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Entre o formal e o informal no momento crítico brasileiro: descentralização, participação política e relações pouco democráticas. O presente trabalho tem o objetivo de analisar a ascensão das Instituições Participativas- IPs em um contexto político no qual há a ocorrência de práticas políticas pouco democráticas cujas relações de patrimonialismo e clientelismo se desenvolveram de forma ostensiva. Delineando mais precisamente o debate, discutiremos principalmente a inserção dos Conselhos Municipais de Políticas, fruto de demandas de movimentos sociais nas décadas de 70 e 80, que tomaram forma a partir da promulgação da Constituição de 1988. Através dos dados explorados, salientou-se o descompasso existente na busca por uma democracia participativa e ampla através de arranjos institucionais em um marco temporal específico e os resultados desses arranjos na prática da política em municípios pequenos. Vale ressaltar que este estudo é parte dos resultados obtidos em trabalho de campo realizado entre julho de 2011 e abril de 2012 em municípios mineiros de 15 a 20 mil habitantes, baseado no dados do Censo de 2000, habitantes como item da pesquisa intitulada “A dinâmica da participação local no Brasil” financiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG e realizada pelo Projeto Democracia Participativa- PRODEP, sediado no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Participação e descentralização no Brasil no contexto de redemocratização Nas décadas de 1970 e 1980 o Brasil foi palco deum “surto de associativismo” e de intensas mobilizações na buscapela instauração do regime democrático. Tais mobilizações estiveram diretamente relacionadas ao processo de redemocratização e promulgação da Constituição de 1988. O fortalecimento da sociedade civil organizada e a sua atuação junto às demandas por democratização fomentam ideias de aprofundamento do regime democrático através da abertura de espaços de participação e deliberação da sociedade civil e controle público. Todo esse movimento em prol de um aprofundamento democrático foi expresso na Carta Magna de 1988 que tinha como prerrogativa a participação da sociedade civil nas políticas da saúde, assistência social e direitos da criança e do adolescente. Além disso, a Constituição também previa a descentralização política, fiscal e administrativa.A descentralização possibilitou a ascensão do município enquanto terceiro ente federado e o lócus de poder. Com o poder local enquanto lócus de poder e responsável pela promoção de

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Page 1: habitantes como item da pesquisa intitulada “A dinâmica da ...€¦ · Participação e descentralização no Brasil no contexto de redemocratização ... discrepantes, os municípios

Entre o formal e o informal no momento crítico brasileiro: descentralização, participação

política e relações pouco democráticas.

O presente trabalho tem o objetivo de analisar a ascensão das Instituições

Participativas- IPs em um contexto político no qual há a ocorrência de práticas políticas pouco

democráticas cujas relações de patrimonialismo e clientelismo se desenvolveram de forma

ostensiva. Delineando mais precisamente o debate, discutiremos principalmente a inserção

dos Conselhos Municipais de Políticas, fruto de demandas de movimentos sociais nas décadas

de 70 e 80, que tomaram forma a partir da promulgação da Constituição de 1988. Através dos

dados explorados, salientou-se o descompasso existente na busca por uma democracia

participativa e ampla através de arranjos institucionais em um marco temporal específico e os

resultados desses arranjos na prática da política em municípios pequenos.

Vale ressaltar que este estudo é parte dos resultados obtidos em trabalho de campo realizado

entre julho de 2011 e abril de 2012 em municípios mineiros de 15 a 20 mil habitantes,

baseado no dados do Censo de 2000, habitantes como item da pesquisa intitulada “A

dinâmica da participação local no Brasil” financiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do

Estado de Minas Gerais – FAPEMIG e realizada pelo Projeto Democracia Participativa-

PRODEP, sediado no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas

Gerais.

Participação e descentralização no Brasil no contexto de redemocratização

Nas décadas de 1970 e 1980 o Brasil foi palco deum “surto de associativismo” e de

intensas mobilizações na buscapela instauração do regime democrático. Tais mobilizações

estiveram diretamente relacionadas ao processo de redemocratização e promulgação da

Constituição de 1988. O fortalecimento da sociedade civil organizada e a sua atuação junto às

demandas por democratização fomentam ideias de aprofundamento do regime democrático

através da abertura de espaços de participação e deliberação da sociedade civil e controle

público. Todo esse movimento em prol de um aprofundamento democrático foi expresso na

Carta Magna de 1988 que tinha como prerrogativa a participação da sociedade civil nas

políticas da saúde, assistência social e direitos da criança e do adolescente. Além disso, a

Constituição também previa a descentralização política, fiscal e administrativa.A

descentralização possibilitou a ascensão do município enquanto terceiro ente federado e o

lócus de poder. Com o poder local enquanto lócus de poder e responsável pela promoção de

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bens e serviços, acreditava-se que as demandas da população seriam mais bem atendidas e

também facilitaria o controle público sobre as ações dos governos. A ênfase no município e,

consequentemente, no poder local autônomo é tida como importante prerrogativa na

efetividade1 dos espaços de participação e deliberação da sociedade civil. Assim, a

Constituição de 1988 pretendia romper com antigas gramáticas políticas presentes no Brasil,

considerando o poder oligárquico, o clientelismo, o patrimonialismo e paternalismo através

dos mecanismos de participação política. Também, a fim de incluir nas decisões

públicasmedianteaparato institucional, as camadas das populações anteriormente excluídas.

Desse modo, o município torna-se a base para a democracia consensual (SOARES,

1997).Considerando suas limitações, a descentralização foi considerada responsável por

mudanças no modo de enxergar a política local brasileira. Não obstante de trajetórias

discrepantes, os municípios passam a ser vistos como maior possibilidade de acesso da

sociedade civil às decisões do Estado. A municipalização tem suma importância na abertura

de espaços de participação e deliberação da sociedade civil. Vale considerar que, a autonomia

dos municípios favorece a instauração de conselhos e outras esferas de participação de âmbito

municipal. A ideia era quesendo instituições municipais de participação, os cidadãos e os

representantes da sociedade civil teriammaior proximidade com os problemas locais a serem

discutidos do que em esferas mais amplas. A ascensão do município enquanto terceiro ente

federado contribuiria para que demandas particulares de nível local possam ser mais bem

atendidas. Além disso, se entendermos a divisão de poderes e competências como premissa

desejável para um maior e mais efetivo controle da sociedade sobre os governos, a

municipalização, juntamente com as instâncias deliberativas de participação, acentuam o

potencial de efetividade desse processo, já que possibilita que os cidadãos estejam mais

próximos e participativos das decisões tomadas pelos governos. Assim, esses cidadãos têm a

possibilidade de responsabilizar os governos por seus atos de maneira mais eficaz.

A abertura de espaços de participação constituiu-se em importante inovação no que se

refere ao escopo dos regimes democráticos e estabeleceu modos diversos para a construção da

agenda pública. Como exemplo dessas inovações destacam-se a criação dos Conselhos de

Políticas, Conferências, Audiências Públicas e mais recentemente as experiências dos

Orçamentos Participativos. Esses espaços vêm se ampliando no Brasil ao longo das duas

últimas décadas em número e em variedade de políticas abordadas. O aumento das IPsfoi

1Efetividade aqui entendida enquanto a capacidade desses espaços em contemplar as demandas da população e promover

o controle público.

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acompanhada pelo desenvolvimento de estudos nos campos da Ciência Política e Gestão

Pública. Os estudos iniciais se limitavam a estudos de caso de associações civis em capitais e

cidades de grande porte dos eixos sul e sudeste. O aumento da criação e institucionalização

das IPs em variedade de políticas abordadas, para cidades menores localizadas nas diversas

regiões do país contribuíram para a ampliação dos estudos sobre participação. No entanto, tais

estudos ainda são insuficientes no que se refere à abordagem de municípios de pequeno porte

e variedade de indicadores sobre fatores capazes de explicar o desempenho das IPs quanto a

sua capacidade de promover igualdade de participação, ascensão de demandas e tomadas de

decisão.

Parte significativa da literatura aponta para a importância do desenho institucional na

efetividade deliberativa, entendida aqui como a capacidade efetiva de essas instituições

influenciarem, controlarem e decidirem sobre determinada política pública, expressa na

institucionalização dos procedimentos, na pluralidade da composição, na deliberação pública

e inclusiva, na proposição de novos temas, na decisão sobre as ações pública e no controle

sobre essas ações (CUNHA 2009) dos Conselhos de Políticas, Conferências e Orçamentos

Participativos. De fato, o desenho institucional, responsável pela organização e

funcionamento desses espaços influenciam na dinâmica de participação e deliberação. Outros

estudos, apontam a política pública referente ao espaço de participação e deliberação como

fator capaz de influenciar na efetividade desses espaços. Também, estudos recentes vem

destacando a influência de fatores exógenos como a tradição associativa e as forças políticas

atuantes no município como aspectos que podem explicar a dinâmica de participação e

deliberação da sociedade civil. É na literatura recente que o presente trabalho se apoia,

considerando também parte do que foi produzido no campo da cultura política a fim de

endossar os achados referentes a este trabalho.

EmComunidade e democracia: a experiência da Itália modernaRobert Putnam faz um

estudo empírico a respeito das mudanças institucionais ocorridas na Itália no contexto da

instauração de governos locais na década de 1970. Segundo os resultados da pesquisa

apresentados pelo autor, nem sempre as instituições formais são capazes de promover

mudanças na comunidade política e nas suas relações de poder. Assim como no Brasil

democrático, a proposta dos governos locais na Itália buscava a descentralização. A despeito

do desenho institucional dos referidos governos, estes apresentam características semelhantes.

No entanto, apresentam contextos sócio-econômicos e culturais muito distintos. Putnam

conclui que ao longo de duas décadasas diferentes regiões apresentaram desempenhos

distintos ainda que compartilhando o mesmo modelo institucional adotado pelos governos

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regionais. Nesse ponto, o texto de Putnam vai além ao tornar notória a importância da cultura

cívica, contextos sociais e outros fatores que não aqueles ligados ás instituições tradicionais

para o desempenho dos governos. É preciso reconhecer a importância do texto de Putnam ao

propor modelo metodológico para a investigação de inovações institucionaise seus impactos

na política e confrontar empiricamente teorias institucionalistas que de priorizam como

causalidades do êxito dos governos o êxito das instituições.

Estudos recentes sobre conselhos de políticas desenvolveram avanços metodológicos

significativos no campo da participação. No entanto, ainda existem algumas limitações nas

quais se pretende em certa medida superar. As pesquisas sobre instituições participativas em

geral tem abordado de modo unilateral indicadores capazes de influenciar na qualidade e

efetividade da participação e deliberação. Nesse aspecto, o presente estudo mostra sua

relevância no campo da teoria democrática deliberativa ao considerar a influência de fatores

exógenos, contexto político e associativo, na criação dos conselhos e na elaboração dos

Regimentos Internos e Leis de Criação que são responsáveis por todo aparato organizacional e

de funcionamento dos conselhos de políticas. Segundo a literatura (COELHO e FARIA,

2010) as regras incidem diretamente nas configurações do processo deliberativo dos

conselhos, daí a importância de mensurar a influência das forças políticas e de atores da

sociedade civil envolvidos na elaboração desses documentos. Além disso, buscou-se ampliar

o escopo metodológico em pesquisas sobre participação ao investigar a correlação do plano de

governo e das coligações partidárias vigentes com participação e deliberação dos conselhos

num estudo comparativo entre pares de cidades.

Autores como Avritzer (2007), Faria (2007) e Cunha (2007) incorporaram em sua

metodologia de análise dimensões como o desempenho e institucionalização dos conselhos e

a efetividade da participação. Ainda, abordam as relações do funcionamento dos conselhos a

partir da competição política e da rede associativa local. No crivo destes últimos trabalhos se

insere a presente abordagem metodológica para além da participação, atrelada exclusivamente

á vocalização. O refinamento das variáveis busca mensurar a participação dos diversos

segmentos tanto na dimensão argumentativa quanto na dimensão decisionística do processo

deliberativo.

Como já dito, no campo da Ciência Política, parte das investigações sobre conselhos

tem em seu universo empírico municípios de grande e médio porte. Assim, os estudos que

abarcam municípios de pequeno porte, em especial numa perspectiva comparada são ainda

insuficientes. Desse modo, a presente textoavança no sentido de considerar em sua amostra

municípios pequenos do estado de Minas Gerais.

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A presente análise se foca em contextos mais críticos, onde a política ainda preserva, de

forma intensa, práticas políticas amplamente combatidas a nível nacional e pela concepção de

um governo democrático e republicano.

As impressões que orientarão o trabalho foram retiradas da observação da realidade de

12 municípios2 de pequeno porte de Minas Gerais e várias entrevistas coletadas de

importantes atores políticos inseridos nestes contextos. Todos possuíam entre 15 e 20 mil

habitantes e possuem traços de uma cultura política e de uma dinâmica local bastante

diferente das grandes cidades e da realidade política nacional. Em todas elas a União e a

Justiça Federal foram as principais responsáveis pela implementação dos Conselhos

Municipais e de mudanças legais que ocupam papel relevante na alteração de práticas

políticas. As entrevistas tratam principalmente de períodos posteriores a 1960 até os dias

atuais, por mais que possam parecer remeter a períodos ainda mais antigos.

Metodologia

A pesquisa Dinâmica da participação local no Brasil consistiu em uma abordagem

multi-metodológica, contando com a análise de indicadores socioeconômicos dos municípios,

coleta de dados documentais em campo, observação e uma série de entrevistas com os líderes

políticos dos principais partidos políticos do município e atores que participaram da

implantação dos Conselhos Municipais de Assistência Social, Saúde e da Criança e do

Adolescente. O presente artigo usa como base os dados documentais, que são atas referentes

aos anos iniciais dos conselhos, compreendendo períodos que vão de 1991 a 2005

dependendo do caso específico. Aliado a isso as observações e análises são fruto da

experiência de campo dos pesquisadores e das entrevistas.

Para encontrar os dados qualitativos, no caso as entrevistas em profundidade,

Tomamos como ponto de partida os principais partidos do município e suas lideranças e,

através das atas, os atores envolvidos no processo de implementação dos conselhos. Por

principais partidos considerou-se aqueles que tiveram mais candidatos eleitos ao longo da

trajetória política do município, em especial os que elegeram prefeitos, uma vez que a

prefeitura se mostrou o ponto alto das eleições nesses municípios. Na maioria das vezes os

entrevistados estavam diretamente envolvidos na política, através de cargos eletivos, e na

2As cidades são: Alvinópolis, Alpinópolis, Arinos, Belo Oriente, Bom Sucesso, Campina Verde, Carmo do

Cajuru, Carmo do Rio Claro, Chapada do Norte, Conceição das Alagoas, Ladainha e Monte Alegre de Minas.

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minoria dos casos foram presidentes de partidos políticos que não tinham cargos eletivos.

Dentre os envolvidos diretamente na política entrevistamos três perfis diferenciados:

1)Prefeitos e ex-prefeitos – maioria dos casos; 2) Políticos de longa data, com trajetória

extensa, tendo entre três e cinco mandatos políticos no município; 3) Políticos atuais com

votação expressiva – minoria - e que se provaram pouco informativas quanto ao contexto

político do município. A escolha dos prefeitos como entrevistados se deu tanto pela

importância que possuem no contexto político local, quanto pelo fato de muitas vezes serem

também as principais lideranças dos partidos que são filiados. Tivemos ainda a iniciativa de

procurar representantes do PT em algumas cidades, por sua visão mais participativa e pioneira

na implantação de espaços públicos participativos. O PT, de forma geral, era o partido mais

fraco entre os partidos de grande relevância nacional e estadual. Entretanto não entrevistamos

representantes do partido em todos os municípios.

O principal interesse ao coletar estas entrevistas foi compreender a dinâmica local, as

principais ideologias, formas de campanha e a dinâmica que as eleições seguem nos

municípios. Apesar de as entrevistas representarem uma pequena amostra podemos

compreender questões que dados como os do TSE não seriam capazes de revelar. Tivemos

ainda o interesse de indagar sobre o contexto associativista do município e as formas como a

população se mobiliza. Quanto a esses dados devemos ter o cuidado de compreender que pode

se tratar de como é a percepção dos políticos quanto a estes temas. Entretanto são importantes

dados que podem ser comparados.

Por último perguntamos sobre os conselhos, a fim de entender um pouco sobre o

processo de implementação dos conselhos e a relação dos partidos nesse processo e com os

conselhos de maneira geral. O interesse vai em direção de entender se algum partido tinha

alguma preocupação especial no desenvolvimento dos conselhos e se eles haviam sido criados

a partir de uma demanda advinda diretamente da sociedade ou em um processo vertical, vindo

de cima para baixo.

As entrevistas com os conselheiros buscaram explorar as dificuldades que envolveram

o processo de implementação e participação nos conselhos, bem como a relação conselho e

governo. Buscou-se ainda entender a relação dos conselheiros com o espaço de participação e

suas motivações. Nesse caso encontramos algumas dificuldades relacionadas ao grande

espaço de tempo entre a entrevista e o momento que se propôs explorar. Muitos atores

relevantes haviam falecido, entretanto as informações foram capazes de fornecer informações

valiosas.

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As entrevistas foram realizadas na grande maioria das vezes com somente um

entrevistado, sendo dirigida por dois pesquisadores. As entrevistas buscaram profundidade,

coletando várias experiências pessoais, mas que deram importantes informações sobre o

quadro geral. Nos relatórios nos detemos aos aspectos mais generalizáveis e objetivos. Os

roteiros de entrevista foram semiestruturados, variando de acordo com interesses que surgiam

dentro da entrevista e por aspectos específicos relacionados a determinados entrevistados.

A democracia e seus valores, o município e seu cotidiano

A década de 70 e 80 marcou o Brasil pela luta da redemocratização e o surto de

associativismo. Ideias democráticas e participativas fluíam tanto de movimentos populares

ligados a moradia, quanto de associações e grupos inspirados por ideias de cunho marxista e

pela teologia da libertação.(GOHN, 1997) A ascensão do movimento operário e a criação do

Partido dos Trabalhadores nas grandes cidades significava uma nova direção na política, até

então limitada a atuação da ARENA e do MDB. Nesse contexto foi promulgada a

Constituição Federal de 1988, na qual foram inseridos princípios de administração

participativa, a democracia liberal brasileira seria construída juntando elementos

representativos e diretos de participação.

Experiências como o Orçamento Participativo e os Conselhos de Políticas Públicas se

tornaram as experiências institucionais de maior eco dentro deste paradigma. Essas

instituições passam a ser implantadas em diferentes regiões e municípios do País. Baseando-

se na boa experiência de Porto Alegre, essas instituições se tornaram instrumentos de gestão

disseminados por todo o território brasileiro, a princípio por administrações ligadas ao PT,

porém não se limitaram a elas. Em 2011 estimava-se já haver mais conselheiros que

vereadores no Brasil. (AVRITZER, 2009)

A extensão desse processo suscitou muitos estudiosos a se debruçarem sobre essas

novas experiências e se depararem com uma realidade bastante complexa. Esses novos

espaços públicos não deveriam ser olhados com ingenuidade, sua criação não garantia seu

funcionamento e menos ainda sua eficácia. Uma série de variáveis institucionais, políticas e

culturais passaram a ser observadas como de relevância fundamental ao bom funcionamento

dessas instituições e por outro lado novos desafios se apresentam: buscar dimensionar o

impacto desses novos espaços na administração pública e na realidade dos atores que os

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integravam. Qual seria a receita para que esses espaços funcionassem? É necessário que haja

uma cultura política participativa para que eles funcionem ou a existência de espaços como

estes levam a uma cultura política participativa? A experiência de Porto Alegre demonstrou

que a existência de um forte associativismo anterior as instituições formais, e a atividade

política orientada a participação, auxiliam uma experiência de sucesso. Por outro lado

também existem experiências que demonstram que os espaços públicos ajudam atores sociais

a tomar consciência de processos políticos e construírem espaços dialógicos.(AVRITZER,

2003 e GUISSO, 2012)

O Brasil é reconhecido pelo protagonismo do Estado nas mudanças sociais, marcado

por processos de tutela do poder público remontando a relação paternalista da casa grande e

da senzala*. A regularização e a estatização dos sindicatos no período Vargas são importantes

indicativos. As experiências coronelistas e populistas são outro exemplo. As mobilizações

contra a ditadura militar deram novo vigor aos movimentos sociais, que acabaram por se

tornar um importante instrumento de desenvolvimento de políticas públicas após a

redemocratização, apesar de toda discussão em torno da mudança do caráter do

associativismo. A participação se torna uma ferramenta e um discurso de legitimação na

política e passa a ocupar espaço na estrutura burocrática do Estado Moderno.

Se de um lado as grandes cidades e poloseconômicos passaram por esses processos

mais intensamente, outros pequenos municípios se encontram na direção oposta, sentindo

agora a presença mais intensa das esferas superiores do estado. Dummont em Homo

aequalis(2000) faz uma importante diferenciação entre duas grandes ideologias: O holismo,

representado por uma visão integrada do mundo, em que a sociedade acaba por ter

preponderância sobre o indivíduo, e o individualismo, que é marcada pela visão da

prevalência do indivíduo, das partes, sobre qualquer todo. Por ideologia Dummont considera

o seguinte:

Chamo de “ideologia” o conjunto das ideias e de valores comuns a uma sociedade.

Como existe no mundo moderno um conjunto de ideias e de valores que é comum a

inúmeras sociedades, países ou nações, falaremos de uma “ideologia moderna” em

contraposição com a ideologia de tal sociedade tradicional. (Dummont, 2000: p.19)

Esses pequenos municípios ainda vivem uma ideologia que se aproxima, em muitos

aspectos, mais do holismo do que a visão fragmentada e especializada do individualismo

ocidental. Essa realidade pode ter um alcance que vai além dos pequenos municípios, porém

a análise se focará neles. Esses municípios ainda possuem valores familiares como eixo

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central nas relações sociais e políticas, muitos deles vivenciam situações de pobreza e de

trabalho precário, em que a figura do grande fazendeiro e do grande proprietário se faz muito

mais sensível que a do distante Estado Moderno e democrático. Estas relações têm um sentido

mais profundo que a mera exploração. Eles estão repletos de valores que não estão

necessariamente secularizados. O que é necessário pontuar é que se faz necessário refletir

acerca de valores que são vinculados a democracia e seu bom funcionamento e valores que

operam na realidade cotidiana.

À medida que a democracia liberal3(MACPHERSON, 1978) é vista não somente

como um instrumento de escolha de líderes aos moldes elitistas4(SCHUMPETER, 1962), ela

toma uma conotação que envolve valores, os quais muitas vezes exigem uma postura

secularizante para que se alcance noções essenciais como o reconhecimento do pluralismo e

tolerância. Esses valores não tocam somente questões subjetivas, mas também práticas

procedimentais. O distanciamento dos elos familiares na política, uma série de procedimentos

burocráticos e entraves legais, canais institucionais, ou seja, um grande aparato moderno de

administração pública que é soa muito mais artificial que as relações cotidianas. Há uma série

de valores essenciais a realidade democrática, no seu sentido participativo, e suas instituições

que não se encontram difundidos na realidade de muitos pequenos municípios, ao contrário,

encontram-se em descompasso com o estilo de vida já reproduzidos a várias gerações.

Retornando a definição de Dummont, podemos enquadrar a racionalidade democrática como

fundada sobre elementos da ideologia moderna, em contraponto a diversos valores fundantes

da vida comunitária que se aproxima mais da ideologia tradicional. Como o próprio autor

trabalha o conceito, há que se focar que a conceituação feita no presente trabalho se mantém

na comparação entre o Estado e a vida municipal, pois é possível que a vida dos pequenos

municípios do Brasil seja mais próxima da ideologia moderna que um município da Índia,

porém não é nosso objetivo realizar essa comparação para além da realidade nacional.

Essas relações, em muitos casos conflituosas, não se limitam ao contato do munícipe

com as modernas instituições políticas, mas também passam a ser vivenciadas dentro da

própria casa. De um lado o pai tradicional, ligado a terra, nascido e criado no município e de

outro os filhos que muitas vezes vão estudar fora e voltam com as novas ideias, com valores

diferenciados dos da família. Essa realidade é muito semelhante à narrada por José Murilo de

3 Por democracia liberal considera-se a perspectiva democrática desenvolvida em sociedades capitalistas, regidas

por valores de livre mercado, em distinção as noções de soberania do povo e bem comum presentes, por

exemplo, na obra de Rousseau. 4 Esta corrente teórica desenvolve a perspectiva de que a democracia é um método de escolha de líderes e

“revoga” as posições normativas apresentadas na teoria democrática desenvolvida nos séculos XVIII e XIX e

que deu origem a revolução francesa.

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Carvalho em A Construção da Ordem(2003)quando retrata os filhos dos fazendeiros que iam

a Lisboa, se formavam bacharéis e então voltavam com novas idéias que muitas vezes

entravam em conflito com o modo de vida até então tradicional. Essa relação gera conflito e

do conflito se constituí o movimento.

A democracia passa ainda a ter um caráter inclusivo, abrindo espaço para que minorias

passem a protestar lutar por direitos e serem inseridas em discussões. Associações encampam

frentes relativas a gênero, raça, diferentes interesses econômicos, crenças religiosas

alternativas, revelando a existência de uma ampla heterogeneidade de interesses, os quais

muitas vezes são conflituosos. O reconhecimento desta dinâmica é tempestuoso até nas

grandes cidades e centros políticos, onde a diferença é vivida mais nitidamente, nos pequenos

municípios, marcados por uma maior homogenia, constitui-se, então, outro impasse.

A abordagem da cultura política como elemento relevante a compreensão do

desenvolvimento de instituições democráticas é reforçado a partir do trabalho The Civic

Culture desenvolvido por Almond e Verba. Apesar de o trabalho ser criticado como

etnocêntrico5,os autores propõem que a cultura política é elemento central para o

desenvolvimento e para a permanência do sistema democrático. Apesar de outras variáveis

terem se provado mais importantes a implantação e a permanência de um sistema

democrático, a questão chama atenção para outro tema: a qualidade da democracia. Não é

necessário que se haja uma extensa cultura participativa para o desenvolvimento da

democracia, mas pode ser encontrado em aspectos culturais muitos dos elementos

explicativos para o mau funcionamento das instituições e suas limitações. Segundo Avritzer

(1996: p. 136):

Trata-se de compreender que existe uma cultura política não-democrática que se

entrelaça com a institucionalidade democrática. As práticas dominantes, nesse caso,

não são puramente democráticas e nem puramente autoritárias.

Do macro ao micro, da união ao município

O presente trabalho lança um olhar para a comunidade local, muito semelhante ao

conceito de peasantsociety apresentado por Redfield, o contato entre a cultura das grandes

cidades, da vida urbana - que em muitos aspectos renega a vida familiar, ligada a terra,

5Pateman crítica a obra de Almond e Verba ao perceber que a cultura política melhor qualificada estava amplamente ligada a cultura política democrática presente nos Estados Unidos. Reconhecer a cultura política como elemento importante na compreensão da democracia não é o mesmo que apontar a existência de um único caminho.

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marcadas por relações fixas e contínuas - é cada vez mais amplo e o pequeno município já se

encontra em um meio termo, “representando um tipo de sociedade ‘intermediária entre a tribo

e a cidade moderna’ ...”(REDFIELD, S/D: p. 16)

Em todos os municípios pesquisados, foi claramente observadaa relevância de certas

famílias, normalmente ligadas a terra ou detentoras de amplo capital econômico. Em torno

destas famílias se formam grupos, os quais passam a compartilhar objetivos políticos e

percepções acerca da vida comunitária. A solidariedade nesses municípios é uma questão

central, decisiva ao desenvolvimento de noções associativistas e a mobilização da população.

O pobre, o campesino carente economicamente, pequeno proprietário de terras é alguém que

precisa de ajuda e a comunidade local se organiza rapidamente para ajudá-lo quando o mesmo

necessita. A fé cristã, normalmente católica, é forte orientadora desses valores. O padre se

caracteriza como importante figura social e política, através da religião a vida local encontra

seus limites, suas normas e regras, complementando e reforçando as relações baseadas na

família e principalmente na figura patriarcal. A obra de Gilberto Freyre(2006) apresenta a

identidade fortemente familiar e consequentemente paternalista da formação identitária do

brasileiro.

O grande patriarca, dono de muitas terras, presente na origem do município, acaba por

se tornar também seu líder político. A organização partidária do sistema representativo

brasileiro chega a esses locais para dar forma institucional a grupos políticos que existem para

além de siglas partidárias. A política se construía naquilo que o líder patriarcal podia fazer

pelas pessoas, pelo seu grupo. Mais relevante que pertencer a UDN ou PDS, a ARENA ou

MDB, a PMDB, PFL ou PSDB, é se enquadrar no grupo político dirigido por sujeito A ou B.

Wolf expressa bem a relevância dos grupos informais e sua relação com sistema formal:

Algumas vezes, tais grupos informais agarram-se à estrutura formal como cracas em

a um navio enferrujado. Em outras ocasiões, as relações sociais informais são

responsáveis pelos processos metabólicos necessários para que se mantenha a

instituição formal em operação[...](WOLF, 2003: p. 94)

Uma das categorias trabalhadas por Wolf é central ao entendimento do funcionamento

das instituições políticas no Brasil em especial nestes pequenos municípios: as relações

patrono-cliente. Essa relação nasce na forma do pequeno proprietário, do pobre urbano, que

dependem da “solidariedade” de alguém em posição superior economicamente, e acaba por se

tornar cliente. Nessa relação se forma um sistema de reciprocidade onde o patrono recebe

benefícios políticos, mas também sociais, que se manifestam na forma de status como

caridoso, “pai dos pobres”, entre outros. Do outro lado se encontra o cliente, que recebe bens

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materiais imediatos e a segurança de poder contar com o apoio de seu patrono. Wolf trata essa

relação como uma forma de amizade instrumental, mais esvaziada de condições emocionais.

Nesse ponto são necessárias ressalvas. Como dito anteriormente, as relações presentes nesses

pequenos municípios e comunidades se aproximam mais de uma percepção holista do mundo

que individualista-capitalista. Assim, a relação do patrono está aí também relacionada com

certo dever de caridade para com a comunidade, caridade vinda de uma religiosidade que

coloca o homem na função de provedor.

Obviamente não é uma relação esvaziada de interesses pessoais e materiais, porém ela

não ocorre em um contexto puramente material. Não raramente é criada uma relação de afeto,

reconhecimento e fidelidade entre patrono e cliente. Na época das eleições essa fidelidade não

se limita ao voto, mas se transforma, muitas vezes, em militância. O próprio autor reconhece a

existência e o desenvolvimento desse tipo de sentimento, porém acaba o deixando em

segundo plano. O cliente se torna então um apoiador político. Esse apoio político se

transforma, em vários casos, numa tradição familiar. Toda a família passa a destinar seu voto

a determinada líder político. Mesmo quando essa realidade se altera, e os líderes políticos

tradicionais perdem sua força, a figura do pai ainda permanece relevante nas campanhas

políticas, convencê-lo significa garantir o voto não só dele, mas de toda a sua família.

Outro ponto que merece atenção e que se constituirá, atualmente, em uma séria

transgressão na política é a participação de familiares na administração pública, prática

conhecida como nepotismo. Nos pequenos municípios há não só um problema relacionado à

preponderância das relações familiares na organização social, mas também há um problema

prático. Não raramente existem relações de parentesco em grande parte do município. Não

colocar um parente na política limita bastante as possibilidades de escolha. A formação dos

grupos políticos tem bastante coincidência com os grupos familiares, então quem mais

confiável e mais íntimo a se colocar na prefeitura do que um ente familiar próximo? Dar lugar

a uma pessoa de fora pode soar como uma afronta. A própria figura do forasteiro pode ser

vista como negativa.

O uso da máquina administrativa não fugirá também da relação com os grupos.

Existem vários relatos que um grupo político não favorecia de forma alguma outro grupo,

pelo contrário, a fidelidade ao grupo atende também uma lógica religiosa. Em tempos de

eleições, quando não além deles, famílias deixam de conversar por comungarem em grupos

diferentes. Dois exemplos empíricos podem ser observados na trajetória política do Município

de Belo Oriente e de Alvinópolis.

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Em Belo Oriente a política se polarizou dentro de dois grandes grupos definidos a

partir da territorialidade. O município é dividido em quatro grandes distritos, tendo

preponderância no número de habitantes o distrito de Cachoeira Escura e a Central. Desde a

ampliação do distrito na década de 70, até o fim da década de 90, a política se desenvolvia no

embate de dois grandes grupos que representavam estes distritos. O prefeito vitorioso ajudava

o seu respectivo distrito abandonando o outro. Em Alvinópolis é observado a emergência de

um grande grupo familiar enquanto força política, que acabou se dividindo em dois grupos na

disputa pelo poder. A população apelidou os dois grupos de tampa e balaio.

As eleições não são o momento onde a racionalidade da busca do bem comum

sobressai os interesses particulares e não se limita a um momento de puro procedimentalismo,

pelo contrário, o período eleitoral é um momento de festa, com grandes churrascos e

palanques, que depois se transformam em showmícios com bastante comida. Em Arinos

pode-se observar que a prática de oferecer uma grande farofa aos eleitores era essencial, nisso

se encontrava uma prática vital que poderia tirar ou dar a vitória a um candidato.

As pequenas cidades não se desenvolvem enquanto campo das grandes disputas

ideológicas, do movimento trabalhista, das grandes empresas capitalistas e do

desenvolvimento industrial, mas, antes, do dia-a-dia, onde o asfalto é o discurso dominante, o

saneamento básico é revolucionário e o médico é mais que um profissional liberal. Cada líder

se prendia a fazer àquilo que pensava ser o melhor para o município, essa era a ideologia

política. Quando perguntado sobre as bandeiras ideológicas, um dos entrevistados de Bom

Sucesso responde:

Era uma política voltada muito para o partidarismo. Se você fosse daquela facção

política você sempre tinha uma oportunidade a mais para conseguir recurso para o

município, mas era mais para fins eleitorais.

O entrevistado disse, ainda, que não existia bandeira ideológica. O partido serve para

conseguir apoio em outros níveis de governo e consequentemente recursos para o município.

As fidelidades não seguem a forma dos partidos.

Essa realidade, no entanto, não permanece estática, apesar de muitos desses

municípios terem passados pelos principais momentos da política brasileira sem vivenciá-los

intensamente, relegados a seu viver cotidiano, eles não ficam livres das grandes instituições,

do desenvolvimento da democracia liberal e do crescimento e acirramento da regulação do

Estado. Novos recursos passam a chegar aos municípios, porém chegam também formas de

regulação. Após a reabertura democrática a necessidade de estruturar as prefeituras em torno

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de Secretarias, as mudanças na legislação eleitoral, o contínuo crescimento e fortalecimento

das mídias de massas não respeitam os diferentes momentos em que as cidades, nos seus

diferentes portes e realidades se encontravam. Instituições nacionais alcançam todo o

território nacional. A União chega ao município cada vez mais intensamente, o município

passa a ter responsabilidades que antes não possuía. Assim como a Revolução Mexicana de

1910 destrói a forma cultural da hacienda, essa série de mudanças mina ou altera algumas

formas culturais citadas até aqui, provenientes de contextos imersos em práticas mandonistas,

paternalistas e de clientela. Isso não significa, de forma alguma, que elas deixam de existir.

Antes de abordar os conselhos diretamente nos parece relevante abordar a inserção do

PT e do sindicalismo trabalhista em alguns municípios, em especial Arinos e Ladainha, pois

nos ajudará a perceber a influência do contexto nacional na vida local, sem necessariamente

partir do Estado. O PT é um partido que chega a esses municípios na década de 80 e 90e nos

casos de Ladainha, Conceição das Alagoas e Arinos é criado junto ao Sindicato dos

Trabalhadores Rurais, nas duas últimas houve também comunicação com o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra(MST). A instalação do partido é comumente acompanhada de

conflitos com as forças políticas e ideais tradicionais. O PT normalmente era chamado de

“comunista” em seu sentido mais pejorativo, um perigo a família, caso relatado por

entrevistados em Ladainha e em Conceição das Alagoas. Nos municípios em que houve o

contato com representantes do PT, a criação do partido está associada a influências externas:

em Ladainha a criação do partido é influenciado por freiras norueguesas ligadas a teologia da

libertação; em Belo Oriente o partido também é influenciado pela teologia da libertação e pelo

movimento operário em Timóteo, cidade próxima e de médio porte; em Arinos e em

Conceição das Alagoas o fundador teve contato com o partido enquanto estudava em outra

cidade. O perfil do PT nesses municípios tem fortemente o tema da participação e do

rompimento com os elos tradicionais da política. O PT traz uma nova visão a política

municipal, baseados em novos valores políticos, e da mesma forma que veremos adiante nos

conselhos, houve grande resistência ao partido em nível local. Todavia a ascensão de Lula a

Presidência da República renova a perspectiva sobre o partido a nível municipal.

Os conselhos municipais de políticas públicas são uma das inovações institucionais

que chegam a CF/88 e tomam formas mais delineadas a partir da Lei Orgânica de

Saúde(1990), Lei Orgânica de Assistência Social(1993) e do Estatuto da Criança e do

Adolescente(1990)6, logo se propagaram por todos os municípios brasileiros. Nas cidades que

6 Outras leis e decretos darão origem a outros conselhos em cada área específica, como a Lei 9.424/96, que deu

implantou em nível nacional o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização

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orientam a análise, os primeiros conselhos são instalados ao longo da década de 90, sendo

alguns instalados já em 1991. A forma institucional dos conselhos não era conhecida nos

municípios, as associações e entidades que compunham o “público não-estatal” não haviam

ouvido falar deles, porém atendem ao chamado da prefeitura. A premissa principal dos

conselhos municipais é integrar a sociedade na gestão das políticas públicas do município, dar

um canal institucional e formal para que a população, na forma de associações, possa ter uma

participação ativa. Essa havia sido uma importante demanda dos movimentos sociais da

década de 70 e 80, mas a realidade desses municípios não era essa.

Além de todos os elementos da vida local citados anteriormente, nenhum dos

municípios pesquisados foi marcado por população que se mobiliza ativamente fora dos

períodos eleitorais7 e com intenso associativismo político não-partidário. As associações têm

como principal função a prestação de serviços considerados virtuosos, como lares de idosos,

APAE, lares de crianças, motivadas por aquela solidariedade local, muitas vezes de cunho

religioso. A função dos conselhos, na maioria desses municípios, se focaliza principalmente

na fiscalização de gastos nas respectivas áreas e na discussão sobre a implantação de algumas

políticas propostas pelo poder público, variando um pouco de município para município. Os

conselhos, no entanto, têm grande dificuldade de funcionamento, não houve nenhuma cidade

em que os conselhos, de maneira geral, funcionavam com grande eficácia e que tivesse ampla

participação da população, em alguns casos não havia participação nem do poder público e

alguns se tornam conselhos fantasmas. Em Bom Sucesso o CMAS foi desativado em 2001

devido à falta de participação, mas foi ativado posteriormente. Em Ladainha observamos

grande dificuldade na estruturação do CMS devido a centralização da secretária de saúde em

relação às tarefas do conselho. Em cidades como Belo Oriente, Bom Sucesso e Arinos, houve

grande adesão inicial das associações aos conselhos, entretanto a empolgação inicial não

permanece intensa. Wolf retrata bem essa realidade:

Ainda em outros casos, descobrimosque o esquema formalde organização é muito

elegante, mas não funciona, a não serque sejam encontrados mecanismos informais

que a transgridam diretamente [...] (WOLF, 2003: p. 94)

Houve relatos de conselhos que funcionavam mais ativamente e normalmente estavam

relacionados a demandas muito evidentes e ligadas diretamente ao cotidiano, como o

do Magistério (FUNDEF) e deu origem aos Conselhos Municipais de Acompanhamento e Controle do Fundo de

Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério. 7 O município de Arinos recebeu vários assentamentos na década de 90, tendo casos de conflitos sérios entre a

prefeitura local e um assentamento, entretanto foi um movimento causado por causa externas. Campina Verde

também teve um assentamento no perímetro urbano do município que acabou por se tornar um bairro, porém foi

uma mobilização pontual.

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Conselho Municipal de Assistência Social de Bom Sucesso, que funcionava regularmente e

tinha a função de definir as pessoas que receberiam casas da prefeitura ou reformas; o

Conselho Municipal de Desenvolvimento do Meio Ambiente de Belo Oriente, cidade onde

está instalada uma grande multinacional que trabalha com celulose; o Conselho de

Desenvolvimento Rural e Sustentável de Ladainha, que é uma cidade onde a maioria da

população é rural e o conselho fiscaliza um programa nacional de auxílio ao produtor rural.

Os Conselhos têm então uma dupla faceta: representam uma mudança institucional

relevante, porém não alcançam sua completa potencialidade, enquanto instituição

representante de uma democracia participativa. Isso não ocorre somente através de

esvaziamento por parte do poder público, mas pelo evidente conflito entre uma instituição

pensada dentro de certas orientações culturais e ideológicas que não são os valores

preponderantes da cultura política dominante desses municípios. O prefeito não é uma figura

distante, pelo contrário, todos o conhecem, conhecem sua família, sabem onde ele mora,

quem são seus filhos e em que trabalha. O vereador segue o mesmo padrão. Despersonalizar a

relação entre os atores sociais, participar de uma instância burocrática e regida por um

procedimentalismo complexo pode ser demasiado elegante. Por outro lado o cotidiano mais

próximo leva as pessoas a se comunicarem diretamente com seus representantes, pedindo, na

forma de indivíduo, que suas demandas sejam atendidas.

A criação dos conselhos municipais acarreta também o desenvolvimento de

conferências municipais temáticas, onde são discutidos temas referentes à área específica e

ocorre o processo de escolha de representantes do município que são enviados a conferências

estaduais e láexiste a possibilidade de chegarem a conferências nacionais. As conferências por

sua vez já alcançam um número maior de pessoas por serem eventos pontuais, ocupando

somente um dia ou uma tarde da vida do munícipe. A população, o indivíduo alvo das

políticas, o cidadão simples, ainda tem muita dificuldade a compreender e atingir as

complexas tramas que envolvem o Estado Moderno e a administração pública. O desafio de

desenvolver instituições participativas não se limita a um desenho institucional funcional,

coerente internamente e com a lógica nacional, mas que leve em consideração um conjunto

mais holista de relações compreendendo a dinâmica local e seus limites.

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Conclusão

O presente artigo teve a pretensão de estabelecer uma análise sobre a implantação dos

Conselhos de Políticas Públicas em municípios de pequeno porte a partir de uma análise mais

ampla, considerando os conflitos entre uma ideologia democrática(moderna) e uma ideologia

tradicional, lastreada na vida cotidiana e local. Além disso, realizamos uma abordagem

baseada no papel do Estado, o ente federativo maior, na inserção de novos valores e práticas

no interior dos pequenos municípios, o que revela a relação entre valores diferentes, em

muitos casos opostos, que colocam de um lado as instituições políticas mais modernas do

sistema político brasileiro e de outro, práticas políticas tradicionais já amplamente difundidas

nesses contextos.

É necessária a compreensão da dimensão cultural que perpassa a influência do Estado

na vida local, e como essas mudanças podem encontrar limites de ordem também cultural a

eficácia de instituições que atendam a uma lógica democrática baseada na participação

política mais ampla da população, ou mesmo políticas públicas e instituições de outra

natureza. A antropologia tem um papel fundamental nessa análise, pois parte de uma análise

menos especializada, como apresenta Wolf, desvelando a complexa rede de relações sociais

que ligam a esfera da política a outras esferas, como a da família, da religião e da

territorialidade conjugado a fatores externos a realidade estritamente local. Os pequenos

municípios, e talvez municípios de outros portes, devem ser observados com cuidado, e não

como uma mera extensão da realidade federativa, mas como outro nível, que compõe um

sistema maior de relações, que possuí traços culturais diferenciados e, portanto, responde de

forma igualmente diferenciada a interferência de mudanças motivadas por agentes nacionais,

ou mesmo estaduais.

Entender o presente estado dos conselhos municipais de políticas públicas e conselhos

temáticos, passa pelo entendimento de como se deu a implantação destes conselhos e em qual

terreno eles se desenvolvem. A proposta de uma democracia participativa não se limita aos

aspectos estritamente institucionais.

A atual democracia brasileira continua a chegar aos municípios através da influência

do Estado, trazendo novos elementos a estrutura social e política local, dando movimento,

colocando lado a lado valores conflituosos, que às vezes rompem com a tradição, em outros

casos a renovam e podem, ainda, não representar qualquer mudança efetiva. Neste complexo

jogo, do macro ao micro, as instituições nacionais se tornam locais.

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