que, de um lado, as várias formas de engajamen-to ativo nas coisas deste mundo e, de outro, o pensamento puro que culmina na contemplação possam corresponder a duas preocupações humanas inteiramente diferentes tem se evidenciado, de uma forma ou de outra, desde que “os homens de pensamento e os homens de ação começaram a enveredar por caminhos diferentes”, isto é, desde a ascen-dência do pensamento político na escola socrática.

Ora, mas o que compreender com “ascendência do pensa-mento político na escola socrática”? Se até então tratávamos de “heterogeneidade”, “escansão”, “hiato” entre filosofia e política, como lidar com o fato de que tenha adquirido envergadura uma ascendência do pensamento político de matiz filosófico? Para son-dar um encaminhamento a esta questão, é preciso considerar que embora possa aspirar a viver fora da política – portando mesmo certa indiferença ou desprezo pelo mundo da cidade – o filósofo não pode abdicar completamente de viver numa polis. Como re-sultado desta situação inescapável, assegurará Hannah Arendt, “a política tornou-se, para o filósofo – quando ele não a considera como inferior a sua dignidade –, a esfera em que as necessidades elementares da vida humana são tratadas e à qual se aplicam pa-drões filosóficos absolutos” (ARENDT, 2009, p. 82).

Não teria sido outra a postura de Platão, que, “desesperando da vida da polis”, subsumiu, em estatuto e importância, o mundo das aparências, das questões humanas e contingenciais aos assun-tos eternos, imutáveis, não humanos3. Talvez a maior mostra deste

3 Em outras palavras, “o que para Platão era evidente – que o conhecimento puro diz respeito às coisas que ‘são sempre as mesmas, sem mudança nem mistura, ou, pelo menos, as que mais se aproximam delas’ [Filebo, 59b-c] – permaneceu sendo, com múltiplas variantes, a pressuposição principal da filosofia até os últimos estágios da Era Moderna. Por definição estavam excluídos os assuntos relativos aos negócios humanos, porque, contingentes, podiam sempre ser diferentes do que realmente são” (ARENDT, 2008, p. 159).

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procedimento platônico seja a posição conferida à noção de ver-dade (epistemé) em relação à noção de opinião (doxa). De modo estreito à reticência sobre a validade da persuasão (peithein), Platão conduzirá uma “furiosa denúncia da doxa” que, “além de perme-ar nitidamente todas as suas obras políticas”, tornou-se também “uma das pedras angulares do seu conceito de verdade”, de modo que “a verdade platônica, mesmo à falta de qualquer menção à doxa, passa a ser compreendida como diametralmente oposta à opinião”. Esta oposição permitirá a Platão introduzir “parâme-tros transcendentes”, absolutos, na esfera dos assuntos humanos (ARENDT, 2009, p. 48-49).

Mais especificamente, Arendt destacará que “foi ao iluminar a esfera das ideias com a ideia de Bem que Platão pôde lançar mão das ideias para propósitos políticos e, nas Leis, erigir sua ide-ocracia, onde as ideias eternas foram traduzidas em leis humanas”. Este foi um dos momentos sem dúvida determinantes para que Platão pudesse conceber sua “tirania da verdade, na qual não é aquilo que é temporalmente bom, ou de que os homens podem ser persuadidos, que deve governar a cidade, mas a verdade eterna, aquela de que os homens não podem ser persuadidos” (ARENDT, 2009, p. 52-53). Longe de entrever neste procedimento a fatura de uma “síntese” ou de uma “solução” filosófica às questões políticas, a autora de As origens do totalitarismo destacará veementemente o abismo que se abre entre pensamento e ação.

Contudo, seguindo a autora, pode-se afirmar que essa atitude só foi possível a Platão quando este passou a “duvidar de algumas bases do ensinamento de Sócrates” (ARENDT, 2009, p. 47)4, afinal, “a oposição entre verdade e opinião foi, certamente, a mais anti-so-

4 Vale ressaltar que Hannah Arendt assume, de saída, a “crença de que existe uma linha divisória nítida entre o que é autenticamente socrático e a filosofia ensinada por Platão” (ARENDT, 2008, p. 190).

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crática das conclusões que Platão tirou do julgamento de Sócrates” (ARENDT, 2009, p. 49). Com efeito, a crermos em Hannah Aren-dt, Sócrates sempre permaneceu “um homem entre homens” que, não tendo evitado a praça pública, fora um “cidadão entre cidadãos” (ARENDT, 2008, p. 189). Alheio ao desejo de governar os homens ou aconselhá-los do cume de sua sabedoria superior, Sócrates tam-pouco se submetia docilmente às regras. Sua postura o conduzia a examinar as opiniões alheias, pensar sobre elas e insistir para que seus interlocutores também assim procedessem: “ele queria ajudar as pessoas a dar à luz a seus próprios pensamentos, a encontrar a verdade de sua doxa” (ARENDT, 2009, p. 56).

Mas o que compreender exatamente por este procedimento? Afinal, esta proposição não deixa de conter um aparente paradoxo: como correlacionar verdade e opinião, ou ainda, como conceber a capacidade de “tornar verdadeira a doxa” (ARENDT, 2009, p. 61)? Nesse sentido, Arendt sublinha que Sócrates, ao contrário dos sofistas e diferentemente do velho Platão, havia descoberto que a doxa não era ilusão subjetiva ou distorção arbitrária, o que não a levava tampouco a ser caracterizada como algo absoluto e válido para todos de uma vez por todas. “Para Sócrates, como para seus concidadãos, a doxa era a formulação em discurso de dokei moi, ou seja, ‘aquilo que me parece’”, isto é, “a compreensão do mundo ‘tal como ele se me revela’” (ARENDT, 2009, p. 55). Assim sendo, buscar a veracidade da doxa implica, por princípio, a suposição de que o mundo se revela de maneira diferente aos homens de acordo com a posição ocupada por cada um. E é nessa pluralidade de pon-tos de vista que o mundo se revela igualmente – apesar de todas as diferenças entre os homens e suas doxai – como um mundo “co-mum”. As doxai, que tanto interessavam a Sócrates, constituíam, portanto, parte seminal da vida política, desta “esfera pública na qual todo homem pode aparecer [aos outros] e mostrar o que é” (ARENDT, 2009, p. 56). Assim, não é por qualquer motivo que a

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autora afirmará que “Sócrates parece ter acreditado que a função política do filósofo era ajudar a criar esse tipo de mundo comum” (ARENDT, 2009, p. 60).

Posto isto, todavia, nem todas as dificuldades estão afastadas, pois, uma vez que não se trata nem de mera arbitrariedade nem de uma assertiva absoluta, poderíamos de bom grado questionar-mo-nos a respeito de qual seria o critério que permitiria designar a verdade da opinião. Uma das vias possíveis de esclarecimento passa pela célebre afirmação de Sócrates em Górgias (482c): “eu preferiria que multidões de homens discordassem de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me”. O desacordo consigo mesmo é possível não ape-nas porque cada um vive e aparece para os outros, mas também para si mesmo. Sendo um, cada qual pode falar a si mesmo (eme emautó) como sendo dois. É nesta capacidade de instalar uma di-ferença na unicidade, de ser em si e para si mesmo na forma de um dois em um, de entabular um diálogo sem som de mim comigo mesmo (Teeteto, 189e) que, segundo Hannah Arendt, encontrarí-amos “a essência do pensamento” (ARENDT, 2008, p. 207).

Pensamento que, embora se desenrole no âmbito da neces-sidade do estar só de si consigo mesmo, não pressupõe uma soli-dão absoluta. Ao contrário, a dualidade inerente a este diálogo subentende, indica e, de certo modo, torna apta a convivência com outros5. Trata-se de uma abertura inicial na qual o dois em um torna-se novamente um quando aquele que pensa interrompe bruscamente o processo de pensamento e “é chamado de volta ao mundo das aparências, onde ele é sempre Um, é como se a duali-dade em que tinha se dividido pelo pensamento se unisse, violen-

5 “O que Sócrates queria dizer [...] é que a convivência com outros começa pela convivência consigo mesmo. O ensinamento de Sócrates era: somente aquele que sabe viver consigo mesmo está apto a viver ao lado de outros” (ARENDT, 2009, p. 63).

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tamente, voltando de novo à unidade” (ARENDT, 2008, p. 207) de um ser humano singular, que fala com uma só voz e é reconhe-cido como tal por todos. É esta passagem que Sócrates é capaz de efetuar, transitando “entre o mundo das aparências e a necessida-de de refletir sobre ele” (ARENDT, 2008, p. 189). Trânsito que pressupõe menos a aplicação teórica, pré-definida de padrões de conduta do que a coerência entre o dois em um do pensamento e a aparição singular no mundo comum. Nesse ínterim, não haveria, por conseguinte, dicotomia entre pensamento e ação6: a atividade de pensar acompanha o viver7.

É nesta imbricação, neste acordo – que o célebre ateniense sempre defendeu como algo benéfico a si mesmo e à cidade – que se pode divisar a possibilidade de abertura, de liberação que per-mite a Sócrates examinar, verificar, julgar a veracidade das doxai em meio à pluralidade das opiniões de seus concidadãos. Definiti-vamente, estamos diante de um “cidadão pensador”.

Já em seu último curso no Collège de France – A coragem da verdade – Foucault enfatizará que “Sócrates é parresiasta” (FOU-CAULT, 2011, p. 26) talvez o parresiasta por excelência. Mas o que vem a ser exatamente um parresiasta? O termo grego parrhe-sia, constituído a partir de pan (tudo) e rhema (aquilo que é dito), ressaltará a enunciação de um franco-falar ou de um dizer-verdadei-ro que estabelece um “pacto”, um “acordo” entre o sujeito que diz

6 “Era precisamente a dicotomia entre pensamento e ação que Sócrates temia e tentou impedir na polis” (ARENDT, 2007, p. 157).

7 Isto não significa afirmar, entretanto, que o pensamento por si só seja suficiente ou capaz de determinar de uma vez por todas a ação, ou que toda ação seja necessariamente decorrência do pensamento. Como destacará Hannah Arendt, “o pensamento como tal traz bem poucos benefícios à sociedade, muito menores do que a sede de conhecimento, que usa o pensamento como um instrumento para outros fins. Ele não cria valores; ele não encontrará o que é o ‘bem’ de uma vez por todas; ele não confirma regras de conduta; ao contrário, dissolve-as. E ele não tem relevância política a não ser em situações de emergência” (ARENDT, 2008, p. 214-215).

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livre e transparentemente o que pensa e as suas condutas. Nesse sentido, afirmar que alguém é parresiasta significa admitir que se trata de um sujeito para o qual o dizer-verdadeiro caracteriza sua própria vida. Um modo de ser que envolve um modo de dizer e de se reportar aos outros, que faz com que o sujeito se vincule a si mesmo, ao seu enunciado e à enunciação, à medida mesma que se vincula aos atos e às consequências – por vezes notadamente de risco – acarretadas por esta atitude de dizer-verdadeiro. Ora, é nos marcos desse sentido geral que Sócrates é apresentado como aquele que prefere enfrentar a morte a renunciar ao exercício do dizer-verdadeiro (FOUCAULT, 2011, p. 63).

O conflito se coloca à medida que o período que se segue à Guerra do Peloponeso é marcado por aquilo que muitos designa-ram como corrupção, decadência, declínio, crise da polis democrá-tica e dos princípios que a sustentavam. Dentre estes princípios, o compromisso efetivo de cada qual falar publicamente com toda a franqueza e liberdade (parrhesia) torna-se tão raro quanto circuns-tancial, de modo que a coerência entre a fala e a ação se vê grave-mente comprometida, quando não obstruída pelas circunstâncias. Estabelece-se, assim, uma dissensão, uma crise, entre os atos e as palavras, entre os discursos e as condutas. Conjuntura perniciosa que, após a morte de Péricles, teria se propagado em Atenas, como registra Tucídides (1987, p. 166-168) em sua História da Guerra do Peloponeso (Livro III, 82-4):

Assim as cidades começam a ser abaladas pelas revolu-ções [...] A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo o capricho dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente se torna covar-dia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equi-vale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos

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como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível sempre merece confiança, e seu oposto se torna suspeito. [...] Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. [...] De um modo geral, os homens pas-sam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos que tolos honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro. A causa de todos esses males era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e ambição [...] Consequentemente, ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom ter-mo um plano odioso sob o manto de palavras enganosas eram considerados os melhores. [...] Já não havia palavras fidedignas, nem juramentos capazes de inspirar respeito bastante para reconciliar os homens.

Doravante, o uso público da palavra passa do estatuto de instrumento político democrático por excelência ao de mera ferra-menta de domínio utilizada por determinados indivíduos ou fac-ções em preterimento às questões de interesse geral. O ato da fala conta menos com a capacidade de esclarecer seus interlocutores do que com a intenção de ludibriá-los e de submetê-los, de tal maneira que as palavras não apenas perdem sua exatidão, mas são aplicadas de modo a mascarar as verdadeiras intenções daqueles que as pronunciam – como pode revelar a consecução dos atos que se seguem aos discursos. Esta situação configura aquilo que Foucault buscou identificar como “crise da parrhesia democrática no pensamento grego do século IV” (FOUCAULT, 2011, p. 48). E é neste quadro crítico que, no caso de Sócrates, deve ser problema-tizada a relação entre filosofia e política.

Embora a exposição da postura socrática e de suas nuances não caibam nas margens desta exposição, acreditamos que não

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seja sem interesse ao menos apontar uma dupla recusa de Sócrates no que concerne a duas “alternativas” de atuação que poderiam se apresentar ao filósofo. Qual seja, assumir a postura do “filósofo que volta seus olhos para uma realidade e se vê desconectado des-te mundo”; ou a do “filósofo que se apresenta trazendo já escrita a tábua da lei” (FOUCAULT, 2010, p. 232n). Por mais sedutoras que sejam as “alternativas” apresentadas, a postura socrática ino-vará ao seguir via distinta: buscando apartar-se de um discurso retórico que embora “ornado” não tem compromisso com a ver-dade e com a justiça, a parrhesia socrática apresentar-se-á diante da “crise da parrhesia política” como um discurso que não exerce o seu franco-falar na “linguagem” da política, isto é, que não fala a linguagem do discurso político instituído, que não atua no campo de sua semântica própria, atado a sua operacionalidade, tornando--se estranha, portanto, a uma filosofia que se propusesse a dizer ou a prescrever a verdade da política, na política.

A parrhesia de Sócrates, ao contrário, exerce seu dizer-ver-dadeiro diante da política, diante do poder instituído e, por vezes, apesar e mesmo contra este poder, seja qual for o regime político ou o governo em vigor. Nessa chave de leitura, a correlação entre a prática política e o dizer-verdadeiro filosófico se apresenta pau-tada não por uma mútua exclusão, mas por uma “exterioridade relativa” (FOUCAULT, 2010, p. 319) que, por um lado, torna sua relação necessária, ao passo que sublinha a sua irredutibilidade, preservando e exercendo a constante possibilidade de uma palavra fundamentalmente contestadora. É a postura crítica de Sócrates que é assim enfatizada por Foucault.

Postura esta que se faz necessária sobretudo em “momentos de emergência”, momentos que exigem a coragem de pensar, di-zer e agir diferentemente. Afinal, e aqui quem escreve é Hannah Arendt, a história já nos deu provas de que “quando todos estão deixando-se levar, impensadamente, pelo que os outros fazem e por

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aquilo em que creem, aqueles que pensam são forçados a mostrar--se, pois a sua recusa em aderir torna-se patente, e torna-se, por-tanto, um tipo de ação” (ARENDT, 2008, p. 215). Do pensador cidadão ao filósofo crítico, Sócrates é o nome de um desafio que ainda nos concerne e que talvez seja ainda capaz de nos colocar na vertical de nosso tempo histórico, isto é, do tempo presente8.

Referências

ARENDT, H. (1981). A condição humana. RJ, Forense Universitária.

__________. (2007). “Que é autoridade?”. In: Entre o passado e o futuro. SP, Perspectiva.

__________. (2008). A vida do espírito. RJ, Editora Civilização Brasileira.

__________. (2009). “Sócrates”. In: A promessa da política. RJ, Difel.

FOUCAULT, M. (2010). O governo de si e dos outros (Curso no Collège de France, 1982-1983). Edição estabelecida por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad. de Eduardo Brandão. SP, WMF Martins Fontes.

FOUCAULT, M. (2011). A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: Curso no Collège de France (1983-1984). Edição estabele-cida por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessan-dro Fontana. Trad. Eduardo Brandão. SP, WMF Martins Fontes.

TUCÍDIDES. (1987). História da guerra do Peloponeso. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília.

8 Revisão: Natália Leon Nunes ([email protected]).

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Hannah Arendt: El Pensar y sus Metáforas

Beatriz Porcel1

En este escrito procuramos mostrar el uso de las metáforas que Arendt emplea en su análisis de la actividad del pensar en el texto La Vida del Espíritu. A través de imágenes muy sugestivas, la autora compara el proceso del pensamiento con el viento, con el tejido y las lágrimas de Penélope, con el deseo de Orfeo por ver a Eurídice.

1. En una carta a su amiga Mary McCarthy, Arendt dice que La Vida del Espíritu es “una especie de parte segunda de La condición humana” (ARENDT, 1999, p.318); si en esta se ocupa de ensayar una analítica de la vita activa, en aquella extiende la ana-lítica hacia la vita contemplativa, o vida del espíritu, para investigar no solamente la tensión entre los dos modos de ser en el mundo, o para reconocer abstractamente la actividad de pensar, sino para apreciar y describir qué ocurre cuando el hombre piensa, cuando se ejercita en la más alta facultad específicamente humana. Si la acción, en La condición humana, es actividad que se muestra y ejerce en lo público, de la misma manera el pensar, en La vida del espíritu, es actividad que se vuelve visible a través de la palabra.

Sabemos que en La condición humana Arendt se propone ha-cer presentes las esferas de la vita activa y el valor de su autonomía, incomprendida en nuestra tradición de la filosofía política, que

1 Profesora de Filosofía Política e investigadora de la Universidad Nacional de Rosario, Argentina.

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siempre la subordinó a la vita contemplativa; y, además, hacer notar que el pensar estuvo siempre asociado a un estado de inactividad. Sin decir mucho más acerca de esta intrusión del pensar en la economía de las actividades de la vita activa, Arendt termina, a modo de meditación, con la enigmática frase de Catón que toma de Cicerón: “Numquam se plus agere quam nihil cum ageret, num-quam minus solum esse quam cum solus esset”. Luego, en La vida del espíritu –cuyo primer epígrafe es la frase de Catón, completan-do así el marco de referencia entre ambas obras– es intención de Arendt mostrar que, de todas las actividades humanas, el pensar puede ser la actividad más dinámica y más pura de todas, un pro-pósito explicitado en 1972, en la alocución dada en Toronto sobre su obra, cuando manifestó que el error de La condición humana fue considerar lo que la tradición llama vita activa desde el punto de vista de la vita contemplativa, sin decir nada sobre esta última. El interrogante que Arendt está formulando, eso que sería un “se-gundo volumen”, una corrección y una continuación de La condi-ción humana, es ¿para qué sirve pensar?

Hay, entonces, un importante paralelo con La condición hu-mana, un paralelo reconocido por varios comentaristas desde tem-prano2. La propia Arendt señala este paralelo en la “Introducción” a La vida del espíritu, cuando indica: “[…] la pregunta «¿qué es pensar?» consiguió renovar en mí algunas dudas que me venían

2 Entre otros cfr. H.Jonas: “Acting, Knowing, Thinking: Gleanings from Hannah Arendt’s Philosophical Work”, Social Research 44 (1977), 28-29, 35-43; Vollrath E. “Hannah Arendt and the Method of Political Thinking”: Social Research 44 (1977); J.Glenn Gray, “The Winds of Thought”, Social Research 44 (1977), 44. Cfr. también A. dal Lago, quien considera que Arendt se ha ocupado en sus obras de una crítica radical a la tradición filosófica que también se encuentra expresada en La vida del espíritu, una crítica que él llama «análisis de la impoliticidad constitutiva de la filosofía occidental ». Sostiene que en ‘El Pensar’ el motivo teórico central que se aborda es el problema de la apariencia y de la metáfora como característica esencial de toda reflexión filosófica (dal Lago 1987, p.46).

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asediando desde que concluyera el estudio sobre lo que mi edi-tor sabiamente denominó ‘La condición humana’ pero que yo más modestamente había considerado como una indagación sobre ‘La vita activa’” (ARENDT, 2002, p.32).

Hay una cierta cualidad personal en La vida del espíritu. Se tiene la tentación de observar que lo que se ensaya es la esen-cia de los diálogos de Arendt con ella misma. La textualidad está configurada por innumerables citas que pertenecen al repertorio filosófico y literario, una marca de estilo que, como sabemos, la autora estimaba fructuosa y productiva. En La vida del espíritu se dan cita los rasgos estilísticos que se complementan y transforman los elementos tradicionales del análisis conceptual: el uso de la na-rrativa, el uso de recursos poéticos y metafóricos y el uso de ejem-plos, de referencias a figuras ejemplares que, en este caso, quizás sea centralmente Sócrates. Todos estos elementos, cruzados, dan a Arendt su voz particular.

2. La actividad del pensamiento se refiere en Arendt al diá-logo libre y crítico que el sujeto mantiene consigo mismo en un no-lugar atemporal del espíritu, y por el cual se sumerge en una búsqueda interminable de sentido, en “la cuestión de la vida inte-rior, su tumulto, su multiplicación” (ARENDT, 1999, p.291). De tal forma, el pensamiento participa en la configuración moral del individuo y, además, tiene consecuencias políticas. La finalidad, o mejor dicho, el principio, del pensamiento es la búsqueda de sen-tido; la actividad del pensar es, antes que nada, una búsqueda de significación, que tiende, la mayor parte del tiempo, a abstraerse del dominio de los asuntos humanos y a moverse entre generali-dades (ARENDT, 2002, p.219). Esta tendencia a la generalización ofrece como resultado un desmantelamiento total de las categorías espaciales y temporales. Perdido y deambulando entre diversida-des, el yo pensante se halla a la vez en todas y en ninguna par-

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te; se inscribe en el nunc stans del presente, el cual le delimita el tiempo y lo sitúa ‘fuera del tiempo’: “El yo pensante, que se mueve entre universales, entre esencias invisibles, no se encuentra, por hablar en términos espaciales, en ‘ningún lugar’; es un apátrida en el sentido más contundente del término...” (ARENDT, 2002, p.219). Entonces, atemporal y atópica, la búsqueda de sentido del pensamiento es igualmente una tarea sin fin: no produce ningún resultado concreto directamente utilizable o aprovechable para la vida social, política o moral; no hay nada que esperar. En búsque-da incesante de sentido, el pensamiento exige, al contrario, una reanudación constante de aquello que antes realizó, su incesante deconstrucción y reconstrucción.

3. ¿De qué modo se explica el vínculo entre la actividad inte-rior e invisible del espíritu y el mundo, mundo de las apariencias y de lo visible? Este abismo es salvado, según Arendt, por el lenguaje metafórico, capaz de tender un puente, de realizar el metapherein, el pasaje de un estado –el del pensamiento– a otro –el de la aparien-cia entre apariencias–: “…todo pensamiento traslada, es metafóri-co” (ARENDT, 2006, p.708). La metáfora ilumina y transforma en compartible y comunicable una experiencia que no está presente. Arendt sostiene que la metáfora tuvo su origen en la poesía, re-trotrayéndose a Homero, el “descubridor de esta herramienta ori-ginalmente poética”; como herramienta es una inestimable figura del lenguaje, capaz de un movimiento constante del pensamiento al ámbito de lo invisible: de algo visible referido a un invisible o la comparación de dos figuras visibles con una invisible. La función crucial de la metáfora o del lenguaje metafórico es cubrir el hiato, la brecha, entre el pensamiento invisible y su presentación en el habla. Al referirse a la metáfora Arendt se vale de metáforas; establece que es “un puente”, “un hilo”, un “modelo” y “un don…y un regalo del lenguaje”; habla de ella more metaphorico en el sentido derridiano de

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que todo enunciado a propósito de cualquier cosa que pase, incluida la metáfora, se habrá producido no sin metáfora (DERRIDA, 1989, p.37). El análisis de Arendt lleva a sostener que a través de la metá-fora el pensamiento puede pensar la realidad nuevamente y en este sentido no es solamente ‘puente’, sino una estructura de conceptua-lización creativa y recreativa del mundo.

4. Arendt establece que las actividades del espíritu tienen en común algunas características que definen los rasgos de la trascendencia y del retiro propios del espíritu humano delante del mundo de los fenómenos: la invisibilidad, la desensorización, la inmovilidad, la autonomía y la dualidad. Desde el punto de vista de la fenomenalidad del mundo, la invisibilidad de las actividades del espíritu es la cualidad más relevante; en efecto, invisibles para el ojo humano, las actividades mentales no tienen un espacio para aparecer porque ellas no se alojan en un espacio fenoménico; están “lejos del mundo” (ARENDT, 2006, p.736). Si la vida del espíritu comienza, por decirlo así, en un movimiento de retirada del mun-do de los fenómenos es porque lo propio de la actividad del pen-sar es ponerse en movimiento a partir de una desensorialización de los fenómenos. Al transformar los fenómenos en conceptos, el pensar extrae la cualidad sensible de la realidad fenoménica. Al desensorizar el espíritu puede ver a un concepto “aparecer” en la representación de un fenómeno; puede, por la imaginación –la desensorización de un objeto en una imagen– anticipar lo sucesi-vo, el futuro, y hacer surgir los acontecimientos del pasado por la memoria: los recuerdos.

El corpus metafórico que Arendt emplea para desarrollar las características del pensamiento, y que privilegia en La vida del es-píritu, se compone de cuatro metáforas, que provienen del reper-torio del mundo clásico: las lágrimas y el tejido de Penélope de Homero; Orfeo y Eurídice de la mitología antigua, y el viento del

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pensamiento del Sócrates de Jenofonte; se trata en todos los casos de metáforas que se refieren figuradamente a las características y la actividad de seres vivos, aunque se trate –salvo en el caso de Sócrates– de seres ficticios.

Lágrimas de Penélope: las lágrimas de Penélope referidas por Homero, que se sueltan en el momento en que Odiseo disimulado habla de Odiseo, son lágrimas cuyo significado son los pensamien-tos que provocan el llanto y que, en el mismo momento, pasan a constituir otra metáfora, la de la nieve derretida que baja de las montañas; lo invisible se ha vuelto visible, los pensamientos –su-mergidos y ocultos– se derriten –por decirlo así– y se manifiestan en el rostro de Penélope a través de las lágrimas (ARENDT, 2002, p.130). Las lágrimas de Penélope envuelven un proceso de anag-nórisis, que consiste en el descubrimiento por parte de un perso-naje de datos esenciales sobre su identidad, sus seres queridos o su entorno, ocultos para él hasta ese momento. La revelación altera la conducta del personaje y lo obliga a hacerse una idea más exacta de sí mismo y de lo que le rodea. Las lágrimas de Penélope que co-ronan la anagnórisis son de alegría; el proceso del reconocimiento, desde la primera visión del esposo, aún con vestiduras miserables y el rostro desfigurado, que produce estupefacción a la mujer, hasta el acierto en la prueba a la que esta lo somete. Al terminar Odiseo de describir el lecho nupcial, tallado sobre el tronco de un olivo, “Penélope sintió desfallecer sus rodillas y su corazón [...]. Al punto corrió a su encuentro, derramando lágrimas; echóle los brazos al-rededor del cuello; lo besó en la cabeza”. Estas lágrimas adquieren el significado –“los pensamientos que los han motivado”- y llegan a representar al deshielo del largo y duro invierno –la ausencia de Odiseo– y el despertar de la vida cuando llegue la primavera –el reencuentro–. En el juego entre lo visible y lo invisible, las lágrimas son visibles pero refieren algo oculto y se combinan con la imagen de la nieve derretida (ARENDT, 2002, p.130). Las lágrimas son

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como una clase de pensamiento congelado que el pensamiento debe descongelar. La fuerza de esta imagen y de esta asociación (si las lágrimas son el dolor y la nieve que se derrite es el anuncio de una nueva primavera, ahora un pensamiento de tristeza puede transformarse en un pensamiento de alegría) eleva la metáfora a la situación de un pensamiento congelado: no sólo un ornamento de estilo o una sustitución lexical motivada por la semejanza, sino la metáfora presentada como una fuerza generadora y regeneradora de la vida del espíritu, como aquello que da frescura al pensamien-to y le restituye sentido y movimiento.

El tejido de Penélope: tejer es una imagen arquetípica de la vida misma, de la vida entendida como una trama hecha con muy diversos hilos, experiencias, sentimientos y acontecimientos. To-dos tenemos nuestra propia historia, que comenzamos a tejer al nacer y terminamos al morir. Arendt utiliza la metáfora del tejido de Penélope –que deshace en la noche lo que compuso durante el día– para referirse a características centrales de la actividad del pensamiento: la incesante e interminable búsqueda de sentido, la inutilidad, futilidad o carencia de resultados: “…el pensamiento como una actividad que carece de resultado, como salir de paseo” (ARENDT, 2006, p.674). El proceso del pensamiento, repetitivo y constante, comienza y termina con la vida misma; repetitivo como la labor, es menos productivo que ella, ya que no deja nada tangi-ble, nunca se materializa (ARENDT, 1993, p.104). Así como Pe-nélope rehúsa aceptar que el tejido que representa su vida anterior esté concluido, el pensamiento no busca conclusiones ni certezas; es, en este sentido, estéril: “La esterilidad divina de Sócrates: pen-sar sin resultados” (ARENDT, 2006, p.673). No mira ni al pasado ni al futuro. En “El pensar y las reflexiones morales” Arendt repite algunas de estas consideraciones; la metáfora del tejido de Penélo-pe se reproduce para demostrar que el pensar es una facultad de la que “nada resulta”; el pensar como tal no sirve al conocimiento,

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no está orientado por fines prácticos sino que está, como dice Hei-degger citado por Arendt, “fuera del orden”.

Orfeo y Eurídice: el pensamiento, para Arendt, está “fuera del orden” y tiene la capacidad de volver presente lo que está ausente para los sentidos, de acercar lo que está distante; la metáfora escogi-da para ilustrar este movimiento de distanciamiento y aproximación es la de Orfeo y Eurídice. Arendt considera que el recuerdo o la anticipación son capaces de hacer presentes los objetos sensoria-les desensorizados, esto es, los invisibles que pertenecen al mundo de las apariencias, los cuales han desaparecido temporalmente del campo de la percepción o todavía no lo han alcanzado. El mito de Orfeo y Eurídice –como metáfora– es capaz de expresar de manera fiel y precisa, más que cualquier otra figura, lo que realmente ocu-rre en estos casos. El antiguo mito explica qué ocurre cuando el proceso de pensamiento finaliza en el mundo de la vida cotidiana: todos los invisibles desaparecen otra vez (ARENDT, 2002, p.108). En las versiones conocidas del mito no se encuentra nada que pue-da demostrar una interpretación espacial de la suspensión de las acciones diarias debido a la actividad de pensar; parece que en esta referencia la autora resalta la experiencia de la desensorización. Así, el pensamiento está “fuera del orden” no solo porque detiene al resto de actividades, tan necesarias para vivir y sobrevivir, sino también porque invierte todas las relaciones normales: aleja lo cercano que se manifiesta directamente a los sentidos y convierte en presente lo que en realidad está distante. Lo propio de la mente es ir más allá, trascender el mundo natural; en el acto de pensar no estamos donde estamos ni tenemos noción de nuestro cuerpo; la región en la que nos hallamos es inmaterial, invisible, situada más allá del mundo fenoménico, esa “tierra de nadie” en la que cabe esta metáfora: el proceso del pensar que interrumpe su proximidad con el ordinario mundo de la vida es como el deseo de Orfeo cuando se vuelve para mirar a Eurídice y ella desaparece: lo invisible desaparece de nuevo.

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Viento del pensamiento: decimos que el viento es necesario porque, entre otras cosas, actúa como agente de transporte, in-terviene en la polinización, en el desplazamiento de las semillas, en la reproducción de la vida. Al mismo tiempo, es un poderoso erosivo, que puede llegar a producir tormentas, tornados y tem-pestades –como las de arena que refiere Arendt– que destruyen todo a su paso. Para Arendt, Sócrates recurre a la metáfora del viento para caracterizar al pensamiento porque sabía que este tie-ne que ver con lo invisible: “Los vientos en sí mismos no se ven, aunque manifiestos están para nosotros los efectos que producen y los sentimos cuando nos llegan” (ARENDT, 2002, p.196). La metáfora del viento vinculado al pensamiento se relaciona con el carácter de invisible que tiene su manifestación; pero el mismo viento, cuando se alborota, es capaz de arrastrar sus revelaciones anteriores. La metáfora del pensar como un viento contiene y ex-presa toda la potencia de esa facultad, la capacidad de desbaratar y descongelar aquello que el lenguaje –que es, como dice Arendt, “el medio del pensamiento”– ha fijado y congelado en el pensa-miento, ese sistema de conceptos, doctrinas, dogmas. Cuando el pensamiento se aplica sobre ellos se hace evidente su propiedad destructiva, su fuerza para debilitar los principios establecidos, to-dos los valores y su conjunto de distinciones morales entre bien y mal. Por esto Arendt afirma que “el pensar es igual de peligroso para todas las creencias y, por sí mismo, no pone en marcha nin-guna nueva… su aspecto más peligroso desde el punto de vista del sentido común es que lo que tenía sentido mientras se estaba pensando, se disuelve cuando se quiere aplicar a la vida cotidiana” (ARENDT, 2002, p.199); “no hay pensamientos peligrosos, el mis-mo pensar lo es” (íd.). El pensar paraliza en dos sentidos: uno es el de detenerse para pensar suspendiendo cualquier otra actividad; otro es el de inmovilizarnos cuando salimos del pensar al advertir que solo tenemos incertidumbres y vacilaciones, que las certezas

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se han ‘descongelado’. El campo semántico que Arendt despliega a partir de esta metáfora del viento es amplio: descongelar, tem-pestad, parálisis, peligrosidad, disolver, subvertir: una especie de “lógica del desmoronamiento” al decir de Adorno que mientras destruye es capaz de proteger.

Las notas que caracterizan al pensamiento: incondicionalidad, inestabilidad, fragilidad, provisionalidad, propicias a la metáfora del tejido de Penélope o de los efectos del viento, pueden ser conve-nientes para referirnos a la propia posición de Arendt, su constante tejer y destejer afirmaciones, su constante disputa con la tradición, los cruces entre puntos de vista diferentes, su oposición explícita a la voz unitaria de la teoría tradicional. También –por qué no– son análogas a las características dadas a la acción: otra paradoja.

Referencias

ARENDT Hannah. La condición humana. Barcelona: Paidós, 1993.

_____________. La vida del espíritu, Bs.As.: Paidós, 2002.

_____________. “El pensar y las reflexiones morales” en Res-ponsabilidad y juicio, Barcelona: Paidós, 2007.

ARENDT Hannah y Mary McCarthy. Entre amigas. Corresponden-cia entre Hannah Arendt y Mary McCarthy, Barcelona: Lumen, 1999.

DAL LAGO Alessandro. “Introduzione” a La vita della mente, Bologna: IlMulino, 1987.

DERRIDA Jacques. La deconstrucción en las fronteras de la filoso-fía: la retirada de la metáfora. Barcelona: Paidós, 1989.

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Nei Jairo Fonseca dos Santos Junior1

O interesse de educadores e pesquisadores que interagem com o campo da educação, têm crescido em relação à obra de Hannah Arendt, embora este âmbito não seja a prioridade das reflexões da au-tora. Esse texto2 visa investigar as dobras das reflexões de Arendt so-bre a educação em articulação com a complexidade de seu pensamen-to filosófico e político, na busca por entendimento da experiência do presente baseando-se no enfrentamento com o legado da tradição3.

Na Era Moderna QUANDO É?, Arendt percebeu uma in-versão na hierarquia da vita activa: a “obra” foi glorificada como a

1 Doutorando/PPGE da UFPel Professor de Filosofia do IFSul – Câmpus Bagé

2 Este texto foi revisado por Valéria Fontoura Nunes ([email protected]).

3 Hannah Arendt nomeia de Tradição o período iniciado por Platão, na Alegoria da Caverna. O filósofo grego abandona a política concedendo um lugar inferior ao campo dos assuntos mundanos para contemplar a verdade que estaria no Mundo das Ideias ou mundo suprassensível. Platão interpreta a esfera dos assuntos humanos como ilusória, efêmera, valorizando as ideias eternas. O filósofo deveria então abandonar a mundaneidade e se concentrar na busca do fundamento metafísico. A partir daí, passando pela Idade Média e Moderna, todos os filósofos seguiram essa tradição. Para Arendt, o fim ocorreu quando Marx inverteu a hierarquia presente na reflexão platônica, alertando que o lugar da Filosofia e sua verdade estão no mundo comum e não fora dos assuntos dos homens e de seu convívio. De acordo com Marx, os filósofos já interpretaram bastante o mundo e é chegada a hora de transformá-lo. “O conceito de verdade elaborado por Platão está em proporção inversa à noção de doxa, tão importante na Grécia. A distância entre opinião e verdade tornou-se então o abismo que viria a separar os filósofos dos homens comuns” (XARÃO, 2000, p. 59-60).

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mais importante atividade humana, deslocando tanto a contem-plação filosófica, como a ação política. Nesse período, ainda, sur-giu o que Arendt denomina “esfera do social”, que é constituída na elevação dos negócios econômicos do lar doméstico (oikia) ao espaço da esfera pública. Dessa forma, as questões de subsistência ganharam importância pública, e a única preocupação comum das pessoas passou a ser a preservação de seus interesses privados. Isso provocou uma indistinção entre a esfera pública e a esfera privada, e a submersão de ambas na “esfera do social”.

Deste modo, a crise na educação no Mundo Moderno, apon-tada por Arendt, está relacionada com a insuficiência da escola em desempenhar sua função mediadora entre os domínios do pri-vado e do público, apresentando uma incapacidade do ser humano cuidar, conservar e aprimorar o mundo.

A ação – atividade que integra a expreção Vita Activa – não é identificada como uma atividade de produzir efeitos, mas é um desvelar mundo. Nesse desvelar, provocado pela própria condição de homens e mulheres diferentes viverem juntos em um mesmo mundo, Arendt descreve da seguinte forma:

A ação, única atividade que se exerce diretamente en-tre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e ha-bitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente ‘a’ condição [...] de toda a vida política (ARENDT, 1987, p.15).

A autora prioriza, em suas reflexões, a capacidade humana de ação, que possibilita o exercício da liberdade e, consequente-mente, desenvolve as condições para o aparecimento do novo. Para Arendt, a esfera da ação conjunta dos seres humanos é o

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espaço da liberdade, enquanto capacidade de reger o próprio desti-no, de começar algo novo, de gerar novos começos. Desse modo, a ação humana não está submetida a objetivos determinados, assim, a finalidade da ação está na própria ação, visto que ela é um modo de existência tanto do indivíduo singular quanto da comunidade. A ação é, entre as atividades da Vita Activa, aquela que se inicia e tem toda sua efetivação no espaço público.

Uma perspectiva para compreender a especificidade da ação, em Arendt, é diferenciá-la da fabricação. O sujeito que fabrica al-guma coisa tem em mente um modelo, um projeto ou uma ideia e, nessa tarefa, a fabricação é o conjunto de operações que possi-bilitam chegar ao objeto acabado: uma mesa; um automóvel etc.

No ensaio A crise da cultura: Sua Importância Social e Política, Arendt observa:

A fabricação, mas não a ação ou a fala, sempre implica meios e fins; de fato, a categoria de meios e fins obtém sua legiti-midade da esfera do fazer e do fabricar, em que um fim cla-ramente reconhecível, o produto final, determina e organiza tudo que desempenha um papel no processo – o material, as ferramentas, a própria atividade e mesmo as pessoas que dele participam; tudo se torna meros meios dirigidos para o fim e justificados como tais. (ARENDT, 2001, p. 269)

Pensar em termos de fabricação significa pensar em termos de meios e fins. Dessa forma, uma consequência em conceber a ação segundo o modelo da fabricação é reduzir esta capacidade a uma técnica. Essa técnica é um conjunto de meios que permi-tem chegar a um determinado resultado. Outra consequência presente no modelo de fabricação é a ação violenta, pois o fabri-cante de mesas ou camas deforma a madeira ou o ferro, etc, para lhes impor a forma desejada. Logo, para o fabricante tudo não passa de material.

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Conforme Arendt, a concepção de ação quando pensada se-gundo o modelo de fabricação, pode forjar uma deriva totalitária: concebendo a comunidade humana como uma espécie de material que pode ser modelado em função do interesse privado de alguns poucos. Esse processo reduz os cidadãos à situação de objetos pas-siveis de manipulação, ou a condição de animais que podem ser explorados ou domesticados. Nesse caso, os regimes totalitários do século XX apresentaram consequências do emprego dessa lógica.

Arendt é, antes de tudo, uma pensadora dos novos inicios, da capacidade humana de recomeçar, de se reinventar e sua origina-lidade está em atribuir à natalidade um lugar tão decisivo quanto a mortalidade. O ser humano, ao nascer, introduz a novidade e a iniciativa no mundo, por ser inédito, singular, insubstituível e im-previsível. Assim, o destino da criança e sua capacidade de inova-ção não podem ser controlados pelos adultos, embora possam ser distorcidos por uma educação mal pensada. Então, o significado da educação está vinculado às condições de instituição, intersub-jetividade, compartilhamento e conservação do mundo comum.

Nessa perspectiva, conforme Patrice Canivez (1991, p. 138):

[...] um mundo que pensa tudo em termos de fabricação, em que tudo o que acontece pode ser deduzido de um pro-jeto, em que todas as consequências estão idealmente sob controle, é um mundo que, de certa forma, vive esquecido da natalidade. Mundo para o qual o fato do nascimento é completamente incompreensível, porque o nascimento é um começo absoluto, cujas consequências (a vida e o futuro da criança) escapam ao controle dos pais

A ação política, para Arendt, assume o aspecto da natalida-de, e está ligada à condição humana da pluralidade. Desse modo, entende-se que a vida humana é essencialmente vida em comum, pois da capacidade humana de agir emergem o espaço político e a

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liberdade. Agir é tomar uma iniciativa, começar algo novo, falar, solicitar o assentimento e o acordo do outro. Por isso, agir passa essencialmente pela palavra, não sendo possível agir sem dirigir-se aos outros. Dessa maneira, provocando-se uma série de reações indefinidamente multiplicadas, que escapam totalmente à perten-ça de quem desencadeou a ação. No entanto, a responsabilidade deve ser assumida por todos. Nesse sentido, a responsabilidade com o mundo comum ou esfera pública não pode ser desenvolvida apenas para uma geração e planejada somente para os que estão vivos: ela deve transcender a duração da vida de homens mortais.

No artigo A crise na educação, publicado na obra Entre o Pas-sado e o Futuro, a autora (2001, p. 221) desenvolve uma reflexão valendo-se da crise da educação nos Estados Unidos da América, no final da década de 1950, evidenciando ser “um problema políti-co de primeira grandeza”. A natalidade é uma categoria central do pensamento político, que se estende para o campo da educação. Em razão do vínculo estabelecido no que concerne a essência da educação, isto é, a natalidade, fato de seres humanos nascerem no mundo e para o mundo.

Entende-se o mundo como um espaço comum, em que ho-mens e mulheres livres podem agir. A tarefa da educação é empre-ender a adequada inclusão dos recém-chegados num mundo que lhes antecede, que lhes é estranho e que, ademais, deve perdurar após a morte deles. Aquilo que aparece no mundo comum passa a existir para uma pluralidade de pessoas, embora cada pessoa possa perceber o que se manifesta segundo uma perspectiva particular. É possível falar de uma mesma coisa.

O mundo comum, como testemunhou Arendt, com a novidade totalitária, está sujeito à novidade e à instabilidade, também provoca-da pela ação dos recém-chegados. Portanto, assumir responsabilida-de pelo mundo, o que a autora denominava de amor mundi, significa contribuir para que o conjunto de instituições políticas, entre elas as

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leis, que foram legados aos seres humanos, não sejam continuamente transformadas ou destruídas segundo interesses privados de alguns poucos. Quem educa não restringe sua responsabilidade apenas pelo “desenvolvimento da criança”, mas também pela própria “continui-dade do mundo” (ARENDT, 2001, p. 235). Responsabilizar-se pelo mundo é comprometer-se com sua continuação e conservação.

De acordo com a autora, a educação é determinante no sen-tido da conservação do mundo comum. A função do educador é apresentar às crianças e aos jovens o conjunto de estruturas racio-nais, científicas, políticas, históricas, linguísticas, sociais e econômi-cas que constituem o mundo comum dos quais eles compartilham. Futuramente, quando as crianças e jovens forem adultos, assumirão a responsabilidade por este mundo por meio da ação política. Tal movimento pressuporá terem aprendido a conhecer a complexidade do mundo em que vivem. Nesta direção, Arendt deixa subenten-dido que a educação possui um papel político fundamental, com relação ao futuro, quando os educandos tiverem que assumir sua função cidadã. A razão disso está no cuidado com mundo comum, que para poder ser transformado, deve estar sujeito à conservação:

[...] parece-me que o conservadorismo, no sentido de conser-vação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo. (ARENDT, 2001, p. 242).

No diagnóstico de Arendt, homens e mulheres vivem num mundo em que as qualidades de distinção e excelência cederam lugar à homogeneização e à recusa de qualquer hierarquia, assim como da responsabilidade. A autora aponta para o fato de que as fronteiras entre o mundo adulto e infantil vêm se tornando cada vez mais tênues. Esse fato indica a falta de responsabilidade e o despre-paro dos adultos para introduzir os recém-chegados ao mundo.

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Arendt: Ação Humana, Educação e a Instabilidade do Mundo

Arendt assume a postura política do cuidado para com o mundo, diferente da atitude predominante na Modernidade, qual seja, a “alienação do homem” em relação ao mundo comum. Essa é a origem do moderno subjetivismo filosófico e literário e das ten-dências psicologistas do pensamento social e educacional contem-porâneo. Nesse contexto, o ser humano passa a se compreender e a se comportar quase exclusivamente como um animal laborans (em especial a partir do século XX), um ser condicionado ao ciclo ininterrupto do trabalho e do consumo, limitando seu interesse à sobrevivência e à felicidade imediata.

A crise na educação é um indício de uma crise de estabili-dade das instituições políticas e sociais. A escola é, para Arendt, a “instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo.” (2001, p. 238). Destarte, a crise na educação vincula-se à inabilidade da escola e do edu-cador em desempenhar sua função de mediador entre o mundo e as crianças. Nesse percurso, os educadores e a comunidade escolar devem ser responsáveis pela capacidade humana de ação e trans-formação. Se necessário, protegendo o desenvolvimento da crian-ça contra as pressões do mundo, ao mesmo tempo em que deve preparar a criança para conservar o próprio mundo futuramente.

Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito, pode entrar em mútuo conflito. A responsabi-lidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e pro-teção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo as-sédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração. (ARENDT, 2001, p. 235)

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A complexidade em compreender as atribuições dos educa-dores evidencia o problema da crise na educação, que não deve expor totalmente as crianças e jovens à luz e às pressões da es-fera pública. Assim, resguarda-se um espaço de independência e autonomia para estes, em relação ao mundo tal como ele existe. Contudo, é necessário que os responsáveis pela educação não se sintam isentos de assumir a responsabilidade pelo mundo. Esta de-corre do fato deles deverem mostrar aos novos o lugar no qual eles, adultos, pertencem e agem.

No exercício de estabelecer os diferentes lugares da educação e da atividade política, corre-se o risco de infantilizar a educação e a própria política. É valendo-se desta distinção que Arendt critica projetos educacionais progressistas, considerando-os autoritários e contraditórios, dado que toda tentativa de “produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse” (ARENDT, 2001, p. 225), impede sua efetiva aparição.

A tarefa da educação é, portanto, difícil e complexa, posto que a reflexão de Arendt sobre este tema aponta para a autori-dade, sem a qual o ensino é impossível. A autoridade assenta-se tanto sobre o saber do professor quanto sobre o fato dele encarnar, ao ponto de vista das crianças e jovens, o saber de uma civiliza-ção e a responsabilidade com relação ao presente e ao futuro dos assuntos compartilhados. Em suma, Arendt pensa que a educação está continuamente sujeita à crise e à exigência de ser repensada. Sendo um âmbito em permanente tensão, porque é difícil obter essa autoridade, ou restabelecê-la, numa sociedade que fomenta a obsessão pela novidade e despreza o passado.

Entende-se que a reflexão de Arendt sobre a crise da educação sugere uma perspectiva para pensar as relações entre pais e filhos e entre professores e alunos. Em ambos os casos, o que se observa é a perda de responsabilidade pelos novos e pelo mundo, tanto no senti-do da perda das garantias de sua conservação, quanto no sentido da

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Arendt: Ação Humana, Educação e a Instabilidade do Mundo

perda das condições para a sua efetiva mudança política. Portanto, o problema educacional é um problema político de primeira grandeza e não se resume a ser uma questão pedagógica.

Os escritos de Arendt possibilitam pensar que a crise na edu-cação é também uma crise da autoridade legítima, isto é, uma crise da perda de estabilidade, tanto do conhecimento quanto do próprio sentido de responsabilidade dos professores e dos adultos pelo mundo em que vivem. “A autoridade foi rejeitada pelos adul-tos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxe-ram as crianças” (ARENDT, 2001, p. 240).

Dessa forma, a crise na educação constitui o problema polí-tico da Modernidade entendido como uma crise do mundo públi-co, da autoridade e da tradição em meio à “sociedade de massas” e suas demandas ininterruptas. Pensar sobre a educação, então, também implica em pensar sobre a categoria da ação política em Arendt. Tal categoria está relacionada à imprevisibilidade, às infi-nitas possibilidades abertas valendo-se de cada iniciativa humana, que não se limitam às expectativas de realização pessoal. Contudo, portam o intuito de dar continuidade a um mundo de construções e artificialismo propriamente humanos. Nesse caso, não se trata de recuperar o conservadorismo, pois não pode ser considerada conservadora uma reflexão que se dispõe tomando-se de uma es-perança direcionada à capacidade para agir. Essa capacidade que a natalidade enseja, a permanente e igualitária condição para co-meçar algo novo. Para que a possibilidade de renovação se efetive, um conjunto de prévios elementos devem assegurar as mediações e interferências às novas gerações. Nesta perspectiva, a educação é algo a se herdar e se a renovar.

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Referências

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______. A Condição Humana. Tradução: Roberto Raposo. Revi-são técnica: Adriano Correia, 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Uni-versitária, 2010.

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_______. A Crise da Cultura: Sua Importância Social e Política. In. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001, p. 248-281.

CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão. 2. ed. Campinas, SP: Papi-rus, 1991.

SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt: educação grega ou romana? Argumentos, Fortaleza, ano 5, n. 9, p. 205-215, jan./jun. 2013.

XARÃO, Francisco. Política e Liberdade em Hannah Arendt: ensaio sobre a reconsideração da Vita Activa. Editora Unijuí, 2000.

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Hannah Arendt e o “Incômodo Problema do Absoluto na Política”

Daiane Eccel1

Embora Arendt não possa ser caracterizada como uma pen-sadora que se dedique exclusivamente ao tema da laicização do Estado moderno, ela transita por ele por meio de suas reflexões fenomenológicas sobre a política, seu estudo do totalitarismo e sua análise das revoluções2. Jürgen Habermas e Telal Assad são no-mes que tem se dedicado a pensar a relação religião-política e, por sua vez, o consequente processo de secularização no ocidente. Esse também é um tema recorrente no pensamento de Hannah Arendt na medida em que ela herda sobretudo de Kant, Nietzsche e Hei-degger, o postulado da tentativa de superação da metafísica. Guar-dadas todas as suas singularidades, Arendt compartilha a ideia de conceber a política baseada em pressupostos que sejam inerentes à própria política e que não extrapolem seus limites. Neste sentido, em algumas de suas obras (sobretudo em Sobre a Revolução) e em alguns escritos dispersos, Arendt se ocupa daquilo que ela chama de “o incômodo problema do absoluto”. Ela parte da observação de fenômenos que evidenciam que alguns pressupostos políticos são fundamentados em parte por crenças religiosas, em parte pela necessidade de um elemento absoluto que, na nossa leitura, nem

1 Doutora em Filosofia na UFSC. Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.

2 Texto revisado pelo professor Dr. José Francisco dos Santos: [email protected]

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sempre assume um caráter religioso, mas que está fora do mundo das aparências. Neste sentido, não basta identificar nos textos de Arendt apenas um caráter que nega o absoluto quando o assunto é a vida pública, mas há também outro que sugere a predominância do secular. Segundo Moyn: “Arendt argumenta para identificar uma alternativa para a teologia política e um modelo de coexis-tência genuinamente independente de premissas religiosas: aquilo que ela chama de ‘puramento secular, de esfera mundana” (2008, p.91). É por isso que ela usa a palavra secularização como referência de eventos históricos como a revolução, por exemplo, que poderia ser interpretada como a tentativa de substituir o elemento sagrado pelo puramente secular, mas que teria falhando na medida em que surge o problema do absoluto, o velho problema que novamente pede que a política seja fundada sobre bases transcendentes.

O que torna sua análise interessante sobretudo em Sobre a Revolução, é que Arendt a faz tomando por conta um evento mo-derno: a fundação de novos corpos políticos a partir da revolução. O problema já tratado no texto O que é a Autoridade?, presente na coletânea Entre o Passado e o Futuro é abordado mais cuidadosa-mente em Sobre a Revolução e traz à tona o clássico problema da filosofia política pós kantiana que se tornou também o problema arendtiano: a submissão, ou em menor grau, a dependência da po-lítica a um absoluto. Essa é velha querela arendtiana com Platão: importa menos a qual absoluto a política está vinculada (no caso de Platão, à filosofia), mas o fato é que ela parece sempre depen-der do absoluto em alguma medida. Como Arendt lida com essa questão em Sobre a Revolução? E o que ela entende exatamente por absoluto? Entre outras coisas, o problema do absoluto desperta para outras questões referentes ao recorrente problema da relação entre religião e política já assinalados por Arendt justamente no artigo intitulado Religião e Política, no qual Arendt trata de sepa-rar a ideia de secularidade na sua natureza política da espiritual.

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Hannah Arendt e o “Incômodo Problema do Absoluto na Política”

Em termos empíricos, essa temática está diretamente re-lacionada com o processo de laicização de um Estado e de suas eventuais consequências práticas e abre o debate sobre temas que tem voltado à tona no cenário do pensamento político como a ideia de religião civil já inaugurada com Hobbes e retomada por alguns teóricos alemães na década de 30 como é o caso de Carl Schmitt e Eric Voegelin, por exemplo e que vem sendo repaginada por Richard Bellah. Pensadores americanos e alemães tem voltado boa parte do seu tempo para questões que merecem ser levantadas porque dizem respeito à gramática desses conflitos na esfera pú-blica. Esse assunto discutido desde a ascensão da idade moderna ganhou um novo acento a partir das considerações de Habermas sobre a legitimação ou não de um discurso religioso na esfera pú-blica em tempos pós-seculares. Nos últimos anos, é também Telal Assad quem reacende o debate. A direção que o tema toma nos escritos de Arendt, porém, já é aquela que é um locus clássico em seu trabalho e já está presente em A Condição Humana, ou seja, o problema da subordinação da política à metafísica e constante necessidade ocidental pós clássica (pós greco-romana) de um ab-soluto como forma de legitimação da política.

Em Sobre A Revolução Arendt aponta para um fato que asso-lou tanto a revolução americana quanto a francesa. Trata-se, pois, nas palavras da própria Arendt, “do incômodo problema do absolu-to” (2011, p.251). Ainda nas palavras de Samuel Moyn, “em Sobre a Revolução Arendt provavelmente usa o conceito de absoluto como uma abreviação para a dificuldade que todos os corpos políticos modernos enfrentam” (2008, p.77). Parece dispensável explicitar o motivo pelo qual o absoluto na política é considerado um problema de grandes proporções, ou seja, nos parece óbvio que legitimar as leis – e eis aqui o cerne do problema – com fundamentação em um elemento absoluto é altamente problemático por se tratar de algo que está no plano do além político. Igualmente problemático,

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porém, é tentar transformar o absoluto metafísico em um absoluto terreno, ou seja, a transferência de uma figura supra-sensível para uma que está no nosso meio, mas que mantém o status do absoluto, do metafísico, do divino, justamente como é o caso de tipos de re-gimes políticos como o absolutismo, por exemplo. De saída, temos aqui dois problemas: um baseado na manutenção do divino como algo supra-sensível e outro na tentativa de encontrar um represen-tante para o divino na terra (uma pessoa) e inseri-lo na política, a saber, um imanente com status de transcendente. A base da crítica de Arendt está no posicionamento que ela toma em outras obras: nem a política, nem leis e nem bases morais podem estar acentadas sobre um fundamento divino ou sobre qualquer absoluto. No final das contas, em termos de responsabilidade moral, trata-se da morte de Deus teorizada por Nietzsche e da conhecida questão levantada por Dostoiéwski: se Deus não existe, então tudo é permitido? Aren-dt sintetiza essa ideia em sua conferência proferida em Toronto em 1972 dizendo que prefere pensar “sem corrimão” e havia feito antes quando tratou de filosofia moral: “moralmente as únicas pessoas confiáveis nos momentos de crise e exceção, “quando as cartas estão sobre a mesa”, são aquelas que dizem “não posso” (RJ 2003 p.143). Essa regra não vale somente para o pensamento e para conside-rações morais, mas deve também valer sobretudo para a política. A quebra dessa regra na política pode resultar em acontecimentos desastrosos como é o caso do totalitarismo, por exemplo, baseado em parte em um sistema de leis e regras morais que por sua vez ti-nham seu fundamento em crenças que estavam além do âmbito do político. É por isso que a estabilidade requerida por uma fundação (pós-revolucionária ou não), não deve apelar para o absoluto. Esse parece ser o motivo óbvio pelo qual Arendt e boa parte dos seus contemporâneos preferem separar a metafísica da política.

Mesmo com algumas revoluções (sobretudo a francesa) com-batendo o absolutismo como forma de governo e com a reivindi-

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cação da fundação de um novo governo, a fragilidade dos corpos políticos, o vazio instaurado após o fim das revoluções e a fun-dação de um novo corpo político ou, nas palavras de Arendt: “a profunda instabilidade decorrente de uma falta elementar de auto-ridade” (2011, p.210), permanece. A tendência da revolução fran-cesa foi novamente recorrer a este absoluto e transferindo o poder de um só para o povo, tendo como consequência uma espécie de “endeusamento” do povo. Os revolucionários, no entanto teriam percebido a necessidade de instauração de um absoluto a fim de legitimar a criação humana das leis e a chamada petitio princippi que eram elementos sempre presentes nas revoluções e por isso foram forçados a apelar também, como Robespierre sugeriu, a um absoluto, um Ser Supremo. No caso dele e todos os demais revo-lucionários, a ideia do Ser Supremo surgiu em função das crenças deístas da época. O fato é que se antes da Revolução Francesa o monarca reinava absoluto, depois da revolução, a crença foi nova-mente deslocada para um Ser Supremo, digno de culto, de novo calendário e do qual também dependia a legitimidade das leis. Ao voltar suas atenções para o novo mundo e para a Revolução Ame-ricana, Arendt constatou que esse problema rondava também os pais fundadores e John Adams – também deísta – mostrava-se com as mesmas necessidades de um absoluto, como Robespierre. Era novamente a política que não conseguia se autojustificar e que exigia uma fundamentação externa.

Não parece ser esse o mesmo problema sofrido pela política desde os tempos de Platão? Não era a filosofia que na antiguidade deveria dar uma espécie de sustentação para a política? Se não era assim na polis ateniense, era assim nos escritos de Platão, confor-me Arendt. A autoridade, desejada por Platão (mas não o poder), “assentando-se sobre o alicerce no passado como sua inabalada pedra angular, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que os seres humanos necessitam precisamente por serem mor-

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tais – os mais instáveis e fúteis seres de que temos conhecimento” (EPF, 2005, p. 131). A questão da autoridade em Platão fica evi-dente quando ele trata de colocar o rei filósofo no topo da pirâ-mide hierárquica e muda a forma de relação entre os cidadãos atenienses que desconheciam a diferença e que se convenciam mutuamente por meio da persuasão. A necessidade da autoridade e a consequente evasão dela no pós ato revolucionário mostram-se como as causas da necessidade incessante do absoluto.

Da mesma forma que Arendt volta à Grécia para encontrar já nos escritos de Platão o problema do absoluto, ela também o faz para investigar os mitos. Parece haver em Arendt uma tentativa supera-ção do absoluto por meio do uso dos mitos presentes na antiguidade greco-romana. Aparece na argumentação de Arendt, o apelo aos mitos como fonte imanente e guardadora do início, da fundação e por isso mesmo um contra-exemplo de que o absoluto é necessário para as fundações, já que no período clássico, não era. Com base em sua crítica ao problema do absoluto, o apelo de Arendt aos mitos nos parece um tanto óbvio: a autora recorre a situações inerentes à própria política e que de certo modo reproduzem o mundo em sua mundaneidade. É esse o caso dos mitos que, no caso daqueles escolhidos pela autora, se dão dentro de um contexto do mundo das aparências e tem um caráter imanente. Arendt tem por hábito recorrer a exemplos que surgem dos mitos difundidos ora pela antiga Grécia (ou Tróia), ora pelo império romano.

É recorrendo aos mitos que Arendt estaria tentando encon-trar uma substituição ou uma espécie de solução para o “incô-modo problema do absoluto”? Ao que nos parece, essa seria uma intentada um tanto velada da autora de tentar responder ao pro-blema, mas junto dela guarda outros questionamentos que não nos são possíveis investigar aqui em função da limitação de espaço, mas é válido perguntar-se por exemplo, se o mitos não adquirem também um caráter do transcendente imanentizado. Uma das res-

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postas possíveis, seria afirmar que os mitos tinham apenas função de justificar uma criação ex nihilo e de preencher o vazio de au-toridade por meio da memória. Outra possibilidade seria apelar para o recurso que Arendt utiliza recorrentemente: o apelo às fi-guras exemplares como as que apareçam tanto na Ilíada quanto na Eneida. Vorländer afirma que na medida em que os mitos faziam o papel da ligação entre um acontecimento passado e um futuro que ainda não havia chegado, preenchiam o espaço aberto pelo “não ainda” típico do momento da fundação de corpos políticos. Talvez Arendt tenda a interpretar o mito como um não absoluto justamente pelo fato de ele não ser transcendente e aí não haverá nenhuma contradição em seu texto, pelo contrário, o mito fun-cionaria como algo terreno e por conseguinte algo que também carrega o político dentro dele.

Independente do mito ser ou não algo transcendente ou terreno e de Arendt considerar o absoluto como transcendente ou não, o problema permanece o mesmo: os elementos políticos presentes no momento das fundações não se autojustificam e o velho e crônico problema inaugurado com Platão e objeto de crí-tica recorrente de Arendt ainda vigora. O problema do absoluto e o recurso dos mitos utilizados por Arendt é compreendido aqui de forma aporética: ou seja, se há a necessidade de um absoluto e Arendt tenta superá-lo por meio do recurso ao mito, permanece a dúvida sobre o caráter puramente imanente dos mitos de fun-dação, assim como permanece o problema do apelo ao absoluto já lamentado por Arendt em seu Denktagebuch: “no momento da ação, para nosso desconforto, revela-se primeiramente, que o ‘ab-soluto’, aquilo que está ‘acima’ dos sentidos – o verdadeiro, o bom, o belo – não é apreensível, porque ninguém sabe concretamente o que ele é.” (2008, p.43)

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Referências

ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Trad.: Helena Mar-tins e outros. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

_____________. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspec-tiva, 2005.

______________. A promessa da política. Organização de Jerome Kohn. Rio de Janeiro: Diffel, 2008.

______________ Sobre a Revolução. Trad.: Denise Bottmann São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MOYN, Samuel. Arendt on the Secular. In New German Critique. Vol.35, 2008, p. 71-96.

VORLÄNDER, Hans (Org.). Transzendez und die Konstituition von Ordnungen. Berlin: De Gruyter, 2013.

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Ação e Poder – Crítica da Política na Modernidade1

Nádia Junqueira Ribeiro2

Hannah Arendt sempre reivindicou para os homens a exi-gência do cuidado com o mundo como um dever político. Isto é, a necessidade de participação nos assuntos públicos. Esse mundo, de acordo com a pensadora, é compartilhado entre os homens e só pode existir mesmo nesse entre, no espaço compartilhado, isto é, na esfera pública. Era somente nesse espaço que, para Arendt, os homens poderiam exercer a igualdade, serem ouvidos e ouvir os demais. A igualdade consistia justamente na possibilidade do ho-mem em poder mostrar sua singularidade entre os atos e palavras; a cada homem era permitido mostrar-se distinto dos outros garan-tindo, dessa forma, a pluralidade humana. A igualdade é condição para os homens se compreenderem em suas distinções. Essa sin-gularidade que garante a pluralidade somente pode ser exercida pela ação e discurso. Por elas, esses homens podem ser inseridos no grupo de sua espécie e definir quem são.

Há uma perda de sentido da política na Modernidade para Hannah Arendt, que reside no apequenamento da política en-quanto nada mais do que aquilo necessário à preservação da vida dos homens. A convivência entre os homens, nesse contexto, não é mais necessária e ação e discurso se tornam inúteis. Para aten-

1 Revisora: Aparecida Donisete Junqueira Ribeiro. [email protected]

2 Mestranda em Filosofia na UFG

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Nádia Junqueira Ribeiro

der às necessidades vitais e ao consumo, não é necessária qual-quer ação em concerto, mas um trabalho realizado no isolamento. Contudo, tal convivência é indispensável para autora para que o poder possa ser gerado. É ele que assegura a existência do domínio público, que por sua vez se dá pela existência da ação e do discur-so. Dessa forma, é indispensável para Arendt que os homens com-partilhem de um espaço público onde todos possam agir e serem ouvidos. A ação e discurso, para a pensadora, é a forma pela qual os homens se inserem no mundo.

Dentre as atividades desenvolvidas a partir de uma feno-menologia em “A Condição Humana” – a saber, trabalho, obra e ação - Hannah Arendt expressa como é cara em seu pensamento a atividade da ação como possibilidade dos homens iniciarem algo novo e se fazerem seres livres, singulares e, portanto, políticos. A ação era a única atividade, dentre as apresentadas por Arendt, que se dava no espaço público. A fabricação era a atividade cujo processo se dava no isolamento do homem, ela não implicava ne-cessariamente na solidão, pois os homens poderiam estar em con-tato uns com os outros para produção de suas obras. Não caracte-rizava-se, dessa forma, como um trabalho antipolítico, apesar de não implicar a pluralidade dos homens. Já o trabalho, certamente, caracterizava-se como uma atividade apolítica. Esse, sim, se dava absolutamente na esfera privada, pois para vir a ser necessita, tão somente, do convívio natural da espécie.

Para Arendt, era somente por meio da ação e do discurso que os homens poderiam aparecer uns para os outros, se inserirem no mundo humano e confirmarem a simples existência simples e corpórea. De acordo com a pensadora, nenhum homem pode se abster dessa atividade como das outras.

Os homens podem perfeitamente viver sem trabalhar, obrigando outros a trabalharem para eles; e podem muito

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bem decidir simplesmente usar e fruir do mundo sem lhe acrescentar um só objeto útil; a vida de um explorador ou senhor de escravos e a vida de um parasita podem ser in-justas, mas certamente são humanas. Por outro lado, uma vida sem discurso e sem ação – e esse é o único modo de vida em que há sincera renúncia de toda aparência e de toda vaidade, na acepção bíblica da palavra – é li-teralmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens. (ARENDT, 2010, p. 221).

No pensamento arendtiano, a ação é uma lembrança de que, embora os homens tenham de morrer, eles nasceram para come-çar. Assim, a ação é a atividade humana que permite que a vida dos homens não esteja fadada a arrastar todas as coisas humanas à destruição. É ela que irrompe o processo cíclico biológico dos homens, entre a vida e a morte, e permite que sejam seres capazes de fazer milagres, isto é, de empreender começos, fundações e de-terminar a trajetória do mundo. A ação, portanto, é que garante que ainda tenhamos esperança e fé nos homens. Sobre a ação, “só a plena experiência dessa capacidade pode conferir aos assuntos humanos fé e esperança, essas duas características essenciais da existência humana que os gregos antigos ignoraram por completo” (ARENDT, 2010, p. 308).

Para Arendt, é a partir da ação e do discurso que o espaço da aparência passa a ser constituído, e este, por sua vez é o que precede a constituição formal de qualquer organização de domínio público. Tal espaço pode existir sempre que as pessoas se reúnem, mas somente se efetiva como um espaço de aparência na medida em que há ação e discurso. Isso equivale dizer, para autora, que somente onde há pessoas que se expressam por meio da ação e do discurso é que o espaço da aparência é constituído e pode-se, assim, constituir a organização de domínio público.

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O poder, para Arendt, ao mesmo tempo em que é gerado nesse espaço, por começar a existir somente quando os homens são capazes de agir em conserto, é o que mantém a constituição desse mesmo espaço, do domínio público, uma vez que a partir do momento em que as pessoas se dispersam ou se isolam, são privadas do poder e esse espaço deixa de se constituir. A única limitação e condição para que haja poder é a convivência entre as pessoas, pois ele jamais pode se constituir no isolamento. Con-tudo, essa convivência não é traduzida na mera co-existência das pessoas. Poder pressupõe a convivência entre as pessoas que se inserem nesse espaço se expressando por meio de ação e discurso. Assim, para Arendt, um mero aglomerado de pessoas incapazes de expressar sua singularidade por meio de sua capacidade de agir e discursar não implica na necessária constituição de um espaço da aparência, nem de poder. Poder, para nossa autora, é sempre potencial de poder, pois implica que deve ser sempre efetivado e jamais armazenado ou mantido em reserva. E para que se efetive, é necessário que os homens ajam em conserto.

O poder é sempre, como diríamos hoje, um potencial de poder, não uma entidade imutável, mensurável e confiável como a força e o vigor. Enquanto o vigor é a qualidade na-tural de um indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos e desaparece no ins-tante em que eles se dispersam (ARENDT, p. 250, 2011).

Hannah Arendt, em “A Condição Humana”, afirma que é o poder que mantém as pessoas unidas depois que passa o momento fugaz da ação, a qual ela se refere como organização. Depois desse momento, se os homens não participam da convivência uns dos outros e se isolam, o poder deixa de existir. Cinco anos após a pu-blicação da obra em que ela faz essa afirmação, ela publica “Sobre a Revolução”. Talvez, nessa obra, possamos compreender melhor

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a crítica da autora a respeito do fracasso na constituição do poder depois que se passa o momento da organização, ou como ela se refere nessa obra, fundação.

Para Hannah Arendt, o fracasso da Revolução Americana, que se apresentou desde o início (apesar do êxito da fundação de um novo corpo político) consistiu na confusão entre bem-estar público e privado; na perda do sentido da fundação da revolu-ção (a liberdade pública) quando aos homens interessava a par-ticipação nos negócios públicos na medida em que isso serviria para que pudessem se realizar em seus interesses privados e, por isso, seriam regidos pelas regras dos interesses pessoais e não mais pelos interesses comuns, públicos, ou o que Tocqueville entendia por “interesse bem compreendido”. A esses homens a participação nos negócios públicos era entendida como um fardo e esse dese-jo antipolítico é percebido por Arendt nas cartas de Jefferson e John Adams que expressam um anseio por estar desobrigado de qualquer dever e cuidado público, criando mecanismos para que os cidadãos controlem os governos, sem precisar agirem e, assim, se dediquem exclusivamente a seus interesses pessoais. Sobre esse homem que se volta a esses interesses, passo a explicação da vitó-ria do animal laborans.

A vitória do animal laborans – o caminho para a perda da ação

Hannah Arendt indica em “A Condição Humana” a diluição das esferas pública e privada quando as preocupações desta são elevadas ao status de assunto público e adentram o espaço públi-co. Aqui, há a vitória do animal laborans. O homem cuja ativida-de corresponde ao trabalho, à manutenção da vida biológica, que se preocupa tão somente com os cuidados privados e eleva suas

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necessidades a status de assunto público. A esfera pública, antes espaço da ação e do discurso, é adentrada pelas preocupações da esfera privada: as necessidades biológicas do homem. A principal preocupação do animal laborans é o mero fato de estar vivo e sua felicidade parece ser uma recompensa pelas fadigas e penas para nos mantermos vivos (ARENDT, 2005, p. 182).

Como resultado da promoção da vida a bem supremo, da valorização do trabalho como a mais importante atividade do ho-mem e da preocupação com interesses individuais em detrimento do cuidado do mundo, o homem moderno acabou por se eman-cipar politicamente. Isto é, a ação, atividade inerente à política, torna-se prerrogativa do governo. Ao animal laborans interessa tão somente o trabalho que seja necessário para a vida do indivíduo e para o processo vital da sociedade. Não está mais em jogo a rela-ção entre cidadão e Estado e política não se refere, nem mesmo, ao que é comum a todos, mas tão somente à vida.

É obrigação do governo em cujo espaço de ação cai a coisa política a partir de então, proteger a livre produtividade da sociedade e a segurança do indivíduo em seu âmbito priva-do. Não importa como seja a relação entre cidadão e Esta-do: liberdade e política continuam separadas uma da outra da maneira mais categórica. (ARENDT, 2012, p. 73).

Para Arendt, nada mais perigoso e calamitoso do que o ho-mem e não o mundo estar no centro da política e é justamente esse deslocamento de interesse que ocorre na Modernidade. O pe-rigo reside no fato de o mundo e os assuntos humanos só poderem ser construídos num espaço entre os homens – onde, para Arendt, nasce a política – e não num espaço privado. É nesse espaço, onde as leis são criadas para garantir a estabilidade dos corpos políticos e, somente nesse espaço, os homens podem se mover em liberda-de A preocupação dos homens, portanto, é com a continuidade

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da existência da humanidade diante do incremento das modernas possibilidades de destruição. A política perde o sentido quando torna-se nada mais do que aquilo necessário à conservação da vida da humanidade e, pior, passa se tornar ameaça para aquilo que pretende conservar. Se for verdade que a política nada mais é do que algo infelizmente necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de fato ela mesmo começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido (ARENDT, 2012, p. 40).

Desta forma, Arendt afirma que nosso mundo caiu em uma completa calamidade quando a vida nua e crua passou a ser a preocupação central da política (ARENDT, 2012, p. 17). Resul-tado disso é não só a ameaça à vida, pela própria política, como a ameaça à extinção da política do mapa, a partir do momento em que esta, dotada de tantos poderes sobre a vida, pode ser abso-lutamente rejeitada e se apresentar como instituições rejeitáveis. Além disso, o indivíduo sente-se ameaçado, pois não é a vida da sociedade que está em jogo – pela qual ele até poderia sacrificar sua vida, como a política em outros momentos históricos exigiu – mas a própria liberdade, que diz respeito a si e a seu grupo e a existência da sua espécie.

Mais assustador ainda é que essa política, por muitas vezes, se apresenta ameaçadora sem qualquer força - que adviria das no-vas técnicas que possibilitam a extinção da humanidade – mas pela própria forma como se apresenta brutal na esfera social ao ser a necessidade, a força que coage os homens. A própria necessida-de torna-se o imperativo da vida em sociedade pela qual todos os homens agem e buscam sobreviver a ela. Uma força que antes era limitada à esfera privada desloca-se para a esfera pública e torna-se uma ameaça não só para o indivíduo como para toda a humani-dade. Falta, na Modernidade, sentido à política, quando não sa-bemos mais os objetivos que o agir político persegue, quando não

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há metas que garantam o caminho que a política deve perseguir e quando somos arrastados à superfície do acontecer diário. Para Hannah Arendt, não se levou mais a sério desde a Antiguidade clássica a pergunta sobre o verdadeiro sentido da política, que, nessa época, era a liberdade.

A incapacidade de agir em conserto

A ação para Arendt, ao empreender tal crítica à política da Modernidade, viria a ser excluída da esfera pública e isso caracteriza a noção da perda de sentido da política na era moderna para nossa pensadora. Isso só seria possível pela assunção da esfera social, ou ainda, pela diluição das fronteiras entre esferas privada e pública, um fenômeno novo e peculiar da modernidade. Isso porque, família e política, desde o surgimento das cidades-Estado, eram entidades diferentes e separadas e, portanto, pertenciam a esferas distintas. As duas esferas se relacionavam somente na medida em que a ne-cessidade era um fenômeno pré-político cuja saciedade se dava na esfera privada e que garantia a participação do homem na esfera pública. Isto é, para exercer sua liberdade, ter possibilidade de agir e discursar na esfera pública, o homem deveria ser liberado para isso, o que implicava cuidar de sua vida em seu sentido biológico para que pudesse participar dos negócios públicos.

Mas com a eclosão da esfera social tais limites que garantiam a distinção tornam-se difusos e, o maior problema disso é admitir a família como um corpo político e a política, por sua vez, como uma administração doméstica que deve zelar pelas necessidades vitais dessa grande família. A problemática que se insere na perda dos limites das esferas reside no fato de que os problemas e ca-racterísticas da esfera privada adentraram a esfera pública. Isto é, aquelas questões que outrora eram de cuidado exclusivo da famí-

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lia, passam a ser preocupações coletivas: o cuidado com a vida e a satisfação das necessidades passam a ser um problema de todos, isto é, um problema político. A forma como os homens se rela-cionam na esfera privada, passa a ser a mesma na esfera pública: onde antes havia igualdade entre os homens, há a diferença de forças e poderes, assim como na família, não há igualdade entre os membros. Logo no início de sua obra “O que é política?”, Arendt credita à ruína da política justamente o desenvolvimento de cor-pos políticos a partir da família, como uma forma de se exterminar aquilo que ela introduz como o sentido da política: a pluralidade3.

O cuidado com os interesses privados em detrimento daque-les públicos, a indistinção entre funções privadas e públicas e a promoção das necessidades vitais a assuntos públicos acabaram por retirar das mãos dos homens a responsabilidade pelo cuidado com o mundo. Um homem que se comporta, não é responsável por nada além de suas necessidades vitais. Isolado, dedicado ao traba-lho, atividade que não implica a convivência com outros homens, o homem deixa de se inserir no espaço público por meio de atos e palavras e, consequentemente, deixa de efetivar poder.

Já um homem que age, fala e ocupa o centro dos negócios públicos é um homem responsável pelo mundo que já estava aí, quando chegou e que deve permanecer para os recém-chegados. “Se não fosse ao mesmo tempo abrigo e assunto dos homens, o mundo não seria um artifício humano, e sim um amontoado de coisas desconexas ao qual cada indivíduo teria a liberdade de acrescentar mais um objeto; sem o abrigo do artifício humano, os assuntos humanos seriam tão instáveis, fúteis e vãos como as perambulações das tribos nômades” (ARENDT, p. 255, 2011).

3 ARENDT, 2012, p. 21.

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Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

____________. Apresentação da tradução “Trabalho, obra e ação”. Cadernos de Ética e Filosofia Política 7, 2/2005, p. 165-173.

___________. Entre o passado e o futuro. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva,

___________. O que é politica? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

___________. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Sônia Maria Schio1

No pensamento político de Hannah Arendt (1906-1975), há conceitos que são centrais, tais como o de liberdade, de ação, de lei entre outros. Um, entretanto, que é imprescindível, não tem recebido a devida atenção por parte dos leitores e dos pesquisa-dores: trata-se da acepção de “fundação”. A partir desse conceito é possível retomar a questão, presente na elaboração teórica de Arendt, em especial naquela sobre o governar e o ser governado. Em outros termos, a hipótese a ser desenvolvida, é a de que o con-ceito de “fundação”, enquanto um novo início, porta elementos de autoridade, de ação e, portanto, de liberdade.

No V Encontro Arendt, em São Leopoldo/RS (2010), a ex-posição versou sobre a autoridade (SCHIO, 2011), ou seja, sobre “os motivos pelos quais alguém obedece”. Lendo, no GEHAr2, em 2012, a obra Da Revolução, esse tema voltou a ser tratado, po-rém, nesse momento, no contexto da revolução. Na obra de 1963, Arendt abordou o importante tema político referente ao funda-mento do governo, da relevância da lei, dos compromissos mútuos, entre outros, estando esses presentes no “ato de fundação”.

1 Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da UFPel.

2 GEHAr – Grupo de Estudos Hannah Arendt da UFPel (Universidade Federal de Pelotas/RS). Blog: http://encontroarendt.wordpress.com.

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No início do texto, ela diferencia guerra e revolução, afir-mando que a primeira não utiliza o conceito de liberdade como “bandeira” justificadora das atitudes como a revolução o faz. De-pois, ela distingue revolta de revolução, retomado a etimologia do termo “revolução”, utilizado com conotação política a partir da Modernidade (ARENDT, 1990, p. 34; 39-41). Antes desse perío-do, a palavra apenas referia-se à astronomia, aos movimentos dos astros (a Terra e o Sol, por exemplo). Em Arendt, então, a acepção possui conotação política, isto é, o significado é moderno e ela o emprega para comparar as denominadas Revoluções Americana (1776) e a Francesa (1789). O objetivo de Arendt não é o de glo-rificar uma e menosprezar a outra3 ou simplesmente mostrar as relações entre elas, etc., mas demonstrar as diferenças entre os fundamentos de cada uma: na Francesa, a miséria (do povo) e a falta de participação nas decisões (por parte da burguesia). Na Americana, os chamados “pais fundadores” quiseram manter a or-ganização que elaboraram ao chegar ao território, a liberdade e a participação dos componentes do grupo (as Treze Colônias). Dessa forma, nas colônias inglesas da América do Norte havia o ensejo de não ser explorado pela Metrópole Inglesa, mantendo a maneira de viver que haviam instituído no início da colonização.

Brevemente, nos capítulos em que Arendt trata dos dois exemplos de “revolução”, ela afirma que a Francesa não obteve sucesso, afinal houve a Restauração e o retorno da Monarquia sob o comando de Napoleão e a burguesia ascendeu ao poder. Por sua vez, a Revolução Americana consolidou-se em um país que man-teve a estrutura erigida no início da ocupação da região4. Nessa

3 Como o fez André Enegrén no artigo intitulado Révolution et Fondacion.

4 Como Arendt não trata da colonização em seus detalhes, é interessante ressaltar que as terras do Novo Mundo não eram desabitadas e que há uma longa e triste História em torno da ocupação delas, mas que foge do objetivo da autora, momento

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perspectiva, a “fundação” foi a base que sustentou as relações en-tre os homens que estavam se manifestando contra a Coroa Britâ-nica: ela foi um novo começo. Isso porque, para Arendt (1992, p. 217), “a liberdade qua começo se torna manifesta no ato de funda-ção”, pois a mesma demonstra “a faculdade da própria liberdade, a pura capacidade de começar” algo novo, mesmo sabendo que não é um início absoluto5. Segundo ela (Idem, 1990, p. 156),

os colonizadores do Novo Mundo se libertaram do peso e do ônus dessa tradição [isto é, da necessidade de um absoluto para fundamentar suas atitudes], não quando atravessaram o Atlântico, mas quando, sob a pressão das circunstâncias – temerosos da vastidão bravia do novo continente, e com receio do que podia estar oculto nos meandros sombrios do coração humano – congregaram-se em “corpos políti-cos civis”, uniram-se numa empreitada para cuja execução nenhum outro vínculo existia, e assim, deram causa a um novo princípio, em pleno curso da história da humanidade.

A densidade desta citação ocorre em razão dela conter ele-mentos importantes sobre a fundação: o motivo que levou os ingle-ses que chegaram na América a iniciar algo novo e, frente à imen-sidão do novo território, eles perceberam que individualmente não conseguiriam sobreviver. Assim, fizeram um pacto, denominado de “Pacto de Mayflower”6. Por meio desse, eles se comprometeram a auxiliar-se, independentemente das divergências e dos interesses

em que a opção é seguir os argumentos de Arendt, pois o viés é político e o tema tratado está sob o prisma da Filosofia Política.

5 Para Arendt, não existem “inícios absolutos” para o humano, apesar dele poder inventá-los, por exemplo, para derivar a autoridade da lei e do poder (ARENDT, 1990, p. 129).

6 Plymouth, 11/nov/1620 por 42 dos 102 dos passageiros. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pacto_do_Mayflower. Acesso em 05/05/2014.

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individuais, pois eles “temiam o ímpeto desenfreado de homens li-bertos de qualquer lei.” (Ibidem, 1990, p. 133) A isso Arendt deno-mina de “corpo político civil”, isto é, não com ligações religiosas, econômicas ou outras, apenas objetivando o melhor para o grupo. Assim sendo, iniciaram algo inédito, fundaram uma “vida nova”, distinta daquela vivida anteriormente na Inglaterra.

Assim, a pergunta fundamental, neste texto, é: por que a fundação é relevante no pensamento político de Arendt? Nos ter-mos da própria autora (Ib., 1990, 164), ainda com o exemplo da revolução ocorrida nos Estados Unidos da América do Norte:

A fundação agora ocorrera, pela primeira vez, em plena luz do dia, passível de ser testemunhada por todos aqueles que a presenciaram, fora, durante milhares de anos, obje-to de lendas primordiais, através das quais a imaginação tentava devassar um passado e um evento que a memória não podia alcançar. [...] sua importância histórica está na tentativa da mente humana de resolver o problema do iní-cio, de um evento novo e inconexo irrompendo na sequ-ência contínua do tempo histórico.

Isso porque, segundo Arendt (1992, p. 218), “é da própria na-tureza de todo novo início irromper no mundo como uma ‘impro-babildiade infinita’”, porque ele é contingente, seus acontecimentos são o resultado de ações humanas, muitas vezes arbitrárias para o agente e ainda mais aos espectadores que apenas percebem o en-redo: o aparecimento da liberdade. Para os historiadores, os fatos são mais abrangentes e explicáveis7. Por essa razão a autora explica (1990, p. 165): “É da própria natureza de um início conter, em seu

7 Nos termos de Arendt (1990, p. 23), apenas “a novidade da História e o significado mais recôndito do seu enredo tornam-se evidentes, tanto para os atores como para os espectadores [...] o aparecimento da liberdade. Sobre o fato histórico, consulte-se Schio, 2012, p. 232-244.

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âmbito, uma certa dose de arbítrio [...] o início parece não ter nada em que se apoiar; é como se ele surgisse de um vazio, fora do tempo e do espaço.” Por conseguinte, há a busca de exemplos no passado para utilizá-los no presente, visando a fundamentação e a organi-zação deste “novo”. Na consecução da Independência dos EUA e na elaboração de sua Constituição8, foram procurados modelos na Tradição, como a própria autora (Idem, 1990, p. 157) escreveu:

tem sido observado que, com frequência, as ações dos ho-mens das revoluções foram inspiradas e guiadas, num grau extraordinário pelos exemplos da Antiguidade Romana. [Assim, percebeu-se] [...] como era surpreendente que os ho-mens das revoluções se voltassem para um passado distante.

Qual é, então, o “poder”9 da fundação? Entendendo-se o po-der como a capacidade para autocomandar-se (fazer algo como tra-balhar; não fazer como descansar; movimentar-se, indo, vindo ou parando, etc.) e também para comandar o outro ou outros (como o patrão o faz, o policial, o professor, os pais, por exemplo) e como possibilidade, quando os seres humanos estão juntos e possuem um mesmo objetivo, distinto da coação e da violência, pode-se encon-trar no texto de Arendt que a fundação é, resumidamente:

1. O que surge do rompimento com uma situação, tornando-se uma descontinuidade em um processo vigente. Nesse sentido, a causalidade é interrompida, pois o início, sendo inédito, demonstra que há liberdade na ação humana, pois ele poderia não ter ocorrido.

8 A Constiuição dos EUA foi discutida e aprovada pela Convenção Constitucional de Filadélfia, na Pensilvânia/USA, entre 25 de maio e 17 de setembro de 1787. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Unidos. Acesso em 05/05/2014.

9 Não o querer, mas o poder. (ARENDT, 1990, p. 120)

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2. No “ato fundante” ocorre a alteração do modo de organizar-se, sendo elaborada uma maneira de viver diferente, isto é, de uma outra forma, com outros fundamentos. Nesse contexto, por exemplo, a autora expõe (ARENDT, 1990, p. 133): as Treze colônias organizaram-se por meio de “representantes devidamente eleitos de organismos constituídos; sua autoridade vinha de baixo, [...] [semelhante ao] princípio romano de que a sede do poder estava no povo.” Isso significa que eles separaram a lei e o poder (Idem, 1990, p. 125): o fundamento do poder está no povo e a fonte do poder, na constituição. Assim poderia haver uma maior garantia de que uma pessoa ou um grupo, ou a maioria, não passasse a conduzir o restante sem liberdade, extinguindo o espaço público, as leis, a necessidade de consentimento e, por consequência, as condições para agir.

3. Não houve a divisão entre governante e governados na esfera pública, pois os corpos políticos eram “associações políticas” (Ibidem, 1990, p. 134), com a existência de um espaço público acessível a todos, onde havia uma combinação de poderes.

4. A instituição da uma nova forma de viver baseou-se no consentimento de homens livres que poderiam se unir e se incorporar a um grupo (Ib., 1990, p. 135-136). Em outros termos, não havia um contrato mútuo, mas um acordo, com compromissos, gerando uma societas, um grupo humano com certas ligações, com laços que não visavam apenas a sobrevivência ou os interesses econômicos. A meta era o convívio entre humanos, por meio de uma espécie de “aliança”, com objetivos compartilhados. A mútua promessa apenas ocorre com

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a presença de vários seres humanos, gerando a “fonte” do poder, pois as regras que organizaram as relações das pessoas no grupo foram elaboradas por eles, mesmo que no passado, o que equivale a afirmar que assim ocorre a “origem de um ‘estado civil’ na mútua promessa e vinculação de seus constituintes.” (Ib., 1990, p. 137-138).

5. O grupo se mantém coeso e atuante pelo esforço conjunto. Esse “esforço conjunto nivela, com muita eficácia, tanto as diferenças de origem como as de qualidade” (Ib., 1990, p. 139). Mais uma vez surge a importância do fazer e do cumprir as promessas, tal como aparece na obra A Condição Humana (1991, cap. V, 34). E a ação, com seus traços de ilimitação, irrepetitibilidade, irreversibilidade, etc.,10 é a capacidade humana que precisa da pluralidade11 para gerar poder: “os homens se relacionam mutuamente, se associam no ato de criação, por força das promessas feitas e cumpridas” (Ib., 1990, p. 140) e isso resulta na autoridade.

6. Há, nessa perspectiva, um elemento de união: o início porta regras que precisam ser seguidas para que o que foi elaborado não desapareça, não seja destruído ou abandonado. E esse ponto é um dos mais relevantes nesta temática.

10 ARENDT, 1991, p. 190; 203-204; 220 e 232; SCHIO, 2012, p. 167-169.

11 Em Arendt, a pluralidade é a condição humana dos seres humanos que habitam o mesmo entorno, o Planeta Terra, mas o fazem em sua singularidade de indivíduos únicos, irrepetíveis, insubstituíveis: a “política se baseia no fato da pluralidade humana. Deus criou o homem, mas os homens são um produto humano, terreno, um produto da natureza humana.” (ARENDT, 2009, p. 144. Grifos da autora.). É preciso lembrar que, para a Arendt, a natureza (physis) não é o mesmo que “mundo”, pois esse é o resultado do esforço humano (trabalho) que elabora um “lar” para os humanos, permitindo que eles se “sintam em casa” na physis .

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Por meio dessa consideração, pode-se perceber que a funda-ção inaugura algo novo no tempo e o momento desse surgimento possui os elementos que servem de base para a continuação dessa novidade no mundo humano. Assim sendo, não há a necessidade de buscar um absoluto ou algo que fundamente esse momento fora dele mesmo: ele contém esses princípios desde o seu surgimento. Cabe aos seres humanos preservá-los, por meio da ação política que visa a manutenção da liberdade.

7. Fica ressaltada, então, a liberdade dos fundadores que necessita da ação continuada e livre das gerações que os sucedem para continuar a existir.

Ainda utilizando o mesmo exemplo, quando a Coroa Inglesa começou a fazer exigências maiores da Colônia, os habitantes re-solveram que queriam manter a situação como a haviam constitu-ído. Dessa maneira, ocorreu a “revolução” e o desligamento. Posto que, conforme enfatiza Arendt (1990, p. 171), não foi necessário o uso da violência: a mudança “não eclodiu simplesmente, mas foi conduzida por homens que tomaram juntos uma resolução, unidos pela força de compromissos mútuos.” Para ela, então, a fundação não necessita de agressividade, do uso de armas, de mortes, quan-do se baseia no princípio do poder combinado de muitos.

Como legado da fundação, pode-se sublinhar a importância da ação que possibilita novos inícios e, assim, da natalidade, pois

os homens são equipados para a tarefa paradoxalmente lógica de construir um novo começo por serem, eles pró-prios, novos começos, e portanto inovadores, e de que a própria capacidade de iniciação está contida na natalida-de, no fato de que os seres humanos aparecem no mundo em virtude do nascimento (ARENDT, 1990, p. 169).

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Dessa forma, consolidou-se a liberdade, a pluralidade, o po-der da união das pessoas, “o poder controlando o poder” (Idem, 1990, p. 121), a partir de acordos, com autoridade legítima, com o consentimento elegendo a república como forma de governo. Destes conceitos, um desponta motivando a pergunta: há relação, no pensamento de Arendt, entre a fundação e a autoridade? A resposta é afirmativa, lembrando que a autoridade não é sinônimo de autoritarismo,12 mas que reflete a retenção da própria liberdade em prol de algo mais importante: a estabilidade do grupo, sua exis-tência e sua preservação. Assim, o exemplo dos Estados Unidos da América do Norte demonstra a utilização da herança romana com a tríade tradição, autoridade e religião. A tradição seguida foi aquela dos valores, saberes, atitudes e compromissos assumidos no acordo de 1620 e reassegurados em 1776. Pela secularização, a re-ligião ficou reservada para a esfera privada, enquanto que a auto-ridade estava ligada aos princípios eleitos pelos “pais fundadores”, nos quais a lei, sua elaboração e obediência, foi entendida como imprescindível para a manutenção da comunidade instituída.

Nesse viés, os pais fundadores iniciaram uma nova forma de viver, elaboraram um conjunto de regras para si mesmos, o qual é a “base” que precisa ser mantida por meio de reiteradas ações, com fidelidade aos princípios daqueles que o inauguraram. Nesse sentido, a república é entendida em termos romanos de busca do bem comum, com seu poder fundado no povo, mas que não é uma “ditadura do povo”, sequer da maioria, pois a lei limita e organiza o convívio. Ou seja, devido à valorização da Constituição, das leis enquanto regula-doras das ações e das relações dos integrantes do grupo. Dessa forma, a liberdade pode ser vivenciada. A “Revolução Americana” o mostra,

12 Schio (2012, p. 228) explica que “a autoridade não se confunde com o autoritarismo, pois neste há obediência oriunda da força e da violência, um convencimento forçado. [...] A autoridade implica a obediência que retém a liberdade, pois ela é uma espécie de coação pela razão.”

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pois foi realizada sem violência. Ela deveria, então, ser lembrada en-quanto experiência política autêntica e exemplar.

Referências

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_____. A condição humana. 5ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

_____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Nova Perspectiva, 1992.

_____. A Promessa da Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

ENEGRÉN, André. Révolution et fondation. Esprit, Paris, n. 42, juin 1980. (p. 46-65)

SCHIO. Sônia Maria. Hannah Arendt: a questão da autoridade. IN: OLIVEIRA, K., SCHAPER, V. G. Hannah Arendt: uma ami-zade em comum. São Leopoldo: Oikos, 2011. (p. 94-105)

_____. Hannah Arendt: história e liberdade (da ação à reflexão), 2 ed., Porto Alegre: Clarinete, 2012.

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A Questão da Identidade Política de Hannah Arendt e a Identidade

Narrativa de Paul Recouer1

Edilene Maria da Conceição2

Introdução

Como identificar o homem e sua alteridade dentro da plura-lidade do espaço público? Compreender a história e a narração de quem a faz é compreender o homem e sua relação com o mundo.

Tanto Ricouer quanto Arendt acreditavam que qualquer postura do sujeito no mundo e diante de si é comprometimento, é ação ética, é identidade. E o outro é condição sine qua non da identidade do sujeito. Não existe ética se não existe o outro, figura absoluta da alteridade.

O problema filosófico da identidade narrativa é analisado neste trabalho de forma a apresentar a solução às principais apo-rias do problema filosófico tradicional da identidade pessoal, na qual se questiona sobre o critério essencial no reconhecimento de nós próprios ao longo do tempo.

A maneira de definir a identidade pessoal pode fracassar, mas o elemento do caráter da permanência da personalidade, o

1 Revisora Érika Acosta Plak, Mestre em Letras pela Universidade federal de São João Del-Rei (UFSJ).

2 Mestre em Filosofia –UFU. Professora IPTAN/SESI MG.

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modo de determinar o que fica na maneira de ser da pessoa tem sua dualidade e objetividade, e tem, também, caráter reflexivo.

A questão da identidade narrativa e da identidade política terá como ponto de partida, neste trabalho, a questão do concei-to de identidade narrativa em Paul Ricouer. Em seguida, a mes-ma problemática será abordada de forma a ressaltar a questão da pluralidade e da eticidade no pensamento de Ricouer e Hannah Arendt. Por fim, a temática central se fechará com a questão da promessa sobre a ótica dos dois pensadores.

O problema filosófico da identidade narrativa em Ricouer

O problema filosófico da identidade narrativa é tratado por Paul Ricoeur de forma bastante profunda em diversos momentos de sua obra. Para delimitar a noção de identidade narrativa, é pre-ciso delimitar o tipo de identidade à qual o ser humano acede graças à mediação da função narrativa.

Para Ricoeur existem dois grandes conjuntos narrativos: a narrativa histórica e a narrativa de ficção. Ele formulou a hipótese segundo a qual a constituição da identidade narrativa – seja de uma pessoa individual, seja de uma comunidade histórica – era o lugar procurado para a fusão entre o histórico e o ficcional. Para ele, as “histórias da vida” se tornam mais inteligíveis quando lhes são aplicados modelos narrativos – por exemplo, as intrigas, extra-ídas da história e da ficção (drama ou romance). A autobiografia confirma esta sua intenção, como afirma:

[...] a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada, - esta última serve-se tanto da história como

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A Questão da Identidade Política de Hannah Arendt e a Identidade Narrativa de Paul Recouer

da ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, compará-veis às biografias dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção. (RICOEUR, 2000, p.02).

A identidade, portanto, é a identidade narrativa. Não há como compreender a identidade pessoal sem o auxílio da narração, pois o sujeito tem a possibilidade de construir sua própria narrativa.

Ricoeur fez uma análise detalhada da diferença fundamental entre os dois usos principais do conceito de identidade: a identidade como mesmidade (latim idem) e a identidade como si-próprio, ip-seidade (latim ipse). Ipseidade não é a mesmidade. Ricoeur procura mostrar a profunda diferença entre pensar-se a identidade pessoal em termos de mesmidade e ipseidade. A mesmidade encontra-se subjacente à noção latina de idem, que expressa a identidade alcan-çada a partir da permanência substancial no tempo; pelo contrário, o conceito de ipseidade implica um outro tipo de identidade, en-quanto ipse, que se constrói a partir da temporalização de si-próprio. Para ele, essa diferença não é meramente semântica, e sim ontológi-ca. O ser enquanto idem e o ser enquanto ipse não são coincidentes, ambos se entrecruzam. O idem traduz a neutralização impessoal de uma existência (o indivíduo não como pessoa, mas como entidade neutra). Esta é uma identidade estática, atemporal, abstrata. O ipse manifesta a presença em si-próprio de uma pessoa. Esta é uma iden-tidade dinâmica, temporal, que inclui mudanças.

O ponto de partida para o entendimento da noção de ipseidade, de si-próprio, se dá na questão “quem”, distinta da questão “o quê”. Responder à questão “quem” é contar a história de uma vida. A his-tória que é narrada apresenta o agente da ação. Chama-se de “adscri-ção” (ascription) o assinalar de um agente a uma ação. Aqui acontece o corte, não meramente gramatical, epistemológico ou lógico, mas ontológico, que separa idem de ipse. É a esfera do “Dasein”, que se

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caracteriza pela capacidade de se interrogar sobre seu próprio modo de se relacionar ao ser enquanto ser, noções como ser no mundo, ser--com. O si-próprio encontra-se em interseção com ele mesmo em um ponto preciso, a permanência no tempo. O mundo pode vir a mudar, mas permanece a ipseidade. A identidade do sujeito não depende de qualquer fator externo. Para Ricoeur, portanto, a narrativa constrói o caráter durável de um personagem, que se pode chamar de identi-dade narrativa, construindo o tipo de identidade dinâmica, próprio à intriga que faz a identidade do personagem. A mediação narrativa sublinha o caráter notável do conhecimento de si-próprio ser uma interpretação de si-próprio. Se não é possível um conhecimento direto de nós próprios, nada nos impede uma mediação interpretativa de nós mesmos, através do uso de uma linguagem narrativa.

A dimensão plural e ética da identidade em Ricoeur e Arendt

A identidade narrativa em Ricoeur não é meramente descri-tiva, tem uma dimensão moral, de engajamento, de compromisso. O sujeito dessa identidade pode ser reconhecido no tempo, apesar das transformações. A identidade narrativa é categoria da ação e não da imaginação ou vontade. A decisão do sujeito em dizer “este aqui sou eu” é responsabilidade ética da ipseidade. É, portanto, provida de dimensão normativa, valorativa e descritiva. A visão de si e do mundo que o sujeito da narrativa impõe é persuasiva, não é eticamente neutra, mas possibilita uma nova visão do mun-do e de si mesmo. Há nesse momento a pretensão à correção ética. É o leitor (ou escritor) quem fará a escolha da melhor “leitura”.

Não se pode deixar de levar em conta, também, as aporias na maneira de definir essa identidade. A intenção de defini-la pode fracassar. O elemento do caráter, da permanência da personalida-

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de, a maneira de determinar o que fica na maneira de ser tem uma dualidade e uma objetividade. É reflexiva.

A ficção narrativa lembra que a ipseidade e a alteridade são dois existenciais correlativos. O si-próprio constitui-se na relação com a alteridade. “Não somos o mundo, mas somos com o mundo”. Ricouer tem na sua tese da identidade narrativa, o modelo que não dissocia o si-próprio da experiência da alteridade – do “ser no mundo”, do ser “com”, de Heidegger. A pessoa vive e para isso precisa agir sobre o mundo; é sujeito ao mundo do mesmo modo que é sujeito do mun-do e o mundo age sobre ele. É preciso, diz Ricoeur, que a identidade pessoal seja uma mediação: é isso que possibilita “um si-próprio fi-gurado – que se figura tal ou tal.”, ou seja, não definitivo, que possa “apropriar-se” do mundo, mudar e permanecer, nos seus horizontes.

Hannah Arendt também acreditava que só o homem era ca-paz de comunicar a si próprio, não como mera comunicação de alguma coisa, mas, comunicação de si, no mundo. Acreditava que é no discurso e na ação que os homens podem distinguir-se, ao invés de permanecerem apenas diferentes. “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano”. (ARENDT, 1989, p.189).

Para Arendt, é na palavra falada e escrita que o sujeito se iden-tifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. Como disse Platão, “A lexis (o discurso) é mais fiel à verdade que a práxis”. (ARENDT, 1989, p.191). Nenhuma atividade humana precisa tanto do discurso quanto a ação. “Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e as-sim apresentam-se no mundo humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas [...].” (ARENDT, 1989, p.192).

Para Arendt, a qualidade do discurso e a qualidade da ação são possíveis, quando as pessoas estão “com outras”, no gozo da convivên-cia humana. Para ela, a ação consiste no agir político, em um espaço comum a todos; o que pressupõe a existência da igualdade entre os indivíduos. Não há uma igualdade no sentido de semelhança, mas

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uma igualdade de desiguais, uma igualdade enquanto ser humano. Uma igualdade que possibilita a revelação das diferenças. Pois os seres iguais são capazes de agir e através da ação se dão conta de sua sin-gularidade. Quando não há convivência, não ocorre a revelação do agente e, não havendo esta revelação, a ação perde seu caráter especí-fico de ser um meio e não um fim. Arendt acreditava que a ação tem uma responsabilidade moral, apesar de residir em si mesma. Apesar da alteridade reflexiva da moral ser solitária, não é solipsista.

Hannah Arendt, em seu pensamento, sempre relevou a ação e o posicionamento coletivo como possibilidade de “epifania” do ho-mem. Sua rebeldia intelectual distanciava-se de qualquer acomoda-mento. Para Arendt, o espaço político e a liberdade vivida em seu interior requerem a existência do outro, ou seja, requerem estar com os outros. É nessa pluralidade, onde a condição é permanecer com os outros, que o homem forma sua identidade3. A teoria política de Hannah Arendt está centrada na afirmação de que a “raison d’être” da política é a liberdade, e seu domínio da experiência é a ação. Quando se perde a possibilidade de existência de um espaço público, perde-se qualquer liberdade. Newton Bignotto comentando Arendt afirmou que “a liberdade política se expressa num mundo no qual a pluralidade é parte essencial e produto da ação contínua dos homens.” (MORAES; BIGNOTTO, 2001, p.118).

A questão da promessa em Ricoeur e Arendt

Ricouer edificou uma fenomenologia hermenêutica da pessoa constituída a partir de quatro estratos centrais: linguagem, ação,

3 Em Hannah Arendt é pela palavra que os homens “estão entre os homens” (inter homines esses) e também alcançam condição per quam de toda a vida política, e é na ação que os homens se complementam, e dependem da presença dos outros para ratificar sua identidade, pois a “pluralidade é a Lei da terra”. (ARENDT, 1989, p.15).

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narração e ética. Ele pretendeu essencialmente concentrar-se no argumento filosófico da pessoa. Para Ricouer, “a pessoa é o lar de uma ‘atitude’ à qual podem corresponder ‘categorias’ múltiplas e muito diferentes.” (RICOUER, 1992, p.199). Ricouer limita-se a definir a pessoa por uma “atitude”, e o que em seu entender pode melhor caracterizar essa “atitude” é a noção de crise. São os anos de crise econômica e social que revelam também uma crise da pessoa. Aos critérios de crise ele enunciou o seu critério de “en-gagement”. O caráter de compromisso é revelado na descoberta da relação circular entre a historicidade do compromisso e a ativida-de hierarquizante, o que nos permite ver na atitude, a pessoa em determinado comportamento em respeito ao tempo. Dito de outro modo, com este critério do compromisso, Ricouer afirma a virtude da duração de uma fidelidade a uma direção ou causa escolhidas, acolhimento da alteridade e da diferença na identidade da pessoa.

Na relação da filosofia linguística com uma filosofia da pessoa, Ricouer tematiza a questão do “eu” e do “tu”, nos reenviando à noção de compromisso, isto é, eu me comprometo no ato da minha afirmação através da minha linguagem. “É a força ilocucionária dos atos do discur-so que exprime o compromisso do locutor no seu discurso”. (RICOU-ER, 1992, p.211). Quanto à problemática ética, Ricouer propõe-nos a seguinte definição de “L’ethos”: “desejo de uma vida a cumprir – com e para os outros – nas instituições justas”. (RICOUER, 1992, p.204).

Para Ricouer, a narratividade não está desprovida das di-mensões normativa, valorativa e prescritiva. “[...] a estratégia de persuasão fomentada pelo narrador visa impor ao leitor uma visão de mundo que nunca é eticamente neutra, [...] mas de preferência induz, implícita ou explicitamente, uma nova avaliação do mundo e do próprio leitor [...].” (RICOUER, 1997, p. 429).

Hannah Arendt também se preocupa com a dimensão ética do agir humano na formação da identidade de uma pessoa. Ela coloca a participação como essência da vida política, aponta não

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a lei como possibilidade de tranquilizar e viabilizar a comunidade, mas a capacidade de fazer acordos. E para tal, duas faculdades são essenciais para viabilizar este objetivo: a capacidade de perdoar e a de prometer. Elas são recursos capazes de remediar a imprevisibi-lidade desencadeada pela ação, pois são capazes de desfazer o ato passado e permitir um novo feito. Sem estas faculdades, diz a auto-ra, os homens estariam limitados às consequências de um mesmo ato e, em virtude disso, impossibilitados de recomeçar algo. O ho-mem, ao perdoar, está abrindo caminho para novas possibilidades e, ao prometer, está revelando suas esperanças no futuro – o dom mais precioso concedido ao homem por Prometeu.

Tais modalidades são prerrogativas do homem coletivo. Só o ho-mem na companhia dos seus pares é capaz de perdoar e prometer, o que lhe permitirá exercitar sua criatividade. Fora isso, ele é incapaz de interromper os efeitos de um ato para recomeçar outro. Quando isso acontece, lembra a autora, a consequência é a petrificação, ou mesmo o fim de uma cultura. “Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir.” (ARENDT, 1989, p. 531). Ao contrário do perdão, que sempre foi considerado irrealista, com conotação religiosa, a faculdade de pro-meter sempre esteve presente em nossa história Arendt afirmou: “[...] o poder de prometer ocupou, ao longo dos séculos, lugar central no pensamento político”. (ARENDT, 1989, p.255). Com o ato de pro-meter é eliminada a imprevisibilidade dos atos humanos. A função da capacidade de prometer é, justamente, resolver a dupla questão: o fato de que o homem deve dominar a si mesmo e governar os outros.

Tanto em Ricouer quanto em Arendt, o ato de prometer de-corre diretamente do desejo de conviver com outros, na modali-dade da ação, do discurso, da linguagem, da narração, e são me-canismos de controle embutidos na faculdade de iniciar processos novos e intermináveis.

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Considerações finais

Ao enfocar as trajetórias do pensamento de Paul Ricouer e Hannah Arendt, pode-se ver as suas marcas que configuram o espaço constitutivo da identidade do indivíduo diante de si e do mundo, o espaço como constitutivo de uma identidade que torna possível que sujeitos desde sempre mergulhados na historicidade e linguisticidade, agenciem os fatos de acordo com uma perspectiva de compreensão do mundo que quer comunicar uma certa expe-riência pessoal e social.

Neste sentido, pode-se dizer que os sujeitos sociais, sob a óti-ca desses dois pensadores, são ativos narradores ao mesmo tempo em que são narrados, isto é, são formados pelas estruturas narra-tivas dominantes de seu tempo, e particularmente, dos campos de ação onde estão inseridos.

Em Ricouer e em Arendt o conceito de ação segue e permane-ce como legado humano, e é uma das grandes contribuições à filo-sofia, principalmente no que diz respeito à reflexão centrada sobre a pessoa, a alteridade, a solicitude e as instituições justas. Mas, sobre-tudo, no eco deixado no pensamento atual ao abrir possibilidades de refletir e agir por si mesmo, como o outro e com o outro,

A expressão com e para os outros, faz-se apelo à solicitude no movimento de si para o outro. Aqui, é reconhecido o apelo ético mais profundo, aquele por meio do qual se institui o outro como semelhante e eu próprio como semelhante do outro, uma igualda-de moral pretendida tanto por Ricouer quanto por Arendt.

Em meio às verdadeiras guerras intelectuais que assolam de forma violenta os meios acadêmicos, souberam através de atitu-des engajadas privilegiar a escuta, a atenção profunda à assime-tria possível ao diálogo e ao argumento, sempre respeitáveis ao adversário, principalmente diante dos desconfortos destes tempos modernos e pós-modernos.

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Referências

RICOEUR, Paul. A identidade narrativa e o problema da identidade pessoal. Trad. Carlos João Correia. Arquipélago 7(2000) 177-194.

_____________. Lectures 2 – la contrée dês philosophes. ed. Seuil, Paris, 1992.

_____________. Tempo e narrativa. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997.

_____________O si mesmo como um outro. Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1991.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

________________. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 4 ed. São Paulo: Companhia da Letras, 1989.

MORAES, Eduardo Jardim de, BIGNOTTO, Newton (orgs). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

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As Revoluções Modernas e o Problema do Fundamento da Constituição1

Bárbara Gonçalves de Araújo Braga2

Diante do problema da fundamentação última para a Lei da Terra, da norma que funda uma comunidade política, o recurso ao absoluto se consolidou como uma tradição. Desde os últimos sé-culos do Império Romano e os primeiros séculos do cristianismo, a encarnação de um absoluto divino na Terra assumiu diversas formas: inicialmente com os vigários de cristo, com o bispo e com o papa, depois com os reis, os quais invocavam direitos divinos, e por fim, com o recurso não menos absoluta da ideia de Nação. No mundo em que viviam os revolucionários, marcado pela se-cularização, as leis fundadoras de uma comunidade política não poderiam mais ser atribuídas à vontade divina, assim como não era desejoso qualquer sinal de despotismo. Tratava-se, então, de instaurar um ordenamento legal e institucional cuja legitimidade se baseie não no absoluto, mas em um novo início estabelecido por uma ação humana coletiva localizada no tempo. Isso significa dizer que a fundação imanente de uma comunidade politicamen-te organizada necessita agora que sua própria autoridade obtenha assentimento do corpo político para que seja considerada como legítima, uma vez que não se trata mais da velha “autoridade ab-soluta”, atribuída a Deus. Em face da dificuldade de se conferir

1 Revisão de Rodrigo Ribeiro Alves Neto ([email protected]).

2 Mestre em Filosofia pela UFMG

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validade às leis extraordinárias ou ao ordenamento jurídico que funda uma nova comunidade, tanto os revolucionários franceses quanto os americanos acreditaram que seria preciso recorrer a uma esfera que transcendesse à fragilidade dos assuntos humanos e, desse modo, não cessaram de procurar um novo absoluto que substituísse aquele do poder divino.

Sob o comando de Robespierre, os Revolucionários France-ses apropriaram-se da ideia rosseauniana de vontade geral, que coincidia com a vontade do povo, tomando-o como fundamento da revolução, de modo a trazer novamente ao âmbito político o conforto do absoluto. Como coloca Arendt, “A vontade geral era nada mais, nada menos do que o elemento que convertia o múl-tiplo em um” (ARENDT, 2011, p.114). Assim, os revolucionários franceses não abandonaram a Teoria da Soberania, mas apenas trocaram o titular da soberania: do monarca para o povo. A ideia de vontade do povo, recalcitrante a qualquer forma e conteúdo, propiciaria uma homogeneidade substancial que não se distan-cia da ideia de soberania. O soberano na Revolução Francesa é o povo, dotado de uma vontade una, que aparentemente poderia conferir legitimidade e estabilidade ao corpo político. No entanto, como ressalta Arendt, esse caráter estabilizador era apenas ilu-sório, pois tal como ocorre com a vontade individual, a vonta-de do povo pode mudar sua direção. Deste modo, era necessário descobrir um elemento interno à nação que pudesse unificar as vontades e conduzi-las em uma única direção. Apoiando-se em Rousseau e tendo em vista a unificação das vontades, os homens da Revolução Francesa atribuíram aos interesses individuais de cada homem aquilo que poderia traduzir, dentro da própria nação, a ideia de inimigo. A vontade geral é, portanto, uma força cuja finalidade é obscurecer as vontades individuais em favor de uma abstração homogeneizadora: o povo. Como esclarece Arendt:

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As Revoluções Modernas e o Problema do Fundamento da Constituição

Na construção de Rousseau, a nação não precisa espe-rar que um inimigo ameace suas fronteiras para se erguer ‘como um único homem’ e alcançar a union sacrée; a uni-dade da nação está garantida na medida em que cada ci-dadão traz dentro de si o inimigo comum, bem como o interesse geral a que esse inimigo comum dá origem; pois o inimigo comum é o interesse particular ou a vontade particular de cada homem. Apenas se cada homem par-ticular se erguer contra si mesmo em sua particularidade poderá despertar em si seu próprio antagonista, a vontade geral, e assim ele se tornará um verdadeiro cidadão do corpo político nacional (2011, p.115-116).

Nesta perspectiva, “em termos teóricos, o endeusamento do povo na Revolução Francesa foi consequência inevitável da tenta-tiva de derivar a lei e o poder da mesma fonte” (ARENDT, 2011, p.237). A imersão na premência da necessidade levou os homens da revolução a recorrerem à vontade do povo como o único ele-mento social coesivo, o que teria determinado a indistinção entre poder e autoridade, de modo que ambos se esgotavam na abstra-ção do povo. O recurso aos direitos divinos dos reis, que durante anos respaldou a monarquia absoluta, fez-se presente no governo secular através da ideia de vontade geral de Rousseau ou de Ro-bespierre, à qual para criar uma lei bastava querer. Arendt ressalta que, em termos práticos, não foi propriamente a vontade do povo que se instaurou, mesmo porque na Revolução Francesa não havia povo, em seu sentido político, mas apenas uma multidão marcada pela fragmentação e cuja união era ocasional, tendo sido o “pro-cesso da revolução em si que se tornou a fonte de todas as ‘leis’, fonte que produzia incessantemente novas ‘leis’, decretos e orde-nações, que ficavam obsoletas no mesmo instante em que eram lançadas, varridas pela Lei Superior da revolução que acabara de gerá-las” (2011, p.238).

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Uma vez que os revolucionários franceses já teriam optado pela categoria absoluta da vontade geral do Estado-nação como forma de sustentar a autoridade das próprias leis ordinárias, ou-tra coisa não se poderia esperar destes homens diante do proble-ma muito mais difícil que é o da autoridade da lei extraordinária. Sieyès, um dos grandes teóricos da Revolução Francesa, teria ten-tado resolver a questão distinguindo o poder constituinte do poder constituído. No entanto, ambos necessitavam, em última instân-cia, do recurso a uma fonte suprema e superior da qual derivariam sua validade: o poder constituinte necessitava de uma autoridade que “não podia ser garantida pela Assembleia Constituinte” e o poder constituído se assentava em uma Assembleia que não “era e nunca poderia ser constitucional, na medida em que era anterior à Constituição” (ARENDT, 2011, p.213). Na prática, a tentativa desesperada de Robespierre foi, então, recorrer à ideia de um Ser Supremo ou àquilo que ele chamou de Legislador Imortal, como fonte transcendente e sempre presente de autoridade, cuja efeti-vidade “não podia se identificar à vontade geral, fosse da nação ou da própria revolução, de maneira que [...] alguma autoridade absoluta pudesse funcionar como fonte original da justiça, da qual as leis do novo corpo político pudessem derivar sua legitimida-de” (ARENDT, 2011, p.240). O traçado revolucionário francês, já com a adoção da noção de vontade geral e, posteriormente, com o recurso ao Legislador Imortal, curvou-se, portanto, à ideia do absoluto como base para toda a autoridade.

Por seu turno, os revolucionários americanos teriam percebido, desde o pacto do Mayflower, feito no navio e assinado no desembar-que anterior à colonização da América do Norte, uma concepção de poder que não implicava domínio e divisão do povo entre governan-tes e governados, isto é, uma compreensão do autêntico sentido po-lítico do poder, que não se assenta nas Teorias da Soberania. Desse modo, teriam conseguido conferir autoridade às leis infraconstitu-

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cionais, através do recurso à própria Constituição. Todavia, eles não se furtaram à tentação do absoluto quando tiveram que enfrentar a pergunta pela autoridade do próprio texto constitucional, cedendo, em alguma medida, ao amparo do transcendente.

Como coloca Arendt: “A tarefa de estabelecer uma nova lei da terra, que encarnaria para as gerações futuras a ‘lei superior’, que confere validade a todas as leis feitas pelos homens, trouxe ao primeiro plano, na América e na França, a necessidade de um absoluto” (ARENDT, 2011, p.237). Para a autora, a tentativa de enraizamento do âmbito político em uma filosofia primeira é comum nos momentos de fundação de um corpo político, justa-mente porque seria uma forma imediata de prover o exercício do poder de uma legitimidade inconteste. No entanto, em face do caráter relativo dos assuntos humanos, esta tentativa nunca seria perfeitamente concretizada sem cair em alguma espécie de tirania. Arendt, em um escrito datado de setembro de 1951 e publicado na tradução brasileira de A promessa da política, esclarece que:

No momento da ação, para o nosso desconforto, revela--se, primeiro, que o ‘absoluto’, aquilo que está ‘acima’ dos sentidos – o verdadeiro, o bom, o belo –, não é apreensí-vel, porque ninguém sabe concretamente o que ele é. Não há dúvida de que todo mundo tem dele uma concepção, mas cada um o imagina concretamente como algo intei-ramente diferente. Na medida em que a ação depende da pluralidade dos homens, a primeira catástrofe da filosofia ocidental, que em seus últimos pensadores pretende, em última instância assumir o controle da ação, é a exigência de uma unidade que por princípio se revela como impos-sível, salvo sob a tirania (2009, p.43).

A tentativa de substituir a velha autoridade absoluta por um “novo absoluto” acaba criando um problema insolúvel, pois

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a onipotência contradiz a pluralidade humana e o ordenamen-to jurídico baseado no poder político nunca é absoluto. Assim, em que pese alguns dos pais fundadores terem tentado buscar no transcendente a autoridade de sua Constituição, foi precisamente a compreensão do potencial legitimador dos princípios, já teoriza-dos por Montesquieu, que salvou, em alguma medida, a Revolução Americana das consequências nefastas decorrentes da submissão da política aos ditames do absoluto. A compreensão da dimen-são relacional da lei e do caráter vinculante dos princípios teria possibilitado a quebra do que Arendt chamou de círculo vicioso “inerente à petitio principii que acompanha todo início novo, ou seja, em termos políticos, inerente à própria tarefa de fundação” (2011, p.212), o qual conduziria à necessidade de apoio do político no absoluto. Neste sentido, a autoridade da Constituição decorre do próprio princípio que a inspirou e o seu papel consistiria em realizar este mesmo princípio. A Constituição representa um pro-longamento do ato inicial, que, não só expressa seus princípios, como dele extrai seu próprio fundamento. O texto constitucional é, portanto, compreendido como uma construção consensual, cuja autoridade deriva do ato de fundação, permitindo a preservação do espaço público, da ação e do poder.

Referências

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A questão central que motiva a presente reflexão diz respeito à ideia de que a incapacidade de pensar por si mesmo pode con-duzir ao mal. Essa questão foi colocada por Hannah Arendt ao acompanhar o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann em 1961 em Jerusalém. Arendt constatou a superficialidade daquele homem sentado no banco dos réus. Contudo, o mal que cometera era inegavelmente real e absurdamente bárbaro. E este parado-xo – superficialidade do perpetrador do mal e brutalidade do mal cometido – causava assombro. O que, para Arendt, estava patente era a incapacidade demonstrada por Eichmann de pensar a partir da perspectiva do outro. Nesse sentido, nenhuma das respostas comuns à questão do mal – vingança, cobiça, inveja, mente demo-níaca etc. – eram capazes de explicar as razões do mal cometido por aquele homem. Restava empreender uma nova investigação e essa deveria ser acerca do pensar.

Arendt percebe que as experiências do século XX haviam colidido com aquilo que se sabia e que se tinha até então como verdades da filosofia e da ética. Uma dessas verdades, desde Platão, dizia respeito ao fato de se acreditar que o “pensamento” produzia o bem. Apesar da convicção corrente, não foi isso que a socieda-

1 O texto foi revisado por Eleonora Gonçalves Smits, e-mail: [email protected]

2 Doutora em Filosofia pela UFSCar/SP . Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina.

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de alemã à época do nazismo demonstrou na prática. Portanto, a concepção de “pensamento” a que se referia a tradição filosófica desde Platão, para Arendt (1995, p. 6), deveria ser revista.

A partir desse contexto, o problema que norteia a presente investigação refere-se a que a incapacidade de pensar por si mesmo pode acarretar o mal, sem isso significar que o pensar tomado iso-ladamente possa produzir o bem. Parte-se do pressuposto de que há outras atividades humanas que são imprescindíveis e precisam ser levadas em conta, sejam elas, o querer, o julgar e a ação. Desse modo, a hipótese que se pretende confirmar diz respeito à ideia de que a relevância do pensar apenas aparece ao se analisar o desem-penho da atividade do pensar, desempenho esse que somente pode ser encontrado no mundo. Trata-se daquilo que Arendt atribui ao caráter de exemplaridade daqueles que souberam agir guiados tão somente por si mesmos, pelo seu próprio pensar e julgar. Parece que somente o exemplo de ação acertada pode auxiliar na refle-xão acerca do que é fundamental para se evitar o mal, mais do que qualquer teoria acerca do que é o justo e o injusto, o bem e o mal, o certo e o errado. Para tal intento, a reflexão será dividida em duas partes. Inicialmente discutir-se-á o pensar como uma das atividades do espírito e, posteriormente, apresentar-se-á Sócrates como o exemplo de ação.

Hannah Arendt entende os seres humanos como condicio-nados existencialmente; no entanto, podem transcender – aquie-tar-se – espiritualmente. As atividades espirituais são três: Pensar, Querer, Julgar. São atividades independentes entre si, pois seguem leis intrínsecas à própria atividade, mas apresentam como carac-terística comum a dependência a uma certa quietude. Na quietu-de, nenhuma das condições da vida e do mundo lhe corresponde. Apesar disso, aquilo de que as atividades espirituais se ocupam são oferecidos pelo mundo, bem como os princípios da ação e os critérios dos juízos são dados pelo espírito.

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Entre as atividades do espírito interessa, neste momento, compreender a atividade do pensar. Sabe-se que a necessidade de pensar “[...] é contemporânea ao aparecimento do homem sobre a terra [...].” (ARENDT, 1995, p. 99). Dentro da história da filosofia, a pergunta – o que faz o ser humano pensar? – pode ser pontual-mente localizada. Entre os gregos, a resposta construída por Platão é a mais convincente e permanece atual. Trata-se do “[...] espanto admirativo diante do espetáculo em meio a que o homem nasceu e para cuja apreciação ele está tão bem equipado de corpo e espí-rito [...].” (ARENDT, 1995, p. 122). É o espanto, a admiração, o thauma diante do mundo que motiva e que leva o ser humano a pensar. O espanto levou a pensar em palavras, ou seja, o discurso é fundamental para o pensamento. O discurso não somente ofere-ce realidade sonora aos pensamentos ou é a forma de manifestá--lo; para além disto, é o discurso que faz com que o pensamento seja ativado. Assim, é a linguagem que transporta os pensamentos para o mundo das aparências, sendo, portanto, a ponte entre um quase que intransponível abismo – o abismo que existe entre o vi-sível e o invisível, o mundo das aparências e o eu – self – que pensa.

Arendt compreende, resumidamente, a faculdade de pensar como o hábito de examinar e refletir sobre tudo que acontece sem se ater a conteúdo específico e independente dos resultados. A filósofa (ARENDT, 2004, p. 230) parte do pressuposto de que o ser humano tem inclinação e necessidade de pensar para além dos limites do conhecimento. Foi Kant (1995, p. 39) quem distinguiu o pensar do conhecer e, através desta distinção, abriu espaço para a importância do pensar. O conhecimento advindo do intelecto é guiado por fins práticos e o pensar, neste caso, está subordina-do à busca de dado conhecimento, isto é, é um instrumento para atingir fins subsequentes. A inclinação ou a necessidade de pensar não deixa nada tangível atrás de si que possa ser comparado com aquilo que é construído pelo conhecimento. Portanto, a necessi-

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dade de pensar somente poderá ser satisfeita pelo próprio pensar. O pensar interrompe todo e qualquer fazer; da mesma maneira, a retomada de qualquer fazer interrompe o processo de pensar. O ser humano sai do mundo das aparências quando está absorto em pensamentos. Pensar é buscar significado, é reflexão que não serve à cognição e não é guiada por fins práticos e, nesse sentido, o pen-sar está como “fora de ordem”. A atividade de pensar afasta volun-tariamente o ser humano do mundo das aparências e permite que tudo seja passível de dúvida, de interrogação, de desconstrução e de reflexão e disso “parece se seguir que toda atividade do pensar é como o véu de Penélope: desfaz toda manhã o que tinha acabado na noite anterior.” (ARENDT, 2004, p. 234).

Pode-se asseverar, a partir do exposto, que o pensamento, tomado isoladamente, não torna os indivíduos melhores, uma vez que o pensar coloca perguntas e interrogações, nunca certezas. Portanto, os argumentos apresentados até o momento parecem insuficientes para confirmar a proposição de que o pensar é fun-damental para impedir o mal. O pensar tomado isoladamente não evita o mal; é necessária a conexão com outras duas atividades do espírito, isso é, o querer e o julgar. Além disso, e o que se apresenta como mais relevante, é compreender a relação das atividades es-pirituais com a ação. Embora não seja o propósito neste momento apresentar as atividades do querer e do julgar, faz-se indispensável compreender o caráter de exemplo que a ação de um indivíduo que soube pensar pode assumir.

Para se compreender a conexão entre o pensar, o querer o jul-gar e a ação se faz necessário refletir sobre três proposições básicas que Arendt (2004, p. 233) apresenta acerca do pensar: a) a faculda-de de pensar, distinta do lugar de conhecimento, é prerrogativa de todos os indivíduos e não um privilégio de poucos; b) a faculdade de pensar não aceita como axioma sólido os seus próprios resulta-dos, porque a faculdade de pensar é reflexiva, ou seja, reflete aquilo

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que acabou de encontrar como resultado – aquilo que acabou de concluir – sendo o pensar um incessante repensar; portanto, não se pode esperar desta faculdade nenhum código final e definitivo sobre aquilo que é certo ou errado, isto é, mandamentos ou regras preestabelecidas, absolutas e válidas universalmente; e c) a faculda-de de pensar trata com invisíveis, com coisas que não aparecem no mundo das aparências; assim, está fora de ordem, ou melhor, não apresenta a mesma ordem das coisas do mundo das aparências.

Tomando-se como certas as conjecturas de Arendt apresen-tadas até o momento, a pergunta que surge é inevitável, sendo que a própria autora a levanta: “[...] como algo relevante para o mundo em que vivemos pode surgir de um empreendimento tão sem re-sultados [como o pensar]?” (ARENDT, 2004, p. 135). A relevância do pensamento somente aparece ao se analisar o desempenho da atividade de pensar e este desempenho somente pode ser encon-trado nas experiências que, infere-se, Arendt atribui ao caráter de exemplaridade daqueles que souberam pensar e julgar tão somente por si mesmos. Isto é, como o pensamento não produz nada tan-gível, somente o exemplo das pessoas que souberam pensar e, por-tanto, julgar e agir guiados tão somente pelo pensar, pode servir de horizonte para os demais. Assim, compreender o que é certo ou errado não advém de nenhuma doutrina, tampouco é privilégio apenas de mentes esclarecidas e cultas ou de filósofos profissionais.

Sócrates é o exemplo por que sua vida e, fundamentalmen-te, sua maneira de pensar são exemplares. Sua maneira de pensar pode ser observada nas várias comparações a que era submetido. Sócrates, primeiramente, é comparado a um moscardo, pois ele sabe como provocar os cidadãos a pensar, a examinar e a ques-tionar; depois, a uma parteira, por fazer vir à luz a sabedoria que cada indivíduo detém em seus próprios pensamentos – “[...] ele depurava as pessoas e suas opiniões daqueles prejulgamentos não examinados que impedem o pensar [...]” (ARENDT, 2004, p.

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242); e, por fim, a uma arraia-elétrica, que paralisa, fazendo com que o exercício do pensamento possa acontecer, pois sem a saída do mundo das aparências, sem o abandono do fazer, o pensar não acontece. É o pensamento como a metáfora do vento: os ventos são invisíveis, mas o que fazem é manifesto para todos, chegando a ponto de se saber quando o vento se aproxima. Infere-se que é nes-te sentido que Sócrates pode ser comparado tanto ao moscardo, a parteira quanto à arraia-elétrica, pois o filósofo, ao mesmo tempo em que incita as pessoas para a reflexão, sabe que o pensamento é um processo que se dá individualmente. Além disso, o pensa-mento tem um efeito destrutivo no sentido de desconstrução, de interrogação sobre os valores, o exame do bem e do mal, os crité-rios estabelecidos, os costumes e as regras de conduta (ARENDT, 2004, p. 243). Essa destruição do estabelecido é fundamental para que possa haver reflexão. Assim, o pensamento é movimento, a paralisia a que se refere diz respeito ao fato de o pensamento ne-cessitar de quietude para se efetivar. A paralisia do pensamento apresenta dupla dimensão: diz respeito à interrupção de todas as demais atividades, isto é, parar e pensar, como também à paralisia que afeta aqueles que, ao retornarem para o mundo das aparên-cias, já não confiam nas certezas que possuíam anteriormente em seus pensamentos. As regras de conduta gerais que comumente eram utilizadas para analisar e resolver os casos particulares não resistem ao vento do pensamento e, assim, o indivíduo se vê frente a esta situação e permanece paralisado, pois o pensamento não lhe permite que as regras anteriores sejam simplesmente aplicadas.

Pode-se inferir que esta explicação também serve para discutir o caso daqueles tantos homens e mulheres que, durante a Segunda Grande Guerra Mundial e o avanço nazista e suas medidas extre-mas, retiraram-se completamente da vida pública e permaneceram reclusos em suas privacidades, pois nada mais poderiam fazer. A sua inação, ou, como se pode descrever neste contexto, a sua paralisia,

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foi uma forma de ação frente à barbaridade que ocorria. Eles foram paralisados pelo processo de pensamento de que foram capazes. Pre-feriram não seguir as ordens e a lei dos seus países a ter que conviver com um assassino ou um perpetrador do mal – eles próprios.

Apesar de o pensamento proporcionar tanto movimento, de-ve-se ter presente o perigo que acompanha a busca por significado que, ao dissolver e examinar todas as doutrinas e regras aceitas, pode querer declarar novas regras e valores, se não se estiver aten-to quanto a não perder o incessante repensar. Caso isto aconteça, aquilo que era busca de significado cairá na irreflexão, isto é, na falta de pensamento e na simples submissão e obediência (AREN-DT, 2004, p. 244). Assim, nenhum pensamento é perigoso, mas a própria atividade de pensar o é. Entretanto, o não pensar parece ser mais perigoso que o pensar e foi por isto que Sócrates foi con-denado: os juízes não conseguiram admitir o exercício do pensa-mento – aquilo que Sócrates ensinava – como prerrogativa funda-mental da polis. Ao condenar Sócrates, os atenienses declararam que pensar era subversivo, pois trazia desordem para a cidade, uma vez que provocava desordem nos valores e regras estabelecidos.

Nas questões morais, o não pensar é mais perigoso ainda, pois ensina as pessoas a se agarrarem a regras prescritas de conduta sem refletir sobre as mesmas, simplesmente obedecendo e se submeten-do. O problema não se encontra tanto no conteúdo de tais regras, mas na obediência a regras gerais nas quais se subsumem os casos particulares. As pessoas acostumam-se a obedecer sem nunca to-marem suas próprias decisões e, nessa situação, para se alterar os valores e os códigos de conduta, basta substituir os existentes por novos sem grandes esforços, sendo desnecessário forçar e persuadir, tampouco apresentar provas de que os novos valores são melhores que os antigos. Foi isto que, segundo a análise de Arendt, aconteceu na Alemanha nazista e fez com que tão rapidamente todas as cama-das da sociedade aderissem aos novos ditames.

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Para Sócrates, o pensar acompanha o viver – “uma vida não examinada não merece ser vivida” –, assim, a esta busca de signi-ficado ele dá o nome de erõs. Erõs é um tipo de amor que, primei-ro, é uma necessidade, pois ele deseja o que não tem, como, por exemplo, o amor dos seres humanos pela sabedoria, isto é, os seres humanos amam a sabedoria e praticam a filosofia porque não são sábios. Ao desejar o que não tem, o amor estabelece uma relação entre esta coisa faltante e o sujeito que a deseja. Deste modo, o pensar acompanha o viver quando se dedica a buscar o significa-do para, por exemplo, o valor da justiça, da felicidade etc., forne-cendo, pela linguagem, palavras que possam expressar estas coisas invisíveis que acompanham a vida. Assim, a conclusão a que se pode chegar é que apenas as pessoas “[...] investidas desse erõs, esse amor desejoso da sabedoria, beleza e justiça, são capazes de pen-samento [...].” (ARENDT, 2004, p. 247). Arendt afirma que sua reflexão sobre a incapacidade de pensar e a capacidade de cometer o mal a levou a constatar, surpreendentemente – uma vez que esta nunca fora sua pretensão – a existência deste tipo de amor – erõs.

Na tentativa de responder a questão se a incapacidade de pensar por si mesmo pode levar ao mal, trilhou-se o caminho de saber o que é o pensar e buscou-se um exemplo de ação acertada que estivesse ligada à capacidade de refletir por si mesmo. Inferiu--se que o pré-requisito para o pensar é a existência do amor – erõs. Aquele que possuísse este amor pela justiça, sabedoria e beleza poderia evitar o cometimento do mal. Isso porque, ao pensar acer-ca de todas as questões, estaria capacitado para julgar, para tomar uma posição no mundo e agir guiado por tais reflexões. Se houve pensamento, muito provavelmente sabe-se o significado de cada uma das categorias que servem de parâmetro para a vida em co-munidade e, muito provavelmente, haverá o reconhecimento de que isso será bom para todos. Contudo, não há garantia alguma de que isso se efetivará, pois há a vontade. A vontade, como es-

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colha, poderá fazer qualquer opção, inclusive a de não escolher o amor. Portanto, o que se apresentou surpreendente é a ideia de que o pensamento por si só não leva necessariamente ao bem; isso é apenas uma possibilidade.

A faculdade de pensar em si pode ser vista como não apresen-tando qualquer benefício à sociedade. A faculdade de pensar não cria valores ou regras de conduta que possam ser aceitas universal e incontestavelmente, mas o seu contrário. Ou seja, sua tarefa é de dissolver valores, regras e padrões de conduta existentes, aplicando sobre eles a reflexão e o autoexame. É esta tarefa reflexiva do pen-sar, ou, como os compatriotas de Sócrates preferiram denominar, é esta tarefa subversiva, que permite a Arendt dizer que o pensamento consente ao ser humano, se assim ele quiser, a possibilidade de evi-tar o mal. O pensamento não diz: “isto ou aquilo deve ser feito”, mas diz: “isto não pode ser feito”, ou, “não posso fazer isto que me soli-citaram ou ordenaram”. O pensamento teria um sentido negativo, pois ele impossibilita aquilo que é contrário a sua afirmação. Nesse sentido se confirma a assertiva de que a incapacidade de pensar por si mesmo pode levar ao mal. Eichmann é um exemplo disso, pois não soube pensar por si mesmo e perceber que aquilo que lhe esta-vam ordenando não era possível de ser realizado.

Nestas condições, o pensamento assume relevância moral e política. O exercício de autoexame do pensar, que torna evidente as implicações das opiniões não examinadas, pode ser entendido como o elemento purificador do pensar. O pensar não cria ou pretende criar manuais de conduta, pois ele apenas pode indicar para aquele que pensa a incoerência entre aquilo que se solicita dele e aquilo que ele pode fazer e, depois de ter feito, manter-se em paz consigo mesmo. O exercício do pensar cumpre um efeito libertador sobre a atividade do julgar – essa sim, a atividade espiritual ligada ao mundo e, portanto, ligada à política. Desse modo, o pensar é político apenas por implicação, isso é, ele implica a libertação do julgar.

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Contudo, uma pergunta ainda permanece: como saber se se está vivendo uma situação extrema? Parece que isto somente poderá ser respondido pelo exercício constante do pensamento, ou seja, sem manter o pensar em alerta e atividade, nunca se saberá quando se está ou não numa situação limite. Contudo, Arendt (2004, p. 223) apresenta uma solução mais pontual, isto é, o critério para se avaliar as situações limites e extremas é a impotência. A ausência de poder – impotência –, a impossibilidade de fazer alguma coisa efetivamen-te, que geralmente é usada como desculpa para se fazer nada, pode ser o critério que aponte para as pessoas a ocorrência de uma situa-ção limite. Mas, isto somente será percebido se se mantiver ativo e constante o processo de autoexame – pensar – acerca de tudo que diz respeito à vida humana. A dificuldade deste argumento, e Aren-dt sabia disso, é o fato de ele ser absolutamente subjetivo. Mas este é o milagre da condição humana: a liberdade, a espontaneidade.

Referências

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Introdução

Gostaria, inicialmente, de parabenizar o grupo de pessoas que, direta ou indiretamente, organizou este VIII Encontro Hannah Arendt, dirigindo minhas congratulações aos professores que o co-ordenaram academicamente, Prof. Dr. José Luiz de Oliveira (UFSJ), Prof. Dr. Fábio Abreu dos Passos (UFPI), Profa. Msc. Elivanda de Oliveira Silva (UFMG) e a Profa. Msc. Edilene Maria da Conceição.

O tema geral que vós propusestes, escolha aliás muito feliz, foi “Hannah Arendt: Pensamento, Revolução e Poder”, porque, de fato, esses conceitos são fundamentais no pensamento político de Aren-dt, principalmente ao nos remeterem à questão do mundo comum.

Dizer “questão do mundo comum” não é mera etiqueta aca-dêmica. “Mundo comum” é realmente uma questão incontorná-vel, cuja análise exige-nos constante atenção, como aquele bom vigia que não descuida um segundo sequer da custódia do bem que lhe fora entregue sob confiança.

A razão dessa atenção constante é simples: nem tudo que podemos chamar de “mundo comum” é, com efeito, um mundo comum. Por exemplo, se voltássemos nossos olhos para o passado nazista e stalinista, certamente colheríamos outros exemplos bem mais dramáticos e assaz comoventes.

1 Universidade Federal do Pará - UFPA.

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Todavia, para fazer jus ao legado arendtiano, o mais apro-priado é voltarmos nossa atenção para ilustrações de nossa época, que também aparentam tratar-se do mundo comum, quando, na verdade, não passam de mera fabricação do homo faber.

Por exemplo, este VIII Encontro Hannah Arendt. Imagine-mos que tivéssemos sido convocados a comparecer, sob ameaça, não importando se essa ameaça foi direta e explícita, ou indireta e implícita. Esse encontro não constituiria, nessas condições, ge-nuinamente um “mundo comum”, mas apenas um lugar travestido de mundo comum.

Considerando o momento atual, mormente porque neste ano haverá eleições, gostaria de chamar vossa atenção para dois fenôme-nos que me parecem muito significativos, e que se relacionam com o que se poderia chamar de “simulacro de mundo comum”. Esses dois fenômenos a que me refiro são a questão dos “cabos eleitorais” e a das “passeatas” (ou “carreatas” ou outros do mesmo gênero).

Em todos os anos eleitorais costumamos ver os chamados “cabos eleitorais”, que são arregimentados e que, por sua vez, ar-regimentam pessoas para as quais entregam “uniformes” (camisas, botons, bandeiras, santinhos etc.) para serem usados ostensivamente pelas ruas, dando a impressão de que aquele candidato tem a prefe-rência da maioria dos eleitores. O comportamento desses cabos elei-torais consiste unicamente em cooptar, primeiramente, auxiliares e, depois, eleitores, forjando um “simulacro de mundo comum”, cuja finalidade não é outra senão a eleição do candidato que os arregi-mentou. Em alguns casos essa estratégia chega a seu objetivo.

Da mesma forma, algumas “passeatas” são produtos do homo faber: de alguém que a organizou e lhe pintou com as cores da espontaneidade, dando-lhe a impressão de que todos os seus inte-grantes se encontram em uníssono com o objeto da “passeata”. O comportamento dessas pessoas arregimentadas para a “passeata” consiste em cooptar outras pessoas e conquistar seu assentimento,

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forjando um “simulacro de mundo comum”. Aqui também, em al-guns casos, a estratégia chega a seu objetivo.

Esses três exemplos (o do encontro compulsório e coacto; o dos cabos eleitorais e o das passeatas) ilustram algumas caracterís-ticas de “mundos comuns” fakes (para utilizar uma linguagem da moda e muito cara a alguns facebookianos). Uma delas, e que logo salta aos olhos, é o aspecto quantitativo. Vê-se um aglomerado de pessoas situado em um mesmo local. Vista de longe, essa situação parece uma reunião, mas, de perto, essa situação o que tem de semelhante com a reunião é apenas o fato superficial e numérico de que há um ajuntamento de pessoas.

Essa característica de mera aglomeração de pessoas nos re-mete àquilo que Arendt traduziu com os conceitos de isolamento e de solidão. E aqui, por se tratar de um diálogo com a autora, cujo pensamento nos serve de farol a iluminar nossos problemas atuais, convém deixá-la falar (ARENDT, 1989, p. 527):

O que chamamos de isolamento na esfera política é cha-mado de solidão na esfera dos contatos sociais. Isolamento e solidão não são a mesma coisa. Posso estar isolado – isto é, numa situação em que não posso agir porque não nin-guém para agir comigo – sem que esteja solitário; posso estar solitário, isto é, numa situação em que como pessoa eu me sinto completamente abandonado.

Outra característica que vale a pena extrair dos três exem-plos citados diz respeito a um mero comportamento. O compor-tamento é resultado do adestramento. As pessoas são levadas a se comportarem de certa por alguém. Nesse caso, o comportamento manifesta a instrumentalização das pessoas pelo homo faber. O comportamento não é da pessoa, embora, à primeira vista, pa-reça sê-lo; o comportamento lhe foi adjudicado, é algo que lhe é exterior, embora pareça nascer da pessoa. A adjudicação do com-

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portamento mostra claramente que não houve nascimento de algo novo, mas tão-somente repetição.

Nesse contexto, se o que se tem manifestamente é apenas comportamento, então não existe um mundo genuinamente co-mum; o que existe em seu lugar é um “simulacro de mundo comum”.

O genuíno mundo comum é o teatro da ação, não do com-portamento. A ação, como sabemos, diferentemente do labor e da fabricação, é aquela atividade que os homens exercem diretamen-te entre si. Há ação quando se pode agir conjuntamente com outra pessoa, ou seja, porque há alguém com quem se pode agir. O genu-íno mundo comum é o espaço público, aquele espaço onde se pode aparecer, de tal modo que todos vejam e ouçam uns aos outros.

Arendt mostrou que esse espaço pode ser destruído. Em Ori-gens do totalitarismo, por exemplo, ela expôs historicamente que o totalitarismo constituiu o exemplo mais dramático de destruição do espaço público. Todavia, isso não nos pode levar a crer que apenas em governos dessa espécie é que o espaço público correria perigo, e que as democracias modernas constituiriam governos que jamais chegariam a esse desfecho. Ledo engano. Qualquer forma de go-verno pode culminar na destruição do espaço público: basta que se elimine a pluralidade, a condição da vida política. Sem pluralidade não há política. Sem pluralidade não há poder, porque os homens não se revelarão uns aos outros por atos e palavras. O poder só se realiza efetivamente na união de atos e palavras, mas atos que não sejam usados para violar e destruir, nem palavras para velar inten-ções. Os atos têm de criar relações e novas realidades, e as palavras, revelar essas novas realidades. Na medida em que, nas democracias modernas, tem se acreditado que as “ações” espontâneas não le-vam a nada, e que as pessoas devem ser “politizadas”, “doutrinadas”, aprender a militar em favor de certas causas em detrimento de ou-tras, determinando a pauta dos discursos e o que deve ser feito, há a completa derrisão do espaço público, porque, nesse estado de coisas,

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os homens “politizados”, “doutrinados”, “militantes” não agem mais em concerto, embora nominalmente pareçam agir.

Esse estado de coisas demonstra que o homo faber ganhou espaço e submete tudo e todos aos seus fins. Ou seja, tudo e todos são instrumentalizados para a consecução de seus fins. Nas demo-cracias, sob o pretexto de “agir” democraticamente, o homo faber, aquele que tem o conhecimento de como as coisas são e devem ser, põe em prática suas estratégias de difusão de comportamentos. Es-tratégias essas nada ostensivas; pelo contrário, assaz sub-reptícias, dissimuladas mesmo. Nisso consiste a garantia de que seus fins serão alcançados. Machado de Assis, em seus romances, já denun-ciava essa estratégia da dissimulação do homo faber.

Dentre as estratégias eleitas pelo homo faber contemporâneo há uma que nos interessa mais de perto: o direito. O direito como instrumento de conformação de comportamento e como meio de difusão desses comportamentos conformados juridicamente. Na medida em que leis prescrevem qual deve ser o comportamento das pessoas, está-se garantindo algo que é muito caro ao homo faber, a saber, a uniformidade de comportamentos.

Para a garantia dessa uniformidade, ao contrário do que se experimentou no nazismo e no stalinismo, não é necessária a re-tórica das armas, mas apenas a retórica dos direitos faltantes, que, dependendo da ocasião, podem ser chamados de direitos huma-nos, direitos fundamentais; enfim, de direitos sem os quais os ho-mens não podem viver e dos quais não podem ser alienados.

Quando o direito é utilizado desse modo e para esse fim, sua utilidade não é outra senão a de instrumento de destruição do es-paço público. Mas por que o espaço público tem de ser destruído? Porque o mundo, tal como Hannah Arendt o concebia politica-mente, está em xeque, e o “estar em xeque” lhe é constitutivo. O palco dos “negócios humanos”, o lugar em que os homens se encontram e agem em concerto, mediante palavras e feitos, é que

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deve ser estável, previamente determinado, organizado politica-mente. Desse modo, o que tem de ser delimitado é o espaço públi-co, onde os homens, dentro de certos limites, podem se reunir na modalidade da ação e do discurso. Dar estabilidade aos negócios humanos não significa, portanto, em termos arendtianos, encer-rar a ação em uma camisa de força, para poder prever todos os comportamentos humanos e controlar seus resultados, evitando as consequências indesejáveis.

Para aqueles que têm tratado os “negócios humanos” desde essa perspectiva, a tensionabilidade do mundo tem caráter nocivo, razão pela qual deve ser eliminada. E justamente o Direito, mas não apenas o direito, parece estar sendo utilizado, tanto inter-na como externamente, como instrumento de uniformização de comportamentos humanos.

Essa perspectiva da nocividade da tensão do mundo, cujo fim é o estabelecimento da uniformidade entre os homens e nos homens, encara os “negócios humanos” como pertinente à cate-goria dos meios e fins, ou seja, concebe-os como algo que pode ser absolutamente controlado, ainda que haja certa resistência e cer-ta margem de imprevisibilidade. Os “negócios humanos” seriam, pois, tão dúcteis quanto a argila, o ferro, a madeira e todos os materiais manipuláveis e maleáveis.

Nada mais distante do pensamento de Arendt, para ela a função do direito não era essa. A função do direito, em sentido lato, era a seguinte (ARENDT, 2011, p. 123):

Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço no qual vale, e esse espaço é o mundo em que podemos mover-nos em liberdade. O que está fora desse espaço, está sem lei e, fa-lando com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano é um deserto.

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Nesses termos, a lei tem a função tão-somente, quanto à li-berdade, de instituir um espaço no qual os homens possam mo-vimentar-se livremente, sem a pretensão de encerrá-la em limites absolutos, de modo que tais fronteiras jamais sejam transpostas2. Mas esse desiderato nunca pode ser alcançado, porque, sendo a liberdade nada mais que um outro aspecto da capacidade humana de agir, e sendo inerente à ação o fato de “violar todos os limites e transpor todas as fronteiras”, os limites postos pela lei nunca serão “defesas absolutamente seguras contra a ação vinda de dentro do próprio corpo político, da mesma forma que as fronteiras territo-riais jamais são defesas inteiramente seguras contra a ação vinda de fora.” (ARENDT, 1999, p. 203-204).

Considerações finais

O campo da legislação dirigida aos novos movimentos so-ciais, mas não apenas a esse campo, parece ilustrar bem essa ob-sessão com a uniformidade dos “negócios humanos”. Há empenho diligente, tanto no plano interno como no plano internacional, de uniformizar todos os comportamentos humanos, prescrevendo aqueles que devem ser realizados e proscrevendo os que devem ser evitados, até serem totalmente eliminados. Esse fato nos remete à crítica de Arendt ao modo como Platão teria concebido indevida-mente a Política, partindo da categoria de meios e fins, cabendo ao governante governar, porque sabia como governar, e aos governa-dos serem governados, porque ignoravam como governar.

2 A esse aspecto da lei Arendt chamou de caráter espacial original da lei, que se distingue do moderno caráter mandamental, impositivo da lei, mediante mandamentos e proibições (2011, p. 123). O moderno caráter mandamental da lei constitui, portanto, produto do homo faber, nada mais distante do político, ou seja, o legislador, mutatis mutandis, assemelha-se ao urbanista e arquiteto, e jamais ao estadista e cidadão (ARENDT, 2011, p. 114).

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A ONU tomou para si esse encargo, e não tem medido esfor-ços para que a uniformização global das legislações e dos compor-tamentos humanos se torne realidade. Um exemplo que pode aju-dar a esclarecer essa circunstância, e por ser explicitamente bem intencionado, é a questão da Lei da Palmada. O que se pretende fazer notar, neste momento, não obstante aparentar tratar-se de assunto de segundo plano, é o desempenho da ONU em tornar essa questão uma questão de relevância global e concomitante-mente uniformizar todas as legislações nesse sentido, proscreven-do a palmada como expediente de violência familiar de correção e castigo corporal de crianças.

A partir de 2002, a ONU intensificou seu empenho em tor-nar uniforme a proibição da palmada, conforme o seguinte ex-certo do Estudo Global da ONU sobre a violência contra crianças, publicado em 2006, que se baseou em pesquisa de Paulo Sérgio Pinheiro, nomeado pelo Secretário-Geral da ONU mediante a Resolução 57/90 de 2002.

Exorto os Estados a proibir todas as formas de violência contra crianças em todos os ambientes, inclusive castigos corporais, práticas tradicionais prejudiciais, como casa-mentos prematuros e forçados, a mutilação genital de mu-lheres, os chamados crimes de honra, a violência sexual e a tortura e outros tratamentos ou castigos cruéis, desumanos ou degradantes, como exigido em tratados internacionais como a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e a Conven-ção sobre os Direitos da Criança. Chamo atenção para o comentário geral no. 8 (2006) da Comissão dos Direitos da Criança sobre o direito da criança a proteção contra casti-gos corporais e outras penas cruéis ou degradantes (artigos 19, 28, parágrafos 2 e 37, inter alia) (CRC/C/GC/8).

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Seguindo essa “recomendação” da ONU, vários países já criaram lei vedando as palmadas como expediente familiar de correção de crianças. Na América do Sul, Uruguai e Venezue-la também já dispõe de legislação nesse sentido. No Brasil, há o Projeto de Lei nº. 7.276/2010. Até agora 30 países já contam com leis antipalmadas, dentre os quais Suécia (o primeiro país a proibir esse tipo de comportamento, em 1979), Alemanha, Dinamarca, Costa Rica, Espanha, Israel, Grécia, Nova Zelândia e Portugal.

É claro que a Lei da Palmada, isoladamente, não põe em xeque o mundo, no sentido de lhe retirar o caráter tensional. A tensão do mundo, constituída no momento em que os homens se encontram e agem em concerto, pode ser eliminada quando ou-tras leis forem editadas determinando um catálogo de comporta-mentos humanos, e com a pretensão de ser completo. Assim, o que totalitarismo tentou fazer mediante termos violentos, a utilização do Direito, e outros instrumentos nada incruentos, podem realizar sem derramar uma gota de sangue: mudar a natureza humana.

Assim posta a situação, não haveria espaço para o início de algo novo, inesperado, imprevisível, ilimitado e irreversível. Eliminando-se a tensão do mundo, elimina-se, ipso facto, a própria ação, porque não há mais liberdade, e sem liberdade não há política. E sem política, não há mundo em que os homens podem agir em concerto.

Referências

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Mundo e Pensamento

Rodrigo Ribeiro Alves Neto1

Pretendo apresentar em minha comunicação uma breve aná-lise sobre a contribuição original de Hannah Arendt para o desafio de redefinição da atividade do pensamento e recuperação de sua relevância para o mundo comum e humano. Sabemos que, segun-do o diagnóstico crítico de Arendt, nossa tradição filosófica tem suas origens na hostilidade e no desprezo dos filósofos pelos laços que vinculam o homem ao mundo de homens e coisas feitas pelos homens, ou seja, os laços que nos unem à vida prático-produtiva como edificadora de um mundo comum e humano, especialmente os laços que nos relacionam manifestamente à pluralidade dos ho-mens e o espaço político de aparência que surge entre nós quando nos reunimos na modalidade da ação e do discurso. Nessa tradição, a vida política perdeu a sua dignidade para a pura contemplação solitária e muda que ocorre no homem considerado no singular, de-gradando, assim, o discurso em meras opiniões que não passam de falatório irresponsável e arbitrário. Foi assim que a contemplação da verdade do ser, que não dependente dos homens para ser o que é, apartou-se2 do mundo comum e humano, tornando-se um modo

1 Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor Adjunto III do Departamento de Filosofia da UNIRIO .

2 O filósofo se põe à parte da esfera política, mas, ao mesmo tempo, almeja nela interferir, pois a condenação de Sócrates evidenciara a ameaça que representa para a vida contemplativa uma pólis aberta ao conflito das opiniões dos cidadãos, sendo preciso pensar sobre uma alternativa à mera persuasão, ainda insuficiente e instável para fazer calar as paixões e os particularismos da experiência. Assim, a ameaça de ser governado e condenado por uma pólis injusta levou o filósofo a pretender intervir no âmbito

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Rodrigo Ribeiro Alves Neto

de vida autônomo e livre da inquietude da vida ativa, instituindo o bios theoréticos. A grande lição arendtiana consiste em nos mostrar o quanto não nos recuperamos até hoje dessa traumática oposição hierárquica entre mundo e pensamento, até mesmo quando nossa tradição filosófica foi invertida por Marx através da negação da ver-dade como algo dado à apreensão contemplativa, inaugurando uma furiosa afirmação da verdade enquanto algo a ser posto em operação a partir da luta histórica dos homens.

Em face do rebaixamento metafísico da vida ativa edifica-dora de mundo, Arendt jamais glorificou qualquer ativismo re-volucionário, mantendo intacta a tradicional distinção entre a vida ativa e a vida não-ativa do espírito pensante e recordando, inclusive, uma conhecida citação de Catão, na qual o pensamen-to é considerado a mais pura atividade humana. Não se trata de corroborar com a tradicional superioridade do pensamento sobre a ação ou de transpor o fosso aberto entre o pensamento e o mundo, fundindo-os ou confundindo-os. Arendt buscou nos fazer com-preender que os homens só poderão agir em concerto e pensar por si mesmos. Porém, o reconhecimento dessa separação deve nos permitir reconsiderar fenomenologicamente as experiências do es-pírito pensante de um ponto de vista inteiramente diferente das imagens tradicionais do pensamento, buscando por um pensar que não se retire do mundo enquanto acontecimento, ou seja, como algo nunca feito, pronto e acabado, mas algo sempre se fazendo e nascendo daquilo que os homens fazem e sofrem no mundo. Como conceber uma nova relação entre o pensamento e o mundo que, por um lado, não mundanize o pensamento e, por outro lado, não subordine o mundo à perspectiva distanciada e generalizante do

político. Recusando os meios externos da força bruta, a alternativa encontrada por Platão foi empreender uma instrumentalização da razão pela qual a verdade coercitiva e ontológica funda um mundo comum, estabelecendo a autoridade do filósofo sobre a vida na pólis e a superioridade da contemplação sobre a ação e o discurso.

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Mundo e Pensamento

puro pensar? Eis a questão posta em causa no primeiro volume da obra A Vida do Espírito de Hannah Arendt. A questão já não é mais o engajamento ativo dos homens com o mundo, mas sim o modo como o pensamento, não-ativo e invisível, realiza-se no mundo fenomênico e qual relação assume com ele.

Arendt afirma que a atividade de pensar é “pura” porque não produz resultados como a fabricação, não ocasiona o novo no mun-do comum como a ação e não está a serviço da manutenção da vida biológica como o trabalho. Contudo, a inatividade exterior do pensamento se diferencia nitidamente da passividade, da completa quietude, na qual a verdade seria finalmente acolhida pelo homem por intuição intelectual ou por revelação. A atividade de pensar se distingue também da convicção moderna que atrelou conhecer e fa-zer na medida em que a ciência moderna fabrica os fenômenos pela matematização e pela experimentação. É neste sentido que a ativi-dade de pensar enquanto pura atividade nos leva a crer que, quando estamos pensando, não estamos fazendo absolutamente nada no mundo ou com o mundo. Portanto, essa atividade inaparente que não atende a nenhuma condição mundana, embora se realize atra-vés de um “ser-do-mundo”, impôs à Arendt a seguinte indagação: o que afinal “fazemos” quando nada fazemos senão pensar?

A atividade de pensar é invisível porque promove um distan-ciamento e uma dessensorialização dos dados sensíveis para recuar da sua presença imediata buscando pelo seu significado. Todavia, ela ocorre num mundo de coisas visíveis e através de um ser sen-sível que, por sua vez, também aparece no mundo como algo per-cebido. Assim, não apenas a pluralidade humana ou os homens que vivem na Terra e habitam o mundo, mas sim tudo que existe num mundo de aparências sensíveis depende, em sua qualidade de aparência, da presença de outros seres sensíveis que reconhecem e certificam o seu aparecimento. O caráter fenomênico do mundo e a pluralidade como “lei da Terra” não se desvanecem quando nos

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Rodrigo Ribeiro Alves Neto

engajamos na atividade de pensar. Nem mesmo a invisibilidade do espírito pensante, enquanto recua das aparências sensíveis, pode ascender para alguma dimensão que transcenda absolutamente o mundo. “Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe, por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão, obviamente o ego pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências”, afirma Arendt (2002b, p. 84). Trata-se de salvaguardar a absoluta primazia do mundo das aparências em relação às experiências do ego pensante. Cumpre reconhecermos que o mundo dado, no qual se realiza a experiência de pensar, está aquém das operações mentais do ego pensante pelas quais ele é dado a si próprio na reflexão. O pensamento não é o espaço inte-rior onde o eu se abriga do mundo e é por isso que os significados em jogo na reflexão não podem ser tratados como se fossem resul-tados cognitivos. Há uma total primazia do mundo com relação à necessidade de compreendê-lo, contrariamente ao dogmatismo da ideologia que põe no início uma ideia sob a forma de premissa primeira irrefutável, da qual toda a realidade será deduzida, sem qualquer relação com o mundo das aparências e com a experi-ência. Desse modo, quando o homem se engaja na atividade de pensar, o mundo não é inteiramente perdido e muito menos a plu-ralidade é eliminada, ela é apenas reduzida à dualidade reflexiva do estar a sós consigo mesmo.

Não obstante, a atividade de pensar não é condicionada nem pelas exigências da vida, nem pelos imperativos do mundo. Por mais que seja deste mundo que concerne existencialmente aos homens que emerge o pensamento, essa atividade espiritual não corresponde a nenhuma condição mundana da existência huma-na, ou seja, não é necessitada pelo trabalho na manutenção do processo vital, pela fabricação da mundanidade do mundo ou pela política na instauração da esfera pública da ação e da fala. A ati-vidade de pensar está sempre interrompendo as atividades ordi-

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Mundo e Pensamento

nárias, surda à súplica das ocupações, mas sendo também por elas continuamente interrompida.

Por esta via, a experiência do pensamento expressa claramente “a condição paradoxal de um ser vivo que, embora parte do mundo das aparências, tem uma faculdade – a habilidade de pensar, que permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo” (2002b, p. 36). Diante dessa “condição parado-xal”, as questões que se impõe são: como localizar o espírito e suas atividades sem som e invisíveis num mundo de aparências? Se o es-pírito não aparece no mundo das aparências sensíveis, isso significa que ele não possui um lugar adequado nesse mundo? Qual a relação entre pensamento e mundo? Onde se localiza o espírito enquanto quando se põe em atividade? Como apreender a atividade de pensar e recuperar para ela uma relevância para o mundo?

O pensamento lida com ausências e com a suspensão tem-porária do nosso vínculo imediato com o mundo espaço-temporal de aparências. Enquanto dura a atividade de pensamento, o ho-mem interrompe o seu vínculo imediato com a presença sensorial do mundo, para refletir sobre o seu significado. No pensamento, o espírito recua para o exercício de uma atividade não-ativa, porque mundanamente intangível e porque não consiste em nenhuma ma-nifestação externa da existência humana no mundo das aparências. O retorno do espírito para ele mesmo faz o ego pensante lidar com o que está fenomenalmente ausente, mas que ainda assim o afeta na recordação do que não é mais e na antecipação do que não é ainda. O espírito, enquanto pensa, desocupa-nos com a atuação imedia-ta sobre o mundo e nos insere numa dinâmica de distanciamento do próximo e aproximação do distante. A atividade reflexiva torna presente o que está ausente, através de um processo de dessensoria-lização, que prepara os objetos do espírito para o pensar.

A “condição paradoxal” do pensamento ser uma atividade não-mundana, mas se realizar num ser-do-mundo sempre pôs os

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filósofos em conflito com o mundo cotidiano do senso comum. Isso se dá porque a perda do senso comum é uma dimensão cons-titutiva da experiência do ego pensante. Nossa tradição concebeu que, pelo conhecimento e pela racionalidade, o espírito pensante pode ultrapassar os dados sensíveis da sua experiência imediata, para pensá-los segundo regras ou conceitos universais, necessários e suprassensíveis. Contemplando o “ser verdadeiro”, o pensamento puro do filósofo conseguiria obter alguma parcela de imortalida-de e permitiria a ela viver completamente no singular, ou seja, inteiramente solitário. O pensamento assim concebido se torna a dimensão interior na qual o “estar só” absoluto do espírito pensan-te se abriga do mundo. Foi assim que Platão fez do pensamento o “rei da terra e do céu” ou a mais divina das atividades humanas, pretendendo substituir toda condição mundana de existência pela “morada do pensamento”.

Esse clássico conflito entre o filósofo e o mundo cotidiano do senso comum pode ser exemplificado através do subjetivismo radical de Descartes, em reposta ao colapso da sabedoria comum promovido pelo advento da ciência física moderna. O filósofo en-controu razões para duvidar de tudo o que depende dos sentidos e do senso comum, concluindo que a única coisa de que pode ter certeza é de que existe enquanto ser pensante. Mas a conquista da autossuficiência do espírito pensante está sempre fadada ao fracas-so. Arendt observa que

A res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem corpo, sem sentidos e abandonada sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sentidos. O que Merleau-Ponty tinha a dizer contra Descartes, disse-o de modo brilhante e cor-reto: ‘Reduzir a percepção ao pensamento de perceber... é fazer um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais

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onerosos do que a perda pela qual eles devem nos inde-nizar; pois é... passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o ‘há’ do mundo (2002b, p. 39).

A falácia contida no cogito ergo sum reside no fato de que a realidade do mundo aparente não pode ser metafisicamente “dedu-zida” nem derivada do pensamento. Arendt recusa o subjetivismo, que faz o mundo repousar na atividade do sujeito que o engendra. A suspensão da realidade do mundo garantida pelos sentidos e pelo senso comum é a perigosa tentação dos “filósofos profissionais”. Eles almejam fazer da relação do eu com ele mesmo um modo de vida em completa independência e soberania, pois, de posse da essência do mundo, despojada de seu caráter existencial, nada mais poderia ameaçar a integridade do “eu penso, eu sou”. “Não é tanto o espírito, mas antes essa consciência monstruosamente alargada que oferece um refúgio sempre presente e aparentemente seguro da realidade”, afirma Arendt (2002b, p. 119). Virar as costas para o mundo e cami-nhar em direção à suposta autossuficiência do ego pensante acaba fazendo do pensamento um substituto da experiência do mundo. Daí surge a crença de que “o conhecimento adquirido pela razão pode dissipar a ignorância e, assim, destruir o maior dos males – o medo, cuja fonte é a superstição” (ARENDT, 2002b, p. 119). Mas o ego pensante, uma vez abstraído completamente de tudo que ele mesmo não é (o mundo) perderia também sua própria realidade e se tornaria uma bizarra fantasmagoria.

Como afirma Merleau-Ponty: “É preciso que minha existên-cia nunca se reduza à consciência que tenho de existir” (2002, p. 9). Transformando o pensamento no jogo da mente com ela mesma, os filósofos modernos deixaram de aderir à experiência do mundo, substituindo-a por uma reconstrução mental de um sujeito invulnerável e sem mundo. Entretanto, para dizer com Merleau-Ponty: “O verdadeiro Cogito não define a existência do

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sujeito pelo pensamento de existir que ele tem, não converte a cer-teza do mundo em certeza do pensamento do mundo e, enfim, não substitui o próprio mundo pela significação mundo. Ele reconhece, ao contrário, meu próprio pensamento como um fato inalienável, e elimina qualquer espécie de idealismo revelando-me como ‘ser no mundo’” (2002, p. 9). Para Arendt, o pensamento pode apenas aceitar ou rejeitar o mundo das aparências e o método cartesiano é apenas uma forma sofisticada de rejeição. “Ninguém até hoje conseguiu viver em um mundo que não se manifeste espontanea-mente”, observa Arendt (2002b, p. 22). A realidade do mundo não pode ser garantida pelo pensamento, mas pelo contexto mundano em que os cinco sentidos percebem as aparências e através dos outros seres que também as percebem. É a intersubjetividade do mundo que proporciona aos homens a sensação de realidade. O erro de Descartes, segundo Arendt, foi destruir a confiança do senso comum na realidade do mundo, esperando que pudesse su-perar a dúvida eliminando cada realidade mundana de seus pensa-mentos e concentrando-se exclusivamente na própria atividade de pensar. Todavia, o raciocínio ideológico totalitário se apresentou como substituto do senso comum e do pensamento justamente porque rompeu completamente com a experiência vivida, seguin-do apenas a coerência estabelecida pela cadeia dedutiva, cuja pri-meira premissa autoevidente não está sujeita nem à experiência, nem ao exame reflexivo do pensamento. Aqueles que pretenderam fazer do pensamento uma “morada constante” acreditaram levar uma “vida de estrangeiro” (bios xenikos, como dizia Aristóteles). Mas, para Arendt, eles procuraram apenas prolongar aquilo que é, contudo, constitutivo da experiência de pensar e ocorre com todo aquele que se entrega ao pensamento: a perda temporária de sentimento de realidade, a estranheza e o alheamento provisório em relação ao mundo em sua presença sensorial imediata e em relação ao senso comum. Ativo apenas espiritualmente, o homem

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se desprende do mundo em sua apresentação imediata para liberá--lo dos preconceitos, das significações sedimentadas pelo costu-me, dos juízos provisórios do senso comum, das necessidades da vida e das premências dos assuntos humanos. Mas o ego pensante não pode retirar-se indefinidamente do mundo comum, fazendo do pensamento a sua morada, pois o que constitui o pensar é um recuo apenas espiritual e sempre provisório.

Com efeito, o pensar é um recuo do mundo que se distingue completamente do conhecimento, pois não produz qualquer resul-tado final que sobreviva à própria atividade. Por isso o pensamen-to nunca encontra soluções definitivas, mas respostas sempre no-vas para questões que também se renovam e se recolocam a partir da nossa incontornável relação com mundo e com a experiência. Contrariamente a Aristóteles, Arendt recusa a concepção de que o que nos faz pensar é o desejo de conhecer. Para evidenciar o quanto sempre haverá no homem uma predisposição ao pensa-mento para além da busca pelo conhecimento, a autora se apro-pria da distinção kantiana entre entendimento (Verstand) e razão (Vernunft), isto é, entre conhecer e pensar. Arendt considera que, como ensinou Kant, nossa capacidade de pensar não está interdi-tada apenas porque o pensamento não produz resultados cogniti-vos, visto que a necessidade de pensar é experimentada pelo ho-mem para além dos limites do conhecimento. O pensamento não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a as-suntos e questões sobre os quais, no entanto, ele mesmo não pode se abster de pensar. O pensamento especula significados incertos ou inverificáveis que, no entanto, são relevantes para a reconci-liação dos homens com aquilo que eles fazem e sofrem no mundo. Trata-se de evidenciar a importância desse discernimento entre o desejo de conhecer, característico da ciência, e a necessidade que todo homem sente de pensar e compreender o que acontece com ele no mundo. Arendt considera que a tradição metafísica nunca

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compreendeu a atividade de pensar enquanto tal, pois sempre exi-giu dela parâmetros para a ação ou resultados cognitivos. A tradi-ção deixou que o “desejo de conhecer” se confundisse com a “ne-cessidade de pensar”. Mas o que está em jogo no pensamento não são cognições que, uma vez adquiridas, dissipam a ignorância e se tornam questões resolvidas. Por isso Arendt diz: “Pensar e estar vivo são a mesma coisa, e isto implica que o pensamento tem sem-pre que começar de novo” (2002b, p. 134). É neste sentido que os significados em jogo na reflexão não podem ser tratados como se fossem resultados cognitivos. O pensar não é um empreendimento cognitivo que segue um movimento retilíneo, partindo da busca de seu objeto e terminando com a sua cognição. O pensamento não busca a verdade lógico-factual dos fenômenos, não deixa nada tangível como um “resultado” e não pode ser obtido, retido ou armazenado no mundo, visto que se trata de uma pura atividade.

Por esta via, para pensar é preciso recuar do sólido terreno do mundo, romper nossa familiaridade com ele, ainda que seja do nosso engajamento ativo com o mundo, que nasça aquilo que será preciso compreender e conferir significação. Como diz Arendt: “Nós avançamos e recuamos constantemente entre o mundo das aparências e a necessidade de refletir sobre ele” (2002b, p. 126). Essa “necessidade de refletir” é perigosa e sem resultados por-que se assemelha, como diz a imagem socrática, a um vento forte que, ele mesmo invisível, manifesta-se quando varre para longe a imediatidade de todos os critérios vigentes, as regras de conduta, os valores inspiradores das ações e os padrões sedimentados no mundo cotidiano do senso comum. Esse “vento do pensamento” nos deixa atordoados e perplexos diante da interrupção de toda atividade mundana, que nos leva à reflexão corrosiva do imedia-tamente dado. A periculosidade dessa atividade reside no risco inerente à dimensão crítica de toda reflexão, pois “todo exame crítico tem que passar, ao menos hipoteticamente, pelo estágio de

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negação de opiniões e valores aceitos, quando busca seus pressu-postos implícitos e implicações tácitas” (arEndt, 2002b, p. 133). A necessidade de refletir sobre o significado é perigosa para todos os credos e, por si mesma, não pode instaurar um “novo credo” como substituto do que antes era o senso comum, pois não podemos avançar para o mundo comum aplicando os significados presentes na reflexão. É por isso que os significados em jogo na reflexão não podem ser tratados como se fossem resultados cognitivos, pois o grande ensinamento que a reflexão do pensamento nos dá reside naquela famosa conclusão socrática: “nenhum homem pode ser sábio”. Em termos arendtianos: “Na prática, pensar significa que temos que tomar novas decisões cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade” (arEndt, 2002b, p. 133).

Referências

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_____. Eichmann em Jerusalém. Trad. Sônia Heinrich. São Paulo: Diagrama & Texto, 2001b.

_____. Hannah Arendt – Martin Heidegger: correspondência 1925/1975. Trad. Marco Antônio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001c.

_____. A dignidade da política. Antônio Abranches (org.). Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002a.

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_____. A vida do espírito – O pensar, o querer, o julgar. Trad. Antô-nio Abranches, César Augusto, Helena Martins, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002b.

mErLEau-PontY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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Costuma-se deixar por um fait accompli que Hannah Arendt não acreditava na existência de uma natureza humana, mas ape-nas numa condição humana. Todavia, e sem prejuízo da noção central que anima toda sua filosofia política, isto é, a de plurali-dade – “o fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (ARENDT, 2014, p. 8) –, existe e pode ser detectada na sua obra uma concepção do ser humano. Elucidar qual é a ideia arendtiana do homem significa levar a sério e tentar responder à pergunta implícita nos parágrafos finais de Origens do totalitarismo (1951): “O que as ideologias totalitárias visam, [...], não é a transformação do mundo exterior ou a transmutação revo-lucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza humana” (ARENDT, 2011, p. 510). Segundo Arendt, os campos de concentração nazistas foram laboratórios onde mudanças na natureza humana estavam sendo postas à prova. Por conseguinte, secundamos a crítica de Claude Lefort, no sentido da “contradição puramente formal que significaria negar a ideia de uma natureza humana e supor que esta pudesse ser mudada” (LEFORT, 2006, p. 143). A infâmia não atingiu apenas os presos e aqueles que os administravam seguindo critérios científicos, mas a todos os ho-

1 Revisor do texto João Reguffe. E-mail: [email protected]

2 Doutorando de Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS. Bolsista Capes.

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mens. “A questão não está no sofrimento, do qual sempre houve demasiado na terra, nem no número de vítimas. O que está em jogo é a natureza humana em si; [...]” (Ibid.). A questão pelo ser humano na obra de Hannah Arendt adquire toda sua dimensão, e abre para a discussão que será desenvolvida em A condição huma-na (1958), naquilo que a autora estabelece alguns parágrafos atrás:

A experiência dos campos de concentração demonstra realmente que os seres humanos podem transformar-se em espécimes do animal humano, e que a ‘natureza’ do homem só é ‘humana’ na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente não-natu-ral, isto é, um homem (Ibid., p. 506, grifo nosso).

Perece evidente que o livro de 1951 pressupõe já aquilo que o de 1958 articulará de forma mais extensa, isto é, que, em certo grau, o humano é um ser não natural, um ser desenraizado. Eis o motivo pelo qual, não somente no prefácio da segunda edição francesa de A condição humana como no artigo intitulado “Da filosofia ao político”, Paul Ricoeur (1995, p. 16) insiste no “laço de filiação” entre Origens do totalitarismo, obra de pensamento po-lítico e A condição humana, texto de filosofia política.3 Segundo Sylvie Courtine-Denamy (1999, p. 320):

Para Ricoeur, “e preciso ler La Condition de l’homme mo-derne [A condição humana] como o livro de resistência e de reconstrução”, resistência à hipótese do totalitaris-

3 Elisabeth Young-Bruehl, discípula e biógrafa de Arendt, interpreta as coisas da seguinte forma: “Em Origens do totalitarismo não temos uma história, mas antes um relato histórico sobre os elementos que se cristalizaram em totalitarismo. De idêntica maneira, A condição humana não é uma história de atividades humanas, mas um relato histórico dos elementos que formaram a vita activa» (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 288). De acordo com esta lógica, a historiadora dos primeiros anos teria se convertido, na década de cinquenta, em uma “filósofa política”.

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mo – segundo a qual, de acordo com a fórmula de David Rousset, “tudo é possível” – e que joga com a ausência de estabilidade da natureza humana.

Margaret Canovan – cujo livro Hannah Arendt: A Reinterpre-tation of Her Political Thought (1992) talvez seja ainda a mais lucida análise da obra arendtiana como visão de conjunto – chama nos-sa atenção para algo que facilmente poderia passar desapercebido, a saber: “Os líderes totalitários acreditam que tudo é possível sem crer na liberdade e na responsabilidade humanas, nem mesmo a sua própria”.4 A onipotência que os embriaga, e que os diferencia de ‘simples’ tiranos ou ditadores, faz com que os chefões totalitários acreditem estar executando leis sublimes, superiores às das facul-dades propriamente humanas, e, desta forma, desprezam e tornam supérfluas a pluralidade e a espontaneidade, qualidades que, qua humanas, tanto pertencem a seus súditos quanto a eles mesmos.

Assim as coisas – e em contraposição àquilo que é costume dar por suposto –, parece claro que Hannah Arendt, antes de en-trar na análise dos aspectos da condição humana no seu segundo livro, à sua maneira, mais implícita que explícita, deixou claro no primeiro que para ela a existência de uma natureza humana estava fora de qualquer dúvida. Todavia, qual seria a consistência desta natureza do homem que os totalitarismos – passados, presentes ou futuros – tentariam transformar? Tratar-se-ia de um conceito re-dundante e auto-evidente ou, pelo contrário, seria este paradoxal e contraditório? Existem referências históricas na literatura sobre este assunto que ajudem a definir a posição arendtiana? Parece que a resposta de Arendt à pergunta sobre o quê ou o quem do ser humano se inscreve na sua interpretação da Modernidade, parte

4 “Totalitarian leaders believe that everything is possible without believing in human freedom and responsibility, not even their own” (CANOVAN, 2002, p. 27).

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de uma crítica às concepções iluminista e romântica, respectiva-mente, e inclui elementos importantes das duas.

O filósofo belga Robert Legros explica no seu ensaio L’idée d’humanité (1990, p. 7) que para o Iluminismo o homem não é nada por natureza, isto é, a humanidade do homem é engendrada pelo próprio homem. Deixar-se definir por um modelo ideal ou pelas inclinações sensíveis, ou seja, deixar-se enclausurar numa tradição ou numa sociedade concreta, conduz à deshumanização. Em decorrência, qualquer naturalização incorre numa alienação. É por este motivo que a ruptura com os processos de naturalização revela-se como o propriamente humano. Deste modo, para os ilu-ministas a autonomia individual é a norma suprema. O primeiro parágrafo do famoso opúsculo redigido por Kant em 1784, Resposta à pergunta: Que é o Iluminismo – esse mal chamado texto menor –, dá boa conta do que queremos significar:

O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Ilumi-nismo” (KANT, 2013, p. 9, grifo no original).

O Iluminismo subordina o homem de uma sociedade, de uma comunidade particular ao homem da humanidade universal, que é esse indivíduo saído da menoridade sobre a qual escreve Kant. Aquele que se submete a uma religião ou a uma moral concreta com seus usos e costumes, aquele que se abandona a uma tradição, está, sob o olhar das Luzes, renunciando a sua autonomia original e dotando-se de uma forma aparentemente natural de ser humano.

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Em contrapartida, segundo Legros (Ibid.) a tradição român-tica argumenta que a humanidade do homem encontra-se na na-turalização, isto é, no fato dele se inserir num coletivo que copia seus próprios modelos e cultiva sua própria sensibilidade, defen-de suas próprias ideias e suas próprias inclinações, suas crenças e seus desejos, seus gostos particulares e suas próprias normas. O Romantismo assegura que o ser humano não é nada fora da sua inscrição num grupo particular. Isto significa que a naturalização é constitutiva da humanidade do homem, o cerne de sua origi-nalidade. Portanto, segundo os românticos, o que é constitutivo de alienação é essa resistência à naturalização que os iluministas defendiam, é negar-se a abraçar os valores de uma humanidade – leia-se comunidade – particular. Desta sorte, para os românticos o enraizamento é a norma suprema. O propriamente humano é a fi-delidade à naturalização. Em sua versão política mais reacionária, o romantismo pode ser definido pela frase lapidária de Joseph de Maistre nas suas Considerations sur la France (1796): “Não existe no mundo nada que se possa chamar de homem. Ao longo de minha vida, tenho visto franceses, italianos, russos, etc.; sei tam-bém, graças a Montesquieu, que se pode ser persa. Mas, quanto ao homem, afirmo que, em toda minha vida, jamais o encontrei; se ele existe, desconheço-o completamente”5. De acordo com o pensamento romântico, aprender a pensar por si mesmo significa entrar num mundo que está além da consciência individual e não retirar-se fora do mundo e retrair-se sobre si próprio.

A forma paradoxal que Arendt tem de definir a natureza do homem deixa-se resumir desta maneira: é o desenraizamento como inscrição no mundo. Em conformidade com o pensador bel-

5 “Il n’y a point d’homme dans le monde. J’ai vu dans ma vie des Français, des italiens, des Russes; je sais même, grâce à Montesquieu, qu’on peut être Persan; mais quant à l’homme je déclare ne l’avoir rencontré de ma vie; s’il existe c’est bien à mon insu” (DE MAISTRE, 1980, pp. 64-65).

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ga, a filosofia de Arendt apresenta dois argumentos de tipo nar-rativo, que se entrecruzam e se interpenetram. O primeiro está relacionado com o espírito das Luzes e sua ideia principal vem a ser a que segue: Da mesma forma que tem a capacidade de agir, pensar e julgar por si próprio, isto é, de se soltar das engrenagens de uma tradição, das exigências de uma socialização e das evi-dências daquilo que está dado, o ser humano tem o poder de se desapegar à naturalização, ou seja, a todos aqueles processos que, como o vital, se apresentam como naturais. Neste sentido, aquilo que faz do homem um ser propriamente humano consiste nesta sua capacidade de desarraigo. O segundo argumento concorda com o espírito romântico e sua crítica do subjetivismo moderno, iniciado por Descartes. A base do humanismo a partir do século XVII consiste na afirmação dos poderes do homem para dominar a natureza através da ciência e da técnica, e de construir e recons-truir sociedades de acordo com a ideia de autonomia. Isto, segun-do o Romantismo, leva o ser humano a uma deshumanização: “A moderna matemática libertou o homem dos grilhões da experiên-cia terrestre e o seu poder de cognição dos grilhões da finitude” (ARENDT, 2014, p. 330). O primeiro argumento propõe que o homem tem a capacidade de desvincular-se de todos os processos naturais e instituídos, históricos, sociais e culturais, ou, por outras palavras, aquilo que Arendt define como a capacidade humana de operar milagres, o que na linguagem da ciência define-se como a infinita improbabilidade que ocorre regularmente (Ibid., p. 258). O segundo argumento ampara a tese da impossibilidade do homem de se abstrair daquilo que lhe transcende.

O primeiro parece apresentar o homem sob as caraterísti-cas de Prometheus: exalta seu poder de produzir o novo, de inventar, de criar, de começar, de romper, de se extir-par, isto é, de gerar ele mesmo o propriamente humano

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(o desenraizamento). O segundo aplica-se a lembrar que Prometheus está condenado a ser devorado pelo abutre.6

Se aplicarmos a Hannah Arendt a terminologia de Hegel, podemos afirmar que é através de uma suprassunção de sua ca-racterística natural que o homem define sua própria natureza. Expressado de outra forma: faça o que faça, atue como atue, o homem seguirá conservando seu ser animal e continuará atrelado à natureza, ao menos no que diz respeito aos seus atributos mais básicos e mais primários. Mas é somente quando vai além das suas determinações naturais, quando as “supera”, que o ser humano é capaz de definir sua essência – sua característica definidora mas não encapsuladora –, sua própria natureza. Por conseguinte, a na-tureza humana que pode-se ver desenhada na filosofia arendtiana não é imutável e nada tem a ver com a via platónica da tradição de pensamento ocidental.

A perplexidade decorre do fato de as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de qualidades “na-turais” – inclusive nós mesmos, na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida – de nada nos valerem quando levantamos a pergunta: e quem somos nós? É por isso que as tentativas de definir natureza humana resultam quase invariavelmente na construção de alguma deidade, isto é, no deus dos filósofos que, desde Platão, revela-se, em um exame mais acurado, como uma espécie de ideia platôni-ca do homem. Naturalmente, desmascarar tais conceitos

6 “Le premier semble présenter l’homme sous les traits de Prométhée: exalte son pouvoir de produire du neuf, d’inventer, de créer, de commencer, de rompre, de s’arracher, donc d’engendrer lui-même le proprement humain (l’arrachement). Le second s’applique à rappeler que Prométhée est voué à subir la dévoration du vautour” (LEGROS, 1990, pp. 242-243).

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Alfons C. Salellas Bosch

filosóficos do divino como conceitualizações das capaci-dades e qualidades humanas não é uma demonstração da não-existência de Deus, e nem mesmo constitui argumen-to nesse sentido; mas o fato de que as tentativas de definir a natureza do homem levam tão facilmente a uma ideia que nos parece definitivamente “sobre-humana” [superhu-man], e é, portanto, identificada como o divino, pode lan-çar suspeitas sobre o próprio conceito de “natureza huma-na” (ARENDT, 2014, p. 13).

Em contrapartida, para Arendt, o artifício é o natural do ho-mem, sua “verdade”. Parafraseando Clément Rosset (2011, p. 311), a naturalização do homem tem como principal condição uma desna-turalização em relação à ideia geral de natureza. Por outras palavras: “Apresentar o ‘lugar’ da existência humana como um domínio estran-geiro a toda natureza, ainda é obrar como naturalista” (Idem)7. Além disso, esta natureza do homem que podemos perceber no pensamento de Arendt não é a instituição de um novo processo que substituiria o processo cíclico vital, mas a instituição de um mundo comum que faz possível a ruptura com a repetição e o ensimesmamento.

Para Arendt, em primeira e última instância, o homem é esse ser capaz de romper com a naturalidade, de transcender sua biolo-gia e de esquivar qualquer tradição, instituída historicamente, mas dada a priori. Neste sentido, participar, tomar parte no mundo, nunca é um processo natural e não significa deitar raízes, mas rea-lizar o esforço do desarraigo. Isto não obstante, o homem somente pode inserir-se no mundo escapando do subjetivismo, que traz em si o perigo do isolamento. Esta é a forma idiossincrásica que tem o ser humano de pertencer ao mundo, que é de todos, que é comum.

7 “Présenter le ‘lieux’ de l’existence humaine comme un domaine étranger à toute nature, c’est encore faire ouvre de naturaliste” (ROSSET, 2011, p. 311).

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Notas sobre o Conceito Arendtiano de Natureza Humana

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Opinião e Verdade na Teoria da Ação de Hannah Arendt1

Geraldo Adriano Emery Pereira2

O modo arendtiano de tratar a relação doxa e verdade

Ao concluir o exercício de pensamento intitulado Verdade e Política, na obra “Entre o Passado e o Futuro,” Hannah Arendt faz a seguinte consideração:

Todavia, o que eu queria mostrar aqui é que toda essa esfera (esfera da política), não obstante sua grandeza, é limitada - ela não abarca a totalidade da existência do ho-mem e do mundo. Ela é limitada por aquelas coisas que os homens não podem modificar à sua vontade. [...] Concei-tualmente, podemos chamar de verdade aquilo que não podemos modificar; metaforicamente, ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós (ARENDT, 2003, p.324)

No texto em questão, a autora coloca-se num lócus de refle-xão que, segundo ela se encontra fora do âmbito da política. Ela se dedica a refletir sobre os riscos de se falar a verdade, acerca das tensões que envolvem as relações entre a verdade e a política, mas, acima de tudo, sinaliza para uma tensão “necessária”, senão

1 Revisor do Texto: Constança Bezerra A. Chaves – e-mail: [email protected]

2 Prof. de Filosofia do CAp da Universidade Federal de Viçosa. Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais.

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imprescindível, para a própria política. A questão a ser levantada é que a reflexão de Arendt sobre a verdade aponta para um elemen-to importante na sua teoria da ação, que é relativa à permanência e à durabilidade em face da condição fugaz que marca a ação.

Nos vários textos e momentos da obra arendtiana, em que o conflito verdade e política é enfrentado, a preocupação em des-crever e distinguir cuidadosamente as duas esferas é marcada pela atenção de se evitar uma leitura dessa relação à luz do funcionalis-mo que marcou as ciências sociais de sua época.

A preocupação das Ciências Sociais não repousa no que é o bolchevismo como ideologia ou forma de governo, nem no que seus porta-vozes têm a dizer por si mesmos; isso não interessa às Ciências Sociais, e muitos cientistas sociais acreditam poder trabalhar sem o estudo daquilo que as Ciências Históricas chamam fontes primárias. Sua atenção recai apenas sobre funções, e o que quer que pre-encha a mesma função pode, conforme tal ponto de vista, ser englobado sob a mesma denominação. É como se eu tivesse o direito de chamar o salto de meu sapato de mar-telo porque, como a maioria das mulheres, o utilizo para enfiar pregos na parede (ARENDT,2003, p139-140).

Quanto ao método de análise, o cuidado na manutenção das distinções sem redução da diferença, em virtude da similaridade de funções, é parte do processo de descrição rigorosa de Arendt que, no final das contas, não ensaia a liquidação da tensão, pelo con-trário, ela a mantém como um elemento de vigor para a filosofia política que ela aponta. É neste contexto hermenêutico que se pode perceber como a relação entre Doxa e Verdade, em vários momentos tratada na obra arendtiana, sinaliza para um tipo de dilema, funda-mental para a compreensão da autora sobre o político e certamente do que caracteriza ou possa caracterizar a sua filosofia política.

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Opinião e Verdade na Teoria da Ação de Hannah Arendt

Ao concluir o texto Philosophy and Politics, de 1954, Arendt aponta para o dilema e talvez a limitação do filosofar dos filósofos que se arriscaram numa filosofia política.

Se os filósofos, a despeito do seu necessário distanciamen-to do cotidiano dos negócios humanos, nunca chegaram à verdadeira filosofia política, pois eles teriam que ter feito da pluralidade do homem, da qual surge o pleno domínio dos negócios humanos – na sua grandeza e miséria – o objeto do seu thaumadzein (ARENDT,1990, p.103) Trad. nossa.3

Já no texto Verdade e Política, ora citado, a questão reaparece em outra perspectiva. Neste, ao colocar-se do lado da verdade, ela re-conhece a dificuldade dos filósofos com a pluralidade, a sua miséria talvez, mas ao mesmo tempo lança luz para algo de fora do político, da pluralidade, que não se reduzindo a esta se apresenta como necessário.

É neste arranjo textual que o comentário de Abensur sobre o modo como Arendt conclui o texto Philosophy and Politics, surge como uma provocação para se pensar o que significa uma filosofia política em Hannah Arendt, que, nesse caso, parece transitar en-tre afirmar as potencialidades da ação e, ao mesmo tempo, resistir ao seu fluxo, sem com isso perder como fundamento a pluralidade.

A declaração final de Philosophy and Politics não é um simples apelo à boa vontade dos filósofos para que o novo pudesse reunir a verdade, mas responde nem mais nem menos à questão: a que condições a filosofia política pode enfim atingir a sua verdade [...]? (ABENSUR,2006, p.51)4.

3 If philosophers, despite their necessary estrangement from the everyday life of human affairs, were ever to arrive at a true political philosophy they would have to make the plurality of man, out of which arises the whole realm of human affairs – in its grandeur and misery – the object of their thaumadzein.(ARENDT,1990, p.103)

4 La declaration finale de Philosophy and Politics n’est pás um simple appel à la bonne volonté des philosophes pour que le nouveau puisse rejoinder le vrai, mais répond

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Geraldo Adriano Emery Pereira

Assim, a leitura sugerida é que ao ler o debate sobre a relação entre verdade e doxa no contexto da análise arendtiana da ação transparece uma espécie de dilema ou aporia socrática no exercí-cio filosófico acerca do político.

Doxa e verdade: um debate sobre a instabilidade

Arendt critica a filosofia política produzida na tradição filo-sófica do ocidente com forte tom de contestação à política pensa-da por Platão. Ela vê na filosofia de Platão uma tentativa de disso-lução de uma tensão que, a nosso ver, se mostrará como necessária ao vigor da filosofia política pensada por ela.

A filosofia de Platão, para a autora, apresenta uma espécie de temor acerca das instabilidades e da insegurança que marcam o contexto dos negócios humanos e, a contragosto, da proposição de Pascal, parece, aos olhos de Arendt, que Platão levava esses negócios humanos muito a sério, a ponto de articular conceitual-mente um governo da filosofia, ou a aplicação de um padrão fixo de medida para conter as instabilidades dos negócios humanos.

A questão da verdade em Platão apresenta-se em flagran-te tensionamento com o tema da doxa, “A verdade platônica, até quando a doxa não é mencionada, é sempre compreendida como oposta à opinião5” (ARENDT,1990, p.74). Compreender a doxa no contexto em que Arendt identifica a crítica e oposição platônica é tomá-la dentro do contexto da persuasão, do exercício retórico, da palavra e, consequentemente, do jogo de mudanças que isso envol-

ni plus ni moins à la question: à quelles conditions la philosophie politique peut-elle enfin atteindre à sa vérité […]? (ABENSUR,2006,p.51)

5 “Platonic truth, even when doxa is not mentioned, is always understood as the very opposite of opinion” (ARENDT,1990, p.74).

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ve, e mudar as coisas no mundo é uma característica da ação6. O exercício da doxa é considerado um jogo tipicamente político.

Persuadir, peithein, era uma forma de discurso especifica-mente político e, desde então, os atenienses tinham orgulho deles mesmos que, em distinção dos bárbaros, conduziam seus negócios políticos na forma do discurso e sem compul-são, eles consideravam a retórica, a arte da persuasão a mais alta, a verdadeira arte política (ARENDT,1990,p.74)7.

Para Arendt, “A oposição de verdade e opinião era certa-mente a mais antissocrática conclusão que Platão elaborou decor-rente do julgamento de Sócrates” (ARENDT,1990, p.75). Sócrates tinha uma postura que, diferentemente de subtrair a pluralidade do mundo, era marcada por uma experiência que a pressupunha. A doxa na perspectiva socrática era” [...] a formulação no discurso do o que dokei moi, isto é, do o que aparece para mim” (AREN-DT,1990, p.80) Sócrates não está intencionado a substituir a doxa por uma verdade que se desvela na ausência do discurso, ao con-trário, ele almeja a verdade da doxa, que se articula no discurso.

Sócrates quis trazer aquela verdade que todos potencial-mente possuem. Caso permaneçamos fieis a sua metáfo-ra da maiêutica, nós podemos dizer: Sócrates quis tornar a cidade mais verdadeira pela parturição da verdade de cada um dos cidadãos. O método do fazer isto é a diale-gesthai, a conversa a respeito de alguma coisa, mas esta dialética traz à frente a verdade não pela destruição da

6 Cf. ARENDT,2003 –Ver o ensaio Verdade e Política.

7 “To persuade, peithein, was the specifically political form of speech, and since the Athenians were proud that they, in distinction to the barbarians, conducted their political affairs in the form of speech and without compulsion, they considered rhetoric, the art of persuasion, the highest, the truly political art.”(ARENDT,1990,p.73-74)

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doxa ou opinião, mas ao contrário revela a doxa na sua própria veracidade (ARENDT,1990, p.81).

Entretanto, é a falha da tentativa dialética de Sócrates de tentar convencer os seus julgadores que, segundo Arendt, qualifica a des-confiança de Platão nos negócios humanos, a ponto de articular um esquema teórico que neutralizasse essa instabilidade, este perigo para o filósofo, que segundo Abensur (2006, p.55) 8 soa como uma espécie de incompatibilidade entre a existência política e filosófica. A ótica de desconforto do filósofo no seu estar na polis insinua a Arendt um tipo de filosofia política que primará por uma fuga da política, numa eva-são das instabilidades e mudanças que se fazem presentes no mundo dos negócios humanos, condicionado pela pluralidade.

A fuga da fragilidade dos negócios humanos para a solidez da tranquilidade e da ordem parece, de fato, tão recomen-dável que a maior parte da filosofia política, desde Platão, poderia facilmente ser interpretada como uma série de ten-tativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de evitar inteiramente a política (ARENDT,2001, p.234).

A hybris da Filosofia

Levantar a questão do tratamento da doxa e da verdade na reflexão arendtiana sobre a ação nos possibilita sugerir um excesso da Filosofia, ao filosofar sobre a política. O filósofo, homem preocu-pado com a medida, parece perder a medida ao reivindicar para si a posse da medida para ordenar a “desordem” dos negócios humanos.

8 “Aussi, pour les membres de l’ecole socratique, Platon et à um moindre degré Aristote, l’exercice de la philosophie apparut-il, jusqu’a um certain point, incompatible avec l’existence politique.L equilibre auquel était parvenu Socrate, selon Arendt, fut ruiné avec son process e sa condemnation à mort” (ABENSOUR,2006, p.55).

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A questão posta aqui é a de um equilíbrio sutil, senão pouco ensaia-do, entre o modo de vida do filósofo e a vida política. E aqui, o alerta inicial para não se tomar uma coisa por outra numa similaridade de funções parece ser importante. O fato de que algumas categorias filosóficas ganharam funções políticas, caso da filosofia política de Platão, não significa que elas possam ser confundidas com o que é tipicamente político, sob o risco de se perder o que de fato e origi-nalmente é da ordem da política. Abensour (2006)9 fala de uma hybris, de uma retirada que o filósofo faz do mundo dos negócios humanos, que por este excesso nega a pluralidade. É esta perspecti-va da hybris que nos interessa ponderar na relação doxa e verdade.

Na leitura arendtiana de Platão, o mundo da doxa é o lócus das sombras da caverna, aquele mundo esboçado no Livro VII da Re-pública de Platão. A doxa no contexto da parábola aparece como a distorção da imagem, algo que requer mudança de posição para se re-velar não a imagem, mas a coisa que a imagem representa, a verdade.

As imagens na parede da caverna, para Platão, eram as distorções da doxa, e ele pode fazer uso exclusivamente das metáforas de visão e percepção visual porque a pala-vra doxa, diferente de nossa palavra opinião, tem a forte conotação do visível (ARENDT,1990, p.94).

No caso de Platão, o filósofo contempla algo que está fora deste mundo de sombras, algo que não está sujeito às mudanças e contingências dos negócios humanos, algo de absoluto, que não depende da persuasão e também não está sujeito às múltiplas ten-dências da opinião, uma medida e parâmetro externo ao mundo dos negócios humanos, algo que no texto Philosophy and Politics é lido como uma tirania da verdade.

9 Accusant la forme de retrait qui dans son hubris aboutit à un déni de la pluralité[...]. (ABENSOUR,2006,p.57)

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E é nesta situação que Platão designou sua tirania da ver-dade, na qual ela não é o que é temporariamente bom, do qual os homens podem ser persuadidos, mas a verdade eterna, da qual os homens não podem ser persuadidos, que é o governo da cidade (ARENDT,1990, p.78)10.

Segundo Hannah Arendt, esta postura platônica tem caráter fundador na filosofia política ocidental. Para ela isso quer dizer que pensar a filosofia política ocidental implica considerar a des-construção daquilo que é típico da política, a diversidade de posi-ções, a pluralidade, a possibilidade do sempre novo, aponta-se aqui o tom de uma hybris do filósofo no trato com o político.

A experiência tipicamente filosófica é a do espanto, uma ex-periência muito distinta e diversa do processo plural e discursivo das múltiplas posições que caracterizam a doxa como uma posição no mundo. A experiência é a do Thaumadzein.

Thaumadzein, o espanto para aquilo que é como ele é, é de acordo com Platão um pathos, alguma coisa que é su-portada e como tal totalmente distinta da doxadzein, da formação de uma opinião sobre alguma coisa. O espanto que o homem suporta ou que acontece nele não pode ser relatado em palavras porque ele é também geral para as palavras (ARENDT,1990, p.97)11.

A experiência filosófica do Thaumadzein speechlessness, um espan-to sem palavras, apresenta-se como algo oposto ao que tipifica a políti-

10 “And it is in this situation that Plato designed his tyranny of truth, in which it is not what is temporally good, of which men can be persuaded, but eternal truth, of which men cannot be persuaded, that is to rule the city.” (ARENDT,1990, p.78)

11 Thaumadzein, the wonder at that which is as it is, is according to Plato a pathos, something which is endured and as such quite distinct from doxadzein, from forming an opinion about something. The wonder that man endures or which befalls him cannot be related in words because it is too general for words. (ARENDT,1990,p.97)

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ca, a palavra e a ação. Nesse contexto, doxadzein e thaumadzein figuram como opostos, “ele se lança para fora do domínio político no qual a mais alta faculdade do homem é, precisamente, a fala – logon echôn é o que faz do homem um dzôon politikon, um ser político” (ARENDT,1990, p.100). Neste espanto cessam as palavras. Arendt não desconsidera o caráter fundamental desta experiência, é nela que se colocam as ques-tões fundamentais, mas chegar ao ponto de ver nesta experiência uma categoria política já implica exceder a natureza da Filosofia. A marca do que poderíamos chamar de hybris, excesso, do filosofar ou do filósofo no tocante à experiência política se dá na tentativa do filósofo de estender o momento do thaumadzein speechleesness, para o mundo da doxa, e sub-meter o jogo plural da persuasão à experiência inefável do thaumadzein.

[...] Platão propôs prolongar indefinidamente o espanto mudo no qual está o início e o fim da filosofia. Ele ten-ta desenvolver contra (o dogmatismos da doxadzein) um modo de vida (o bios theôrétikos) que pode ser somente um momento fugaz ou, para tomar a própria metáfora de Pla-tão, o voo da faísca de fogo entre duas pedras de isqueiro. Nesta tentativa o filósofo estabelece nele mesmo as bases de toda sua existência naquela singularidade que ele ex-perimentou quando ele suportou o pathos do thaumadzein. E por isso ele destrói a pluralidade da condição humana dentro dele mesmo (ARENDT,1990, p.101).

No conjunto do texto, o que se nota é que Arendt não está abolindo nem desqualificando a experiência filosófica do thauma-dzein, pelo contrário, e já afirmado, ela mostra como isso se volta para as questões e perguntas fundamentais, o que na perspectiva de Abensour (2006) implica considerar a manutenção da capaci-dade geral que os homens têm de perguntar.

[...] Arendt não denuncia por isso o thaumadzein nem pro-põe renunciar a ele, pois isso seria suprimir o ser interro-

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gativo dos homens. Mas ela nos convida a distinguir entre “a condição interrogativa do filósofo do tipo platônico e a condição interrogativa do tipo comum dos homens (ABENSOUR, 2006, p.57).

Assim, quando os temores do filósofo parecem conduzi-lo ao uma hybris, a um excesso, o texto Philosophy and Politics parece chamar a atenção, conforme citação já feita, para a sinalização de um equilíbrio talvez frágil e arriscado a título de um filosofar sobre a política.

Fazendo isto, ela mostra que existe uma “solução” ou mais exatamente uma boa posição que seria fazer a parte da necessária retirada do pensador, sem por isso conduzir este último a uma saída da condição da pluralidade [...] (ABENSOUR,2006, p.57).

Não perder a pluralidade é a condição de um exercício filosó-fico sobre a política, fazer da pluralidade o seu thaumadzein é fazer cessar as palavras trazendo à luz o que da pluralidade não pode ser mudado, mas isso não é política é Filosofia que pensa a política. Talvez seja nesta direção um dos sentidos possíveis da afirmação de Arendt de que há riscos para coisa pública quando não se pensa.

Considerações finais

Tematizar o tratamento da relação doxa e verdade no pensa-mento de Hannah Arendt pode figurar uma oportunização para se refletir sobre as tensões entre política e Filosofia, chegando até mesmo a um parâmetro de leitura que abra caminho para se pen-sar um estatuto da filosofia política arendtiana. Já o tensionamen-to entre doxa e verdade sinaliza para a questão da estabilidade e instabilidade como par conceitual a fim de compreender uma espécie de “verdade” dentro da teoria da ação arendtiana. São

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Opinião e Verdade na Teoria da Ação de Hannah Arendt

apenas sinalizações possíveis que aqui ficam sugeridas quando da análise da relação doxa e verdade feita pela autora.

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O Conceito de Justiça em Hannah Arendt: A Questão do

“Direito a Ter Direitos”1

Gustavo Jaccottet Freitas2

I3

A dissolução do Império Russo4 e do Império Austro-Hún-garo5 deu início ao desenvolvimento de um processo cujas per-plexidades políticas, jurídicas e humanas fazem parte do contex-to do século XXI6. O imperialismo continental, os movimentos de unificação étnica e, por fim, o Totalitarismo, foram algumas

1 Revisora: Profa. Alda Maria de Moraes Jaccottet; E-mail: [email protected]

2 Mestrando em Filosofia pelo PPGFil/UFPel.

3 O texto está dividido em três partes: numa primeira parte se apresenta a leitura de Arendt acerca do imperialismo continental, especialmente após os fenômenos decorrentes da Primeira Guerra Mundial. Num Segundo momento expõe-se a forma de Arendt compreende o processo de justiça num contexto revolucionário, ao contrário de Rawls, que a faz de forma minimalista. O terceiro ponto é dedicado à conclusão.

4 Ocorrida em 1917, mas cujo processo de esfacelamento já vinha ocorrendo há anos, sendo tão somente postergado pelo Czar.

5 Ocorrido em 1914, cujo estopim foi o começo da Primeira Guerra Mundial. Para fins de esclarecimento, usar-se-ão as expressões “Monarquia Dual”, “Império Austro-Húngaro” e “Áustria-Hungria”, estes dois sempre com o uso de hífen, como sinônimos.

6 Podemos exemplificar as guerras nos Balcãs, a independência da Chechênia e dos Países Bálticos ainda durante da URSS, os crimes contra a humanidade praticados por Slobodan Milošević, que levaram a conflitos bélicos que se arrastaram desde o começo dos anos 90 até o fim da Guerra do Kosovo, 1999.

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Gustavo Jaccottet Freitas

das origens, para não citar outras, das consequências de todo um processo que vai do fracasso do Estado-nação7 ao Totalitarismo. Ainda que precariamente8, tanto a Rússia como a Áustria-Hun-gria protegiam tanto as maiorias, quanto as minorias étnicas. Pos-teriormente, estas passaram a disputar a gestão dos novos Estados, de forma nada satisfatória, pois houve uma tendência solver os interesses das maiorias nos Estados sucessores9.

Hannah Arendt (1906-1975) realizou uma leitura bastante apercebida das peculiaridades que o tema exige, dados os proble-mas decorrentes à dissolução do Estado-nação. A Autora, em sua obra Origens do Totalitarismo, dedicou boa parte do último capí-tulo do Livro II10 para tratar desse tema. Ela se interessou pela relação que existiu entre o processo de dissolução do Estado-nação e o “fracasso” dos Direitos do Homem11.

O processo acima narrado teve início em 1945 e expôs a fragi-lidade dos corpos políticos, tanto preexistentes, como os que seriam instituídos no futuro, que suplantaram a gestão dos fragmentos de ambos os Estados-nação, os quais eram bastante peculiares pelas etnias que comportavam e pela dimensão territorial que apresenta-

7 Estado-nação pode ser conceituado como um pedaço de terra, independente, governado por um soberano em cujo território não há a hegemonia de uma única etnia, povo ou nação.

8 Entenda-se precariamente como “dentro da medida do possível”, a fim de evitar guerras-civis e outros conflitos de natureza política.

9 Há de se ressaltar que a partir daí os processos de migração forçada, assimilação e compactação de grupos humanos, com a respectiva perda de seus direitos de nacionalidade e/ou de cidadania, tem início.

10 O qual aborda a questão do Imperialismo.

11 Direitos do Homem, cuja nomenclatura pode ser sinonímia de Direitos do Homem e do Cidadão ou meramente de Direitos Humanos. Ocorre que a expressão Direitos Humanos passa a ser corrente apenas depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ocorrida em 1948. Até aquele ano, fazia-se uso de diversas nomenclaturas para a mesma espécie de Direitos, as quais não serão citadas, dado o seu grande número.

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vam, congregando assim uma espécie de “colcha de retalhos”12. Nas palavras de Arendt (1989, p. 303): “A melhor prova disso é a tenta-tiva de resolver o problema da Europa oriental e meridional criando Estados-nações e introduzindo Tratados de Minorias.”

Depara-se com os dois problemas centrais do presente Artigo: 1) a tentativa de compreender a alocação de dezenas de Estados--nação no lugar dos dois outrora desmembrados e, 2) uma tentativa frustrada de garantir a proteção às minorias dessas dezenas de Estado--nação, pela via de Tratados Internacionais de Proteção às Minorias.

Os Tratados de Minorias, além de abstratos, não foram ca-pazes de conduzir os Estados a usar de meios coercitivos para que as minorias fossem concretamente protegidas. Isto só problematiza a questão sobre a necessidade de todo ser humano, independente de quem ele seja e de onde ele esteja, ser titular de um “Direito a ter Direitos”. Mesmo realizando a melhor exegese da intenção13 dos redatores dos Tratados de Minorias, ficou claro que a gestão dos Estados-nação não resultaria num processo de paz imediata e tampouco num consenso entre a quase comum “minoria do-minante” e a “maioria dominada”. As minorias, compactadas em “grupos humanos”, passaram a ser vítimas de violência política, a qual, posteriormente, seria uma das diversas formas de negação da liberdade da pessoa humana nos regimes totalitários. Uma vez desalojadas de toda e qualquer forma de proteção em torno de etnias heterogêneas e que não estavam inclinadas à assimilação, de se tornarem, ao menos, gestoras do mesmo espaço territorial:

12 Quando emprega-se a expressão “colcha de retalhos”, está-se dirigindo à variedade étnica, como, por exemplo, de albaneses, de muçulmanos, de sérvios, de croatas, de eslovacos, de tchecos e de húngaros, para não citar outras etnias, também bastante importantes nesse processo de desintegração dos Direitos do Homem.

13 Ou utilizando um termo propriamente jurídico, da mens legis dos redatores dos Tratados de Minorias.

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Os Tratados aglutinaram vários povos num só Estado, outor-garam a alguns o status de “povos estatais” e lhes confiaram o governo, supuseram silenciosamente que os outros povos nacionalmente compactos [...] chegassem a ser parceiros no governo, o que naturalmente não aconteceu, e, com igual ar-bitrariedade, criaram com os povos que sobraram um terceiro grupo de nacionalidades chamadas minorias, acrescentando assim aos muitos encargos dos novos Estados o problema de observar regulamentos especiais, impostos de fora, para uma parte de sua população. (ARENDT, 1989, p. 303, Grifo nosso)

Não existia espaço para que as minorias na condução dos assun-tos políticos, pois um elemento que é fundamental para o pensamento político Arendt, é dizer, a liberdade para a condução de seus interesses políticos, e que ela chama de “liberdade política”, “e que os povos pri-vados do seu próprio governo nacional ficariam sem a possibilidade de usufruir dos direitos humanos”. (ARENDT, 1989, p. 305)

Mesmo que o objetivo dessa reorganização dos povos fosse para manter a Europa em ordem, segundo Arendt (1989, p. 305), isso seria impossível:

Só após a queda dos últimos remanescentes da autocracia europeia ficou claro que a Europa havia sido governada por um sistema que nunca levou em conta as necessidades de 25% de sua população. Esse mal [...] não foi sanado pela criação dos Estados sucessores [nomenclatura que Arendt atribui aos novos Estados-nação, derivados da Monarquia Czarista e da Monarquia Dual] dos impérios desmembra-dos, porque cerca de 30% de seus quase 100 milhões de habitantes eram oficialmente reconhecidos como exceções a serem especialmente protegidas por tratados de minorias.

Não tardou para que essas “minorias” passassem a ser con-troladas de maneira bastante peculiar. Em muitos casos, a palavra

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minoria representava, tão somente, a presença de uma “minoria de fato” que estava a cargo do corpo político, controlando todo o restante dos indivíduos. Ao interpretar o corpo político, se faz de forma extensiva à polícia militar e política, ao exército, às re-partições administrativas, ao poder legislativo e principalmente ao poder judiciário e ao Ministério Público:

Os Estados recém criados [...] que haviam recebido a sua in-dependência com a promessa de plena soberania nacional, acatada em igualdade de condições com as nações ocidentais, olhavam os Tratados das Minorias como óbvia quebra de pro-messas e, como prova da discriminação, uma vez que somente os novos Estados, e nem mesmo a Alemanha derrotada [...] ficavam subordinados a eles. (ARENDT, 1989, p. 304)

Esse processo de compactação de grupos humanos que resis-tiram à assimilação passou a ser um fenômeno observado, sob um ponto de vista político, por Arent. O fim dos Tratados de Minorias era estabelecer uma transição que frustrou aqueles que estavam no controle dos corpos políticos, pois ela não foi tão rápida quanto era esperado, nem tão pacífica quanto fora prometido. Segundo Aren-dt (1989, p. 306): “Os representantes das grandes nações sabiam demasiado bem que as minorias existentes num Estado-nação de-viam, mais cedo ou mais tarde, ser assimiladas ou liquidadas.”

O fracasso em “impor” a assimilação às minorias comprovou, igualmente, que a entrega do poder a uma etnia específica gera um declínio de poder e deteriora as instituições de Estado, principal-mente, o Direito, o qual, é a primeira fonte para a concretização da justiça14. A falência política dos novos Estados, especialmente na Europa, foi uma derrota para todas as instituições jurídicas, dentre

14 O Direito, a Lei e o Poder, são fontes de sustentação dos mais diversos tipos de governos.

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elas, especialmente, como mencionou-se acima, a Polícia Política, o Poder Judiciário e o Ministério Público. O “[...] fato de que o declí-nio do poder da Europa como se ela fora seu patrimônio — incons-ciente do fato de que o declínio do poder na Europa foi precedido e acompanhado pela falência política, a falência do Estado-nação e de seu conceito de soberania.” (ARENDT, 2013, p. 20)

Violência e arbitrariedade são postas na mesma coluna, tratadas quase que como sinônimas, ou que a violência tenha, dentre seus diver-sos pontos, a arbitrariedade como um de seus deméritos fundamentais. Em seus escritos posteriores às Origens do Totalitarismo, Arendt grifou que as suas perplexidades se projetam além do que se passou com os Tratados de Minorias, e a violência perpetrada no Século XX possui um diferencial, é dizer, a geração de agora (seja do século XX, seja do século XXI) vive sob a ameaça da bomba atômica, ainda que os assuntos afe-tos ao Direito e ao Poder, além da própria violência de natureza política, não estejam sistematizados nas obras de Arendt:

Arendt não escreveu qualquer obra em que sistematizasse suas concepções acerca da Filosofia do Direito ou em que se detivesse apenas sobre o campo do Direito. Entretanto, pode-se encontrar este enfoque em recortes esparsos, com maior especificidade em Origens do Totalitarismo, [...] entre outros.” (SCHIO; PEIXOTO, 2012, p. 289)

II

É interessante que seja enfatizado o aspecto político da Justiça, pois somente desta maneira a justiça como equidade, mas para tanto é necessário o respeito a preceitos fundamentais, como é o caso da legi-timidade, legalidade e da ética, que se identificam com a legalidade, se tratando de uma função que é exercida pelo Estado. A apresentação dos modelos de justiça como equidade, no contexto atual, demanda

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O Conceito de Justiça em Hannah Arendt: A Questão do “Direito a Ter Direitos”

a necessidade de que autores como John Rawls (1921-2002) tenham alguns de seus conceitos retomados, ainda que sumariamente.

Em Uma Teoria da Justiça (1971), Rawls desenvolve todo um modelo de justiça distributiva que vai culminar em sua obra derradei-ra, O Direito dos Povos (1999), como a necessidade de remontar não só à tradição liberal, mas à origem desse direito em si, o Autor busca no conceito de ius gentium15, o qual é a base do direito romano para que se verificasse o que os mais diversos povos que não faziam parte de Roma tinham em comum com os cidadãos do Império. Na filosofia política de Rawls, portanto, a justiça como equidade não fica, neces-sariamente limitada, a um sistema jurídica único. Ela pode transcen-der as fronteiras nacionais, em direção ao que o ele virá a chamar de cosmopolitismo, pois os elementos de justiça devem estar presentes tanto na esfera nacional, quanto na esfera global.

É latente que Arendt não compactua da mesma posição de Rawls por diversos motivos. O primeiro deles é que a Autora veio a falecer em 1976, apenas 5 (cinco) anos após a publicação de Uma Teoria da Justiça. Da mesma forma, não há nenhum indício de que as teorias de liberais pudessem ter influído até mesmo os escritos de Arendt já em seus últimos anos de vida. Há, todavia, um ponto em comum entre ambos os autores: a oposição à guerra do Viet-nã e a preferência por transições políticas pacíficas. O ponto de partida em Arendt, a despeito de não ser uma autora liberal, foi a Revolução Húngara, em 1956 e os eventos subsequentes a ela.

III

Ocorre que os Direitos Humanos, em sua abstração, tão cri-ticada por Arendt, apenas podem ser enunciados. Em razão disto,

15 Hoje este termo é usado como sinônimo de Direito Internacional.

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são raros (quase que inexistentes) os Tratados Internacionais que versam sobre Direitos Humanos que contêm em seu teor, de forma expressa, exigência de exequibilidade, sob pena de um Estado ou de um Cidadão infrator vir a ser sancionado.

Referências

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 1ª Ed. 10ª Reimpressão. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989.

_____. Sobre a Revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia. das Letras, 2011

_____. Sobre a Violência. 4ª Ed. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2 Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta; Lenita Esteves. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

_____. The Law of the People. Nova Iorque: Oxford, 1999.

SCHIO, Sônia. Hannah Arendt: História e Liberdade – da Ação à Reflexão. 2 ed. Porto Alegre: Clarinete, 2012.

______; PEIXOTO, Cláudia. O Conceito de Lei em Hannah Arendt. ethic@. Florianópolis v.11, n.3, p. 289 – 297, Dez. 2012.

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Rossana Batista Padilha 2

Hannah Arendt, na obra Origens do Totalitarismo (1951), rela-ta o quão é importante e necessária a participação dos indivíduos, enquanto cidadãos na esfera pública3 e política, e de nela se mani-festarem, reunidos em grupos a fim de compartilharem opiniões, pro-pósitos, ações e decisões. Segundo a autora, a liberdade4 está ligada à ação, à pluralidade5 humana, em um espaço aberto à palavra, à discussão, e assim, cada um se torna responsável pelo mundo em que vive. Para Arendt, é na esfera pública que os “assuntos humanos” são identificados, discutidos e solucionados (definitivamente ou não).

A liberdade política, a qual se refere a autora é a do cidadão e não a do homem, é uma qualidade do “eu posso” da ação. Por

1 Revisora: Terezinha Brandão, graduada em Letras na UFPEL/RS, e-mail: [email protected].

2 Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas.

3 Para Arendt, a possibilidade de conceber o espaço público é possível, pois depende das ações dos humanos em conjunto, o que gera um “poder” que apenas se desfaz quando o indivíduo retorna para a esfera privada da família, do trabalho, entre outras.

4 A liberdade a que se refere Arendt é a liberdade de agir por vontade própria, responsabilizando-se aberto à doxa, e a sua discussão, na qual a capacidade de atuar em um espaço público se torna efetiva. (SCHIO, 2012, p. 150).

5 Para Arendt, a pluralidade refere-se ao fato de que os seres humanos habitam o mesmo planeta, a Terra. É reforçada pela natalidade, pela contínua chegada de seres humanos ao mundo, para lhe garantir continuidade, por um lado, e para permitir o constante afluxo de ações novas no espaço público por outro, apesar das possíveis distâncias geográficas. (SCHIO, 2012, p. 169).

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isso, ela só se manifesta em comunidades, que regularam por meio de leis, a interação da pluralidade. Arendt reafirma a sua posição sobre liberdade e política: ambas só aparecem no espaço público. A institucionalização da organização humana surge com a ela-boração de um ordenamento jurídico, ou seja, por meio de leis, regras, representantes legais, os quais são eleitos pelo povo, com o consentimento deste. Ao cidadão cabe cumpri-las ou buscar sua alteração. A hipótese a ser desenvolvida, então, visa a demonstrar que os cidadãos e as autoridades são responsáveis pela criação e elaboração de leis, detém o poder de ação. Nesse sentido, a falta de comprometimento e de responsabilidade por parte de ambos poderá levar ao confronto e à violência.

Segundo a autora, na obra Da Revolução (1963), as guerras e revoluções podem ocorrer de modo que sejam ou não marca-das pela violência, a exemplo a Revolução Americana e Francesa. Para Arendt, a violência é o contrário do poder, ela depende para existir de instrumentos e implementos, ela precisa de justificação de, um objetivo a ser atingido no futuro como a unificação terri-torial ou a fartura. O poder é o fim em si mesmo, ele fundamenta--se no passado, por aquilo que o gerou inicialmente, por meio dos cidadãos, que atuando juntos e organizados, discutindo e agindo, engendraram6. Por tal motivo, a autora considera a violência um fenômeno marginal no campo político, pois, é incapaz de se mani-festar pela fala, a violência prescinde da fala, pois, usa instrumen-tos, armas e coação gerando como o medo e o silêncio. Arendt não se opõe às revoluções: para ela, o sentido da palavra “revolução” está ligado à ideia de liberdade, de um novo começo7.

6 LAFER, Celso. Pensamento, Persuasão e Poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 34.

7 Restaurar, recuperar, resgatar o espaço público que permite, pela liberdade e pela comunicação, o agir conjunto, e com ele a geração de poder, é o grande tema unificador de reflexão de Hannah Arendt. (LAFER, 2003, p. 35)

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Hannah Arendt e o “Poder” da Liberdade Política

Para que a liberdade seja mantida, a possibilidade de discor-dar, de se manifestar, de se revoltar, ou até de fazer uma revolução, precisam existir.

A autora faz uma importante distinção entre o que ela con-sidera força, poder e violência. Para ela, a força é uma energia que desprende de movimentos físicos e sociais. A violência é ca-racteriza pelo seu caráter instrumental multiplicador de potência individual devido a manipulação dos implementos de violência. O poder é uma relação que leva a uma formação de vontade comum, resulta de uma comunicação voltada para a obtenção do acordo, por isso ela nunca é atributo de apenas um indivíduo no singular, mas é o resultado da capacidade do agir em conjunto.

É preciso que haja o espaço público, bem como, que os in-divíduos tenham liberdade para expressar-se, podendo contestar, discutir, expondo suas ideias e ideais, buscando, por meio dessa elaboração conjunta, adquirir outros direitos e deveres. A existên-cia de possibilidade de ver e ser visto, discordar e poder expor isso, para Arendt é política, ou seja, é uma atitude política que ocorre em um espaço público de convivência entre iguais, enquanto ci-dadãos, diferentes, enquanto seres únicos por nascimento. Assim sendo, a política, para ela, trata dos assuntos humanos.

Assim, segundo Arendt, a política é a maneira humana de convívio entre os homens e mulheres por meio do gerenciamento, da organização de questões emergentes. Ainda para ela, a igualda-de8, não se origina na linhagem, no status social, na etnia, mas da possibilidade dos indivíduos em conjunto poder contestar e agir, buscando o que é melhor para o grupo, no sentido de poder agir em conjunto, portanto, politicamente.

8 A “igualdade”, em Arendt, significa a possibilidade do cidadão se expressar, mas também concordar, discordar, contestar em conjunto com seus semelhantes. Em outros termos, a liberdade, nesta autora, apenas existe na esfera pública, na vida política.

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Para que isso ocorra, por outro lado, cada componente do grupo humano precisa sentir-se como participante da comunidade que precisa ser organizada e preservada por meio das ações de seus componentes. Em outros termos, ele precisa ser e atuar como ci-dadão. É na esfera pública que o indivíduo passa a ser considerado cidadão, é quando ele e ela participam da vida em sociedade, agem juntamente com outros indivíduos, compartilhando conjunta-mente de hábitos, costumes, regras, mas também com exigências éticas, inerentes a todos integrantes de uma mesma sociedade. A palavra sociedade, do latim “societas”, significa a associação amis-tosa com os outros; um conjunto de pessoas que compartilham propósitos, gostos e costumes. Além da vida em grupo, toda socie-dade requer uma organização por meio de regramentos (jurídico, social, cultural, econômico, religioso...), por isso a importância do ordenamento jurídico, de atribuir as regras que servirão de base para tal organização. É por meio do convívio entre os homens por meio das discussões, do gerenciamento de questões emergentes, sem o uso de violência, que se elaboram as referidas regras.

Segundo Arendt, o conceito de cidadania, junto de “direi-to a ter direitos”, resulta com as conquistas sociais, econômicas e políticas e por meio da discussão em conjunto, torna-se possível identificar as necessidades básicas, como o direito à moradia, edu-cação, emprego, saúde, que seja necessário para que os membros de uma sociedade possam levar uma vida digna.

A institucionalização da organização surge com a elaboração de leis, essa criação surge a partir dos cidadãos, ou seja, daqueles indivíduos que, na esfera pública, em conjunto com outros visa obter direitos e deveres, bem como, conter a liberdade em prol da vida em conjunto. Conforme Kant na obra A Paz Perpétua:

Sem dúvida, a vontade de todos os homens singulares de viverem numa constituição legal segundo os princípios da

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liberdade (a unidade distributiva da vontade de todos) não é suficiente para tal fim, mas exige-se ainda que todos em conjunto queiram esta situação. (KANT, 2008, p. 35).

Para Arendt, os laços de sociabilidade, ou seja, o convívio com os demais precisam ser preservados. E estes se assemelham ao que Aristóteles trata como laços de amizade, ou seja, os vínculos que unem os indivíduos em uma comunidade, assim todos parti-lham daquilo que é adquirido pela atividade política, para Aris-tóteles no Livro VIII da Ética a Nicômaco, a amizade é definida: “como sendo benevolência recíproca de sentimentos” (EN, VIII, 2, 1148 b 32). Ainda: “Para que duas pessoas sejam amigas é neces-sário que se queiram bem uma a outra e se desejem mutuamente tudo de bom, mas de uma forma que não passe despercebido”. (EN, VIII, 2, 1156, 5).

A concepção de Arendt em relação à sociabilidade asseme-lha-se também a de Cícero, para ambos o convívio entre as pes-soas e a manutenção dos laços de sociabilidade torna-se possível quando são elaboradas leis em conjunto de acordo com as necessi-dades de uma mesma comunidade. Para Cícero:

A comunidade e a união entre os homens serão tanto me-lhor preservadas quanto maior for a nossa benevolência para com ela e, também, para quem a nós estiver mais unido. O vínculo da comunidade é constituído pela razão e linguagem que, ensinando, aprendendo e comunicando, discutindo e raciocinando, associam os homens uns com outros, reunindo-os numa espécie de sociedade natural. O laço que mais une os homens, de uma maneira geral, e entre si, de um modo particular é aquela sociedade na qual todas as coisas, que foram criadas pela natureza para usufruto comum dos homens, são pertença de toda a co-munidade de tal modo que tudo aquilo que é regulado

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pelas leis e pelo direito civil, se possa encontrar em con-formidade com aquilo que precisamente é estabelecido por estas mesmas leis, elaboradas por essa comunidade. (CÍCERO, 2008, p. 33).

Segundo Arendt, a palavra “política”, deriva do grego polis, essa experiência, grega e romana que eles legaram aos povos vin-douros esse conceito que contém a sua própria dignidade.

A liberdade política mencionada refere-se não à vida de um homem, pois ele necessita da presença de outros para em conjunto atuar em favor do grupo. O pensamento político necessita de articu-lação e para que os indivíduos possam se manifestar, preocupando--se em manter este espaço, por meio da liberdade e pela comunica-ção com os outros, por meio do agir em conjunto, e com ele gerando poder, a partir do qual é considerado por Arendt o surgimento da política autêntica, ou seja, a dignidade da vida pública.

Para Arendt, os cidadãos precisam utilizar sua liberdade polí-tica, mas com ética, colocando-se no lugar do outro, “pensar alarga-do” é muito relevante para a preservação e para a existência dos la-ços de sociabilidade, desta forma, segundo Kant (2005, § 40, p.188)

uma pessoa com maneira de pensar alargado reflete sobre o seu juízo desde o ponto de vista universal (que somente pode determinar enquanto se imaginar do ponto de vis-ta do outros), pois, o limitado, é estreito, o contrário de largado, aquele cujos talentos não bastam para nenhum grande uso (principalmente o intensivo).

Segundo a autora, o agir dessa forma auxilia a consolidar os laços de sociabilidade, torna mais fácil o diálogo, a aceitação do modo de pensar, em especial quando existem diferenças, a fim de poder viver bem em conjunto, com paz, em favor de um mundo melhor para todos, e no qual a liberdade possa ser autenticamente

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vivenciada, pois, é por meio dessa liberdade com a participação na esfera pública, com o diálogo no plural que se permite a palavra viva e vivida, numa unidade criativa e criadora.

A reflexão é necessária, pois permite o agir, a liberdade de expressão, a paz, indispensáveis a fim de os cidadãos deliberarem sobre o que é melhor à coletividade, ser exercido. Nesse sentido, o poder de liberdade política significa também refletir o papel dos cidadãos no mundo em que vivem.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

_________. Da Revolução. Tradução Fernando Dídimo Vieira. São Paulo: Ática, 1990.

ARISTÒTELES. Ethica Nicomachea. Livro III, Tradução Marco Zingano. São Paulo: Odysseus editora, 2008

CÍCERO. Dos Deveres (De Officiis). Tradução de Carlos Hum-berto Gomes. Lisboa/Portugal Faculdade de teologia da Universi-dade Católica Portuguesa, 2008.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução: V. Rohden e A. Marques. Rio de Janeiro: Editora Forense Univer-sitária, 2005.

__________A Paz Perpétua. Um projeto Filosófico. Tradução Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008.

LAFER, Celso. Pensamento, Persuasão e Poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

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Rossana Batista Padilha

PEIXOTO, Cláudia Carneiro. Hannah Arendt: A Lei como condi-ção de cidadania. Dissertação de Mestrado, UFPEL, 2012.

SCHIO, Sonia Maria. Hannah Arendt: História e Liberdade (da Ação à Reflexão). Porto Alegre: Clarinete, 2012.

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Sobre Política e Arte Contemporânea: Um Diálogo com Hannah Arendt1

Cícero Samuel Dias Silva2

O recurso à obra de arte em Hannah Arendt, à revelia de seu caminho sinuoso, retoma a clave da durabilidade, inerente à arte, como via de assegurar seu papel fundamental na permanência do mundo. Tal posição assume a prerrogativa de que a arte se conjuga, invariavelmente, ao conceito de obra, concebendo-a, assim, como objeto concreto e, de certo modo, imutável, em um mundo de coi-sas tangíveis. Esta ideia parece embebida por uma visão demasiada-mente romantizada e tradicional que já não se adéqua às inegáveis transformações ocorridas no século XX, que se desdobram também ao fazer humano. Afinal, não só a ação, atividade política, viu suas estruturas modificadas pelo transe do início do século, mas o eco da ruptura se fez ouvir também na arte moderna e contemporânea. Isso poderia ser observado, por exemplo, com a quebra de esquemas harmônicos fixos na música, nas mutações da estrutura figurativa na pintura, ou na rítmica descontínua do verso, na poesia.

Uma tempestade de revoluções passa a impor a força de ex-pressão como resposta ao vislumbre do absurdo. A este respeito, Peixoto (1982, p. 12) nos aponta que “sob o impacto da guerra, da inflação, do gigantismo e da miséria da metrópole, toda uma gera-

1 Revisão: Cícero Émerson do Nascimento Cardoso ([email protected])

2 Mestre em Filosofia pela UFC. Professor da Universidade Federal do Cariri – UFCA.

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Cícero Samuel Dias Silva

ção vai desenvolver um sentimento de horror ante a decadência e a morte, de desespero ante a decomposição da sociedade”. Isto foi transposto para a arte, por exemplo, através de novas disposições das cores e linhas, e na reinterpretação do fluxo imagético como nova organização para a obra literária.

Diante do avanço da técnica, e do novo papel desempenha-do pelos meios de comunicação, o domínio do homo faber, o ho-mem “construtor do mundo”, passa por inegáveis transformações que redefinirão a própria dimensão do fazer como construção de um mundo humano, incidindo diretamente na estrutura de seus “feitos supremos”: a obra de arte. O caráter de “obra”, como fruto da intervenção da mão humana sobre a matéria, se torna proble-mático como conceito definidor para a arte contemporânea, como bem se pergunta Jardim (2007, p. 118-9): “[...] qual sentido haveria em recorrer à habilidade manual como critério de arte no mundo da cibernética avançada e dos novíssimos meios de comunicação? Uma reconsideração do significado do fazer precisaria ser feita”.

O alcance de tal indagação possui dimensões proporcionais às modificações para as quais se volta, pois sua profundidade per-fura a interpretação tradicional que compreendeu o enfrentamen-to físico da mão sobre a matéria, a fim de lhe extrair uma forma, como meio próprio do fazer artístico. É preciso salientar que, com isso, a arte contemporânea, ou as novas tecnologias, não interdi-tam a manufatura como forma de criação artística. Essa modifi-cação mais fundamental se dá, certamente, na possibilidade de se rediscutir as relações existentes entre mão e matéria, forma e percepção, entendimento e sentimento, duração e permanência.

Se retomarmos as considerações de Hannah Arendt, postas em A condição humana (1958), poderíamos confrontar sua con-cepção acerca da fabricação de objetos de uso, e da criação artís-tica, com as modificações presentes na “nova arte”, e poderíamos pensá-la como “condenação antecipada” da arte contemporânea,

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posto que ao absorver características como fluidez, ou “obra ina-cabada”, tais expressões artísticas já não poderiam corresponder à exigência de durabilidade, objetividade e permanência, apregoada pela teoria arendtiana.

A afirmação de que a arte contemporânea se coloca como incompatível à teoria de Arendt é equivocada, pois não se trata, para a autora, de defender um modelo de arte em detrimento do outro, seguindo padrões estéticos tradicionais. Do mesmo modo, a interpretação a partir da figura analógica das “artes de desempe-nho” [performing arts], como via de conjugar a arte contemporâ-nea com as considerações de Arendt, se mostra insuficiente, pois a toma dentro de um quadro mais geral de análise, embebida por considerações que impõem uma divisão entre as artes, a partir do seu modo de expressão. Como afirma Cambier (2007, p. 137), sob

[...] um olhar mais próximo, parece que esta tentativa de re-crutar Arendt para o campo dos estetas conservadores – que, conservando a nostalgia de uma concepção aurática da arte, não querem ver em suas formas contemporâneas senão um fe-nômeno de decadência – é uma manobra ilegítima que obscu-rece a sutileza das análises a que ela recorre. (Nossa tradução).

A sutileza reivindicada por Alain Cambier, certamente só pode sobrevir quando se amplia o horizonte da análise acerca da questão ao percorrer o itinerário labiríntico tanto da arte con-temporânea como da reflexão arendtiana. Em última instância, é preciso percorrer os traços mais gerais de ambas para, a partir daí, podermos colocar em termos mais precisos a relação entre as duas, capaz de nos mostrar a relação interna à obra de Arendt que se dá entre o homo faber e o homem de ação, em seus feitos mais elevados, isto é, entre a arte e a política.

A modificação operada na visão tradicional da arte encontra suas raízes na modificação dos próprios modos de fazer normati-

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zados, como determinadores também das possibilidades de recep-ção. Como já identificara Jacques Rancière (2005, p. 33-34): passa--se de um regime poético para um regime estético3 definido como “aquele que propriamente identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes”, ou seja, uma forma de sentir heterogênea que já não se orienta em padrões preestabelecidos. Dessa conside-ração, nos importa perceber que as transformações ocorridas no estatuto e em sua compreensão se dão a partir de sistemas histori-camente construídos. Neste sentido, podemos recobrar, en passant, a quebra moderna empreendida pelo Romantismo nos padrões rí-gidos das normas das “belas artes”, intimamente “ligada à ideia de liberdade”, como observou Antônio Candido (1988)4.

O Romantismo rompe com a hierarquia e com o determinis-mo, ampliando a experiência estética, amparado na possibilidade comum do sentimento do gosto e do sublime, mas que, não obs-tante a ampliação do público, como grande legitimador histórico das obras, luta contra a banalização da linguagem poética, enve-redando na construção de uma linguagem mais densa e depurada. O legado do romantismo seria, assim, a certeza de que a arte deve se impor como necessidade inventiva, resistindo à absorção insti-tucional, o que se fará visível na expressão de suas herdeiras: as vanguardas artísticas do século XX.

As vanguardas atuam nas zonas limítrofes, isto é, movimen-tam-se nas fronteiras, sejam elas entre autonomia e heteronomia, entre arte e vida. Buscaram-se novas formas de construção e atu-

3 É preciso que esclareçamos que a palavra “estética” em Jacques Rancière “não remete a uma teoria da sensibilidade, do gosto ou do prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos”. Cf. RANCIÈRE, 2005, p. 32

4 Cf. CANDIDO, Antônio. O romantismo, nosso contemporâneo, aula inaugural, PUC-RJ, 1988. In: Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 19/03/1988.

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ação da arte no mundo, de sua intervenção na sociedade, de seu papel na produção de novas formas de vida. O processo criativo, o estatuto da obra e as formas de recepção foram redesenhadas pelas vanguardas, atribuindo-lhes traços assimétricos em relação à própria forma do fazer artístico, numa transmutação das estrutu-ras que passou, por fim, a aproximar-se delas paradoxalmente. As obras vanguardistas foram, também, absorvidas institucionalmen-te, o museu as canonizou no fim do século.

Ao paradoxo incutido nessa absorção dedica-se Peter Bürger, em sua Teoria da vanguarda (1974), e assume-a como esteriliza-ção e alienação. Mesmo diante da largura de sua análise sobre as razões do fracasso do “projeto de recondução da arte à práxis da vida”, como tarefa levada a cabo pelas vanguardas, gostaria de apontar sua consideração sobre aquele que reconhece como sendo o momento determinante da ruptura vanguardista: o Dadaísmo. Para Bürger (2008, p. 57) “o dadaísmo, o mais radical dentre os movimentos da vanguarda europeia, não exerce mais uma crítica às tendências artísticas precedentes, mas à instituição arte e aos rumos tomados pelo seu desenvolvimento na sociedade burguesa”. Ao voltar sua crítica à própria arte, o dadaísmo não propunha só uma mudança estilística, mas a “destruição” da própria arte, que deveria, desta feita, ser encaminhada de volta para a vida.

Como sabemos, longe de pôr um fim à arte, as vanguar-das, mesmo em sua face mais radical, acabaram por acrescentar elementos ao fazer artístico que a determinariam como a pró-pria expressão da arte contemporânea: suas montagens, cola-gens, intervenções e instalações, ressignificam a forma da arte tornando tênue a linha que divide a arte da não arte. Podemos, aqui, retomar os ready-mades, que colocam em xeque o critério de obra, como fruto da mão humana. Dilui-se, juntamente com a noção de obra, a de materialidade e de forma, o que há é sua reinvenção como “alegoria”.

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A arte contemporânea se apresenta como expressão autôno-ma que se dá não em relação a sua possível função, ou intervenção na sociedade, mas em seu traço de indeterminação, o que nela se expressa não pode ser imediatamente categorizado ou consumido, assegura-se, assim, uma autonomia que, segundo Osório (2011, p. 226), “é da experiência e não do objeto, e é isso que faz com que a forma significante dada à percepção seja algo singular, que mo-biliza a imaginação e o pensamento a produzirem sentidos novos”. A arte contemporânea não possui, assim, função determinada, doando ao espectador a liberdade de construir seu modo próprio de percebê-la e senti-la, o que, contudo, não implica a ausência de convenções ou determinações, mas, tão somente, indica que estas já não dão conta de determinar, em sentido preciso, a expe-riência vivenciada. Diante do ainda não nomeado, ao espectador cabe a função de criar sentidos novos para a arte e para o mundo. Ruptura similar se dá no campo da ação, isto é, também diante do “inominável” da guerra e da morte, as questões políticas já não puderam ser compreendidas de imediato, exigindo, tanto quanto na arte, a produção de novos modos de compreensão e sentido.

A partir dessas considerações, seria possível retomar a rela-ção entre alguns elementos da teoria da ação em Arendt, e a ca-tegoria da fabricação. Pois na arte contemporânea o “espectador” também é “atuante”, e seu julgamento, como modo de atuação em um mundo de ações e beleza, tem como pressuposto a não deter-minação prévia da ação, ou seja, parte da concepção da imprevi-sibilidade e irreversibilidade da ação. Antes de passarmos ao para-lelismo entre as características da ação, reconhecidas por Arendt, e a forma de expressão e recepção da arte contemporânea, gosta-ríamos de retomar algumas considerações sobre a relação entre o homo faber e as outras dimensões da condição humana.

Para Arendt, o mundo de coisas feito pelo homem, a obra do artifício humano, pode se tornar para os homens um lar suficiente-

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mente durável e estável, isto é, que suporte e resista ao movimento de constantes mudanças inerentes às suas vidas e ações, apenas quando este transcende tanto a funcionalidade das coisas produ-zidas para o consumo quanto a simples utilidade daqueles que são produzidos para o uso. É interessante notar que ação e trabalho possuem um traço de distinção comum em relação à dimensão do homo faber que, à distinção deste, não pode produzir durabilidade aos seus feitos. Nas palavras de Arendt (2010, p. 217), “a vida em seu sentido não biológico, o tempo que transcorre entre o nas-cimento e a morte, manifesta-se na ação e no discurso, que têm em comum com a vida sua essencial futilidade”. Neste sentido, os feitos e o discurso como produtos da vida política, assim como o trabalho laborante da manutenção do corpo, não podem deixar vestígios de sua atuação no mundo que possam perdurar, passado o momento da ação e da palavra falada.

Para Arendt, tanto o animal laborans como o homem de ação, cada um a seu modo, recorrem à “ajuda do homo faber”5 como via de recondução da efemeridade da ação e do discurso para a permanência no mundo, o que acontece à medida que seus “feitos grandiosos” são narrados, preservados, tornando-se de tal sorte suficientemente objetivos, capazes de compor o desdobrar da história humana. Não se deve deduzir, contudo, que haja uma prevalência ou hierarquização do fazer artístico sobre o domínio da ação, posto que o mundo produzido pelo homem só pode ser preservado e, portanto, ser aquilo que se destina a ser – um lar sobre a terra para a humanidade – à medida que as ações daqueles que o partilham atuam de modo a também preservar o espaço público de aparência no qual os próprios objetos artísticos podem aparecer. Há, por fim, um verdadeiro nivelamento entre as dimen-

5 C.f. ARENDT, 2010, p. 271

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sões da condição humana, cuja harmonia é o pressuposto básico de toda efetivação da condição humana no mundo.

Porém, como sustentamos em nossa argumentação, o século XX é o cenário de profundas modificações: tanto no estatuto da arte, quanto da cena política. Retomemos, pois, alguns de seus pontos.

Na expressão artística de Duchamp, temos o exemplo preciso das transformações ocorridas na arte. Sua radicalidade se desenha na transferência de objetos cotidianos para a galeria, definindo--os como objetos de arte, no ready-made o que há é a aparência a exigir do espectador que este se desfaça das expectativas habituas, pois o formalismo convencional já não poderia se aplicar a essas obras. Não se trata, contudo, de valorizar uma “arte conceitual” em detrimento da pura experiência sensível, o que há é o desvela-mento de um novo campo como teia de significações, problemati-zadas e constituídas historicamente. A galeria e o mercado, como espaço ocupado pela nova arte, produzem não só um novo objeto artístico, mas também um novo espectador e, sendo assim, não se trata de negar ou destruir a estética, como experiência sensível da arte, mas antes de redefini-la.

À arte contemporânea cabe o domínio da aparência, nela, como observou Octavio Paz, “o invisível não é obscuro nem misterioso, mas transparente”6. Tudo pode ser arte, mesmo um mictório, muito embora nem todos o sejam, trata-se antes de um processo de confronto direto e não aleatório com os meios tradi-cionais de se interpretar o conceito de obra e de fazer artístico. A este propósito, Osório (2011, p. 228) reforça que “levar um mic-tório para o museu não foi um movimento arbitrário, delirante, realizado a partir da mera vontade do artista. Ele nasceu de uma compreensão de que a arte estava atrelada a uma rede semântica a ser considerada e descolada pelo gesto poético”.

6 Cf. PAZ, 1997, p.9.

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O gesto de Duchamp desloca o sentido próprio da arte como obra, isto é, como fruto da mão humana, mas isso não deve ser tomado como seu ponto central, pois o caráter de “obra” já não mais poderia, de fato, ser interpretado como intervenção direta da mão sobre a matéria, mesmo assim ainda há nele certa manufatu-ra, pois, afinal, mesmo que Richard Mutt – pseudônimo com qual Duchamp expôs inicialmente A fonte em 1917 – não tivesse talha-do aquele mictório, “ele o escolheu”7. A criação se dá numa teia de relação entre o espaço que a acolhe, que também é transforma-do por este acolhimento mantendo a vitalidade do gesto criador, e da ação própria que este coloca no mundo.

Afirmar que o modo de ser da obra, como matéria a qual se atribui uma forma, foi redefinido, não implica dizer que a arte con-temporânea rompe com a estrutura sustentada por Arendt, pois em seus feitos os artistas contemporâneos não deixam de produzir um mundo de coisas tangíveis que atestam o brilho de um mundo e a expressão de um tempo, mesmo que esse tempo inevitavel-mente seja impossível de ser representado como mera figuração. O invisível da arte, e o sentido expresso pela forma, já não existe, tudo é aparência, não como abstração, mas como simultaneidade entre sensível e suprassensível, em consonância com a reabilitação da aparência operada por Arendt.

Nessa perspectiva mais ampla, a arte contemporânea não nega a dimensão do homo faber como produtor do mundo, ela am-plia-se também ao domínio da ação, precisamente em seu caráter

7 Em carta publicada à defesa de Richard Mutt, seu pseudônimo, Duchamp escreve: “Se o Sr Mutt fez ou não com as próprias mãos A fonte, isso não tem importância. Ele a escolheu. Ele pegou um objeto comum do dia a dia, situou-o de modo a que seu significado utilitário desaparecesse sob um título e um ponto de vista novos – criou um novo pensamento para o objeto.” Cf. DUCHAMP, M. Em defesa de Richard Mutt, The Blind Man, NY, maio, 1917, apud TOMKINS, Calvin. Duchamp. Cosacnaify, São Paulo, 2005, p. 208-209.

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agônico. A arte contemporânea é, tanto quanto a ação humana, imprevisível8, e insere-se em um contexto de relações cujo sentido é em si litigioso. Em ambas, o que se expressa é a ruptura de um sentido unificado e transcendente, capaz de determinar impositi-vamente os rumos de sua atividade. Em outras palavras, tanto a arte, como a política contemporânea, se põem diante do esface-lamento inegável da tradição como meio capaz de abalizar seus campos de construção e atuação no mundo e no transcorrer da história. Isso, porém, não implica que arte e política desapareçam, mas que sua permanência precisa ser recobrada e reinterpretada diante dos entraves e modificações a elas inerentes.

Política e arte, portanto, guardam consigo o caráter comum da possibilidade do recomeço, da recriação que engendra, como na magia do nascimento, um novo agente no mundo: aquela certeza, afirmada por Guimarães Rosa, de que “o mundo voltou a começar”.

Referências

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8 Na ação humana, o caráter imprevisível conjuga-se a sua irreversibilidade. Elementos interpretados por Arendt em A condição humana (1958) como traços fundamentais à própria ação, que trazem em seu bojo, como as potências do perdão e da promessa. Cf. ARENDT, 2010a, p. 294 – 308.

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Sobre Política e Arte Contemporânea: Um Diálogo com Hannah Arendt

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Cícero Samuel Dias Silva

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Notas sobre o Preconceito e o Juízo Político em Hannah Arendt1

José dos Santos Filho2

Ao José Luiz de Oliveira

Em meados da década de 1950, Arendt recebeu uma propos-ta para escrever uma “Introdução à Política”. Foi provavelmen-te entre 1956 e 1957 que ela começou a redação de dois textos que comporiam o primeiro capítulo de sua “Introdução”, com os seguintes títulos: “O preconceito contra a política e o que é de fato a política” e “Preconceito e juízo”. Em linhas gerais, os textos procuram apontar exatamente a força dos preconceitos na vida humana e, sobretudo, na avaliação da vida política em geral. Para Arendt, vivemos num mundo em que a própria experiência parece confirmar que o que dizem os preconceitos contra a política – a saber, que a política interna seria uma teia de velhacaria de in-teresses mesquinhos e de ideologia mais mesquinha ainda – e as relações da política externa oscilam entre a propaganda vazia e a pura violência (ARENDT, 2012, p. 27). Mesmo convicta de que o preconceito é algo sem o qual os homens não podem viver, Arendt alerta para o perigoso processo que se desencadeia quando o mes-mo sai do âmbito do círculo privado da vida e se torna baliza para julgamento dos fenômenos políticos.

1 Revisão: Araceli P. Godinho - [email protected]

2 Doutorando na UFG, bolsista Capes, Professor da UNIMONTES.

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A difícil tarefa na vida política é estabelecer uma fronteira, ainda que frágil, entre os valores cultivados por grupos sociais e a liberdade na vida pública. Para isso, é preciso um enorme esforço que compreende a capacidade de pensar sem lançar mão dos tra-dicionais ‘clichês’, que, se por um lado facilitam a avaliação, por outro dificultam um julgamento capaz de atualizar o sentido da política. Apesar de quase sempre lidarmos com a noção pejorati-va do termo, é preciso reconhecer que preconceitos são meios de julgamento pelos quais os homens, de algum modo, se orientam na vida cotidiana. Na avaliação de Gadamer, a revolta contra os preconceitos foi encetada primeiramente com o advento da razão iluminista (Aufklãrung), que em seu âmago nutria o que ele deno-mina de “preconceito contra os preconceitos”. O fato, afirma ele, é que “[...] essa é uma conclusão típica do espírito do racionalis-mo. Sobre ele repousa o descrédito dos preconceitos em geral e a pretensão do conhecimento científico de excluí-los totalmente.” (GADAMER, 1997, p. 408).

Talvez o termo latino praejudicium, que designa o preconcei-to, seja a melhor indicação para o acento negativo dado ao concei-to. Praejudicium significa simplesmente “prejuízo”, “desvantagem” e “dano”. Mas a crítica mais contundente contra os preconceitos se apoia na definição dos mesmos como sendo juízos precipitados que não estão embasados pela razão crítica e, portanto, não fun-damentados. Na tradição filosófica moderna, um juízo não funda-mentado pode advir principalmente de uma sentença precipitada ou de uma fonte de autoridade qualquer que não tenha submetido seus pré-juízos ao crivo de um método rigorosamente científico.3 Arendt, que não comunga com a tese da racionalidade moder-

3 Gadamer sugere que “uma análise da história do conceito mostra que é somente no Aufklãrung que o conceito de preconceito recebeu o matiz negativo que agora possui” (GADAMER, 1997, p. 407).

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Notas sobre o Preconceito e o Juízo Político em Hannah Arendt

na, se propõe a pensar os preconceitos também a partir de outra ótica. Reconhecendo o papel que o preconceito desempenha na vida social, ela afirma que não existe sequer uma comunidade hu-mana que não tenha se baseado em preconceitos, para erigir uma espécie de normatividade com a qual pudesse eleger que tipos de homens compartilhariam aquela sociedade. Isso porque a própria condição humana não pode ser isenta de preconceitos, à medida que a razão é demasiadamente limitada para ser capaz de refle-tir acerca de tudo, ao mesmo tempo. E, também, porque a nossa compreensão primária do mundo começa necessariamente pelos valores cultivados, no ambiente no qual nascemos e primeiramen-te nos inserimos, ou seja, a família, a escola e a comunidade. Esse truísmo nos ajuda a compreender a função do preconceito, que, segundo Arendt, é a de preservar o homem que julga do confronto direto com a realidade contingencial que exige respostas imediatas aos problemas cotidianos.4

Sendo produtos da própria capacidade humana de conferir um caráter objetivo ao mundo, eles funcionariam como uma es-pécie de pequenos paradigmas e parecem cumprir o papel media-dor, estabilizador e solidificador que os objetos representam para o mundo físico, constituindo, deste modo, elementos importantes da condição humana. 5 Em 1959, quando Arendt publicou Reflexões

4 Seguindo a tese de Gadamer que afirma: “Preconceito’ não significa, pois, de modo algum, falso juízo, pois está em seu conceito que ele possa ser valorizado positivamente ou negativamente.” (ibidem, p. 407).

5 Em lugar algum da obra de Arendt existe a comparação do papel do preconceito com a função dos objetos físicos. Mas é possível tal conjectura se pensarmos que a autora procura mostrar a força que o preconceito tem na formação de valores para a manutenção de grupos em torno de uma ideia comum. O preconceito daria certa estabilidade já que: “É esse um fator básico da incerteza, igualmente notória, não apenas de todos os assuntos políticos, mas de todos os assuntos que se dão diretamente entre os homens, sem a influência mediadora, estabilizadora e solidificadora das coisas.” (ARENDT, 2011, p.227).

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sobre Little Rock, já havia uma enxurrada de críticas às suas opi-niões acerca da integração racial em algumas escolas norte-ame-ricanas. No curso da polêmica que se seguiu após a publicação, podemos perceber que Arendt, embora tenha reconhecido sua visão míope na particularidade da questão dos negros nos Estados Unidos, permanece convicta da importância de elementos discri-minatórios na sociedade em geral. A associação dos homens, seja nas famílias, nos grupos sociais, ou nos lugares público-políticos, deveria ser capaz de produzir um tipo de convivência que fosse a expressão das características específicas de cada espaço.

Por isso, ela insiste na tese de que é necessário respeitar as escolhas feitas pelos homens em suas vidas particulares, ou seja, nesse espaço doméstico familiar. Essas escolhas são idiossincráti-cas e se sustentam pela ‘exclusividade’, por isso, elas vão moldando tipos de caráter, que orientam os indivíduos, para decidirem em quais companhias desejam passar a vida ou quem são os amigos com quem querem conviver. Mas a necessidade imposta pela so-brevivência obriga todos a saírem da proteção de seus respectivos mundos particulares para se confrontarem com os outros, no es-paço híbrido que se tornou a sociedade. Nesse espaço social, são as ‘convenções’ que marcam um tipo de éthos discriminatório dos grupos e revelam que, além de ser um direito social, a discrimina-ção pode ser um importante instrumento contra a massificação e o conformismo em uma sociedade que cultiva valores monolíticos.

Mas, no momento em que os homens estão associados na tentativa de criar os estatutos, de aprovar as leis, de redigir as constituições, o locus que emerge desse encontro se caracteriza como espaço público-político. Sua característica principal deve ser a ‘igualdade’. Somente no âmbito do ‘público-político’ a igualdade entre os homens pode ser legítima. “Apenas nesse âmbito somos todos iguais”, afirma Arendt. Por isso, ele precisa ser isento das particularidades do espaço familiar e das convenções do espaço

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social.6 E, seguindo esse raciocínio, ela defende que a legislação em uma sociedade não tem a necessidade de abolir as diferenças entre os homens e os seus grupos sociais, mas, por outro lado, todo governo tem o dever de “assegurar que a discriminação so-cial nunca cerceie a igualdade política” (ARENDT, 2004, p. 272 e 277). Arendt formula uma máxima que parece ser uma síntese para o complexo problema que envolve os preconceitos e a políti-ca: Assim ela afirma: “Poder-se-ia até mesmo afirmá-lo como lei: a igualdade política sempre se traduziu em discriminação social, enquanto o reconhecimento sempre foi pago com desigualdade política.” (ARENDT apud YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 473).

Vimos anteriormente que Arendt atribui aos preconceitos uma função importante para a vida social. Os preconceitos, que são frutos de juízos passados e a eles permanecem ligados, têm a vantagem de fornecer aos homens meios pelos quais eles possam se guiar na vida social, pois em geral se baseiam em critérios discri-minatórios. O perigo, afirma Arendt, é que os critérios discrimi-natórios que embasam os preconceitos ocupem o lugar dos juízos e passem a nortear as decisões políticas.7

Em Origens do Totalitarismo, Arendt investiga de que modo o pensamento racial com base em preconceitos de classe foi transfor-mado em racismo, isto é, em uma ideologia com pretensões científi-cas.8 Apenas como crenças e preconceitos circunscritos a pequenos

6 O ambiente marcado pelas convenções sociais parece funcionar como um espaço intermediário entre o espaço da privacidade do indivíduo, com suas escolhas particulares e exclusivas, e o espaço público-político, onde nem a exclusividade e nem as convenções deveriam ser obstáculos para a igualdade e liberdade.

7 Referindo-se ao problema racial nos Estados Unidos, Arendt afirma: “Pois o ponto crucial a ser lembrado é que não é o costume social da segregação que é inconstitucional, mas a sua imposição legal.” (ARENDT, 2004, p.270)

8 “Arendt [...] entendia que o racismo, uma ideologia sistemática, pseudocientífica, era uma questão bem diferente do mero preconceito de raça ou do que chamara de ‘pensamento racial’ em As Origens do Totalitarismo.” (YOUNG-BRUHEL, 1997, p. 282)

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grupos, pensamentos desse tipo não seriam capazes de transformar a distinção de raças em ideologia. Enquanto preconceito social, afirma Arendt, pelo menos até meados do século XIX, “[...] o pen-samento racista competia com muitas ideias livremente expressas, que, dentro do ambiente geral do liberalismo, disputavam entre si a aceitação da opinião pública.” (ARENDT, 2004, p. 189) Entretanto, em meio às diversas opiniões, a ideia de que a história da humanida-de só poderia ser compreendida a partir da luta econômica de clas-ses ou da luta natural entre as raças sobrepõe-se a todas as outras.

Desse modo, aquilo que antes era um preconceito social de alguns grupos ganha status de guia político de uma nação e, então, torna-se doutrina oficial do Estado.9 É claro que por força de tais ideologias também o preconceito religioso antissemita se trans-formaria em antissemitismo, que na esteira da ideologia das ra-ças seria utilizado, sobretudo, como instrumento de dominação.10 Com essas considerações, Arendt quer chamar a atenção para a experiência no caso dos regimes totalitários, sobretudo o nazista: estes, em sua pretensão de domínio total, conseguiram amalgamar o pensamento racial, o pensamento antissemita, alguns preconcei-tos locais com pseudo teorias científicas11 e foram capazes de criar uma ideologia que regulava todas as ações estatais.

O impacto das ideologias que se transformaram em doutrina oficial do Estado foi tão violento que extinguiu as fronteiras entre o particular, o social e o público-político. Ao contrário dos pre-

9 Cf. Arendt (2004), “O pensamento racial antes do racismo”, p. 188.

10 “Na idade do progresso técnico e do positivismo, por outra parte, tal cobertura não pode ser mais de tipo religioso ou irracionalista. O anti-semitismo se cobre, por isso, de vestes ‘científicas’: as teorias do RACISMO, elaboradas por von Treitschke, Gobineau, Chamberlain e numerosos epígonos, prestam-se perfeitamente para ser utilizadas como sustentação teórica.” (BOBBIO, 1998, 43).

11 Em Origens do totalitarismo, Arendt fala do conde de Gobineau, “que inventou o racismo quase por acaso”. (ARENDT, 1989, p. 203)

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conceitos, que, por natureza, são limitados a épocas históricas e até mesmo a determinadas comunidades, as ideologias pretendem ser parâmetros para todos os homens, em todos os tempos e em todos os espaços. Sob a ampla cobertura das ideologias, não tem mais sentido falar em “preconceitos”, muito menos em “juízos”, haja vista que as premissas ideológicas tornam-se os únicos parâ-metros para compreender a realidade.12 E, à medida que possuem a chave interpretativa de toda a história, a lógica da ideia, anulam o papel discriminatório do preconceito e condenam o juízo aos clichês ordinários das palavras de ordem.

Entretanto, conforme observou Arendt, o fim dos regimes totalitários não significou um retorno ao bom senso como parâ-metro para ajuizar os fenômenos políticos, ao contrário: reforçou ainda mais a sensação de desespero em relação à própria política – ela afirma que esse é o ponto central do debate. Há, de fato, uma crise no mundo político moderno, que levou os homens a abando-nar o espaço público, refugiando-se na justificativa de que, dian-te do domínio político, resta aos homens se contentarem apenas com sua completa impotência. Por conseguinte, não há qualquer razão para interferir nos assuntos políticos, sendo melhor abdicar da capacidade de agir, cuidando apenas daquilo que diz respeito aos problemas pessoais. Para a autora, a impotência e a recusa em agir advêm justamente da incapacidade de julgar e compreender o que é de fato a política. Na opinião partilhada em geral, a política é vista como uma teia de mentiras, de interesses pessoais e de ideologias escusas. Isso parece justificar os noticiários dos jornais. E, em tempos de ameaça nuclear, como não pensar o fim e a des-truição da própria política como sendo algo inerente a ela mesma.

12 Mas isso só é possível se pressupormos que os homens estão limitados a uma única capacidade de juízo, que seria coerente com o raciocínio lógico de que a atitude de julgar funciona apenas como uma operação na qual toda a experiência particular deve ser sempre subsumida a parâmetros universais.

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Isso se explica principalmente pelo fato de uma comunidade se empenhar tanto na criação de instrumentos de destruição global.

Arendt reconhece que a política sempre esteve relacionada a preconceitos. Mas a própria atividade política deve cuidar para esclarecê-los e, se necessário, dissipá-los. O preconceito, ao ante-cipar o juízo, proporciona uma compreensão preliminar da reali-dade, que dispensa a necessidade de reflexão acerca daquilo que se deseja conhecer. É, por isso, um tipo de conhecimento que, por vezes, constitui um obstáculo para o juízo político. Mas isso não significa que se deva exigir dos homens que se livrem de todos os preconceitos, o que seria algo inexequível do ponto de vista da condição humana.13 O que importa é não tomar o preconceito como juízo definitivo, mas como uma manifestação que, mesmo sendo legítima, deve permanecer restrita a uma esfera pessoal, sendo vedada a sua intromissão em assuntos políticos. Podemos afirmar, então, que a isenção completa de preconceitos foi apenas um desiderato cultivado pela razão iluminista. Já que os homens são seres condicionados por tudo o que os cerca, e isso inclui tam-bém os próprios preconceitos, parece importante estabelecer as li-mitações de um juízo embasado em valores preestabelecidos. Uma das características principais de um juízo exclusivamente precon-ceituoso é o recurso à memória. Sem recorrer a um passado, não há como manter vivo um preconceito como padrão de juízo. Ver e avaliar o mundo através do preconceito é se colocar diante de um problema, na perspectiva de mero aplicador de um conheci-mento já consagrado pela tradição num tempo passado. Por isso, ao julgarmos com base apenas nos preconceitos, somos eximidos da responsabilidade, pois nunca somos nós mesmos os autores da

13 Gadamer ilustra muito bem esse ponto com a seguinte afirmação: “Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser.” (GADAMER, 1997, 416).

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nossa escolha. O nosso papel aqui consiste num esforço mental de adequar os novos acontecimentos à velha moldura dos valores e normas que já são dados como certos.

Por outro lado, se quisermos fazer um exercício de julgar poli-ticamente, além de voltar aos juízos passados, devemos ser capazes de confrontá-lo com o novo. Para isso, é necessário recorrermos não apenas à memória, mas, sobretudo à imaginação, na tentativa de comparar, pesar, compreender melhor e jamais forçar o novo a se enquadrar nas antigas formas de ver o mundo. Algumas conside-rações feitas por Beiner (1987, p. 197), em estreita conexão com o pensamento de Arendt, nos alertam para o fato de que o juízo po-lítico exige que façamos o esforço de compreender aqueles de cujo ponto de vista não compartilhamos e, por extensão, os preconceitos cultivados que podem ser extremamente desagradáveis. Não estar de acordo não nos libera da responsabilidade de buscar entender até mesmo aquilo que jamais aceitaríamos como valor ou como hori-zonte de nossas ações. Pelo contrário, o confronto com preconceitos e ideologias destrutivas só aumenta a nossa responsabilidade de jul-gar politicamente. Deste modo, não há juízo político sem o trabalho e o sacrifício da compreensão, sem a liberdade de pensar e refletir fora das premissas ideológicas, sem a responsabilidade por ser o cria-dor de uma nova postura diante do mundo. Por tudo isso, o juízo político talvez represente, no pensamento de Arendt, uma capaci-dade humana a ser cultivada a fim de restituir o sentido da política.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Trad. R. Raposo, revista por A. Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

______.Entre o passado e o futuro.Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2005.

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______.O que é política?. Ursula Ludz (Org.). Trad. Reinaldo Gua-rany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

______.Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

______.Responsabilidade e julgamento. Trad. Rosaura Eichnberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BEINER, Ronald. El juicio político. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1987.

BOBBIO, Norberto et all. Dicionário de política. Trad. Carmem C. Varriale et all. Brasília: EdUnB, 1998.

GADAMER, H.G. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt. Por amor ao mundo. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.

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Introdução

O termo “pária” foi utilizado para qualificar a condição dos judeus, pela primeira vez, por Max Weber (1864-1920), para quem o atributo de pária implicava o estado de opressão e de alhea-mento social dos judeus (ARENDT, 2005a, p. 50). O pária tam-bém pode ser encontrado em contraposição ao parvenu, entendido como o judeu assimilado que se emancipa no plano social (HEL-LER; FEHÉR, 1998, p. 135).

A característica comum entre a figura do pária e a do parve-nu está, de acordo com Arendt, na busca de uma saída individual ao rompimento imposto pela “sociedade” em que vivem. Por outro lado, o que os diferencia é que o parvenu renuncia à sua identidade pessoal de judeu como um requisito para se sentir um ser humano, ao passo que o pária abdica do “mundo” para assumir sua con-dição ou identidade de judeu. Sobre tal distinção afirma Arendt (Idem, 2005a, p. 74): “o realismo de um não é menos utópico que o idealismo do outro”.

1 Mestre em Ética e Filosofia Política pela UFPEL. Profa. Faculdade Anhanguera de Rio Grande.

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Interessa depreender a ligação do pária judeu com o proble-ma da cidadania no pensamento de Arendt. Em obras como Die Verborgene Tradition e The Jew as Pariah, voltadas para os temas especificamente judaicos, percebe-se o empenho da autora em compreender as questões relacionadas ao pária judeu e o desdo-bramento da condição de pária nos Regimes Totalitários.

Modelos de pária expostos por Hannah Arendt

O pária possui, como traços definidores, a sua recusa à as-similação, bem como a sua escolha em viver contra as regras existentes. Neste sentido, o pária, na visão arendtiana, pode ser encontrado em quatro figuras exemplares, a saber: o Schlemihl e o senhor do mundo dos sonhos, de Heinrich Heine; o pária consciente ou rebelde, de Bernard Lazare; a figura do vagabundo que encarna o “suspeito”, de Chaplin; e Franz Kafka, que encerra a tradição dos párias com o homem de boa vontade, traduzido pela persona-gem K. de O Castelo (2005a, p. 51).

Arendt ressalta que a figura do pária é uma criação dos po-etas, escritores e artistas judeus, além de se constituir como uma tradição oculta (Idem, 2005a, p. 50), a partir da qual é possível res-ponder, ou ao menos desnudar, a questão do alheamento político do pária e a sua responsabilidade diante do “mundo que o expulsa” ou do qual ele se retira (ARENDT, 2008, p. 31): “em que medida ainda temos alguma obrigação para com o mundo, mesmo quando fomos expulsos ou nos retiramos dele?”.

Dito isto, pode-se passar ao primeiro modelo de pária expos-to por Arendt, concebido por Henrich Heine, na figura de Schle-mihl: um pária nascido da estirpe dos poetas, figura contra a qual se voltava o escárnio e o antissemitismo e que, não obstante, pre-servava a inocente caricatura da desdita do judeu, capaz de fazer

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piada sobre sua própria desgraça (ARENDT, 1994, p. 149). Por meio de seu personagem, Heine tentava se aproximar dos párias, estabelecendo uma relação de pertencimento como judeu, e se es-forçando em ser o reflexo do “povo”. Esta aproximação pode ser compreendida pelo seu entendimento de que “sem povos não há poetas” (ARENDT, 2005a, p. 57). Entendimento que também é compartilhado por Arendt no ensaio intitulado Las enseãnzas de la historia (2005b, p. 39): “a terrível e sangrenta destruição dos judeus individuais veio precedida da destruição incruenta do povo judeu”.

Ainda de acordo com Arendt, por intermédio de Heine, um judeu-alemão de família pequeno-burguesa assimilada, as culturas alemã e judaica foram celebradas, não para os judeus ricos e de ex-ceção, mas para os judeus que, tais como os Schlemihl, viviam sob o signo da infelicidade terrena. Heine almejava com sua poesia e prosa demonstrar que não apenas o judeu oprimido, mas também o opressor são antinaturais e contrários à liberdade: o primeiro nasce livre, mas vende-se constantemente ao segundo (Cf. 2005a, p. 55). De sua perspectiva literária, o poeta vislumbrava uma política de emancipação para o povo judeu sem enveredar pelo nacionalismo judaico. O que ele propunha, em suma, era um cosmopolitismo ba-seado na convicção de que os judeus só podiam ser “humanos” se desejassem antes ser judeus (Idem, 2005a, p. 57). Sob a perspectiva cosmopolita proposta por Heine, ser judeu antes de ser humano im-plicava na necessidade do pária enquanto judeu e, apenas enquanto judeu, era possível capacitar-se como cidadão do mundo. Contudo, mesmo que a pré-condição seja sugestiva de um vínculo nacional ou, no mínimo, como súdito de um Estado, não se tratava para Hei-ne de pensar a questão sob o prisma da nacionalidade (ADLER; FEHÉR, 2007, p. 212), mas do pertencimento ao povo judeu.

O segundo modelo descrito por Arendt é o proposto por Ber-nard Lazare, do pária consciente ou rebelde. Na acepção deste autor, o pária torna-se rebelde quando adentra na cena política e

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assume como sua a causa de todos os oprimidos. Nesse sentido, a via pessoal de Lazare contribui para entender a posição do pária consciente ou rebelde (2005b, p. 54):

Lazare foi igualmente testemunha do julgamento de Dreyfus e decidiu não esperar a revolução mundial. À medida que foi encontrando-se cara a cara com o ódio crescente das massas deu-se conta, de uma vez por todas, de que era um pária e aceitou a sina. Foi o único entre os defensores de Dreyfus que ocupou seu posto como judeu consciente, em luta pela justiça em geral, mas para o povo judeu em particular.

Inserido no mundo como um pária, cabia ao judeu, de acordo com Lazare, defender-se na qualidade de pária, resistindo à opressão. A resistência implicava, entretanto, a renúncia ao estereótipo poético do Schlemihl, ou do isolamento na natureza ou nas artes, no caso da apolitia do parvenu, para o enfretamento dos assuntos de interesse no “mundo dos seres humanos” (ARENDT, 2005a, p. 58-59).

O outro modelo de pária é encontrado em Chaplin, consi-derado o artista mais popular do século XX. O personagem de Chaplin, o vagabundo, aos olhos da sociedade, é sempre um sus-peito. A figura do pária suspeito, que não consegue pertencer a um lugar, tem na inocência e no atrevimento pontos de contato com o Schlemihl, de Heine; mas, ao contrário da figura do poeta, a ino-cência do pária de Chaplin não é uma característica individual, que emerge do seu caráter, mas expressa uma tensão da sociedade e de seu aparato coercitivo em relação aos crimes praticados pelos párias, como afirma Ebert (2004, p. 295): “Sua esfarrapada apa-rência o estigmatiza e leva o povo a evitá-lo e a estereotipá-lo; um vagabundo não é... um dos nossos”. O desajuste do pária suspeito cria uma tensão que resvala para o cômico e se estabelece no ce-nário em que “seus feitos e crimes não têm nenhuma relação com

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o castigo que lhe sobrevém” (ARENDT, 2005a, p. 63). Ainda nas palavras da autora (Idem, 2005a, p. 62):

Chaplin move-se em um mundo exagerado grotescamente pelo real, de cuja hostilidade não o protegem nem a natu-reza nem a arte, mas somente as artimanhas que inventa e, às vezes, a inesperada bondade e humanidade de al-guém que passa casualmente.

Da figura do pária suspeito é possível verificar o problema da ausência de correspondência ou proporcionalidade entre as ações praticadas e a coerção exercida contra aqueles que estão fora da realidade, ou, em outras palavras, estão fora da proteção jurídica do Estado. O medo da lei, isto é, o medo da proteção que a lei for-nece aos que são considerados efetivamente cidadãos, representa esta desproporção, pois a violência é exercida sem relação com o que foi efetivamente feito. Neste contexto trágico, o cômico se instala pelo viés da ousadia dissimulado-irônica do pária suspeito diante dos representantes da lei (Ibidem, 2005a, p. 63).

O pária, presente na literatura de Franz Kafka, encerra a tradição oculta dos párias. Para o presente estudo, interessa es-pecificamente o personagem de Kafka, protagonista da novela O castelo, o senhor K. que representa o pária que não mais almeja viver a expensas de privilégios ou da assimilação, nem alheio ao mundo. A personagem K. é um estrangeiro que chega a uma al-deia, cujas ordens e leis emanam de um castelo inacessível e que em tudo assemelha-se ao que se conhece contemporaneamente como burocracia. O personagem demonstra desde o início o seu intuito de não de se afastar da realidade. Para tanto, ele precisa se inserir na comunidade, fixar uma residência, cometer ou praticar atos da vida civil, como, por exemplo, casar-se, tarefa impossível para quem é um “nada”, um estranho ou um indivíduo excedente, quem está “sobrando” (KAFKA, 2008, p. 61, com grifo do autor):

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O senhor Klamm é um senhor do castelo por si só isso já significa uma posição muito elevada, independente do posto que ele possa ocupar. Mas o que é o senhor, que nos solicita aqui com tanta humildade permissão de se casar? O senhor não é do castelo, o senhor não é da aldeia, o senhor não é nada. Infelizmente porém o senhor é alguma coisa, ou seja, um estranho, alguém que está sobrando e fica no meio do caminho.

Não fugir à tessitura das relações humanas implica em não escapar da realidade, ou da convivência comum, e isso corres-ponde às demandas do pertencimento mais elementar, enquanto membro de uma comunidade juridicamente organizada. O anseio por pertencer a um grupo e exercer os direitos e deveres daí ad-vindos são aspectos característicos da personagem K. e, no plano político, liga-se à sua vontade de ser partícipe de uma comunida-de, de encontrar um “lugar” a que possa pertencer. Em sua filo-sofia política, Arendt acentua o “pertencimento ao mundo” como condição para a ação política, tornando concreta a existência hu-mana. Transpondo para o Direito o entendimento arendtiano é remetido à personalidade jurídica, à aquisição dos direitos civis e das liberdades públicas que permitem o pertencimento efetivo a uma comunidade em que os assuntos que a todos dizem respeito podem ser sopesados politicamente. Tal pertencimento propicia também a proteção aos direitos fundamentais, pois pressupõe que o indivíduo seja sujeito de direitos e deveres. Dito de outro modo, o pertencimento envolve a capacidade de possuir direitos, de estar protegido pelas normas, e de ser também “capaz” de assumir os deveres impostos igualmente a todos pelo convívio comunitário. Nos termos de Arendt (2005b, p.73):

Só quando chegamos a nos sentir carne e osso de um mundo no qual, como qualquer outra pessoa, participa-

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mos em um combate contra forças superiores e às vezes esmagadoras, e sem embargo com possibilidades de vitó-ria, por pequenas que sejam, e com aliados, por poucos que sejam – só quando reconhecemos o fundo humano sobre o qual os recentes acontecimentos se desenvolve-ram, sabendo que o que foi feito o foi por seres humanos -, só então seremos capazes de livrar o mundo de seus atri-butos de pesadelo. Esses atributos tomados em si mesmos e vistos de fora – por pessoas que se consideram isoladas a princípio do mundo de pesadelo e que estão, por isso, dispostas a aceitar o curso deste mundo ‘com realismo’ – podem bloquear qualquer ação e excluir-nos por completo da comunidade humana.

A personagem de O castelo, K., em seu intento de pertencer à aldeia, pleiteia o mínimo, o básico, que deve ser comum a todos os seres humanos, a saber, pertencer a uma comunidade, ter direitos e deveres, estar protegido pelas leis. Neste contexto, o caminho apontado por Kafka é o da busca pelo fundamental para a vida humana. Entretanto, tal busca, no decorrer da obra, demonstra ser a mais penosa, quiçá impossível (Cf. 2005b, p. 74). Ser tratado com dignidade apenas por ser um homem e nada mais, era algo fora do horizonte do pária que estava fora da proteção jurídica. E, mes-mo o judeu assimilado, que gozava de uma frágil proteção jurídica calcada no “privilégio” por sua condição de “gênio”, como Stefan Zweig, ou por seu poder econômico, percebia que “neste mundo insensato é muito mais fácil ser aceito como um ‘grande homem’ que como um ser humano” (ARENDT, 2005b, p. 9).

Para Arendt, Kafka oferece a possibilidade de pensar a cidada-nia, ou o pertencimento a uma comunidade organizada por normas que garantam um tratamento igual para todos, independentemente do lugar de onde venham, dos atributos étnicos, do talento pessoal, ou quaisquer outras intercorrências. Assim, as aspirações básicas de

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sua personagem, como ter um trabalho, constituir uma família e desfrutar da proteção das leis vão de encontro às benesses conce-didas (“exceção” ou privilégio) pelo senhor do Castelo, e colocam em pauta a realidade dos judeus no período entre o final do século XIX até a segunda metade do século XX. Percebe-se que o pária da ficção kafkiana coloca-se como um tipo distinto dos outros modelos de pária descritos por Arendt. O seu traço distintivo é o objetivo de ser um cidadão, de ocupar o espaço da igualdade jurídica que é o pressuposto elementar para se inserir no espaço público sem dei-xar aniquilar-se pela desonra de sua condição2. A “desonra” é um estigma ínsito à condição do pária e está ligada ao não-reconheci-mento do judeu como um “igual” e à categorização negativa dos indivíduos em virtude de condições como a do nascimento.

O pária kafkiano difere do modelo estereotipado do Schle-mihl. Difere também do pária rebelde, de Lazare, que se insurge contra a opressão sem que esta se coloque como o pleito pelo di-reito de ter um direito ou ainda da figura ingênua do transgressor do “suspeito”, irremediavelmente à margem da sociedade. O pária kafkiano é um indivíduo que “exige” ter o direito a ter direitos e, portanto, de ser aceito e protegido dentro de uma comunidade juridicamente ou politicamente organizada. Ou seja, ele não se aliena e nem se coloca “acima” das normas para nelas ser inserido, e busca o seu direito básico de ser um cidadão e de poder consti-tuir, a partir disto, um mundo comum com os outros indivíduos que compõe o grupo ao qual pertencem conjuntamente (AREN-DT, 2005b, p. 106). Esses atributos fazem da personagem de K.

2 A desonra da condição do pária pode se encontrada, por exemplo, no relato do sonho de Rahel Varnhagen (ARENDT, 1994, p. 120): “Finalmente, Rahel perguntou: Conheceis a desonra? Apenas pronunciou esta palavra, impôs-se o silêncio, e as duas amigas se separaram dela perplexas e assustadas. Nesse instante, Rahel soube que estava completamente sozinha e que não poderia arrancar esse sofrimento de seu coração. E então despertou”.

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o que Arendt denomina de “homem de boa vontade”, e que se aplica a todos os seres humanos de maneira natural, uma vez que o “homem de boa vontade” “nunca exige mais direito do que o que corresponde a todo ser humano e tende a não conformar-se nunca com menos” (Idem, 2005b, p. 69).

Últimas considerações

A concepção de cidadania em Arendt tem como traço essen-cial a preocupação com a experiência política vivenciada no sécu-lo XX e que resultou nos regimes totalitários, em que os judeus e outros grupos, como os ciganos, por exemplo, após um metódico processo, eram destituídos do pertencimento a uma comunida-de jurídica, e da proteção dela oriunda. Por este viés, a cidada-nia implica, no pensamento arendtiano, ao pertencimento a uma comunidade organizada politicamente, sem o qual não é possível conceber o indivíduo torna-se um “algo” vulnerável, exposto à eli-minação. Esta visão desenvolve-se no cenário político em que os modelos de párias colocaram-se dramaticamente perigosos. Além disso, na perspectiva dos modelos de pária assume sentido a ex-pressão “direito a ter direitos”, cunhada pela autora em 1951, na obra Origens do Totalitarismo (ARENDT, 1989, p. 332).

Arendt lembra que a perda da cidadania, isto é, da capacidade de ter direitos (1989, p. 320) destituía o indivíduo do mínimo, como, por exemplo, ter uma certidão de nascimento, primeiro passo para pertencer juridicamente a uma comunidade e enfatiza a necessidade de um (LAFFER, 1988, p. 166) “acesso pleno à ordem jurídica que somente a cidadania oferece”. Sob este prisma, o problema do pária e a questão da cidadania se imbricam no pensamento de Hannah Arendt e evidenciam a insuficiência dos modelos de pária baseados no privilégio, na assimilação, na fuga da realidade ou na rebeldia

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individual. A proteção oferecida pela personalidade jurídica, pela persona, cobre a nudez e a abstração humanas, ou o estado natural dos homens, como acentua Arendt (2011, p. 141).

Assim, a capacidade de ter “direitos” é a primeira via que possibilita aos indivíduos não serem tratados como material de descarte e os protege de serem destruídos impunemente.

Referências

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_____. Una revisón de la historia judia y otros ensayos. Introd. Fina Burulés; trad. Miguel Candel. Barcelona: Paidós, 2005b

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_____. Sobre a Revolução. Apresentação Jonathan Schell e trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

EBERT, Roger. A magia do cinema. Trad. Miguel Cohn. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

HELLER, Agnes; FERENC, Fehér. A condição política pós--moderna. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

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O Judeu como Pária e a Questão da Cidadania no Pensamento Político de Hannah Arendt

KAFKA, Franz. O Castelo. Trad. e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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da Questão Judaíca1

Ricardo George de Araújo Silva2

Introdução

O presente texto tem por objetivo principal analisar o pen-samento de Hannah Arendt sobre a questão da Política e da Li-berdade. Tendo isso em vista consideramos como pano de fundo o móbile de sua filosofia política, que foi em nossa perspectiva, a questão Judaica e toda sua relação com a problemática da assimila-ção, sobretudo na emergência do totalitarismo. Assim, nossa abor-dagem privilegiará dois momentos, a saber: primeiro abordaremos o totalitarismo e seu recurso de destruição e violência que acabou por anular a liberdade, sentido da política. Em seguida, discutiremos a figura do pária rebelde no contexto da questão judaica apontando este como figura política central do pensamento de Arendt, por en-carnar a ação enquanto resistência e ocupação do espaço público.

Assim, ao propormos uma reflexão em torno da política e da liberdade, queremos, seguindo os passos de Hannah Arendt,

1 Texto revisado por Sheyla Vieira Lima, e-mail: [email protected] ]

2 Doutorando em Filosofia – UFC. Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA – Sobral-CE.

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pensar a recuperação da dignidade da política. Nosso caminho para tal empreitada irá considerar os elementos históricos funda-mentais vivenciados pela pensadora e, para tanto, traremos à baila a questão Judaica e suas expressões em duas direções, a saber: i) a luta em favor de direitos historicamente negados (postura do pária consciente), e ii) a assimilação, que representou a negação da po-lítica (posição arrivista do parvenu). Assim, buscaremos pensar a recuperação da Política partindo do entendimento autorizado pela conceitografia arendtiana de que a política se expressa via liberda-de e, portanto, nesta emerge seu sentido e significado fundamental (ARENDT, 2010, p. 161).

Totalitarismo e a questão judaica: necessidade ou liberdade

Ao tratarmos o totalitarismo o fazemos considerando o par conceitual, liberdade e necessidade. Nossa escolha se justifica por esses terem estreita relação com nossa discussão em torno da figu-ra do pária rebelde que visa à liberdade, contrariando a lógica dos que sucumbem diante da necessidade tomando esta como fim da política. Nesta direção são esclarecedoras as palavras de Aguiar (2012, p, 39) ao afirmar que “Em quase todos os textos arendtianos comparece a ideia de que a tradição ocidental, especialmente na modernidade, deixou de ligar política à liberdade para relacioná-la à necessidade”. Dito isto, destacamos o totalitarismo, como evento de negação do fundamento da política na medida em que nega a liberdade, o espaço público e o mundo por meio da violência e via uso sistemático do terror. Este, ainda, defende e busca programar a uniformidade como representação do paradigma ideal de socie-dade. Neste sentido, o totalitarismo avançou como uma “luta pelo domínio total de toda a população da terra, a eliminação de toda

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A Figura do Pária Rebelde: Expressão da Polítca e da Liberdade em Hannah Arendt no Contexto da Questão Judaíca

realidade rival não totalitária, eis a tônica dos regimes totalitários” (ARENDT, 1989, p. 442) tanto quanto a uniformidade que negou a existência de tantos, ao negar a pluralidade, condição vinculan-te da ação e da política (ARENDT, 2002, p. 15). Negação esta que alcançou os judeus e, historicamente, atualizou, no contexto político do século XX, a problemática em torno da chamada ques-tão judaica, pois trouxe à ordem do dia todo percurso político da história judaica, através da aceitação de sua condição de judeu e, portanto, no enfrentamento político por direitos que assegurassem essa condição ou simplesmente a saída consagrada por muitos ao tornarem-se assimilados. Ao optarem pela assimilação, muitos ju-deus se viram na condição arrivista em prol do reconhecimento. Conscientes ou não, naquele momento aceitavam tudo o que lhes era imposto. ‘Caminhavam como cordeiros para o aprisco’, isto é, negavam a si o direito à resistência e à luta por seus direitos. Fato esse que Arendt considera uma negativa representação em torno do político na medida em que, como ela afirma, “a política é a forma e o lócus apropriado da resistência” (ARENDT apud AGUIAR, 2004, p. 252), e “é a possibilidade de resistência que constitui a liberdade humana.” (ARENDT, 1993. p. 283).

A recuperação da política pela figura do pária consciente ganha centralidade como elemento necessário para se pensar a política e sua estrutura a partir da ação e da ocupação do espaço público, pois entendemos que a liberdade, para se realizar efetivamente, precisa da ação, categoria política fundamental (ARAÚJO SILVA, 2011, p. 12) para efetivar sua aparição em um espaço público concreto.

Nesse contexto, acima apresentado, podemos destacar duas formas de encarar a contingência histórica, a saber: a do pária consciente que enfrenta o dilema da negação de sua pessoa en-quanto portadora de direitos e resiste, e a postura do parvenu arri-vista, que não tendo coragem de dizer não à opressão, faz-se assi-milado para salvar-se, na condição de fuga particular do problema.

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A partir do contexto exposto emerge uma hipótese, qual seja: a liberdade enquanto expressão máxima da política sucum-biu diante da emergência da necessidade. O processo histórico que envolve a questão judaica fez surgir à opção privilegiada pela re-produção da vida como necessidade, fazendo sucumbir à liberdade e, com esta, a política. De algum modo, no processo de assimila-ção sofrido pelos judeus, ocorreu a vitória do animal laborans em detrimento do homem de ação capaz de fala e movimento na cena pública, ou seja, de alguma forma a política foi deslocada para o segundo plano, na medida em que os indivíduos, sobretudo os ju-deus perseguidos, abandonaram sua identidade e, de certa forma, sua liberdade em favor da assimilação e aceitação social. Assim, entendemos que emerge uma primeira questão, qual seja: identifi-car se efetivamente isto ocorreu ou se esta opção, pela necessidade e salvaguarda pessoal, foi pontual e não estrutural. Se estrutural, consideramos maiores implicações para a política enquanto ex-pressão da liberdade e ocupação do espaço público. Nossa hipótese parte do pressuposto de que foi esse o fato ocorrido, e que conso-ante o pensamento de Hannah Arendt buscaremos, ao longo do texto, trazer a baila tais questões não com pretensão de esgotá-lo mais de ser uma reflexão sobre o mesmo.

Assim, ao pensarmos a Política e a Liberdade em Arendt a partir da questão judaica o fazemos por entender que nesta aborda-gem reside o germe de toda sua teoria política. Arendt considerou a questão judaica em toda sua filosofia como um fio norteador de seu pensamento. Isto é bem expresso na passagem “Eu tenho recusado abandonar a questão judaica como ponto central de minha história e pensamento político”. (apud BERNSTEIN, 1996, p. xii [tradução nossa]). Arendt certamente não se interessou pela história judaica do ponto de vista de um historiador que pretende recriar significa-dos importantes à memória de uma cultura ou de teólogo que bus-ca enaltecer a tese de um povo escolhido enquanto filhos de Javé-

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Yiré3. Para Arendt, o ponto central, que interessa sobre a questão judaica, é o fenômeno político de se afirmar via discurso e ação na cena pública como membro do povo Judeu. Portanto, a ordem do problema reside na questão de garantir direitos e se responsabilizar pelo mundo. Nesta direção parece-nos exemplificadora a passagem, apontada por Richard Bernstein, referente à indagação feita à Aren-dt a respeito da existência de algum evento que determinasse sua opção pela política, e ela, sem hesitar, responde:

‘Eu diria que 27 de fevereiro de 1933. O incêndio do Reichstag, e as prisões ilegais que se seguiram durante a mesma noite’. A partir desse momento ela se sentia res-ponsável, ou seja, ‘Eu não era mais da opinião de que se pode ser simplesmente um espectador’. (ARENDT apud BERNSTEIN, 1996, p. 71) [tradução nossa]

Arendt se encontrou, a partir desse momento, comprometida com o mundo, e sua teoria política se inscreveu nesse horizonte de sentido, isto é, foi marcada pelo compromisso com a coisa pública, sobretudo com a liberdade. Neste contexto emerge toda a luta judai-ca por reconhecimento e liberdade e Arendt, afirmando seu com-promisso com o mundo, o faz a partir da questão judaica, quando

3 O Deus da providência – segundo a tradição do Talmud que fundamenta e esclarece a Torá, os cinco primeiros livros do antigo testamento na tradição judaico-cristã, indicam Deus como o providente. Os Estudos recentes do Judaísmo consideram que aqueles judeus que negaram o Talmud acabaram por se assimilar ou desapareceram. Os Rabinos levam isto tão a sério que a muito declaram “Não há antídoto maior contra a assimilação judaica do que o estudo da Torá”. E esta é uma das razões pelas quais, juntamente com a prática da caridade, constitui o maior dos mandamentos divinos. Para mais sobre o assunto é esclarecedor cf. The Essential Talmud. Rabbi Addin Steinsltz, Basic Books, Harper Collins Publishers. 2006.

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assume a arriscada tarefa de propiciar fuga a judeus e de coletar de-clarações antissemitas4 ainda não conhecidas fora da Alemanha.

Eis a perspectiva de Arendt do fenômeno político: lutar pela liberdade. É como se, a todo o momento, ela estivesse a chamar nossa atenção para o fato de que; quem cala de certa forma concor-da (ARENDT, 2004a, p, 79), então só há uma saída: resistir. Essa postura nos parece contrária à visão assimilacionista, que, visando uma solução particular, silenciava diante dos problemas do mundo, como se estes nunca fossem alcançá-los, trazendo à tona a represen-tação de uma vida em fuga constante, negadora de si e da liberdade.

A figura do Pária Rebelde como expressão da política

A política enquanto ocupação do espaço público e enquanto possibilidade de movimento, ação e discurso representa, em nosso entender, a melhor opção de luta e resistência, como apontada aci-ma. O equívoco de salvar-se sozinho pela assimilação demonstra o quanto o elemento político se encontrava desqualificado na pers-pectiva da questão judaica, tanto por parte da cúpula culta e sábia, como dos ricos parvenus e do pária schnorrer. Fato que se manifesta-va dentro e fora do judaísmo de forma que quem queria ajudar não entendia a ordem da questão e localizava esta na esfera da educação e da cultura, quando o problema tinha outro centro de gravidade.

4 Consoante Bernstein, Arendt ajudou outros a fugirem da Alemanha. Ela também ajudou seus amigos sionistas. Foi essa atividade que levou ao incidente que a obrigou a fugir da Alemanha. Os sionistas queriam documentar as declarações antissemitas, que não eram conhecidas fora da Alemanha. Como ela não foi explicitamente identificada como sionista. Arendt era a pessoa ideal para realizar essa pesquisa na biblioteca Pública do Estado Prussiano. Ela logo se prontificou a ajudar [...]. Ela foi posteriormente detida, presa e interrogada por oito dias. Esta é a conta dela no acontecido (BERNSTEIN, 1996, p. 71) [tradução nossa].

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Consoante Arendt “um dos fatos mais infelizes da história do povo judeu tem sido exatamente este: somente seus inimigos, e quase nunca seus amigos, compreenderem que a questão judaica era antes de tudo uma questão política” (ARENDT, 1989, p. 78).

O pária Rebelde, tão bem expresso na pessoa de Bernard La-zare, em sua atitude proativa de ocupação dos espaços públicos e em suas lutas sistemáticas por direitos que alcançassem a raiz do problema, representa, em nosso entender, a figura chave da luta no interior da questão judaica e, por que não dizer, a figura chave da teoria política de Arendt. O pária rebelde assume tal condição diante dos fatos postos, portanto da história real. Ele não está bus-cando uma solução idealista a partir do que deveria ser, ao con-trário, considera a questão pelo que é. Ao considerar a questão nestes termos, a figura do pária rebelde revela o premente valor da política frente as questões que parecem, num primeiro momen-to, mais relevantes, como a salvaguarda dos próprios interesses, o que justificaria momentaneamente a situação, todavia, tal postu-ra acabaria por esvaziar o sentido da política na medida em que coloca a médio prazo a liberdade e a constituição de direitos em risco, pois se salvando parcialmente, abandona a cena pública e as conquistas ainda não alcançadas pelos demais. O pária consciente é, na perspectiva de Hannah Arendt, o indivíduo da política, um genuíno representante, diríamos nós, do politai, isto é, do cidadão que se ocupa da coisa pública, em franca oposição ao idion, que ao expressar sua idiotia vinculavam-se apenas as suas questões pesso-ais regidas pela necessidade de ordem da subsistência. Destarte, o pária rebelde por ser consciente, assevera Arendt:

Entra na arena política e traduz o seu estatuto em ter-mos políticos, ele se torna necessariamente um rebelde. A ideia de Lazare foi, portanto, que o judeu deva sair aberta-mente como representante do pária, ‘uma vez que é dever

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de cada ser humano resistir à opressão’. Ele exigindo isto, solicita ao pária abdicar de uma vez por todas a prerroga-tiva de schlemiel, saltar do mundo da fantasia e da ilusão, renunciar a proteção confortável da natureza, e se enten-der com o mundo dos homens e mulheres. (ARENDT, 2007, p. 284) [tradução nossa]

Os párias rebeldes não são apenas tipos ideais, representam mais do que isso, são personas históricas que, discutindo e rediscu-tindo sua condição, buscaram reconciliar-se com o mundo do qual foram expulsos. Expressam bem isso figuras contundentes, como a de Bernard Lazare, que lança a questão judaica para a cena pú-blica. O pária, nesse contexto, emerge como “um não conformista que rejeita os constrangimentos da sociedade para poder manter--se fora dela” [outside] (ARENDT, 2004b, p.52). Grifo nosso

Portanto, o fato de lutar pelos direitos, e não apenas pelos direi-tos como homem e cidadão, mas, sobretudo, como judeu, vem à tona como questão central na medida em que não é um conceito vazio em torno de ter direito, mas sim o direito substancialmente posto, em um tempo e em um lugar determinado alcançando seres reais. Arendt tem plena consciência de que a figura do pária rebelde está no ho-rizonte de sentido de sua própria história tanto como pessoa quanto como judia que politicamente necessita se afirmar no mundo.

Considerações Finais

Posto isso, nos parece claro que o par conceitual, liberdade e necessidade encontra forte ressonância com a questão judaica. Na medida em que entendemos a noção do social em Arendt estrita-mente ligado com a problemática judaica e sua posição arrivista e assimilacionista. Entendemos que a teoria política da pensadora em questão se construiu a partir dessa matriz, qual seja: a questão

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judaica. Tal fato conduz Arendt a enxergar a tal questão sempre como um marco político por excelência. Em carta a Jaspers, ela escreve “perguntam-me se eu sou alemã ou judia. Para ser honesta, devo dizer que, de um ponto de vista individual e pessoal, isso me é completamente indiferente [...]; no plano político, falarei sempre e unicamente em nome dos judeus” (ARENDT apud KRISTEVA, 2002, p. 103). Passados dez anos dessa enunciação, Arendt se rea-firma ao escrever a seu marido Heinrich Blücher “sou uma mulher judia, não Alemã, o que significa ser uma imigrante” (ARENDT apud COURTINE-DDENAMY, 2004, p. 218) e seguindo o prin-cípio da autoafirmação como princípio político em 1964, confirma seu posicionamento em uma entrevista a Günter Gaus “pertencer ao judaísmo, porém, tornou-se manifestamente meu próprio pro-blema, e meu próprio problema político. Exclusivamente político”. (ARENDT, 1993, p.133).

Posto fim, entendemos ter demonstrado em linhas gerais o que pretendemos ao trazer à baila a questão política em Hannah Arendt a partir da questão judaica, ou seja, entendemos que a re-levância da figura do pária rebelde ultrapassa o espectro de uma forma literária de apresentar a questão, ao contrário, recai na re-flexão política que indica a resistência como forma premente de garantia da liberdade na maioria dos casos, mas, sobretudo, nos momentos limites da vida política.

Referências

AGUIAR, Odílio Alves. A resistência em Hannah Arendt: da polí-tica à ética, da ética à política. In: DUARTE, André ET AL. A banalização da violência – a atualidade do pensamento de Han-nah Arendt. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004.

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Ricardo George de Araújo Silva

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ARENDT. Hannah. Jewish Writings. Edited by Jerome Konh and Ron H. Feldman. New York. Schocken Books. 2007.

_____________.O que é a política? Trad. De Reinaldo Guarany. Bertarand Brasil. Rio de Janeiro. 2002.

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_____________. Origens do Totalitarismo. Trad.Roberto Raposo, Cia das Letras,São Paulo, 1989.

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COURTINE-DENAMY.Sylvie. O cuidado com o mundo-diálogos entre Hannah Arendt e alguns de seus contemporâneos. Trad.Maria Juliana. Editora UFMG. Belo Horizonte, 2004.

KRISTEVA, Julia. O gênio feminino – a vida, a loucura, as palavras (Tomo I) – Hannah Arendt. Tradução Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Rocco, 2002

ARAÚJO SILVA. Ricardo George de. A categoria da Ação na abor-dagem de Hannah Arendt. In: Ciências Humanas em Debate. Org: Ricardo George de Araújo Silva Et al, Ed. UFRPE. Recife. 2011.

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A Figura do Pária Rebelde: Expressão da Polítca e da Liberdade em Hannah Arendt no Contexto da Questão Judaíca

BERNESTEIN, Richard J. Hannah Arendt and the Question Jewish. Mit Press. Cambridge, Massachusetts. 1996.

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A Ascensão do Social e a Privação da Presença Pública

Celso Antônio Coelho Vaz1

Neste artigo apresentarei algumas das consequências para a condição humana provocadas pelo que Hannah Arendt denomi-nou de “a ascensão do social”, cujo corolário foi o advento da socie-dade de massa. Para a autora esta sociedade assumiu as seguintes características. 1) A transferência da satisfação das necessidades vitais da esfera privada para a esfera pública. 2) A superioridade da esfera social sobre a esfera política. 3) A promoção do compor-tamento em detrimento da ação. 4) A subordinação das relações humanas ao princípio organizacional da divisão social do trabalho e da produtividade. 5) A transformação do espaço público em um mundo de relações anônimas entre indivíduos. 6) A substituição do caráter privativo e mundano da propriedade privada pelo cará-ter individualista e cumulativo de riqueza. 8) O desencantamento do mundo público que privou o homem de presença pública, difi-cultando a objetivação de um mundo comum.

Por causa dos limites de páginas dos artigos a serem publicados nesta coletânea abordarei apenas os aspectos 1, 2 e 3 supracitados.

1 Doutor em Estudos Políticos pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor Associado IV na UFPA.

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Celso Antônio Coelho Vaz

A Promoção do Social

De acordo com Arendt (1983) a promoção do social sobre o político originou-se do erro na tradução para o latim do conceito de política de Aristóteles, o qual foi traduzido para social. Este erro conceitual foi acentuado pela sua aplicação à concepção mo-derna de sociedade. Para Arendt o trabalho, a obra e a ação são condicionados pela mundanidade, que se expressa na localização complexa da realização de atividades e na fabricação de coisas pe-los homens na presença de outros homens. Eis o que dá sentido humano a mundanidade.

Se o trabalho e a obra podem ser realizados na solidão, po-rém eles somente assumem um sentido mundano quando são hu-manizados, isto é, quando eles são realizados na teia das relações humanas. Entre as atividades da vita activa, “somente a ação é prerrogativa do homem [...] (porque) depende inteiramente da constante presença de outros.” (1983, p.32)2. É neste sentido que se pode compreender a concepção aristotélica do homem como zoon politikon e animal socialis: a ação vinculada à vida em comum. Para Arendt, a tradução latina desta concepção inverteu-a porque concebeu o zoon politikon subordinado ao animal socialis por meio da proposição: “homo est naturaliter politicus, id est, socialis” (p.32) e assim o político foi substituído pelo social. Para Arendt foi a partir desta inversão conceitual que o social tornou-se a condição humana fundamental.

Se para Platão e Aristóteles a ação dependia da vida em co-mum, para ambos isso não significava que a ação (política) e a vida em comum (social) sejam a mesma coisa porque esta é um

2 A referência bibliográfica das citações é a obra de Hannah Arendt La Condition de L’homme Moderne. Paris:Calmann Lévy, 1983. Doravante, indicarei apenas as páginas e as citações foram livremente traduzidas por mim .

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condicionamento biológico compartilhado tanto pelo animal hu-mano quanto pelos outros animais. Porém, o animal humano não se limita a este condicionamento pois se organiza politicamente. A vida social do animal socialis se limitava à casa, à família e às relações de parentesco. A vida do zoon politikon tinha lugar no es-paço público, o bios politikos, e não se confundia com a vida social. Os seres humanos se distinguem dos outros animais porque eles ao fundarem a polis romperam com uma vida em comum vincula-da à esfera social e limitada à reprodução da espécie por meio de relações de parentesco. Iguais aos outros animais por terem uma vida social e serem animais sociais eles, no entanto, se distinguem daqueles ao inventarem a vida política, a vida pública (bios politi-kos) tornando-se zoon politikos.

O social e o político dependem da presença de outras pesso-as, no entanto a vida em comum da esfera social é orientada pelo senso da necessidade e da utilidade enquanto que a política se orienta pela ação (praxis) e pelo o discurso (lexis) o que permite a discussão e o acordo sobre os assuntos públicos. Ação e discurso eram indistintos e se materializavam pela linguagem. A polis sen-do fundada, o discurso se transformou em persuasão ganhando importância sem modificar o caráter político da polis porque “ser político, viver em uma polis, significava que tudo era decidido por meio de palavras e da persuasão e não pela força ou pela violência.” (p. 35-36 ). Força e violência eram atitudes não políticas porque específicas do mundo social, da vida doméstica, que regidas pelo senso da necessidade e da utilidade visavam dominar a natureza e os seres humanos. Isto é o que está na origem do poder despótico do chefe de família e dos chefes bárbaros.

Para Arendt o uso do conceito moderno do social aplicado à sociedade moderna agravou a proeminência do social sobre a políti-ca, a qual foi plenamente realizada com o advento do Estado-nação. Para o pensamento político antigo havia uma clara distinção entre

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as esferas públicas e privadas, entre polis e a família, entre as ativi-dades voltadas para a construção de um mundo comum e as desti-nadas à manutenção da vida. Com o advento da sociedade moderna, estas distinções tornaram-se opacas. O Estado-nação foi edificado sobre a fusão do público e do privado, de modo que ele apareceu como uma administração doméstica de escala nacional gigantesca, projetada para atender as necessidades cotidianas de um povo, “nós chamamos sociedade um conjunto de famílias economi-camente organizadas em um fac-símile de família supra- humano, cuja forma de organização política é chamada de nação.” (p.38) .

Portanto, assuntos que antes eram do domínio privado e fa-miliar, como as atividades econômicas para manter as pessoas vivas e garantir a reprodução da espécie humana, tornaram-se assuntos públicos, bem expressos pelos termos de economia nacional, econo-mia social e volkswirtschaft. Para os gregos a distinção fundamental entre as esferas públicas e privadas baseava-se na distinção entre o mundo da liberdade e o mundo da necessidade. Na esfera privada ou social é a necessidade de garantir a vida que engaja os homens em relações sociais. A esfera pública, ou política, que se realizava na polis era a esfera da liberdade. Poderíamos nela participar desde que livres do império da necessidade, do mundo social em geral e das necessidades vitais no seio da família, em particular.

Para Arendt, a transferência dos assuntos privados (ou das necessidades vitais) próprias do mundo social para o domínio público significou a transferência da força e da violência para o mundo da política. Doravante o mundo social, onde reina a ne-cessidade de preservar a vida, concentrando toda a atenção do Estado-nação, tornou a força e a violência monopólios do gover-no. O pensamento medieval e sua concepção de uma sociedade de fiéis; o pensamento político moderno de Hobbes e sua visão de uma sociedade de indivíduos em disputa pela aquisição; o pensamento de Locke de uma sociedade de proprietários e o de

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Marx de uma sociedade de produtores, todas essas correntes de pensamento contribuíram para realizar a inversão entre o social e o político. Na verdade, é a liberdade de indivíduos sociais (fiéis, compradores, proprietários, produtores) e a liberdade da sociedade “que requer e justifica alguma restrição da autoridade política. A liberdade encontra-se no campo dos direitos sociais, a força e vio-lência tornaram-se monopólio do governo.” (p.40 ).

O pensamento político moderno realizou a inversão entre o social e o político, modificando a concepção do pensamento anti-go. Esta inversão consistiu em conceber o uso da força e da violên-cia como dispositivos políticos por meio da transferência da neces-sidade para o domínio público. De acordo com a filosofia política grega, a violência e a força eram justificadas porque libertavam os cidadãos do fardo da necessidade para se dedicarem à vida da po-lis, a esfera da liberdade. Neste sentido, a violência e a força eram pré-políticas porque permitiam a libertação do homem do estado de eudomia: a dependência da riqueza, da saúde, da força e da violência, ou seja a dependência do infortúnio. O homem animal social era, portanto, pré-político por causa da necessidade de ele dominar a natureza e os próprios homens, razão pela qual a esfera social representava a necessidade e a desigualdade em oposição à esfera política que tinha lugar na polis.

De acordo com a concepção grega, a liberdade equivalia a se liberar das necessidades da vida, em não comandar e ser comanda-do, não ser dominador nem dominado. A liberdade correspondia à igualdade que se realizava na polis, na esfera política. Pressupondo a desigualdade, a liberdade grega é diferente da concepção de jus-tiça moderna e contemporânea. No mundo moderno a supremacia da esfera social sobre a esfera política conduziu, de acordo com Arendt, à funcionalização da política, isto é, na transformação da ação, do discurso e do pensamento em superestruturas dos interes-ses estruturais: os interesses sociais. Esta funcionalização Arendt

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denomina de “promoção do social”: a transição da sociedade para a esfera pública, pelo enfraquecimento da separação entre o pú-blico e o privado. Ao mudar o sentido do privado e do público, a promoção da coesão social mudou igualmente o sentido do indi-víduo e do cidadão.

A Intimidade do Coração

A transferência do mundo da necessidade para o espaço pú-blico por meio da promoção dos direitos sociais mudou o sentido do privado, que assumiu sentido de privativo, ou seja, de intimida-de. Segundo Arendt, para os antigos ter vida privada era caracte-rística dos indivíduos impedidos de ter uma vida pública: daqueles que não eram totalmente humanos, porque não se mostravam em público, cuja existência era privada de publicidade. O significado do privado derivava de privação, da ausência no espaço público daqueles que não eram homens livres das condições objetivas de participação na vida pública. Na era moderna este significado foi alterado. A vida pública tornou-se o espaço de privação da liber-dade, o que levou os indivíduos a conceberem a privacidade no sentido de intimidade, em oposição à vida social. “Acontecimento histórico decisivo: descobriu-se que o privado, no sentido moder-no, em sua função essencial de mediar a intimidade não se opõe à política, mas ao social, que está, portanto, mais perto, mais auten-ticamente relacionado.” (p.48).

O privado que anteriormente era uma condição objetiva, portanto, se transformou em um estado de existência subjetiva, o qual foi denominado por Rousseau de intimidade do coração. Para Arendt, Rousseau foi “o primeiro explorador-intérprete [...] o pri-meiro teórico da intimidade.” (p.48). Rousseau afirmou sua revolta contra a imposição de regras sociais (os ferros) homogeneizadoras

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e fontes do conformismo social, capazes de perverter o coração humano. Mediante às demandas do social para o nivelamento, a descoberta de Rousseau consistiu em proteger a privacidade do co-ração: a solução individualista. A proteção da vida privada contra a sociedade, contra o conformismo, expressava uma reação às exi-gências niveladoras da parte de uma sociedade de desiguais, que esperava que os indivíduos agissem da mesma forma, que tivessem a mesma opinião e interesse.

Para Arendt isto representou a ascensão do social à custa da desintegração da família moderna que foi absorvida pelos grupos sociais correspondentes, que fundados em princípios de nivela-mento social (a mesma opinião, o mesmo interesse, o mesmo com-portamento) substituíram o poder despótico do chefe da família. Esta substituição significa a opinião unânime de um interesse co-mum que se transformou “em uma espécie de governo sem chefe”. (p. 50): não pela ausência de governo, mas pela falta de ação face ao conformismo social. “De cada um de seus membros, [a socieda-de] exige ao contrário um determinado comportamento, impondo inúmeras regras que tendem a padronizar todos os seus membros para funcionar direito, [eliminando] os gestos espontâneos ou os feitos extraordinários.” (p.50).

A primazia da esfera social sobre a esfera política está na ori-gem do advento da sociedade de massa, ou seja, da conformidade social, da aglutinação de grupos sociais e de indivíduos fundados com base em princípios formais de igualdade jurídica e política, em contraste com a desigualdade real. Portanto, “as distinções, as diferenças tornaram-se problemas particulares específicos para o indivíduo.” (p.51). A antiga concepção de igualdade e de indivi-dualidade mudou radicalmente. A concepção moderna de igual-dade se baseia na conformidade e no nivelamento das diferenças e comportamentos individuais. Os gregos concebiam por igualdade a capacidade que alguns (os cidadãos) tinham para agir com seus

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pares dispostos para tomar decisões sobre assuntos públicos. Uma igualdade agonística alcançada por meio da ação (praxis) e do discurso (lexis) distinguia os indivíduos. Pela política os homens poderiam expressar sua individualidade. “Em outras palavras, o domínio público era reservado para a individualidade.” (p.51). Por outro lado, na sociedade moderna, a individualidade é realizada na privacidade do lar, em privado, fechada na subjetividade da vida emocional, na intimidade do coração.

A Criação do Homem Social

A promoção do social à custa da política igualmente signi-ficou a promoção do comportamento em detrimento da ação, o que coincidiu com a ascensão da economia e de seu instrumento a estatística ao posto da ciência social mais importante da era mo-derna. A economia, antes considerada como a arte da aquisição, assumiu um caráter científico após a promoção do homem social em detrimento do homem político, ou seja: do comportamento em detrimento da ação. A estandartização (estatisticamente mensu-rável) da conduta humana submeteu a espontaneidade da conduta humana aos padrões de conduta e os que não se conformam a eles são considerados anormais, desviantes. A promoção do social não só criou o homem social e o homem associal, mas também esva-ziou de sentido a vida cotidiana do homem, na medida em que só têm importância histórica e política alguns eventos de uma certa grandeza numérica e de longa duração suscetíveis de mensuração estatística. É a repetição e não o acaso; é a representatividade nu-mérica de modelos de comportamentos e não a singularidade que se tornaram importantes aos olhos da ciência social moderna.

Isso transformou a história e a política em eventos raros que ocorrem após o acúmulo numérico de fatos suficientemente relevan-

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tes por um longo tempo. Assim, a história e a política, a exemplo da economia, tornaram-se saberes sobre a regularidade cumulativa dos comportamentos sociais padronizados. Como tal, estes conhe-cimentos tendem a obliterar o conhecimento de tudo proveniente da eventualidade, da espontaneidade e do desconhecido. O mundo cotidiano se transformou em metamundo. De acordo com Arendt quanto mais a população cresce maior é a tendência para mensurar as atividades humanas com o fito de reduzir os desvios comporta-mentais. Foi o social e não a política que tornou-se a esfera pública, a qual foi transformada em uma multidão de indivíduos juntamente com o declínio da ação e do discurso. Como consequência política vimos o surgimento da multidão conformista inclinada para o des-potismo; do automatismo nos assuntos humanos e do behaviorismo que por meio de suas leis comportamentais lançou as bases da into-lerância e dos desvios de comportamento. “Na realidade, as ações têm menos chance de conter a onda do comportamento de massa, os eventos perdem cada vez mais o seu significado, isto é, a sua ca-pacidade de iluminar a história.”. (p.53) .

Para Arendt, a vitória da sociedade significou a vitória de uma ficção que ela denominou de ficção comunista. Do ponto de vista dos economistas liberais essa ficção representa a harmonia dos in-teresses gerados por uma mão invisível. O próprio Marx ao consi-derar o conflito da sociedade capitalista não escapou dessa ficção, quando ao conceber uma sociedade comunista projetou um homem totalmente socializado, isto é engendrado por uma harmonia de in-teresses. A vitória da sociedade, a ficção comunista, foi a do governo da mão invisível, do governo de ninguém, em que o comportamento substitui a ação no qual é a burocracia (com seus processos impesso-ais e padronizados) que governa em substituição ao governo pessoal.

A vitória da sociedade sobre a política também é uma vitória sobre a esfera da vida privada e da esfera de intimidade. A era moderna ao mover o processo vital (sem mudar a natureza) da

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esfera privada para a pública, realizou a unidade da humanidade, na medida em que todas as sociedades tornaram-se corporações monolíticas de trabalhadores e empregados, que vão para a esfera pública para trabalhar para a sua própria sobrevivência. “A socie-dade é a forma em que se dá importância pública para o fato de que os homens dependem uns dos outros para viver e nada mais, é a forma em que permitimos que as atividades da pura sobrevivên-cia apareça em público.” (p.57) .

Referencias

ARENDT, Hannah. La Condition de L’homme Moderne. Paris:Calmann Lévy, 1983.

COELHO VAZ, Celso A. “Une Première Approche de la Morale Politique chez Hannah Arendt”. Paris. 163p. Dissertação. École des Hautes Études em Science Sociales. Centre de Recherches Politi-ques Raymond Aron, 1999.

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Pensadora Republicana?

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Desde o seu nascimento, portanto, desgraçadamente, a nossa tradição de filosofia política privou os assuntos po-líticos, ou seja, as atividades concernentes à esfera pública comum que se apresenta onde quer que exista a convivên-cia humana, de toda a dignidade própria.

A promessa da Política

Acolher Arendt como uma pensadora republicana, a princípio, pode parecer problemático, antes de mais nada, porque a própria au-tora sempre se mostrou resistente a rótulos, preferindo manter uma postura independente diante de eventuais enquadramentos ou filia-ções teórico-políticos, mas também porque a pensadora coloca em questão a própria noção de tradição, o que a impede de teoricamen-te se filiar a algo que, quando muito, existe tão somente como frag-mento. Assim, se de um lado, é verdade que alguns comentadores (HONOHAN, 2002); (AUDIER, 2004); (KOHN, 2005.) afirmam haver a existência de um republicanismo em Arendt, por outro, não

1 Doutoranda em Filosofia – UFMG. Professora de Filosofia do Departamento de Fundamentos da Educação da UFPI.

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podemos deixar de conceder atenção a sua expressa recusa em se filiar a uma corrente ou tradição política específica.

Hannah Arendt, por vezes, rejeitou ser chamada de filósofa, preferindo que a intitulassem de teórica da política. Na entrevista Só permanece a língua materna, que faz parte de uma coletânea de textos que compõe a obra A dignidade da Política, Arendt é categó-rica na sua resposta a Günter Gaus: “[...] Não pertenço ao círculo dos filósofos. Meu ofício – para me exprimir de uma maneira geral é a teoria política. Não me sinto em absoluto uma filósofa, nem creio que seria aceita no círculo dos filósofos.” (ARENDT, 2002, p. 123). Essa recusa também pode ser confirmada em sua última obra, A vida do espirito, quando a pensadora ao examinar as ativi-dades espirituais do pensar, querer e julgar, sente-se desconfortada ao ter que se justificar em realizar esse exame, uma vez que ela não ambiciona ser uma filosofa ou ainda uma pensadora profissional, como Kant designava aqueles que buscavam uma compreensão última para a realidade (ARENDT, 2009, p.17).

A rejeição de pertencer ao círculo dos filósofos por parte de Arendt pode ser compreendida a partir de sua crítica e ruptura com a tradição de pensamento, que, segundo ela, iniciou-se com Platão, e chegou ao seu fim com Karl Marx, e pode “ser inter-pretada como uma série de tentativas de encontrar fundamen-tos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política” (ARENDT, 2010, p.277). Arendt está certa que o início dessa tradição de pensamento em Platão foi marcada pelo julgamento e a condenação de Sócrates por seus concidadãos, quando este não foi capaz de persuadi-los de sua inocência. Para ela, esse evento fez com que Platão desconfiasse da persuasão e da opinião e buscasse outros parâmetros que pudessem julgar os feitos humanos e lhe conferir algum grau de confiabilidade.

A ação, afirma Arendt, por seu caráter efêmero, imprevisível e frágil levou Platão a rejeitar a esfera dos assuntos humanos e a intro-

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duzir critérios absolutos na esfera política. Entretanto, o que passou despercebido para Platão, segundo Arendt é que “os únicos critérios de julgamento que têm algum grau de confiabilidade não são em nenhum sentido transmitidos de cima, mas provêm da pluralidade humana, a condição da política (KOHN, 2008, p.11). A atitude de Sócrates, de revelar sua opinião e desejar ser visto e ouvido na esfera pública, na condição de homem plural, mostra, segundo Arendt, que “a tradição de pensamento político perdeu de vista, desde o começo, o homem como ser atuante” (ARENDT, 2008, p.107-108).

Em virtude da fragilidade dos assuntos humanos e da impre-visibilidade da ação, a tradição rebaixou-a a categoria de meios e fins, e passou a utiliza-la como trampolim necessário para a con-secução de um fim mais elevado que ela própria, e isso pode ser constatado de maneira nevrálgica nas transformações que marca-ram a esfera pública e privada na modernidade.

É exatamente na modernidade que o fio da tradição e a la-cuna entre o passado e o futuro se instaura definitivamente, pois sem uma tradição que nos legasse algum valor, que nos indicasse os tesouros perdidos, e ainda com a glorificação do trabalho e a vi-tória do animal laborans, a política, de espaço para a efetivação da liberdade, passou a ser uma esfera submetida aos processos natu-rais do ciclo vital. A admissão de uma massa na esfera pública e a política concebida simplesmente como administração de assuntos econômicos aparecem como os principais elementos constitutivos que provocaram o advento dos regimes totalitários, e que tornou a ruptura com a tradição de pensamento um fato consumado.

A crítica de Arendt à tradição e a sua não identificação com qualquer grupo político era porque ela estava certa de que a ilu-minação para a compreensão dos acontecimentos políticos que marcaram a triste face do século XX não provinha do fato de pertencer ou se filiar a algum grupo, “não pertenço a grupo al-gum, [...] nunca fui socialista, nunca fui uma comunista [...] nunca

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fui uma liberal [...] nunca acreditei no liberalismo” (ARENDT, 2010a, p.157), mas na tentativa de construir uma filosofia que não estivesse descolada da realidade, que não apartasse pensamento e ação, filosofia e política, e que abrigasse a condição humana da pluralidade, que fosse capaz de reaver a dignidade da política e dos assuntos humanos. São esses os motivos pelos quais ela critica a tradição de pensamento e inaugura uma forma de pensar muito própria dela, uma pensamento que emerge da experiência viva, um pensamento, como ela costuma dizer,

Acreditamos que a recusa de Arendt constitui-se em um mo-vimento que, dialogando com os fragmentos de pensamento do passado, lança luz para uma filosofia política atenta as transforma-ções radicais que assolaram a contemporaneidade. O que estamos buscando iluminar é o fato de que existe em Hannah Arendt uma filosofia política que não só guarda laços com a tradição republi-cana, mas que inova ao propor um novo republicanismo, que não só está em sintonia com as muitas transformações ocorridas no último século, mas que encontra na ação de homens e mulheres um caminho para recuperar a dignidade da política.

Em nosso entendimento, a violência perpetrada pelos regi-mes totalitários, e a possibilidade real de destruição dos homens e do mundo, levou Arendt a formular sua concepção republicana de política, cujas bases teóricas se fundamentam em uma leitura de autores greco-romano, bem como no diálogo com pensadores modernos como Maquiavel e Montesquieu. Na sua proposta de resgate da ação política, Arendt concebe a liberdade, a experiên-cia de novos começos, a pluralidade humana, e o engajamento do cidadão na esfera pública como condições indispensáveis para o estabelecimento e a manutenção de uma república.

Arendt esboça uma teoria republicana na qual a livre ati-vidade política é a mais plena realização da natureza hu-

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mana, pois fornece reconhecimento da identidade indivi-dual. Algo que não pode ser alcançado na uniformidade de um estado totalitário, mas é possível entre diversos participantes de uma esfera pública.2 (HONOHAN, 2002, p.147). Tradução nossa

O republicanismo em Arendt está ancorado na ação conjun-ta dos cidadãos e no reconhecimento da igualdade e dignidade, uma vez que a “igualdade significa ter o mesmo direito à ativida-de política.” (ARENDT, 2006, p 49). Essa concepção de política aparece na contramão das práticas totalitárias, que procuraram atomizar os indivíduos, não somente extinguindo a possibilidade de ação conjunta, pela prática do terror, mas também controlando a espontaneidade e o pensamento pela prática da ideologia. Nas palavras de Arendt:

A experiência fundamental da igualdade encontra ex-pressão política adequada nas leis republicanas, ao passo que o amor por ela, chamado virtude, inspira as ações nas repúblicas [...]. A experiência sobre a qual repousa o cor-po político de uma república é a convivência dos que são iguais em força e sua virtude que governa a vida pública, a alegria de não estar só no mundo. Estar só significa não ter iguais. (ARENDT, 2008, p.114-115)

Nenhuma das possibilidades que encerram o significado da ação – vir a público em atos e palavras na companhia de seus pa-res; iniciar algo novo cujo resultado não pode ser conhecido de an-temão; fundar uma esfera pública (respublica ou república) podem

2 “Arendt outlines a republican theory in which free political activity is the fullest realisation of human nature because it provides recognition of individual identity. This cannot be achieved in the uniformity of a totalitarian state, but is possible among diverse participants in a public sphere.” (HONOHAN, 2002, p.147)

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ser garantidas no isolamento. É na convivência com seus pares, é por sentir-se iguais que homens e mulheres plurais se associam para agir politicamente e mudar o mundo que forma entre eles. Quando, ao contrário, se tem a tentativa de eliminar essa plurali-dade, isso equivale, na maioria das vezes, na supressão do domínio público, como pôde ser constatado no episódio da condenação de Sócrates, que marcou o início da tradição de pensamento, e também na modernidade, cuja consequência mais dramática do processo de despolitização aí gestado foi o totalitarismo.

Para Arendt, a atividade da ação, que é uma atividade emi-nentemente política, torna possível a criação de um espaço entre--os-homens, que nada mais é do que o espaço político. Esse espaço surge quando os homens, e não o homem, por meio dos seus feitos e palavras, constituem e compartilham um mundo que é comum a todos. O que temos, então, é uma revitalização da política como es-paço para os cidadãos agirem em concerto e em condições de igual-dade, estabelecendo novas relações, através de atos e palavras, o que se configura como a manifestação da liberdade humana.

A liberdade, como um modo político de participação, para ser manifestada, não só exige a presença de uma pluralidade de indivíduos em condições de igualdade, mas só aparece na medida em que existe um espaço público no qual os homens se mostrem uns aos outros. Esse espaço é o lugar da visibilidade dos atos e das palavras; é onde cada cidadão aparece ao outro, pois participa, delibera e discorda sobre assuntos da comunidade e, pode, assim, realizar acordos e promessas mútuas. Inseridos nesse espaço, os homens podem preparar os alicerces que constituirão a República.

As reflexões que apresentamos nesse texto, foi no sentido de apontar que os trabalhos de Arendt, desde os anos 50, contribuí-ram de forma original para os debates em torno do republicanismo e de uma filosofia política que ganha um tom diferente exatamente porque concede a participação cívica como um modo especial de

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autorrealização do ser humano. É esse caráter do seu pensamen-to que abre perspectivas relevantes para o republicanismo, e que não se pode perder de vista. Nesse sentido, a perspectiva de que no conjunto dos textos políticos da autora pode-se se extrair uma compreensão com um viés republicano de política é pertinente, visto que há uma nítida afinidade entre o pensamento de Hannah Arendt e o republicanismo, como tentamos demonstrar ao longo desse trabalho. O que não se pode é integrar o pensamento aren-dtiano nessa tradição sem realçar as dificuldade que uma tarefa com essa envergadura exige.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo e revisão de Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitá-ria, 2010.

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Elivanda de Oliveira Silva

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A Compreensão dos Direitos Humanos nas Perspectivas de Hannah Arendt e Leo Strauss

Fábio Abreu dos Passos1

Introdução

Muitos pensadores, fundamentalmente os que se dedicaram a questionar os fundamentos da política no século XX, utilizaram da imagem da Grécia Antiga como um fio condutor para realizar uma análise crítica do que é a política na contemporaneidade e as implicações dessa ação humana, como os Direitos Humanos. Essa postura analítica pode ser vislumbrada, de maneira contunden-te, nas obras de Hannah Arendt e Leo Strauss. É nesse sentido que ambos os pensadores são, por muitos estudiosos de suas obras, considerados saudosistas em relação a uma imagem de uma de-mocracia que não mais existe, ou seja, aquela que se instaurou no seio da polis Grega na Antiguidade. Assim, o objetivo do presente texto é analisar o conceito de Direitos Humanos nas perspectivas de Arendt e Strauss, tendo como fio condutor o paradigma da Grécia Antiga, com o intuito de detectar qual o papel que este “paradigma” possui nas obras desses dois pensadores que tanto in-fluenciaram e contribuíram com suas respectivas reflexões para haver uma compreensão jurídico-filosófica do século XX.

1 Doutor em Filosofia pela UFMG. Professor do Departamento de Filosofia da UFPI.

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Fábio Abreu dos Passos

Os direitos humanos nas perspectivas jus naturalista e jus positivista

Articular o conceito de Direitos Humanos, nas suas perspec-tivas positivista e naturalista, funciona como ferramenta analítica de extrema importância para elucidar os elementos constitutivos desse conceito. Assim, contrapor o Direito Positivo, mutável e lo-calizado no tempo e no espaço, com o Direito Natural, imutável e universal, ou seja, ora sobre a ótica da convenção humana, ora sobre a ótica dos princípios dados, os quais os homens têm acesso através da razão que é comum a todos, nos permitirá analisar o que os homens estão fazendo na contemporaneidade no que diz respeito à relação que estes estabelecem uns com os outros no que diz respeito aos direitos da pessoa humana. Perguntar o que e como os homens estão colocando em marcha nas suas relações re-cíprocas, no que se refere aos seus direitos fundamentais, tornou--se de extrema importante, sobretudo após os horrores cometidos nos campos de concentração nazistas do Terceiro Reich.

Diante do exposto acima, uma problemática se levanta no cerne da questão relativa aos direitos humanos: como fazer valer os direitos humanos frente ao cenário jurídico da contemporanei-dade, que torna a vida tão frágil? Como apelar para as declara-ções desses direitos que tem nas suas cláusulas o direito à vida e a proclamação da igualdade para todos, quando nos deparamos com o ser humano tratado na sua mais abstrata nudez? Como ga-rantir aos homens os seus direitos quando, em situações-limites, o homem, enquanto ser-cidadão, deixa de pertencer a sua comu-nidade política, isto é, a um mundo comum que torna exequíveis esses direitos? Essas reflexões devem ser suscitadas, porque o que está na roda da vez, não é apenas a constatação de que o direi-to e as suas muitas declarações, enquanto órgãos que se afirmam

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A Compreensão dos Direitos Humanos nas Perspectivas de Hannah Arendt e Leo Strauss

mantenedores da vida e da dignidade humana, não consigam, em situações de agonia, prover o que for necessário para garantir a tutela da vida e permitir que ela siga no seu curso normal. Mas, a nosso ver, todos esses elementos nos apontam para um diagnóstico que revela o mais absoluto desprezo pela vida. Quando o homem é excluído do mundo enquanto sua morada, enquanto lugar que lhes garante sempre a possibilidade de começar algo novo, de se reinventar, e, porque o mesmo perdeu sua importância.

Comecemos, então, nossa análise a partir do cenário político, que segundo Hannah Arendt, é possível verificar o surgimento de situações que vão pôr a prova à legitimidade dos direitos humanos. Com o fim da primeira guerra, a situação era de calamidade total. Inflação, crise financeira, guerras civis e o desemprego desorde-nado fez surgir, em escala mundial, migrações de grupos humanos que não eram desejados em parte alguma do mundo. A multiplica-ção de minorias de diversas etnias deslocadas, decorrentes dos tra-tados de paz que puseram fim a Primeira Guerra Mundial, suscitou a crise política do Estado-Nação, na qual o vínculo entre homem e cidadão foi rompimento. Esse rompimento revelou-se não somen-te com a incapacidade dos modernos Estados-Nação de proteger indivíduos de diversas etnias, mas, também, com a explicitação da precariedade e da abstração da noção de direitos humanos que não conseguia assegurar os direitos do homem, independente de sua cidadania. Esses indivíduos, tratados como indesejáveis, eram visto como o refugo da Terra. Em grande parte dos governos e das Nações eles não eram bem-vindos. Poucos eram os representantes que reclamavam por eles, e, nesse sentido, poucas eram as entida-des que, verdadeiramente, os amparavam perante as leis. Assim, “uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os seus direitos: eram o refu-go da Terra” (ARENDT, 2006, p, 300). Sem lar, sem propriedades,

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Fábio Abreu dos Passos

sem trabalho, sem leis de proteção, e sem quaisquer direitos, os apátridas exibem a luz da crise radical dos direitos humanos, pois, conforme Hannah Arendt explica, “eles haviam perdidos aqueles direitos que até então eram tidos e até definidos como inaliená-veis, ou seja, os Direitos do Homem” (ARENDT, 2006, p, 301).

Desse modo, queremos outra vez enfatizar que uma das ex-plicações mais relevantes desse quadro desolador em que o apá-trida se encontrava era o fato de que ele não pertencia a uma co-munidade política. Esse é o motivo pelo qual foram tratados como fardo, como seres supérfluos. Motivo que explica o fato de não ha-ver leis que os contemple como sujeitos de direitos e deveres. Todo sujeito que pertence a uma comunidade política tem a garantia de que, por está em associação com seus semelhantes, pode agir livremente, e, assim, tornar suas ações significativas junto à comu-nidade em que está inserido, pois está regido por uma constituição que o ampara perante leis. Assim, a situação mais angustiante dos apátridas é o fato de não pertencerem a uma comunidade política que garanta os seus direitos.

A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião – fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades – mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade. Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi--los (ARENDT, 2006, p. 329 Grifos nossos).

A partir da citação acima e, principalmente, com o destaque dado por nós, a algumas assertivas nela contida, queremos tornar

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A Compreensão dos Direitos Humanos nas Perspectivas de Hannah Arendt e Leo Strauss

claro que a privação dos direitos humanos revela-se, especialmen-te, quando os homens não têm mais um lugar no mundo. Em ou-tras palavras, ratificando o que dissemos, Hannah Arendt afirma que “a privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz” (ARENDT, 2006, p, 319). O mundo, é entendido por Hannah Arendt, como o inter--espaço que surge entre os homens quando os mesmos estão reuni-dos. Desse modo, o surgimento do mundo é resultado do agir, que é “a verdadeira atividade política do homem” (ARENDT, 2006b, p, 125). É esse espaço, com suas leis, que possibilita o convívio humano. Assim, um espaço sem lei e sem comunidade política é infecundo, destrói o mundo e produz aridez, como um deserto. É nesse espaço, que vagueiam os apátridas e todos aqueles que foram privados dos seus direitos humanos.

Diante do que expusemos até aqui, é visível que o apátrida é a figura que torna perceptível o paradoxo e as perplexidades que envolvem os Direitos Humanos. Assim, com o crescimento maci-ço desse grupo, principalmente após a primeira guerra mundial, os direitos humanos, que outrora eram tidos como inalienáveis, não conseguiram fazer-se presente no sentido de solucionar os pro-blemas emanados com essa situação. Desse modo, o paradoxo da declaração dos Direitos humanos é explicado porque ele se referia a um ser humano abstrato, que nada tinham, a não ser “a abstrata nudez de ser unicamente humano e nada mais” (ARENDT, 2006, p. 327). Expulsos de sua comunidade política, os apátridas e refu-giados perderam seu status de cidadão, passando a não existir em qualquer parte do mundo.

Nesse ponto, devemos salientar o fato de que a noção aren-dtiana acerca dos Direitos Humanos se encontra na esteira argu-mentativa de que esses direitos são resultados de uma convenção coletiva, que tem como fundamento a ação política. Nesse sentido,

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são circunscritos em um determinado tempo e em um determina-do espaço, o que dá a esses direitos o caráter de mutabilidade. En-tendemos, portanto que, Direitos Humanos, para Hannah Arendt, significa dá ao homem o direito a ter direito. Esta assertiva está em flagrante contradição à noção dos Direitos Humanos Naturais, os quais se legitimam em princípios que são imutáveis e intrínsecos à natureza do homem, podendo ser dedutíveis por operação da simples razão, portanto, alheios a institucionalização da política. Para Arendt, os direitos naturais “presumem que os direitos ema-nam diretamente da ‘natureza’ do homem – e, portanto, faz pouca diferença se essa natureza é visualizada em termos de lei natural ou de um ser criado à imagem de Deus” (ARENDT, 2006, p. 331). Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Celso Lafer, estudioso de Hannah Arendt, faz a seguinte observação:

Daí a conclusão de Hannah Arendt, calcada na realidade das displaced persons e na experiência do totalitarismo, de que a cidadania é o direito a ter direito, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público que per-mite a construção de um mundo comum através do proces-so de asserção dos direitos humanos (LAFER, 1991, p. 22).

Portanto, podemos dizer que, os apátridas e refugiados, en-tendidos como povo sem pátria e sem uma legislação própria, con-siderados meros seres humanos e nada mais, representam a rup-tura dos direitos humanos. Assim, afirma Arendt: “os Direitos do Homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inexequíveis – mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles – sem-pre que surgiam pessoas que não eram cidadãos de algum Estado soberano” (ARENDT, 2006, p. 327). Não ser cidadão de nenhum Estado para os apátridas, além da perda de todo o amparo perante

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as leis, resultado da expulsão de um mundo comum, significava, também, a perda de todas as qualidades e relações específicas que fazem com que cada ser humano seja singular e digno de huma-nidade. Assim, para Arendt, “o homem pode perder todos os cha-mados Direitos do Homem sem perder sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da própria comuni-dade é que o expulsa da humanidade” (ARENDT, 2006, p. 331). A perda dessas qualidades revelava-se na perda dos seus direitos humanos, pois aqueles que estão privados dos seus direitos estão “privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opina-rem” (ARENDT, 2006, p. 330).

Nos regimes totalitários os seres humanos são tratados como seres supérfluos. Nos campos de concentração nenhum preso é percebido como ser indispensável ao mundo, como ser dotado da capacidade criativa, que é a capacidade de transformar, acrescen-tar e oferecer algo para o mundo, pois eles não têm nenhuma im-portância. Assim, “não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser supérfluo signifi-ca não pertencer ao mundo de forma alguma” (ARENDT, 2006, p.528). Essa é mais uma ideia que mostra as contradições dos Di-reitos Humanos, pois tornar alguém supérfluo é uma afronta à ideia do homem enquanto ser único e fundamento de todos os ou-tros direitos. Nesse sentido, com o Totalitarismo, qualquer critério de justiça é indevido. Aliás, nos regimes totalitários não podemos nem sequer falar em justiça, se esta é pensada como instrumento de avaliação que tem como finalidade julgar as condutas humanas em termos de boa ou má, de certo ou errado, de lícitas ou ilícitas.

A resposta a problemática acerca dos Direitos Humanos, dada por Strauss, se encontra diametralmente oposta à dada por Han-nah Arendt. Assim, de início, para Strauss expor sua concepção de Direitos Humanos, esse autor realiza uma crítica, a qual pos-

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sui dois alvos claros: o positivismo e o historicismo. Essas críticas encontram-se, substancialmente contidas, em sua obra intitulada Direito Natural e História. Nesse sentido, as críticas straussianas, no que diz respeito ao primeiro alvo, ou seja, o positivismo, se encontra na esteira argumentativa de que este, na figura de Weber, realiza uma neutralização dos valores e, assim, apregoa que deve haver, ne-cessariamente, uma neutralidade de valores por parte das descober-tas cientificas. Para Strauss, é impossível estudar fenômenos sociais, sito é, todos os fenômenos importantes, como é o caso dos Direitos Humanos, sem avaliá-los. A segundo alvo das críticas de Strauss, o historicismo, encontra sua razão de ser no fato de que, para Leo Strauss, essa corrente filosófica apregoar que o singular e o parti-cular devem primar sobre o universal. Sendo assim, para Strauss, quando se pensa que todo pensamento é histórico, ou seja, situado em uma época e em um lugar preciso, há um impedimento de haver a apreensão de verdades eternas, fazendo com que a ideia de justiça fique comprometida. Segundo Newton Bignotto:

No tocante ao positivismo, Strauss acusa Weber de estar na origem da crença atual de que é impossível dirimir conflitos de valores, pois eles são insolúveis pela razão. Strauss ataca essa pretensa neutralidade das ciências sociais mostran-do que sua proposição centra, que separa fatos e valores, não pode ela mesma ser submetida ao critério que propõe para interditar o julgamento de disputas em torno de temas como o do melhor regime [...]. No que tange ao histori-cismo, ou aos historicismos, pois Strauss estava longe de confundir as filosofias que na modernidade se aninharam nessa classificação, o ponto essencial a ser observado é o fato de que o singular e o particular primam sobre o univer-sal. Assim, o que deve ser levado em conta pelos cientistas são as diversas experiências humanas, ao longo dos tempos (BIGNOTTO, In. BARRETO, 2010, p. 498 e 499).

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Para Strauss, deve haver a ideia de “Regime Ideal, a qual so-mente a razão pode apreender e, assim, oferecer um tratamento adequado as coisas humanas. Essa assertiva aponta para a tenta-tiva de Strauss de resgatar o sentido do platonismo no contexto contemporâneo e, sucessivamente, aponta para o fato de Strauss buscar as raízes políticas no mundo Antigo, o que, segundo esse autor, demonstra toda a superioridade dos gregos. O que Strauss tem em mente, quando aponta para o fato da superioridade dos gregos, é que a compreensão relativa às questões importantes, relacionadas principalmente as questões humanas, nascem dos debates nas praças públicas, para se chegar a uma sabedoria, de-monstrando que não se deve ficar na esfera da opinião (doxa), mas partir desta para se alcançar uma sabedoria universal (sophia). É a partir desse movimento analítico – que cabe a filosofia percorrer – que parte do particular, de como cada um vê o mundo como lhe aparece, para o universal, a busca de um conceito que abarque e reúne essas opiniões, que nasce a busca pela vida virtuosa, para se ter uma vida feliz, o qual somente será alcançada dentro de um “Melhor Regime”. Para Strauss, a equação entre a vida política virtuosa e a busca pelo melhor regime se perdeu na modernidade, qual deve ser retomada. Sobre isso, diz Bignotto:

Partindo de conteúdos conhecidos por todos, os filósofos gregos ascendiam até as mais altas esferas da racionalidade, para definir a melhor forma de viver-se em conjunto. Como os homens são animais políticos, eles necessariamente se perguntam pela natureza do regime do qual vivem, ou dese-jam viver. Cabe à filosofia encontrar o caminho que leva da opinião para o saber. Nesse contexto, a busca por uma vida virtuosa era um imperativo necessário para os que desejavam viver uma vida feliz. Foi essa ligação íntima entre a vida po-lítica e a busca pelo melhor regime que se perdeu na moder-nidade. (BIGNOTTO, In. BARRETO, 2010, p. 499 e 500).

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É nessa volta aos Antigos que se encontra a chave argumen-tativa de Strauss para se pensar o Direito Natural, o qual, partindo da concepção dos gregos sobre o mesmo, serve como referencial para a reflexão da política, pois, para os estes (os gregos),

O melhor regime é aquele ao qual se aspira ou pelo qual se roga. Um exame mais atento mostraria que o melhor regime é o objeto da aspiração ou das preces de todos os homens bons ou de todos os gentil-homens: aos olhos da filosofia política clássica, o melhor regime é o objeto da as-piração ou das preces dos gentil-homens, tal como esse ob-jeto é interpretado pelo filósofo (STRAUSS, 2009, p. 121).

Considerações Finais

Percebemos que tanto Arendt quanto Strauss, cada um a seu modo, nos fornecem importantes ferramentas analíticas para pen-sarmos os Direitos Humanos, seja pela perspectiva positivista, seja pela perspectiva naturalista. Ambas as ferramentas nos ajudam a pensar qual o nascedouro dos Direitos Humanos, os quais todos os outros direitos nascem e deságuam.

As reflexões de Arendt e Strauss ensinam que um aspecto que deve ser levado em consideração pelo ordenamento jurídico contemporâneo é a dimensão da expressão “Direitos Humanos”, quando o que se tem observado é que a luta de grupos minoritá-rios (negros, mulheres, homossexuais, deficientes físicos) põe em questão a homogeneidade do termo “humano”.

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A Compreensão dos Direitos Humanos nas Perspectivas de Hannah Arendt e Leo Strauss

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A Interpretação Arendtiana de Conceitos Kantianos da Terceira Crítica como Paradigma do Sentido da Política

José Luiz de Oliveira1

Para Fábio Abreu dos Passos e Elivanda de Oliveira Silva

O nosso objetivo nas linhas que se seguem é explicitar alguns elementos acerca do papel desempenhado pela faculdade do Juízo Kantiano sob a perspectiva do pensamento político de Hannah Arendt. Trata-se de expormos, fundamentalmente, a reinterpreta-ção arendtiana de alguns conceitos kantianos presentes na Tercei-ra Crítica para fundamentação do sentido da Política.

Comecemos nossa abordagem pelo juízo reflexionante esté-tico. A Faculdade do Julgar, compreendida como a Terceira Crítica elaborada por Kant, possui uma modalidade: o juízo reflexionan-te estético. Essa modalidade assim se denomina, porque partimos do particular, que é sempre uma fórmula, e o estendemos para o universal; daí, o nome reflexionante. O termo juízo reflexionante deriva do alemão überlegen, que significa refletir. Neste caso, se o particular é dado, fica o sujeito incumbido de buscar o geral; ou seja, a regra ou a lei.

Arendt (1997, p. 274), em seu texto intitulado A Crise da Cultura, que compõe a coletânea Entre o Passado e o Futuro, pre-

1 Doutor em Filosofia pela UFMG Professor do Departamento de Filosofias e Métodos da UFSJ.

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José Luiz de Oliveira

tende mostrar que a diferença entre a Crítica da Faculdade do Juízo e a Crítica da Razão Prática advém do fato de a segunda voltar-se ao aspecto moral. Por isso, referindo-se ao imperativo categórico kantiano, ela afirma: “Aja sempre de tal maneira que o princí-pio de tua ação possa se tornar uma lei universal–, baseia-se na necessidade de pôr o pensamento racional em harmonia consi-go mesmo”. Para Arendt (1997, p. 274), o imperativo categórico kantiano trata do comportamento moral voltado para a harmonia do próprio eu. De acordo com o princípio presente no imperativo categórico, “o ladrão, por exemplo, está na realidade em contradi-ção consigo mesmo, visto não poder desejar que o princípio de sua ação, roubar a propriedade de outrem, se torne uma lei universal, uma lei desse tipo privá-lo-ia imediatamente de sua própria aqui-sição”. Por isso, para a autora, o princípio pautado no imperativo categórico kantiano não é novo na História da Filosofia. É premis-sa do direito natural buscar a universalização daquilo que alguém rejeita para si mesmo. Nesse caso, o eu do ladrão não pode se ver ameaçado pela prática do roubo a ser realizada por outra pessoa. O ladrão de hoje pode ser a vítima de outro ladrão no amanhã. Como ficariam os ladrões se todos se comportassem como ladrões?

O juízo é uma faculdade básica que acontece no mundo, ou seja, na comunidade dos seres que habitam a Terra, cuja plura-lidade é a sua lei (ARENDT, 1991, p. 17). O que fundamenta o juízo reflexionante estético, como paradigma dos juízos políticos, reside na alusão de que, quando julgo, o faço como membro da comunidade, e não num mundo suprassensível. Isto é, a comuni-cação com o outro fundamenta o juízo reflexionante estético. E é essa mais uma razão que permite ao juízo reflexionante estético ser um conceito análogo aos juízos morais da razão prática ou dos juízos teóricos da razão pura (DUARTE, 2000, p. 36). A atuação do juízo reflexionante estético no mundo não dispõe de conceitos apriori nem de algum princípio moral. Seu papel é julgar os fenô-

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A Interpretação Arendtiana de Conceitos Kantianos da Terceira Crítica como Paradigma do Sentido da Política

menos do mundo tendo em vista o prazer contemplativo. Sobre isso, comenta André Duarte (2000, p. 123):

Para Arendt, o juízo reflexionante estético, por sua vez, lida com o que é ‘contingente’ e ‘particular’, incide sobre os fenômenos do mundo e os julga belos ou não, corretos ou não, sem dispor de quaisquer conceitos apriori, tendo em vista apenas um ‘prazer’ meramente contemplativo ou satisfação inativa (untätiges wohlgefallen).

Para melhor compreendermos a configuração política presente no juízo reflexionante estético kantiano conforme a reinterpretação arendtiana, é pertinente nos referirmos às análises sobre gênio e gosto feitas pela pensadora. É por meio da relação gênio e gosto que vamos entender melhor de que maneira Arendt reinterpreta o juízo reflexio-nante estético na condição de paradigma dos juízos políticos.

Arendt (1993, p. 79) nos lembra que, quando Kant aborda o gosto, ele está se referindo ao juízo. “O gênio, de acordo com Kant, é uma questão de imaginação produtiva e originalidade; o gosto, mera questão de juízo”. Essa afirmativa de Arendt baseia--se em Kant (1993, p. 156) quando ele diz: “Para o ajuizamento de objetos belos enquanto tais requer-se gosto, mas para a própria arte, isto é, para a produção de tais objetos, requer-se gênio”. Ao insistir na relação entre gênio e gosto, Arendt (1993) quer de-monstrar que existe uma relação entre o ator e o espectador. A existência do ator implica considerar que existe um criador da arte (o gênio) e a figura do seu apreciador (o espectador). Existe uma opção entre o modo de vida do ator e aquela do espectador. As figuras do ator e do espectador, tal como Arendt as concebe, caracterizam-se como uma das chaves de compreensão de sua filosofia política. Arendt (1991, p. 72-73) relaciona a função do espectador com a palavra “teórico”, remontando o seu significado às origens gregas da seguinte maneira:

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O termo filosófico ‘teoria’ deriva da palavra grega que desig-na espectadores theatai. A palavra ‘teórico’, até alguns sécu-los, significava ‘contemplando’, observando do exterior, de uma posição que implica a visão de algo oculto para aqueles que tomam parte no espetáculo e o realizam. E óbvia a in-terferência que se pode fazer a partir dessa antiga distinção entre agir e compreender a ‘verdade’ sobre o espetáculo; mas o preço a ser pago é a retirada da participação no espetáculo.

Em termos arendtianos, a figura do espectador não se encer-ra na recordação do seu papel no mundo grego, cuja figura está relacionada ao contemplador ou observador do espetáculo. Arendt (1993) identifica a ideia de espectador do mundo com a ideia de cidadão do mundo no sentido kantiano. O filósofo alemão prati-camente nunca saiu de sua terra natal Königsberg e, mesmo assim, era conhecedor de várias partes do mundo. Nesse sentido, ele era um espectador e cidadão do mundo, inclusive porque

[...] era também um ávido leitor de todo tipo de relatos de via-gem, e ele, que nunca saíra de Königsberg, conhecia os cami-nhos tanto de Londres, quanto da Itália, dizia não ter tempo para viajar precisamente porque queria saber muito a respeito de muitos países. Na mente de Kant, este era certamente o ponto de vista do cidadão do mundo (ARENDT, 1993, p. 58).

O espectador é aquele que dispõe de visão ampla das coisas por meio de sua atividade de observação. Então, o ator, na perspectiva de Arendt, depende do espectador. As análises a serem produzidas em torno do agir do ator dependem do parecer oriundo da contem-plação do espectador. Evidenciamos que o papel do espectador é o de poder contemplar a muitos. Isso, conforme Arendt, significa que os atores em conjunto podem oferecer o espetáculo que se desenvol-ve diante dos olhos dos espectadores. Essa observação do espectador se faz longe da maioria e tem a ver com o modo contemplativo de

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vida, que pressupõe o afastar-se da maioria. Trata-se de uma função que singulariza o espectador (ou observador), por assim dizer, por-que a contemplação é uma operação solitária ou, ao menos, desen-volvida em solidão (ARENDT, 1993, p. 76-77).

Ao tratar da relação entre ator e espectador, Arendt (1991, p. 73) compara o campo de atuação de ambos a um jogo. Nesse jogo, o ator é identificado com aquele que faz parte do processo, embora de forma parcial, e o espectador é comparado ao filósofo: “somente o espectador ocupa uma posição que lhe permite ver o jogo, a cena toda – assim como o filósofo é capaz de ver o Kosmos como um todo, harmoniosamente ordenado”. Percebemos que a compreensão do todo acerca da exibição do espetáculo depende da observação do espectador. Para a nossa autora, o espectador é aquele que, uma vez não se encontrando na execução da tarefa do agir, é capaz de observar melhor. Arendt (1991, p. 72) acredita ser necessária a retirada do agir para se observar melhor e diz que “esse tipo de retirada do agir é a mais antiga condição postulada para a vida do espírito”. A compreensão do espetáculo como um todo acontece a partir do momento em que ocorre o afastamento do espectador. Arendt (1991, p. 72) identifica a vida do espectador com o bios theorétikos quando afirma: “Traduzindo isso em termos dos filósofos, chegamos à supremacia do modo de vida do especta-dor, o bios theorétikos (de théorein, ‘olhar para’)”.

A questão dos papéis do ator e do espectador na Terceira Crí-tica torna-se mais explícita a partir do esclarecimento sobre a liga-ção com o conceito de “comunicabilidade”. Esse conceito faz parte do juízo do gosto. Trata-se de um juízo que não almeja a confirma-ção de conceitos, mas requer a busca de adesão de outros2. A esse propósito, Kant (1993, p. 60) assim se manifesta:

2 A palavra comunicabilidade é compreendida pela língua germânica como <Mitteibarkeit>. E o verbo mitteilen tem o sentido literal de compartir ou

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O próprio juízo do gosto não postula o acordo unânime de qualquer um (pois isto só pode fazê-lo um juízo lógico--universal, porque ele pode alegar razões); ele somente imputa <essinnt an> a qualquer um este acordo como um caso de regra, com vistas ao qual espera a confirmação não de conceitos, mas de adesão de outros.

A obra de Arendt tem como ponto de partida a questão do surgimento e consolidação do totalitarismo. Em suas abordagens, ela trata da supressão da liberdade e da pluralidade como realida-des inerentes à ascensão do Nazismo e do Stalinismo ao poder. Se, por um lado, o totalitarismo é reforçado pela perda da liberdade e da pluralidade, por outro, a comunicabilidade aparece como con-dição de superação desse fenômeno inédito do século XX. Consi-derando a importância do conceito de comunicabilidade, vejamos de que maneira Arendt (1993, p. 77) trata da vocação natural do homem para a comunicação:

À questão ‘por que há os homens e não o homem?’, Kant teria respondido: a fim de que possam falar uns aos ou-tros. Pois aos homens no plural e, assim, à humanidade – à espécie à qual pertencemos, por assim dizer – ‘é uma vocação natural [...] comunicar e exprimir o que se pen-sa’, uma observação que já citei. Kant está consciente de que discorda da maioria dos filósofos ao afirmar que o pensamento, muito embora seja uma ocupação solitária, depende dos outros para ser possível.

Depreendemos daí a existência da comunicabilidade de ho-mens entre si, os quais estão ouvindo e podem ser ouvidos. Por isso, segundo Arendt (1993), Kant estava convencido de que o

compartilhar (KANT, 1993, p. 61). Daí, o conceito de comunicabilidade se responsabilizar pela busca de adesão de outros.

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mundo sem o homem seria um deserto. Em outras palavras, o mundo sem o homem significa um território sem a presença da figura do espectador. Assim, o conceito de comunicabilidade se estende desde o pensar do outro até o agir conjunto.

A comunicabilidade aparece ligada a outro conceito kan-tiano presente na Terceira Crítica. Para que a exigência dessa co-municabilidade se cumpra, é necessário o “sensus communis”. O sentido kantiano de sensus communis encontra-se voltado para a ideia de sentido comunitário. Nessa perspectiva, a reflexão toma em consideração o modo de representação do outro, para o outro, e assim evitar prejuízo ao juízo, como aquele de se ater a condições privadas e subjetivas. A esse propósito, no parágrafo quarenta de sua Terceira Crítica, intitulado “Do gosto como uma espécie desensus communis”, Kant (1993, p. 139-140) faz referências ao significado de sensus communis da seguinte maneira:

Por sensus communis, porém, se tem que entender a ideia de um sentido comunitário<gemeinschaftlichem>, isto é, de uma faculdade de ajuizamento que em sua reflexão toma em consideração um pensamento (apriori) o modo de representação de qualquer outro, como que para ater o seu juízo à inteira razão humana e assim escapar à ilusão que, a partir de condições privadas subjetivas – as quais facilmente poderiam ser tomadas por objetivas –teria in-fluência prejudicial sobre o juízo (grifo do autor).

Percebemos que a validade dos juízos estéticos e políticos depende da “comunicabilidade”, e esta se completa ao “sensus communis”. Sobre isso, diz André Duarte (2000, p. 361): “O con-ceito kantiano por meio do qual se cumpre a exigência da ‘comu-nicabilidade’, sem a qual os juízos estéticos e políticos não podem validar-se, é o ‘sensus communis’”. No que tange ao conceito de “sensus communis”, presente na Terceira Crítica, Arendt (1993)

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reinterpreta o sentido kantiano que o concebe ligado à ideia de comunidade. André Duarte (2000, p. 361) também salienta que “o sensus communis é aquele sexto sentido que revela a pluralidade humana em sua destinação comunicativa”.

No momento em que o juízo de gosto é posto em comum, ele passa a ser uma espécie de “sensus communis”. Nesse sentido, baseando-se em Kant, Arendt (1993, p. 91) diz que “as máximas kantianas do juízo enquanto sensus communis são: pensar em si mesmo, sempre pensar no lugar de qualquer outro e sempre pensar estando de acordo consigo mesmo”. O sensus communis, esse sentido comunitário na perspectiva kantiana, é a expressão da necessidade humana de viver em grupo, razão pela qual se evidencia a sua marca notadamente política. O sentido comunitário passa a existir quando o que se refere ao subjetivo se estende no intersubjetivo. Na análise de André Duarte (1993), Arendt quer mostrar a característica inter-subjetiva da expressão sensus communis. Por isso, afirma:

[...] o sensus communis é um sentido cuja consideração interessa apenas em sociedade, pois ele implica a com-preensão dos homens como ‘criaturas limitadas à Terra, vivendo em comunidades, [...] cada qual precisando da companhia do outro mesmo para o pensamento’ (LFPK, 37). Segundo esse aspecto da interpretação arendtiana do conceito de sensus communis, com ele Kant confirma a sua aposta da dimensão intersubjetiva, leia-se, política, do próprio funcionamento das faculdades do espírito (DU-ARTE, 1993, p. 128, grifo do autor).

Arendt (1993) quer analisar o sensus communis consideran-do-o como conceito, cujo sentido garante a comunicabilidade das sensações. Pertence ao sensus communis o significado da vivência comunitária em oposição ao significado do modo de vida indi-vidual correspondente ao sensus privatus. A esse respeito, salien-

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ta Arendt (1993, p. 91): “No sentido kantiano, o senso comum é um senso comunitário, sensus communis, distintamente de sensus privatus”. É por meio do sensus communis, o contrário do sensus privatus, que saímos da clausura da particularidade intransponí-vel caracterizada pela incomunicabilidade. Por essa razão, osensus communis é aquele conceito que permite a comunicação entre os homens, tão necessária à convivência política.

Evidenciamos que existe uma relação análoga entre os concei-tos kantianos presentes na Terceira Crítica e os juízos políticos, le-vando em consideração a reinterpretação de tais conceitos feita por Arendt (1993). Podemos dizer que, do ponto de vista arendtiano, os conceitos da Terceira Crítica kantiana estão em condições de se con-traporem aos males que o totalitarismo produziu. Nessa perspectiva, vislumbramos a possibilidade de relacionar os conceitos kantianos de “juízo reflexionante estético”, “comunicabilidade” e “sensuscom-munis” à superação dos efeitos produzidos pela experiência do totali-tarismo e da perda do sentido da política na modernidade.

Referências

ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito: o pensar, o querer, o julgar. Tradução Antonio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Ed. da UFRJ, 1991.

______. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. Tradução André Duarte de Macedo. Organização Ronald Beineer. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.

______.Entre o Passado e o Futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1997.

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DUARTE, André. A dimensão política da filosofia kantiana segundo Hannah Arendt. São Paulo: Relume Dumará, 1993.

______. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia na reflexão de Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valério Rohden e Antônio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitá-ria, 1993.