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THIAGO INGRASSIA PEREIRA ORGANIZADOR

HA UMA

UNIVERSIDADE

NO MEIO DO CAMINHO

Caminhadas dos Bolsistas do PET/Conexões de Saberes da UFFS/Erechim até a Universidade

Erechim, 2012

Page 4: Há uma universidade no meio do caminho

© Os autores - Todos os direitos reservados - 2012

Organização:Thiago Ingrassia Pereira

Revisão:Profª Zoraia Aguiar Bittencourt

Produção Gráfica e Impressão:Evangraf - (51) 3336.2466

[email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

U58 Há uma universidade no meio do caminho: caminhadas dos bolsistas do

PET/conexões de saberes da UFFS/Erechim até a universidade/ Organizador: Thiago Ingrassia Pereira. – Erechim : Evangraf, 2012. 160 p.

ISBN 978-85-7727-427-7

1. PET Conexões. 2. Saberes. 3. Educação Popular. I. Pereira, Thiago Ingrassia.

CDU 378 CDD 378

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)

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SUMÁRIO

PREFÁCIO OU NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM SONHO...Maria Aparecida Bergamaschi ...................................................... 7

APRESENTAÇÃO – A CONSTRUÇÃO DOS MEMORIAIS FORMATIVOS E A DEMOCRATIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE PÚBLICAThiago Ingrassia Pereira ............................................................. 13

PARTE I

O QUE APRENDI NO CAMINHO: ENTRE OS SONHOS E AS CERTEZASFernanda May ............................................................................23

POR UM MUNDO MAIS SOLIDÁRIO E RECONHECEDOR DA DIVERSIDADERafaela da Silva Bispo ................................................................. 31

ESQUECIMENTOS MEMORÁVEISJanniny Gautério Kierniew ......................................................... 39

EU SOU ASSIMSilvia Maria Ujacov ..................................................................... 49

O DONO DO CAMINHOFabrício Fontes de Souza ............................................................ 61

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PARTE II

MEMÓRIAS ESTUDANTIS: UMA TRAJETÓRIASeli Terezinha Leita ..................................................................... 83

EDUCAÇÃO, CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIAS PARA ALÉM DO BÊ-Á-BÁSandra Regina Ferreira Müller .................................................... 93

MEMÓRIAS DE UM SONHADORDaniel Gutierrez ....................................................................... 105

SER, VIVER E LEMBRAR: MINHA TRAJETÓRIA ATÉ A UNIVERSIDADEJoviana Vedana da Rosa ........................................................... 113

UMA TRABALHADORA TEIMOSA E ESTUDANTE OU SERÁ UMA ESTUDANTE TRABALHADORA E TEIMOSA?Paula de Marques .................................................................... 121

PARTE III

MEMORIAL FORMATIVO: A ESCRITA DAS TRAJETÓRIAS DE VIDA DE ESTUDANTES DE ORIGEM POPULARRafael Arenhaldt ...................................................................... 135

TRAJETÓRIAS DE VIDA: PERCURSOS DE ESTUDANTES DE ORIGEM POPULARLuís Fernando Santos Corrêa da Silva ....................................... 149

SOBRE ESCREVER E REVISAR: MO(VI)MENTOS DE OLHAR O OUTRO E A SI ATRAVÉS DO TEXTOZoraia Aguiar Bittencourt ......................................................... 153

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PREFÁCIO OUNO MEIO DO CAMINHO TINHA UM SONHO...

Maria aparecida BergaMaschi1

No meio do caminho tinha um sonho! Talvez a universidade, cursada hoje pelos estudantes que participam do PET Conexões de Saberes da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, Campus Erechim – RS, não estaria em seus caminhos se não estivesse, desde muito tempo, em seus sonhos, em seus horizontes. E foi com muita tenacidade e peleja que esses jovens, principais autores do livro, a buscaram para colocá-la aqui, no meio de seus caminhos, na concre-tude de seus sonhos. Este foi o primeiro pensamento que me ocorreu ao ler os memoriais que registram as lembranças e que reconstroem a trajetória vivida por cada estudante até chegar aqui, no seio da Universidade Pública. “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra”, disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1928, em versos que ecoam até o presente, eivados por múltiplas interpretações. Lendo as histórias de vida aqui relata-das, percebi que cada uma delas também se fez letra para que nunca seja esquecido o caminho percorrido – mesmo em momentos de reti-nas fatigadas –, pois a universidade que agora faz parte de suas vidas já foi um sonho no meio do caminho.

A única certeza que eu tinha era a de que, se eu não corresse

1 Professora na Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFRGS.

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PREFÁCIO

atrás, eu não conseguiria fazer a minha faculdade, disse Silvia, em meio aos relatos que mostram como o sonho impulsionou e nutriu a caminhada, sonho que colocou a universidade como parte do seu ca-minho. E, conduzidos pelo poeta inspirador do título do livro, encon-tramos nas histórias de vida as muitas pedras que se sobrepunham como barreiras no meio do caminho: Só não poderia desistir, no pri-meiro obstáculo vencido. De tantos outros que agora tinha consci-ência que iriam surgir no decorrer da caminhada, declara Rafaela. Também a fala poética de Fabrício mostra as difíceis vicissitudes: A cada passo que eu dava, ficava a imagem de uma terra distante, das cantigas, dos sonhos da juventude, das renúncias já outrora feitas. Percebe-se, nas linhas e entrelinhas dos memoriais desses estudantes, que cada um, a seu modo, trilhou um caminho, pautado por um desejo, como também anuncia a Fernanda: O meu sonho em cursar uma faculdade era importantíssimo, pois eu queria estudar, eu gosta-va, eu queria ser alguém na vida, ter uma profissão e viver diferente da forma como meus pais viveram, eles não tiveram oportunidades de ir mais além e de estudar. Ao lembrarem e registrarem suas lem-branças, cada bolsista recolheu, organizou e reorganizou, como num mosaico, as peças de sua memória, reconfigurando o tempo de vida ou a vida no tempo.

Mas o que significa escrever um memorial? É transformar em letras, palavras, histórias, as marcas da memória que hoje são lem-bradas, são escolhidas e tiradas do esquecimento, entre tantas vivên-cias, para se tornarem a história da vida de cada estudante. Eclea Bosi (2003)2 diz que a memória, ao operar com liberdade, escolhe acontecimentos do passado que se constituem em lembranças. Diz ainda a autora que essas configurações são mais fortes quando incide sobre elas um significado coletivo. Nesse sentido, compreendo que os memoriais que aqui brilham são registros de trajetórias individuais, mas configuram lembranças pautadas por um significado coletivo: o caminho que trouxe cada um desses jovens à universidade. São histórias elaboradas com fios coloridos que vão e vêm desde outros

2 BOSI, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

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PREFÁCIO

tempos vividos, fios que identificam uma trajetória pessoal, mas que, ao se juntarem num coletivo, compõem um novo tecido em um novo momento da universidade; fios entrelaçados que sustentam estudan-tes, docentes e o próprio processo que envolve a universidade pública brasileira em relação ao ingresso, permanência e visibilidade de estu-dantes de origem popular.

Em geral, esse assunto é pouco abordado na universidade, pois a pessoa, quando se torna estudante, passa a integrar uma suposta homogeneidade, onde “todos são iguais” e as trajetórias, por mais díspares, por mais obstáculos que registram para aqui chegar, quando postas na sala de aula, todas são igualmente trajetórias acadêmicas. Sim, podemos festejar essa igualdade, pois aqui todos são universitá-rios. Porém, as histórias que lemos nesse livro mostram desigualdades sociais e, principalmente, mostram que precisamos tirar da invisibili-dade uma presença significativa, que marca um novo momento da história da educação brasileira, presença que precisa ser ampliada e potencializada. São vozes até então anônimas, que dizem seus nomes, que afirmam suas origens e seus lugares. Sempre estudei em escola pública, tive contato com as mais diferentes pessoas, é uma frase da história de vida da Fernanda, evidenciando a sensibilidade de perceber as diferenças, de fazer existir essas diferenças. Por isso os memoriais: escrever histórias é produzir memórias e é, também, uma forma de conferir existência aos grupos sociais que há pouco tempo estavam ausentes ou silenciados do meio acadêmico. Os memoriais falam, can-tam, dizem que esses jovens estão aqui, que estas são as histórias que contam para existir, mas também para terem uma perenidade.

São estudantes que olham para as suas histórias desde aqui, da universidade, já usufruindo, com todo o direito, a vaga conquistada, sem tirar os olhos do que acreditam. Sonham, e continuam a cons-truir caminhos para que as universidades se façam espaços plurais, onde filhos e filhas de trabalhadores e trabalhadoras do Brasil pos-sam dizer a sua palavra, que possam fazer parte da construção de um novo saber, diz Rafaela, pronunciando a sua palavra, anunciando a sua caminhada, permeada de passado e de futuro. Já dizia Ilya

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Prigogine (1991)3 que as decisões humanas dependem das lembran-ças do passado e das expectativas para o futuro, o que torna mais evidente a importância e a necessidade de tecer (tornar texto) as tra-jetórias de cada estudante, retomando o curso (caminho) que cada um produziu em seu passado (agora presente), para fazer a história, o futuro na universidade. Mas esses estudantes anunciam mais: que-rem uma universidade mais justa, almejam um espaço universitário que não apenas lhes confira uma graduação, mas que se abra, que se faça plural, que contribua para tornar a sociedade menos desigual.

Suas histórias, tecidas no presente, mostram a força de quem já superou difíceis obstáculos para ocupar um espaço que, em nosso país, se fez para poucos, mostram origens diversas, com enredos que envol-vem lugares distantes do país e do estado. Porém, algo aproxima estas histórias e estes caminhos, que se encontram em Erechim, na Universi-dade Federal da Fronteira Sul – um novo espaço acadêmico público e gratuito e de qualidade, que, além de formular um ingresso que busca fugir do histórico “funil”, preocupa-se também com a permanência dos estudantes, tornando menos íngremes os caminhos desses que, muitas vezes, se sentem “peixes fora d’água”. Em seus relatos, percebe-se que aqui na UFFS encontraram apoio para fazer este espaço seu e, por isso, também apontam novas necessidades e lutam por um novo cenário de oportunidades, que rompa com qualquer forma de desigualdade social, como se lê nas palavras da Rafaela.

Esses estudantes deixam transparecer, em suas sapiências, que o caminho não está dado, e, por isso, falam da necessidade de conti-nuar a luta por outros que estão a caminho, pois hoje a universidade no Brasil, mesmo com todas as iniciativas desses últimos anos para expandir vagas, para tornar o acesso mais amplo e democrático, ain-da não é um lugar para todos: Luto por espaços para desenvolver e aguçar os sonhos daqueles que buscam a formação pessoal justa e limpa, mesmo em suas diversas dificuldades, diz Fabrício. E Janniny retoma uma frase de Eduardo Galeano, situando seus sonhos como uma utopia: E, para que serve a utopia?, pergunta ela, parafraseando o poeta. Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

3 PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do tempo. Lisboa: Edições 70, 1991.

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Essa é a caminhada que relatam aqui, caminhada que os trouxe até a universidade pública, um lugar privilegiado, ainda para poucos em nosso país. Por isso há também um significado coletivo nas entre-linhas das histórias de vida de todos os estudantes, mas que Fabrício transforma em palavras: Luto por esta universidade ser cada vez mais os sonhos de milhares de pessoas que idealizam chegar até aqui. E, nas páginas desses memoriais, lembrei de outra situação semelhante, vivida com estudantes do Programa Conexões de Saberes UFRGS, em sua primeira edição, na qual também registramos as trajetórias de vida e as publicamos – são os memoriais que compõem “Caminhada de estudantes de origem popular”, lidos pelos estudantes do PET Conexões de Saberes da UFFS, Campus Erechim. Na apresentação, escrevi algo que acho oportuno retomar, para celebrar o encontro com os autores desse livro, para dizer que suas histórias emocionam: “apesar de narrarem, muitas vezes, o imponderável, as palavras estão carregadas de doçura – e esperança – mesmo ao descreverem expe-riências angustiosas, pois as vejo aqui como poesia”.

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APRESENTAÇÃO

A CONSTRUÇÃO DOS MEMORIAIS FORMATIVOS E A DEMOCRATIZAÇÃO DA UNIVERSIDADE PÚBLICA

Thiago ingrassia pereira1

Não é, desde logo, uma autobiografia.

Não é um livro de memórias, mas um livro que tem memórias.

(Paulo Freire)

A advertência feita por Paulo Freire em seu diálogo com Sérgio

Guimarães2 é apropriada para este livro, que surge como um desafio e que tem uma esperança. O desafio se encontra na ideia de ser um livro escrito por estudantes e professores engajados no processo de democratização do acesso e da permanência no Ensino Superior brasileiro, marcando as intencionalidades política, epistemológica e pedagógica do Grupo Práxis - PET/Conexões de Saberes da Univer-sidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim – RS, pro-movendo, e aí vem a esperança, o debate da educação popular na universidade a partir das trajetórias de vida dos bolsistas de origem popular que constituem o programa.

1 Sociólogo, Doutorando em Educação (UFRGS). Professor da área de Fundamentos da Edu-cação e Tutor do Grupo Práxis – PET/Conexões de Saberes da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim.2 FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. Aprendendo com a própria história I. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

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APRESENTAÇÃO

Segundo o portal do Ministério da Educação3, o Programa de Educação Tutorial (PET) foi criado para apoiar atividades acadêmicas que integram ensino, pesquisa e extensão. Formado por grupos tu-toriais de aprendizagem, o PET propicia aos alunos participantes, sob a orientação de um tutor, a realização de atividades extracurriculares que complementem a formação acadêmica do estudante e atendam às necessidades do próprio curso de graduação. Os estudantes e o professor tutor recebem apoio financeiro de acordo com a Política Nacional de Iniciação Científica.

O PET/Conexões de Saberes da UFFS/Erechim surgiu a partir do Edital n. 9/2010 - MEC/SESu/DIFES. Em seu primeiro processo de seleção de bolsistas (novembro/2010), ofertou quatro (4) bolsas re-muneradas e duas (2) bolsas voluntárias. Tivemos a inscrição de doze (12) estudantes de Licenciatura da UFFS/Erechim. A composição do grupo de bolsistas que iniciaram o programa observou três (3) estu-dantes de Ciências Sociais e um (1) estudante de História, um (1) de Geografia e um (1) de Pedagogia.

Já no início do trabalho, uma bolsista voluntária do curso de Ci-ências Sociais acabou desistindo de integrar o programa em virtude de trabalho remunerado. Essa situação voltou a ocorrer durante o ano de 2011, indicando o desafio de, efetivamente, construirmos po-líticas incisivas de permanência na universidade. O grupo de bolsistas foi se configurando em estreito vínculo com as necessidades mate-riais imediatas dos estudantes.

Dessa forma, a construção do trabalho do PET/Conexões de Sa-beres acompanha a própria construção da UFFS. Essa situação nos coloca diante de inúmeros desafios, pois estamos diante de uma “uni-versidade em movimento”4. A UFFS é uma universidade nova, que nasce a partir de uma luta antiga da comunidade do norte gaúcho por uma universidade pública federal na região. Com sede na cidade catarinense de Chapecó, a UFFS possui campi nas cidades gaúchas

3 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12223&Itemid=480>. Acesso em: 21 jul 2011. 4 Expressão que intitula o capítulo escrito por Dirceu Benincá em livro por ele organizado: Universidade e suas fronteiras. São Paulo: Outras Expressões, 2011. Para maiores informações sobre a UFFS, acessar <www.uffs.edu.br>.

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APRESENTAÇÃO

de Cerro Largo e Erechim e nas cidades paranaenses de Realeza e Laranjeiras do Sul. Trata-se de uma universidade voltada para a popu-lação dos 396 municípios que compõem a Mesorregião da Fronteira do Mercosul – uma região historicamente desassistida pelo poder público, especialmente no tocante ao acesso à educação superior.

Tendo em vista esse cenário, torna-se fundamental a presença qualificada dos estudantes na UFFS, uma vez que, em sua maioria, são provenientes da escola pública e de territórios populares urbanos e rurais. Estamos diante de importante momento histórico a ser con-solidado por meio da articulação seminal dos saberes populares com os saberes acadêmicos, uma das propostas historicamente presente no projeto político do Programa Conexões de Saberes5.

Ao começarmos as atividades do PET/Conexões de Saberes com os memoriais formativos, nosso objetivo foi o resgate da trajetória de vida dos estudantes até a universidade. Contudo, não nos interessava apenas relatar histórias e situações, mas, sobretudo, refletir sobre a própria prática, oportunizando a compreensão de nosso espaço no mundo e com o mundo. Por que, então, publicar os memoriais?

A ideia de um livro sobre memoriais dos bolsistas de origem po-pular não é original, mas faz parte da proposta pedagógica obser-vada nas diversas experiências dos Programas Conexões de Saberes reunidas na coleção Caminhadas6. O objetivo de um livro que tem memórias é situar a nossa experiência pessoal em um contexto mais amplo, permitindo o estabelecimento de conexões entre o particular e o geral, entre o vivido e o pensado, entre a dor e a alegria, entre o medo e a esperança, enfim, entre nós e os outros.

Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, em versos escritos em 1928, entendemos que a universidade para as classes populares é uma “pedra no meio do caminho”, quando, de fato, se constitui em

5 Vale destacar que o Conexões de Saberes foi um programa desenvolvido pela SECAD/MEC a partir de 2004. Contando com a parceria do Observatório de Favelas – RJ, o programa foi desenvolvido em universidades federais de todo Brasil, chegando a ter 2200 estudantes univer-sitários de origem popular como bolsistas em 2008. A partir de 2010, o Ministério da Educação propôs a criação de grupos PET na modalidade Conexões de Saberes. 6 A coleção Caminhadas de universitários de origem popular está disponível em <http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/acervo/publicacoes.php>. Acesso em: 21 jul 2011.

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realidade nos projetos de vida dos jovens que se esforçam para man-ter sua condição de trabalhador que estuda, na acepção de Carlos Rodrigues Brandão.

Dessa forma, o primeiro grupo de bolsistas foi constituído ainda no ano de 2010. Fernanda, Silvia, Rafaela, Fabrício e Janniny deram o pontapé inicial nas atividades do programa. Seus memoriais cons-tituem o primeiro bloco (parte I) deste livro. A partir de nova seleção de bolsistas, ocorrida em outubro de 2011, um novo grupo de estu-dantes passou a integrar o nosso Práxis. Seli, Joviana, Sandra, Daniel e Paula aceitaram o desafio de escreverem seus memoriais e são seus textos que compõem o segundo bloco (parte II) de memoriais desta publicação.

Este livro é, então, resultado do primeiro ano de atividades do PET/Conexões de Saberes na UFFS/Erechim. Pensado originalmente a partir da escrita dos memoriais do primeiro grupo de bolsistas, a difi-culdade de recursos financeiros para a publicação nos criou um bom problema: novos bolsistas chegaram e, com eles, outras experiências de vida passaram a enriquecer o nosso programa. Assim, por que não publicarmos os novos memoriais que seriam escritos?

Nessas idas e vindas, inclusive dos próprios bolsistas, temos este livro em mãos. Ele é resultado de um trabalho coletivo de intensas dis-cussões. Colegas professores foram adentrando nessa experiência e deram uma imprescindível contribuição. Seus textos, também presen-tes no livro, retratam o envolvimento sério e competente que tiveram no diálogo com o nosso grupo do PET/Conexões de Saberes. Eles estiveram, para além de suas fundamentais intervenções como pro-fissionais da educação, presentes como cidadãos, amigos e militantes pela democratização do Ensino Superior público em nosso país.

Os textos dos professores Rafael Arenhaldt, Luís Fernando Santos Corrêa da Silva e Zoraia Aguiar Bittencourt (parte III) representam isso: o compromisso com a educação pública e democrática. Por isso, não poderia faltar o prefácio da professora Maria Aparecida Berga-maschi. Escrito ainda em 2011, portanto antes da construção dos textos dos bolsistas que entraram na segunda seleção do PET/Cone-xões de Saberes, o nosso prefácio fala a partir de dois lugares que, ao fim e ao cabo, são os lugares de projetos como o PET/Conexões

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de Saberes: a universidade, lugar de saberes metódicos e rigorosos, e a comunidade, representada pelos estudantes de origem popular em suas trajetórias de entraves e superações. Essa é a conexão entre os saberes populares e acadêmicos. Esse é um dos nossos desafios, particularmente em nosso projeto de universidade pública e popular.

A construção dos textos e de nós mesmos

O desafio começou por leituras sobre memoriais, inclusive, os memoriais dos bolsistas de diversos Conexões de Saberes pelo país afora. Pessoas reais que passaram a penetrar em nosso imaginário, que passaram a ser, ainda que desconhecidas, familiares a nós, pois nossa condição social, nossas angústias, o difícil (e até improvável) caminho até a universidade são fatores que nos aproximam e criam solidariedades que fomentam um sentimento de pertencimento.

No primeiro semestre de 2011, lembro que em nossos encon-tros7 os sentimentos acerca da escrita de si afloraram. Combinamos que cada bolsista teria um encontro específico para apresentar ao grupo seu memorial, ainda que em forma de rascunho. Decidimos a ordem das apresentações. Começamos pelo Fabrício que, por ser pioneiro, acabou tendo pouco tempo para, de fato, discutir seu traba-lho, pois estávamos (nos) aprendendo. De viagem marcada para um congresso da área de Geografia em Goiás, Fabrício ficaria um tempo ausente e, em diálogo, acertamos que ele (seu memorial) voltaria a ser tema de discussão no grupo.

A Fernanda foi a segunda a (se) apresentar. O fio condutor de seu memorial foi a questão da aprendizagem. Como futura profes-sora, Fernanda buscou, na reflexão sobre sua prática, os elementos

7 A proposta de escrita dos memoriais pelo primeiro grupo de bolsistas foi lançada ainda em dezembro de 2010. Contudo, depois do período de recesso e das dificuldades iniciais com o pagamento das bolsas, apenas em março de 2011 é que, efetivamente, começamos a construir uma reflexão sistemática sobre o tema por meio de encontros periódicos e leituras orientadas. A primeira versão dos memoriais dos bolsistas foi escrita até o final de abril, início de maio. Depois de algumas etapas, o encaminhamento da versão final ocorreu ao término do primeiro semestre letivo de 2011 (julho). Claro, como atividade viva, esse processo não esteve imune a contradições e algumas flexibilidades de prazos, ainda que, pedagogicamente, há um momento em que é preciso “terminar”.

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educativos que a formaram. Na verdade, esse sempre foi um resulta-do esperado no trabalho com os memoriais. Mas não é simples. Con-tudo, Fernanda mostrou sensibilidade para saber por que aprendeu e o que ainda tem para aprender (e ensinar).

Rafaela foi a próxima a trazer ao grupo seu memorial. Já está-vamos no meio do mês de abril. Rafaela, ainda que de forma intro-dutória, nos apresentou aquilo que a constitui como universitária e militante: a questão da diversidade e o movimento de denúncia dos preconceitos, em especial o racial, e de anúncio de medidas con-cretas para alteração de cenários opressores. Talvez por isso Rafaela queira ler sempre tantos livros, para fortalecer seus argumentos em torno de questões complexas, como ações afirmativas, movimento estudantil e a própria política de bolsas e auxílios da universidade.

Com toda a sua itinerância, Janniny, nossa “voluntária volunta-riosa”, nos brindou com um relato-reflexão sobre sua trajetória. Junto ao texto, ela trouxe álbuns de fotos e relíquias que contam sua tra-jetória, mostram um pouco do que viveu e daquilo que aprendeu. A moça que gosta das palavras estava diante do desafio de transformar suas experiências em palavras, mesmo que umas tenham mais “mu-sicalidade” do que outras.

O trabalho, as escolhas, o sentimento de busca. Silvia nos apre-sentou um pouco de tudo isso. Seu texto, sempre denso em descri-ções, nos remete à relação entre trabalho e estudo, entre o sonho e a oportunidade. Estudar, para grande parte dos jovens brasileiros, assim como para Silvia, não pode estar associado a uma mensalidade que comprometa a renda familiar. Por isso, a universidade pública (gratuita), em uma cidade perto de onde moram seus pais, foi decisi-va para sua entrada na graduação.

Mas, ainda era preciso retomar o diálogo com o Fabrício. E fize-mos isso, ainda que, já no início de maio, muitas questões estivessem em nosso horizonte. O principal desafio foi o planejamento e a exe-cução da ação “Quero entrar na UFFS”, em parceria com a Coorde-nação Acadêmica e com o Setor de Assuntos Estudantis (SAE). Os memoriais foram encaminhados em meio a visitas a muitas escolas, nas quais pudemos apresentar a universidade e a vida em suas (im)possibilidades, não, necessariamente, nessa ordem.

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Então, o Fabrício, como um bom “dono do caminho”, recolocou na pauta as suas vivências, suas sensibilidades e atitudes. A partir de uma escrita fluente, descritiva e densa, Fabrício nos apresenta um texto que tem muitos contextos e uma direção: a Geografia como destino (escolha), ainda que, ela mesma, pudesse ser uma “ponte” para o campo das Ciências Sociais.

Depois da nova seleção de bolsistas, retomamos a sistemática de leituras e formações sobre a escrita de memoriais. Mas houve um detalhe importante: o primeiro grupo de bolsistas, já experiente, animou muitas discussões e compartilhou seu processo de escrita. Além disso, a oficina sobre produção textual e os diálogos individuais de orientação foram recursos metodológicos que proporcionaram o ambiente adequado à produção dos textos.

Lançado o desafio no final de 2011, no verão de 2012 as primei-ras linhas dos novos memoriais começaram a ser escritas. Seli foi a primeira a enviar seu memorial e a primeira a receber as críticas cons-trutivas de seu já bonito texto. Mexer no baú da memória, para usar uma expressão trazida pelo professor Rafael Arenhaldt, encontrou na Seli uma boa parceira. As fotos que ilustram seu texto expressam seu cuidado com o passado e sua aposta em um futuro no qual a univer-sidade passou a ter um espaço privilegiado.

Os demais textos foram chegando à minha caixa de e-mails e, no final de fevereiro, estávamos nós a discutir sobre as primeiras versões. Mais uma vez, a escrita dos memoriais permitiu que nos conhecêsse-mos um pouco mais. Conhecer e nos reconhecer.

Sandra compartilhou conosco sua interessante trajetória de vida, na qual muitos obstáculos estiveram presentes. Contudo, na figura de seu pai, encontrou forças para sempre lutar e percebeu, desde muito cedo, o valor do conhecimento, inclusive, como ferramenta de transformação social.

Daniel se classificou como um sonhador e que bom que existam muitos sonhadores no mundo. Muitas escolas e histórias, umas felizes e outras nem tanto, o trouxeram até o Alto Uruguai gaúcho. Aqui viveu a experiência do Ensino Superior privado e, como tantos outros, vislumbrou, na universidade pública, a possibilidade do ensino gratuito e, sobretudo, da continuidade dos estudos em nível de pós-graduação.

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Por sua vez, Joviana não pôde ousar na direção do Ensino Su-perior privado. Sua caminhada até a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e depois até a UFFS indica o papel estratégico do Ensino Superior público nas possibilidades de prosseguimento dos estudos das classes populares. Contudo, para além disso, a trajetória da Joviana mostra sua predisposição ao estudo e seu grande investi-mento pessoal nesse que-fazer.

O memorial da Paula é aquilo que ela representa: uma mulher, mãe, esposa e estudante que se permite, que tem atitude e que não espera acontecer. Mesmo que as nossas possibilidades na vida não sejam cria-das no “vazio”, Paula apostou no estudo como uma forma de emancipa-ção e, até mesmo, de ser um exemplo positivo para sua família. Afinal, para quem se criou dentro de uma escola, ajudar a construir a UFFS é uma tarefa de grande significado pessoal com desdobramentos sociais.

Assim, este livro é resultado de um projeto que busca consolidar a ideia de uma universidade pública e popular no sul do Brasil. Escrito a partir dos memoriais formativos dos bolsistas do PET/Conexões de Sa-beres, é um projeto que ambiciona dar visibilidade a segmentos histo-ricamente alijados dos bancos universitários, mas que, a partir de um conjunto de políticas públicas resultantes de pressão popular, passam a ter presença na vida acadêmica, demandando uma “nova” universidade.

Estamos certos de que a universidade do século XXI precisa ser uma instituição que promova sínteses teórico-práticas em um mundo em mudança, oportunizando conexões entre os saberes acadêmicos tradicionais e os saberes populares. As trajetórias de vida aqui apresen-tadas se constituem em um ponto de partida fecundo para o debate sobre a efetiva democratização da universidade pública brasileira.

Aos bolsistas que estão e passaram pelo PET/Conexões de Sabe-res, aos colegas8 professores que integram essa coletânea e ao apoio financeiro da Capes, meus agradecimentos.

Inverno, 2012.

8 Destaco a importante contribuição da professora Ivone Maria Mendes Silva na construção dos memoriais do primeiro grupo de bolsistas e na própria construção inicial do PET/Conexões de Saberes na UFFS/Erechim.

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O QUE APRENDI PELO CAMINHO: ENTRE OS SONHOS E AS CERTEZAS

Fernanda May1

APRENDERDepois de algum tempo você

aprende a diferença, A sutil diferença entre dar uma mão

e acorrentar uma alma, E você aprende que amar não é apoiar-se

E que companhia nem sempre significa segurança, E começa aprender que beijos não são contratos,

E presentes não são promessas. [...](William Shakespeare)

Não há dúvida de que com o tempo a gente aprende, com novas experiências, descobertas, medos, erros, decepções, alegrias. Apren-demos que a vida é feita de momentos bons e ruins. Aprendemos que as coisas e as pessoas mudam e que nem tudo é para sempre. Aprendemos que os sonhos podem ser grandes ilusões, mas que, se acreditarmos neles, podem se tornar realidade. Aprendemos a dar va-lor a coisas que podem parecer insignificantes. Aprendemos a amar pessoas desconhecidas. E assim, passo a passo, dia a dia, vamos cons-truindo uma história. História que se constrói com vários personagens diferentes e que a cada capítulo revela uma nova surpresa.

Por mais que eu quisesse fugir de começar a minha história pelo começo, acredito que não conseguiria, pois, como toda história, ela

1 Estudante de Licenciatura em Ciências Sociais (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis - PET/Conexões de Saberes desde dezembro de 2010.

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tem um começo, um meio e, especificamente no meu caso, a cons-trução de possibilidades para um fim. Quando eu falo em possibilida-des para um fim, é porque acredito que cada pessoa escolhe o seu caminho e que toda trajetória é marcada por dificuldades, obstácu-los, escolhas, que, de certa forma, influenciam ou determinam até onde se pode chegar.

Eu nasci no dia 28 de fevereiro de 1992. Meus pais, Cilda e Sil-vestre, depois de dois anos de terem tido o primeiro filho, Cássio, ganhavam uma menina, eu, a qual, pela escolha de meu pai, fui ba-tizada Fernanda. Eu acredito que, a partir desse dia, muitas coisas mudaram, principalmente porque meu nascimento não foi, sequer, planejado, e a situação financeira de meus pais talvez não desse con-ta de mais uma boca para alimentar. Vindos de famílias pobres, meu pai e minha mãe tiveram que trabalhar muito depois do casamento para conseguir organizar suas vidas. Minha família sempre trabalhou na agricultura, o que me causa admiração, principalmente em per-ceber o carinho com que meu pai cuida da terra, de onde sempre retirou nosso sustento. À época, com dois filhos, as preocupações tendiam a aumentar. No entanto, mesmo com todas as dificuldades, eles nunca deixaram que faltasse nada a mim e a meu irmão, princi-palmente muito carinho, atenção e amor. Tivemos o privilégio, que nem todo mundo tem, de crescermos como uma família bem estru-turada e unida.

Não quero me deter a falar sobre minha infância, que é uma fase importante na qual se vive intensamente, sem preocupações, sem responsabilidades, mas que passa muito rapidamente, e, a partir daí, já não se vivem mais contos de fada. A gente vai crescendo e, então, começa a aprender que a vida é bem mais complicada.

Primeiro vem a escola, um mundo diferente ao qual não estamos acostumados, longe de casa, da segurança dos pais, onde temos que aprender que a vida só se faz em conjunto com outras pessoas e precisamos respeitar e aceitar suas diferenças. É nesse espaço que a gente começa a descobrir coisas novas, descobrir sentimentos, fazer amigos, um conjunto de acontecimentos que marcam para toda vida, podendo ser positivos ou negativos.

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Sempre estudei em escola pública. Tive contato com as mais dife-rentes pessoas. Algumas marcaram mais, outras menos. Acredito que o que marcou intensamente foi ter conhecido uma pessoa que eu nem imaginava que seria minha companheira pelo resto da vida, minha me-lhor amiga, a Carol. Conhecemos-nos no primeiro ano da pré-escola e, a partir daí, jamais nos separamos. O Ensino Fundamental foi de grande importância em termos de conhecimento e desenvolvimento. Tive professores muito bons, que sempre me incentivaram e fizeram despertar um sentimento de autoconfiança. Sempre fui uma aluna de-dicada. Depois de dez anos na mesma escola, você cria vínculos muito fortes. Aquele ambiente já faz parte da sua vida e você não consegue se imaginar longe. Porém, completando o Ensino Fundamental, eu me vi obrigada a abandonar a minha escola do coração. O Ensino Médio era noturno e, como eu morava no interior da cidade de Centenário e não havia transporte para os alunos, eu tive que mudar de escola.

Junto com a mudança de escola, do distanciamento dos amigos, eu, aos quinze anos, tive que sair de casa. Essa foi, talvez, uma das experiências com as quais eu mais aprendi. A minha nova escola fica-va na cidade de Áurea e, como também não havia transporte, eu tive que ir morar com minha avó materna. Foi uma confusão de sentimen-tos que não tem explicação. Primeiro, eu estava mudando de escola e, para piorar, nem em casa eu poderia ficar. Isso, na cabeça de uma adolescente, não poderia ter sido mais complicado do que foi.

Tudo bem que era com a minha avó que eu iria morar, não era ninguém estranho, mas era uma pessoa de certa idade, de uma geração diferente e com uma cabeça diferente. No começo foi até tranquilo, porém, depois de certo tempo, as coisas ficaram difíceis. Nós não nos compreendíamos, mas, ao mesmo tempo, sempre tive muito carinho por ela. Foi uma das pessoas que sempre me ajudou muito. Para complicar ainda mais, a nova escola para qual me mudei era totalmente o oposto da antiga, era desorganizada, poucos pro-fessores levavam a sério suas tarefas; meus colegas, na sua maioria, totalmente desinteressados. Eu não estava acostumada com aquilo e não conseguia aceitar. Na minha concepção, não poderia existir uma escola assim. Eu tinha poucos amigos. Então, às vezes, optava

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por nem ir à escola. Essa situação acabou fazendo com que eu me trancasse no meu mundo: não saía de casa, ficava o tempo todo no quarto e me sentia muito sozinha. Foi nesse período que eu acabei me aproximando dos livros. Eram minha única companhia.

O tempo foi passando e, aos poucos, eu ia tentando me adaptar, mas, de certa forma, os três anos do Ensino Médio foram decep-cionantes. A minha preocupação, principalmente no último ano, era com o vestibular, pois meu sonho sempre foi fazer uma faculdade. Como eu não tinha uma resposta da escola, passei a estudar por conta própria. Sem condições de pagar um cursinho pré-vestibular, a minha tensão aumentava a cada dia.

O meu sonho em cursar uma faculdade era importantíssimo, pois eu queria estudar, eu gostava, eu queria ser alguém na vida, ter uma profissão e viver diferente da forma como meus pais viveram. Eles não tiveram oportunidades de ir mais além e de estudar. E eu não queria isso pra mim. Ao mesmo tempo, eu me via obrigada a aceitar que eu estava distante do meu sonho, que as condições da família não eram suficientes para custear uma faculdade. Mesmo assim, eu não queria desistir, pensava em fazer qualquer coisa, iria trabalhar, fazer um financiamento, o que fosse, mas eu queria estudar.

Chegou, então, a época dos vestibulares. Realizei a prova do Enem e o vestibular de uma instituição privada na qual havia escolhi-do o curso de Psicologia. Quanto à carreira que eu queria seguir, se sucederam muitas opções, entre elas Direito, Odontologia, Psicologia; enfim, as dúvidas são frequentes na hora de escolher. Prestei, então, o vestibular para Psicologia e passei. Fiquei muito feliz, mesmo não tendo certeza de que cursaria. A ideia era conseguir um financiamen-to, o que é consideravelmente muito difícil. As exigências burocráticas e a necessidade do pagamento da matrícula acabaram fazendo com que meu sonho fosse por água abaixo. Mais uma vez eu ia apren-dendo que não basta a gente querer ou sonhar com alguma coisa. E isso me fazia sentir, confesso, raiva da minha situação, raiva de não ter as condições.

Nesse mesmo período, fiquei sabendo através de um amigo que, na cidade de Erechim, que fica próxima à de Áurea, que era onde

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eu morava, havia se instalado uma universidade federal. Fomos atrás de algumas informações e descobrimos que o processo seletivo era através da nota do Enem. Como havíamos realizado a prova, fizemos nossa inscrição. A instituição oferecia poucos cursos e, entre eles, quase nenhum me interessava. Fiz minha inscrição para o curso de Engenharia Ambiental e, como segunda opção, para o curso de So-ciologia. Fiz sem muitas expectativas, pois o resultado da prova do Enem não era nada satisfatório. É mais um aprendizado importante: a deficiência do Ensino Médio e o difícil acesso a informações são determinantes para o desenvolvimento e a qualidade dos estudantes, o que fica evidente quando aparecem os resultados pouco positivos.

Passado algum tempo, foi divulgada a primeira lista dos candida-tos aprovados na Universidade Federal da Fronteira Sul, e meu nome não constava na lista. Foi mais uma decepção, mas era preciso seguir em frente, porque eu ainda não tinha desistido do meu sonho.

Então, resolvi que iria procurar um emprego. Mudei de cidade e fui morar com alguns amigos. Meu primeiro emprego foi como caixa de um supermercado, uma experiência nada agradável, pois, nesse setor, a exploração fica muito evidente, os horários são complicados e a responsabilidade é grande. Agora eu estava longe de casa e arcava sozinha com minhas despesas. Muitas vezes eu me perguntava se havia feito a escolha certa. As respostas para perguntas como estas vêm com o tempo. Quando a gente se vê com responsabilidades e horários a cumprir, percebe que não é tão bom ser independente.

Em pouco tempo, eu já queria desistir de tudo e voltar para casa. A convivência com as pessoas que moravam comigo era difícil e, mais uma vez, eu estava me sentindo sozinha. Foi quando, certa manhã, eu recebi um telefonema da mãe de uma amiga que me dava a notí-cia de que eu havia conseguido uma vaga para o curso de Sociologia (em seguida, mudou para Ciências Sociais) na Universidade Federal, divulgada na segunda chamada. A melhor notícia que eu poderia re-ceber naquele momento. Mesmo não sendo o que eu almejava, era a oportunidade de começar, e depois poderia mudar de curso. O que nessa hora eu não imaginava era que não iria querer mudar e que a Sociologia iria se tornar minha paixão.

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As aulas começaram e, então, um mundo cheio de novidades, curiosidades e interesses abriu as portas para eu entrar. Aos poucos eu fui conhecendo do que tratava a Sociologia e cheguei à conclusão de que são coisas que despertam meu interesse e que certamente aquele era meu lugar. O sentimento era de satisfação: por ter conse-guido uma bolsa em uma universidade pública federal e por ter me encontrado no curso que escolhi por acaso. Realmente foi a melhor coisa que poderia ter acontecido na minha vida. O primeiro semestre de aulas foi muito tranquilo. Os primeiros meses é que complicaram um pouco, pelo fato de que eu ainda trabalhava o dia inteiro e estu-dava à noite: era uma rotina cansativa. Porém, veio, então, a decisão de largar o emprego e procurar algo que fosse somente meio turno. Nesse tempo de procura e já no final do primeiro semestre, a Uni-versidade lançou o edital de bolsas de iniciação acadêmica, que é uma política de permanência dentro da universidade, na qual o aluno participa de um projeto ou grupo de estudos e recebe uma ajuda de custo mensal. Era uma oportunidade que eu não podia perder. Sen-do assim, fiz a inscrição para seleção, que levava em conta a análise socioeconômica dos candidatos, e consegui uma bolsa.

Com a bolsa, passei a fazer parte de um grupo de estudos cha-mado Teoria e Prática em Educação Popular, que teve duração de seis meses. Foi uma experiência sem explicação, onde eu passei a ter conhecimento sobre temas relativos à educação, à educação po-pular, tendo contato com as leituras de Paulo Freire, que foi quando consegui perceber os problemas que a educação enfrenta e como é possível transformar essa realidade. O aprendizado retirado dessa experiência foi algo que renovou minha forma de pensar o mundo e que me aproximou dos livros de Paulo Freire, nos quais eu consigo encontrar ideias, pensamentos, críticas a respeito do mundo e das coisas como são, muito próximas ao que eu penso, mas que certa-mente não encontraria as palavras certas, como Freire encontrou, para traduzi-las.

O segundo semestre de aulas foi muito mais produtivo em fun-ção da bolsa de iniciação acadêmica, que me proporcionou mais tempo para me dedicar às leituras e à compreensão dos conteúdos.

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Passados os seis meses de duração da bolsa, eu me inscrevi para a seleção do projeto PET/ Conexões de Saberes. Mais uma vez tive a oportunidade de ser selecionada. Hoje faço parte desse projeto.

Não é nada fácil fazer esse movimento de reescrita da nossa história, pois nós vivemos inúmeras situações diferentes ao longo do tempo e muitos desses momentos a gente gostaria de esquecer. Nessa reescrita, eu busquei apresentar muito superficialmente alguns pontos que pudessem dar uma ideia do que foi a minha trajetória até chegar onde estou. Talvez, como eu mesma disse, pareça superficial, mas foi uma escolha. Não é por acaso que eu omiti muitos aconteci-mentos ou que dei ênfase a outros sem tanta importância. Acontece que eu gostaria de reviver a minha história a partir do momento que eu consigo entrar na universidade, a partir do momento que o sonho de toda minha adolescência se torna realidade. A única coisa que não quero esquecer é o que foi determinante para que eu estivesse aqui hoje: o apoio da família, dos amigos, mas, acima de tudo, a minha vontade de estar aqui.

Agora, quando olho para trás e vejo tudo que passou, só guardo comigo os momentos e as experiências boas e continuo olhando para frente com muita determinação, na busca por construir o melhor ca-minho para chegar ao final dessa história.

Agradeço a toda minha família, meus pais, meu irmão e, em

especial, às pessoas que foram decisivas na minha chegada até aqui, minha avó Cecília, meus tios Claudio e Saulo.

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raFaela da silva Bispo1

Histórias...Nossas histórias!

Dias de luta e dias de glória. (C.B.Jr.)

Logo que recebi a tarefa de escrever sobre minha trajetória de vida, algumas questões perturbaram-me. Escrever sobre mim, sobre minha família, sobre o que sou ou fui e quem desejo ser. Ah! Falar de si e do que é meu, do que quero conquistar! Momento difícil, singular e inexplicável.

Lembrar das alegrias, das tristezas, das conquistas, dos aprendi-zados, das dificuldades. As folhas em branco, caladas, para que nelas possa contar e buscar compreender-me, desenhar-me. Segredos e cores de minha vida até então desconhecidos.

A busca incansável pelo entendimento de quem sou e de como me tornei o que sou é uma ótima oportunidade que irá permitir uma percepção das minhas escolhas, das minhas atitudes e a importância das influências de pessoas, valores, lugares e situ-ações que recebi e hoje fazem parte/estão imbricadas em minha identidade.

1 Estudante de Licenciatura em História (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis - PET/Conexões de Saberes entre dezembro de 2010 e junho de 2011.

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Mais uma vez os homens, desafiados pela dramatici-dade da hora atual, se propõem a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Es-tará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si umas das razões desta procura. Ao se instalarem na quase, senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Res-pondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.

(Paulo Freire)

Movida por um espírito investigativo, recorri ao início do relacio-namento dos meus pais: como se conheceram, ou por que esconde-ram que a gravidez ocorreu antes do casamento, e ainda o motivo pelo qual meu pai sentiu-se instigado em mudar-se para perto de seus irmãos, Mara Rúbia e Mayron, que há anos encontravam-se em solo rio-grandense.

Minhas Raízes

Da união de Maria das Graças e Marlon José, numa tarde quen-te em Pastos Bons, cidadezinha do sul do Maranhão, a Pimentinha, como fora chamada desde seus primeiros passos (por seu comporta-mento cheio de energia e traquina), chegou.

É impossível descrever meu ser sem retroceder no tempo que marca o início de minha história. Sendo assim, se faz necessário fa-lar dos precursores: meus pais, que inconscientemente buscaram em mim a oportunidade de concretizar seus sonhos não realizados.

Pelos relatos de minha mãe, a menina chorona mexeu e muito com a rotina de seus avós paternos, pois, naquela época, ainda moravam na casa de José Felix e Maria Marlene. Revezaram-se durante meses para cuidá-la durante a noite, porque tinha cólicas muito fortes e refluxo. “Desde pequena me deu trabalho”, comentou minha mãe em muitos momentos da vida quando apresentava comportamentos inquietantes.

Infelizmente, pouco tempo vivi na pequena Pastos Bons. Os fatos que me vêm à memória são fragmentados. Foi necessário buscar ins-

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piração em fotografias e, principalmente, nas recordações de minha mãe.

Quando chegamos ao Rio Grande do Sul, estava com apenas dois anos de idade, e minha irmã com cinco meses de vida. Durante quatro dias, minha tia Maria de Lourdes, apelidada carinhosamente por “Luty”, minha mãe, eu e minha irmã nos deslocamos para o Rio Grande do Sul e chegamos à cidade de Sertão, onde minha família permaneceu até os meus quatorze anos.

Tentando buscar uma palavra que defina os primeiros anos, me deparei com esta: dificuldades. O período de adaptação ainda não havia sido concluído. O frio, a alimentação, os costumes, tudo fazia parte de um outro mundo, de um novo mundo para nós. Com a co-laboração/ajuda de minha Tia Mara, foram arranjados uma casa para morarmos, roupas de lã, cobertores e mobília para nosso novo lar.

Lembra minha mãe que carregávamos apenas objetos pessoais, poucas peças de roupas e a esperança de uma vida que permitisse novas possibilidades/oportunidades profissionais a meu pai, uma vida equilibrada financeiramente, onde pudéssemos viver com saúde, paz e felicidade.

A escola

A Escola Estadual Ponche Verde era próxima de minha casa. Mi-nha irmã e eu caminhávamos na companhia de mamãe. O momen-to de organizar a fila, que deveria ser de integração, apresentou-se como exclusão. Alguns colegas recusavam-se a formar fila ao meu lado.

Que sentimento ruim! Perguntava-me: minha mão não era como as outras? Queria ser como a maioria das crianças. Lembro-me que não gostava de meus cabelos crespos: amarrava-os para camuflar mi-nha negritude, minhas raízes.

Das minhas brincadeiras favoritas com minha irmã e vizinhas, era criar uma escolinha fictícia, onde as classes eram cadeiras, e os ban-cos, tijolos. Meus pais sempre primaram pelos estudos. Estimulavam a leitura, adquirindo coleções de livros de vendedores ambulantes.

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Ainda tenho todos guardados em uma caixa, junto com cadernos, trabalhos escolares. Minha mãe é a responsável por isso, porque sem-pre dizia: “é bom guardar para que seus filhos um dia possam tomar conhecimento de como foi sua vida na escola”. Os filhos ainda não chegaram, e os livros e cadernos velhos aguardam este momento.

Nesta escola, permaneci até a 4ª série. Sofri as consequên-cias de um ensino, no qual os alunos eram castigados por atitudes consideradas indisciplinadas. Eu fui castigada diversas vezes: o mais comum era a professora pedir para que levantasse e dirigisse até a parede ao lado do quadro para ali, durante o tempo que ela consi-derasse apropriado, permanecesse imóvel até aquietar-se e voltar à resolução dos exercícios.

Agora as lembranças aparecem mais concretas. Na nova es-cola, Bandeirantes, além de aprender com muito entusiasmo, fiz ami-zades sinceras e verdadeiras, que me ensinaram a importância de saber respeitar as diferenças, de conviver em grupo.

A minha infância foi muito divertida. Durante a tarde, após o ho-rário de estudos definido pelos meus pais, estávamos livres para brin-car, inventar, sorrir e chorar, subir em árvores, jogar bola, amarelinha.

Acompanhar o Jornal Nacional era algo sagrado para meu pai. Manter-se atualizado era uma herança que carregava consigo desde os tempos em que morou na casa de seu pai. E transmitiu essa paixão para mim e minha irmã.

Ah! Os jogos de futebol que assistíamos e/ou acompanhávamos com meu pai pelo menos uma vez por semana quando minha mãe estava na escola para concluir o Ensino Médio... Como era gostoso o retorno para casa. Este era um dos momentos mais esperados, no qual podíamos nos regozijar do seu amor, do seu carinho, da sua atenção, da sua força e garra. Não entendia por que precisávamos ficar distantes. Aquelas horas nos pareciam infindáveis.

Mais tarde, pude compreender que a força de vontade em nos proporcionar dias melhores seria alcançado somente e através da es-cola. A saída sempre foi o estudo para minha família. O sucesso e a felicidade sempre estiveram associados ao ambiente escolar.

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Quem era eu e quem eu queria ser?

Logo após a formatura do 2° grau, comecei a refletir sobre o meu futuro profissional. Tinha poucas certezas e muitas dúvidas.

O ingresso na universidade estava atrelado a uma grande realiza-ção pessoal e, naquelas circunstâncias de uma vida mais independen-te, a morar sozinha, a novas responsabilidades. A minha esperança em conseguir passar no vestibular em Universidade Federal, ao longo do caminho, foi desaparecendo.

Alguns não acreditavam que conseguiria uma vaga no curso de Cinema. Outros procuravam colocar “os meus pés no chão”, dizendo que meus pais não teriam condições de manter alimentação, aluguel, transporte em uma metrópole. Informavam-me que esta ajuda seria imprescindível, porque me lembravam, a todo o momento, que o curso seria integral e que eu teria sérias dificuldades em conseguir emprego. Suplicaram-me para abandonar esta ideia.

Minha segunda opção era o curso de Artes Cênicas, mas este também foi excluído da lista de minhas possibilidades. Não posso falar em desejos, em sonhos, nas minhas vontades, em realização pessoal. Minha família pediu que fizesse um curso voltado ao mer-cado de trabalho, onde eu teria uma chance maior de mobilidade social.

Refleti muito. Agora já não era apenas o desejo de ficar longe. Era principalmente o que faria de meu futuro, da minha vida. Não era justo. Eu deveria poder escolher. Eu deveria possuir este direito.

Fui levada a pensar com “os pés no chão” e me dei conta: o que mais gosto dentro do cinema? Resposta: os documentários. Por quê? Permitem obter um conhecimento da realidade, compreender por que a humanidade encontrava-se no atual contexto socioeconômico, por que alguns jovens tinham “liberdade” para escolher o seu futuro. Porquês... Muitos me rondavam, perturbaram-me.

Qual curso poderia me fornecer uma visão mais aprofundada acerca dos processos histórico-sociais? Precisava ser uma Universida-de que ficasse próxima à minha família e que as aulas acontecessem à noite. Hum... Hum... A conclusão foi: o curso de História.

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Só não poderia desistir no primeiro obstáculo vencido, de tantos outros que agora tinha consciência que iriam surgir no decorrer da caminhada.

Depois de um período na universidade privada, trabalhando no turno da manhã em um restaurante e à tarde como estagiária em um Arquivo, militando no movimento estudantil, meus pais decidi-ram se separar. Foram tempos bem difíceis. Foi necessário trancar a faculdade. Mudar de cidade. A parte boa disso era que poderia ficar mais próxima de minha irmã, que estava iniciando sua graduação em Geografia, graças ao FIES, o qual continua tentando pagar até hoje. Minha tia logo providenciou que retornasse à minha graduação.

A situação financeira que já estava difícil piorou ainda mais. Não conseguia trabalho e, nessa época, tive minha primeira experiência com educação popular em uma ONG no Bairro Progresso, ministran-do oficinas de teatro para crianças e adolescentes.

Era voluntária, me sentia útil e feliz. Sentia que este era o cami-nho. Aquela realidade me instigava a procurar meios para mudar. Como poderia transformar? E o teatro e a licenciatura em História, seriam as ferramentas que iriam me proporcionar esta intervenção?

Muito a fazer...Questionamentos. Muitos questionamentos. Retornei para casa de minha mãe. Fiquei alguns anos com o

curso trancado. Quando decidi e pude retornar para a universidade, cursei duas matérias por semestre, porque minhas condições econô-micas não me oportunizaram a seguir cursando todas as disciplinas em uma universidade privada.

Anos distantes de realizar meu grande sonho...No entanto, retornei a Erechim para visitar meu pai e irmã. En-

tão, fui convidada a participar de uma caminhada. Esta caminhada era um ato simbólico de concretização da Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus Erechim. Estudantes com cartazes, alguns in-tegrantes de movimentos sociais. Ali senti que seria possível. Quanto a caminhar, longa jornada. Muitas voltas. Muitos anos. Chegava uma nova oportunidade. A grande oportunidade.

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Criar raízes.Mudar. Transformar. Superar. Encontrar. Criar. Construir. Concretizar. Lutar. Combater.

Palavras que orientam as minhas ações. E que me permitem acreditar em um Ensino Superior público

brasileiro que deixa de ser elitista. Um novo cenário de oportunidades, que rompa com qualquer

forma de desigualdade social.Que as universidades se façam espaços plurais, onde filhos e fi-

lhas de trabalhadores e trabalhadoras do Brasil possam dizer a sua palavra, possam fazer parte da construção de um novo saber.

Projetos, políticas públicas que foram criadas e serão desenvolvi-das são imprescindíveis para que a universidade se torne um espaço popular.

Onde sonhos e realidades caminhem de mãos dadas, para que muitos dos que foram e ainda são excluídos possam sonhar novamen-te com um Brasil de igualdades, mais justo e menos sofrido.

Como mulher negra, trabalhadora, tenho minha esperança reno-vada a cada segundo quando identifico que um sentimento de apatia está sendo superado. E esta superação se dá a partir da conscienti-zação, tarefa árdua que todos os dias venho instigando em crianças: que estas acreditem em um tempo de possibilidades, e não de de-terminismos. Que eles e elas consigam sonhar. Que eles e elas acre-ditem. Que eles e elas participem ativamente na construção de uma sociedade justa e democrática.

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Janniny g. Kierniew1

Inicialmente quero tentar expressar em palavras alguns senti-mentos que se seguiram ao tentar descrever brevemente a trajetória da minha vida até o momento. Seria pretensão me equiparar aos es-critores, esses grandes sujeitos que, de forma simples e delicada, ajus-tam em linhas emoções que, por vezes, só podem ser sentidas. No entanto, preciso dizer que a tarefa de elaborar um texto sintetizando nossas vivências é um exercício muito complexo e subjetivo, que me causou, primeiramente, certo desconforto, seguido de pontinhas de ansiedade, pois, no decorrer das lembranças, fui recordando fatos que deixei esquecidos na minha mente, e essa mistura de sensações, desejos e memórias fizeram com que eu percebesse minha dificulda-de com as palavras. Mas isso tem uma explicação.

As Palavras

[...] Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! [...](A paixão segundo G.H. – Clarice Lispector)

Sempre tive grande admiração pelas palavras. Em especial pela palavra “anêmona”. Acho que tem certa musicalidade na sua pro-

1 Estudante de Licenciatura em Ciências Sociais (UFFS/Erechim) e Bolsista Voluntária do Práxis - PET/Conexões de Saberes desde dezembro de 2010.

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ESQUECIMENTOS MEMORÁVEIS

núncia. Sempre adorei música. Desde pequena tive esse interesse peculiar pelos sons das palavras e suas pronúncias. Antes mesmo de me alfabetizar, eu já escolhia minhas palavras prediletas e as que delicadamente me desagradavam, e, como fui uma criança curiosa, buscava seus significados. Confesso que, quando eu não descobria o que determinada palavra denotava, inventava uma definição, e esse fato me causou alguns problemas no Ensino Fundamental, mas isso é assunto para doravante.

“co.me.çar: transitivo direto - dar início a al-

guma coisa.

co.me.ço: do verbo começar, 1ª pessoa do singular

no Presente do Indicativo.”

Nasci em Recife, capital do Pernambuco, em 1988. Filha mais nova de um casal um tanto quanto conservador. Típica família “nu-clear” para os padrões vigentes da sociedade. Pai- mãe - filho - filha.

Meus pais me deram o nome de “Janniny”. Um nome diferente e incomum, que surpreendeu muita gente. Segundo eles, tem um pou-co a ver com a marca de um violão e a confusão de uma escrivã no cartório. Para mim, essa escolha sempre significou um desejo latente de uma filha diferente e incomum.

A cidade onde nasci tinha um clima muito quente, e isso fez com que eu crescesse apenas de fraldas e pés no chão. Lá, era tudo muito simples, e me recordo de pouca coisa dessa época. O que lembro muito bem era do chamado “pula pula 5 mil” (esse foi um apelido dado pelas crianças do prédio a aqueles brinquedos que são cheios de ar, nos quais se entra dentro e fica pulando, e, como ele custava cinco mil cruzeiros, todos nós entrávamos dentro e ficávamos pulan-do e cantando: “pula-pula cinco mil”). Até hoje me lembro do quão específico era aquele cheiro de gás misturado com plástico e borra-cha. Acho que o que mais me encantava eram as cores do brinquedo, extremamente vibrantes. O que sobra dessa primeira infância, além disso, são as fotos, nas quais, na maioria delas, eu apareço machuca-da. Resquícios de uma criança muito agitada.

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ESQUECIMENTOS MEMORÁVEIS

Em meados da década de noventa, mais precisamente em 1991, mudamos para São Paulo capital, pois, na época, meu pai trabalha-va de operário em uma empresa e foi transferido de setor. Um ano depois, comecei a frequentar o “Jardim A”. Eu tinha quatro anos na ocasião e me recordo vagamente de estar animadíssima com o fato. Era um grande colégio de freiras, localizado no Bairro da Moca, onde todos os meus vizinhos iriam estudar, especialmente um deles, minha primeira “melhor amiga”. Nós vivíamos grudadas, até nossas roupas eram iguais, o que, segundo a mãe dela, era para não causar maiores disputas e constrangimentos. Até hoje me pergunto o real significado disso, mas, na época, era divertido. As professoras achavam que nós éramos irmãs. As aulas eram animadas. Nós cantávamos e desenhá-vamos. A professora era muito legal. Ela foi minha primeira referência de “mãe” fora do ambiente familiar. Eu adorava ser ajudante do dia e poder estar ao lado dela na fila após o recreio. Lembro que, nos finais das atividades, eu limpava a sala com uma vassoura de palha enorme, com a maior empolgação. Ainda tenho guardados dessa época um álbum de fotos e desenhos que construímos em sala de aula.

O Jardim B já não foi tão prazeroso, pois criei muita expectativa com o fato de me alfabetizar. A professora era bastante rígida e, atualmente, quando me lembro desse período, tenho a impressão de que estudei em uma espécie de “masmorra” ou “porão”, tenho a lembrança de um lugar frio e escuro. Recordo que eu desejava an-siosamente que a hora passasse para poder frequentar as aulas de “jazz/balé”, que eram no próprio prédio do colégio. Nessas aulas, fiz algumas inimizades, pois havia garotas mais velhas que queriam se “sobressair”, e, como, desde essa época, eu já cultivava um senti-mento de “justiça”, arrumei a maior confusão defendendo as garotas da minha idade. Quase não pude participar da apresentação do final do ano. Ainda nesse período, fiz amizade com uma tímida menina descendente de orientais. Eu era a única pessoa com a qual ela “con-versava”. Na verdade, cochichava, pois ela só falava bem baixinho, e no meu ouvido.

Em 1994, minha família se mudou para o sul do país devido também a questões de trabalho de meu pai. A despedida na escola

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em São Paulo foi bastante constrangedora. Lembro que eu estava na fila, esperando para ir para casa, e a diretora falou no microfone que eu estava me mudando de cidade. Só que ela não sabia pronunciar o nome do local para onde eu estava me transferindo. Então, foi mo-tivo de riso para todas as crianças, pois ela ficou tentando duas ou três vezes e ninguém podia ajudá-la porque desconheciam a palavra “Erechim”.

“mu.dan.ça: (feminino) - o ato de trocar ou mudar.

Do latim: mutare.

mu.dar: Quando transitivo: transferir de um lugar

para outro; dispor de outro modo; desviar; variar;

substituir; alterar; modificar; transformar;

Quando intransitivo: ir viver para outro lugar;

tomar outro aspecto;

Quando reflexivo: ir viver para outro lugar.”

Costumo dizer que todos da família trabalhavam com meu pai, uma vez que, onde ele tivesse que ir, todos iriam junto. Fomos trans-feridos para Erechim, que, para mim, era a cidade mais gelada do mundo (alguém que nasce em Pernambuco e vem parar no sul do país tem certa dificuldade de adaptação). Meu pai adorou o fato, pois a família dele mora toda nessa região. Fui matriculada na pri-meira série do Ensino Fundamental em um colégio próximo à minha casa, e, como no Rio Grande do Sul, em algumas escolas, a alfabe-tização inicia na primeira série, eu já me encontrava mais adiantada do que as demais crianças, pois já sabia ler e escrever; sendo assim, a escola queria me passar direto para a segunda série. Minha mãe foi contrária a essa posição, discordou do colégio por achar que eu ainda era muito nova e deveria acompanhar meus colegas.

O Ensino Fundamental, assim como o Médio, foi marcado por diversas mudanças de residência e escola. Meu desejo de aprender aumentava cada vez mais, e, por ser uma criança que mudava bastan-te, nunca fiz amizades mais duradouras. Sendo assim, ficava em casa, arrumando todas as bonecas como se elas fossem minhas alunas e

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brincando de ser a professora. Houve até uma ocasião muito cômica em que eu estava “dando aula” aos bonecos e comendo salgadinho. De repente, na maior das distrações, comi o giz do quadro-negro. Lembro que saí cuspindo pelo corredor, amaldiçoando todo mundo que impedia minha passagem até o banheiro.

A segunda série foi o meu terror. Fui parar em uma escola mui-to pequena, municipal, de primeira a quinta série. Costumo chamar esse ano da minha vida de: “ano do pavor do português”. Foi nessa série que meu desejo pelas palavras e seus significados foi morto com apenas um grito: o grito da professora. Sabe essas professoras lendárias de filmes infantis com óculos, verrugas, muita gordura, uma voz aterrorizadora e régua na mão? Pois é, ela era real. Como se não bastasse amedrontar todos os alunos, ela não sabia português. Exatamente, uma professora de português que não sabia português. Como sei disso? Ela passou uma atividade em aula que consistia no velho e famoso método do “ditado”. Lembro-me até hoje das cin-co palavras: característica, frase, xícara, ensinar e amanhecer. Eu as escrevi corretamente, eu era boa com as palavras. Mas a “dita” da professora me deu errado nas três primeiras e disse que eu deveria escrever 10 linhas de cada uma delas e levar na aula seguinte. Como a minha mãe sempre foi muito atenciosa e dedicada com as ativida-des escolares, todo dia ela sentava comigo para verificar “os temas de casa” e, nesse dia, ela levou um susto. A professora estava errada. Aí começou a confusão.

No outro dia, minha mãe apareceu na escola para falar com a professora e, depois de muita discussão, entrou em cena, nada mais, nada menos, que: o dicionário. Ela viu que estava errada e, como se não bastasse o erro dela, ainda tinha minhas peripécias em aula, pois fiz questão de ficar inventando novas palavras a cada ditado sugeri-do. Resultado: ela me “perseguiu” até o final do ano, me cobrando sobre as palavras e seus significados. Acho que esse ano ficou mar-cado tanto pra mim quanto pra ela. Mudei de escola e perdi o gosto pelas palavras. Nunca mais escrevi e nem criei nada.

Os anos que se seguiram foram relativamente tranquilos. Fui es-tudar em um colégio particular, pois meus pais ficaram receosos de-

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pois do fato acontecido e optaram por um colégio de freiras. O que me chama atenção hoje em dia em relação a essa época é que eu sempre procurei fazer amizades com pessoas que tinham dificuldade de relacionamento e aprendizagem, pessoas que, de certa forma, eram “excluídas” pelos demais. Eu era uma garota bastante comuni-cativa, que buscava coisas novas e tinha uma ânsia imensa de viver mais do que era permitido, encontrando novos desafios e novos ami-gos. Até a sexta série, não houve maiores problemas. Eu tive colegas legais, amizades novas, professoras bacanas. Até a sexta, porque aí começou novamente meu pesadelo: outra professora de português. Só podia ser perseguição! Logo comigo, que cultivava um amor pela busca de palavras e seus significados. Dessa vez foi diferente: ela era muito rígida, baixinha, manca de uma perna e fazia a gente rezar de pé todo início de aula. Desde o princípio, eu não gostei dela, e vice--versa. Creio que, se não tivesse mudado de escola na metade do ano, teria rodado nessa matéria.

Fiquei bem animada com a expectativa de mudança, o que não me surpreendia; afinal, sempre me relacionei muito bem com o verbo “mudar”.

Ano conturbado. Como acabei mudando de colégio na metade do ano em função de uma crise econômica familiar, fui para uma escola estadual, e, como surgiu uma vaga na metade do ano e era muito difícil a admissão de novos alunos, meus pais não perderam tempo (mudança na metade do ano é muito assustador: você chega à escola e vira a “garota nova”. Todos te olham e querem conversar contigo). Eu fiquei apavorada, não somente por isso, mas era extre-mamente diferente do meu antigo colégio de freiras. Ali, as cadeiras e paredes eram pintadas, não com tinta colorida, mas com corretivos e rabiscos ilegíveis, havia crianças muito mais velhas do que eu, nin-guém obedecia aos professores, havia alguns docentes que até cho-ravam na sala de aula implorando por silêncio. As meninas brigavam de tapas e puxões de cabelo dentro da sala, isso é claro, quando não se prometiam com a famosa frase: “te pego na saída”.

Ah! Como eu chorei, detestava a escola e o mundo. Só queria ficar sozinha. Mas, hoje em dia, sou muito grata por essa fase mal elabora-

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da de adaptação, pois foi o tempo em que mais frequentei a biblioteca e li diferentes livros. Estudei ali até o primeiro ano do segundo grau, ou do “Ensino Médio”, onde, de fato, começou minha adolescência. Nes-sa época, em meio a coturnos e roupas pretas, comecei a frequentar alguns shows de rock e cheguei até a formar uma banda, que, obvia-mente, nunca saiu da garagem. A crise financeira havia supostamente passado. A fase estava melhor para os negócios familiares. Então, mu-dei novamente de escola. Na minha cabeça, eu tinha a falsa ideia de que me prepararia melhor para o vestibular se fosse estudar em uma escola particular. Surpreendentemente, ou nem tanto assim, reencon-trei todos os meus colegas do antigo colégio de freiras.

Esse ano foi interessante. Eu estava estudando bastante. Os professores eram incríveis, e decidi, então, optar por Medicina no vestibular. Com essa ideia fixa na cabeça, meus pais foram obrigato-riamente convencidos por mim de que eu deveria ir morar em Porto Alegre, pois, segundo minhas argumentações, lá eu teria uma melhor preparação, uma vez que eu faria o chamado “terceirão”, que é co-légio junto com cursinho pré-vestibular. Arrumei as malas e fui morar com minha tia na capital. Lá, conheci pessoas singulares, vida dife-rente, “mundos” desconhecidos. Passei o ano em meio a piercings, tatuagens, guitarras, bebidas e cabelos coloridos, sem falar nas horas de debates contestando a sociedade. Quanta rebeldia, não?

Pois é! Estava no auge de minha adolescência, não queria nem saber de vestibular, muito menos de aula. Obviamente, desisti da Medicina (definitivamente meu interesse era com as palavras) e, no final do ano, optei por diferentes cursos nas inscrições para as uni-versidades, passando por Relações Públicas, Publicidade e Propagan-da, Serviço Social, Ciências Sociais e Arquitetura. Dentre os diversos vestibulares que prestei, acabei passando em uma federal, no curso de Serviço Social. Então, decidi por fazer minha matrícula e mudar novamente de cidade, e também de Estado.

trans.for.mar: mudar, alterar - do infinitivo la-

tino transformare.

Verbo regular da 1.ª conjugação (-ar)

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Em Florianópolis, tudo me encantava. Achava a universidade um lugar extraordinário. Tinha uma ideia bastante romântica sobre o “lu-gar onde o conhecimento era difundido”. Foi uma experiência incrível, e, nesse ano de 2006, no auge dos meus 17 anos, comecei a ter maior contato com o mundo político, com dilemas sociais, culturas e per-cepção da realidade. No entanto, cursei apenas um semestre devido a questões financeiras e à minha desmotivação em relação ao futuro.

Sendo assim, decidi voltar para casa e tentar me conhecer me-lhor. Mais uma mudança. Foi nesse momento que encontrei a Psico-logia. Sempre achei que esse curso seria uma maneira interessante de tentar entender o porquê as coisas são da maneira que são. Achava que seria uma forma de tentar entender o comportamento humano e preencher o enorme vazio que eu sentia por não compreender as pessoas. Minha curiosidade e sede por conhecimento nunca cessa-ram. Nesse período, eu me questionava diariamente sobre as atitudes sem sentido que eu observava. Só posteriormente que fui compreen-der que nada faz muito sentido mesmo (nada é uma palavra que me incomoda demasiadamente).

Freud, Lacan, Heidegger, Deleuze, Nietzsche, Sartre, e tantos ou-tros... Sou extremamente grata pela Psicologia ter me proporcionado a leitura desses autores, mas, apesar de ela me oferecer diferentes co-nhecimentos e aprendizagens, eu ainda sentia e sinto que não era/é o bastante, parecia e parece que falta muita coisa (e desejo profun-damente que esse sentimento de insatisfação não se esgote nunca. Preciso dele como propulsor vital). Por isso, com a vinda da Univer-sidade Federal para Erechim, decidi fazer Ciências Sociais e retomar antigas crenças e ideologias, aliando com os saberes da psicologia e tentando, assim, mudar algumas coisas nas quais eu acredito.

devir: futuro, porvir. tornar-se, suceder, acon-

tecer. do Latim: devenire

Verbo irregular da 3.ª conjugação (-ir)

Angústia: o eterno propulsor que não pode te deixar se acomo-dar com o que incomoda. Sinto-me angustiada nesse momento, e é

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assim que exatamente gostaria de me sentir ao finalizar esse texto sobre minha trajetória. Não diria “texto”, diria “memórias”. Texto é um monte de palavras juntas com alguma atribuição de significado, já as “memórias” possibilitam dizer coisas que são negligenciadas pelas palavras, que envolvem sentimentos, vivências, encontros... e tudo isso não é da ordem do vocábulo, do “dito”, do dialogado.

Enfim... apenas posso dizer que ainda tenho muito para apren-der e muito para fazer. Acredito que tudo pode ser diferente. As pes-soas, a sociedade, os comportamentos. Acredito que é importante ter uma coisa rara chamada “consciência”, que seja necessário olhar através do buraco da fechadura e perceber os acontecimentos peque-nos para poder ver os grandes, ou seja, apreciar as coisas singelas e simples para depois contemplar o universo inteiro. Eduardo Galeano, um autor que gosto bastante, ao ser questionado sobre a serventia de “utopias”, citou um amigo seu, Fernando Birra, e disse que: “A utopia está lá no horizonte. Quando me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Quando caminho dez passos, o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Então, para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de cami-nhar”.

É isso. As únicas convicções que tenho são que não vou deixar de estudar nunca e que vou mudar sempre.

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silvia Maria UJacov1

Sinto o abraço do tempo apertarE redesenhar minhas escolhas

Logo eu que queria mudar tudo Me vejo cumprindo ciclos, gostar mais de hoje

E gostar disso Me vejo com seus olhos, tempo

Espero pelas novas folhasImagino jeitos novos para as mesmas coisas

(Abril – Adriana Calcanhotto)

Falar ou descrever as lembranças e as experiências vividas não é uma tarefa fácil, mas posso dizer que, de certa forma, é uma tarefa prazerosa. Começo este memorial com um trecho da música “Abril”, que traduz o que sinto no atual momento, em que estou a redesenhar um caminho novo e cheio de novas experiências.

Com a proposta de escrever este memorial formativo, de forma criativa, procurei organizar a minha vida contando alguns fatos que aconteceram no passado e como me sinto no momento atual, fazen-do, assim, uma pequena reflexão dos pontos positivos e negativos da minha trajetória profissional e escolar.

1 Estudante de Licenciatura em Pedagogia (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis – PET/Cone-xões de Saberes entre dezembro de 2010 e agosto de 2011.

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Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse.Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até o fim do mundo, E viu-se, redonda, do azul profundo.

(O infante – Fernando Pessoa)

Nasci em 15 de setembro de 1980, às oito horas da manhã, no Hospital São Vicente de Paulo, na cidade de Barão de Cotegipe. Meu pai, Pedro Ujacov, e minha mãe, Edilse Bernardi Ujacov, eram agricultores e residiam em Parobé, interior de Itatiba do Sul. Minha mãe sempre conta que o dia em que nasci era muito frio e tinha neve. Por sorte, o padre Milton Matias se atrasou para visitar o quarto de minha mãe, pois ele vinha com uma sugestão nada legal para meu nome: “Dolores”, porque era dia de Nossa Senhora das Dores. No entanto, meu pai já tinha saído para fazer minha certidão de nas-cimento com o nome que ele havia encontrado na borda de uma fralda. Em virtude de minha família ser muito religiosa, agregaram o segundo nome de Maria, resultando, então, em meu nome: Silvia Maria Ujacov. Pura sorte!

Pedro Ujacov, meu pai, faleceu em 22 de março de 1982, motivo pelo qual eu e minha mãe fomos morar em Linha Seis, interior de Barão de Cotegipe, na casa dos meus avós maternos, até que meu avô conseguisse comprar e construir uma casa para nós na cidade de Barão de Cotegipe. Na casa de meu avô, mo-ravam, além de nós, mais seis irmãos da minha mãe e a minha bisavó.

Em 1984, nos mudamos, eu e minha mãe, para nossa casa. Mi-nha mãe sustentava a casa com a “pensão” (benefício concedido a viúvas pelo INSS). Trabalhava como costureira e alugava um quarto para uma guria que trabalhava no Hospital, a Líbera. Pensando em meu futuro, minha mãe, então por influência de pessoas em que ela confiava, decidiu dar início a minha vida escolar.

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Dos Sistemas

já trazes, ao nascer, tua filosofia.as razões? essas vêm posteriormente.tal como escolhes, na chapelaria.a fôrma que mais te assente...

(Mário Quintana)

Minha bisavó Elisa não falava nenhuma palavra em português. Ela falava somente italiano e, pela convivência com ela, eu tive vários problemas ao ingressar na escola. Era ela que cuidava de mim no pe-ríodo em que minha mãe e eu passamos na casa de meu avô.

Ao completar cinco anos, as irmãs que administravam a Escola Cristo Rei, por conhecerem a minha família, pois minha mãe confec-cionava os uniformes dos alunos daquela escola, a orientaram a fazer minha matrícula no “Jardim”, para que eu aprendesse a falar o por-tuguês corretamente, já que eu falava algumas palavras em italiano e outras em português, misturando as duas línguas, pela influência da convivência com minha bisavó.

Iniciou-se, então, a minha trajetória escolar. Minha primeira profes-sora, diga-se de passagem, era bem paciente comigo, ao contrário da irmã superiora, que era a diretora do colégio (detalhe: era um colégio de freiras). Não posso dizer que tenho muitas recordações desta fase, mas um fato que me marcou bastante foi o meu primeiro dia dos pais naquela escola. Todas as crianças tinham que fazer um trabalhinho para entregar a seu pai e o pai viria para recebê-lo. Lembro que cheguei em casa e pedi a minha mãe por que só eu não tinha pai e para quem eu iria entregar o presente. Ela me disse que meu pai era uma estreli-nha lá do céu e que o presente era para entregar a meu avô.

Tudo o que sonho ou passo,O que me falha ou finda, É como um terraço Sobre outra coisa ainda.Essa coisa é que é linda.

(Isto- Fernando Pessoa)

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Admiro muito minha mãe por ela ter sido sempre uma mulher forte, batalhadora e dedicada a me educar e a dar o melhor pra mim. Em meados de 1987, uma irmã de minha mãe e seu marido resolveram apresentar minha mãe para Nélio Luiz Balestrin. Os dois começaram um relacionamento que, em 25 de fevereiro de 1988, se consolidou através do casamento. Com o casamento veio também a mudança para a casa onde ele morava no interior, na localidade de Linha 4 Secção Paiol Grande, que, por sua vez, resultou na minha transferência para outra escola.

Aquela menininha acostumada com uma montanha de regras que a escola regida pelas freiras impunha vai parar em uma escola cheia de pessoas estranhas, sem fila para entrar na sala, tendo que ajudar a limpar sua sala, sem local adequado para fazer os exercícios de Educação Física, sem parque para brincar, ou seja, sem uma estru-tura adequada. Esta, por sua vez, tinha mais um detalhe, era plurisse-riada. A biblioteca era dentro da própria sala e alguns tijolos com um pedaço de madeira serviam de prateleira. A brincadeira preferida da turma era se esconder da professora no meio de um “mato”, motivo pelo qual as professoras, depois da primeira semana de aula, não faziam mais a “hora da merenda”. Foram anos difíceis, confesso, mas que deixaram saudades. Nesta escola, chamada de Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, cursei da segunda à quinta série do Ensino Fundamental.

O Auto-Retrato

No retrato que me faço- traço a traço –às vezes me pinto nuvem,às vezes me pinto árvore...

(O auto-retrato - Mário Quintana)

Outra mudança de escola, outro desafio que remete uma criança a se indagar por que mudar de novo. A própria escola, quando o alu-no completava a quinta série do Ensino Fundamental, encaminhava para uma nova escola pública. Eu, juntamente com mais quatro co-

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legas, fomos encaminhados para a Escola Estadual Dr. João Caruso, no município de Erechim. A prefeitura disponibilizava o transporte gratuitamente, mas com um detalhe, o transporte passava por vários locais até chegar ao colégio. Para chegar ao colégio, levávamos em torno de 35 minutos dentro de uma Kombi.

A estrutura oferecida pela nova escola era bem melhor e os desa-fios para quem saiu de uma “escolinha do interior” eram bem maio-res. Uma sala com 25 alunos da mesma idade cursando a mesma sé-rie, vários professores diferentes, um local separado e cheio de livros novos, meu primeiro contato com uma biblioteca, local adequado para Educação Física.

Posso dizer que era uma escola de ótima qualidade, onde que aprendi muito, não só com os professores, mas também com meus colegas. Vários de meus colegas não chegaram a fazer a formatura junto comigo. Perdemos alguns por reprovações e outros pelas “dro-gas”. Esta escola oferecia até a oitava série do Ensino Fundamental. Após, precisaria ser feita uma escolha, procurar uma outra escola estadual, ir para uma escola particular ou ainda parar de estudar.

A última opção jamais passou pela minha cabeça e muito menos pela cabeça de meus pais. Na infância, uma das minhas brincadeiras e das minhas primas era a de professora. Na hora de decidir para que escola eu iria, vários fatos pesaram na decisão de meus pais. Escola particular nem pensar, dinheiro para isso não tínhamos. Minha mãe tinha vontade que eu fizesse magistério, mas não foi possível, pois dependia do local que meu tio iria matricular as filhas dele, minhas primas, porque naquele tempo a prefeitura só disponibilizava trans-porte até o final do Ensino Fundamental. Depois disso, cada um teria que arranjar um jeito para chegar à escola. A preferência de minha mãe era de continuar os meus estudos em Erechim, mas a escolha de meu tio em matricular as minhas primas em Barão de Cotegipe fez com que meus pais me matriculassem lá também, pois não queriam que eu fosse para outra escola sozinha.

Fui, então, matriculada na Escola Estadual de 1º e 2º Graus Má-rio Quintana, na cidade de Barão de Cotegipe. Para chegar à esco-la, eu e minhas duas primas percorríamos um trajeto de 4 km a pé para ir e mais 4km para retornar para casa. Muitas vezes, no inverno,

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quando chovia ou era muito frio, meu padrasto levava até uma parte da estrada de carro. Foram três anos difíceis estes. A única opção que a escola disponibilizava era a de Preparação Para o Vestibular – PPV, sendo esta a que cursei no meu Ensino Médio. O que guardo deste período é a visão de uma escola com uma ótima estrutura, mas com alguns professores que não atualizavam seus métodos de trabalho e seus materiais, pois os mesmos trabalhos que fiz minhas primas repetiam no outro ano.

Esses três anos passaram rápido, e uma nova escolha teria que ser feita: ir para uma faculdade ou parar? Além disso, pensar: e se fosse fazer uma faculdade, de que seria?

A vontade de meus pais era que eu continuasse a estudar, mas eles não tinham condições financeiras para que eu continuasse a es-tudar e não havia conhecimento deles de alguma forma de como pagar minha tão sonhada faculdade.

Olho por todo o meu passado e vejoQue fui quem aquilo e torno meu,Salvo o que vago e incógnito desejoDe ser eu mesmo de meu ser me deu.

(O andaime – Fernando Pessoa)

Continuava sonhando ainda com uma faculdade, mesmo saben-do que meus pais não poderiam pagá-la naquele momento. Foi atra-vés de muita conversa com eles que decidi que eu iria fazer um curso técnico e que procuraria um trabalho para juntar dinheiro para pagar uma faculdade. A única certeza que eu tinha era a de que, se eu não corresse atrás, eu não conseguiria fazer a minha faculdade.

Assumir-se como ser social e histórico, como ser pen-sante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.

(Pedagogia da Autonomia - Paulo Freire).

Através de uma bolsa de estudos de 50%, fornecida pelo Sindica-to dos Trabalhadores Rurais onde meu padrasto era associado, iniciei

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o curso de Técnico em Contabilidade no Instituto Barão do Rio Bran-co. Comecei a procurar emprego através de uma agência e deixando curriculum em diversas lojas e empresas da cidade de Erechim.

Na minha trajetória profissional, passei por diversas experiências: fui auxiliar de produção, vendedora, auxiliar de departamento pesso-al, auxiliar de contabilidade, caixa e auxiliar administrativo, tudo bus-cando um trabalho que possibilitasse a realização do meu objetivo, fazer uma faculdade. A pedido de meu ex-namorado, larguei o meu trabalho, que eu gostava muito, no departamento pessoal de uma empresa, para cuidar dos negócios da família, pois meu ex-sogro es-tava passando por problemas de saúde. Após meu ex-sogro ter seus problemas de saúde resolvidos, voltei a procurar um emprego, por-que a ideia de trabalhar junto com eles na empresa da família não era muito boa, gerava alguns conflitos, até mesmo porque a visão de meu ex-sogro era muito machista. Dizia ele que as mulheres daque-la família não precisavam trabalhar, já que eles, os homens, sabiam como sustentar e dar o que precisava para as mulheres da casa. Já a minha visão é de que eu precisava ser independente, ter as minhas próprias regras, viver por mim.

Através do Instituto Barão do Rio Branco, fui encaminhada para a Empresa Ouro Verde Papéis e Embalagem para trabalhar no setor de contabilidade da empresa. Esta empresa localiza-se na cidade de Paulo Bento. Para ir até a empresa, eu saía de casa às seis e trinta da manhã e retornava às dezenove horas. Com o pedido de casamento, veio também o pedido para eu parar de trabalhar, para poder cuidar dos detalhes do casamento e também cuidar da abertura de uma filial da madeireira em Mato Grosso, na cidade de Sorriso. O desfecho desta parte não precisa constar neste memorial, não teve final feliz como nos contos de fadas.

Retomei minha vida com o desejo ainda maior de voltar a estu-dar, de entrar para uma universidade. Foi assim que decidi aceitar o convite para trabalhar na empresa CEJURGS como secretária, au-xiliando no escritório de advocacia e no cursinho preparatório para concursos públicos. Posso dizer que gostava muito do que fazia e aprendi muito. Conquistei muitas amizades e foi onde descobri algo

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muito importante que guardo até hoje: jamais farei uma faculdade de Direito.

Passaram-se três anos e recebi uma proposta de ir trabalhar no Hospital de Caridade, com certeza uma excelente proposta, que eu, sem pensar muito, aceitei. Era um trabalho diferente de todos os ou-tros, com uma responsabilidade bem maior do que todas as que eu já tinha tido; afinal, era trabalho com a vida de pessoas. Trabalhei no setor de Radiologia, inicialmente trabalhava na recepção. Logo após, fui para a digitação de laudos e, em seguida, auxiliava os médicos na realização da transcrição dos exames de RX, Ecografias e Tomogra-fias. Foi certamente um dos trabalhos mais gratificantes que eu fiz, afinal, dizia minha mãe que: ou eu trabalharia com algo relacionado à saúde ou eu seria professora, pois todas as minhas brincadeiras es-tavam relacionadas a uma dessas duas profissões. Ela sempre conta que, se eu não estivesse com livros, eu estava aprontando alguma com algum dos bichos lá de casa (como, por exemplo, transplante de coração nas galinhas dela). Mas, na verdade, a profissão de professo-ra não me encantava muito até eu começar a minha graduação. Gos-tei muito das experiências que tive no hospital, pois lá a melhor parte do trabalho é ver que muitas vezes você ajudou a salvar uma vida.

No entanto, o sonho de fazer uma faculdade permanecia. Ainda não sabia ao certo o que eu faria. Em mente, eu tinha várias possíveis opções, como Fisioterapia, Educação Física, Administração, entre ou-tras. A área das licenciaturas, até o momento, não me atraía.

O rio corre, bem ou mal,Sem edição original.E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal,Como tem tempo não tem pressa...

(Liberdade – Fernando Pessoa)

Na vida, as coisas nem sempre saem do jeito que a gente quer, às vezes, as nossas escolhas vão além de nossas vontades, mas o tempo é que vai dizer se essas escolhas valem ou não a pena. Em 2009, por influência de alguns amigos, resolvi fazer o ENEM. Confesso que fiz

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mais por brincadeira, sem muitas esperanças em conseguir uma nota que pudesse me dar direito a uma bolsa de estudos e, quem dera, entrar em uma Universidade Federal. A prova do ENEM não foi nada fácil; afinal, já havia se passado vários anos que não pegava um ca-derno na mão pra ver matérias como Física, Biologia, Química, entre outras, ou seja, as que no nosso cotidiano não são muito utilizadas. As questões estavam bastante complexas e extensas. Enfim, foi bem cansativa esta prova. No primeiro dia, eu não cheguei a ler metade da prova, pois faltou tempo. No segundo dia, eu fui um pouco melhor, mas minha média ficou bem baixa.

Minha mãe, assistindo o noticiário local em uma sexta-feira, ficou sabendo da vinda da UFFS para a cidade de Erechim e que o último dia de inscrição seria no domingo. Ela comentou comigo no sábado à noite e me aconselhou a tentar fazer a inscrição.

No domingo à tarde, voltei à cidade de Erechim. Fui a uma Lan House e fiz minha inscrição. Analisei os cursos oferecidos aqui para a cidade de Erechim e optei por Pedagogia e, em segunda opção, História, mas a minha nota do ENEM era muito baixa e, na primeira chamada, não fui selecionada. Comentei com minha mãe: “Vou estu-dar e tentar no próximo ENEM ir melhor para conseguir aprovação, agora que tem uma faculdade federal em Erechim”.

Já havia até esquecido e começado a pensar em arranjar alguns livros para começar a estudar para fazer novamente o ENEM quando recebi uma correspondência dizendo que havia sido aprovada e esta-va sendo chamada para fazer minha inscrição para o curso de Peda-gogia. Quanta alegria em saber que eu havia conseguido. Demorou, mas chegou a minha vez. Pensei: “Vou entrar em uma faculdade, fazer um curso superior, mesmo não sendo o curso que eu queria fazer, mas, como não havia outro curso em que eu achei que me sairia melhor, fui para a Pedagogia”. Confesso que não era realmente o que eu queria. Minha mãe e alguns amigos me disseram: “Começa a fazer e, depois, se você não gostar mesmo, você troca de curso”. E lá fui eu para o curso de Pedagogia.

Minha família, principalmente meus avós maternos, me apoiou e gostou muito de me ver entrando na universidade. Afinal, como a

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neta mais velha, tinha que dar exemplo para os outros. No entanto, como toda a boa família, houve quem criticou e disse que era só mais uma maneira de gastar dinheiro e tempo, que eu já estava velha de-mais para querer estudar, que estava na hora de arrumar um marido e ter filhos. Neste momento, ouvi a boa e velha frase: “Estudar para quê se você já tem um trabalho? Tá é na hora de pensar em casar”. Diziam alguns de meus primos que isso era inveja da oposição.

Porém, como dizem, nunca é tarde para começar. Então, eu, com trinta anos de idade, me encontro fazendo o meu primeiro curso de graduação. Ao entrar no primeiro dia de aula e ver que a maior parte das minhas colegas eram meninas de dezoito ou dezenove anos, me perguntei: o que eu estou fazendo aqui? Porém, logo vi que muitas delas não tinham noção do quanto era gratificante estar ali apren-dendo uma nova profissão.

Enfrento várias dificuldades para acompanhar muitas coisas, mas, quando comecei a conhecer minhas colegas, passei a admirar algumas delas que, com filho, marido e mais de quarenta anos, tam-bém estavam ali buscando seu espaço. Posso dizer que eu gostaria sim de ter feito uma faculdade antes, mas minha situação não me permitia. Por outro lado, penso que foi até melhor assim, pois, pelo menos, eu aproveitei e hoje estou mais madura para tomar as deci-sões que o curso de graduação me impõe.

Em março de 2010, ingressei finalmente na universidade, mas meu horário de trabalho não era muito favorável e tive que escolher entre trabalho e faculdade. Fiz a opção por tentar uma das bolsas oferecidas pela UFFS e sair do hospital. Posso dizer que senti medo de largar tudo para estudar e trabalhar na área de Pedagogia.

Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua própria produção ou a sua construção (Pedagogia da autonomia – Paulo Freire).

Surgiu, em setembro de 2010, a possibilidade de trabalhar na

Escola de Educação Infantil Pedacinho do Céu como auxiliar de pro-fessora. Confesso que fui movida mais pela curiosidade de saber se era isso mesmo que eu queria para mim (trabalhar com crianças), ou

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se eu teria que direcionar para outra área. Hoje posso afirmar que o ato de ensinar é uma grande aventura pelo desconhecido, é reconhe-cer seu próprio limite. Gostei de ser desafiada e das novidades deste novo trabalho. Mas, mesmo saindo do Hospital de Caridade, ainda continuo até hoje desenvolvendo um trabalho voluntário de autoaju-da com crianças portadoras de câncer, o que me faz muito bem.

Na verdade, a curiosidade ingênua que ‘desarmada’, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de for-ma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. (Pe-dagogia da autonomia – Paulo Freire).

Cito o trecho acima de uma das obras de Paulo Freire, pois, ao chegar em sala de aula com a visão do senso comum, de que quem faz uma Faculdade de Pedagogia trabalhará única e exclusivamente com crianças, ou seja, será uma simples “professorinha”, me foi apre-sentada pelos professores a visão de que, sim, a Pedagogia busca formar professoras de educação infantil, mas não somente. Foram apresentadas as outras áreas em que uma Pedagoga pode atuar, e são várias. E como foi nos dito desde o início, o nosso maior desafio, como futuras pedagogas, é ser “cientista da educação”.

Hoje estou no terceiro semestre do curso de Pedagogia, onde fiz novos amigos e estou certa de que não troco este curso por ne-nhum outro, quero aproveitar tudo o que posso nesta fase. Com a minha opção em participar do projeto “PET Conexões de Saberes”, estou buscando mais conhecimento e desafios. A dedicação exigida e a proposta de levar o conhecimento a outros jovens que, como eu, não possuem condições de pagar por uma universidade particular é encantadora e gratificante.

As concepções da realidade em que se vive e de como mudar o que na visão de um todo parece estar errado se modificam bastante com o passar do tempo, quando você começa a ser inserido em uma universidade “pública”. Aprendi que, se ficarmos parados, as coisas não andam e que a gente não pode só ficar reclamando da situação.

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Então, eu, que nunca gostei de discussões políticas, encarei o desafio junto com alguns colegas e acabei entrando de cabeça nas discus-sões sobre o movimento estudantil e a criação do DCE.

Graças a esse envolvimento, me tornei membro do Conselho Es-tratégico da UFFS, como representante dos discentes. As nossas ba-talhas pela criação e conquista do espaço dos discentes estão apenas começando. Sei que teremos bastante trabalho e desafios pela fren-te. Afinal, esta é uma universidade que eu, juntamente com meus co-legas que ingressaram em 2010, estamos formando e transformando de certa maneira.

Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena.Quem passar além do BojadorTem que passar além da dor.Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.

(Mar Português – Fernando Pessoa)

A entrada na universidade vira a vida da gente de cabeça para baixo, faz a gente tomar decisões, deixar de lado algumas coisas, muda os lugares onde a gente frequenta, abre novas portas e apre-senta vários caminhos que podem ou não ser seguidos, é uma verda-deira caixinha de surpresas.

Com certeza, afirmo que tudo o que aconteceu até agora em minha vida me fez crescer muito em todos os sentidos. Aprendi muito com meus erros e, com certeza, posso dizer que faria tudo de novo para chegar até aqui. Digo sim, valeram a pena os erros cometidos, pois foram eles que me trouxeram conhecimento e me fizeram cres-cer como pessoa. Espero, para um futuro bem próximo, poder ser alguém que minha família e meus amigos possam dizer: “Ali está uma pessoa que lutou e é verdadeiramente vitoriosa”.

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FaBrício FonTes de soUza1

Ele não conhece o medo quando chega o desafio,

ele guarda o seu segredo, dentro de um olhar vazio,

Ele sela o seu destino e quer chegar onde o vento lhe levar...

(Lenine)

Março de 2010

A rua se estendia cortando longamente as árvores de eucaliptos que formavam um belo bosque no meio da cidade. O vento frio batia em meu rosto levemente, pois o orvalho da madrugada insistia em ficar mais um pouco se espreguiçando. Tudo estava aparentemente normal naquela manhã, mas não era um dia qualquer, não era um dia que eu iria esquecer tão facilmente. Somente eu sabia da im-portância de ir a passos vagarosos em direção ao fim daquela rua asfaltada. Lá existia o futuro, e eu sabia disso. No fim daquela rua, existia a perspectiva de um recomeço. Em cada passo que eu dava, ficava a imagem de uma terra distante, das cantigas, dos sonhos da juventude, das renúncias já outrora feitas. Um flash a cada passo que se acelerava. As mãos começavam a suar, pois somente eu sabia que,

1 Foi estudante de Licenciatura em Geografia (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis – PET/Conexões de Saberes entre dezembro de 2010 e janeiro de 2012. Atualmente, é estudante de Ciências Sociais da UFSCar.

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no fim daquela rua, estava o início de um sonho. Meu coração des-compassado com as bagagens pesadas em se sustentar.

Avistei um prédio amarelo com janelas marrons. Não tive medo. Embora eu estivesse carregado de malas, olhei para aquele lugar e respirei profundamente. Eu estava suado e um tanto cansado. Ergui os meus olhos. A minha matrícula teria que ser realizada. Era o últi-mo dia para que eu estivesse definitivamente em uma Universidade Pública Federal, e esse passo era preciso dar.

Amor da minha vidaDaqui até a eternidadeNossos destinos foram traçadosNa maternidade

(Cazuza)

O caminho de Partida

Havia um menino que já estava há três meses no Hospital da Santa Casa de Misericórdia na cidade de Santana do Livramento-RS, que fica na divisa com a cidade de Rivera, no Uruguai, aos cuidados de uma enfermeira. O nome dela eu nunca soube, a sua face eu nunca vi, porém devo-lhe a vida. O menino era eu e foi exatamente aí que eu fui levado para casa. Agora, devo apresentar-me: chamo-me Fabrício.

As vagas lembranças que ressurgem da minha feliz infância são de quando eu tinha quatro anos de idade e brincava no corredor da minha casa com um ábaco, e meu pai, seu João Carlos, dizia para eu parar com aquele barulhinho chato do instrumento, pois ele queria assistir o telejornal. Minha mãe, dona Valentina, colocou-me no quar-to e deixou a luz acesa para eu brincar. Éramos uma família simples e tradicional, formada por minha mãe, que sempre fora dona de casa, meu pai, que exercia a profissão de taxista, eu e minha irmã, Bea-triz, que é sete anos mais velha do que eu. Vivíamos em condições estáveis, pois meu pai nunca deixou que nos faltasse nada, embora, desde que me conheço como indivíduo, eu o visse com um copo de álcool ao seu lado.

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Lembro-me que, em uma noite fria, o meu pai havia chegado pela madrugada após mais um dia de trabalho. Minha irmã e eu ainda dormíamos em um mesmo quarto devido à construção da nos-sa casa, que estava inacabada. Meu pai, como de costume, sempre acionava a buzina na hora em que chegava em casa e colocava o carro próximo à janela do nosso quarto, onde se localizava a garagem provisória. Desta vez, lembro-me de que acordei e percebi que ele estava demorando para abrir a porta de casa e acender as luzes. Foi essa demora que fez com que minha mãe acendesse as luzes. Assim que meu pai entrou, ouvi minha mãe dizer a ele que estava bêbado. Começou uma grande discussão entre os dois. Entre umas ofensas e outras, escutei revelações de que meu pai mantinha certas amantes fora do casamento, e, em seguida, escutei, à meia luz de meu quarto, minha mãe chorando sofrido e sem muito alarde. Foi nesta briga que descobri ser filho adotivo.

Minha mãe, com temor, via à sua frente, de forma premonitó-ria, tudo que o destino estava a lhe oferecer. Mesmo assim, ocultou dentro de si esse medo, que se mostrava de forma tão sutil com o passar do tempo. No entanto, ela nunca se intimidou: já não poderia voltar atrás das coisas já vividas, mas teria que se lançar à frente para cumprir o que a vida lhe tinha dado de missão. E, embora eu fosse filho adotivo, ela nunca me colocou nesse patamar. Minha mãe foi uma guerreira. Minha mãe sim foi determinada, pois cruzou pelas im-posições da vida com força, com fibra, com a altivez de uma menina e com a retidão de uma mulher. Minha mãe foi resistente em todas as suas dificuldades, se definiu como ponto central e de referência em minha vida: pelas suas atitudes, que eram postas em momentos certos, pelo seu pesar calado, sempre acreditando na força do cará-ter, na simplicidade e na verdade.

Pela sua doação sem esperar nada em troca, algo que não há preço, devo toda minha complexa forma de prever a vida, de encon-trar saídas a essa mulher de raízes, que foi mãe de verdade mais do que a que deu a luz, foi pai na maioria das vezes também, mesmo existindo um que só se intitulava em nome. Minha mãe foi a forta-leza, o centeio da minha vida. A partir da relação estremecida de

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meus pais foi que começaram as brigas constantes dentro de casa, e meu pai começou aos poucos ir sumindo da mesa nos almoços de domingo, pois ficava o dia inteiro no boteco bebendo. Ele parecia não perceber que a vida estava passando. E aquele lugar vazio na ponta da mesa para nós estava se tornando habitual, embora eu tivesse dor de não ter ele ali como figura do homem da casa.

Todos caminhos trilham para gente se ver todas as trilhas caminham pra gente se achar, viu

(Maria Gadú)

O caminho do Ensino Fundamental

Aos seis anos de idade, comecei a minha vida escolar. Era um dia de poucas nuvens, pouco vento e um calor escaldante. Eu iria adentrar no pré-escolar na escola de Ensino Fundamental e pública Dr. Élbio Silveira Gonçalves. Minha mãe tinha comprado uma meren-deira branca daquelas dos Power Rangers e colocado um sanduíche e uma garrafinha de leite para hora do recreio. Eu me recordo que eu estava muito feliz com aquela novidade. O nome de minha primeira professora era Mônica.

Nesta escola eu estudei até meus treze anos de idade. Acabei a 8ª série do Ensino Fundamental com algumas ressalvas interessantes a relatar: da 5ª série até a 8ª série, fui representante da turma, onde formamos o grêmio estudantil da escola, os grupos de teatro, música e dança. Pelos três anos consecutivos em que estive a cargo do grê-mio estudantil, organizamos as três primeiras manifestações artísticas anuais, como o festival de teatro, o festival de revelações de talentos e as oficinas para estudantes aprenderem a tocar instrumentos musi-cais, e, para as meninas, um coral.

No último ano, estava eu cursando a 8ª série e começamos a for-mular a ideia, junto à diretoria da escola, de formar o primeiro grupo de dança tradicionalista da escola: “Os Piazítos”, que, por relatos de meus sobrinhos que ainda hoje estudam nessa mesma escola, está ativo até hoje. Algo prazeroso para se dizer é que, nesse espaço de

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tempo em que estive a frente desses projetos, tive sempre o apoio dos professores e foi um orgulho finalizar este ciclo sempre passando por média em todas as matérias. A minha simples formatura ocorreu no pátio da escola com a entrega de um canudo simples, e nós, alu-nos, todos de bermudinha e chinelinhos de dedo.

Lembro-me que uma das últimas ações que meu pai ainda fez para nos agradar em família era nos levar nas férias para um sítio de um tio. De lá, voltávamos sempre antes de iniciar as aulas. E foi esta infância simples, inocente e de uma liberdade infinita que despertou em mim o interesse pela natureza viva daquele lugar, e, consequen-temente, a minha paixão pela Geografia. Acho que essa foi a melhor herança que meu pai me deu e eu a levo para toda a vida.

Eu sei que é pra sempre enquanto durar eu peço somente o que eu puder dar

(Titãs)

O caminho das mudanças

Ao entrar no Ensino Médio, mudei de escola. Agora eu estava matriculado na escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Júlio de Castilhos, onde finalizaria uma parte de meu ensino por mais três anos. Foi uma época muito boa da minha vida. Meu pai, machista e insistente, achava que com a minha idade já estava na hora de eu ar-rumar um emprego. E foi por este caminho controlado que fui condu-zido pelo meu pai, sempre sobrecarregando minha vida. Foi, então, que ele conseguiu um trabalho para mim em um escritório contábil de um de seus amigos e por ali fiquei trabalhando durante dois anos.

Quando eu já estava no último ano de Ensino Médio, havia feito dois meses que tinha saído da contabilidade, a nossa família teve uma queda muito brusca. Próximo de meu pai se aposentar, ele des-cobriu que todos os pagamentos dele para o INSS tinham sido des-viados pelo contador e que os carnês nunca tinham sido pagos de fato. Com isso, ele, então, não poderia se aposentar por tempo de trabalho, teria que ser somente por idade, e isso levaria uns sete anos

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futuros. Nesta mesma época, o táxi precisou de um conserto, e meu pai já não tinha mais reservas para realizá-lo. Neste momento, meu pai teve que trancar as corridas com o táxi, e nossa família sofreu grandes dificuldades. Passamos grandes fadigas nessa época, e meu pai se atirou de uma vez por todas na bebida e começou a ficar por casa. Minha mãe, que nunca tinha sequer sabido o que era trabalhar de verdade, teve que arrumar um emprego para nos sustentar.

Eu tinha muita perseverança e persistência para concluir os meus estudos e lembro-me que, quase no final do ano, faltando três meses para me formar no Ensino Médio, eu não tinha nem mais caderno e nem o restante dos materiais para ir às aulas. Foi pela generosidade e auxílio de colegas próximos que, por fim, pude me formar no Ensino Médio com muita dificuldade.

Na minha formatura, meu pai não compareceu, mas eu já estava mesmo acostumado com a ausência dele em eventos que marcaram a minha vida, como aniversários, formaturas, natais etc... Por isso não foi tão sentida a sua ausência: não se pode sentir falta do que não se teve.

Minha dor é perceber que apesar determos feito tudo o que fizemos...ainda somos os mesmos e vivemos...

(Elis Regina)

O caminho determinado que deu certo e também errado!

As dificuldades ainda assolavam muito a nossa família e se arras-tavam ao passar do tempo. Aos meus dezoito anos, fui morar com uma tia irmã de meu pai, que se chamava Eloisa, na cidade de Campo Bom-RS. Neste momento, tive que partir e deixar para trás a casa de minha infância, o meu lar, os meus amigos, a minha cidade natal. Eu tive que tomar um rumo determinado: por um lado, por todas as dificuldades já vividas e, por outro lado, pelo excessivo julgamento errado que meu pai tinha a meu respeito quando estava embriagado. Ao julgar que eu jamais serviria para nada na vida, que eu era um

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sonhador, que eu sempre andava em más companhias – pois para ele ninguém prestava além dele – meu pai não conhecia o filho que tinha, meu pai não tinha noção do que ele estava fazendo... Mas eu deveria seguir. Tinha sonhos de cursar uma universidade, de ter um trabalho digno, de ser alguém de quem meu pai um dia teria de se orgulhar, de que todos vissem a real face do Fabrício, e não a face que meu pai cansava de descrever aos parentes e aos vizinhos.

Parti de Santana do Livramento em junho de 2005. Fazia mais de dez anos que não via minha tia pessoalmente, já que era muito pequeno quando a tinha visto pela última vez. Eu nunca havia saído da minha cidade, eu nem conhecia o lugar onde viveria por três anos consecutivos. Minha tia me recebeu muito bem em sua casa. Apesar dos dilemas pelos quais ela passava, tinha um marido. Passados dez dias em que estava na casa de minha tia, surgiu uma oportunidade de trabalho em um escritório contábil, que fazia a contabilidade para a empresa dos meus tios em Novo Hamburgo-RS. Como eu já tinha a experiência de dois anos em contabilidade, eu me dirigi até o tal escritório e me apresentei. Logo fui recebido por um senhor de cabe-los brancos e baixinho, chamado José. Depois de alguns minutos de conversa, ele me disse que eu estava contratado e que iria começar como office boy da empresa. Ali fiquei em paz comigo. Eu tinha a oportunidade que poderia ser um grande começo na minha vida, e realmente foi.

Depois de seis meses morando com a minha tia Eloisa, acabei por me mudar para um apartamento no centro da cidade, o qual ficava próximo ao meu trabalho. No apartamento, não havia nada além de um colchão e de minhas malas. Aos poucos, fui adquirindo confiança na empresa e criando credibilidade com os clientes. Saí do cargo de office boy para o de auxiliar contábil. Comecei aos poucos, também, a mobiliar o meu apartamento: tudo isso em três anos.

Fiz o Enem por sete anos consecutivos, até que, no quinto ano de tentativas, em junho de 2007, me inscrevi com minha nota para Geologia, na UNISINOS, em São Leopoldo, e, em Pedagogia, na FEE-VALE, em Novo Hamburgo. Acabei passando em Pedagogia: parecia inacreditável, fiquei muito feliz. Eu havia conseguido passar em uma

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universidade. Obviamente não era a minha Geografia, porém Peda-gogia era o princípio base da educação e, para mim, a prática de educar já era um grande prazer. Foi, então, que, no mesmo ano de 2007, especificamente no mês de agosto, recebi uma ligação de mi-nha mãe, de Santana do Livramento, me dando a notícia de que mi-nha irmã tinha descoberto que estava com câncer no colo do útero. Falei ao telefone que ela fosse segurando as pontas como pudesse; afinal, longe eu não poderia fazer muita coisa por eles. Senti, em seu desabafo, que minha mãe não podia mais contar com meu pai.

Ao desligar o telefone, minha cabeça dava muitas voltas em tor-no de mim mesmo. Refleti sobre tudo o que havia se passado até aquele momento. Então, decidi que teria que fazer algo, que deveria ajudá-los, mesmo sem ter tido o mesmo apoio para chegar até ali. Sentia-me na obrigação de gratidão com minha mãe. Sendo assim, numa certa manhã, cheguei à empresa e pedi as contas do trabalho que tanto adorava. Relatei ao meu chefe o que estava ocorrendo, e ele, mesmo contrariado, entendeu e me disse que, por eu ter sido um ótimo colaborador para a empresa durante todos os três anos e sabendo das dificuldades de doença na família, ele não iria descontar nada dos meus direitos e iria me demitir.

Eu voltaria para aquela antiga vida que eu levava, que só eu sa-bia como era, como eu havia me sentido em anos atrás. Eu estava a caminho de me deparar com o passado, com uma clausura que tinha se anulado dentro de mim. Seria um sacrifício por um motivo forte. Só que, no fundo, eu sentia que estava regredindo. Vendi todos os meus móveis e entreguei o apartamento ao dono, como se tudo se perdesse ao vento de uma hora para outra. Tanto tempo para adqui-rir e pouco para tudo se perder. E, assim, voltei para a minha cidade natal. Nesse regresso, fiquei por mais dois anos em Santana do Livra-mento. Minha irmã passou por todo o seu tratamento e acabou se recuperando. Nessa época, fui para a minha mãe o apoio que ela não encontrava mais em meu pai.

Mesmo assim, tentei o Enem por mais estes dois anos consecu-tivos. No ano de 2008, consegui novamente uma vaga para Pedago-gia, só que, agora, em um polo de educação a distância. Mesmo con-

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trariado, pois não queria fazer uma universidade dessa maneira – eu que já havia conseguido uma vaga em uma universidade renomada como a FEEVALE –, não podia me contentar com isso. Ainda assim, sentindo essa insatisfação, acabei me matriculando. No entanto, não houve formação de turmas, e a vaga se perdeu.

Minha mãe agora estava trabalhando em dois trabalhos: pela manhã, em uma casa de família, e, à tarde, em casa de uma senhora, onde fazia doces para fora. Meus sobrinhos estavam matriculados na escola onde eu cursei todo o meu Ensino Fundamental. As coisas pareciam estar bem mais tranquilas e amenizadas. Depois desse cor-te na minha vida, demorou muito para eu me equilibrar novamente. Passei por muitas coisas pelas quais tive que ter autocontrole, fé e confiança.

Eu tinha feito novamente o Enem com minha determinada espe-rança de que um dia eu iria conseguir cursar uma universidade e o meu curso de Geografia. Eu trabalhava em uma loja que não me dava a estabilidade que tinha adquirido em outros tempos na contabilida-de. Tive que passar por um processo de adaptação para poder viver o tempo que vivi novamente em Santana do Livramento. Aprendi muitas lições de vida nessa baixa da minha vida e jamais irei esquecer algumas pessoas próximas e queridas que foram meu centeio para não desistir dos meus objetivos.

No entanto, a loja acabou me dispensando por não ter movi-mento de clientes suficiente a ponto de me pagarem o que eu me-recia. Desempregado em casa, meu pai, que nunca compreendeu os meus momentos, chamava-me de vagabundo, dizendo que eu era um desocupado e me acusando de coisas absurdas. A coitada da mi-nha mãe sempre vivia no meio de nossas discussões. Eu sentia muita pena dela. Se eles soubessem das renúncias que fiz, de todo o meu desprendimento. Eu tinha raiva da passividade do meu pai diante de tudo que passamos. Mais uma vez, levei um choque da vida. Real-mente não poderia esperar nada daquelas pessoas.

Sentia-me sem saída, de mãos atadas. Eu sabia que ali parado eu não poderia ficar mais, aguentando os desaforos e as agonias daquela situação a qual eu estava preso por acaso do destino e que,

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no fundo, eu não merecia passar. No entanto, ter tudo o que eu tive um dia seria muito difícil; afinal, todo recomeço é difícil. Buscar opor-tunidades em outra cidade seria quase impossível, até mesmo pelas condições financeiras nas quais eu me encontrava, sem ninguém para me ajudar. De toda a minha indenização do escritório em Campo Bom, o que tinha em mãos eram apenas trezentos reais, e a pergunta que ficava martelando em minha cabeça desacreditada junto ao meu desespero era: que caminho seguir com trezentos reais?

Espero a chuva cair na minha casano meu rosto nas minhas costas largas,é espero a chuva cair nas minhascostas largas que afagas enquanto durmo

(Zélia Duncan)

O Caminho traiçoeiro

Saí a caminhar pelo centro da cidade. Sentei-me em um banco da praça General Osório, no centro da cidade, e olhava a revoada de pombas que vinha comer as migalhas e os farelos que estavam pelo chão. Fui até uma banca de revistas que havia próximo dali e, por intuição, decidi comprar o jornal diário local. Sentei-me novamente e comecei a folhear algumas páginas quando meus olhos se depa-ram com uma pequena nota que dizia o seguinte: Estão abertas as inscrições para o processo seletivo da Universidade Federal da Fronteira Sul, para os câmpus de Erechim, Cerro Largo, Realeza, Chapecó e Laranjeiras em vários cursos. Maiores informações no site....

Logo minha cabeça quis acreditar que aquilo poderia ser uma saída. Porém, mais uma vez, me deparava com a minha realidade e fiquei ali lendo os cursos que cada campus estava oferecendo. Faltava uma força vir de dentro de mim. Essa força que a gente nunca sabe de onde vem e por que vem, mas ela existe, e eu a senti quando meus olhos correram pelos cursos que o campus de Erechim oferecia aos estudantes. Meu curso estava lá: a Geografia estava entre os cur-

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sos. Meus olhos não acreditavam no que liam e meu coração parecia que ia sair pela boca e minha inquietação foi constante. Levantei-me por impulso e fui até uma lan house. Ao entrar no site indicado na nota, fiz a minha inscrição em algo que chamo de uma utopia um tanto desregulada.

Havia duas opções de cursos. Como eu não podia deixar de analisar os meus recursos financeiros caso fosse selecionado, aderi por me inscre-ver para o curso de Ciências Biológicas para o campus de Cerro Largo, que era o mais próximo da minha cidade, e, como segunda opção, para Geografia, no campus de Erechim. Passado um mês, eu estava em casa quando fui até a casa da minha comadre Lidiane. Neste momento, lem-brei que o resultado já havia saído dias atrás. Pedi para minha comadre ver se eu tinha sido selecionado. Ao olhar na tela do computador, eu levei um choque, daqueles de ficar minutos pálido, pois, na tela, havia a lista dos selecionados para o curso de GEOGRAFIA no campus Erechim, e o meu nome estava entre os cinquenta selecionados na primeira cha-mada e em uma Universidade Pública e Federal.

Eu tinha em mim uma mistura de felicidade e conquista, mas, ao mesmo tempo, não sabia que decisão tomar frente a tudo. Aquele sabor da conquista falava mais alto dentro de mim, era o sonho a passos de ser realizado, era o sinal que eu havia pedido a Deus para me dar um novo recomeço, e ele havia me dado depois de tantas portas terem sido fechadas. Se a vaga surgiu no meio de tanta coisa que teria dado errado nos últimos anos; então, realmente aquela oportunidade era para mim.

Não hesitei em colocar na minha cabeça a obstinação de que eu deveria mudar os ares, os rumos e de que eu merecia viver essa uni-versidade como nunca. Não me lembrei das dificuldades financeiras, não me lembrei absolutamente de nada, nem mesmo de que eu não conhecia ninguém na cidade de Erechim e muito menos a própria cidade. À frente se mostrava para mim o desconhecido em seu lado mais escuro. O único guia que existia para mim era essa vontade imensa de seguir lutando pelas pessoas, por um exemplo de cidada-nia melhor, por um mundo mais humano e de progresso. Neste mo-mento, senti a força de que sempre se pode ir mais longe do que os

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seus próprios limites. Foi nessa linha de raciocínio que pensei em mim e no que parecia impossível. Decidido a agarrar com unhas e dentes o que sobrou, eu, mais do que ninguém, podia relatar o desapego: “de nada adiantou, pois nada sobrou, o que sobrou fui eu em pé e as minhas experiências”.

Agora... pra sempre... fui embora mas eu nunca disse adeus

(Capital Inicial)

O caminho escrito

No dia onze de março de 2010, faltava apenas um dia para en-cerrar as inscrições de matrícula na universidade em Erechim. Subita-mente, um dia antes, comprei sozinho a passagem e cortei o estado do RS, deslocando-me da fronteira oeste em direção à região do Alto Uruguai com meus trezentos reais: uma demorada viagem para per-correr os 800km que eu tinha pela frente. Cheguei à cidade de Ere-chim pela madrugada. Como não conhecia lugar algum na cidade e tinha pouco dinheiro, acabei por ficar na rodoviária até amanhecer.

Ao amanhecer, perguntei a um taxista da rodoviária onde seria ins-talada a sede da nova Universidade Pública Federal, e ele me falou que seria perto dali, no seminário Nossa Senhora de Fátima. Ele sugeriu que eu fosse a pé. Só não percebeu que eu estava cheio de malas. Mesmo assim, fui até lá a pé com as minhas bagagens. Ao chegar ao pórtico de entrada do seminário, eu estava cansado e fadigado; porém, me deixei levar pelas várias árvores de eucaliptos que formavam um bosque de paisagem linda. O cansaço era apenas um detalhe e, por fim, dei os novos passos para o meu recomeço,digamos que bastante desafiador.

Não deixe nada pra depoisnão deixe o tempo passar nãodeixe nada pra semana que vem porque semana que vem pode nem chegar

(Pitty)

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A trajetória acadêmica

No início foi bastante instigante e inovador, como todas as situa-ções novas que se desenrolam. Aos poucos, fui conhecendo pessoas diferenciadas com ideias bastantes práticas e outras com poucos fun-damentos. Assim, fui ganhando meu espaço entre os estudantes, do-centes e técnicos. Ao mesmo tempo, vesti a camiseta do que chamo de “o não me conformar com a normalidade” em uma Universidade que está criando raízes e formando a sua estrutura. Esta sempre se deparou com muitas situações em que cabiam várias discussões, tan-to no âmbito estudantil, como no de docentes e técnicos.

A Universidade Federal da Fronteira Sul abriu-me portas, e por isso sigo lutando, cada vez mais, para que o estudante seja mais va-lorizado, para que as prioridades sejam vistas com mais sutileza, para que as desigualdades entre as classes sejam abrandadas sem que nunca esqueçamos onde realmente é o lugar que cada um ocupa e de onde viemos, para que possamos ser transformadores de um es-paço social onde a comunidade possa estar sendo agraciada e se sen-tir orgulhosa de ser vista como um movimento de progresso popular no qual realmente as mudanças ocorrem, para que todos possam se sentir parte daquela experiência de formação, e não apenas de fun-cionalidades fúteis camufladas.

Numa tarde agradável, estava sentado em um dos computadores da biblioteca e sentou ao meu lado uma moça. Pressenti nela dores de amor, seu ar estava pesado... Olhei para ela e disse: “Calma, ele não sabe o que está perdendo”. Ela me olhou com os olhos arrega-lados como que dizendo: “Como este cara sabe?” Ao nos olharmos, começamos a rir... e assim começou uma amizade forte e sincera. A moça se chamava Adriana. Aderimos a tardes e momentos em um quiosque próximo à universidade. Um dia decidi que deveria com-partilhar esse momento bacana com pessoas queridas da minha vida e, sem saber para que seria o seu depoimento, Adriana tentou, de alguma forma, expressar em palavras esse carinho. O amor e a dor que ela sentia passaram... e a nossa amizade acabou permanecendo!

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Meu grande amigo, uma pessoa especial e que mere-ce o melhor! Como estudante, super dedicado, inteli-gente e que faz tudo certo! Como membro social, luta pelos seus direitos e defende com unhas e dentes seus ideais! Enfim uma pessoa muito batalhadora e que somente conquistou o seu lugar ao sol porque nunca desistiu do seu sonho de cursar geografia em uma uni-versidade pública.

Adriana Paula Czapela (Acadêmica do Curso de Geo-grafia da Universidade Federal da Fronteira Sul - Cam-pus Erechim).

Luto por esta universidade ser cada vez mais os sonhos de milha-res de pessoas que idealizam chegar até aqui. Luto para provar para mim mesmo que todos nós temos a capacidade de cair e levantar, de passar as dificuldades e continuar intactos na essência. Luto pela diversidade das pessoas, pelo respeito aos seus espaços, ouvindo-as, refletindo e agregando-as. Luto por uma universidade sem elitismo, sem soberba de poderes. Luto por espaços para desenvolver e aguçar os sonhos daqueles que buscam a formação pessoal justa e limpa, mesmo em suas diversas dificuldades. Sou a favor daquele que se movimenta, do que se empenha, do que não tem medo de arriscar, de impor, de transpor a margem do que não foi trilhado, e isso inde-pendente de qualquer vaidade de gênero, seja ele racial, sexual, reli-gioso ou social, pois acredito que quem pratica o ato do preconceito é meramente doente.

No primeiro dia de aula da universidade, o professor pediu para formarem grupos de duas a três pessoas para desenvolvermos um trabalho. Não conhecia ninguém na sala. Ao meu lado, estava uma moça com os olhos esverdeados, chamada Marjana. Ao nos olhar-mos, definimos o grupo assim mesmo, pelo olhar. Ao nos aproximar-mos, já notamos que tínhamos muitas coisas em comum. A partir daí, ficamos muito amigos, parceiros para trabalhos, barzinhos, para comer lanche, fazer viagens, matar aulas. Por ela ter tido esse conta-to comigo desde o primeiro dia de universidade, pedi para ela fazer um breve relato sobre o que ela achava de mim, e isso me deu medo.

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Ela achou estranho, mas saiu da sala de aula para escrever. Quando voltou, disse: “Toma! É isso aí!” Quando li, fiquei chocado!

Fabrício sempre esteve disposto a enfrentar as dificul-dades que lhe foram proporcionadas, fazendo com que ficasse cada vez mais forte e resistente. Com muito es-forço conseguiu realizar o seu maior sonho, que foi o de entrar em uma universidade pública e usufruir de um ensino de qualidade. Fabrício conseguiu brilhar e ir mais longe, mostrando sua capacidade e sensibilidade a to-dos, e teve a oportunidade de contribuir como bolsista do programa PET, o qual contribui imensamente para a sua formação. Sempre agiu de forma justa à frente de decisões difíceis. Não é por acaso que ele chegou até aqui. Fabrício tem luz própria e faz merecer.

Marjana Vedovatto (Acadêmica do curso de Geografia da Universidade Federal da Fronteira Sul- Campus Ere-chim).

No mês de novembro de 2010, abriu o processo seletivo para o Programa de Extensão Tutorial/PET, que teria duração de três anos. Sua temática, extremamente direcionada para a educação popular, foi, então, o que, à primeira vista, fez com que eu me apaixonasse pelo programa. Assim, resolvi participar do processo seletivo, o qual foi muito justo desde o primeiro momento em que o Professor Thiago Ingrassia Pereira, tutor do projeto, dialogou com os discentes que participariam do processo. Éramos doze estudantes e seriam selecio-nados apenas quatro bolsistas ativos e dois voluntários.

Após algumas entrevistas com os estudantes pela manhã e pela tarde, à noite saiu o resultado no mural da universidade. Três colegas de outros cursos e eu tínhamos sido selecionados. Minha alegria foi tamanha, pois era algo que eu realmente queria, já que sabia que se-ria um trabalho sério e, ao mesmo tempo, bonito para complementar a minha graduação.

Precisava da palavra de uma pessoa crítica, com posicionamen-to firme. Precisava da voz de um docente que não me conhecesse muito bem até aquele momento, até mesmo para fugir de ficar algo

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forçado pela minha parte. Foi, então, que, logo, me veio o nome do professor Márcio. Tínhamos tido somente um contato em uma dis-ciplina do segundo semestre. Mesmo assim, pedi a ele para relatar como ele observava minha trajetória acadêmica pelo pouco que me conhecia. Ele me olhou meio curioso e meio duvidoso. Expliquei que era para um memorial descritivo, e ele não fez pouco do meu pedido e descreveu.

Fabrício tem se mostrado aluno empenhado. Sua traje-tória de vida tem potencializado uma trajetória acadê-mica peculiar. Mostra-se comprometido com a constru-ção de uma ciência geográfica crítica e popular.Prof. Márcio Freitas Eduardo (Docente do Curso de Ge-ografia da Universidade Federal da Fronteira Sul – Cam-pus Erechim).

Acima de tudo, fica a imensa responsabilidade que carrego de que o educador tem muito ainda para se doar para a sociedade, pelo seu posicionamento como mestre, pela postura que todos esperam dele. Mesmo com todas as dificuldades e privações que são encontra-das, este está sempre na constante busca de que ainda a educação vale ser vivenciada, vale ser praticada, vale ser passada adiante, vale ser valorizada, e que, sem dúvida, é a fonte da sabedoria e o combus-tível para o conhecimento.

Apesar de todas as flexibilidades que temos que enfrentar em uma trajetória acadêmica, devo relatar aqui que, sem essas adversida-des, a universidade perderia um tanto a sua cor. Sei que as realidades que existem até chegar à universidade já são um tanto duras, porém, ao chegar até ela, começa um novo processo de desafios. Sabemos que, devido à questão socioeconômica, a formação de um acadêmi-co, nos dias atuais, ao mesmo tempo em que está ao seu alcance, em outros momentos, já não está mais.

Por isso devo ressalvar que devemos nos focar cada vez mais em exigir um ensino onde exista qualidade, um ensino público que se enquadre nos mais diversos perfis, principalmente no de ordem po-pular. Assim, os estudantes com méritos e que não podem ingressar

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em uma universidade privada terão o direito como cidadãos de fazer parte de uma universidade pública e federal. Este movimento, que se tornou real com a abertura da Universidade Federal da Fronteira Sul, a primeira universidade criada ao mesmo tempo em três estados, foi uma conquista não só para mim, mas também para mais de 1000 alunos que hoje conseguem cursar sua área desejada.

Com minha visão de discente desta universidade e crítico, devo afirmar que, mesmo existindo processos complexos de estruturação e várias problemáticas de ordem burocráticas em virtude de esta ser uma sede provisória, a universidade vem cumprindo linearmente seu papel e formando sua história aos poucos, com um passo após o outro.

Neste sentido, devo afirmar que, apesar de estarmos acompa-nhando na prática toda essa formação da universidade, sinto-me muito feliz por ter feito a escolha certa. Se um dia eu pensava em apenas um recomeço, uma saída, a vida me mostrou que eu não tenho o controle do destino, não tenho o controle de perder, não tenho o controle de nada. Isso eu pude entender quando se abriu à minha frente a estrada que me levou ao ensino, às diversas reflexões do conhecimento. Vim por um caminho pelo qual alguns tentaram me desviar, outros me puseram em provações para ver se eu desistia, mas eu fui mais forte, eu venci o tempo. O estudo move meus dias. Sem querer, o ensino me escolheu.

Numa dessas correrias pelo corredor da universidade, me deparei com uma morena paulista. Era a Vânia. Eu não sei descrever bem como e onde começou nossa amizade. Só sei que, em nossos pri-meiros contatos, tínhamos as mesmas percepções da universidade, da mudança brusca de cidade e adaptações, do modo de vida das pessoas. E, assim, começamos a sempre nos encontrar com muito bom humor. Aos poucos, nossos encontros, infelizmente, foram se tornando escassos devido a estarmos envolvidos em nossos projetos. Hoje nos esbarramos quando a vida quer, mas, sempre que isso ocor-re, nos abraçamos, com um sorriso sincero e uns apertões. Eu não poderia deixar de compartilhar com ela, já que estamos ativos pela universidade, e também porque ela luta pelos direitos dos estudan-

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tes, elemento forte que me instiga e pelo qual sou ativista também. Entre nós, dois corpos ocupam o mesmo espaço sim, quando se dire-cionam para as mesmas linhas de posicionamentos.

Contando com um caráter popular e público, a UFFS acaba se destacando por oportunizar estudantes oriun-dos de escola pública. Sendo assim, dentro desse espa-ço, não é surpresa nos depararmos com pessoas com o perfil do Fabrício, que veio de longe em busca de um projeto de vida, que é ter um curso superior, algo que é direito de todos, mas que ainda não é garantido a mui-tos. E nesse processo de construção dessa universidade onde a grande intenção é fazer com que o “popular” não fique somente na proposta inicial, pessoas dispos-tas a contribuir, corajosas e engajadas, como o Fabrício, se destacam muito e tornam-se parte fundamental des-se grande projeto.Vânia Aguiar Pinheiro (Acadêmica do Curso de Pedago-gia da Universidade Federal da Fronteira Sul- Campus Erechim).

Eu quis ser eu mesmo eu quis ser alguém mas sou como os outrosque não são ninguém

(Pato Fu)

Somos muitos caminhos em um só!

Ao longo de toda minha vida, devido a todas as imposições que ocorreram, com todos os meus altos e baixos, pude conviver com todo tipo de pessoas possíveis. Pude também perceber que a socie-dade ainda está muito despreparada para aderir ao novo e sempre está nos exigindo sermos inovadores. Aprendi que as pessoas cobram demais o que elas mesmas não têm e não podem oferecer, que todos somos deficientes em alguma parte de nossa vida e que temos sede de saber, mas não buscamos nos adentrar profundamente em nós

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mesmos, com medo das verdades que se escondem em cada interior, preferindo, assim, ficar no anonimato como coadjuvantes.

Eu preferi me arriscar na vida, me jogar com tudo nela e, desta forma, me autoconhecer, me sabotar um pouco, aderir à prática de ser o protagonista da minha vida e, nisso, criar a margem tênue de ser mal interpretado. Os pilares da nossa sociedade não estão pre-parados para viver o novo. A sociedade impõe situações prontas e cômodas, e as pessoas não cortam de vez as suas deficiências pela raiz, em busca de um novo princípio. Todas as nossas dores, ao se-rem analisadas e curadas, propõem automaticamente um estado de reconciliação consigo mesmo.

Vivenciei as pessoas falarem, debaterem, criticarem, questiona-rem coisas absurdas, tentando achar as soluções externas de todos os problemas causados por si mesmos, ao invés de realizarem uma análise interna, pela própria anulação de suas vaidades, para se che-gar ao menos ao censo de suas verdades, do raciocínio limpo, livre de qualquer posição social, para, assim, mantendo-se livres de qualquer vínculo, possam estar realizando escolhas mais concretas e sólidas e obtendo a nova visão de um novo sistema, de práticas acertadas, de organização e de cumprimento com seus deveres, deixando de lado a margem de uma sociedade vitimada. Creio que a palavra mais correta a se definir para uma real mudança seja limpeza das internas sociais e transformação desse feitio em verbo, direcionando isso para o externo da população, já que todo o verbo se designa em ação e sabemos que isso é impactante para uma sociedade passiva e cheia de interesses como a nossa.

A universidade, sendo uma instituição social ativa e que hoje in-fluencia diretamente a minha vida, está se firmando com um proces-so diferenciado de outras universidades espalhadas pelo país. Uma instituição que tem a possibilidade de, justamente por ser nova, fazer essa novidade valer, não adentrar nos moldes egocêntricos de pode-res que se encontram hoje em dia, tentar formar suas bases a partir de práticas internas justas e democráticas, aos poucos vai se expan-dindo, refletindo isso para a sociedade, despontando aos poucos, sem pressa.

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Não adianta termos apenas uma estrutura exposta a todos se as bases universitárias forem formadas somente no calor da quantidade, sem a devida qualidade. Creio que isso resultaria, a longo ou médio prazo, na erupção de muitos infortúnios e descobertas desagradáveis de estruturas que foram devidamente aceleradas só para uma ma-terialização passageira. Mais do que cair nessa situação surrealista, precisamos de formação interna apta a se descobrir, a se reinventar, a formar políticas justas, a formar profissionais capazes. A universidade precisa mais do que simplesmente existir, ela precisa ser adornada de intencionalidades sérias, sinceras, livres e confiantes.

A universidade precisa ser um espaço de vivência agradável e de conjunto, sem deixarmos as nossas particularidades de lado. Pode-mos ser mais que números, mais que mecanicistas. Podemos tentar, de alguma forma, ir além do que nos foi proposto, além do diploma, do cargo meritocrático, de todos os poderes e crenças. Devemos ser construtores e desbravadores do novo. Todos nós precisamos de ares novos, e o princípio de tudo está em uma nova concepção, na des-construção e construção do novo eu. Essa busca sempre será cons-tante. Precisamos ao menos tentar. Enquanto isso, eu sigo protago-nista da minha própria história, me montando e me desmontando conforme o que se apresenta em meu destino. Posso abrir mão de tudo, ser flexível a qualquer mudança, mas jamais abrirei mão de ser sempre o dono do meu caminho.

Dedico todo este memorial ao meu pai, João Carlos de Souza, que fez com que eu tenha crescido, aprendido e me tornado o ser humano com fibra que sou, sendo que não é por qualquer obstáculo imposto que se cresce e se aprende, e sim de toda lição que se tira dele.

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PARTE II

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seli Terezinha leiTe1

Este memorial descritivo objetiva apresentar a minha trajetória de vida escolar até chegar à universidade. Para tanto, optei por des-crever a formação familiar da qual faço parte, porque ela reflete a parte inicial e de grande importância na minha caminhada. Depois disso, descrevo toda trajetória acadêmica e escolar: as dificuldades, os medos, as ansiedades, as perspectivas em relação à situação finan-ceira etc. No decorrer dessa descrição, procuro destacar os fatos que acredito serem os mais importantes e aqueles que refletem na minha curta trajetória acadêmica.

Nasci em 1962, no seio de uma família grande: treze filhos, fato visto como normal numa época em que grande parte das famílias morava no campo e precisava de “mão-de-obra” familiar para a manu-tenção das lavouras. É também nesta época que a igreja era contrária aos métodos contraceptivos disponíveis e deixava explícito em seus sermões dominicais que era “pecado” usar tais métodos. Porém, ao contrário do esperado para a época, minha grande família morava na cidade

1 Estudante de Licenciatura em Geografia (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis – PET/Cone-xões de Saberes desde outubro de 2011.

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Foto 1: Meus pais, com doze dos treze filhosFonte: Álbum da Família (1967)

Meu pai escolheu a profissão de caminhoneiro, a qual exerceu pelo tempo em que esteve apto ao trabalho. Cursou somente até o 3º ano do ensino primário, pois precisava trabalhar para ajudar no susten-do da família. Minha mãe cursou somente o 1º ano do ensino primário. Aprendeu o suficiente para conseguir se virar, ou seja, assinar o nome, decifrar as letras e escrever alguma coisa; não sem muitas dificuldades e limitações. Como se casou aos 15 anos de idade, assumiu, desde muito nova, o posto de dona de casa, esposa e mãe. Pelo fato de meu pai ficar longos períodos fora de casa, por conta do trabalho, ela, por várias ocasiões, precisou assumir também o papel de pai.

Os filhos foram crescendo e adquirindo responsabilidades. Dos treze filhos, um não frequentou a escola, pois era deficiente e, à épo-ca, não existiam as políticas de inclusão; quatro estudaram até a 4ª série; dois têm o Ensino Médio incompleto; quatro concluíram o En-sino Médio; uma graduou-se em Estudos Sociais em julho de 1984 e, no ano de 2007, fez Pós-Graduação em Geografia; e, eu, que estou frequentando um curso superior.

Minha trajetória universitária inicia em 2009, quando tentei uma vaga no PROUNI através do ENEM. Meu objetivo era cursar Enferma-gem na URI – Universidade Regional Integrada de Erechim, mas mi-

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nha classificação nas provas foi insuficiente para esta realização. Des-ta forma, pedi auxílio para minha filha mais velha que, nesta ocasião, tinha mais conhecimentos sobre as diferentes formas de se ingressar numa Universidade.

Assim, busquei espaço em vários cursos e, para minha grande surpresa, consegui uma vaga na recém-criada Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Geografia não era o curso es-colhido nas primeiras opções, mas aceitei a oportunidade, passando a fazer parte dos seletos 400 alunos que iniciariam a história desta universidade. Isso trouxe mudanças em vários aspectos da minha vida: melhorou minha autoestima, minha visão de mundo; ampliando meus horizontes e propiciando oportunidades até então impensadas. Estou muito feliz por fazer parte desta construção em direção à concretiza-ção daquilo que muitos sonharam, lutaram e, principalmente, acredita-ram para o crescimento e desenvolvimento da região do Alto Uruguai.

Destaco aqui que o ENEM oferece a todos os estudantes a opor-tunidade de frequentar uma Universidade. Independente do curso que realmente desejem, é uma porta que se abre na busca da reali-zação pessoal e profissional.

Este é o grande marco na trajetória da minha vida: entrar para a vida acadêmica em uma Universidade Pública, Federal e de quali-dade, sem precisar deslocar-me de cidade (o que inviabilizaria minha permanência). Além disso, a universidade conta com políticas de as-sistência estudantil: bolsas, projetos, auxílios dos quais estou tendo o privilégio de participar.

Fazer parte desta construção vem comprovar que, a partir do mo-mento que almejamos algo, precisamos tomar atitudes para que real-mente se concretize em nosso cotidiano, trazendo, assim, mudanças em nossas vidas. Hoje, através das mudanças na política educacional, frequentar uma Universidade Pública Federal perto de casa deixou de ser uma utopia e tornou-se um sonho alcançável para tantos quantos estiverem dispostos a encarar tal desafio, independente de cor, raça, credo, situação financeira etc. Foi assim que tive a oportunidade de trazer para o meu dia a dia a vivência acadêmica com qualidade e plenitude. Desde que iniciei minha graduação, tive a oportunidade de participar de dois projetos de iniciação acadêmica, os quais ampliaram

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meus horizontes. Hoje faço parte do PET-CONEXÕES DE SABERES, no qual tenho a pretensão de ficar até o momento de minha formação.

Rememorando os passos

Iniciei minha vida escolar aos sete anos no Grupo Escolar Junto às Casas Populares, localizado na cidade de Erechim-RS. Este grupo foi fundado pelo decreto nº 11.768 de 07/11/1960, reorganizado pela portaria de nº 16.850 e reclassificado pelo Decreto Estadual nº 19818, no qual passou a designar-se Escola Estadual de 1º Grau In-completo Lourdes Galeazzi. A escola, como se pode ver pelas fotos abaixo, era pequena. Constituía-se, no 1º bloco, conforme Foto 2, com 2 salas de aula, biblioteca, secretaria e cozinha. Saindo deste bloco, passava-se por uma área coberta (cf. Foto 3) e chegava-se ao outro bloco, que abrigava mais 2 salas de aula e também os banhei-ros. Atrás do segundo bloco, havia uma horta (cf. Foto 4), que os alunos cuidavam com o auxílio das professoras. Dessa horta eram co-lhidos verduras e legumes para a merenda escolar. Como as famílias que moravam no entorno eram numerosas, as turmas eram grandes e, por vezes, algumas crianças passavam da idade de entrar na escola por falta de vaga.

Foto 2: Grupo Escolar Junto às Casas PopularesFonte: Arquivo da Escola (1970)

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Foto 3: Grupo Escolar Junto às Casas PopularesFonte: Arquivo da Escola (1972)

Foto 4: Grupo Escolar Junto às Casas Populares (Horta)Fonte: Arquivo da Escola (1972)

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Um fato importante que marcou minha trajetória pelo Grupo Escolar Junto às Casas Populares era a obrigatoriedade de tirar os calçados nos dias de chuva. Eles eram deixados em um corredor antes de entrarmos para a sala de aula. Poucos colegas, com situa-ção financeira um pouco melhor, usufruíam das “galochas”. Assim, ao chegarem à escola, tiravam-nas e, então, podiam entrar com o calçado, pois este estava limpo. Deste tempo ainda tenho bem vívi-do na memória o fato de carregar os materiais em sacos plásticos, de “açúcar cristal”; feliz por poder protegê-los nos dias de chuva. Um simples guarda-chuva era coisa supérflua naqueles dias, fora do alcance. No entorno da escola, havia uma calçada bem estreita e o restante do terreno era terra. Naquele tempo, as ruas eram de chão batido; não havia pavimentação. Devido às dificuldades para manter as crianças na escola, era comum que o estudo fosse até a 2ª ou 3ª série. Depois disso, o estudo era abandonado, para tra-balhar fora ou, muitas vezes, para ajudar nos afazeres de casa. Por sorte, mesmo vindo de uma família grande, minha mãe sempre nos incentivou para que estudássemos, pois sentia na própria pele as dificuldades de mal saber ler.

Com o decorrer do tempo, a escola foi adquirindo outras fun-ções e maiores competências. Em 1992 e 1993, respectivamente, foi autorizado o funcionamento das 7ª e 8ª séries, passando, então, a denominar-se Escola Estadual de Ensino Fundamental Lourdes Galeazzi. Na época, segundo a atual diretora da escola, Odila de Lourdes Leite, havia aproximadamente 300 alunos e em torno de 15 funcionários entre direção, professores e auxiliares. Hoje, esta escola é referência para a cidade e região do Alto Uruguai, pois é autorizada a trabalhar com classe especial de deficientes educáveis e também trabalha com várias síndromes, de leves a moderadas. A escola possui, em sua estrutura, três salas de recursos, sendo uma multifuncional, toda organizada e mantida pelo governo Federal para trabalhar com o público mencionado. Essa escola é a pioneira na região do Alto Uruguai a trabalhar com a inclusão, questão de grandes debates na atualidade.

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Foto 5: Foto atual da Escola Estadual de Ensino Fundamental Lourdes GaleazziFonte: arquivo da escola (2002)

Ao retornar à minha escola, em 2012, em busca de informações para que pudesse escrever este memorial, inicialmente senti empol-gação; emoções ao manusear papéis, fotos que descreviam parte de minha vida e de pessoas que um dia fizeram parte do meu dia a dia. Por fim, posso dizer que senti até mesmo um pouco de nostalgia. Já havia frequentado a escola em outras épocas e situações diferentes, porém, hoje, ao buscar informações de meu passado, passei a vê-la com outro olhar. Tenho certeza de que até o momento jamais tinha olhado para esta escola com este olhar e sentimento. Hoje vejo o quanto ela foi importante em minha vida. Ali foram os meus primei-ros passos na importantíssima vida escolar. Só agora tenho consciên-cia disso. Com certeza, estava guardado no mais profundo do meu âmago. É como se, no instante em que entrei lá e comecei a revolver fotos, livros, papéis etc., uma barreira até então impensada houvesse sido transposta. Enfim, fiquei muito feliz por encontrar material que me auxiliasse nesta escrita e a ver que a escola continua mantendo excelência em qualidade.

Retornando ao passado, todos meus irmãos, em algum momen-to de suas vidas, frequentaram esta escola. Também meus quatro

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primeiros filhos, já que a escola situava-se distante apenas uma qua-dra de nossa casa, e, também, por considerá-la uma excelente escola pública.

Nesta escola, estudei da 1ª à 4ª série primária. Ali também fiz mi-nha primeira eucaristia, que, à época, era ensinada na própria escola (aos 10 anos). A partir de então, minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos e passei a estudar, da 5ª à 7ª série, no Centro Educacional São José, por este ser o mais próximo de nossa casa. Com reprovação na 7ª série, adicionada às dificuldades que vinha enfrentando para me manter num ambiente totalmente adverso ao que estava inserida, acabei desistindo de estudar.

Naquela época, por inúmeras vezes, senti-me deslocada/infe-riorizada, mesmo com o uso obrigatório de uniforme. No turno da manhã, estudava e, à tarde, cuidava de uma sobrinha. O pagamento era o material escolar, que incluía os livros, que não eram baratos, e o uniforme.

Depois de abandonar a escola, comecei a trabalhar como do-méstica, profissão comum aos que não têm estudo. Com o passar do tempo, tentei por duas vezes retomar os estudos, mas acabei desis-tindo, por ser à noite, pela distância, pelas ruas mal iluminadas, pelo fato de ter que levantar muito cedo no dia seguinte para dar conta dos afazeres a mim incumbidos. Porém, hoje tenho plena convicção de que, se tivesse sido mais persistente, teria conseguido. Creio que o que faltou foi determinação, coragem de encarar os desafios, enfim, ter objetivos.

Aos dezoito anos, engravidei de minha primogênita, tempos difíceis... mãe solteira. Aos dezenove, conheci o pai de meus próxi-mos três filhos. Com o tempo, formamos uma família com quatro filhos, e todos frequentaram a escola normalmente, sempre incen-tivados por mim e pelo meu marido. Ele foi a pessoa que, mesmo sem saber e por motivos alheios, acabou reacendendo o meu gosto pela leitura. Na medida do possível, me presenteava com livros, os quais eu devorava. Mesmo em momentos de escassez, aproveitava--se do fato de viajar para diversos lugares (já que era vendedor de mercadorias) e, sempre que passava por um sebo, lembrava de mim

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e não saía de mãos abanando. Sempre gostei de ler de tudo e sobre tudo.

O desejo de sempre buscar novos conhecimentos e melhorar de vida levou-me a estudar junto com meus filhos em casa e realizar mui-tas leituras. Neste sentido, julgo-me autodidata, pois, em 1993, por indicação de uma vizinha, fiz pela primeira vez as provas do supletivo. Como eliminei várias matérias, empolguei-me e, no ano seguinte, to-mei coragem e me inscrevi também para algumas matérias do Ensino Médio. Sempre estudando em casa, sem frequentar escola, apenas indo fazer os exames, consegui aprovação em Literatura. Isso me fortaleceu, foi o “empurrão” que faltava para eu me sentir capaz de ir além.

Neste período, ocorreram muitas mudanças, dentre elas sepa-ração, responsabilidades que quatro filhos acarretam, doenças, ad-versidades... Enfim, graças a Deus e às pessoas maravilhosas que me cercam, os obstáculos foram sendo transpostos. Naquele momento, pensava que só restava criar meus filhos com dignidade e torcer para que fossem pessoas de bem. Foi então que alguém muito mais do que especial entrou em minha vida transformando o meu viver; pri-meiro como amigo, companheiro, parceiro... e muitos outros adjeti-vos que, no momento, não vem ao caso.

Além disso, tornou-se peça importante, não só na minha, mas na vida de meus filhos ao assumi-los e dar-lhes a referência de pai que não tinham junto deles. Quando passou a fazer parte de nos-sas vidas, ele tinha cursado até a 5ª série. Com a minha insistência, inscreveu-se para fazer os exames supletivos, concluindo o Ensino Fundamental e, posteriormente, parte do Ensino Médio. Hoje, ele é o meu braço direito. Sei que está torcendo por mim tanto quanto eu ainda tenho a esperança de vê-lo concluindo o Ensino Médio e, por que não, entrando para a fascinante vida acadêmica.

Com meu atual marido, tive mais três filhos, dois meninos, hoje adolescentes, que frequentam o Ensino Fundamental, e uma menina, que perdi ao nascer. Meus quatro filhos mais velhos concluíram o Ensino Médio, a mais velha formou-se em Matemática e a mais nova cursa Filosofia, também na UFFS – Erechim.

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MEMÓRIAS ESTUDANTIS: UMA TRAJETÓRIA EM CURSO

Por tudo, dedico este memorial primeiramente a Deus, por sua generosidade em me conceder este privilégio, depois aos meus pais in memoriam, que, tenho certeza, estão torcendo por mim. Aos meus filhos e minhas filhas, seres maravilhosos que Deus colocou no meu caminho para iluminar minha passagem por aqui. Ao Ricardo, meu amparo de todas as horas. Aos meus familiares e amigos, que estão torcendo por mim e me apoiam em mais esta jornada.

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sandra regina Ferreira Müller1

Fatos e pessoas marcaram o ano de 1958 na história do Brasil.Brasil de Pelé vence a Suécia em casa por 5x2 na final da Copa

do Mundo – para o Brasil futebolístico, inesquecível. Juscelino Kubits-chek, então presidente, ouviu a transmissão do jogo na praia através da coqueluche do momento, o radinho de pilha, que entrou no país junto com o pacote da modernidade e do progresso indispensável na visão do presidente que abriu a porta da frente da casa brasileira para eletrodomésticos como enceradeira, batedeira, máquina de lavar rou-pas e outros artigos encantadores de mulheres em todo o mundo ocidental, as quais deveriam ser incentivadas a voltar aos afazeres domésticos após a segunda grande guerra, que precisou delas nas indústrias enquanto os homens iam para a frente de batalha.

Nesse ano também a estrada Belém-Brasília estava em plena construção, assim como a capital do Brasil e o Palácio do Planalto.

A indústria automobilística também entrou com o DKW e seus 50% de peças fabricadas no país, além da produção do fusca – brinquedinho de Hitler, e uma fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, São Paulo.

No campo das artes, Gianfrancesco Guarnieri estreava em São Paulo a peça Eles não usam black tie, e Jorge Amado lançava o livro Gabriela, Cravo e Canela.

1 Estudante de Licenciatura em Ciências Sociais (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis – PET/Conexões de Saberes desde outubro de 2011.

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Na educação, Paulo Freire defendia, no Congresso de Educação no Rio de Janeiro, a importância do vínculo com a realidade e o mun-do do trabalho na alfabetização de adultos.

Foi no mês de setembro desse ano cheio de acontecimentos que influenciaram o curso da história do Brasil e do mundo que eu nasci, o que não fez grande diferença na vida de ninguém, além da minha mãe, que imagino ter passado por muitos problemas ao se ver em 1958, sozinha em São Paulo, com uma filha nos braços. Foi assim que ela resolveu me entregar, ainda bebê, a um casal para ser criada como filha, o que Pai Bilú e Mãe Landa fizeram de forma exemplar. Eu tinha família, com irmãos, tios e tias, primos, e uma infância. Minha mãe biológica casou-se quando eu tinha 3 anos e teve outro filho quando eu tinha 5 anos, mas, somente quando eu fiz 7 anos, me preparava para ingressar numa escola perto de casa, me via entrando e ocupando um lugar na sala de aula, ouvindo a professora, que por sinal era uma de minhas duas irmãs adotivas (Zinha), bravas como onças, amorosas como gatas – eu ainda as amo, é que ela apareceu feito castigo por desobediência e me levou da casa dos pais adoti-vos, que me criaram dentro de sua família até ali com muito amor, os quais guardo comigo junto com as lembranças felizes de minha primeira infância, para dentro da casa dos sogros dela, que não me conheciam e não faziam o menor esforço para isso. Foi doloroso e traumatizante para mim e minha família adotiva, que, por fim, enten-deram que nada havia a ser feito e se afastaram para que eu sofresse menos. Quem dera...

O ano era 1966. O governo do Brasil estava nas mãos de Castelo Branco. Em São Paulo – Capital, no bairro Freguesia do Ó, funcionava há três anos uma escola estadual de nome C.E.N.E. Professor Jácomo Stávale, que já tinha suas vagas disputadas, pois oferecia educação da primeira série do ensino básico ao terceiro do Ensino Médio, na época denominados curso primário, ginasial e secundário, este último dividido em normal e científico. No primeiro dia de inscrição para va-gas da primeira série, a fila dobrava quarteirão, e o meu agora Pai lá estava dormindo na fila. Foi o primeiro que saiu com papéis na mão, encaminhamento para vacinação e chapa dos pulmões, lista de docu-

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mentos e pedido de fotografia 3x4, endereço para compra do unifor-me e distintivo da escola, loja para comprar os sapatos encomenda-dos para compor o uniforme e a lista de material escolar. Agora vinha o mais difícil, como conseguir tudo isso, Pai e Mãe desempregados, morando na casa do Avô bêbado e metido a valente e da Avó ranzin-za e mesquinha. O pai contou seu problema à diretora da escola, que conseguiu doação de livros e uniforme de segunda mão, que a mãe ajustou, mais cadernos e lápis doado pelo “Kennedy”. Em troca, o Pai se dispôs a trabalhar uma temporada na biblioteca da escola. Depois foi para a secretaria da escola, participava da APM – Associação de Pais e Mestres, trabalhava nas festas juninas, feiras de ciências e em todas as atividades em que necessitasse do apoio dos pais. Fez isso até que eu e meu irmão, que ingressou na mesma escola cinco anos depois de mim, saíssemos dela, cada um de nós dez anos depois de ingressar.

A casa da Vó era bastante longe da escola e eu ia acompanhada de um amiguinho de classe, chamado Wanderley, durante todo o primeiro ano. Ele era falante e de muita imaginação, mas, no final do 1º ano, se mudou com a família para outra cidade e nunca mais tive notícias dele.

Foi o Pai quem me alfabetizou. Ele era assinante do Círculo e do Clube do Livro. Tinha uma estante com porta à chave, abarrotada de livros, que se abria todos os dias do meu 1º ano e de lá um livro por vez chegava às minhas mãos para que eu lesse em voz alta para ele enquanto costurava, montando calças femininas para uma oficina do Bom Retiro – foi o trabalho que ele conseguiu enquanto não surgia algo melhor.

Aprendi a ler, passei com Dez em leitura! O Pai corrigia minha lição de casa e assinava as advertências, comparecia às reuniões, me ensinou a encapar os cadernos e lavar as meias do uniforme. No se-gundo ano, me ajudou a decorar a tabuada. No terceiro, com as con-tas de dividir na matemática moderna e o sistema de quadradinhos. E, no quarto ano, com a composição de textos. A Mãe trabalhava como enfermeira no hospital Sorocabana e só tinha uma folga por semana. Então, meu irmão e eu éramos cuidados pelo pai. Mesmo

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assim, a Mãe ainda conseguia me ajudar com os trabalhos de artes, me auxiliando nos bordados e em outros trabalhos.

Agora, não mais na casa dos Avós, morávamos de aluguel num porão mais próximo da escola. Na mesma rua, tinha uma oficina de carros onde alguém, em algum rádio potente o bastante para que eu acompanhasse a programação pendurada no portão de casa, era ouvinte assíduo de um programa musical que só tocava chorinho. Ao lado dessa oficina, esquina com a avenida principal do bairro, tinha um posto de gasolina onde trabalhava como gerente o pai de uma colega de turma que um dia me socorreu após ser atropelada por um desses DKW, que eram todos cinza ou preto, “o meu” cinza e táxi. Não sei quem levou susto maior, o motorista, os passageiros, eu, o gerente do posto – pai da colega de turma, ou minha mãe. Tudo porque voltei correndo para buscar o tênis ou não poderia brincar no playground novinho em folha que seria inaugurado nesse dia. Enfim, nada grave consegui. Naquele e em muitos outros dias, subi quase aos céus no embalo do balanço que fazia um ruído característico do ranger de ferros que se tornou a chave do meu baú do tempo, por-que hoje, quando passo perto de uma praça e ouço o mesmo som, que é quase música aos meus ouvidos, retorno à escola que nunca saiu de mim.

Que sorte a minha! Não tem mais exame de admissão! Bem quando passei para o 4º ano, em 1969, foi extinto: tinha que pagar curso particular e tirar diploma de curso de admissão para entrar para o ginasial, e o orçamento em casa não daria para isso. A partir daí, o curso primário de quatro anos foi agregado ao ginasial de mais quatro anos e passou, então, a ser Ensino Fundamental de oito anos divididos em oito séries. E lá fui eu para a 5ª série.

A escola era a mesma, mas nada mais era, nem nunca mais seria o mesmo. Os alunos do ginásio não podiam ir para o pátio do primário, muito menos entrar no playground, que, à época, ainda era “parqui-nho”, e Adeus, balanço! Em compensação, tínhamos aula de Educa-ção Física três vezes por semana, três quadras abertas e dois estádios cobertos, muitas bolas e alguns jogos de uniforme (aqueles de amarrar dos lados para diferenciar os times), pista de 50m para salto e velocida-

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de, alguns aparelhos de ginástica olímpica, aulas de vôlei, basquete e queimada, futebol só para os meninos, tudo isso acompanhado por um casal de professores apaixonados pelo que faziam: Professor Juvenal e Professora Rudil, que viviam para a escola e seus alunos e promoviam campeonatos internos e externos durante todo o ano, inclusive nas fé-rias. Tínhamos aula normal aos sábados e aos domingos, pois a escola ficava aberta para uso das quadras. A diretora acreditava que a escola deveria ser o verdadeiro lar dos estudantes, praticamente morávamos na escola. Eu não me sobressaía em nenhum esporte e nunca cheguei a disputar um campeonato. Também nunca fui bonita o bastante para ser a garota JS, nem mesmo a miss da turma. O pai dizia, acho que para me consolar, que tudo isso era temporário e que eles teriam sem-pre que disputar com alguém para conseguir chegar ao primeiro lugar ou se manter lá, mas que o conhecimento adquirido ninguém poderia me tirar e nisso eu poderia ser muito boa se me dedicasse. Eu acreditei nas palavras dele e acredito até hoje.

As meninas tinham artes domésticas, que incluíam culinária, bor-dado, tricô, crochê, costura e puericultura, e os meninos, oficina de marcenaria. Juntos tínhamos horticultura. Aliás, foi em 66, quando ingressei na escola, que as turmas passaram a ser mistas, mas só quando já estava na sétima série é que meninos e meninas se mistura-vam na sala, até ali era meninas para um lado e meninos para outro: as aulas de educação eram mistas, mas os jogos não.

Até a 6ª série, a turma era composta dos mesmos alunos com os quais ingressei na 1ª série. Sabíamos os nomes uns dos outros por conta da longa convivência, porque a primeira coisa que precisáva-mos decorar era o número de chamada pelo qual éramos identifica-dos para tudo.

Sei que foi até a 6ª série por causa de um acontecimento que, com certeza, forjou alguns de meus valores. Era final de ano, época de exames. Alunos do diurno não podiam fumar nas dependências da escola. A ordem era para que, se alguém visse alguém fumando no banheiro, entregasse para a diretora. E foi o que fiz: entreguei cinco meninas da 7ª série. Elas foram suspensas, perderam provas e reprovaram.

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Início do ano letivo seguinte, eu, na 7ª série, estranho... não era a minha turma de sempre, não reconheci, na lista de chamada afixada na parede, nenhum dos nomes daqueles que conhecia desde que aprendemos a tabuada com a profe Lila.

Pior não podia ser! Fui trocada de turma e colocada na mesma em que estavam as cinco meninas fumantes reprovadas graças... a mim!!!

Gelo. Esse era o nome dado ao total isolamento de alguém. Nin-guém da turma, por motivo algum, falava comigo. Os professores faziam que não notavam, nem mesmo o fato de eu fazer os trabalhos em grupo sozinha. Isso durou meses. No início, tentei fazer de conta que não me importava. Depois, chorava em casa escondido. Tentei convencer meu pai a me trocar de escola. Até que, um dia, já não suportando mais ser invisível a todos na sala – eu queria muito ser amiga deles, poder conversar, fazer parte da turma –, entrei em de-sespero e chorei muito. Fui mandada para a diretoria.

A diretora, Dª Ondina, que me conhecia muito bem por conta das muitas advertências por indisciplina durante tantos anos em que repetia a mesma ladainha: “Se não fosse pelos pais que têm, você e seu irmão já não estariam aqui”, não me olhou por cima das lentes dos óculos com aquela cara de repreensão, nem me deixou parada feito dois de paus sem dizer nada enquanto escrevia a advertência na carteirinha de presença para trazer assinada pelo pai no dia seguinte; pelo contrário, me convidou para sentar na cadeira de frente para ela, tendo entre nós uma enorme mesa onde podia me espelhar, repleta de papéis, miniaturas de bandeiras, globos, e tantas outras coisas. Largou a caneta, tirou os óculos e me olhou muito séria. Quis saber o que estava acontecendo, ou melhor, como eu estava sentin-do a consequência do que fiz. Na verdade, até ali me sentia muito in-justiçada e, entre lágrimas, implorei para ser trocada de turma, o que ela naturalmente negou. Explodi, botei para fora tudo o que sentia, disse que fiz o que era mandado fazer e agora estava sendo tratada como se eu fosse culpada pela desobediência das meninas.

Ela esperou que eu me acalmasse e disse que as meninas foram duramente castigadas com a reprovação e com as consequências que

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disso resultaram, mas que o que elas fizeram era menos grave do que o que eu fiz e não poderia passar em branco. Disse que estávamos vivendo tempos difíceis e que cumpri à risca o determinado, mas que minha atitu-de em nada me acrescentou, mas prejudicou muito as meninas. Afirmou ainda que havia me colocado na mesma turma delas e que ali eu perma-neceria enquanto estudasse naquela escola, que esperava sinceramente não estar me fazendo senão um bem para ser levado para a vida.

Do fato em si, as coisas se resolveram com o tempo: desculpei--me com todas e, a duras custas, me enturmei e consegui boas ami-zades para além do tempo escolar. Uma delas veio a ser madrinha de batismo de minha filha caçula quinze anos depois.

Da lição de vida, muito tempo depois é que fui saber que viví-amos numa ditadura em que havia dois tipos de pessoas comuns, ou não militares: as que entregavam os opositores e as que eram entregues pelos “dedo-duros”. Dª Ondina me deu a oportunidade de escolher quem e o que ser. Acredito que, com outros estudantes, em outras tantas normas e regras que não podiam ser quebradas e que deduraram ou foram dedurados, ela pôde, da forma mais sutil que encontrou, evitar que caíssem no lodo fétido da ditadura sem se colocar em risco, sabendo que escolas e professores eram alvo de espiões infiltrados para que os estudantes não se organizassem contra o governo.

Final da 8ª série, nada de formatura, festa, diploma ou coisa pa-recida: acabou o ginasial e pronto.

O Pai foi avisando: “Até aqui eu custeei, mas, se quiser fazer o colegial, vai ter que trabalhar e pagar seus cadernos e livros”.

Sim, eu quis, mas primeiro eu teria que passar no vestibulinho. Tão absurdo e massacrante quanto o vestibular, era uma prova que provava se o estudante que havia concluído o ginasial através de mui-tas provas estava apto a cursar o colegial (que agora já não era mais dividido em normal e científico). Estudei muito naquelas férias e, en-fim, passei. Só para variar, foi o Pai que foi ver se eu estava na lista de aprovados e a forma de ele me dar a notícia foi, no mínimo, pecu-liar: voltou para casa com um jornal embaixo do braço, me chamou na mesa, abriu o jornal e mostrou a página de empregos, me deu

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dinheiro para pagar fotos e instruções de como fazer a carteira de trabalho dizendo: “Vou te emprestar dinheiro para tudo que precisar, incluindo a passagem de ônibus, até que você receba seu primeiro pagamento. Aí, então, você vai pagar o que eu tiver te emprestado, dar todos os meses metade do seu salário em casa e, com o que sobrar, vai se manter e aos seus estudos. Procure fazer com que seu dinheiro seja suficiente para os seus gastos e nunca peça a estranhos. Se precisar, te empresto. Pague no dia combinado, mesmo que, no dia seguinte, tenha que pedir novamente”.

No segundo ano do colegial, até hoje não sei ao certo o que aconteceu, o fato é que havia estudado muito para uma prova de ma-temática e, na hora, me deu branco total. Conclusão: não fiz a prova e desisti do curso. Adeus, Escola Prof. Jácomo Stávale!

Na época, era bastante comum os jovens optarem por cursos profissionalizantes ou técnicos em vez do colegial, tinha também o curso de madureza como supletivo ginasial. Curso superior ficava só nos planos e nos sonhos da maioria dos jovens, era destinado aos bem-nascidos, que podiam, desde a pré-escola, frequentar institui-ções particulares, até mesmo a Federal e a USP, porque o processo seletivo eliminava os que haviam estudado em escola pública.

O ônibus que utilizava para chegar ao trabalho passava em frente ao portão da Universidade Federal pela manhã, e eu olhava, através do vidro da janela, os estudantes entrando pelo portão. Essa visão durava segundos ou minutos de acordo com o trânsito. O vidro da janela do ônibus simbolizava a fronteira, a enorme distância entre os jovens que estavam dentro da infinidade de ônibus e os poucos que estavam dentro das faculdades, mas, independente da minha vonta-de, aquela cena ficou gravada na memória.

Os anos passaram, a vida seguiu em diante, vieram os filhos e, através deles, voltei a ter contato com a vida escolar. Tive o prazer de alfabetizar cada um deles. Auxiliei os três em suas dificuldades de aprendizagem. Passei para eles, com certeza, a herança que recebi de meu Pai, que é o hábito da leitura.

No ano de 2000, mudei com meus filhos para Erechim. Minha nora, casada com meu filho mais velho, queria terminar o Ensino Médio e me

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convidou para retomar os estudos para que fizesse companhia a ela na ida e volta das aulas. Matriculamos-nos no ensino regular do Colégio Érico Veríssimo. Fui acolhida por um menino, o mais jovem da turma do 1º ano, que se propôs a me auxiliar no que eu precisasse. Para minha surpresa, eu conseguia acompanhar muito bem o conteúdo das aulas. Sídney, esse é o nome do menino, e eu formávamos uma boa dupla nos trabalhos, mas, no final do ano, por problemas familiares, minha nora, que cursava o segundo ano, e eu nos afastamos da escola mais uma vez.

Mais dois anos longe da escola. Em 2003, decidi que terminaria o Ensino Médio fazendo supletivo e retornei ao Érico Veríssimo no segundo semestre do ano. Uma ambição muito modesta, apenas a intenção de terminar o Ensino Médio. No entanto, uma professora, Li-lian, que veio dar aula de português em nossa turma de EJA, fez uma pergunta muito simples no primeiro dia de aula. No momento das apresentações, ela perguntou “Quem daqui quer fazer faculdade?”

Sem pensar, ergui o braço; outros poucos também ergueram. Olhei à minha volta e vi que eram jovens na média dos vinte anos, e eu não me senti constrangida em almejar a faculdade; ao contrário, senti essa vontade muito forte, como se ela sempre estivesse comigo e tive a certeza de que eu queria ir para a faculdade.

Perspectivas, possibilidades financeiras, quase nenhuma. As chances de conseguir eram mínimas, menores ainda em relação às da minha juventude, mas eu queria, queria muito.

Foi nessa época que conheci Josiane, minha companheira de vida até hoje. Ela também optou pelo EJA e não tinha pretensões ao Ensino Superior. Comecei, então, a incentivá-la e passamos a encarar o supletivo noturno como quem faz curso pré-vestibular.

Terminamos o Ensino Médio. Pela primeira vez em minha vida, uma festa de formatura, com direito a diploma, janta, baile, fotogra-fias e a profe Lilian como nossa paraninfa.

Aqueles colegas que junto comigo ergueram a mão afirmando que queriam ir para a faculdade realmente ingressaram e já estão quase formados.

Josiane e eu prestamos Enem em 2007, ano em que nos forma-mos no EJA. O governo federal isentava do valor da inscrição todos

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os que se inscreviam para o Enem através da escola em que estuda-vam. O funcionário que assumiu na secretaria da escola a tarefa de inscrever os alunos interessados, por um descuido, deixou a minha ficha misturada a outros papéis e não fez minha inscrição. No último dia do prazo de inscrição, fui buscar com ele o número da minha ins-crição e aí se formou a confusão. Para encurtar a história, por volta das 22 horas, encontraram minha ficha de inscrição e a vice-diretora, que tomou a frente da situação, insistiu num site congestionado até conseguir me inscrever. No mês em que aconteceu a prova, a cam-panha eleitoral estava na reta final. Josiane e eu trabalhávamos para o candidato favorito a vereador e não tivemos tempo para estudar, nem mesmo para preencher o formulário socioeconômico que che-gou em casa com atraso: fizemos isso na manhã do domingo da prova. Saímos de casa atrasadas e, quase sem fôlego, chegamos ao portão da URI, onde aconteceria a prova. Nesse momento, passam de carro o marido e as filhas de uma colega de EJA, que perceberam que, além de atrasada, eu estava também equivocada com o local da prova. Josiane sim faria na URI, mas eu, como Simone, nossa amiga, faria no Barão. Graças a eles, que me deram carona, consegui entrar um minuto antes de fecharem os portões.

A prova exaustiva, realizada em um único dia. Lá fora, buzinas e bandeiras enfeitavam a Avenida Maurício Cardoso, era o último ban-deiraço antes da eleição.

Nossas notas foram medianas, e ela não se inscreveu em nenhu-ma instituição. Eu me inscrevi em cinco cursos, nenhum era o que realmente desejava, mas Sociologia não tinha em nenhuma institui-ção da região e eu não queria sair daqui. Fui chamada na URI primei-ramente. Felicidade! Levei todos os documentos na data estipulada para fazer matrícula com 100% de bolsa em línguas, mas não fechou turma. Depois, num curso a distância em História, que também não fechou turma e, finalmente, na FAE – Faculdade Anglicana de Ere-chim, no curso de Pedagogia, onde cursei até o 3º semestre com 100% de bolsa pelo Prouni.

Josiane prestou novamente o Enem no ano seguinte e conseguiu ingressar no curso de Ciências Sociais, o curso que ambas desejá-

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vamos, na Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS no ano em que esta iniciou, em 2010. Meu filho mais velho, que tinha concluído somente o Ensino Médio, ao me ver ingressando no Ensino Superior, decidiu tentar o Enem e está cursando designer com bolsa de 100% do Prouni na FAE.

Eu consegui transferência do curso de Pedagogia da FAE para o de Ciências Sociais na Universidade Federal e ingressei no segundo semestre da turma de 2010, a mesma da Josiane. Pronto, agora sim, estou onde quero estar.

Minha nora ainda não retornou aos estudos, mas não desistiu de querer, e isso é o mais importante.

Caminho longo, com muito ainda a percorrer. Na bagagem, lem-brança de pessoas com quem partilhei parte dessa caminhada. Sei que devo ir me livrando de peso desnecessário na mochila da vida, por isso vou deixando para trás as escolhas erradas, as tentativas frus-tradas, as decepções, porque preciso de espaço para a esperança, a perseverança e a coragem para seguir trilhando.

Sinto falta do meu pai.

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MEMÓRIAS DE UM SONHADOR

daniel gUTierrez1

Não sou nada.Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.À parte isso, tenho em mim todos

os sonhos do mundo...(Fernando Pessoa)

Minha trajetória de vida mostra um garoto que cresceu rodeado de sonhos, por isso dou início ao texto citando um pequeno trecho do poema de Fernando Pessoa, que pessoalmente admiro muito.

Falar de nossas vidas nunca é tão simples como parece. Nesse processo, me deparo com situações desconfortáveis que há muito estavam adormecidas em minhas memórias e que, particularmente, de certa forma, preferiria não relembrá-las, o que é inevitável, pois não posso simplesmente apagar as lembranças ruins de minha vida e me contentar apenas com as partes boas. Enfim, a vida é assim: momentos bons e momentos ruins. Gosto de pensar que os ruins me fizeram crescer. Assim, quero contar um pouco de minha trajetória de vida: a trajetória de um menino que, desde criança, sempre foi muito sonhador. Minha mãe costumava dizer que eu vivia em outro mundo, pois, quando criança, eu gostava de compartilhar com ela meus sonhos. E me vejo como sonhador até nos dias atuais. Hoje, com mais firmeza e com os pés no chão, aprendi com a vida que so-nhar é bom e que nossos sonhos nos fazem tentar alcançá-los, mas,

1 Estudante de Licenciatura em Ciências Sociais (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis – PET/Conexões de Saberes desde outubro de 2011.

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muitas vezes, a vida nos dá rasteiras e nos ensina algumas coisas pelo jeito mais difícil.

Meu nome é Daniel Gutierrez. Tenho 24 anos e estou cursando o quinto semestre do curso de Ciências Sociais – Licenciatura, da Universidade Federal da Fronteira Sul. Gostaria de dizer que, como vim de uma família de trabalhadores simples e de uma “classe social” não muito favorecida, sou o primeiro de toda minha família a cur-sar o Ensino Superior, pois meus pais, em suas trajetórias, optaram pelo trabalho ao invés de ir para faculdade, o que não os faz menos dignos de minha gratidão e admiração, pois, assim mesmo, eles me apoiaram e me incentivaram a sempre estudar.

Nasci na cidade de São Paulo e, ainda menino, por motivos de trabalho de minha família, meus pais e eu nos mudamos para uma cidade do interior de Minas Gerais. Lá passei boa parte de minha infância e pré-adolescência. Estudei, desde o Ensino Fundamental, na única escola estadual da cidade, a qual, por sua vez, era considerada modelo e uma das melhores escolas estaduais da região. Sempre fui considerado bom aluno e nunca tive maiores problemas com notas ou questões disciplinares.

Não me lembro ao certo o ano ou a série em que eu estava, pois faz muitos anos isso, mas sei que foi ainda na minha época de Ensino Fundamental, “sétima ou oitava série”, que aconteceu um fato que até hoje interfere em minha vida e que acredito que carregarei comi-go até o fim dela.

Nossa escola foi visitada por um oftalmologista do estado que veio com intenção de fazer exames de visão nos alunos e tudo mais. O fato é que nessa consulta eles aplicavam um colírio que dilata as pupilas e que é comum nessas consultas, mas esse colírio só deveria ser aplicado uma vez. Por um descuido deles e também por falta de conhecimento nosso, eles aplicaram mais de uma vez esse colírio em meus olhos. Cerca de dois dias após essa consulta, acordei com fortes dores no meu olho, visão embaçada e alguns outros sintomas. Minha família estava desesperada porque não sabia o que fazer; então, me levaram para o hospital local, e o médico não soube diagnosticar e me encaminhou para um oftalmologista em uma cidade próxima, o qual confirmou que o que eu tinha era glaucoma, uma doença que

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atinge a pressão intraocular e que não tem cura, podendo levar à cegueira se não for controlada com remédios. No entanto, ele tam-bém não era especialista e me encaminhou para São Paulo para um oftalmologista especialista em glaucoma. Lá, ele somente confirmou a hipótese depois de uma série de exames. Hoje, o glaucoma é uma grande pedra no meu caminho, na qual, muitas vezes, eu tropeço, pois existem dias em que essa doença me impede de ler por causa da sensibilidade à luz, mas nada que não possa ser superado.

Continuando minha história, um recorte que considero muito re-levante é a parte de minha vida que relembro minha época de Ensino Médio, quando realmente aconteceu a maior parte das mudanças que influenciaram na minha vida e na minha “educação”.

O meu primeiro ano de Ensino Médio foi o mais conturbado. Eu cresci numa família bem estruturada e feliz. De repente, me deparo com meu pai saindo de casa por motivos de trabalho e nos deixando lá sozinhos. Isso mexeu muito comigo, pois não me acostumava a ver meu pai apenas uma vez por mês.

Outra coisa que me afetou bastante nessa época foi a morte de meu amigo Jessé, que, para mim, era como um irmão. Crescemos jun-tos e estudamos juntos desde a primeira série do Fundamental até o primeiro ano do Ensino Médio, e, do nada, graças a uma imprudência de trânsito, ele morreu num acidente horrível de carro. Tudo isso junto foi o suficiente para que eu me afastasse dos estudos. Eu não tinha vontade de ir à escola, e isso fez com que eu reprovasse naquele ano.

No ano seguinte, minha família voltou para São Paulo. Voltamos a morar todos juntos e tive que refazer o primeiro ano do Ensino Médio. Essa época foi outro momento complicado na minha vida. Eu acabara de sair de uma cidade pequena do interior, onde tudo era calmo e as pessoas se cumprimentavam nas ruas e, na maioria das vezes, se conheciam, e, como eu era adolescente, gostava muito de estar na rua com meus amigos nas horas vagas, coisa que, em São Paulo, era impossível. Fomos morar num condomínio fechado e eu não tinha contato mais com ninguém: era da casa para escola e aju-dava meu pai no trabalho nas horas vagas. Demorei quase um ano para fazer um amigo; eu me sentia como se estivesse preso.

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Em relação aos estudos, eu fui para a melhor escola estadual do meu bairro, mas lá a realidade era outra. Encontrei uma realidade que não estava acostumado. Minha escola não tinha estrutura ca-paz de garantir uma educação de qualidade aos alunos. Não havia ordem, respeito, educação no ambiente escolar: ver alunos andando de skate e jogando futebol nos corredores em horário de aula era normal, raramente os professores ensinavam realmente alguma coisa de interesse tanto da parte deles quanto dos alunos. Enfim, concluí meu primeiro ano nessa escola. Como disse antes, nessa mesma épo-ca, por motivos financeiros, comecei a trabalhar com meu pai; assim, conciliava trabalho e estudo.

Desde pequeno, sempre quis ser um veterinário, eu amava ani-mais e sonhava em ter uma profissão que cuidasse deles, mas eu também tinha consciência de minhas condições financeiras. Eu, aos meus 16 anos, fazia parte de uma parcela da população de jovens que não possui expectativa alguma de concluir o Ensino Médio e de ingressar na faculdade, principalmente por motivos financeiros, como no meu caso, ou por talvez pensar que a universidade não faz parte de seu mundo, que ele não se adaptaria, ou que não é capaz. Existem muitos pontos a se discutir sobre isso.

Mais um ano e minha família novamente se mudou. Dessa vez, para Erechim, no Rio Grande do Sul, onde moro até hoje. No primeiro momento, eu não recebi bem a notícia da mudança. Eu estava co-meçando, depois de um ano, a me adaptar a São Paulo, e meus pais resolvem se mudar novamente. Milhões de coisas passaram na minha cabeça; Achei que, na cidade nova, eu ficaria mais um ano sem co-nhecer ninguém e teria os mesmos problemas de antes, mas, no fim das contas, eu percebi que estava sendo precipitado.

A cidade nova, apesar de não ser tão pequena, ainda mantinha alguns costumes derivados de cidades de interior, e acho que isso me ajudou, pois eu sempre morei numa cidade onde você normal-mente conhece seu vizinho (coisa que não acontecia em São Paulo). Na cidade nova, me matriculei numa escola estadual que ficava em meu bairro. Nela, o ensino era levado um pouco mais a sério do que em minha antiga escola de São Paulo. Não existia aquela bagunça e desordem, mas a realidade da falta de estrutura não era muito dife-

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rente. Da mesma forma como em São Paulo, continuei a trabalhar e estudar: estudava à noite e trabalhava durante o dia, pois minha família não tinha condições de me dar tudo o que eu queria e ainda sustentar a casa. Cursei o segundo e o terceiro anos do Ensino Médio nessa escola e me formei no ano de 2005.

Logo depois de formado, passei por momentos de constantes inde-cisões e questionamentos pessoais, pois ali estava eu formado e nem se-quer sabia o que seria de minha vida dali em diante. Uma coisa eu tinha certeza: o curso de veterinária era impossível para mim. No entanto, eu tinha consciência da importância dos estudos e do peso que um curso superior tem hoje em dia. Sendo assim, por alguns meses, eu pesquisei, analisei, quebrei a cabeça para tentar encontrar um modo de ingressar na faculdade e num curso que realmente eu me interessasse, e, depois de um tempo, eu já estava quase desmotivado e tentando me adaptar à ideia de que a faculdade não era para mim, de que meu destino seria trabalhar e, quem sabe de alguma maneira, aprender uma profissão digna com esse trabalho, tudo isso longe de uma faculdade.

Seis meses após ter me formado no Ensino Médio, foi criada, em uma cidade vizinha à minha, uma faculdade particular, que, no começo, veio com uma proposta diferente das demais e que possuía mensalidades mais acessíveis à população. Quando fiquei sabendo da notícia, fiquei animado e quis saber quais eram os cursos que essa faculdade possuía, eram eles: Pedagogia, Ciências Contábeis, Admi-nistração de empresas e Turismo. Dentre estes cursos, o único que me chamou a atenção foi o curso de Turismo, mesmo sem eu ter a mínima ideia do que se tratava.

Minha curiosidade foi mais além: fui até a cidade e me encontrei com a coordenadora do curso. Ela me explicou tudo sobre a facul-dade e sobre o curso em si, mas, quando voltei para Erechim, voltei também à realidade. A mensalidade era exatamente o valor de meu salário de auxiliar de depósito daquela época, cerca de R$ 400,00. Então, como eu poderia estudar e ter dinheiro para minhas necessida-des pessoais? Meus pais, vendo meu interesse e sabendo da impor-tância da faculdade, me fizeram uma proposta: que eu trabalhasse para pagar a faculdade, pois casa, comida e roupa (o básico) não iria me faltar. Pensei e repensei dez vezes no assunto, pois não queria

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também ter que depender de meus pais financeiramente. No fim das contas, acabei aceitando: uma aventura e tanto trabalhar o mês todo e deixar TUDO na faculdade. Nesse período, mudei de emprego muitas vezes. Acho que até perdi as contas de em quantas empresas trabalhei na época. Na minha situação, qualquer valor a mais que eu ganhasse já era significativo e, assim, eu consegui levar meu curso até o sétimo semestre. Três anos e meio trabalhando em empregos, mui-tas vezes, insalubres, mal remunerados, somente para poder ter um diploma de Ensino Superior. Porém, o que eu mais temia aconteceu: justo no início do sétimo semestre, a empresa onde eu trabalhava fechou, fiquei desempregado e atrasei o pagamento da maioria das parcelas do semestre. Concluí o semestre, mas não pude me rema-tricular no próximo por causa da dívida pendente com a instituição.

No semestre seguinte, como não consegui voltar para faculda-de, tive que arrumar outro emprego para pagar minha dívida e para conseguir me rematricular. Eu consegui quitar a dívida, mas fiquei um semestre sem estudar, só trabalhando.

No ano de 2010 é que eu voltaria para faculdade e conseguiria dar continuidade aos estudos. Voltei à instituição e me rematriculei, mas vi também que o valor da mensalidade já não era mais o mesmo. Fiquei com medo de não conseguir pagar novamente, mas, mesmo assim, fui em frente.

Nessa mesma época, eu aguardava os resultados da UFFS, que era uma universidade federal que estava prestes a abrir na cidade. Como eu tinha feito o ENEM no ano anterior, me inscrevi para os cursos de Ciências Sociais e História, ambos à noite, pois eu sabia que não po-deria deixar de trabalhar para somente estudar. Eu não tinha muitas esperanças de conseguir uma vaga, pois como que um jovem que sem-pre estudou em escola pública e mal estudou para o ENEM conseguiria nota suficiente para ingressar numa federal? Inacreditavelmente, eu consegui entrar, fui chamado na segunda chamada, uma surpresa para mim e para minha família foi o momento em que vi aquela carta que veio pelo correio dizendo que eu tinha sido selecionado para o curso de Ciências Sociais que, à época, chamava-se Sociologia.

Fiquei, então, numa situação complicada: não sabia se continuava no curso de Turismo, pois já estava no final e naquele semestre eu já

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tinha até pago duas mensalidades, ou se eu trancava e me mudava para o curso de Ciências Sociais da federal, no qual eu tinha sido selecionado.

Alguns desgostos com o curso e a possibilidade de poder reto-má-lo no futuro me fez optar por trancá-lo e me matricular no curso de Ciências Sociais da UFFS. No início, eu não tinha muita noção de que se tratava o curso, a área de atuação e tudo mais, mas eu sabia que seria um Sociólogo se me formasse, e eu sempre via e admirava quando algum Sociólogo aparecia em alguma entrevista na televisão e pensava: “Que legal a profissão dessa pessoa!” Enfim, resolvi enca-rar mais esse desafio e fui fazer Ciências Sociais.

Mais uma vez minha família se mudou nessa época, mas, felizmen-te, eu estava num emprego estável e, como não pagaria mais mensa-lidades para estudar, agora poderia me sustentar morando sozinho, e foi o que fiz. Trabalhava para me sustentar e, à noite, ia para a univer-sidade, movido por novos sonhos e pensamentos que me davam força para encarar a maratona de mais cinco anos do novo curso.

Uma das coisas que jamais me esquecerei é a lembrança do pri-meiro dia de aula, quando o professor perguntou o motivo que levou cada um de nós a escolhermos esse curso. Eu estava perdido, não sabia o que dizer. Na hora, a única coisa que me veio à cabeça foi “adquirir novos conhecimentos”. Eu olhava para os rostos de meus colegas e via que eu não era o único perdido ali, mas, assim que todos falaram suas intenções e expectativas, o professor explicou o que realmente era o curso e foi aí que caiu a ficha da maioria de nós. Então, comecei a pensar de uma forma diferente o meu futuro e traçar as minhas metas.

Como todo bom sonhador, depois de dois semestres no curso, eu já tinha planos pensados pelo menos para os próximos dez anos de minha vida. Mesmo tendo começado o curso de Ciências Sociais sem ter muita noção do que se tratava, depois de dois semestres, eu já estava fascinado pelo curso. Já fazia planos de me formar, fazer mestrado e doutorado, já me imaginava sendo um professor e como seria tal experiência. Depois de algumas conversas com professores, fiquei sabendo que, para o ingresso no mestrado, uma das coisas que se é avaliado é o Currículo Lattes dos alunos, o que eu não fa-zia ideia do que era e, no meu caso, o meu estava em branco. Para mudar isso, eu precisaria me envolver com os trabalhos de pesquisa

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e extensão da universidade. Mas como que eu iria me envolver com esses projetos sendo que eu trabalhava o dia todo e mal tinha tempo para estudar para provas e trabalhos?

Foi nessa época (início do terceiro semestre) que resolvi encarar meu maior desafio para que lá na frente eu consiga realizar meu so-nho do mestrado. Sabendo que eu estava morando sozinho e depen-dia somente de mim mesmo para sobreviver, eu abandonei o trabalho e consegui uma bolsa de iniciação científica na área de Sociologia do Trabalho, onde fiquei por quase um ano estudando o mercado de tra-balho da minha região. O valor dessa bolsa era 1/3 do valor do meu antigo salário de quando eu trabalhava. Nesse período, passei por inúmeras dificuldades, pois o que ganhava mal dava para o aluguel. Tive que fazer “bicos” para ganhar algum dinheiro extra e, em alguns momentos, também obtive minimamente a ajuda de minha família.

No final do quarto semestre, fiquei sabendo que minha pesqui-sa não teria continuidade no semestre seguinte. Sabendo também que eu necessitava dessa bolsa para sobreviver, eu me inscrevi numa nova modalidade para o próximo semestre. Nessa mesma época, eu repensei várias vezes a possibilidade de não continuar nos projetos de pesquisa e voltar a trabalhar, pois passei um ano assim e foi um ano muito difícil para mim devido às muitas dificuldades financeiras.

Depois de alguns procedimentos de seleção, eu fui incluído num novo projeto da universidade: agora eu fazia parte do PET, modali-dade Conexões de Saberes, onde estou até esse exato momento em que escrevo esse memorial. Mesmo com todas as mesmas dificulda-des que ainda tenho, eu espero continuar no projeto, no mínimo, pelos próximos dois anos. E assim eu sigo lutando e correndo atrás de meus sonhos. Digo que não está sendo fácil. Na verdade, eu já sabia que seria assim quando resolvi abrir mão do trabalho para somente estudar. Nesse processo, acabei abrindo mão não somente do traba-lho, mas abri mão, ao mesmo tempo, de muitas outras coisas que eu tinha condições de fazer quando trabalhava. Não falo isso com arrependimento. Na vida tudo tem seu tempo e, hoje, na minha vida, é tempo de estudar e aprender. Acredito e tenho sonhos de que, no futuro, tudo isso será recompensado e não descansarei até alcançar meu principal sonho, que é concluir um doutorado.

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Joviana vedana da rosa1

Que vai ser quando crescer?Vivem perguntando em redor. Que é ser?

É ter um corpo, um jeito, um nome?Tenho os três. E sou?

Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?

Ou a gente só principia a ser quando cresce?É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?

Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas.Repito: SER, ser, ser. Er. R.

Que vou ser quando crescer?Sou obrigado a? Posso escolher?

Não dá pra entender. Não vou ser.Vou crescer assim mesmo.

Sem ser Esquecer.(Verbo Ser – Carlos Drummond de Andrade.

Quando eu era criança, perguntavam-me: O que você quer ser quando crescer? Que pergunta estranha! Conforme Drummond, “a gente só principia a ser quando cresce?” Quando somos crianças, nem fazemos ideia do que é crescer, quanto menos do que queremos ser quando crescer. Aliás, “sou obrigado a? Posso escolher?”. Será que ser é alguma atitude, escolha? Ou as escolhas e atitudes são de-

1 Estudante de Licenciatura em Geografia (UFFS/Erechim) e Bolsista do Práxis – PET/Cone-xões de Saberes desde outubro de 2011.

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finidas pelo que sou? Será que um nome e os anos de vida definem quem eu sou? O meu nome é Joviana Vedana da Rosa e tenho 26 anos de idade. Colocado desta forma, isso representa alguma coisa? Costumo dizer que somos importantes somente para nós mesmos, nossa família e nossos amigos. Somente para estas pessoas o nome Joviana Vedana da Rosa e 26 anos de idade têm significado.

Lembro-me que, quando era criança e me perguntavam o que eu queria ser quando crescer, estava sempre relacionado com algu-ma profissão. Então, ser é ter uma profissão? Trabalhar em alguma coisa? Ter uma carreira? Atualmente, “sou” acadêmica do curso de Geografia – Licenciatura, da Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Erechim, desde o segundo semestre de 2010, e bolsista do Grupo PET/Conexões de Saberes, desde outubro de 2011. Porém, isto ainda é apenas parte do que sou. Mas e o todo? São lembranças, experiências, crenças, genética, modo de criação? É tudo isto e mais um pouco? Ou é um pouco de tudo isto?

Na vida temos que fazer escolhas, seguir um caminho, que, ge-ralmente, é repleto de dúvidas e incertezas. Estudar e realizar um curso superior é um caminho, embora, algumas vezes, as opções sejam restritas, pois elas são moldadas por nossas condições sociais, principalmente econômicas. Apesar de meus pais não terem tido oportunidade de estudar por muito tempo – minha mãe havia estu-dado até o terceiro ano do ensino básico e meu pai concluiu o Ensino Fundamental –, eles propiciaram a condição de minha irmã realizar um curso técnico de enfermagem, e eu, um curso superior.

Nasci em 1985, no município de Erechim, e sempre estudei em escola pública. No Ensino Fundamental, estudei em uma escola próxi-ma à minha casa, bairro de periferia da cidade, e que atende crianças, em sua maioria, em condições sociais desfavoráveis. Como não fiz a pré-escola, o primeiro ano foi complicado. Lembro-me da dificuldade que tive em escrever a palavra igreja e que minha mãe chegava a passar a ferro o meu caderno de tanta “orelha de burro” que havia nele. Uma recordação da minha infância, do início da fase escolar, é que geralmente cantávamos ao iniciar a aula, e uma das atividades que eu mais gostava de participar era a “hora do conto”, em que as

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turmas de primeira a quarta série reuniam-se, uma vez por semana, para ouvir uma história infantil.

Esta fase foi marcada pela separação dos meus pais, que, como na maioria das separações, não foi muito tranquila. Quem me auxilia-

va e orientava nas tarefas escolares era minha irmã, já que ela estava fazendo o curso técnico e minha mãe não tinha muita instrução. No início, eu estudava por obrigação, uma vez que criança quer brincar. No entanto, minha mãe era bem

rígida. Recordo-me que a primeira vez que fui à biblioteca pública foi com meu pai e minha irmã, que sempre me levava lá para fazer pes-quisas para trabalhos da escola. Foi ela também quem me apresentou os livros dos grandes autores da literatura brasileira, primeiro Montei-ro Lobato e depois Machado de Assis, Érico Veríssimo, entre outros. Ela me fazia ler os livros e depois contar a história. Desta forma, fui criando gosto por estudar, ler e escrever.

Nesta época, não tinha muitos amigos. A única amizade que eu tinha na escola era a da minha prima: sempre fazíamos trabalhos juntas e ela me ajudava muito, pois tinha mais facilidade em aprender os conteúdos. Na turma havia vários colegas repetentes, além de que alguns eram problemáticos. Acredito que, se não fosse por influência da minha família, que me cobrava muito e eram grandes incentivado-res, não teria concluído o Ensino Fundamental ou não teria interesse em continuar os estudos, como muitos de meus colegas, que, confor-me os anos iam passando, desistiam de estudar.

No último ano do Ensino Fundamental, em 1999, entrei para um programa sócio-educativo, proporcionado pela Prefeitura Municipal, no qual fazíamos oficinas de teatro, bordado, pintura e colagem, etc. Aos 14 anos, comecei a trabalhar, pelo mesmo programa, como es-tagiária, por meio turno, no Fórum de Erechim, onde permaneci até os 17 anos. Nesta fase, eu também estava cursando o Ensino Médio, porém em outra escola. Todas estas mudanças, como fazer outras ati-vidades, trocar de escola e começar a trabalhar, trouxeram-me mais

De que são feitos os dias?- De pequenos desejos,Vagarosas saudades,Silenciosas lembranças.

(Cecília Meireles)

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independência, confiança e consciência de que eu poderia ter um bom futuro, o qual eu não via distante dos estudos.

Nunca tive uma aspiração do que eu “queria ser quando cres-cer” com relação à profissão, mas uma das frases mais corriqueiras que ouvia (e acho que todo mun-do já ouviu) é a de que, para ser alguém na vida, eu precisava estu-dar. Desta forma, a reflexão sobre o que eu iria fazer após o Ensino Médio surgiu logo no primeiro ano e realizar um curso superior tornou-se o meu maior desejo. Ini-cialmente, minha grande expectativa era a de poder fazer um curso que, pelo senso comum, tem notoriedade social e altas perspectivas de ascensão financeira, como Medicina, Engenharia ou Direito. Po-rém, não tinha noção do que implicaria fazer um curso superior.

Ao final do Ensino Médio, em 2002, as preocupações com o ves-tibular e com qual curso superior optar ficaram mais latentes. Uma vez que não teria condições de pagar uma universidade particular para os cursos que inicialmente eu tinha sonhado, pensei em tentar entrar em uma instituição pública, mas as únicas informações que eu tinha se relacionavam à concorrência elevada no vestibular e ao fato de que precisaria ir morar em uma cidade distante. Então, resolvi fazer um curso pré-vestibular; contudo, observava que vários colegas que possuíam ótimas condições financeiras e sempre estudaram em colégios particulares estavam prestando vestibular há diversos anos e em diversas instituições públicas.

Apesar de me dedicar integralmente e durante todo o ano de 2003 aos estudos, não estava disposta a arriscar prestar vestibular para um curso que, provavelmente, não conseguiria passar, pois me interessava em estudar somente as disciplinas de Biologia, Português e Geografia, além de que isto implicaria em gastos com inscrições e viagens. Aliado a isso, minha mãe começou a adoecer devido às com-

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?Ser o que penso? Mas penso em tanta coisa!E há tantos que pensam em ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Aliás, não dá pra entender. Não vou ser.

(Tabacaria – Fernando Pessoa)

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plicações da diabete e necessitava de cuidados. Sendo assim, passei a refletir sobre as possibilidades em estudar em uma universidade particular para um curso que tivesse condições de pagar, ou, em úl-tima hipótese, fazer um curso técnico, já que estes são mais baratos.

Através de uma apresentação no curso pré-vestibular, fiquei sa-bendo da existência da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), instituição criada em 2001, que havia uma unidade em Ere-chim e que estava com inscrições abertas para o Curso Superior em Tecnologia em Meio Ambiente, atualmente denominado de Gestão Ambiental, com duração de três anos. Logo, vi que esta era a opor-tunidade de cursar uma universidade pública e localizada na cida-de. Mesmo assim, me inscrevi em uma universidade particular, para o curso de Licenciatura em Biologia, para ter mais uma alternativa. Para minha felicidade, em 2004, fui aprovada nas duas universidades e optei, é claro, pela Universidade Estadual.

Nesta época, o estado de saúde de minha mãe era bem delicado, o que culminou no seu falecimento na metade do ano. Com estes acontecimentos, aquele ano foi realmente uma fase de mudanças.

Dizem que as perdas fazem par-te da vida, porém, quando isso acontece em nossas vidas, não é tão simples aceitar desta maneira. As dificuldades que a família en-frentou foram além de ver minha mãe totalmente dependente de

nós e sofrendo com a doença, mas também a de aprender a lidar com a perda e a sensação de estar sozinha após o seu falecimento. Entretanto, estes fatos não influenciaram no início da minha vida aca-dêmica; aliás, procurei seguir o que a família sempre me incentivou e oportunizou: estudar.

A trajetória acadêmica na UERGS, período que vai de 2004 a 2006, foi acompanhada por muitas inseguranças com relação ao desenvolvimento da universidade e do curso. Enfrentamos diversos problemas, como a própria infraestrutura da universidade, com salas de aula emprestadas, falta de laboratório, falta de investimentos e

A única verdade é que vivo.Sinceramente, eu vivo.Quem sou eu?Bem, isso já é demais...

(Clarice Lispector)

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incentivos à pesquisa e extensão e, por ser um curso novo, a inse-gurança do seu reconhecimento. No entanto, o grande mérito da universidade são seus professores.

Considero que a graduação, assim como tudo o que escolhemos fazer na vida, é um compromisso com o que somos. Por isso, decla-mar no dia de minha formatura o juramento do curso de prometer, no exercício de minha profissão e consciente da responsabilidade so-cial e ambiental que me é confiada, atuar com dignidade na prática de minha profissão, agindo em prol da preservação e uso racional do meio ambiente foi realizar um sonho. Embora sem nunca ter atuado profissionalmente nesta área, este juramento tornou-se parte do que sou, não a partir daquele dia, mas sim porque ele é decorrente das experiências, convivências e práticas, enfim, do que aprendi durante os anos de graduação e até agora continuo aprendendo.

Após concluir a graduação, depois de tantas dificuldades, surgiu a necessidade de retribuir à família, financeiramente, e à sociedade, com o meu trabalho, o que me fora investido; entretanto, surge tam-bém a aflição de enfrentar o mercado de trabalho. Sentia que, para eu exercer uma profissão, aquela formação não me era suficiente e não era exatamente o que eu queria. Analisando agora, percebo uma série de fatores para tais pensamentos, como a falta de oportunida-des, inexperiência e a visão sobre os trabalhos existentes: de descaso com o meio ambiente ou de desenvolvimento sustentável mascarado. Então, se era para eu trabalhar desta forma, preferia trabalhar em qualquer outra coisa e seguir com a intenção de continuar estudan-do, ou seja, fazer outra graduação.

Nunca fui influenciada em minhas decisões, mas a grande questão para cursar uma graduação sempre foi como, e não o que cursar. As opções ficaram mais restritas, o único curso superior gratuito da única universidade pública da região eu já havia cursado, não conseguia arru-mar um trabalho estável e que ganhasse o suficiente para pagar uma universidade particular e não podia mais concorrer às bolsas forneci-das pelo governo, pois já tinha um diploma. Elaborei duas alternativas: uma, trabalhar, juntar dinheiro, prestar vestibular em uma universidade federal e mudar de cidade e, outra, conseguir emprego de atendente, secretária ou qualquer outra coisa em uma universidade particular da

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região e, com o desconto para fun-cionários, cursar outra graduação; porém, as duas alternativas não tiveram êxito. A primeira porque prestei vestibular, em 2008, para uma instituição pública e não pas-sei, além de que me mudar para uma cidade desconhecida, sozinha e com pouco dinheiro é complica-do. A segunda porque nenhuma universidade particular me cha-mou para uma entrevista sequer.

No ano de 2009 e início de 2010, deixei um pouco de lado a ideia de fazer outro curso superior. Como estava desempregada, pas-sei a me dedicar a alguns concur-sos públicos, tentativas também frustradas. No segundo semestre de 2010, ao assistir a um telejornal, fiquei sabendo sobre o Campus Erechim da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), aquela onde, algumas vezes, participei de reuni-ões e reivindicações de movimentos sociais para a sua criação e que agora estava com inscrições abertas para retorno de aluno graduado. É lógico que fui investigar. Para a escolha do curso, ponderei que seria difícil de conseguir um trabalho se optasse por um curso diurno ofe-recido pela UFFS: Engenharia Ambiental, Agronomia ou Arquitetura e Urbanismo, por se tratarem de período integral, além de que não eram muito de meu interesse. Em vista disso, a escolha ficou entre os cursos noturnos de licenciatura: Geografia, Filosofia, Ciências Sociais, História e Pedagogia. Como um dos critérios de seleção era a identi-ficação curricular entre a graduação anteriormente cursada e o curso a ser escolhido e por já ter mais familiaridade, optei pela Geografia.

Voltar a fazer um curso superior significou não apenas a perspecti-va de novas oportunidades, mas também minha reinserção no convívio social e eu poder me ver em uma profissão, a de educadora, que se alia à minha vontade de fazer deste um mundo um pouco melhor, uma vez

[...] o fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem se adapta, mas a de quem nele se insere. É a po-sição de quem luta para não ser objeto, mas sujeito da história [...]

(Pedagogia da Autonomia – Paulo Freire)

Enfim,[...] para ser tem que estar sendo.

(Pedagogia do Oprimido – Paulo Freire)

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que, conforme Paulo Freire, “se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode”. Logo ao entrar na universidade, meu interesse foi em participar de atividades de extensão e pesquisa, pois sabia da falta que faz este tipo de experiência na formação acadê-mica, porém ainda havia a necessidade de trabalhar. Tentei conciliar os estudos com o trabalho, mas o meu grande interesse era em estudar, e não conseguia me dedicar o quanto eu queria. Mesmo sabendo da difi-culdade financeira que iria enfrentar, optei por ficar apenas estudando e tentar obter uma bolsa auxílio em algum projeto desenvolvido pela universidade. Para minha surpresa, logo em seguida abriram inscrições para o PET/ Conexões de Saberes e fui selecionada.

Tudo na vida é determinado por nossas opções e tudo tem uma razão para acontecer. Estudar, concluir uma graduação e iniciar outra foram minhas opções, moldadas pelas condições que me eram pos-síveis e que eu insisti para consegui-las, e agora fazem parte do que estou sendo. Por isso, tenho o orgulho de fazer parte da luta pela construção da UFFS, pois sei da importância dela para a região e para alunos que só podem estudar em escola pública. Tenho orgulho de trabalhar com o Grupo PET/Co-nexões de Saberes, que luta pelo acesso e permanência dos alunos em uma universidade, pública, gratuita e de qualidade.

Tenho certeza de que um aspecto fundamental na minha trajetória até a universidade e de ir à busca do que sempre quis, estudar, foi o incentivo de meus familiares, principalmente nas ho-ras difíceis. Nesta trajetória só sei que cresci e que sou o que vivo, o que vivi e o que aprendi, muito mais do que faço e muito menos aquela que procura exercer uma profissão para ser alguém.

[...] As lembranças passadas ficam, tudo que vivemos era pra ser vivido, o destino é como um livro do qual nós somos os autores, ele não vem pronto. Antes de nascermos ele está em branco, ao nascermos in-troduzimos as primeiras passagens, um começo. Com o tempo, através das escolhas, vamos escrevendo-o página por página, rabiscadas, ras-gadas ou marcadas, onde encon-tramos obstáculos onde indicarão a melhor hora para recomeçar. Nos últimos dias de vida, concluiremos e no final deixamos nossas histórias no coração daqueles que sempre farão parte de nossa história, onde quer que estejam [...]

(Recomeçar – Carlos Drummond de Andrade)

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UMA TRABALHADORA TEIMOSA E ESTUDANTE OU SERÁ UMA ESTUDANTE TRABALHADORA E TEIMOSA?

paUla de MarqUes1

[...] E aprendi que se depende semprede tanta muita diferente gente.Toda pessoa sempre é a marca

das lições diárias de outras tantas pessoas.(Gonzaguinha)

Este memorial proporcionou uma (des)acomodação, pois, para que este se concretizasse, precisei realizar uma retrospectiva da mi-nha vida pessoal e escolar com foco em narrativas, entrevistas e revi-são fotográfica do ensino na minha família.

Eu faço parte de uma família que lutou, e continua lutando, pela educação de seus filhos. Meu avô, Oracildes, não teve aces-so à escola quando estava em idade escolar. Ele teve os primeiros contatos com as escrita quando meu pai, Celio, entrou na primeira série e necessitava auxílio nas tarefas escolares. Somente alguns anos depois, o meu avô teve acesso à escola fazendo o “Artigo 99”, o que equivaleria ao EJA. Para que meu pai e seus irmãos frequen-tassem o colégio, eles cultivavam uma horta e, em dias alternados da semana, vendiam frutas, verduras, legumes e saladas para que pudessem pagar a mensalidade, visto que a escola era confessional católica - Cristo Rei.

1 Estudante de Licenciatura em Ciências Sociais (UFFS/Erechim) e Bolsista Voluntária do Práxis – PET/Conexões de Saberes desde outubro de 2011.

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UMA TRABALHADORA TEIMOSA E ESTUDANTE OU SERÁ UMA ESTUDANTE TRABALHADORA E TEIMOSA?

Quanto às minhas avós materna e paterna, estas tiveram acesso até o Quarto Livro, tempo em que eram usadas as lousas para escrever. Meu pai concluiu o “segundo grau” através do supletivo por volta dos 32 anos. Em torno dos 44 anos, ingressou no Ensino Superior. Cursou um ano o curso de Tecnólogo em Refrigeração, porém não foi possível prosseguir os estudos. Neste período, o meu irmão mais velho passou no vestibular para Direito, e o meu pai parou para que o meu irmão pudesse estudar. Meu irmão cursou três anos e teve que parar para trabalhar. No entanto, hoje ele também retornou à Universidade e está cursando o segundo ano de Engenharia Mecânica no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – Campus de Erechim.

Já a minha mãe, Terezinha, começou a frequentar a escola so-mente com oito anos de idade. Ela tinha que fugir de casa para ir à escola. Prosseguiu estudando graças ao auxílio e incentivo de seu tio, que era professor. No ano de 1984, aos 24 anos, terminou o magis-tério graças ao incentivo do Governo Federal. Aos 36 anos, ingressou no curso de Pedagogia em uma escola particular, sendo a única de seis irmãos que acabou o Ensino Médio e Superior.

Agora que já apresentei a trajetória escolar da minha família, vou falar da minha. Nasci em Marcelino Ramos, no dia 10 de janeiro de 1980, às 11 horas e 35 minutos, onde permaneci até meus 20 anos de idade. Desde os meus 40 dias de idade, já comecei frequentar a escola. Minha mãe era professora numa escola do interior, chamada Dom Pedro II, uma daquelas escolas de madeira chamadas de “Briso-leta”, criadas para acelerar o crescimento da educação no país. Para que ela pudesse trabalhar, era necessário que eu a acompanhasse, pois ela não tinha condições de pagar alguém para me cuidar, tam-pouco de me colocar em uma creche.

Trajetória escolar

O que desejo ilustrar com o quadro abaixo é toda minha traje-tória escolar, desde a pré-escola até o Ensino Superior, salientado o tempo de conclusão e o tempo de permanência em cada etapa do ensino escolar.

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UMA TRABALHADORA TEIMOSA E ESTUDANTE OU SERÁ UMA ESTUDANTE TRABALHADORA E TEIMOSA?

Formação da Discente em atividade no curso de Licenciatura em Ciências Sociais 2010, junto à Universidade Federal da Fronteira Sul,

Campus Erechim

Formação da estudante / Tempo para conclusão das formações idade

Pré-escola 5 anos2 anos

Ensino primário 7 anos 4 anos

Ensino básico 11 anos4 anos

Ensino Médio/Magistério 15 anos3 anos e meio

Técnico em contabilidade 19 anos3 semestres

Técnico em Enfermagem 24 anos2 anos

Licenciatura em Ciências Sociais 30 anos9 semestres (em curso)

Fonte: elaboração da autora

Cresci estudando sempre em escola pública: Pré-escola, ensino primário, ensino básico, Ensino Médio paralelo com Magistério. A escola que frequentei todo esse período se chamava Escola Estadual de 1º e 2º graus de Marcelino Ramos. Cursei Magistério devido aos poucos cursos oferecidos na minha cidade. E foi, neste período, no mês de maio, quando eu já tinha 18 anos, que, pela primeira vez na minha vida, minha mãe estava apreciando a minha homenagem das mães juntamente com meus alunos, pois sempre que havia algum evento nesta data a minha mãe também tinha que produzir com seus alunos homenagem às mães. A escola onde ela lecionava fazia as homenagens no mesmo dia, mas em outra localidade.

Aos 14 anos de idade, já ficava imaginado quando faria 18 anos para ir para Porto Alegre estudar em uma pomposa universidade

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perto da Redenção, a qual meu pai me apresentou ainda criança, quando ele trabalhava em Porto Alegre. Sonhava em fazer Medicina. Quando o meu pai nos levava ao parque para brincar, ficava sentada na grama pensando em como seria estudar naquela escola tão gran-de, tão velha. Ficava pensando em como ela era por dentro. Quanta inocência a minha em imaginar que era tão fácil chegar lá!

Passei no meu primeiro vestibular em 1998 para Engenharia de Alimentos em 42º lugar, mas não pude me matricular, pois ainda tinha que fazer o estágio que o curso de Magistério previa. Achei melhor dar continuidade ao estágio visando trabalhar caso não desse certo a faculdade. Já em 1999 passei em 17º lugar em Engenharia de Alimentos, fiz minha matrícula, pagamos uma mensalidade e daí surgiu o primeiro impasse.

Quem deveria prosseguir estudando, minha mãe ou eu? Ela já lecionava desde os 17 anos de idade e somente aos 36 anos de idade teve oportunidade de estar cursando um curso superior para que futuramente esse assegurasse a renda familiar? Em um sába-do à noite, quando meu pai retornou a Marcelino Ramos, pois ele trabalhava em Chapecó, decidimos que quem deveria prosseguir estudando seria a minha mãe. Com os rendimentos futuros que a Pedagogia lhe renderia, seria, então, possível que eu pudesse reto-mar a universidade.

Impedida financeiramente de frequentar o Ensino Superior, cur-sei um Técnico pós-médio em Contabilidade. Os fatores econômicos e geográficos também contribuíram para que eu não ingressasse no Ensino Superior. A universidade pública mais próxima ficava nos mu-nicípios de Porto Alegre ou Santa Maria.

Porém, a vida dá voltas, e, às vezes, não podemos prever nosso futuro. Soube que estava grávida da minha filha, Sarah. Então, como estudar com um bebê? Fique, então, quatro anos em casa cuidando da minha filha e da minha sogra, que era acamada. Eu tinha vonta-de de ser “enfermeira”. Como não tinha recurso para fazer a “facul-dade”, ingressei no curso Técnico de Enfermagem em uma escola particular. Paguei a primeira mensalidade e, logo, surgiu mais um empecilho financeiro.

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Porém, não fiquei chorando pelos cantos, não me deixei abater. Prestei concurso para o hospital Santa Terezinha, para o cargo de auxiliar de serviços gerais, o qual me custeou o curso Técnico de Enfermagem. Vivi o dia 18 de janeiro de 2006 como se fosse um mo-mento único. Comprei o tradicional quadro de formatura com muito esforço. Era meu troféu, pois jamais pensei que um dia eu poderia cursar o Ensino Superior.

Prestei, em seguida, concurso público para a função de Técni-co de Enfermagem, mas somente na segunda tentativa obtive êxi-to, exercendo a função de técnica de enfermagem na farmácia no pronto-socorro do Hospital Santa Terezinha de Erechim até março de 2012, quando, também por concurso público, passei a trabalhar na Unidade Básica de Saúde da Prefeitura Municipal de Erechim. Já havia perdido as esperanças de um dia cursar o Ensino Superior. Foi neste período que a UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul) se encaminhava em projeto de lei. Em 1999, ainda quando morava em Marcelino Ramos, eu havia assinado um abaixo-assinado em prol da nossa Universidade, a qual nunca imaginei “sair do papel”. Jamais imaginei que um dia eu faria parte ou que um dia eu alcançaria a universidade.

Após doze anos de espera, tive a oportunidade de frequentar e fazer parte da UFFS no Campus de Erechim, fruto de mobilizações públicas travadas na região em busca de uma Universidade Pública que atendesse a todos pelo REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, sancionada através da lei 12.029, de 15 de setembro de 2009).

Tive uma desilusão muito grande ao realizar meu estágio no Ma-gistério. Jurei jamais entrar em sala de aula. Minha mãe havia conse-guido uma oportunidade para que eu cursasse Pedagogia, mas não quis nem de graça. No mês janeiro de 2010, recebi um telegrama que me “intimou” a frequentar o Ensino Superior.

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As aulas iniciaram no mês de março. Ingressei no curso de So-ciologia, que foi a minha segunda opção. No primeiro dia de aula, no acolhimento realizado no salão de festas do Seminário de Fátima, tive o primeiro contato com meus professores. Esperava professores de terno, paletó e gravata, mas o que eu vi ali eram professores com tênis, bermuda e camiseta. Vi professores que estavam iniciando uma caminhada assim como eu. Vi uma troca mútua de conhecimentos. Percebi, então, que não é a roupa que prova o quanto eu sei, mas sim meus atos, a minha humildade é que mostram o que sei.

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Que ironia do destino! Mal eu sabia que este curso, mais tarde, seria um curso de licenciatura, e não bacharelado. Iniciei o curso sem ter muita certeza se era isso o que eu queria. Eu trabalhava à noite e pedi para passar para o dia. A minha chefe já não aprovou. Disse que eu fosse um dia sim, outro não à aula. Bati o pé e fui colocada para trabalhar das 13 horas até as 19 horas. Chegava todos os dias atrasada.

Teve dias em que o cansaço, as cobranças do dia a dia, a falta de dinheiro e de tempo quase me fizeram abandonar a Universidade. No entanto, ao ouvir a história de vida do professor Luís Fernando, me inspirei para estudar. Se ele, após ter constituído sua família e com um filho pequeno pôde estudar, eu também posso estudar.

Já no segundo semestre, começamos a ter as disciplinas eletivas. Fui conversar com minha superior para rever os meus horários e a possibilidade de que eu pudesse frequentar as aulas de sábado. Para o meu espanto, recebi a seguinte resposta: “Há escolhas na vida: ou estuda ou trabalha. Os dois juntos não”. Não foi essa resposta que me abalou. Ela só meu deu mais ânimo para continuar lutando na minha vida escolar e pessoal. Fui muito teimosa em continuar estu-dando.

Hoje estou cursando o 5º semestre do curso de Licenciatura em Ciências Sociais. Quando iniciei o curso, ele chamava-se “So-ciologia”. Porém, para suprir uma lacuna existente no ensino da nossa região, foi necessário fazer mudanças para suprir o déficit de docentes na área das Ciências Sociais (Antropologia, Política e Sociologia).

Penso que, no futuro próximo, poderei ser uma docente em prá-tica pedagógica qualificada, habilitada para ministrar aulas ou até mesmo palestras relacionadas às Ciências Sociais nas escolas da nos-sa região. Penso em não repetir as práticas que vivi no Magistério e que me fizeram perder o encantamento pelo campo da educação. Sonho, a médio prazo, poder fazer um Mestrado. Como sou teimosa e persistente, almejo, a longo prazo, frequentar um curso de Douto-rado, mas, como diz Zeca Pagodinho na sua letra de música,

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Deixa a Vida me Levar[...]Só posso levantarAs mãos pro céuAgradecer e ser fielAo destino que Deus me deuSe não tenho tudo que precisoCom o que tenho, vivoDe mansinho lá vou eu...Se a coisa não saiDo jeito que eu queroTambém não me desesperoO negócio é deixar rolarE aos trancos e barrancosLá vou eu!E sou feliz e agradeçoPor tudo que Deus me deu...[...]

Aos poucos, fui me inserindo no ambiente acadêmico. Em abril de 2011, fui selecionada para ser bolsista no projeto de iniciação acadêmica no qual eu tinha interesse em participar: meu dia e mi-nha hora estavam marcados. Renunciei até a uma proposta de em-prego com um salário bem mais atrativo, com um rendimento maior do que eu recebia na época, para que eu pudesse realizar um so-nho de infância e adolescência: “pesquisar”. Sonhava estar em um laboratório de jaleco branco em frente de um microscópio. Porém, fui presenteada com um laboratório diferente, o qual não permite repetir inúmeras vezes a experiência até que esta seja perfeita. É um laboratório itinerante que visa estudar o comportamento humano nas mais variadas situações do cotidiano e produzindo um diagnós-tico da realidade.

Espero que eu consiga terminar a minha graduação, no máximo, com 36 anos de idade. O cansaço, às vezes, é muito, o corpo grita, reclama, afetando o meu psicológico. Sou trabalhadora, estudante, mãe, esposa e dona de casa. Assumir vários papéis ao mesmo tempo não é uma tarefa fácil.

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Houve dias em que pensei em abandonar a Universidade, mas, após dialogar com os professores Thiago e Luís Fernando sobre suas trajetórias na universidade e depois de muitos conselhos, inspirei-me novamente no professor Luís Fernando e decidi que eu também pos-so estudar, basta que eu me esforce e continue persistente, teimosa.

É necessário trabalhar. Muitas vezes, quis abandonar o emprego e dedicar-me exclusivamente aos estudos. E daí, quem paga meus materiais, livros e xerox? Por mais que a universidade seja pública e que possua bolsas que auxiliam as despesas, essa é insuficiente para suprir os materiais utilizados para estudar e as necessidades básicas que cada cidadão possui.

Almejo dar continuidade à minha vida acadêmica. Espero que as minhas filhas ingressem no Ensino Superior já aos 18 anos de ida-de. Hoje os meus avós têm netos estudantes trabalhadores em uni-versidade pública. Graças ao Enem e às políticas públicas com vistas à expansão das Universidades Públicas no Brasil. O Ensino Superior gra-tuito chegou até aqui em Erechim, no norte do Estado do Rio Grande do Sul. Penso que se não tivesse chegado a Universidade pública até a nossa região, dificilmente estaria cursando o Ensino Superior.

Em novembro de 2011, firmei compromisso com o Projeto “PET/ Conexões de Saberes”, o qual faz estudos baseados na Educação Popular. Senti-me desafiada e realizada pessoalmente por poder con-tribuir com uma reflexão baseada na realidade das escolas públicas, uma realidade da qual sempre fiz parte. O PET é um espaço reserva-do onde podemos estudar, ler, produzir reflexões, pesquisas basea-das na Educação Popular, da qual também faço parte. Tenho orgulho de fazer parte da UFFS.

Alguma coisa, alguma coisa muito geral, está aconte-cendo com a maneira como as pessoas pensam em quem são, em quem são os outros, e em como querem ser retratadas, denominadas, compreendidas e situa-das pelo mundo em geral. ‘A representação do self na vida cotidiana’, para evocar a célebre expressão de Er-ving Goffman, também se tornou uma questão menos individual, um projeto menos pessoal, mais coletivo,

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talvez até político. Existem hoje, em praticamente toda parte, esforços organizados, sustentados e assíduos, e às vezes bem mais do que isso, no sentido de promover o destino mundano desta ou daquela variedade de in-dividualidade pública. O que temos aqui é um concurso de espécies. (C. GEERTZ)

A citação acima me faz pensar que hoje os indivíduos não estudam porque gostam ou porque sentem prazer ao estudar, es-tudam, conforme entendimento meu sobre esta passagem, para competir no mundo em que vivemos, para garantir o seu lugar ao sol no mundo selvagem do capitalismo. Eu, Paula, estudo porque gosto, porque sinto prazer em poder estar estudando e me sinto presenteada pelo destino de estar hoje frequentando um curso universitário.

Desde muito cedo, sempre fui incentivada por toda minha família a estudar. Meu pai, mesmo estando ausente nos dias de semana, mas presente nos finais de semana, procurava corrigir e tomar conhecimen-to do que eu havia feito e aprendido no decorrer dos dias que ele se ausentava. Eu gostaria de poder ter mais tempo para poder me dedicar ainda mais às minhas leituras, aos meus estudos; afinal, seria muito ingênuo de minha parte falar que estudo só por hobby. Estudo, pois o ensino empodera o homem. E os frutos da minha teimosia em estudar ampliarão minhas oportunidades de emprego e de salários melhores, os quais auxiliarão na qualidade de vida da minha família.

Não é uma tarefa fácil a de (re)lembrar o passado, uma vez que esta toca em feridas já esquecidas. A minha história de vida está mar-cada pela busca constante pela educação, uma prerrogativa herdada de meus avós, que, minimamente, sabem ler e escrever, mas sabem o valor da educação, de estudar. Já dizia meu avô, Oracildes de Mar-ques, filho de uma bugra com um branco: “Se não quer puxar car-roça, como seu avô; então, estude”! Inspirada nesta máxima, irei re-mover Céus e Terras para completar minha graduação e, quem sabe mais tarde, dar continuação à minha caminhada como estudante.

Também seria muita ingenuidade pensar hoje que basta fazer o ensino básico ou médio para conseguir um bom emprego. Se alcan-

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cei o Ensino Superior foi pela minha busca de uma oportunidade, de um ideal. Há quem diga que alcançar a universidade foi acaso, sorte. Mas o que é essa sorte?

É a soma do conhecimento + oportunidade = sorte. Não bas-ta ter oportunidade se não há conhecimento. Para que eu possua do meu lado a sorte, em primeiro lugar preciso ter conhecimento.

Assim, espero que minha família e eu possamos, cada vez mais, conquistar a educação, essa que é um direito legítimo de qualquer cidadão brasileiro e que, na maioria das vezes, tem esse direito ne-gado. É no seio da minha família que encontrei força, incentivo para prosseguir com meus estudos. Se não fosse o incentivo dos meus pais e avós desde a infância para que eu estudasse, quem sabe hoje eu não poderia estar escrevendo a minha história para vocês lerem.

Meus agradecimentos A PESSOAS ESPECIAIS:

Estas poucas palavras de gratidão direciono àqueles que possibi-litaram hoje a minha permanência na Universidade.

Primeiramente, quero agradecer as minhas filhas: Samarah, e, principalmente, Sarah, de 11 anos, que, mais do que filha, é uma “mãe” para mim. É ela que, na hora dos apuros, me lembra de onde está a chave, me entrega o meu tênis. Preocupa-se comigo e faz um lanche para que eu não vá direto do meu serviço, sem me alimentar.

Agradeço o meu esposo, Eleandro, que tem muita paciência e me apoia nos meus estudos. Não reclama das muitas e muitas vezes que dorme em meio aos livros, cadernos e lápis esparramados na cama até alta madrugada. A todos meus familiares, em especial, minha mãe. Terezinha, meu pai, Celio, a vó Izaura, o vô Oracildes e a Tia Ada.

Agradeço também aos professores Thiago Pereira, que acreditou no meu potencial, e ao professor Luís Fernando da Silva, que muito me incentivou a permanecer estudando, por nunca me deixar desistir dos meus planos e dos meus sonhos.

A vocês, devo tudo o que tenho e que sou. Sem vocês, certa-mente seria impossível. Preciso agradecer às pessoas que acreditam

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em mim e que compartilham a minha trajetória até a tão esperada Universidade. Por fim, a todas as pessoas que participaram indireta-mente na produção deste trabalho, contando-me pacientemente as suas histórias de vida.

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PARTE III

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MEMORIAL FORMATIVO: A ESCRITA DAS TRAJETÓRIAS DE VIDA DE ESTUDANTES DE

ORIGEM POPULAR

raFael arenhaldT 1

Todo conhecimento é autobiográfico

(SANTOS, 1997)

Na tarde do dia 31 de maio de 2011, a convite do colega Thia-go Ingrassia Pereira – Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul/Campus de Erechim e Tutor do PET/Conexões de Saberes desse Campus –, tive a oportunidade de desenvolver uma atividade de for-mação e o prazer de conhecer os estudantes bolsistas do referido Programa: Fabrício, Fernanda, Janniny, Rafaela e Silvia. A atividade de formação consistia em auxiliar no processo de escrita dos memoriais formativos dos estudantes, dialogando com o grupo sobre o suscitar de minha leitura sobre cada um dos memoriais, e, assim, contribuir na reflexão sobre a abordagem da escrita de si.

Assim sendo, este texto trata sobre o memorial formativo en-quanto um dispositivo reflexivo da vida e da formação e apresenta al-gumas reflexões suscitadas pela leitura das narrativas dos memoriais dos estudantes, procurando entrelaçar e entrecruzar suas trajetórias de vida, os traços e o modo como são contadas as histórias dos cinco estudantes do PET/Conexões da UFFS – Campus Erechim.

1 Doutor em Educação – PPGEDU/UFRGS e Professor do Colégio de Aplicação/UFRGS. En-dereço Eletrônico: <[email protected]> e Blog: <http://arenhaldt.blogspot.com>.

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MEMORIAL FORMATIVO: A ESCRITA DAS TRAJETÓRIAS DE VIDA DE ESTUDANTES DE ORIGEM POPULAR

Do Memorial Formativo: um dispositivo reflexivo da vida e da formação

é contando as nossas próprias histórias que damos a nós mesmos uma identidade. Reconhecemo-nos nas histórias que contamos sobre nós mesmos (RICOEUR, 1997, p.426)

A questão que se coloca, inicialmente, é: qual a razão e o sentido de se escrever um memorial num percurso formativo com universitá-rios de origem popular? Por que despender tamanho esforço numa narrativa pessoal e singular? Existe algum sentido formativo em escre-ver sobre sua própria trajetória de vida?

Na nossa particular compreensão, a resposta para a última ques-tão é afirmativa. Mais do que isso, entendemos que todo processo formativo é mais significativo e se constitui de maior sentido quando implicado com a própria vida, suas práticas e experiências. Nosso entendimento é de que a formação se realiza de forma mais efetiva através do conhecimento de si, da reflexão sobre a prática social que o sujeito se encontra envolvido e imerso. Bolívar (2002, p.69) relata que um percurso formativo, para ser significativo, “requer que cada adulto compreenda, se aproprie de sua própria formação e a recons-trua a partir de sua história de vida”.

Deste modo, partimos do pressuposto de que a narrativa da pró-pria trajetória de vida, através da escrita de memoriais2, é formativa e provoca no seu autor um processo de reflexão e autorreflexão, ou seja, a instalação de uma cultura reflexiva no âmbito dos processos de formação. Ao escrever o memorial formativo e ao elaborar em forma de texto sua história, o autor revê e produz uma retrospectiva de suas próprias experiências e vivências – sejam elas pessoais, fa-miliares, escolares, acadêmicas, profissionais, comunitárias, culturais,

2 Nos últimos anos, tenho aprofundado a reflexão sobre esta abordagem, bem como tenho sistematizado por meio de um Blog o trabalho sobre os Memoriais e sua dimensão formativa e reflexiva. Ver: <http://memorialformativo.blogspot.com>. Além disso, tivemos a possibilidade de sistematizar a experiência de escrita de Memoriais num percurso de formação continuada de professores no livro Memórias e afetos na formação de professores (ARENHALDT; MARQUES, 2010).

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sociais, políticas, espirituais – e, sobretudo, reconfigura os modos de representação de si mesmo e de suas práticas.

Assim, a escrita de memoriais se constitui em um dispositivo va-lioso e privilegiado, no sentido de produzir compreensões sobre o modo pelo qual nos tornamos as pessoas que somos; fazendo-nos refletir sobre “como a gente se torna o que a gente é” (NIETZSCHE, 2003) e nos provoca a pensar para além daquilo que somos ou dize-mos ser.

Escrever memorial formativo é

simbolizar a vida na forma de texto é um exercício de criação, de invenção e reinvenção, que oferece as bases para a sustentação da vida no modo pelo qual decidimos existir. Um exercício de auto-conheci-mento, de auto-produção da vida, do descobrir-se na condição de pessoa [aprendente] (ARENHALDT; MARQUES, 2010, p.19-20)

Escrever um memorial formativo é um modo de assumir a autoria de sua própria história e de assumir-se autor de si. Escrever um me-morial formativo é dar forma à sua caminhada de vida. Assim, dizer a sua palavra é também um ato político, é mostrar-se, é assumir-se como agente do/no mundo, é um ato per-formativo, no qual “dizer” é “ser”.

Ser autor é dizer a sua própria palavra, compreender o seu mundo, fazer e escrever sua própria história. Trata--se de um movimento que produz um conhecimento alicerçado na vida, na experiência, que é em si singular, mas produzido na relação com o outro, com o mundo [...]. Escrever um memorial é permitir-se reconhecer e transformar o modo como nos fizemos ser o que so-mos. Escrever um memorial é ressentir os afetos, sen-tidos e significados de ser e estar [aprendente]. [...] Escrever um memorial é um movimento de incitar a re-criar e reinventar a si mesmo permanentemente. (ARE-NHALDT; MARQUES, 2010, p.20)

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Contamos e escrevemos nossas histórias como um modo de recria-ção de nós mesmos. De certa forma, ao contarmos e escrevermos nossa trajetória, temos a expectativa de que os outros, ao escutá-la ou lê-la, possam pensar na sua própria existência e no seu modo de vida, na forma que está sendo composta e no jeito que está sendo produzida e construída. De outra ordem, também somos tomados e invadidos pelas histórias alheias, isto é, as narrativas que lemos e escutamos nos repor-tam invariavelmente às nossas singulares histórias e às nossas vivências particulares. Se, como afirma Ricoeur (1997), “reconhecemo-nos nas his-tórias que contamos sobre nós mesmos”, também nos reconhecemos nas histórias contadas pelos outros e nos formamos ao ler e ao escutar o outro. Tal como afirma Benjamim (1994), entende-se que a vida não pode ser separada do modo pelo qual podemos nos dar conta de nós mesmos: narrar nossas histórias é, portanto, um modo de dar a nós mesmos uma identidade. E, assim, reinventarmo-nos permanentemente.

Portanto, aventurar-se na escrita de um memorial formativo, por meio do qual temos a possibilidade de sistematizar e refazer um ca-minho singular de nossa vida, pode se configurar num outro modo de vislumbrarmos e avistarmos novos desfechos e novos desenlaces para a vida que está acontecendo e projetarmos uma direção para a qual ainda pretendemos construir e experimentar como aprendentes (NOGUEIRA, 2006).

Das trajetórias entrecruzadas

E assim eu me conto a minha vida (NIETZSCHE, 2003, p.21)

Realizadas as considerações sobre as razões, os sentidos e os significados da escrita de si por meio do memorial, no âmbito de um percurso formativo, passo agora a apresentar algumas reflexões que a leitura dos memoriais de Fabrício, Fernanda, Janniny, Rafaela e Sil-via, bolsistas do PET/Conexões da UFFS, produziu e suscitou em mim. Em outras palavras, procurei entrelaçar e entrecruzar alguns aspectos anunciados sobre as trajetórias de vida, tanto em sua dimensão fami-liar, escolar, acadêmica e profissional. Eis, então, algumas marcas e

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traços presentes na escrita dos memoriais.As trajetórias contadas nos memoriais dos cinco bolsistas referi-

dos se entrelaçam e se entrecruzam com as muitas histórias de estu-dantes de origem popular que lutam todos os anos para acessar um Curso Superior, que lutam todos os dias para permanecer de forma qualificada numa Universidade e, assim, procuram construir melho-res condições de vida para si e para sua família. Para tanto, destaco os seguintes aspectos: (1) Redes de amparo e apoio; (2) Condições sociais, econômicas e culturais; (3) Oriundos de escolas públicas e a primeira geração a ingressar no Ensino Superior; (4) Ser estudante trabalhador; (5) O horizonte, o sonho e o acesso ao Ensino Superior.

(1) Redes de amparo e apoio

Muitas são as formas de apoio, amparo e incentivo que se mani-festam nos escritos das trajetórias de vida desses estudantes. Merece destaque que esses estudantes, via de regra, obtiveram êxito escolar e chegaram até o Ensino Superior em virtude dessa rede de amparo e incentivo familiar. “A família, neste caso, é plataforma central. [...] [O apoio da] família pode ser e fazer toda a diferença na vida do outro, neste caso com destaque para a continuidade e o incentivo ao pros-seguimento dos estudos” (ARENHALDT, 2012, p.109). Assim revelam as palavras de Fernanda: A única coisa que não quero esquecer é o que foi determinante para que eu estivesse aqui hoje, o apoio da fa-mília, dos amigos, mas acima de tudo a minha vontade de estar aqui (Memorial Fernanda).

A instituição escola é uma aposta das famílias. A escola é uma aposta no futuro dessas famílias, como bem dizem as palavras de Rafaela: A saída sempre foi o estudo para minha família (Memorial Rafaela). Essa aposta e mobilização das famílias, na perspectiva de encontrarem na instituição escola uma possibilidade de continuidade nos estudos, de longevidade escolar ou mesmo de ascender social e profissionalmente (ARENHALDT, 2012, p.116), foi algo que refleti em minha tese de doutorado e que ora se manifesta nas trajetórias dos bolsistas do Programa Conexões de Saberes da UFFS.

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No elogio desses bolsistas às suas famílias, merece destaque a presença marcante das mães, da figura feminina, como apoio, am-paro e incentivo à continuidade dos estudos, como bem revelam as palavras de Janniny, Silvia e Fabrício:

[...] minha mãe sempre foi muito atenciosa e dedicada com as atividades escolares, todo dia ela sentava comi-go para verificar os temas de casa (Memorial Janniny)

Admiro muito minha mãe por ela ter sido sempre uma mulher forte, batalhadora e dedicada para me educar e dar o melhor pra mim (Memorial Silvia)

Minha mãe foi uma guerreira, minha mãe sim foi de-terminada, pois cruzou pelas imposições da vida com a força, com fibra, com altivez [...]. Minha mãe foi re-sistente em todas as suas dificuldades, se definiu como ponto central e de referência em minha vida (Memorial Fabrício)

Minha mãe foi a fortaleza, o esteio da minha vida (Memorial Fabrício)

Inúmeras pesquisas (PORTES, 1993; SOUZA, SILVA, 2003; TEIXEI-RA, 2010) apontam para a potência dessa presença feminina no seio familiar de grupos populares como forma de incentivo ao sucesso ou à longevidade escolar de seus filhos. Teixeira (2010, p.382 e 390) atribui o “papel fulcral da figura feminina” como um dos fatores ex-plicativos do sucesso escolar no Ensino Superior de jovens oriundos de grupos sociais desfavorecidos. Para Souza e Silva (2003, p.113): “A presença cotidiana das mães no seio familiar [...] contribuiu para que elas se tornassem as principais artífices da trajetória escolar dos filhos”. E, segundo Portes (1993), o investimento familiar “materiali-zado sobretudo na figura da mãe” é fator fundante da compreensão da escola como possibilidade de ultrapassar a condição social dos próprios pais.

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(2) Condições sociais, econômicas e culturais

[...] me via obrigada a aceitar que eu estava distante do meu sonho. Que as condições da família não eram sufi-cientes para custear uma faculdade (Memorial Fernanda)

Os relatos das trajetórias destes estudantes se caracterizam, sem exceção, pela dificuldade financeira familiar ou mesmo pelo restrito acesso aos bens culturais e educacionais.

As dificuldades ainda assolavam muito a nossa família e se arrastavam ao passar do tempo (Memorial Fabrício)

Tentando buscar uma palavra que defina os primeiros anos, me deparei com esta: dificuldades (Memorial Rafaela)

[...] acabei mudando de colégio na metade do ano, em função de uma crise econômica familiar (Memorial Janniny)

Vindos de famílias pobres, meu pai e minha mãe tive-ram que trabalhar muito (Memorial Fernanda)

A vontade de meus pais era que eu continuasse a es-tudar mas eles não tinham condições financeiras para que eu continuasse a estudar (Memorial Silvia)

De certa maneira, essa falta interfere e afeta, tanto no horizonte de possibilidades de continuidade dos estudos e do ingresso no Ensi-no Superior, como, em algumas situações e casos, na dificuldade de manutenção financeira, no estar e na permanência na Universidade.

Disso resulta pensar e refletir até que ponto e o quanto tais difi-culdades financeiras familiares – e o consequente restrito acesso aos bens culturais – implicam na permanência qualificada destes univer-sitários no dia-a-dia da Universidade. Importa, outrossim, provocar o pensar sobre

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o quanto nossas instituições de ensino – de todos os níveis – estão atentas, preparadas e sensibilizadas para estas peculiaridades e o quanto elas engendram pro-cessos de gestão pedagógica e institucionais que for-taleçam e afirmem tais trajetórias no âmbito da Uni-versidade?

(3) Oriundos de escolas públicas e a primeira geração a in-gressar no Ensino Superior

Sempre estudei em escola pública (Memorial Fernanda)

Assim como Fernanda, também Fabrício, Rafaela e Silvia fre-quentaram – na integralidade ou em sua maior parte – escolas pú-blicas. São universitários oriundos do ensino e da escola pública, perfil marcadamente indicado pelo Programa Conexões de Saberes: Escola particular nem pensar, dinheiro para isso não tínhamos (Me-morial Silvia)

São trajetórias escolares, muitas vezes, marcadas por interrup-ções e mudanças. Assim como Silvia, que mudou muitas vezes de escola, também Janniny destaca: O Ensino Fundamental, assim como o Médio, foi marcado por diversas mudanças de residência e escola (Memorial Janniny).

Outro aspecto que marca as trajetórias desses estudantes de ori-gem popular – e integrantes do Programa PET/Conexões de Saberes da UFFS – é o fato de se constituírem na primeira geração da família a chegar ao Ensino Superior, como bem ressaltam as palavras de Fernanda sobre seus pais, que não tiveram oportunidades de ir mais além e de estudar (Memorial Fernanda), ou seja, “ao verificar a es-colaridade dos pais, constatamos um processo inaugural do ponto de vista social e familiar com o fato desses estudantes ingressarem no Ensino Superior” (ARENHALDT, 2012, p.112-113). São trajetórias que, do ponto de vista da escolaridade, rompem determinadas bar-reiras no seio de suas próprias famílias, desenhando, assim, novos ho-rizontes para sua vida que, nesta dimensão, inclui o Ensino Superior como uma possibilidade.

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(4) Ser estudante trabalhador

Outro traço predominante nas narrativas de vida dos estudantes aqui mencionados é a presença da relação estudo e trabalho. Trata-se aqui de estudantes que trabalham, isto é, estudantes trabalhadores. Narrativas que mesclam, em algum momento de suas trajetórias – se-não em sua totalidade –, o estudo com trabalho. Trata-se de jornadas de trabalho e estudo intensas e extensas.

[...] trabalhando no turno da manhã em um restauran-te e a tarde como estagiária em um Arquivo, militando no movimento estudantil (Memorial Rafaela)

Meu primeiro emprego foi como caixa de um super-mercado, [...] nesse setor a exploração fica muito evi-dente, os horários são complicados [...] arcava sozinha com minhas despesas (Memorial Fernanda)

Trabalhos em áreas e funções das mais diversas. Fabrício trabalhou como office boy e em um escritório contábil; Fernanda já foi caixa em um Supermercado; Rafaela trabalhou num restaurante e Silvia já foi au-xiliar de produção, vendedora, auxiliar de departamento pessoal, auxiliar de contabilidade, caixa, auxiliar administrativo, entre outras funções.

Embora presente em todas as narrativas, as histórias da relação trabalho e estudo desses estudantes-trabalha-dores são múltiplas e particulares. Cada qual com sua singularidade, dureza e necessidade. Cada qual com uma jornada, sacrifício e persistência, mas todos em busca da garantia e das condições para a continuida-de dos estudos, para a permanência qualificada no seu curso, na Universidade. (ARENHALDT, 2012, p.122)

Já se disse e se reitera aqui que, para esse estudante de origem popular, o trabalho – seja ele qual for – é um meio, é um caminho para se chegar ao objetivo principal, ou seja, a formação em uma Faculdade, em num Curso Superior.

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[...] procuraria um trabalho para juntar dinheiro para pagar uma faculdade (Memorial Silvia)

Comecei a procurar emprego através de uma agên-cia e deixando curriculum em diversas lojas e em-presas da cidade de Erechim. Na minha trajetória profissional, passei por diversas experiências [...], tudo buscando um trabalho que possibilitasse a realização do meu objetivo: fazer uma faculdade (Memorial Silvia)

Em outras palavras, os estudantes de origem popular nem sem-pre podem se dedicar aos estudos de forma exclusiva, pois se dividem entre necessidade de sustento próprio do trabalho e o desejo da con-tinuidade dos estudos.

(5) O horizonte, o sonho e o acesso no Ensino Superior

A entrada na Universidade vira a vida da gente de ca-beça para baixo, faz a gente tomar decisões, deixar de lado algumas coisas, muda os lugares onde a gente fre-qüenta, abre novas portas e apresenta vários caminhos que podem ou não ser seguidos, é uma verdadeira cai-xinha de surpresas (Memorial Silvia)

Frequentar uma faculdade e ingressar no Ensino Superior é visto e manifesto pelos estudantes como um verdadeiro sonho, esperança, como fator de realização pessoal.

[...] meu sonho em cursar uma faculdade era impor-tantíssimo, pois eu queria estudar, eu gostava [...] eu não queria desistir, pensava em fazer qualquer coisa, iria trabalhar, fazer um financiamento, o que fosse, mas eu queria estudar (Memorial Fernanda)

[...] o sonho de cursar uma universidade (Memorial Fa-brício)

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Continuava sonhando ainda com uma faculdade, mes-mo sabendo que meus pais não poderiam pagar (Me-morial Silvia)

O ingresso na universidade estava atrelado a uma grande realização pessoal [...]. A minha esperança em conseguir passar no vestibular, uma Universidade Fede-ral ao longo do caminho foi desaparecendo (Memorial Rafaela)

Ingressar numa Universidade – especialmente uma Universidade Federal – é uma conquista para os estudantes de origem popular. Uma conquista arrematada a partir de muita persistência, dedicação e força de vontade. Acessar uma Universidade, para esses estudan-tes, é uma conquista muito comemorada, muito vibrada, recheada de alegria e de felicidade, assim manifesta nas palavras:

Ao olhar na tela do computador, eu levei um choque de ficar minutos pálido. Na tela havia a lista dos selecio-nados para o curso de Geografia no campus Erechim e o meu nome estava entre os cinqüenta selecionados na primeira chamada nesta Universidade Pública e Fe-deral. Eu tinha em mim uma mistura de felicidade e conquista (Memorial Fabrício)

[...] recebi uma correspondência dizendo que havia sido aprovada e estava sendo chamada para fazer minha inscrição para o curso de Pedagogia. Quanta alegria em saber que eu havia conseguido demorou mas chegou a minha vez vou entrar em uma faculdade fazer um curso superior (Memorial Silvia)

[...] recebi um telefonema da mãe de uma amiga que me dava a notícia de que eu havia conseguido uma vaga para o curso de Sociologia na universidade fede-ral [...]. A melhor notícia que eu poderia receber na-quele momento (Memorial Fernanda)

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Para muitos desses estudantes, essa é uma conquista que inicial-mente nem se apresentava no horizonte como uma possibilidade, mas que, enfim, se concretiza, saindo do plano do sonho para a reali-dade: uma nova realidade e novas pessoas, outros lugares, espaços e experiências. E, como bem escreve Silvia em seu Memorial, a entrada na Universidade abre novas portas e apresenta vários caminhos [...], é uma verdadeira caixinha de surpresas. A Universidade é assim, e a vida também.

Referências

ARENHALDT, Rafael; MARQUES, Tania Beatriz Iwaszko (Orgs.). Memórias e Afetos na Formação de Professores. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010. (Série: Cadernos Proeja-Especialização-Rio Grande do Sul. Vol. I)

ARENHALDT, Rafael. Vidas em Conexões (in)tensas na UFRGS: O Progra-ma Conexões de Saberes como uma Pedagogia do estar-junto na Universida-de. – Porto Alegre, 2012. Tese (Doutorado em Educação) – UFRGS. FACED. PPGEDU, 2012, Porto Alegre.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política – Obras Escolhidas, Volume I. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BOLÍVAR, Antonio. Profissão professor: o itinerário profissional e a constru-ção da escola. Bauru, SP: EDUSC, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM, 2003. 192 p.

NOGUEIRA, Eliane Greice Davanço. A escrita de memoriais a favor da pes-quisa e a formação. Anais II CIPA – UNEB. Salvador, 2006.

PORTES, Écio Antônio. Trajetórias e estratégias escolares do universitá-rio das camadas populares. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educa-ção. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1993.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, v.3, 1997

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edi-ções Afrontamento, 1997.

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SOUZA E SILVA, Jailson de. “Por que uns e não outros?”: caminhada de jovens pobres para a Universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

TEIXEIRA, Elsa. Percursos Singulares: Sucesso escolar no Ensino Superior e grupos sociais desfavorecidos. In: Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, Vol. XX, 2010, p. 375-393. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8808.pdf> Acesso em: 12 jan 2012.

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lUís Fernando sanTos corrêa da silva1

Há bens inalienáveis, há certos momentos que, ao contrário do que

pensas, fazem parte da tua vida presente e não do teu passado. E

abrem-se no teu sorriso mesmo quando, deslembrado deles, estiveres sorrindo a

outras coisas.

(Mário Quintana - Uma alegria para sempre)

O convite para participar do projeto Caminhadas de Estudantes de Origem Popular surgiu no momento em que eu concluía a redação da minha tese de doutorado, que abordou a segurança no mercado de trabalho no setor de telecomunicações pós-privatização. Não fos-se o conceito de trajetória, seria praticamente impossível estabelecer qualquer tipo de relação entre esses dois mundos, da tese e do pro-jeto Caminhadas.

É certo que na tese o conceito de trajetória recebeu um trata-mento quantitativo; interessava saber quais as chances de permanên-cia no mercado de trabalho formal dos trabalhadores demitidos do

1 Doutor em Sociologia (UFRGS), Professor da área de Sociologia e Ciência Política e Coor-denador Acadêmico da UFFS/Erechim.

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setor de telecomunicações, tema relativo à Sociologia do Trabalho, que não estabelece relação com a educação popular. Contudo, a definição do conceito de trajetória permitia pensá-lo em termos qua-litativos, visto que dizia respeito ao:

[...] movimento por meio do qual são construídos os percursos dos trabalhadores no mercado de trabalho, durante um período de tempo pré-definido. As trajetó-rias ocupacionais são concebidas como fenômeno dia-crônico, que se desenvolvem através do tempo abran-gendo continuidades e rupturas, resultando de condi-cionamentos sociais derivado de aspectos estruturais, institucionais e subjetivos (SILVA, 2011, p. 81-82).

Neste sentido, a condição diacrônica das trajetórias, sejam elas ocupacionais ou de estudantes de origem popular, pode ser conside-rada uma interface possível. Do mesmo modo, ambas as trajetórias podem ser condicionadas por múltiplos aspectos, que envolvem, des-de os aspectos sociais mais amplos, até as escolhas que os indivíduos realizam no decorrer de seus percursos.

No plano pessoal, a tese e seu tema foram apenas parte do que eu vivia naquele período. Quase tudo remetia à trajetória, em termos conceituais, mas também pessoal. Estava presente a sensação de que uma nova trajetória pessoal se iniciava na Universidade Fede-ral da Fronteira Sul, ao mesmo tempo em que se encerrava minha formação acadêmica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, após a conclusão da graduação, do mestrado e do doutorado.

Neste contexto, comecei a participar do projeto Caminhadas, que trata justamente das trajetórias de vida dos estudantes de ori-gem popular do PET – Conexões de Saberes. A leitura dos memoriais dos estudantes e as discussões em grupo sobre as trajetórias de vida descritas envolviam conhecimento, reconhecimento e autoconheci-mento. Confesso que quase sempre me reconhecia nas trajetórias: famílias de origem popular, dificuldades financeiras, ingresso na uni-versidade anos após a conclusão do Ensino Médio, sonho de cursar universidade.

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As narrativas produzidas pelos estudantes permitiram conhe-cer trajetórias distintas em termos de locais, datas e experiências vi-vidas. Contudo, apesar das singularidades, havia também o reconhe-cimento da origem social compartilhada; afinal, todos os estudantes frequentaram escola pública e ingressaram na universidade por conta da sua natureza pública e gratuita. Tais aspectos reforçavam as espe-cificidades do projeto Caminhadas.

As atividades também foram produtoras de autoconheci-mento, de produção de sentido, de reflexão sobre a própria traje-tória mediante o conhecimento da trajetória do outro. Por meio do autoconhecimento, da tentativa de ordenar os acontecimentos e as experiências, se tornou possível vislumbrar os condicionantes sociais e as escolhas individuais que se sucederam ao longo das trajetórias relatadas.

Os relatos, fartos em cenas da infância e memórias escolares, pormenorizavam um passado com aspecto de regresso. Mas também foram relatados momentos que envolviam escolhas: Por qual curso optar? Sair ou não da casa da família? Qual será o nível de exigência do Ensino Superior? Tudo isso reforçava o caráter diacrônico e não linear das trajetórias.

De fato, o projeto Caminhadas de Estudantes de Origem Po-pular se constituiu em um espaço de encontro e de partilha. Encontro de pessoas, partilha de memórias. Reflexão sobre condicionantes e escolhas. Espaço também de conhecimento, reconhecimento e auto-conhecimento. Como no poema de Mário Quintana, as memórias compartilhadas no projeto Caminhadas se tornaram bens inaliená-veis.

Referências

QUINTANA, M. Baú de Espantos. São Paulo: Editora Globo, 2006.

SILVA, L. F. S. C. Percursos desiguais: trajetórias ocupacionais de trabalha-dores no setor de telecomunicações no período pós-privatização. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011.

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zoraia agUiar BiTTencoUrT1

Revisar. Olhar o novo. Olhar de novo. Olhar o outro. O outro que se apresenta em palavras. O outro que o revisor olha, conhece, reco-nhece, encontra através das palavras. Palavras que revelam um outro. Um outro que se diz e diz. Diz com palavras conhecidas um texto até então desconhecido, um tipo de texto que aprendeu no fazer, no ler outros autores, no tentar deixar nos textos que aqui encontramos um pouco de si para os outros.

Ouve-se, nestes memoriais, as vozes de sujeitos até então calados pela impossibilidade de estarem neste lugar, de estarem construindo seus lugares em uma universidade, de estarem se construindo como escritores universitários. E eles não se reprimiram em narrativas-sus-surrantes. Estes estudantes-trabalhadores-batalhadores gritaram em narrativas explícitas, repletas de desabafos, de coragem, de questio-namentos. Aqui e Agora. Aqui eles puderam falar. Agora eles podem falar. Seus gritos ecoarão pelos pensamentos de seus leitores.

Na vida as coisas nem sempre saem do jeito que a gen-te quer, as vezes as nossas escolhas vão além de nossas vontades, mas o tempo é que vai dizer se essas esco-lhas valem ou não a pena2.

1 Mestre em Educação (UFRGS) e Professora da área de Língua Portuguesa e Alfabetização da UFFS/Erechim.2 Serão apresentados neste texto pequenos excertos de alguns memoriais dos estudantes. Esses estarão destacados em itálico e, para aquecer/enriquecer a discussão, transcritos em suas versões originais, não revisadas.

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Gritos de tristeza, de reflexão, de alegria, de emoção, de indig-nação. Escritas que mostram e deixam transbordar os sentimentos de quem escreve naqueles que se aventuram a (com)partilhar de suas histórias. Escritas que expõem aqueles que escrevem e aqueles a quem descrevem, que levam personagens coadjuvantes a fazerem parte da ação, que conduzem por mãos apaixonadas ou ressentidas pais, irmãos, avós, amigos, mestres para o campo de batalha onde palavras disputam espaços. E é neste espaço que conhecemos estas pessoas, mas somente pelos substantivos e adjetivos que foram esco-lhidos para narrá-las, descrevê-las, comprometê-las como parte destas histórias, destas vidas em reflexão. Escritas de si constituídas de me-mórias múltiplas, de identidades múltiplas, que se multiplicaram em crianças alegres, adolescentes divididos, jovens sonhadores.

Marques (2006, p.28) afirma, ao tratar da questão da escrita, que “os saberes de cada interlocutor – confidentes, leitores, autores convocados com suas obras, sujeitos de práticas sociais a quem ouvi, entrevistei, interpelei – e os meus saberes se fundem e se transfor-mam, reformulam-se”. Também aqui, nos memoriais ora apresenta-dos, todos estes interlocutores foram convidados a fazer parte das memórias-por-escrito destes estudantes.

Memórias lembradas, narradas, esquecidas e retomadas de um só golpe em breves textos. Memoriais que trazem à baila memó-rias de tempos idos e de tempos vindos de uma teia de lembranças e de esquecimentos. Teia que entrelaça realidades com possibilidades, fatos com atos, verdades com vontades, começos com recomeços.

Por mais que eu quisesse fugir de começar a minha história pelo começo, acredito que não conseguiria, pois como toda história, ela tem um começo, um meio e especificamente no meu caso a construção de possibilidades para um fim. Quando eu falo em pos-sibilidades para um fim é porque acredito que cada pessoa escolhe o seu caminho e que toda trajetória é marcada por dificuldades, obstáculos, escolhas, que de certa forma influenciam ou determinam até onde se pode chegar.

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Podemos pensar na escrita de memoriais como uma autobiogra-fia em forma de “uma narrativa simultaneamente histórica e reflexiva” (SANTOS, 2012). Para além deste conceito, como uma possibilidade de se colocar diante de si, de se olhar, de olhar sua história a partir de outro tempo, de outro contexto, de outro ponto de vista. Agora, é o adolescente que olha para a criança que foi, o adulto que olha para o adolescente que foi, o universitário que olha para o estudante que foi. É o olhar do presente analisando tudo o que foi, o que se foi. Para isso, “o autor precisa sair de si mesmo e examinar sua própria realidade de fora, com o meticuloso desapego com que o entomo-logista estuda um besouro. Ou, o que dá no mesmo: não se escreve para que os outros entendam a sua posição no mundo, mas para você mesmo tentar se entender” (MONTERO, 2004, p.192). Sendo assim, olha-se para tudo aquilo que se foi (nas duas acepções desta expressão) e encontra-se, quase que sem querer, tudo aquilo que se é, que se deseja ser, e, assim, entende-se: entende-se as escolhas, entende-se os caminhos, entende-se como é sair de si para poder entender a si, ou seja, continua Montero (2004, p.60), “[...] a gente escreve para se expressar, mas também para se olhar num espelho e poder se reconhecer e entender”.

Como mullher negra, trabalhadora, tenho minha espe-rança renovada a cada segundo quando identifico que um sentimento de apatia está sendo superado.

Possivelmente, transcrever aqui esta afirmação, tal qual estava na versão original recebida para revisão, seja capaz de demonstrar o quanto podem ser coadjuvantes acentos ausentes, letras sobressa-lentes frente ao protagonismo de escolher palavras que traduzam o sentimento de ser negra, ser mulher, ser. As escritas destes memoriais trouxeram à cena, fizeram emergir eus que agora têm orgulho de ser.

Um revisor desavisado poderia encontrar nestes textos somente vírgulas separando os sujeitos de seus predicados, somente palavras repetidas repetindo ideias. E é difícil negar que elas não estiveram por estas páginas. Estiveram sim e foram apontadas pelo olhar per-digueiro que possui todo o revisor. Mas só estiveram porque estes

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estudantes se arriscaram a dizer as suas palavras, a lutar com as suas vírgulas, a pôr os seus pontos finais.

Sobre revisar, este ato transcende a superfície do texto. Mesmo sabendo que, “numa revisão, subentende-se, foram delegados pode-res ao seu agente (o revisor), para aprimorar o texto do autor. Aquele é, assim, extensão do autor. Ao mesmo tempo, o revisor é leitor – o comum, o exigente, o ingênuo” (NETO, 2008, p.94). O revisor, como coautor, como leitor, precisa ver/ser os sujeitos presentes nos auto-res e isso inclui ter/ler seus sentidos para poder dar sentido às suas escolhas. Sujeito e predicado. Vírgulas. Palavras repetidas. Escolhas.

Nem sempre estas escolhas foram as mais adequadas, mas, como diz e grifa Bauman (2009, p.139), “escolhas certas e erradas podem resultar da mesma condição de incerteza, indeterminação, indefinição [...]”. Ao ler estes memoriais, lá estava estampada em linhas e mais linhas a insegurança destes recém-escritores. A inde-finição provocada por ter de fazer estas escolhas, certas e erradas escolhas, que provocaram dúvidas durante suas escritas [Pôr ou não pôr esta vírgula? Que outra palavra usar para dizer de novo e de ou-tra forma o que eu já disse?] e dúvidas ao olharem ali (d)escritas as escolhas que haviam feito até aquele momento, não mais só aquelas relacionadas ao bem-escrever.

Para escrever um texto, há de se fazer também a escolha de aportes que servem de suportes para capturar um leitor desco-nhecido. E, neste sentido, suas escolhas foram por músicas, poemas, provérbios, verbetes de dicionário: elementos que entraram em cena para compor os cenários onde atua(ra)m os a(u)tores protagonistas destes memoriais. “É a esse riquíssimo reservatório do imaginário so-cial e de seu próprio imaginar que recorre o escrevente que não se queira reduzir a mero copista de ideias ou frases alheias ou mesmo do que ele próprio já pensou do pensamento pensado” (MARQUES, 2006, p.55).

Não há escrita sem autoria. Fora disso, há ditos e reditos que se empilham em novas (?) publicações. Esta não é uma destas publica-ções de ditos e reditos. Há aqui ditas histórias inéditas. Na superfície dos textos, “modos diferentes de recriar a vida e de representá-la por

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meio de palavras [...] sugerem maneiras de manipular a linguagem para criar o literário (na narrativa)” (THEREZO, 2008, p.11-12).

Mas: O que é o literário? O que é a narrativa? “Narrativa não é relato. Este é objetivo, frio, simples informação de fatos acontecidos com pessoas. [...] A narrativa é texto literário, e sua principal caracte-rística é o trabalho com a linguagem, matéria e produto de criação” (THEREZO, 2008, p.58). Se, nesta escolha conceitual que fizemos, uma narrativa exige o trabalho com a linguagem, todos os memoriais aqui presentes demonstraram como é trabalhoso este trabalho de descartar, escolher, esculpir, lapidar as palavras até dar a estas formas que fujam de simples relatos, que sejam resultado de criações criati-vas de pensamentos pensantes. Sentimos isso ao iniciar a leitura do memorial de uma estudante que nos convida a trilhar o caminho que a trouxe até a escrita das primeiras linhas de seu texto. De um texto que, nestas primeiras linhas, tenta nos convencer de que a autora possui dificuldade com as palavras e no qual ela tenta se convencer de que não é uma escritora. Tentativas vãs diante deste texto literário, desta narrativa, destas palavras tão trabalhadas que se apresentam para nós, que ela apresenta para nós, que a apresentam para nós:

Inicialmente quero tentar expressar em palavras alguns sentimentos que se seguiram ao tentar descrever breve-mente a trajetória da minha vida até o momento. Seria pretensão me equiparar aos escritores, esses grandes su-jeitos que de forma simples e delicada ajustam em linhas, emoções que por vezes só podem ser sentidas, mas pre-ciso dizer que a tarefa de elaborar um texto sintetizando nossas vivências é um exercício muito complexo e subje-tivo, que me causou, primeiramente, certo desconforto seguido de pontinhas de ansiedade, pois no decorrer das lembranças fui recordando fatos que deixei esquecidos na minha mente, e essa mistura de sensações, desejos e memórias fizeram com que eu percebesse minha difi-culdade com as palavras. Mas isso tem uma explicação.

Alguns destes jovens escritores tentaram explicar – porque os fizeram assim acreditar durante suas trajetórias escolares – que es-

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crever (e bem-escrever) é exclusividade de pessoas iluminadas, ins-piradas. No entanto, nesta caminhada, compreenderam, quase que aliviados, que escrever (e bem-escrever) é exercício – físico inclusive – e, sendo assim, todos podem praticá-lo. Não depende de inspiração. Depende de transpiração, de esforço, de resistência, de persistência, de ler-escrever-apagar-reescrever. “Escrever é o começo dos começos. Depois é a aventura” (MARQUES, 2006, p.30).

Adotando este ponto de vista, podemos afirmar que “o processo de interação sociocomunicativa, baseado no princípio constitutivo do aluno/sujeito, ou seja, na condição de autoria, se aprimora a cada atividade que propicie esforço de reflexão e de análise” (OLIVEIRA, 2008, p.40). Sendo assim, a escrita destes memoriais foi uma primei-ra tentativa, um primeiro esforço de colocar na folha em branco re-flexões e análises sobre as trajetórias profissionais destes estudantes--bolsistas, as quais capturaram também, porque imbricadas são, suas vivências pessoais.

Escreveram-apagaram-reescreveram-revisaram-finalizaram seus textos e, neste finalizar, sempre provisório, perceberam, depois de algumas tentativas, que é escrevendo que se aprimora a escrita, que é escrevendo que se aprende a escrever. Alguns acreditam que pode-riam ter feito mais, melhor; outros gostaram bastante do resultado e sentem-se orgulhosos de sua produção. O que importa é que foram convocados a serem autores de suas histórias-no-papel e foram.

Sabemos que “[...] são muitos os casos de pessoas que diante da brancura da folha se acham como que paralisadas, quando não tomadas de pânico” (MARQUES, 2006, p.31). Não pensemos que estes estudantes não sentiram medo, pânico em se aventurar por esta escrita. Sentiram sim e sentiram porque, assim como afirma Paulo Freire, sentir medo é normal, “sentir medo é uma manifesta-ção de que estamos vivos. Não tenho que esconder meus temores. Mas o que não posso permitir é que meu medo seja injustificado, e que me imobilize” (FREIRE, 1986, p.39). Não imobilizados, eles venceram o medo da folha em branco, de escrever, de se mostrar, de não fazer o que se esperava deles, de não fazer o que esperavam de si, já que:

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O que realmente horroriza é o resultado deste traba-lho, isto é, escrever palavras, mas palavras ruins, textos inferiores à sua própria capacidade. Você tem medo de esmigalhar sua ideia redigindo-a de maneira medíocre. Claro que pode e deve reescrevê-la, consertar as falhas mais evidentes e até cortar partes inteiras [...] e voltar a começar. Mas uma vez que delimitou sua ideia com palavras, você a manchou, puxou-a para a tosca reali-dade, e é muito difícil tornar a ter a mesma liberdade criativa de antes, quando tudo voava pelos ares. Uma ideia escrita é uma ideia ferida e escravizada a uma certa forma material; por isso dá tanto medo sentar--se para trabalhar, porque é uma coisa de certo modo irreversível (MONTERO, 2004, p.39)

No entanto, esta morte das palavras é temporária. Ela tem o tempo do encontro com os leitores. São eles, os leitores – somos nós, os leitores; são vocês, os leitores – que fazem com que as palavras saiam novamente da folha em branco, se libertem, renasçam, ressus-citem, respirem novamente e se transformem, pois “do texto escrito cada leitor prazerosamente poderá fazer as leituras que quiser, as suas leituras, outras tanto das do escrevente, quanto das dos demais leitores” (MARQUES, 2006, p.27).

Aos leitores – co-autores, revisores – informa-se que os autores são estes. Os memoriais estão estes. As vidas estão aqui abertas para serem vistas por dentro, as palavras estão aqui intactas aguardando a leitura destas histórias. As leituras que serão feitas destas vidas, os olhares que serão lançados para estas palavras são parte do que sig-nifica escrever e revisar, mas também do que significa ler: um mo(vi)mento de olhar o outro e a si através do texto.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

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MARQUES, Mário Osório. Escrever é preciso: o princípio da pesquisa. 5. ed. ver. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006.

MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

NETO, Aristides Coelho. Além da Revisão: critérios para revisão textual. 2. ed. Brasília: Editora SENAC-DF, 2008.

OLIVEIRA, Avani de. Redação e Ensino: um espaço para a autoria. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

SANTOS, Gildenir Carolino. Roteiro para elaboração de memorial. Dis-ponível em: <http://eprints.rclis.org/bitstream/10760/12895/1/Gill_Memo-rial.pdf>. Acesso em: 10 mar 2012.

THEREZO, Graciema Pires. Como corrigir redação. 6. ed. Campinas, SP: Editora Alínea, 2008.