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Na sociedade contemporânea, em que a morte é simultaneamente presente e ausente do quotidiano dos indivíduos, é importante identificar as principais instituições que permitem o contacto entre o indivíduo e a morte e as relações que podem ser estabelecidas entre eles. O Turismo Negro, ou seja, a actividade turística em locais de ou associados a morte e sofrimento, é uma das mais importantes instituições mediadoras da morte. O Turismo Negro é um objecto de interesse recente entre a comunidade académica. Não obstante, tem vindo a ser abordado por alguns autores, e é um tipo de turismo com variadas manifestações por todo o mundo.A presente dissertação consiste num estudo exploratório, de carácter qualitativo, sobre o modo como os visitantes de uma atracção de Turismo Negro a representam enquanto local ligado à morte. Pretendemos por este meio perceber se a morte é retirada da experiência turística dos sujeitos, tanto de uma atracção específica como de outras que possam ter visitado. Ao mesmo tempo, procurámos conhecer a atitude dos sujeitos em relação ao Turismo Negro e ao seu papel como mediador da morte na sociedade contemporânea.

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  • Universidade de Aveiro

    Ano 2012

    Departamento de Economia, Gesto e Engenharia Industrial

    BELMIRA MARIA DOS SANTOS GOMES COUTINHO

    H MORTE NAS CATACUMBAS ? UM ESTUDO SOBRE TURISMO NEGRO

  • Universidade de Aveiro

    Ano 2012

    Departamento de Economia, Gesto e Engenharia Industrial

    BELMIRA MARIA DOS SANTOS GOMES COUTINHO

    H MORTE NAS CATACUMBAS ? UM ESTUDO SOBRE TURISMO NEGRO

    Dissertao apresentada Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Gesto e Planeamento em Turismo, realizada sob a orientao cientfica da Doutora Maria Manuel Rocha Teixeira Baptista, Professora Auxiliar do Departamento de Lnguas e Culturas da Universidade de Aveiro

  • Dra. Teresa, sem a qual muito pouco teria sido possvel.

  • o jri

    Presidente Professora Doutora Elizabeth Kastenholz Professora Auxiliar da Universidade de Aveiro

    Vogal Arguente Principal Professor Doutor Joo Jos Saraiva da Fonseca Professor Com Vinculo: Celetista Formal, Faculdades Inta - Brasil

    Vogal Orientador Professora Doutora Maria Manuel Rocha Teixeira Baptista Professora Auxiliar da Universidade de Aveiro

  • agradecimentos

    Prof. Dra. Maria Manuel Baptista, que acreditou em mim mais do que eu, me manteve no trilho certo, e nunca deixou que eu me sabotasse. Aos meus pais, fonte de motivao constante. Um agradecimento muito especial Uiara e Denise, que em to pouco tempo se tornaram to importantes na minha vida. No h palavras que cheguem para vos agradecer. Aos professores e colegas do mestrado de Gesto e Planeamento em Turismo, por me terem ajudado a alargar os horizontes. Eng. Arnaldina Riesenberger que, sem querer, deu o rumo a esta investigao, e ao Prof. Dr. Francisco Queiroz, pela sugesto da atraco. A todos os que tornaram possvel esta dissertao: Dra. Clementina Quaresma, Sr. Domingos e Dra. Ana da Ordem Terceira de So Francisco, e todos os entrevistados. Aos meus amigos, por todo o apoio apesar da minha ausncia a todos os nveis. Ao Gonalo, pelas ddivas sem preo.

  • palavras -chave

    Morte, Turismo Negro, representaes e percepes dos visitantes.

    resumo

    Na sociedade contempornea, em que a morte simultaneamente presente e ausente do quotidiano dos indivduos, importante identificar as principais instituies que permitem o contacto entre o indivduo e a morte e as relaes que podem ser estabelecidas entre eles. O Turismo Negro, ou seja, a actividade turstica em locais de ou associados a morte e sofrimento, uma das mais importantes instituies mediadoras da morte. O Turismo Negro um objecto de interesse recente entre a comunidade acadmica. No obstante, tem vindo a ser abordado por alguns autores, e um tipo de turismo com variadas manifestaes por todo o mundo. A presente dissertao consiste num estudo exploratrio, de carcter qualitativo, sobre o modo como os visitantes de uma atraco de Turismo Negro a representam enquanto local ligado morte. Pretendemos por este meio perceber se a morte retirada da experincia turstica dos sujeitos, tanto de uma atraco especfica como de outras que possam ter visitado. Ao mesmo tempo, procurmos conhecer a atitude dos sujeitos em relao ao Turismo Negro e ao seu papel como mediador da morte na sociedade contempornea.

  • keywords

    and representations.

    abstract

    In contemporary society, where death is simultaneously absent and present from our daily lives, it is important to identify both the main institutions that allow for the contact between individuals and death to take place, and the relationships that can be established between them. Dark Tourism, in other words, tourist activity in places of or associated with death and suffering, is one of the most important institutions that mediate death. Dark Tourism has only recently become an object of interest amongst academics. Nevertheless, there is some work produced on this matter, and Dark Tourism has many manifestations throughout the world. This dissertation consists of a qualitative exploratory study about the way visitors of a Dark Tourism attraction represent it as a place connected to death. Our aim was to understand experience, both of a specific attraction and of others they may have visited. At the same time, we Tourism and its role as a mediator of death in contemporary society.

  • viii

    NDICE GERAL

    INTRODUO .............................................................................................................................. 12

    1. A MORTE, OS TURISTAS, E O TURISMO ............................................................................... 16

    1.1. EVOLUO DAS ATITUDES PERANTE A MORTE: DA MORTE DOMESTICADA MORTE SEQUESTRADA . 16

    1.1.1. A MORTE NA CONTEMPORANEIDADE E O PARADOXO DA MORTE AUSENTE/PRESENTE .......... 21

    1.2. OS VIVOS E OS MORTOS: MEDIADORES E RELAES ................................................................ 23

    2.1. ANLISE CONCEPTUAL: EVOLUO E PROBLEMTICA DA DEFINIO DO TURISMO NEGRO ............ 32

    2.2. PROPOSTAS DE CATEGORIZAO ......................................................................................... 35

    2.2.1. SEGUNDO A OFERTA ................................................................................................. 36

    2.2.2. SEGUNDO A PROCURA .............................................................................................. 42

    2.2.3. PROPOSTA INTEGRADA.............................................................................................. 45

    2.3. MANIFESTAES DE TURISMO NEGRO NO MUNDO ................................................................ 47

    2.3.1. CAMPOS DE GENOCDIO NEGROS ............................................................................... 47

    2.3.2. LOCAIS DE CONFLITO NEGROS .................................................................................... 51

    2.3.3. SANTURIOS NEGROS ............................................................................................... 53

    2.3.4. LOCAIS DE DESCANSO NEGROS ................................................................................... 55

    2.3.5. MASMORRAS NEGRAS .............................................................................................. 56

    2.3.6. EXPOSIES NEGRAS ................................................................................................ 59

    2.3.7. FBRICAS DE DIVERSO NEGRAS ................................................................................ 62

    3.1. HIPTESES DE INVESTIGAO ............................................................................................. 65

    3.2. RECOLHA DE DADOS ......................................................................................................... 67

    3.2.1. INSTRUMENTO ........................................................................................................ 68

    3.2.2. SUJEITOS ................................................................................................................ 70

    3.3. TCNICA DE ANLISE DOS DADOS ........................................................................................ 73

    4. APRESENTAO E DISCUSSO DOS RESULTADOS DO ESTUDO EMPRICO ......................... 76

    4.1. APRESENTAO DOS DADOS .............................................................................................. 77

    4.1.1. GNERO ................................................................................................................. 77

    4.1.2. CONVICES RELIGIOSAS ........................................................................................... 84

    4.1.3. NACIONALIDADE ...................................................................................................... 90

    4.1.4. IDADE .................................................................................................................. 103

    4.2. ANLISE COMPARATIVA .................................................................................................. 114

    4.2.1. GNERO ............................................................................................................... 114

    4.2.2. CONVICES RELIGIOSAS ......................................................................................... 119

  • ix

    4.2.3. NACIONALIDADE ............................................................................................... 124

    4.2.4. IDADE .................................................................................................................. 131

    4.3. DISCUSSO DOS DADOS .................................................................................................. 136

    5. CONCLUSES, RECOMENDAES E LIMITAES DO PRESENTE ESTUDO ........................ 144

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................................. 150

    APNDICES ................................................................................................................................ 158

    ANEXOS ..................................................................................................................................... 214

    NDICE DE TABELAS

    Tabela 1 - Divises do Negro de Dann (adaptado de Sharpley, 2009) ........................................ 36

    Tabela 2 - Hipteses explicativas da investigao ...................................................................... 66

    Tabela 3 - Caracterizao geral dos sujeitos do pr-teste .......................................................... 68

    Tabela 4 - Guio da entrevista com indicao das temticas e informao pretendida ............ 69

    Tabela 5 - Descrio geral dos sujeitos entrevistados ................................................................. 71

    Tabela 6 - Caracterizao dos sujeitos segundo a escolaridade ................................................. 72

    Tabela 7 - Caracterizao dos sujeitos segundo a idade ............................................................. 72

    Tabela 8 - Caracterizao dos sujeitos segundo o gnero .......................................................... 72

    Tabela 9 - Caracterizao dos sujeitos segundo a nacionalidade ............................................... 73

    Tabela 10 - Caracterizao dos sujeitos segundo as convices religiosas................................. 73

    Tabela 11 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos do gnero masculino ...................................... 77

    Tabela 12 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos do gnero feminino. ....................................... 80

    Tabela 13 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos que se consideram cristos ............................ 84

    Tabela 14 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos agnsticos/ ateus/ no cristos ..................... 87

    Tabela 15 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos de nacionalidade portuguesa ......................... 91

    Tabela 16 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos de nacionalidade espanhola ........................... 93

    Tabela 17 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos de outros pases europeus .............................. 96

    Tabela 18 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos de pases anglfonos ...................................... 98

    Tabela 19 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos latino-americanos ........................................ 101

    Tabela 20 - sinopse das entrevistas aos sujeitos com idades entre os 23 e os 48 anos ............ 104

    Tabela 21 - Sinopse das entrevistas aos sujeitos com idades entre os 49 e os 73 anos ............ 107

    Tabela 22 - Sinopse geral das entrevistas ................................................................................. 110

    Tabela 23 - Sinopse comparativa da varivel gnero ............................................................... 115

    Tabela 24 - Sinopse comparativa da varivel convices religiosas ......................................... 119

    Tabela 25 - Sinopse comparativa da varivel nacionalidade .................................................... 124

  • x

    Tabela 26 - Sinopse comparativa da varivel idade .................................................................. 131

    NDICE DE FIGURAS

    Figura 1 - Consumo do Turismo Negro numa perspectiva tanatolgica (adaptado de Stone,

    2009). .......................................................................................................................................... 28

    Figura 2 - Contnuo de Intensidade de Thanaturismo de Seaton (adaptado de Seaton, 1996). . 33

    Figura 3 - Espectro de tonalidades da Oferta de Turismo Negro de Stone (adaptado de Stone,

    2006) ........................................................................................................................................... 39

    Figura 4 - Matriz da procura e da oferta do Turismo Negro de Sharpley (adaptado de: Sharpley,

    2009) ........................................................................................................................................... 45

  • - 11 -

  • - 12 -

    INTRODUO

    Desde que o turismo comeou a ser alvo de interesse por parte da comunidade acadmica que

    se vm tentando encontrar padres comuns aos turistas, no sentido de identificar tendncias

    e comportamentos que permitam um melhor planeamento e uma maior compreenso da

    actividade turstica e dos que a praticam.

    medida que o estudo do Turismo se intensificou e novas perspectivas de anlise foram sendo

    nele includas, vrias tipologias de Turismo foram identificadas ou pelo menos propostas. Fala-

    se hoje em Turismo de Negcios, Turismo Rural e de Natureza, Turismo Comunitrio, Turismo

    Extremo, Turismo Pro-poor. Como lgico, estas categorizaes surgem do agrupamento de

    comportamentos e motivaes comuns a grupos de turistas, os quais, como seres humanos, s

    se podero comportar no reflexo da sociedade em que vivem.

    H tipos de Turismo que s recentemente comearam a ganhar popularidade entre os

    estudiosos da rea a nvel mundial. Nesta dissertao pretendemos analisar especificamente

    uma delas: o Turismo Negro.

    Esta uma rea de estudos ainda muito nova dentro do estudo acadmico do Turismo, e que

    atravessa actualmente um crescendo de popularidade junto dos acadmicos e dos turistas

    (Sharpley, 2009).

    O que , ento, o Turismo Negro? partida e apenas pela adjectivao podemos adivinhar:

    negro tem a ver com coisas fnebres, ttricas, escatolgicas e obscuras (Priberam Informtica,

    S.A., 2012). O Turismo Negro ter ento algo a ver com um interesse ou oferta de produtos

    de viajar para locais associados coisa

    aparentemente marginal e retida apenas por meia-dzia de atraces e grupos especficos da

    sociedade.

    E se dissssemos que, segundo a definio apresentada acima, vrias das atraces tursticas

    mais visitadas em todo o mundo podem constituir locais de Turismo Negro? Pensemos

    rapidamente em trs ou quatro destinos: Paris, Nova Iorque, Egipto, ndia. Algumas das

    atraces tursticas mais famosas de cada um desses destinos esto inegavelmente associadas

    a morte e sofrimento.

    Em Paris, a Torre Eiffel era em 2009 um dos locais mais populares para suicdios da Europa

    (Paris365Days.com, 2009), e tambm em Paris que se situa um dos cemitrios mais visitados

  • - 13 -

    do mundo o Cemitrio do Pre Lachaise (ver pgina 55 desta dissertao). No Egipto,

    atraces to populares como as pirmides ou o Vale dos Reis so, na realidade, tmulos ou

    compostas por eles; mesmo a arte exposta no Museu do Cairo em grande parte funerria,

    para no mencionar as mmias (Hawkins, s.d.). O Taj Mahal, na cidade indiana de Agra,

    vulgarmente considerado um local romntico e muito adequado para pedidos de casamento

    (Squidoo, LLC, 2012) no entanto trata-se do local de descanso final da muito amada esposa

    do X Jahan (Taj Mahal, 2012). E em Nova Iorque, um dos locais mais visitados pelos turistas

    o Ground Zero (NYCTourist.com, 2012), palco de um dos atentados mais mediatizados dos

    ltimos tempos, onde milhares de pessoas viram outras morrer em directo.

    No foi preciso recorrer a exemplos obscuros e pouco populares de atraces com uma ligao

    morte os exemplos dados so de destinos e atraces largamente visitados e conhecidos.

    E, tal como estes, podamos ter dado outros: a Grande Muralha da China, considerada o maior

    cemitrio do mundo (Rodriguez, 2011), o Coliseu de Roma, que acolhia espectculos de morte

    para entretenimento das massas, o campo de concentrao de Auschwitz-Birkenau.

    Tendo isto em conta, ficar mais fcil compreender que o Turismo Neg

    , sim, uma nova perspectiva que incide sobre a relao com a morte de

    variadas atraces e uma grande quantidade de visitantes.

    O objectivo inicial desta dissertao era o de fazer um estudo sobre o Turismo Negro numa

    cidade portuguesa, identificando o interesse dos turistas potenciais e o seu perfil.

    Seleccionmos ento a cidade do Porto pela sua imagem cosmopolita e, principalmente, pela

    relativa popularidade na cidade das visitas aos cemitrios Romnticos. Foi nesse contexto que

    procurmos entrevistar uma das responsveis e principais impulsionadores das visitas aos

    cemitrios Romnticos portuenses: a Eng. Arnaldina Riesenberger, Tcnica Superior do

    Departamento Municipal de Parques Urbanos e Higiene Pblica da Cmara Municipal do Porto.

    Esta entrevista teve um carcter exploratrio e foi composta de perguntas abertas. Segundo

    Quivy e Campenhoudt (1992:67), a utilidade das entrevistas exploratrias reside no facto de

    meno estudado, nos quais o investigador no

    De facto, a entrevista exploratria que fizemos Dra. Arnaldina Riesenberger veio ditar um

    novo rumo para a nossa investigao. Como se pode ler na transcrio da entrevista em anexo

    (Anexo 1), houve da parte da Dra. Arnaldina uma total disponibilidade em colaborar com a

    nossa investigao, fornecendo-nos toda a informao de que dispunha sobre o Turismo

  • - 14 -

    Cemiterial no Porto. Mas, ao mesmo tempo, verificmos que havia, no seu discurso, uma

    ausncia de referncias morte (a palavra foi mencionada apenas duas vezes em cerca de 40

    minutos de entrevista) que nos pareceu curiosa, uma vez que se estava a falar sobre

    cemitrios, e uma

    mesmos.

    Foi esta entrevista que causou uma mudana de rumo na investigao, que to bem se resume

    eu

    poder de motivao, recoberto por outros problemas mais essenciais que me levavam ao

    Centrmos a nossa investigao em torno de uma nova pergunta de partida: De que modo os

    visitantes de uma atraco de Turismo Negro a representam enquanto local ligado morte?

    Procurmos responder a essa pergunta atravs de uma reviso de literatura e de um estudo

    emprico.

    A reviso de literatura aborda, no primeiro captulo, a evoluo das atitudes perante a morte

    na ocidentalidade. Este captulo inicial aprofunda a atitude contempornea perante a morte,

    que paradoxal: temos a morte ausente, por um lado, pois ela remetida para locais e

    situaes marginais ao quotidiano, e por outro lado a morte presente, que nos chega atravs

    dos meios de comunicao e da cultura popular (Stone, 2009b). Ao mesmo tempo, fazemos

    uma abordagem aos principais mediadores e relaes entre os indivduos e a morte, com

    particular destaque para o papel do Turismo Negro enquanto um desses mediadores.

    O segundo captulo dedicado ao Turismo Negro. Este um conceito novo para a comunidade

    acadmica, o que faz com que haja ainda opinies e perspectivas de anlise muito dispersas,

    pelo que, neste captulo, fizemos uma recolha dessas diferentes opinies e perspectivas com o

    objectivo de oferecer um panorama da evoluo do conceito de Turismo Negro. Inclumos

    tambm neste captulo as principais propostas de categorizao do Turismo Negro, quer pelo

    lado da oferta como pelo da procura, alm da nica proposta de classificao encontrada que

    integra essas duas dimenses. tambm neste segundo captulo que, baseados na proposta

    de classificao do Turismo Negro de Stone (2006), apresentamos vrios exemplos de

    manifestaes de Turismo Negro no mundo e, sempre que possvel, tambm em Portugal.

    O terceiro captulo desta dissertao contm a explicao sobre a metodologia por ns

    utilizada. Em primeiro lugar clarificada a natureza do estudo exploratria, destinada a

  • - 15 -

    trazer mais luz sobre um fenmeno ainda pouco estudado. De seguida so explicitadas as

    hipteses da investigao, tanto as que surgiram da reviso de literatura e serviram como guia

    de toda a investigao emprica, como as hipteses explicativas que surgiram apenas no

    decorrer do estudo emprico. So depois apresentados os sujeitos que forneceram os dados

    para a nossa investigao, no sem antes se explicar o processo de seleco dos mesmos. O

    mtodo de recolha de dados usado para esta investigao foi a entrevista e abordado a

    seguir: so considerados os aspectos relevantes realizao de entrevistas e mencionado o

    local e o perodo de anlise. Seguidamente referimos a elaborao do instrumento usado para

    as entrevistas o guio e explicamos as fases por que passmos at chegarmos ao guio

    definitivo. A parte final do captulo sobre a metodologia dedicada tcnica de anlise de

    dados utilizada nesta dissertao: a anlise de contedo.

    O quarto captulo o que contm o estudo emprico propriamente dito. Na primeira parte

    deste captulo fazemos uma apresentao dos dados obtidos na investigao. Primeiramente

    so apresentados os dados especficos das diferentes variveis independentes em anlise:

    gnero, nacionalidade, idade, e convices religiosas e feita uma caracterizao geral, para

    depois passarmos a uma anlise comparativa dos dados, por varivel. Posteriormente a esta

    apresentao fazemos uma discusso dos resultados obtidos, procurando relacionar os dados

    do estudo emprico com a reviso de literatura que efectumos, reflectindo sobre a

    plausibilidade das nossas hipteses.

    O captulo final da dissertao contm as concluses da investigao, bem como as

    recomendaes que delas nos so permitidas retirar. Inclumos tambm neste captulo a

    meno s limitaes do presente estudo, e s recomendaes e sugestes que fazemos para

    estudos futuros.

  • - 16 -

    1. A MORTE, OS TURISTAS, E O TURISMO

    Neste captulo procuramos em primeiro lugar resumir a evoluo das atitudes perante a morte

    na sociedade ocidental, desde a Idade Mdia at ao Romantismo, a partir da obra Sobre a

    Histria da Morte no Ocidente desde a Idade Mdia, de Philippe Aris (1988). Este resumo

    servir de enquadramento atitude contempornea perante a morte, que iremos abordar a

    seguir. Em seguida analisamos os constructos sociais e cientficos usados para evocar o

    conceito de morte actual, concretamente o Turismo Negro, e quais so as relaes que se

    estabelecem aquando da utilizao dos diferentes mediadores sociais e cientficos.

    1.1. EVOLUO DAS ATITUDES PERANTE A MORTE: DA MORTE DOMESTICADA MORTE SEQUESTRADA

    At segunda Idade Mdia, ou seja, sensivelmente at ao sculo XII, a morte no era, falta

    de melhor expresso, nada de especial. Aris (1988) chama-lhe a morte domesticada.

    Nesta altura a morte era uma cerimnia pblica, organizada pelo moribundo que chefiava o

    protocolo, ajudado pelo padre e pelos familiares. O mesmo moribundo aguardava a morte

    jazendo doente no leito, tendo plena conscincia de que a sua morte se aproximava. A

    cerimnia a que o moribundo presidia era assistida por quem quisesse, fossem parentes,

    amigos, vizinhos, ou pessoas que simplesmente fossem a passar e se apercebessem de que

    algum estava a morrer em determinada casa (Aris, 1988). As crianas no eram, de modo

    algum, afastadas destes rituais, mas antes assistiam a eles como todos os outros.

    De facto, os ritos da morte eram aceites e cumpridos num cerimonial sem dramatismo, j que

    Na poca romana e pr-crist, os mortos eram afastados dos vivos, ou seja, os locais de

    enterramento situavam-se longe das cidades. Contudo, havia lugar homenagem, s

    sepulturas e aos rituais, para que os mortos no voltassem para junto dos vivos e seguissem o

    seu caminho.

    Na idade mdia, e at aos scs. XVI e XVII, o corpo era confiado igreja, que o conservaria em

    recinto sagrado (sepultura ad sanctos). O importante era que os ossos ficassem perto de um

    altar, o que seria garantia de que as almas dos defuntos seriam salvas. Depois, quando a rea

    de enterramento se expande e surgem os cemitrios, estes tornam-se locais pblicos. A se

    construam casas que desfrutavam de certos privilgios fiscais ou dominiais, e o cemitrio

    tornou-se local de encontro ou de reunio, com habitaes, lojas e mercadores, em que a vida

  • - 17 -

    e morte coabitavam lado a lado. Esta coabitao chegou a tal ponto que, em 1405, um conclio

    papal proibiu que no cemitrio se danasse, jogasse fosse o que fosse, e que actores,

    malabaristas, msicos e charlates exercessem a sua actividade suspeita. que, antes desta

    ravam superfcie dos cemitrios como o crnio

    de Hamlet, no impressionava mais os vivos do que a ideia da sua prpria morte. Estavam to

    A partir do sculo XII, comea a formar-se uma nova atitude perante a morte. Ela deixa de ser

    domesticada e passa a ser a morte de si prprio. Mas a mudana do paradigma da morte

    domesticada no aconteceu de repente. Tratou-se de um processo, com subtis alteraes

    introduzidas progressivamente que levaram a uma nova atitude perante a morte. No

    estamos, portanto, perante uma ruptura, mas sim perante uma evoluo:

    No se trata convm esclarecer desde o incio duma atitude nova que substituir a

    precedente que acabmos de analisar, mas de modificaes subtis que, pouco a pouco, vo

    conferir um sentido dramtico e pessoal familiaridade tradicional do homem e da morte.

    (Aris, 1988: 31)

    Esta familiaridade tradicional estava ligada ideia de um destino colectivo: a morte era apenas

    que acontece a partir dos scs. XI-XII o surgimento gradual de uma preocupao com a

    individualidade.

    A primeira das alteraes acima mencionadas tem a ver com a representao do Juzo Final.

    Nos primeiros sculos do cristianismo acreditava-se que o Juzo Final aconteceria no final dos

    tempos e s os membros da Igreja, que lhe tinham confiado o seu corpo, seriam salvos. Os

    membros da Igreja, colectivamente, repousariam em paz at

    nesta concepo, para uma responsabilidade individual, para uma contagem das boas e ms

    As coisas mudam a partir do sc. XII, comeando a dar-se mais importncia ao julgamento das

    aces do indivduo pesagem das almas, ao balano que feito entre as boas e as ms

    aces da vida dele. Este balano seria registado e carregado por cada alma at ao ltimo dia

    do mundo ou o final dos tempos, o que, segundo Aris (1988:33), significa uma recusa de ver a

    morte fsica como o fim do ser.

  • - 18 -

    Tambm muda a altura em que o Juzo Final aconteceria: j no no final dos tempos, mas no

    final da vida de cada um, o que constitui mais uma manifestao da passagem para uma viso

    mais individualista da morte. Segundo esta nova concepo, o Juzo Final teria lugar no quarto

    do moribundo, que como vimos anteriormente, aguarda a morte no leito. Este juzo assume

    um carcter de provao final, que o moribundo deve superar para alcanar a vida eterna. O

    moribundo continua a ter um papel central na cerimnia da sua prpria morte, mas este ritual

    tornou-se dramtico e revestiu-se de um carcter emocional.

    Outra alterao que levou mudana para a morte de si mesmo foi o aparecimento do

    cadver na arte e na literatura. A representao do cadver no era comum na arte e

    vulgarizao dos objectos macabros s acontece no sculo XVII, quando a morte passa a ser

    representada no como cadver em decomposio mas sim como um esqueleto, a morte

    secca.

    O horror da morte fsica e da decomposio torna-se um tema comum na poesia, que assume

    um novo sentido macabro, como sinal da runa do homem. Esta runa, por sua vez, assume

    sentia a permanente pre

    (Aris, 1988:38), e por isso tinha uma enorme paixo pela vida.

    Por estes motivos podemos, antes de analisar a terceira alterao, afirmar que as

    representaes da morte, do conhecimento autobiogrfico, e do amor pela vida se

    aproximaram, graas a uma noo de autoconscincia causada pela presena/ideia da morte.

    Esta terceira alterao diz respeito s sepulturas, mais concretamente sua individualizao.

    Na Roma antiga, toda a gente tinha uma sepultura, normalmente assinalada. Isso comea a

    desaparecer a partir do sculo V, e as sepulturas tornam-se annimas, para o que tambm

    contribui o advento da sepultura ad sanctos. Por volta do sculo XII, as inscries funerrias e

    as efgies reaparecem, inicialmente nas sepulturas de santos e pessoas ilustres. A

    personalizao crescente, espalhando-se dos tmulos dos poderosos para os das pessoas

    mais simples.

  • - 19 -

    Salienta-se tambm o papel dos testamentos, que nesta altura transmitiam as indicaes do

    defunto no s sobre o modo do seu enterro mas tambm sobre os servios religiosos a serem

    efectuados pela salvao da sua alma.

    anteriormente desconhecida entre a morte de cada um e a conscincia que possua da sua

    A partir do sculo XVIII, d-se uma nova mudana na atitude perante a morte, que passa a ser

    exaltada, dramatizada, lamentada e objecto de culto nos cemitrios. Mas esta nova morte j

    no a do prprio, e sim a morte do outro. Mais uma vez, esta mudana no foi repentina, e

    sim o resultado das alteraes que iam acontecendo na sociedade e na cultura.

    Uma dessas alteraes foi a associao entre Thanatos e Eros na arte e na literatura: a morte

    ganhou um sentido ertico. Esta associao assemelha a morte ao acto sexual no sentido em

    que ambos representariam uma ruptura com a racionalidade do quotidiano - ideia que

    inteiramente nova, j que at ento a morte (mesmo individualizada), era algo corriqueiro,

    familiar. No entanto, o erotismo no se manteve como elemento cru nesta atitude perante a

    morte: ele foi sublimado e transformado em Beleza. Surge a morte Romntica, tantas vezes

    referida na literatura do mesmo perodo.1

    Para alm disso, tambm a relao ente o moribundo e a famlia se altera. Por exemplo, os

    testamentos, que at ento constituam o meio onde o moribundo expressava os seus

    sentimentos e vontades, tornam-se, ou reduzem-

    fortu -se em parte laicizao da

    sociedade, e sobretudo evoluo das relaes familiares. O moribundo podia agora depositar

    na famlia parte do poder que reunia na conduo das suas cerimnias fnebres.

    Continua a esperar-se a morte no leito, na cerimnia ritualizada j referida, mas o

    comportamento dos assistentes altera-se. A ideia de separao do ente querido torna-se

    intolervel, mas ao mesmo tempo encarada com alguma complacncia. Nas palavras de Aris

    rezas e outras manifestaes de dor exagerada.

    1 Alguns exemplos: Fausto (Goethe, 1808), Escurido, O Enterro (Lord Byron, 1816 e 1819), Monte dos Vendavais (Emily Bront, 1847), Viagens na Minha Terra (Almeida Garrett, 1846), Amor de Perdio (Camilo Castelo Branco, 1862).

  • - 20 -

    O espectculo do luto assume nesta altura o seu expoente mximo. Tratava-se de um luto

    exagerado e nem sempre muito sentido, mas que ento era levado a cabo da forma mais

    ostentosa possvel: chorava-se, desmaiava-se, definhava-se e morria-se de tristeza com a

    morte do ente querido. A morte temida no era, por conseguinte, a prpria, e sim a do outro.

    Uma vez que a atitude vigente era a morte do outro, o enterramento ad sanctos j no podia

    ser tolerado, tampouco os cemitrios sobrelotados nos adros das igrejas, dos quais emanariam

    perigosos miasmas e que violariam a dignidade dos mortos. Estes deveriam ser venerados, a

    exem

    traduziu-se em prticas que hoje podem ser consideradas peculiares, tais como conservar os

    cadveres de entes queridos em lcool para serem vistos ou enterr-los em propriedade

    privada. Tudo isto feito com o intuito de permitir o acesso ao morto, que deve agora ser

    visitado regularmente. A prpria sepultura torna-se em propriedade perptua da famlia. Esta

    tudo faz para imortalizar o ente querido, que morreu, mas no foi esquecido e estar sempre

    presente na sua memria e nos seus coraes.

    O culto dos cemitrios e dos tmulos talvez uma das mais conhecidas e evidentes

    manifestaes desta nova atitude perante a morte. Se at segunda metade do sculo XVIII,

    mesmo co

    altura a situao muda radicalmente.

    Um aspecto curioso da visita aos cemitrios o seu carcter laico. Mesmo quem no

    frequentava a igreja ia ao cemitrio; mitigar a saudade do defunto no era necessariamente

    uma obrigao religiosa. O culto dos mortos , ento, fortemente enraizado na sociedade, e

    tanto privado como pblico. De facto, o culto pblico em particular extremamente

    importante. Os cemitrios assumem-se como um espelho da cidade e uma parte dela de pleno

    direito.

    O culto dos mortos foi rapidamente adoptado pelo catolicismo, embora seja de origem

    positivista (Aris, 1988). No obstante, mais forte nos pases do Sul da Europa mais

    influenciados pela religio catlica, como Espanha, Itlia, e Portugal. Em pases com maior

    influncia do protestantismo, como a Inglaterra e os EUA, este culto no foi to significativo.

  • - 21 -

    1.1.1. A MORTE NA CONTEMPORANEIDADE E O PARADOXO DA MORTE AUSENTE/ PRESENTE

    Vimos desde j desenvolverem-se tendncias que daro origem atitude contempornea

    perante a morte: a progressiva retirada de poder ao moribundo, a individualizao da morte, e

    uma certa secularizao, nomeadamente no culto aos mortos. Mas, e mais importante, a

    morte comea a tornar-se algo que perturba o normal decorrer da vida das pessoas.

    Aris (1988) chama-lhe a morte interdita. Para este autor, a atitude contempornea perante a

    morte pautada principalmente pela recusa em abord-la: a morte passou a ser um tabu na

    sociedade. Giddens (1991) chama-lhe a morte sequestrada: ela retirada da normal vivncia

    do ser humano e remetida para locais e circunstncias excepcionais. Stone (2009b) diz que se

    trata de um sequestro institucional, j que desses locais e circunstncias excepcionais fazem

    parte instituies especializadas como hospitais, morgues, funerrias, etc.

    Actualmente procura-se que a morte seja discreta, bem como os rituais subsequentes. O

    funeral quer-

    que o luto era uma instituio social obrigatria, ele mascarava muitas vezes uma resignao

    rpida: era comum que os vivos voltassem a casar rapidamente. Contudo, para os que

    sofriam verdadeiramente, este perodo de luto institudo era uma preciosa ajuda para que

    pudessem lidar com o seu desgosto com a ajuda de familiares e amigos. Nos nossos dias isto

    no acontece: o sofrimento deve ser mantido em privado, as suas manifestaes controladas,

    e talvez por isso o trauma seja muito mais profundo (Aris, 1988).

    luto masturbao, e cunha a ideia de que, se antes o sexo era o principal tabu na sociedade

    ocidental, a morte assume agora esse papel. Por exemplo, at ao sc. XX, as crianas

    participavam normalmente nos rituais da morte, mas agora quando morre um familiar ou

    mesmo um animal, elas so afastadas e -

    (Aris, 1988). No obstante, desde pequenos tm acesso a educao sobre a

    sexualidade.

    Aris (1988) acha curioso que um interdito estabelecido durante sculos, como era o do sexo

    obviamente ligado religiosidade seja to subitamente substitudo por este outro, o da

    morte, a qual tantas vezes at ento fora um espectculo pblico. A explicao avanada por

    este autor que a substituio brusca de um interdito para outro tem a ver com o imperativo

    da felicidade: a sociedade ocidental actual diz-nos que a vida tem que ser feliz, nada mais l

  • - 22 -

    cabe seno a felicidade, e s devemos contribuir para a felicidade dos outros. Ora, a morte,

    obviamente, vem perturbar esta felicidade.

    Como j referimos, a morte sequestrada , tambm, secularizada ou des-sacralizada (Aris,

    1988, Giddens, 1991). O processo de des-sacralizao da morte, segundo Giddens (1991),

    privou a morte de significado, ao mesmo tempo que privou o indivduo dos tradicionais

    mecanismos para lidar com ela. Obviamente que, como refere Aris (1988), isso no acontece

    com a mesma intensidade em todos os pases, nomeadamente nos pases sob forte influncia

    do catolicismo como o caso de Portugal.

    O que sucedeu na sociedade contempornea foi que no foram criadas novas verdades

    cientficas para substituir as religiosas. Segundo Giddens (1991), a cincia no conseguiu criar

    novos valores ou sequer significados para a morte, deixando o indivduo sozinho em confronto

    com ela a morte passou ento do domnio pblico para a esfera pessoal de cada um, e cada

    um tem agora que encontrar maneira de fazer sentido da sua vida. Embora a diversidade

    cultural que existe actualmente possa contribuir com maior nmero de recursos para que os

    indivduos criem os seus prprios mecanismos para lidar com a morte, isso significa mais uma

    vez que o indivduo forado a criar sozinho os seus prprios mecanismos para lidar com a

    morte e responder sua necessidade intrnseca de estabilidade e segurana, ou segurana

    ontolgica (Giddens, 1991).

    Para esse efeito, a sociedade vai recorrer a um processo de excluso de tudo aquilo que pode

    ameaar a continuidade do enquadramento social em que decorre a vida humana. Por outras

    palavras, o indivduo vai procurar afastar da sua vida quotidiana todos os elementos que lhe

    causem uma ansiedade primordial, ou, apoiando-nos em Kierkegaard (1944, citado por

    Giddens, 1991), angstia. Ora, a morte ser certamente um deles (Stone, 2009b).

    Contudo, esse processo de excluso nem sempre bem-sucedido, porque muito difcil

    excluir algo to poderoso como a morte o que ir dar origem ao contacto com a angstia,

    que por sua vez vai causar o que Giddens (1991) intitula

    tornando-se um verdadeiro problema. Este problema resolvido pela sociedade atravs de

    um compromisso, que consiste em negar a morte at certo ponto, focando-se ao invs na

    celebrao da vida, e da beleza (Stone, 2009b).

    No podemos deixar ainda de falar da medicalizao da morte. Esta agora um fenmeno

    mdico e no algo natural, que acontece a todos. De facto, a morte por vezes uma deciso

    mdica, agora que um corpo pode ser mantido em funcionamento muito tempo depois de as

  • - 23 -

    funes cerebrais terem parado a morte decomposta em vrios momentos, desde a perda

    de conscincia at ao desligar das mquinas (Aris, 1988). De qualquer modo, a morte vista

    como uma falha da medicina.

    No entanto, no se poder afirmar que a morte est completamente ausente da cultura

    popular (Durkin, 2003). De facto, a morte entra-nos em casa todos os dias atravs da televiso,

    imprensa, cinema, msica, literatura, etc. (vide ponto 1.2 desta dissertao). Basta, por

    exemplo, vermos a explorao feita pelos media (TV e imprensa) na cobertura de guerras,

    desastres, morte e funerais dos famosos para percebermos que a morte no est assim to

    ausente da nossa vida. Walter (1991:295, citado por Stone, 2009b:31) explica que esta morte

    que nos transmit

    verdadeira morte. Mas, em todo o caso, continua a ser morte.

    Estamos ento perante um paradoxo, que Stone (2009b) chama o paradoxo da morte

    ausente/presente. Morte ausente porque sequestrada, privada de significado pblico,

    medicalizada. Morte presente porque diariamente veiculada nos meios de comunicao e na

    cultura popular.

    1.2. OS VIVOS E OS MORTOS: MEDIADORES E RELAES

    nd moral terror are your friends. If

    (Coronel Walter E. Kurtz, Apocalypse Now)

    Como vimos anteriormente, a atitude contempornea perante a morte consiste em retir-la

    da vida quotidiana, escond-la e torn-la tabu. Contudo, mesmo numa tal sociedade h

    mecanismos e instituies que permitem um certo contacto entre vivos e mortos (Walter,

    2009): so os chamados mediadores da morte. Estes mediadores so na verdade nada mais

    que um filtro, que permite s pessoas no lidarem com a morte directamente.

    A famlia, por exemplo, constitui um destes filtros. na famlia que tradicionalmente se

    contam histrias e se partilham memrias dos antepassados que j morreram, fazendo assim

    uma ligao entre eles e o mundo dos vivos (Walter, 2009).

    Interessa aqui salientar que a morte no toda igual. Mais propriamente, a memria da morte

    no toda igual, e isso ter influncia no modo como nos relacionamos com ela. Walter (2009)

    faz um resumo dos vrios tipos de memria: ela pode ser de primeira gerao, ou seja, de

  • - 24 -

    acontecimentos e pessoas que presencimos e conhecemos; pode tambm ser de segunda

    gerao, a qual, como o nome indica, diz respeito s memrias dos nossos pais e educadores,

    que so a fonte primria de socializao. A memria de terceira gerao e mais distante j

    requer determinados instrumentos para entrar na nossa conscincia, como a genealogia e a

    Histria (Walter, 2009).

    Na sociedade actual, frequentemente constituda por disporas (Walter, 2009), a genealogia

    um importante mediador ente a vida e a morte. Muitas vezes os indivduos no se sentem

    perfeitamente enquadrados ou at sentem-se desenraizados no local para onde se deslocaram

    (ou foram deslocados), o que pode dar origem a um interesse crescente pela genealogia para

    o qual contribui a qualidade dos registos que existem actualmente. Walter (2009) faz uma

    distino entre a genealogia e a ascendncia: para este autor, a genealogia permite

    reconstituir a nossa linhagem familiar, mas permeada por um certo distanciamento. J a

    ascendncia significa o conhecimento dos antepassados que deram origem quilo que somos

    hoje enquanto pessoas.

    A Histria e a arqueologia so dois outros mediadores entre a vida e a morte, sendo que a

    morte nestes casos uma morte mais antiga, que no faz parte da memria da nossa gerao.

    O registo do passado amplamente acessvel que a Histria permite que o cidado annimo

    reveja o passado com desprendimento e sem estabelecer relaes de familiaridade; esse

    desprendimento acontece tambm na arqueologia, que analisa e reconstri o passado atravs

    dos vestgios que dele permanecem vestgios esses que pertencem Humanidade e no a

    nenhum grupo em particular, ainda que comprovadamente descenda dos que deixaram esses

    vestgios2.

    A religio outra das instituies que tradicionalmente proporcionava algum tipo de

    mediao entre os vivos e os mortos, j que cada religio tem os seus rituais e crenas

    especficos que permitem ao indivduo lidar com a morte. Contudo, como j vimos

    anteriormente, a secularizao da sociedade levou a que o papel da religio como mediadora

    fosse absorvido em grande parte pela medicina (Aris, 1988, e Walter, 2008), e pelos mass

    formao e

    2009:43). Os prprios cemitrios e sepulturas constituem um outro mediador, ao serem locais

    2 Talvez o caso mais conhecido seja a luta do estado Egpcio, encabeada pelo arquelogo Zahi Hawass, pela devoluo dos artefactos e restos mortais da antiga civilizao egpcia que esto espalhados pelo mundo.

  • - 25 -

    em que o mundo dos vivos e o dos mortos se confundem (Walter, 2009) - ainda que estejam

    despojados de muita da importncia que j lhes foi atribuda (Aris, 1988).

    Tambm j falmos anteriormente sobre a importncia dos testamentos, os quais constituem

    um meio de comunicao entre os mortos e os vivos, talvez o ltimo momento em que os

    desejos dos mortos so ouvidos (Aris, 1988).

    Se estes mediadores so de certa forma bvios, h outros em que no se pensa num primeiro

    momento. Mas, para Walter (2009), as fotografias, a msica, e a literatura so tambm

    instituies que medeiam o contacto entre vivos e mortos. Permitimo-nos acrescentar a esta

    lista a televiso, a imprensa e o cinema, que, para Durkin (2003), constituem tambm meios

    atravs dos quais nos possvel contactar com a morte.

    As fotografias so um meio que permite registar momentos e pessoas do passado, permitindo-

    nos rev-los, mas ao mesmo tempo lembrando-nos que ns, tambm, morreremos um dia -

    memento mori3 (Walter, 2009).

    Segundo Walter (2009), a msica um mediador privilegiado e amplamente difundido, j que

    a morte um tema recorrente e at tradicional em vrios estilos musicais, como a pera e a

    msica clssica. Tambm os modernos hip-hop e rock contm uma abundncia de referncias

    morte, quer seja atravs de letras violentas como as de Snoop Dogg, Eminem, Rammstein

    (entre muitos outros), ou mesmo do nome das bandas: Pagan Death, Et Moriemur, Anthrax,

    Megadeath... (Durkin, 2003). Mesmo o pop no imune temtica tanatolgica. Damos o

    exemplo da artista Lana del Rey, que recentemente alcanou sucesso internacional com um

    esta ltima fala da dificuldade em superar a morte de um ser amado.

    A morte e o sofrimento tm tambm sido temas amplamente tratados na Literatura (Durkin,

    2003 e Walter, 2009), por exemplo por autores clssicos como Shakespeare (exs.: Hamlet,

    Romeu e Julieta) e Victor Hugo (exs.: Os Miserveis), e tambm por autores contemporneos

    premiados como Jos Saramago (As Intermitncias da Morte). Mas a temtica tanatolgica

    3 a-- -

    fotografias tiradas post-mortem, hbito comum no sculo XIX em alguns pases. O corpo era muitas vezes posicionado de forma a simular que estava vivo, com auxlio de suportes e arames. Crianas de vrias idades, com ou sem os pais, so tambm viso comum nestas fotografias, que muitas vezes eram as nicas que a pessoa tirava em toda a sua vida (ou morte). Para mais informaes sobre este

    http://mourningphotography.com/, onde para alm de informao mais detalhada se podem

  • - 26 -

    est presente tambm na literatura menos elitista. De facto, a lista de best-sellers em vrias

    cadeias de lojas inclui livros cuja temtica assenta em grande parte na morte e no sofrimento

    como Os homens que odeiam as mulheres, de Stieg Larsson (2008), O ltimo Segredo, de Jos

    Rodrigues dos Santos (2011), e Raposas Inocentes de Torey Hayden (2012) (Fnac, 2012, e

    Grupo Porto Editora, 2012).

    A televiso outro dos mediadores da morte. Se pensarmos em algumas das sries de TV com

    mais sucesso internacional nos ltimos anos, verificamos que muitas delas tm um tema

    tanatolgico (Durkin, 2003): CSI, Servio de Urgncia (E.R.), Mentes Criminosas, Dr. House,

    Spartacus, The Walking Dead...

    Para alm disso, as estaes de televiso esforam-se por transmitir com o mximo de

    pormenor informao sobre a morte dos famosos e dos annimos que morreram em situaes

    peculiares, quer tenham sido crimes, acidentes ou desastres naturais. Veja-se por exemplo os

    casos recentes das mortes de Whitney Houston. Amy Winehouse, Anglico Vieira, mas

    tambm de Khaddaffi, Saddam Hussein, Osama bin Laden, que foram alvo de ampla cobertura

    noticiosa tanto por parte da televiso como da imprensa, a qual tambm um mediador da

    morte (Durkin, 2003).

    H, contudo, uma diferena entre as notcias sobre morte produzidas pela televiso e pela

    imprensa. Segundo Durkin (2003), a representao da morte na imprensa tende a ser menos

    explcita e at a no conter referncias explcitas morte, recorrendo-se ao invs ao uso de

    eufemismos. A excepo a esta regra sero os tablides e publicaes sensacionalistas (Durkin,

    2003).

    Outro dos mediadores da morte apontados por Durkin (2003) o cinema, que com as mais

    recentes e avanadas tcnicas e efeitos especiais mostra a morte com maior realismo. Mais

    que isso, Durkin (2003) afirma que os temas tanatolgicos ou mrbidos fazem parte da

    tradio do cinema, no s em filmes de guerra e de terror como mesmo em comdias.

    Em resumo, e aproveitando uma frase de Walter (2009:43), as instituies mediadoras entre

    mesmo autor afirma que sero os trs ltimos que do origem s duas principais instituies

    mediadoras na nossa sociedade: os mass media e o Turismo. Para Walter (2009) estes esto

    consultar vrias galerias destas imagens.

  • - 27 -

    intimamente relacionados: ambos constituem um meio de divulgao e interpretao de

    morte e sofrimento para milhares de pessoas. Em sculos passados saa-se em famlia para

    assistir a execues pblicas, agora elas so transmitidas na TV ou Internet para todo o

    mundo4; agora podemos com relativa facilidade visitar os locais da morte e sofrimento de que

    tommos conhecimento pelos media.

    Segundo Giddens (1991), a maneira de se adquirir segurana ontolgica consiste no recurso a

    instituies e experincias que vo intermediar o contacto com o que poder ameaar essa

    segurana, como por exemplo a morte e o sofrimento. Mas nem todos os destinos, atraces e

    outras manifestaes tursticas podem cumprir este papel. Ao conjunto dos locais, atraces e

    exposies relacionados com morte e sofrimento e prtica de os visitar chama-se Turismo

    Negro (Sharpley, 2009, Stone, 2009b, Lennon & Foley, 2000).

    O Turismo Negro permite aos indivduos darem azo sua curiosidade e fascnio por objectos

    tanatolgicos, num ambiente socialmente aceite e por vezes mesmo sancionado, constituindo

    uma oportunidade para a elaborao das prprias construes de mortalidade, e tambm para

    a contemplao da condio humana (Stone, 2009b).

    O modelo adaptado de Stone (2009b) figura 1 na pgina seguinte- procura esquematizar o

    modo como o Turismo Negro pode ajudar o indivduo a lidar com a mortalidade.

    Partindo da atitude contempornea perante a morte e do paradoxo da morte ausente/

    presente, o modelo evidencia a formao da insegurana ontolgica e o surgimento da

    necessidade de contactar com a morte de alguma forma. O Turismo Negro surge ento como

    um

    (Stone &

    Sharpley, 2008:585), promovendo desta forma a criao de alguma segurana ontolgica.

    Stone (2011:28) identificou quatro motivos que explicam o papel do Turismo Negro enquanto

    mediador da morte na sociedade contempornea. O primeiro o facto de o Turismo Negro

    representar e comunicar a morte. O segundo motivo apontado pelo autor o facto de o

    depois usar quando precisar de reflectir sobre ela. O facto de os locais de turismo negro

    constiturem locais onde a mortalidade contempornea reconfigurada e revitalizada,

    4 Salientamos a execuo de Saddam Hussein, que foi filmada clandestinamente por guardas. O vdeo foi depois amplamente divulgado, tanto na Internet - onde chegou a ser um dos vdeos mais vistos (Celso, 2007) - como por estaes de televiso em vrios pases, facto que Portugal e a Unio

  • - 28 -

    mediando assim a complexidade da morte o terceiro dos motivos apontados pelo autor para

    explicar porque que o Turismo Negro um mediador entre o indivduo e a morte. O ltimo

    motivo mencionado por Stone (2011) o facto de o Turismo Negro mediar o que

    aparentemente macabro ao exibir simbolicamente a morte.

    Figura 1 - Consumo do Turismo Negro numa perspectiva tanatolgica (adaptado de Stone, 2009b).

    O que o Turismo Negro e todas as outras instituies mediadoras da morte tm em comum o

    facto de permitirem ou at potenciarem que os vivos estabeleam algum tipo de relao com

    os mortos. Walter (2009) procurou identificar e definir essas relaes, que, segundo ele, sero

    as seguintes: informao, intercesso, orientao, cuidado, recordao, educao,

    entretenimento, memento mori e assombrao.

    Os estudos que actualmente se podem fazer aos restos mortais e outros vestgios que os

    rodeiam permitem obter informao detalhada sobre o modo como aquelas pessoas viveram

    Europeia criticaram (Lusa Agncia de Notcias de Portugal, S.A., 2007)

  • - 29 -

    e morreram. Essa informao depois facultada ao pblico e pode tambm ser alvo de

    estudos posteriores, nos campos da medicina, sociologia, cincia, etc. Walter (2009) refere

    ainda a possibilidade de existirem conflitos entre investigadores (mdicos-legistas/

    patologistas nos casos de morte recente, arquelogos e antroplogos nos casos de morte mais

    antiga) e os parentes em luto ou descendentes do povo a que pertencem aqueles restos

    mortais.

    A intercesso a relao tradicionalmente estabelecida nos templos religiosos, especialmente

    os que esto ligados ao catolicismo. A intercesso consiste no pedido feito aos mortos,

    normalmente santos ou familiares, para que levem as oraes e pedidos dos vivos e

    intercedam por eles junto da divindade. Outra relao que muitas vezes estabelecida nos

    templos e outros santurios a orientao, mais propriamente o pedido que os vivos fazem

    aos mortos para que os ajudem e guiem na sua vida, nas suas escolhas. Segundo Walter

    omunicao entre os mortos e os vivos

    exemplo, em sesses espritas, leituras de testamentos, entre outros locais.

    A relao de cuidado com os mortos mais fortemente estabelecida nos pases orientais como

    por exemplo o Japo, onde os familiares conversam com os seus antepassados em santurios

    domsticos, embora tambm exista na sociedade ocidental (Walter, 2009). Apesar da

    secularizao da sociedade que j temos vindo a assinalar, o cuidar dos mortos na sociedade

    ocidental feito por exemplo atravs da manuteno e limpeza das campas nos cemitrios

    (Walter, 2009).

    A recordao outra relao que os vivos podem estabelecer com os mortos. Esta relao

    normalmente estabelecida em memoriais, por exemplo s vtimas de desastres, ao soldado

    desconhecido, etc. Importa estabelecer que recordao diferente de memria (King, 1998,

    ou

    (Walter, 2009:47).

    A educao outro dos modos de relacionamento com os mortos, quer seja atravs da leitura

    de livros de Histria, do uso de cadveres por estudantes de medicina e ouras cincias, ou de

    visitas de estudo a locais ou exposies histricos (Walter, 2009). H mesmo exposies, como

    outras atraces, que potenciam no s a educao mas tambm o entretenimento na relao

  • - 30 -

    com os mortos. Walter (2009) faz um paralelismo entre estas exposies e atraces e as

    execues pblicas, dizendo que ambas servem o duplo propsito de educar e entreter as

    massas.

    O contacto com os mortos pode tambm servir para lembrar-nos da nossa prpria mortalidade

    memento mori. Contudo, so poucos os locais e exposies relacionados com a morte e o

    sofrimento que aceitam este papel (Walter, 2009), preferindo assumir uma funo educativa

    ou de entretenimento.

    O ltimo tipo de relao com os mortos identificado por Walter (2009) a assombrao. Esta

    est relacionada com a dificuldade da sociedade em integrar mortes que considera sem

    sentido, como as resultantes de atentados, desastres, crimes especialmente hediondos,

    genocdio. Estas mortes so depois alvo de extensa cobertura por parte dos media. No

    momento em que escrevemos este captulo, a comunicao social portuguesa esfora-se

    trazer luz novos detalhes do caso do homem de Beja que ter morto a famlia e os animais

    domsticos e que depois se suicidou. Mas estes casos de extensa cobertura meditica de

    mortes extraordinrias vm a ser tambm objecto de Turismo Negro veja-se o caso do

    Ground Zero, que mesmo antes de ter um memorial s vtimas era j um dos maiores locais de

    Turismo Negro a nvel mundial (Walter, 2009).

  • - 31 -

  • - 32 -

    2. TURISMO NEGRO

    Neste captulo iremos enquadrar os principais discursos feitos sobre a temtica do Turismo

    Negro desde que este se tornou alvo de ateno da comunidade acadmica. Sero abordadas

    as principais perspectivas de anlise e identificados os factores que contribuem para a

    complexidade de definio do conceito. De seguida, apresentamos propostas de categorizao

    do Turismo Negro de vrios autores, tanto do ponto de vista da oferta como da procura e das

    suas motivaes.

    Por fim, apresentamos vrios exemplos de manifestaes de Turismo Negro pelo mundo,

    numa tentativa de ilustrar a dificuldade de definio e categorizao do conceito.

    2.1. ANLISE CONCEPTUAL: EVOLUO E PROBLEMTICA DA DEFINIO DO TURISMO NEGRO

    O Turismo Negro uma rea de estudos bastante recente no seio da comunidade acadmica.

    Ter sido s na dcada de 90 do sculo passado que o turismo relacionado com temas

    mrbidos comeou a despertar o interesse dos investigadores (Sharpley, 2009). Embora a

    literatura seja ainda muito dispersa, possvel encontrar um nmero considervel de autores

    que, em algum ponto da sua actividade, abordaram o assunto do turismo ligado a morte e

    sofrimento, ainda que com diferentes denominaes.

    Um

    locais onde celebridades ou grande nmero de pessoas encontraram mortes sbitas e

    viglia anual pela morte de Elvis Presley em Graceland ou a comemorao do aniversrio da

    morte de John F. Kennedy em Dallas como espectculos ps-modernos, cuja popularidade est

    fortemente dependente da divulgao feita pelos meios de comunicao, e que so no fundo

    reconstrues repetidas do que de facto ter acontecido. Em oposio esto os locais

    nostlgicos, como cemitrios de relevncia local e nacional. Rojek (1997:23) faz ainda uma

    Turismo Mrbido a denominao dada por Blom (2000) ao turismo relacionado com a morte.

  • - 33 -

    turi (Blom, 2000).

    (contemplao da morte) o principal interesse dos turistas. Para Seaton (1996), este

    interesse ter as suas razes na Idade Mdia, embora se tenha vindo a intensificar desde o

    Romantismo.

    A definio de Thanaturismo dada pelo autor :

    encontros reais ou simblicos com a morte, particular mas no exclusivamente com a morte

    violenta, que podem ser activados em grau varivel pelas caractersticas especficas das

    Desta definio podemos retirar duas ideias principais. Uma delas a de que o que define o

    Thanaturismo so os motivos do turista e no as caractersticas das atraces, sendo ento o

    Thanaturismo um fenmeno predominantemente comportamental. A outra ideia a de que o

    Thanaturismo no um conceito absoluto, mas antes contm um contnuo de intensidade

    (vide figura 2). Este contnuo assenta em dois valores: a medida em que o interesse na morte

    relativo pessoa ou escala da morte, e se o interesse na morte a nica motivao da visita

    ou uma entre vrias (Seaton, 1996).

    Figura 2 - Contnuo de Intensidade de Thanaturismo de Seaton (adaptado de Seaton, 1996).

    Elemento de Thanaturismo Fraco Elemento de Thanaturismo Forte

    O interesse na morte relativo pessoa e co-existe com outras motivaes.

    O interesse na morte geral e constitui a principal motivao.

    Os mortos so conhecidos e estimados pelo visitante.

    O fascnio pela morte no est dependente da pessoa ou pessoas envolvidas.

    Por exemplo, visitas a memoriais de guerra que evoquem a morte de um parente.

    Por exemplo, visitas a cemitrios, catacumbas, cenrios de catstrofes.

    O que todos estes conceitos e definies tm em comum o facto de, de alguma forma,

    associarem a actividade e os locais tursticos com a morte e o sofrimento. Lennon e Foley

  • - 34 -

    aludir a prticas aparentemente perturbadoras bem como a produtos e experincias

    mrbidos, que constituiro a base deste tipo de turismo.

    Para Foley & Lennon (1996:199)

    consumo (pelos visitantes) de morte e locais de c

    - (Lennon &

    Foley, 2000:11), e apresentam trs motivos para essa sua convico.

    Um desses motivos que o interesse do pblico nas mortes ou catstrofes est dependente de

    uma compresso espao-temporal, ou seja, directamente relacionado com a capacidade dos

    media em as difundir.

    Outro dos motivos apontados pelos autores que, tal como o conceito de ps-modernidade, a

    maioria dos locais de Turismo Negro pe em causa a racionalidade, ordem e progresso

    inerentes modernidade.

    Finalmente, Lennon & Foley (2000) defendem o argumento de que h uma crescente perda de

    definio da fronteira entre a mensagem (poltica e/ou educacional) que se quer passar e a

    comercializao dos locais de Turismo Negro.

    Assim sendo, para estes autores necessrio que os eventos que do origem s atraces

    possam ser validados, isto , que haja algum que os tenha testemunhado e que possa atestar

    a sua veracidade, e que elas induzam no visitante um sentimento de ansiedade em relao

    modernidade (Lennon & Foley, 2000). Por estes motivos, Lennon e Foley (2000:23) encaram o

    Turismo Negro como um fenmeno recente e principalmente ocidental, baseado em visitas

    endipidade5, itinerrios de companhias tursticas, ou [d]os meramente curiosos que

    Vemos que, ao contrrio do que defende Seaton (1996), que encara o Thanaturismo como

    partindo da motivao dos turistas, para estes autores (Lennon & Foley, 2000) essa motivao

    no importante, mas sim o local que visitam e a reaco que ele provoca nos visitantes.

    A ideia defendida por Lennon & Foley (2000), e em parte tambm por Rojek (1997) que

    enquadra o Turismo Negro num horizonte temporal recente bastante contestada na

    literatura. Por exemplo Beech (2000, citado por Sharpley, 2009) afirma que os edifcios

    5 (Priberam

  • - 35 -

    exemplos iniciais de Turismo Negro podem ser encontrados no patronato dos jogos

    ao scul

    por Sharpley, 2009:5) relata que as visitas a morgues faziam normalmente parte das visitas

    cidade de Paris no sculo XIX.

    Sharpley (2009:4) sintetiza do seguinte modo a viso dos autores que defendem a antiguidade

    da prtica de Turismo Negro:

    propositadamente ou no

    para locais, atraces ou eventos que esto ligados de uma forma ou de outra com morte,

    sofrime

    Actualmente, uma das definies de Turismo Negro mais utilizadas pelos acadmicos de

    com morte, sofrimento, e o aparentemente macabr

    visitam, intencionalmente ou como parte de um itinerrio recreativo mais amplo, a diversa

    gama de locais, atraces e exposies que oferecem uma (re/a)presentao de morte e

    Nesta dissertao, optou-se pela elaborao de uma definio operacional de Turismo Negro,

    a qual servir de base para o estudo emprico que compe a segunda parte do trabalho. Assim

    sendo, no mbito desta dissertao, entendemos o Turismo Negro como a visita a locais cuja

    ligao com a morte concreta e identificvel, e que, acidental ou intencionalmente, se

    tornaram alvo de actividade turstica.

    2.2. PROPOSTAS DE CATEGORIZAO

    Estabelecemos j que h perspectivas discordantes no estudo acadmico do Turismo Negro.

    Stone (2006:148) faz um resumo dos pontos de discrdia entre os estudiosos:

    emergem de forma imediata e espontnea, e as visitas programadas a atraces e

    exposies que retratam ocorrncias mais ou menos distantes na Histria.

    Informtica, S.A., 2012)

  • - 36 -

    A distino entre locais de Turismo Negro intencionalmente construdos como tal e

    outros locais que se tornaram alvo de ateno do Turismo Negro por acidente ou de

    forma no propositada.

    A medida em que o motivo dominante da visita a locais de Turismo Negro o interesse

    em morte e sofrimento, e a maneira como a oferta corresponde a este interesse.

    As razes que esto na origem do modo como as experincias e locais de Turismo

    Negro so produzidos e fornecidos.

    So estas variveis que, na opinio de Stone (2006), contribuem para a complexidade do

    conceito de Turismo Negro. No ser ento difcil compreender que tambm as tentativas de

    categorizao do Turismo Negro sejam variadas, j que elas reflectem divergncias tericas e

    conceptuais.

    Assim sendo, procurmos agrupar as propostas de categorizao do Turismo Negro consoante

    a perspectiva de categorizao: oferta, procura, e uma proposta integrada.

    2.2.1. SEGUNDO A OFERTA

    Dann (1998) procurou elaborar um resumo das formas de Turismo Negro, enquadrando-as em

    cinco categorias principais (vide tabela 1).

    Tabela 1 - Divises do Negro de Dann (adaptado de Sharpley, 2009)

    Divises do Negro

    reas Arriscadas Destinos perigosos, presentemente ou no passado

    Cidades de Horror

    Destinos de Desgraa

    Habitaes de Horror Edifcios associados com morte e horror, tanto reais como representados

    Masmorras da Morte

    Hotis Horrendos

    Campos de Fatalidade reas/terrenos que comemoram

    6 morte, medo,

    fama ou infmia

    Campos de batalha Cruis

    Holocausto Horrvel

    Cemitrios de Celebridades

    Tours de Tormento Visitas a ou circuitos de atraces associadas a morte, assassnio e caos

    Caos e Assassnio

    os Famosos pela Fatalidade

    Thanatos Temtico Coleces e museus cujo tema morte e sofrimento

    Museus Mrbidos

    Monumentos Moralidade

    A primeira categoria apontada por Dann (1998) a das reas Arriscadas, ou seja, os locais com

    uma associao ao perigo actual ou passado. Estas reas subdividem-se em Cidades de Horror,

    6

    homenagear a memria de uma pessoa ou acontecimento. No entanto, ao ser muitas vezes usada neste

  • - 37 -

    que so as localidades onde ocorreram morte e sofrimento em circunstncias notveis, e

    Destinos de desgraa, que so aqueles onde o turista corre perigo.

    A segunda categoria identificada pelo autor a das Habitaes de Horror, que podem por sua

    vez ser Masmorras da Morte ou Hotis Horrendos. O que estes edifcios tm em comum o

    facto de estarem associados com a morte, real ou representada (Dann, 1998).

    A terceira das cinco Divises do Negro de Dann (1998) chama-se Campos de Fatalidade, e

    engloba as subcategorias Campos de batalha Cruis, Holocausto Horrvel e Cemitrios de

    Celebridades. Em resumo, esta categoria diz respeito aos campos de batalha e outros locais

    que comemoram a morte (famosa ou infame) e o medo (Dann, 1998).

    A quarta categoria identificada pelo autor intitula-se Tours de Tormento, ou seja, a visita a

    atraces associadas a Caos e Assassnio, por um lado, e aos Famosos pela Fatalidade, que so

    aqueles que se tornaram famosos devido s circunstncias da sua morte (Dann, 1998).

    Por fim, Dann (1998) identifica o Thanatos Temtico como a quinta diviso do Negro. Esta

    categoria diz respeito aos museus ou exposies cujo tema principal seja morte e sofrimento e

    subdivide-se em Museus Mrbidos e Monumentos Moralidade.

    No obstante a mestria de Dann (1998) no uso das palavras7, somos da opinio que estas

    Divises do Negro deixam de fora um importante local alvo de visitas tursticas e onde

    possvel contactar com a morte e mortalidade em geral: os cemitrios. Apenas so

    mencionados os cemitrios dos famosos.

    O Turismo Cemiterial apontado como uma das formas de Turismo Negro por alguns autores,

    como Scott (2010), e tal como esta, tm vindo a ser identificadas outras formas de Turismo

    Negro ligadas tipologia de atraco visitada, maioritariamente em estudos de caso. Aps

    uma reviso de literatura conseguimos identificar, para alm do Turismo Cemiterial, vrias

    formas de Turismo cujas atraces esto relacionadas com a morte de alguma forma e que,

    por isso, consideramos poderem ser includas no Turismo Negro: Turismo de Guerra (Fraga,

    2002), Turismo de Campos de Batalha (Lloyd, 1998), Turismo de Escravatura (Dann & Seaton,

    2001, citados por Stone, 2006), Turismo Prisional (Strange & Kempa, 2003), Turismo de

    Holocausto (Ashworth, 1996, citado por Stone, 2006), Turismo de Mgoa (Trotta, 2006). Stone

    contexto, pelo que chamamos a ateno para o seu verdadeiro significado. 7 Tentmos que fosse notrio na traduo para portugus o jogo de palavras que o autor utilizou para

    nomear as categorias, quase todas aliteradas. Para a verso original do quadro, consulte-se o Anexo 1 desta dissertao.

  • - 38 -

    (2006) refere ainda que o Turismo Negro tambm se faz em locais de desastres (como o

    Ground Zero em Nova Iorque e como Nova Orlees depois do furaco Katrina), opinio

    partilhada por Trotta (2006), que sugere o termo Turismo de Desastres para qualificar este tipo

    de Turismo.

    Stone (2006) desenvolveu um espectro de intensidades da oferta de Turismo Negro, com base

    no qual dividiu a oferta em sete categorias de produtos.

    A ideia de diferentes intensidades da oferta de produtos de Turismo Negro no foi criada por

    Stone j aqui mencionmos o contnuo de intensidades de Seaton (cf. pgina 33 desta

    dissertao). Miles (2002, citado por Stone, 2006) entende que h diferenas temporais e

    espaciais entre os locais de Turismo Negro que so reflectidas na distino entre Turismo

    Negro mais claro e Turismo Negro mais escuro. O autor (ibidem) ilustra esta distino com os

    exemplos do Museu do Memorial do Holocausto em Washington e do campo de concentrao

    de Auschwitz-Birkenau: para Miles, o Turismo Negro feito em Auschwitz-Birkenau mais

    escuro que o que se faz no Museu, j que no primeiro a morte real e o segundo apenas est

    associado a ela. O mesmo autor (Miles, 2002, citado por Stone, 2006:152) afirma ainda que as

    situaes de morte e sofrimento que fazem parte da memria de primeira gerao ou que

    podem ser validados por testemunhas vivas criam maior empatia e podem ser considerados

    produtos de Turismo Negro mais escuro.

    Foi ento a partir desta ideia de intensidades que Stone (2006) elaborou o seu Espectro de

    Tonalidades da Oferta de Turismo Negro (vide figura 3 na pgina seguinte).

    Nos extremos deste espectro temos o Turismo Negro mais escuro e o Turismo Negro mais

    claro. O primeiro diz respeito a locais onde a morte e o sofrimento aconteceram mesmo, cuja

    principal vocao a educao e que tm como objectivo o rigor histrico. Estes locais no

    foram criados intencionalmente para serem atraces tursticas, pelo que a infra-estrutura

    turstica no o aspecto mais trabalhado. O Turismo Negro mais claro feito em locais que

    apenas esto associados morte e ao sofrimento, os quais foram criados com a inteno de

    constiturem atraces tursticas, e que por isso possuem melhores infra-estruturas tursticas.

    A vocao destes locais entreter, pelo que se focam em transmitir uma morte pensada para

    instigar sentimentos de hereditariedade e de pertena a uma herana romantizada e

    mercantilizada.

  • - 39 -

    Figura 3 - Espectro de tonalidades da Oferta de Turismo Negro de Stone (adaptado de Stone,

    2006)

    tambm a partir deste espectro que Stone (2006) identifica sete categorias de produtos de

    Turismo Negro. Partindo da categoria mais escura at mais clara, temos: Campos de

    Genocdio Negros, Locais de Conflito Negros, Santurios Negros, Locais de Descanso Negros,

    Masmorras Negras, Exposies Negras e Fbricas de Diverso Negras.

    poucos os locais com estas caractersticas que so alvo de actividade turstica; ainda assim

    alguns existem com o objectivo de educarem o pblico e evocarem a memria do

    acontecimento.

  • - 40 -

    Por serem, de facto, locais de morte e sofrimento em circunstncias horrveis, os Campos de

    Genocdio Negros constituem os locais de Turismo Negro mais facilmente reconhecveis como

    tal para o pblico em geral (Stone, 2006).

    explorao turstica destes locais est em crescimento; no obstante, continuam a constituir

    produtos cuja oferta no foi propositada e sim um aproveitamento posterior de algo pr-

    existente mas sem vocao para o Turismo. Stone (2006) refere tambm que os Locais de

    Conflito Negro continuam a ter como principal objectivo a educao e evocao com nfase no

    rigor histrico.

    muitas vezes uma orientao mais romantizada e divertida, e que por este motivo podem

    2006:156).

    006:155), sendo normalmente construes formais ou

    informais perto de locais onde a morte e o sofrimento esto a decorrer ou decorreram

    recentemente. nestes locais que as pessoas vo depositar flores e lamentar a morte de

    pessoas com as quais no tinham ligao directa (Stone, 2006).

    Os Santurios Negros despertam muitas vezes o interesse poltico e tm normalmente uma

    grande cobertura meditica, mas a sua popularidade junto do pblico termina ou decresce

    fortemente quando a ateno dos media desviada para outro local (Stone, 2006). O autor

    (ibidem) salienta o facto de estes locais servirem muitas vezes a curiosidade mrbida dos

    turistas, que apenas pretendem visitar o local sem darem grandes mostras de respeito pelo

    que l sucedeu.

    A categoria de Locais de Descanso Negro diz respeito a cemitrios e sepulturas. Segundo Stone

    (2006:155), os cemitrios esto a ser alvo de explorao turstica crescente, servindo esta por

    vezes de alavanca para o desenvolvimento ou reabilitao de determinada rea urbana.

    Apesar da crescente melhoria das infra-estruturas tursticas, os Locais de Descanso Negros

    continuam a estar focados no rigor histrico, comemorao e conservao, ocupando por isso

    uma posio central no espectro (Stone, 2006). O autor adverte, contudo, para a tendncia de

    deslocao de alguns produtos desta categoria para o lado mais claro do espectro, j que

  • - 41 -

    enfatizam as componentes de entretenimento e comercializao, com pouca relevncia dada

    componente de evocao e ao respeito pelos falecidos.

    As mas

    funcionamento (Stone, 2006:154).

    Esta categoria apresenta caractersticas do lado mais claro e do lado mais escuro do espectro:

    os locais tm alto nvel de infra-estruturas tursticas, foco na comercializao, o seu objectivo

    o entretenimento (embora misturado com a educao), e ocupam lugares que no foram

    originalmente destinados para a actividade turstica (Stone, 2006).

    Stone (2006) refere que poder haver diferenas no intuito da mensagem que passada em

    diferentes Masmorras Negras, consoante elas representem locais de cdigos penais mais

    antigos ou mais recentes, sendo que neste ltimo caso haver uma carga poltica e ideolgica

    associada mais forte, e as componentes de educao e evocao assumem maior relevncia.

    iva, educacional e reflexiva (Stone, 2006:153). Estas

    exposies e locais tm uma forte nfase comercial e de entretenimento, misturada com um

    isso percebido pelo pblico como relativamente srios e localizados mais perto do lado escuro do espectro

    do que esto realmente (Stone, 2006:153). Na realidade, localizam-se no lado mais claro do espectro de

    tonalidades da oferta turstica elaborado por Stone (2006).

    Este autor evidencia o facto de as Exposies Negras possurem boas infra-estruturas tursticas, j que

    pelo menos em parte foram pensadas para constiturem atraces tursticas. Na maior parte

    dos casos, esto localizadas longe dos stios em que a morte e o sofrimento ocorreram (Stone,

    2006). O autor argumenta que, na realidade, muitos destes locais procuram provocar reaces

    aos visitantes e no relatar um acontecimento com rigor histrico (Stone, 2006).

    As Fbricas de Diverso Negras so, nas palavras de Sto

    atraces e circuitos de visitas que tm predominantemente o entretenimento como foco e

    Fbricas de Diverso Negras so locais construdos de raiz com o objectivo de serem atraces

    tursticas, pelo que so dotadas de uma forte infra-estrutura turstica e retratam a morte e o

    sofrimento de forma divertida, sendo por isso percebidos como pouco autnticos (Stone,

    2006).

  • - 42 -

    O autor sugere ainda que, apesar desta forte componente de entretenimento, alguns destes

    locais oferecem um ambiente adequado para toda a famlia, que propicia a contemplao e

    reflexo sobre a morte e o sofrimento, mesmo que simulados.

    2.2.2. SEGUNDO A PROCURA

    At aqui reproduzimos propostas de categorizao do Turismo Negro sobre a perspectiva da

    oferta. Mas h tambm autores que procuraram categorizar a procura do Turismo Negro,

    baseando-se sobretudo no que supem ser as motivaes dos turistas para o consumo deste

    tipo de Turismo e o tipo de atraces que preferem.

    Kotler (1994, citado por Wight, 2006), por exemplo, sugere uma anlise do produto de Turismo

    Negro em termos de segmentos de Mercado e tipologias de visitantes, baseando-se no estudo

    dos campos de concentrao enquanto atraces tursticas.

    Para este autor, o produto divide-se em trs nveis:

    O produto tangvel, ou seja, uma entidade que os consumidores adquirem para

    satisfazer as suas necessidades;

    O produto aumentado, que constitudo por todos os componentes tangveis e

    intangveis do produto, por outras palavras, o pacote completo, incluindo os servios

    adicionais e eventuais benefcios que o consumidor recebe.

    Kotler (1994, citado por Wight, 2006) fez tambm uma distino entre os sobreviventes e os

    demais visitantes dos campos de holocausto, que, segundo o autor, estaro a consumir

    produtos distintos com ciclos de vida distintos. Para os sobreviventes, o ciclo de vida do

    produto acabar naturalmente nas primeiras dcadas do sculo XXI, porque a memria e

    emoo ligadas ao acontecimento desvanecer-se-o (1994, citado por Wight, 2006). Os demais

    visitantes, aqueles que visitam o local por motivos de lazer, sero mais sensveis aos esforos

    de marketing, sendo ento o ciclo de vida do produto mais difcil de prever.

    J Seaton (1996) agrupa os turistas negros em cinco categorias, consoante os locais de visita:

    Turistas que viajam para ver espectculos pblicos de morte (como execues

    pblicas).

  • - 43 -

    Turistas que viajam para ver locais de morte individual ou em massa (depois de terem

    ocorrido). Aqui se incluem vrios tipos de atraces, desde campos de batalha, at s

    casas de homicidas e locais onde ocorreram homicdios mediticos.

    Turistas que viajam para visitar locais de inumao ou memoriais. Esta categoria inclui

    visitas a cemitrios e outros locais de inumao, mas tambm memoriais de guerra e

    cenotfios.

    Turistas que viajam para ver vestgios ou representaes simblicas da morte em

    locais sem ligao directa a ela. Esto aqui enquadrados os turistas que visitam

    museus e exposies que contm armas e instrumentos de morte e/ou que recriam

    certos eventos e actividades ligados morte e ao sofrimento.

    Turistas que viajam para ver recriaes ou simulaes de morte, como por exemplo

    peas de teatro e festivais subordinados a temas tanatolgicos e recriaes de

    batalhas famosas por grupos de entusiastas (comuns nos E.U.A.).

    Vrias tm sido as sugestes de motivaes dos que praticam Turismo Negro dadas por

    diferentes autores. Rojek (1997:61) aponta para um sentimento colectivo de identidade ou

    um sentimento de prazer face ao sofrimento dos outros, como a principal motivao dos que

    consomem produtos tursticos ligados a morte e sofrimento.

    Sharpley (2009), contudo, faz uma anlise diferente. O autor parte do princpio que as

    diferentes motivaes dos turistas que visitam um mesmo local de Turismo Negro se traduzem

    outras palavras, diferentes turistas que visitem o mesmo local turstico relacionado com morte

    e sofrimento podero faz-lo com diferentes motivaes, podendo o interesse na morte no

    ser a principal motivao de visita. Na origem desta ideia est tambm o contnuo de

    intensidades de Seaton (1996), que j mencionmos anteriormente nesta dissertao (vide

    pgina 33), e no qual Sharpley enquadra as suas categorias.

    Sharpley (2009) divide o comportamento de consumo dos turistas negros em quatro

    categorias principais: Turismo Negro como experincia, Turismo Negro como participao,

    Turismo Negro como integrao, e Turismo Negro como classificao.

    Os turistas que consomem o Turismo Negro como experincia procuram obter algum

    significado para a sua prpria existncia (Sharpley, 2009). O que fundamental na experincia

  • - 44 -

    destes turistas so as implicaes da morte (individual ou em massa) com que esto a

    contactar em determinado local o principal interesse no significado da morte e no na

    maneira como ocorreu. Por tal motivo, Sharpley (2009) considera que a posio deste tipo de

    consumo de Turismo Negro no contnuo tende a localizar-se entre o central e o mais escuro.

    O consumo de Turismo Negro como participao assume uma posio mais clara no contnuo

    (Sharpley, 2009). Para os turistas com este comportamento, o principal interesse em consumir

    um produto de Turismo Negro a possibilidade de participarem na evocao e mgoa

    colectivas em relao morte de um indivduo ou grupo, ainda que essa morte tenha sido o

    factor que despoletou a atraco inicial (Sharpley, 2009). O autor (ibidem) vai mais longe ao

    afirmar que neste tipo de consumo o Turismo Negro equiparado a uma peregrinao, em

    que o sentimento de comunidade intensificado pelo sentimento de que se est a

    experienciar algo que outros tambm j puderam e podero experienciar.

    O consumo de Turismo Negro como integrao divide-se em dois nveis de intensidade: um,

    mais claro, que a integrao no objecto de consumo, e outro, mais escuro, que a

    integrao na morte.

    Os turistas que consomem Turismo Negro com o objectivo de se integrarem no objecto de

    consumo esto interessados no apenas na morte em si, mas tambm no contexto em que ela

    ocorre ou ocorreu (Sharpley, 2009). O autor afirma haver ento uma certa componente de

    fantasia, j que o turista procura experienciar as circunstncias em que ocorreu a morte de

    determinada pessoa ou em determinado local, tanto quanto possvel sem que tenha de morrer

    tambm.

    Para Sharpley (2009), o comportamento de consumo de Turismo Negro mais escuro ou intenso

    o consumo de Turismo Negro como integrao com a morte. Neste tipo de consumo, os

    turistas procuram experienciar morte verdadeira. Isto pode ser atingido atravs da visita a

    cenrios de guerra, catstrofes e homicdios, casos em que a morte com que se contacta ser a

    de outras pessoas, ou ento atravs da viagem para um destino onde nos espera (ou

    provvel que espere) a nossa prpria morte (Sharpley, 2009).

    Bunyan (2003, citado por Sharpley, 2009) d como exemplo desta ltima forma de consumo de

    Turismo Negro a viagem de doentes terminais para instituies que lhes permitam praticar a

    eutansia em circunstncias legais.

  • - 45 -

    Por fim, Sharpley (2009) identifica uma outra forma de consumo de Turismo Negro, em que os

    turistas o fazem com o objectivo de obterem determinado estatuto ou classificao social. Este

    comportamento de consumo de Turismo Negro assume ento uma posio mais clara no

    contnuo de intensidade, pois o principal interesse dos turistas poderem dizer que fizeram

    determinada viagem perigosa ou visitaram determinado local perigoso e sobreviveram para

    contar a histria (Sharpley, 2009).

    2.2.3. PROPOSTA INTEGRADA

    Numa tentativa de relacionar as dimenses da oferta e da procura, Sharpley (2009)

    desenvolveu o que intitula de Matriz da Procura e da Oferta de Turismo Negro (figura 4).

    Figura 4 - Matriz da procura e da oferta do Turismo Negro de Sharpley (adaptado de: Sharpley, 2009)

    Procura

    (mais clara)

    Turismo claro Oferta de turismo

    cinzento

    Oferta Oferta

    (intencional)

    Procura de turismo Turismo escuro

    cinzento

    Procura

    (mais escura)

    Esta matriz integra a ideia do contnuo de intensidades de Seaton (1996) e a sua sugesto de

    diferenas entre atraces de Turismo Negro que assim se tornaram acidentalmente, e

    aquelas cujo intuito foi, desde o princpio, explorar o interesse dos turistas na morte e no

    sofrimento. Para alm disso, a matriz integra tambm o conceito de que o interesse dos

    turistas na morte pode no ser o principal motivo pelo qual consomem determinado produto

    de Turismo Negro.

  • - 46 -

    Assim sendo, podemos identificar quatro extremos opostos nesta matriz: a procura turstica

    cinzenta, que se ope oferta turstica cinzenta, e o turismo claro, que se ope ao turismo

    escuro.

    A procura turstica cinzenta diz respeito aos turistas que tm o interesse pela morte como

    principal motivao de visita, mas que visitam locais que se tornaram atraces tursticas

    acidentalmente (Sharpley, 2009). A oferta turstica cinzenta ser ento um espelho da procura

    turstica cinzenta: a principal motivao dos turistas no o interesse pela morte, mas os

    locais visitados foram concebidos para serem atraces de Turismo Negro (ibidem).

    Segundo Sharpley (2009), o turismo claro aquele em que turistas, cujo interesse na morte

    mnimo, visitam locais que no se tornaram atraces de Turismo Negro intencionalmente. Do

    mesmo modo, o turismo escuro aquele em que os locais visitados foram concebidos com o

    objectivo de proporcionarem ao turista o contacto com a morte, e esse contacto a principal

    motivao do turista (Sharpley, 2009).

    No obstante esta matriz ser a primeira tentativa de categorizao do Turismo Negro que

    integra as componentes da oferta e da procura, e por tal motivo ser muito importante para o

    estudo do Turismo Negro, ela apresenta dificuldades de aplicao. Parece-nos que a nica

    maneira de utilizar esta matriz com rigor caso a caso, ou seja, estudando cada atraco e

    medindo o interesse na morte por parte dos turistas que a visitam.

    No entanto, como sabemos, o estudo das motivaes dos turistas complexo e exige estudos

    tanto de natureza intensiva como extensiva, e apesar disso muitas vezes as motivaes

    identificadas pelos investigadores dizem respeito apenas a um caso especfico de atraces,

    dificultando desse modo a comparao com outros. Para alm disso, como foi referido por

    Sharpley (2009), diferentes turistas visitam a mesma atraco com diferentes motivaes, pelo

    que ser bastante limitativo dizer que determinada atraco de Turismo Negro visitada por

    turistas com pouco ou muito interesse na morte. Estaremos, quando muito, a falar de

    tendncias.

    Por outro lado, muitas