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O JULGAMENTO Guião de João Nunes Ideia original de Izaías Almada STOPLINE FILMES

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O JULGAMENTO

Guião de

João Nunes

Ideia original de

Izaías Almada

STOPLINE FILMES

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“O JULGAMENTO”

1) EXT. RUA DE LISBOA - AMANHECER (1970)

Silêncio. As casas de uma rua na cidade de LISBOA sãovistas em perspectiva. Sobre essa imagem inicial surge oletreiro:

LISBOA, PORTUGAL 1970

CORTA PARA:

2) INT. CASA CLANDESTINA - DIA (1970)

No interior de uma casa há grande azáfama, mas emsilêncio. Um MEIA DÚZIA de homens e mulheres estãoreunidos clandestinamente. Entre eles podemos ver JAIME,vinte anos, estudante universitário, de patilhascompridas, pêra e bigode, e HENRIQUE, 10 anos mais velho.

CORTA PARA:

3) EXT. RUA DE LISBOA - AMANHECER (1970)

Discreto, um "boca-de-sapo" preto, dos anos 70, avançavagarosamente pela rua e estaciona.

A janela do passageiro abre-se e vemos o chefe de brigadaMENDES OLIVEIRA, um homem moreno e forte de 30 e talanos, de bigode. No carro há mais TRÊS AGENTES.

O olhar de Mendes Oliveira procura em redor e fixa-se numHOMEM MAGRO, que está encostado à parede de uma casa afumar.

O olhar dos dois cruza-se por um momento. Depois o homemolha para as janelas iluminadas da casa e faz um ligeiroaceno de cabeça. Atira a beata para o chão e afasta-se nosentido contrário.

O inspector olha para as janelas iluminadas.

CORTA PARA:

4) INT. CASA CLANDESTINA - DIA (1970)

Em silêncio e de forma bem organizada os conspiradoresimprimem panfletos numa máquina de stencil.

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Jaime retira mais um molho de papéis impressos da máquinae passa-os a Henrique. Quando este os pousa em cima damesa podemos ler claramente o seu título:

"PELO FIM DA GUERRA COLONIAL.

MANIFESTO"

CORTA PARA:

5) EXT. RUA DE LISBOA - AMANHECER (1970)

As portas do carro abrem-se em sincronia e TRÊS HOMENS àpaisana saem para a rua. Mendes Oliveira é o último adescer.

Aproximam-se da casa, olhando em redor, certificando-sede que ninguém os está a ver.

Um dos agentes bate à porta com os nós dos dedos.

CORTA PARA:

6) INT. CASA CLANDESTINA - DIA (1970)

No interior da casa os conspiradores interrompemsubitamente o trabalho quando ouvem alguém BATER À PORTA.

Entreolham-se, preocupados. Henrique faz sinal a Jaimepara ir abrir.

HENRIQUEJaime...

Jaime tira um REVÓLVER 32 do cinto e aproxima-se daporta.

CORTA PARA:

7) EXT. RUA DE LISBOA - AMANHECER (1970)

A porta da casa abre-se. Os três agentes irrompem pelacasa dentro com violência, mas sem barulho.

CORTA PARA:

8) INT. CASA CLANDESTINA - DIA (1970)

Outra batida. Jaime abre a porta com cuidado. Não é aPide, mas sim MIGUEL, um médico de 30 anos, seco e deóculos, que entra pela casa dentro.

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JAIMEO que é que se passa, Miguel? Háazar?

Jaime fecha a porta atrás dele. Miguel fala, ofegante.

MIGUELPrenderam o Marcelino!

Todos olham para ele, chocados.

HENRIQUEO Marcelino?!

MIGUELSim. A PIDE foi a casa dele hoje demanhã.

HENRIQUEE apanharam alguma coisa?

MIGUELLivros e um "Avante".

CORTA PARA:

9) EXT. RUA DE LISBOA - AMANHECER (1970)

MARCELINO PONTES (30) é arrastado para fora da sua casapor dois agentes da PIDE. Está de pijama e tem umagabardina jogada sobre os ombros, escondendo-lhe as mãosalgemadas atrás das costas. Não tenta resistir.

Mendes Oliveira é o último a sair. Tem DOIS LIVROS e umPEQUENO JORNAL na mão. Olha em redor.

Alguém fecha as portadas da janela de uma casa vizinha.

JOANA (7), vestida de pijama, surge à porta. Conseguesoltar-se dos braços da mãe, MARIANA (27) e corre paraMarcelino, abraçando-lhe as pernas por trás.

MARIANAFilha, vem cá! O que é que eu faço,Marcelino?

Marcelino tenta virar-se, mas os dois agentes continuam apuxá-lo.

MARCELINOVai para a tua mãe, Joana. O pai jávolta.

(para a mulher)

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Não te preocupes comigo, Mariana.Não te preocupes!

A mãe de Joana tenta ir buscá-la, mas Mendes Oliveiraimpede-a. O pide aproxima-se e separa Joana das pernas dopai, puxando-a com suavidade.

A rapariga olha para ele, chorando. Mendes Oliveira sorripara ela e agarra-a ao colo. A mulher arranca a criançados braços do pide, com raiva contida.

MULHERTire as mãos da minha filha, seu-

MARCELINOTem calma, mulher. Leva a meninapara dentro. Tem calma.

Marcelino é forçado a entrar no carro pelos dois agentesda PIDE. Mendes Oliveira junta-se a eles e o carroarranca, seguido pelo olhar desesperado de mãe e filha.

10) GENÉRICO

Montagem de imagens de arquivo do período do fim daditadura em Portugal sobre um TEMA MUSICAL.

Sobre esta montagem vão entrando os créditos iniciais dasérie:

- discurso de Salazar;

- embarque de tropas para África;

- cenas da guerra colonial;

- GNR«s a empurrar camponeses para dentro de um camião;

- manifestação estudantil com carga policial sobre osestudantes;

- cenas da Revolução dos Cravos: Salgueiro Maia em cimade um chaimite no largo do Carmo;

- povo na rua com os cravos nas mãos;

- a multidão do primeiro 1_ de Maio;

- tropas barbudos num jeep;

- libertação dos presos de Caxias;

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10A) EXT. CAXIAS – DIA (FLASHBACK)

Miguel e Jaime estão entre os presos libertados. Os doisamigos abraçam-se. A imagem congela sobre a cara deJaime.

11) INT. CASA DE JAIME/SALA - DIA

JAIME FERREIRA, agora com 56 anos mas a mesma barba quesempre o acompanhou, dorme deitado num sofá velho,vestido, coberto apenas por uma manta aos quadrados. Nochão, ao lado do sofá, está um computador portátil, umagarrafa de whisky tombada e um copo vazio.

O homem acorda. Franze os olhos incomodado pela luz dodia que entra pela janela da sala. Com a ponta do pé,descalço, faz rodar a garrafa, certificando-se de queestá vazia.

Dirige-se a um armário e abre a porta inferior. Espreitapara o interior mas não encontra o que procura. Abre umagaveta. Abre outra. Na terceira encontra finalmente umadaquelas pequenas garrafinhas de whisky de doseindividual. Tira-lhe a tampa, ainda de olhos franzidos.

Aproxima-se da janela e olha para o exterior, uma vistamagnífica sobre os telhados de Lisboa, com o Tejo e oCristo Rei ao fundo. Bebe o whisky de um trago.

Aproxima-se do computador que tem um documento aberto. Éparte de uma cena inacabada de um livro policial. Fazdeslizar o cursor, revendo o que escreveu. Depois fecha oportátil.

12) INT. FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA/ANFITEATRO - DIA

JOANA PONTES, professora de literatura, dá uma aula sobreManuel da Fonseca - nome que está escrito a marcador nogrande quadro branco. Tem 43 anos, que não a maltrataram,muito pelo contrário.

JOANA"Cerromaior" é o romance maisconhecido de Manuel da Fonseca, enarra a luta dos camponesesalentejanos durante o período daditadura. Uma luta que hoje estáquase esquecida mas que se arrastoupor décadas e foi fundamental paraa conquista da democracia.

A turma ouve-a com atenção, tomando notas.

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JOANAQuem é que aqui sabe quem foi aCatarina Eufémia?

Os alunos entreolham-se, franzindo as testas. Ninguémresponde.

Joana abana a cabeça e começa a limpar o quadro.

JOANA“Cerromaior” foi adaptado aocinema, há uns anos atrás.

(vira-se)Se eu perceber que os senhores sóviram o filme e nem tocaram nolivro... também vão sentir a mãopesada da opressão. A minha...!

A turma ri-se.

JOANACaríssimos, tenham um muito bomdia.

A turma começa a sair.

13) INT. FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA/CORREDOR - DIA

Os alunos saem da sala apressadamente. Joana, com a pastana mão, vem atrás deles. O seu olhar descobre Jaime, queestá a falar com uma ESTUDANTE bonita. A raparigadespede-se dele e afasta-se antes de Joana se aproximar.

JOANA(sorri)

E tu insistes!

JAIMESe não for à terceira, é à quarta!

(sorri)Não sejas tonta - é só uma aluna.

Jaime estende a mão para a cara de Joana e toca-lhe ao deleve.

JAIMEComo é que estás?

JOANAComo é que hei de estar?

Encolhe os ombros.

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JAIMENão apareceste ontem. Fiquei à tuaespera até tarde.

JOANANão perdeste nada. Não ia ser boacompanhia.

(muda de tom)Vais lá hoje?

JAIMEVou, claro que vou. Posso ser muitoesquecido, mas esta data eu nuncafalho.

JOANAE o Miguel e o Henrique?

JAIMEO Miguel vai de certeza. OHenrique, nunca se sabe.

Jaime olha para o relógio.

JAIMEJá estou atrasado para a minhaaula. Até logo.

Dá um beijo rápido nos lábios de Joana e afasta-seapressado.

JOANAAté logo.

14) INT. HOSPITAL INGLÊS/CONSULTÓRIO - DIA

MIGUEL MIRANDA é um médico de 66 anos, magro, de óculos,com um ar sério mas simpático. Tem vários exames nas mãose está a falar com um HOMEM DE MEIA IDADE, que tem umacicatriz na cabeça.

MIGUELEste TAC indica aqui qualquercoisa, senhor Domingos. Se calharvamos ter de mexer aí outra vez.

O homem abre os olhos, assustado.

HOMEM DE MEIA IDADEOutra vez, sô doutor? Mas isto háseis meses já estava tudo bem.

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MIGUELPois estava. Mas não se preocupe -desta vez vai ser mais simples.

Ergue-se e contorna a secretária, ajudando o homem alevantar-se.

MIGUELNão fique assim, homem. Daqui a ummês já está aí para as curvas.

Os dois dirigem-se para a porta.

HOMEM DE MEIA IDADESô doutor, não me está a escondernada, pois não?

MIGUELClaro que não, senhor Domingos. Vádescansado, depois nós telefonamos.

Abre-lhe a porta e os dois apertam as mãos. O homemcoloca o chapéu na cabeça e vira as costas. Miguel fica avê-lo afastar-se, com ar sério.

Uma enfermeira de 26 anos, TERESA, aproxima-se dele.

TERESAComo é que ele reagiu?

MIGUELMais ou menos. Vou ter de o operarquanto antes, porque assim ele nãodura três meses.

TERESAOlhe que este mês já tem tudocheio, Doutor Miguel.

MIGUELResolve-me lá isso, Teresinha. Vêquem é que eu posso trocar por ele.

Miguel volta para a sua mesa.

ENFERMEIRAA sua mulher ligou. Três vezes.Pergunta se o doutor quer iralmoçar com ela.

MIGUELNão, hoje não posso. Faz-me umfavor, Teresinha, liga-lhe tu ediz-lhe que estou a operar.

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TERESAEu?! Com os ciúmes que ela tem demim? Acho melhor não, Doutor.

A enfermeira sorri e afasta-se.

15) EXT. MORADIA DE HENRIQUE/JARDIM - DIA

HENRIQUE SERRANO sai de casa. Tem agora 67 anos e umporte altivo. O fato feito por medida e a pasta italianada melhor qualidade condizem com a casa da Quinta daMarinha.

Junto à piscina, apanhando sol de biquíni, está MARLA.Tem vinte e seis anos, é alta, com um corpo e uma belezaestonteantes.

Um JARDINEIRO de 30 e tal anos trabalha num extremo dojardim. Henrique olha para ele enquanto fala com Marla.

MARLAJá vais, amor? Almoçamos hoje?

HENRIQUEAinda não sei.

Ela tira os óculos escuros.

MARLAÉ que eu queria ir comprar aquelecolar de ouro branco. Ia ficar tãobem com o vestido preto que medeste ontem.

HENRIQUEJá disse que não sei. A minhasecretária depois liga-te.

(pausa)E já te disse que não gosto queestejas aqui quando o jardineiroestá a trabalhar.

O homem debruça-se sobre ela, para a beijar. Marla desviaa boca e coloca de novo os óculos, amuada.

16) EXT. MORADIA DE HENRIQUE/PORTA DA GARAGEM - DIA

Henrique vai entrar num Jaguar estacionado em frente dagaragem no momento em que o seu TELEMÓVEL TOCA.

17) INT. JAGUAR DE HENRIQUE - DIA

Henrique atende o telemóvel enquanto se senta no lugar docondutor.

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HENRIQUESim, Jaime.

INTERCALA COM:

18) EXT. FACULDADE DE LETRAS - DIA

Jaime está nos degraus da faculdade, falando ao telefone.

JAIMEOlá, Henrique. Não te esquecesteque dia é hoje?

HENRIQUEÉ evidente que não.

JAIMEEntão vais lá ter?

HENRIQUEAinda não sei. Depende da hora aque acabar uma reunião.

JAIMEReunião ou passagem de modelos?

HENRIQUEQuem me dera. É o problema dahidroeléctrica, lá de Espanha.Tenho de resolver aquela merdaainda hoje, porque amanhã voualmoçar com o ministro.

JAIMEPoupa-me o discurso, Henrique. AJoana vai ficar triste se nãoaparecermos os três.

INTERCALA COM:

19) INT. JAGUAR DE HENRIQUE - DIA

Henrique encolhe os ombros e liga o carro.

HENRIQUEEstá, está, está. Eu vou ver o éque consigo fazer.

Desliga o telemóvel.

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20) EXT. CEMITÉRIO DOS PRAZERES - DIA

Joana está ajoelhada junto a uma campa, ajeitando um ramode cravos vermelhos. Jaime e Miguel estão de pé, atrásdela.

Na lápide vê-se o nome "Marcelino" e uma inscrição. Joanafica um momento imóvel, de semblante pesado.

Depois tira três cravos do ramo e levanta-se. Dirige-seaos amigos, colocando um cravo na lapela de cada um.

Ficam os três em silêncio a olhar o horizonte.

21) INT. SALA DE REUNIÕES - DIA

Henrique está numa reunião com vários outros EXECUTIVOSnuma sala imponente do 17º andar de uma torre deescritórios.

HENRIQUEMeus senhores. Se eles querem arede de alta tensão, vão ter de nosdar alguma contrapartida. Isso paramim é claro.

Uma SECRETÁRIA abre a porta e aproxima-se dele.

SECRETÁRIASenhor engenheiro. O seucompromisso - já está na hora. Querque desmarque o almoço com a donaMarla?

Henrique confirma a hora no relógio e hesita.

HENRIQUESim...

(para ospresentes)

Vamos terminar por aqui. Voltamos afalar amanhã, depois da minhareunião com o ministro.

Henrique abandona a sala.

22) EXT. CEMITÉRIO DOS PRAZERES - DIA

O jaguar de Henrique pára mesmo em frente do cemitério.

Miguel, Joana e Jaime saem nesse momento pelos portõesprincipais, com os cravos ao peito, e dão de caras comele a sair do automóvel.

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HENRIQUESó consegui chegar agora,desculpem.

JOANAObrigada, Henrique. Ainda bem quevieste.

23) INT. RESTAURANTE - DIA

Jaime serve um copo de vinho a Joana. Henrique ergue ocopo num brinde. Miguel olha-o com um ligeiro sorriso.

HENRIQUEUm brinde ao Marcelino. Um homemíntegro, um bom pai de família, umlutador que se houvesse justiçaneste mundo estaria hoje aquiconnosco.

JAIMEAo Marcelino.

Batem os copos.

JOANAA última imagem que eu lembro domeu pai não é do funeral. É do diada prisão dele.

O silêncio instala-se por um momento. Depois Jaime sorri.

JAIMEEu acho que nunca te contei, Joana.No primeiro de Maio a seguir àrevolução andei a gritar o nome doteu pai. Lembras-te, Miguel?

Miguel sorri também.

MIGUELFomos da Alameda ao estádio 1º deMaio a pé. Toda a gente a gritar"25 de Abril sempre" e este malucoa gritar "Marcelino, Marcelino".

JOANAAs pessoas devem ter achado queestavas louco.

HENRIQUEE não estavam muito longe daverdade.

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24) INT. RESTAURANTE - DIA/POUCO DEPOIS

A refeição já está avançada. Henrique olha para Jaime.

HENRIQUEE a tua Catarina, como é que está?

JAIMEVou amanhã vê-la na barra. Noprimeiro julgamento a sério dogabinete dela.

HENRIQUEJá sem patrono? Temos advogada.

MIGUELPodes ter orgulho nela, Jaime. Nosdias de hoje já não há muita gentea acreditar em ideais.

JOANASe ela acreditasse em ideais nãoera advogada.

Jaime lança um olhar de lado para Joana.

HENRIQUELá estás tu, Joana. Isso sãopreconceitos - os advogados nãopodem ser bons, os economistas nãopodem ser bons, os engenheiros nãopodem ser bons-

MIGUELEm relação aos engenheiros ela atétem alguma razão.

Henrique sorri, cínico.

HENRIQUEA vossa relação com o dinheiro...Confessa lá - isso é tudo inveja.

JAIMESó se for das tuas namoradinhas.

Joana dá uma ligeira cotovelada em Jaime.

JOANAVocês não mudam mesmo.

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25) INT. TRIBUNAL DE LISBOA/SALA DE AUDIÊNCIAS - DIA

Na sala de audiências do tribunal vão sendo revelados oJUIZ, os ADVOGADOS e o PROCURADOR do Ministério Público,que ouvem com atenção as alegações de CATARINA FERREIRA,uma mulher bonita, de 32 anos, vestida para a barra.

CATARINAO meu constituinte alega que osinal estava verde e não viu acriança que vinha na suabicicleta...

ALGUMAS PESSOAS assistem à sessão. Na primeira fila,Jaime olha com orgulho para a filha.

Também se encontram presentes o PAI e a MÃE do meninoatropelado mortalmente. Ela é uma mulher de 35 anos,elegante e digna no seu saia casaco cinzento escuro. Estáem sofrimento, com lágrimas nos olhos.

CATARINAAlega também que sentiu apenas umpequeno choque na parte lateral docarro, mas como é um mono volumegrande, não percebeu que tinhaatropelado alguém.

Sentado no banco dos réus, de costas para a audiência epara Jaime, encontra-se o arguido. É MENDES OLIVEIRA.Hoje tem 71 anos, dá pelo nome de Francisco Ferraz e éimpossível conseguirmos relacioná-lo com o chefe debrigada da PIDE que vimos nas cenas iniciais.

CATARINAFoi por este motivo, meritíssimoJuiz, só por este motivo e nenhumoutro, que não prestou socorro àcriança. O senhor Francisco Ferrazé um homem de bem, com carta decondução há 48 anos e nunca cometeunenhuma infracção, conforme constanos autos.

Enquanto ouve a sua advogada, Mendes Oliveira/FranciscoFerraz mexe EM CINCO MOEDAS que tem dispostas na mesa àsua frente.

CATARINASe tivesse a mínima ideia do quehavia ocorrido, obviamente, teriaparado a viatura e prestado todo oauxílio possível. É por isto,

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meritíssimo Juiz, que vos peço acostumeira justiça.

Catarina vai sentar-se. O cliente inclina-se para elapara lhe dizer qualquer coisa ao ouvido, ficando deperfil. Vemos que tem bigode e continua a mexer nasmoedas enquanto fala.

O olhar de Jaime fixa-se no peculiar alinhamento demoedas. A sua expressão de satisfação mudarepentinamente.

26) INT. EDIFÍCIO PIDE/SALA DE INTERROGATÓRIOS - DIA(FLASHBACK)

Estamos numa pequena sala mal iluminada da sede da PIDEna Rua António Maria Cardoso, em Lisboa.

Um homem está nu, de pé, com os braços erguidos em cruz.Trata-se de Jaime, que na altura tinha pouco mais devinte anos. Vê-se que se encontra em grande sofrimentoperante a tortura que está a ser submetido. Tem um olhonegro e um lábio inchado, com um pouco de sangue no cantoda boca.

Dois HOMENS em mangas de camisa estão atrás dele. Umfuma, recortado contra a luz de uma janela; o outro estásentado numa cadeira colocada ao contrário.

À frente de Jaime um vulto sentado numa secretária brincacom CINCO MOEDAS de cinco tostões, alinhando-as de umaforma particular. Um projector forte, virado para a carade Jaime, impede-nos de ver o rosto do interrogador.

27) INT. TRIBUNAL DE LISBOA/SALA DE AUDIÊNCIAS - DIA

O Procurador do Ministério Público começa a falar masJaime tem os olhos fixos nas moedas e mãos do homemsentado no banco dos réus.

PROCURADORMeritíssimo Juiz, o MinistérioPúblico vai mostrar a este Tribunalque o arguido não só sabia quetinha atropelado a criança, como sepôs em fuga do local do acidentepara não ser incriminado. Fugiu,para sermos mais precisos,praticando por isso um actocriminoso, ou mais exactamente umdolo eventual.

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Mendes Oliveira ouve o procurador com um ar dedisplicência.

Atrás de si, Jaime olha para baixo, tem as mãos a tremerde nervos. Aperta-as com força uma contra a outra.

28) EXT. TRIBUNAL DE LISBOA/CORREDOR - DIA

A sessão terminou. As PESSOAS que se encontravam aassistir saem da sala de audiências.

Catarina sai acompanhada pelo seu cliente, MendesOliveira/Francisco Ferraz. Conversam entre si mas nãoouvimos o que eles dizem.

Estão ambos a ser observados por Jaime, que espera aalguma distância.

Por fim, despedem-se com aperto de mão e Catarina procuracom o olhar o seu pai. Caminha para ele, mas Jaime tem oolhar fixo no homem que se afasta.

CATARINAPai. Pai...?

Jaime desperta do seu torpor e olha a filha.

JAIMEDesculpa. Estava distraído.

Beija a filha no rosto.

CATARINAEntão, gostaste da minha estreia?

JAIMEMuito, sim senhor. Estivestebrilhante.

Volta a olhar para o corredor.

JAIMEComo é que se chama o teu cliente?

CATARINAFrancisco Ferraz.

JAIMEE donde é que ele é?

CATARINAÉ daqui de Lisboa. Mas... porquêessa curiosidade toda?

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JAIMENada, nada - desculpa. Queres tomarum café?

CATARINA(olha orelógio)

Tenho dez minutos. Já dá para umcigarro.

29) EXT. PASTELARIA EM LISBOA - DIA

Jaime e Catarina estão numa pastelaria de Lisboa.

CATARINAE o teu livro?

Jaime abre a pasta pousada numa cadeira e retira um molhode folhas A4 impressas. O título é "A noite do falcão"

JAIMEJá tem final. Mas não estou muitocontente.

A filha folheia as páginas.

CATARINANem nunca vais estar, enquantoescreveres livros destes.

JAIMELê e diz-me o que pensas.

CATARINANão vai ser para já. Estejulgamento está a roubar-me o tempotodo. E esta causa eu não possoperder.

JAIMEQuando tiveres tempo.

Jaime muda de novo de semblante, ficando muito sério epensativo. Catarina repara na mudança.

CATARINAE tu, como é que estás? Está tudobem com a Joana?

JAIMESim, sim.

Catarina fica a olhar para o pai.

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CATARINADe certeza? Sinto-te estranho,hoje.

JAIMENão tem nada a ver com a Joana.

CATARINAÉ pena. Pensei que finalmentetivesses ganho juízo.

JAIMENão vamos voltar a isso, Catarina.

(pausa)Diz-me uma coisa - achas que o gajoé culpado ou inocente?

CATARINAQuem...? O meu cliente? Não sei nemvem ao caso. Eu não sou juíza - aminha obrigação é defendê-lo. É sóisso que eu tenho de fazer.

JAIMEÉ assim tão simples, para ti?

CATARINAE para ti, não é?

Jaime não responde. Catarina olha para o relógio elevanta-se.

CATARINATenho de ir. Paga-me a bica.

Dá um beijo rápido no pai e afasta-se.

30) INT. MORADIA DE HENRIQUE - NOITE

Henrique entra em casa, desapertando a gravata de seda.Ouve barulho na sala.

31) INT. MORADIA DE HENRIQUE/SALA - NOITE

Na sala espaçosa, decorada em estilo moderno, Marla estásentada em frente ao televisor, com um cigarro na mão, eBERNARDO está de costas, junto à aparelhagem de altafidelidade, com os auscultadores colocados. Ele tem cercade trinta anos e ar de surfista. Ela veste um vestidocurto e está descalça, o que realça a sua sensualidade.

Quando Henrique entra na sala Marla olha na sua direcçãoe sorri, aparentemente deliciada. Bernardo continuaconcentrado na música.

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MARLAOi, fofinho. Já está em casa?

A jovem levanta-se para receber Henrique com um beijo noslábios. Acaba de lhe desfazer e retirar a gravata.

HENRIQUEO Bernardo já cá está há muitotempo?

Bernardo apercebe-se da presença do pai e retira osauscultadores.

BERNARDOAinda bem que chegou, pai.

HENRIQUEPor cá, Bernardo? O que é queprecisas desta vez?

BERNARDOTenho de precisar de alguma coisapara vir ver o meu pai?

Henrique sorri e abana a cabeça, virando as costas.

32) INT. MORADIA DE HENRIQUE/ESCRITÓRIO - NOITE

Henrique passa um cheque a Bernardo.

HENRIQUEAqui tens. Vais para onde?

BERNARDOIbiza. Vocês deviam vir também. Osol fazia-te bem.

HENRIQUEAchas que eu tenho a tua vida? Eutrabalho.

BERNARDOTrabalhas? Pensava que eraspolítico.

Guarda o cheque no bolso e dá um beijo rápido no pai.

HENRIQUEBoa viagem.

BERNARDOA mãe diz para não te esqueceres datransferência bancária.

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33) INT. MORADIA DE HENRIQUE/SALA - NOITE

Henrique regressa à sala. Marla está com ar chateado,zapeando a televisão. Henrique abre a sua pasta e procurano interior.

HENRIQUEO que é que tens?

MARLAO Bernardo até entendo - é teufilho. Mas a quantidade de dinheiroque a tua ex te saca. É demais.

Henrique aproxima-se da rapariga por trás.

HENRIQUEPorque é que estás preocupada comisso? Desde que não te falte a ti.

Coloca-lhe um colar de ouro branco com brilhantes nopescoço. Marla muda imediatamente de expressão.

MARLAAh, o meu amorzinho não seesqueceu.

Marla salta do sofá e corre para um espelho. Parece umacriança com um brinquedo novo.

Henrique, sorrindo, aproxima-se por trás dela. Abraça-a ebeija-lhe o pescoço.

HENRIQUEJá não está zangada?

MARLAO meu fofinho está todoentusiasmado... Tomou o seucomprimidinho, foi?

Henrique fá-la rodar.

HENRIQUEVamos descobrir?

Puxa-lhe as alças do vestido, que desliza suavemente. Ocorpo magnífico e firme de Marla é revelado em todo o seuesplendor - ela não usa nada por baixo do vestido.

34) EXT. CASA DE MIGUEL - NOITE

Miguel estaciona o automóvel em frente de casa. Olha paraas janelas da sala onde a luz continua acesa. Miguel

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recosta-se no banco e deixa-se ficar por um momento deolhos fechados.

35) INT. CASA DE MIGUEL - NOITE

A casa de Miguel é uma moradia de classe média alta,excessivamente decorada. Quando Miguel entra em casa Ana,a sua mulher, está sentada no chão junto ao sofá. Ana tem50 anos e veste-se de uma forma elegante, masconservadora. Está a brincar com uma MENINA de seis anos,ajudando-a com um jogo de construção.

Ana olha o marido, séria. Miguel também franze o cenhoolhando a criança.

ANAFinalmente chegaste.

MIGUELQuem é a miúda?

ANAIsto são horas, Miguel? Podias terdito alguma coisa.

MIGUELSabes como é o hospital. O tempocorre.

Aproxima-se da criança e da mulher. A miúda atira-lhe umapeça do jogo e Miguel...

ANASó para nós é que não tens tempo.

MIGUELAi, lá vem outra vez essa conversa.

...dirige-se ao armário bar para servir-se de um whisky.

ANAE há-de vir muitas vezes, enquantoas coisas não mudarem.

MIGUELPoupa-me, por favor. Não me apetecediscutir esta noite. Quem é amiúda, afinal?

Ana observa o marido.

ANAÉ a Maria. A Constança adaptou-a,não te lembras de eu te contar?

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Miguel não responde.

ANAEra lá do Centro de Apoio. É tãolinda, não é?

MIGUELAdoptou-a e agora vem despejá-la cáem casa.

Bebe o whisky de um trago. Ana levanta-se, olhandopreocupada a miúda.

ANANão fales assim. Ninguém despejouninguém.

MIGUELSe isto continua assim, eu nãoaguento muito mais.

ANA(falando baixo)

O que é que eu disse agora?

MIGUELNão é o que disseste agora, é o quedizes sempre.

(olha a miúda)As indirectas, a pressão que fazes.

Miguel pousa o copo e prepara-se para sair. Ana levanta-se.

ANANão vais jantar? A mesa está posta.

MIGUELPerdi o apetite!

Miguel sai da sala, batendo com a porta.

36) INT. CASA DE JAIME/SALA - NOITE

Jaime está a fumar charuto enquanto olha pela janelaaberta. A campainha toca e ele esmaga o charuto numcinzeiro de metal.

Jaime abre a porta. É Joana, que esboça um sorriso tímidoe levanta uma garrafa de vinho.

JOANAGostas deste?

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37) INT. CASA DE JAIME - NOITE/MAIS TARDE

Joana faz o jantar na cozinha. Jaime, na sala, bebe umcopo de vinho, absorto em pensamentos.

JOANAEsta cozinha está uma desarrumação.Não sei como é que consegues viverneste caos.

(pausa)Já te disse mil vezes que tens dearranjar outra empregada.

Não tem resposta.

JOANAComo é que correu o julgamento daCatarina?

JAIMEFoi bem.

Joana serve-se com uma colher de sopa e vem até junto deJaime para ele provar.

JOANAEla dorme aqui tantas vezes, até éestranho deixar-te ter isto assimdesorganizado. Deve serhereditário.

JAIMEPorra, Joana, deixa lá a arrumaçãoda casa! É a minha casa, eu é quetenho de me sentir bem aqui.

JOANAEu sei que é a tua casa. Nãoprecisas repetir. Tua e da tuafilha.

JAIMEE essa mania contra a Catarina.Esquece a Catarina. Estou farto deestar no meio da vossa guerrinha,dessa ciumeira pegada. Entendam-seas duas que já têm idade para isso!

Joana volta para a panela com ar amuado e desliga o fogo.Volta a sair da cozinha e olha para Jaime.

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JOANAEu só queria perceber para que éque tu precisas de mim. Se é sópelo sexo, ficavas melhor com astuas alunas.

Joana regressa à sala para agarrar na mala, preparando-separa sair de casa. Jaime vem atrás dela e segura-lhe nobraço, com delicadeza.

JAIMEDesculpa, desculpa. Por favor,fica.

Joana sacode-lhe o braço, mas não se vira para ele.

JAIMEEu... falo demais. E não digo osuficiente.

Jaime encosta-se a ela, passando-lhe os braços por cimados ombros. Joana deita a cabeça para o lado e fecha osolhos. Roda e os dois beijam-se, primeiro com suavidade edepois com paixão.

38) INT. CASA DE JAIME/QUARTO - NOITE

Jaime e Joana estão na cama. Acabam de ter relaçõessexuais e rolam cada um para o seu lado, cansados. Ficamassim, parados.

JOANANão gosto quando tu estás assim.Distante.

Jaime não responde logo. Depois roda e abraça-a. Beija-ano ombro.

JOANAÉ por causa do que eu disse daCatarina? Eu não tenho nada contraela, mas a nossa relação é que nãopode pagar por eu ser filha do teumelhor amigo. Se é isso-

Jaime interrompe-a.

JAIMENão, não tem nada a ver. É que...

Não acaba logo a frase.

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JAIMEÉ difícil viver com o passado. ACatarina não esquece a morte damãe, tu não esqueces a do teu pai.São muitos fantasmas.

JOANAÉ por isso - as memórias?

JAIMEHoje... encontrei o homem que matouo teu pai. O Pide que nos prendeu enos torturou.

(pausa)Há trinta e sete anos atrás.

Joana senta-se na cama, perturbada.

JOANAO que é que estás a dizer?

JAIMEHoje, no julgamento da Catarina. Ocliente dela - é o Mendes Oliveira.

JOANAImpossível! Mas... como é que tusabes que é ele?

JAIMEA atitude... Detalhes...

Joana encolhe-se e abraça os joelhos junto ao peito.

JAIMEOs pides andavam sempre com moedasno bolso para os telefonemas. OMendes Oliveira tinha uma maneiraprópria de mexer nas moedasenquanto nos interrogava. O clienteda Catarina faz exactamente a mesmacoisa.

JOANANão pode ser. Esses tipos fugiramtodos para a Galiza e para oBrasil.

JAIMEE o olhar dele... É o gajo que metorturou, tenho a certeza.

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JOANAA Catarina - sabe disso?

JAIMENão! Isto foi hoje. És a primeirapessoa a quem eu conto.

JOANAMas vais dizer-lhe, não vais? Seisso for verdade ela não o podedefender. Ninguém pode defender umhomem desses.

JAIMEAinda não sei o que vou fazer.

Joana levanta-se, zangada, e começa a vestir-se.

JOANAIsso é o retrato da tua vida, nãoé? Essa indecisão - é uma boadesculpa para não fazer nada.

(pausa)Sempre podes beber mais uma garrafade whisky.

Sai do quarto, zangada.

39) EXT. CLUBE PORTUGUÊS DE TIRO - DIA

Ouvem-se dois tiros. Um PRATO explode no ar. Jaimerecarrega a espingarda semi-automática.

A alguma distância Miguel e Henrique observam-no.Henrique está equipado como Jaime e tem também umaespingarda nas mãos.

MIGUELAchas que esta história do Jaime edo pide tem ponta por onde sepegue?

HENRIQUENão! Aquilo é tudo coisas da cabeçadele.

MIGUELMas a história das moedas - écoincidência a mais.

HENRIQUETu também?! O Jaime ainda tem adesculpa de escrever aqueles

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policiaizecos baratos. Mas tu ésmédico, porra! Para onde é que foio espírito científico?

MIGUELE se for mesmo o gajo? Porhipótese?

HENRIQUEE aí? O que é que queres fazer:juntamo-nos os três e vamos dar umacarga de porrada ao velho?

Jaime continua a disparar na sua série de pratos.

HENRIQUEOs crimes dos pides jáprescreveram. Não viste o que sepassou com o Rosa Casaco? Atéentrevistas andou a dar e ninguémlhe pôs um dedo em cima.

MIGUELMas isso está errado. Se é assim,isto é uma merda de país.

HENRIQUEMas é o país que temos. O mundomudou, Miguel. Tudo mudou, vocês éque parece que não perceberam.Continuam os mesmos idealistas aachar que este mundo pode serjusto. Este mundo nunca vai serjusto.

Jaime termina os seus disparos.

JAIMEÉ a tua vez, Henrique.

Henrique tira dois cartuchos da bolsa.

HENRIQUE(para Miguel)

Não queres fazer uma série?

MIGUELNão, obrigado. Tive a minha dose noultramar. Já dei mais tiros quevocês os dois juntos.

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HENRIQUEVê lá se metes juízo na cabeçadeste gajo.

Henrique afasta-se e cruza-se com Jaime, que vem para opé de Miguel.

JAIMEE então - o que é que vocês acham?

MIGUELÉ muito improvável, Jaime. Porque éque um pide que conseguiu fugirestes anos todos vai correr o riscode voltar para cá?

Henrique começa a disparar. Também é bom atirador.

JAIMESaudades - negócios - arrogância -quem é que sabe o que é que vai nacabeça de um gajo desses. Mas queele está cá, está.

MIGUELNão sei, Jaime. Não sei.

JAIMEEntão faz-me um favor. Hoje à tardehá outra audiência. Vem assistircomigo. Se olhares para aquele gajoe me disseres que não é ele euprometo que nunca mais toco noassunto.

Os dois olham para Henrique, que aponta a espingardapreparando-se para mais um tiro.

40) INT. TRIBUNAL DE LISBOA/SALA DE AUDIÊNCIAS - DIA

O martelo do juiz BATE com um estrondo forte.

JUIZEstá aberta a sessão.

Catarina está sentada ao lado de Mendes Oliveira/Francisco Ferraz.

Miguel e Jaime entram na sala. A advogada repara nachegada deles e olha-os com alguma surpresa. Miguel faz-lhe um ligeiro aceno.

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41) INT. TRIBUNAL DE LISBOA/SALA DE AUDIÊNCIAS -DIA/MAIS TARDE

Catarina toma uns apontamentos enquanto o procurador doMinistério Público interroga a mãe da criança.

PROCURADORDona Antónia, pode dizer-nos ondeestava no dia do atropelamento?

MÃEEstava no jardim, num banco pertodo cruzamento.

Miguel e Jaime não prestam atenção ao depoimento damulher. Os seus olhos estão fixos em MendesOliveira/Francisco Ferraz, que continua a brincar com asmoedas.

PROCURADORQuer dizer então que a senhoraassistiu ao acidente?

TESTEMUNHAExactamente, senhor doutor. Estavaa conversar com uma amiga quandoouvimos uma travagem e depois umapancada seca. Olhei... e o meufilho... o meu filho...

A mulher tenta manter a compostura e conter as lágrimas.Olha para o marido, sentado na sala. O procuradoraproxima-se dela e coloca-lhe a mão no braço.

PROCURADORPronto, pronto... Tenha calma.

Catarina espreita por cima do ombro. Repara que Miguel eJaime são as únicas pessoas na sala que não olham para aesta situação dramática, mas sim na direcção dela e doréu.

42) EXT. TRIBUNAL DE LISBOA/CORREDOR - DIA

Chegou ao fim mais uma sessão do julgamento. A mãe dacriança atropelada sai abatida da sala, reconfortada pelomarido.

Jaime e Miguel, no corredor, esperam a saída de Catarina.Esta surge acompanhada por Mendes Oliveira/FranciscoFerraz.

Catarina cumprimenta o pai com um beijo na face.

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CATARINAQue honra - os dois por aqui...?

Beija também Miguel.

JAIMEO Miguel quis ver-te em acção.

MIGUELE gostei do que vi. Se precisar jásei onde encontrar advogada.

Catarina faz as devidas apresentações.

CATARINASenhor Francisco, este é o meu pai,Jaime Ferreira. E um amigo.

Mendes Oliveira estende de imediato a mão paracumprimentar os dois, com um sorriso. Não perdeu osotaque dos anos que esteve emigrado no Brasil.

MENDES OLIVEIRAMuito prazer em conhecê-lo e muitosparabéns. Sua filha é uma excelenteadvogada!

Jaime hesita alguns instantes antes de lhe apertar a mão.Mas quando o cumprimenta olha-o friamente. Olhos nosolhos.

JAIMEAinda bem para si, não é?

MIGUELViveu muitos anos no Brasil, senhorFrancisco?

MENDES OLIVEIRAO suficiente para ganhar estesotaque. E para me apaixonar poraquele país maravilhoso.

JAIMEPorque é que voltou, então?

MENDES OLIVEIIRAInsegurança. Aqueles governantesincompetentes não conseguem pôr osmarginais na ordem.

Catarina interrompe a conversa.

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CATARINASenhor Francisco – não se esqueçada sessão amanhã, está bem?

MENDES OLIVEIRAComo eu poderia esquecer? A minhavida agora gira em redor destenegócio.

Mendes Oliveira olha para o relógio.

MENDES OLIVEIRABom, vou indo! Já devia estar numareunião.

(para Jaime)Foi um prazer conhecê-lo, seuJaime!

Mendes Oliveira vira costas e caminha para a saída.

MIGUELMendes Oliveira!

O homem quase pára, durante um instante, e olha deesguelha. Depois continua a andar.

Catarina olha em redor e interpela Miguel.

CATARINAO que é que lhe chamaste, Miguel?

MIGUELNada, pareceu-me ver um conhecido.Mas foi engano.

Miguel e Jaime entreolham-se e depois olham para MendesOliveira que se afasta. Catarina observa-os, desconfiada.

43) EXT. RUA DO RESTELO - DIA

Estamos numa zona residencial pouco movimentada. Jaime eMiguel estão dentro do jeep UMM do primeiro. Olham paraum monovolume Chrisler que está estacionado do outro ladoda rua.

MIGUELFilho da puta. O gajo teve odescaramento de voltar para cádepois destes anos todos.

JAIMEPorque é que não havia de voltar?Ninguém lhe pode fazer nada.

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MIGUELO Mendes Oliveira - um respeitávelhomem de negócios. Quem diria.

(pausa)O que é que vamos fazer? Vamos àpolícia.

JAIMEPara quê? Que provas é que temos? Otipo está a ser julgado e nem otribunal percebeu que a identidadedele é falsa. Ainda se vão é rir denós.

MIGUELE então? O que é que podemos fazer?

Nesse momento Mendes Oliveira sai de um pequeno edifícioe começa a dirigir-se para a Chrisler.

Jaime abana a cabeça, revoltado.

JAIMEJá vais ver.

Sai do carro e dirige-se à porta traseira do jeep. Abre-ae retira a bolsa da espingarda.

Mendes Oliveira aproxima-se do seu carro, procurando aschaves.

Miguel vira-se para trás.

MIGUELO que é que estás a fazer, Jaime?

Jaime carrega a arma.

JAIMEFica aí!

MIGUELEspera lá, pá!

Jaime caminha rapidamente na direcção de Mendes Oliveira,com a espingarda encostada à perna. Miguel sai do carro egrita.

MIGUELJaime! Não faças isso!

Mendes Oliveira vira-se e Jaime aponta-lhe a arma. Ohomem fica imóvel e lívido.

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MENDES OLIVEIRAO que é que está fazendo, homem?

JAIMEEntra para o carro. Depressa!

Empurra-o com o cano da espingarda. Mendes Oliveiraobedece.

Miguel observa tudo, nervoso. Olha em redor, sem saber oque há de fazer.

Jaime abre a porta de correr lateral e senta-se atrás docondutor.

JAIMELiga o carro. Vamos sair daqui.

MENDES OLIVEIRAVocê está a fazer uma loucura. Oque é que sua filha tem a ver comisto?

JAIME(interrompendo)

Cala-te e conduz.

A carrinha arranca. Miguel hesita e depois corre para olugar do condutor do UMM e segue o outro carro.

44) EXT. ESTRADA NO ALENTEJO - DIA

O monovolume Chrisler acelera pela estrada, seguido peloUMM.

45) INT. UMM DE JAIME - DIA

Miguel conduz com o telefone colado ao ouvido. Está achamar, mas ninguém atende.

MIGUELAtende, porra!

46) EXT. OUTRA ESTRADA SECUNDÁRIA - DIA

O UMM acelera e ultrapassa a carrinha. Depois travabruscamente à sua frente.

A Chrisler trava também, quase batendo no jeep. Os doisveículos imobilizam-se.

Miguel sai do carro, exaltado. Corre para o outroveículo.

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MIGUELAbre essa porta. Porra! Abre essaporta!

Jaime faz correr a porta.

MENDES OLIVEIRAO seu amigo enlouqueceu. A políciavai descobrir logo vocês, e vãoacabar os dias na prisão.

Jaime encosta-lhe a arma ao pescoço.

JAIMEFica calado, filho da puta. Sófalas quando eu disser.

MIGUELEle tem razão, Jaime. Vamos pararcom esta loucura. Nós não somosbandidos.

JAIMEAgora é tarde demais. O que estáfeito está feito. Eu não voltoatrás. Se não quiseres vir comigo,eu trato disto sozinho.

MIGUELMas vamos para onde?

47) EXT. MONTE - ENTARDECER

Os dois carros aproximam-se de um monte alentejano, numvale perto de uma mata de sobreiros. É composto por duaspequenas edificações brancas, cercadas por uma vedação dearame farpado. Não se vê vivalma até onde a vistaalcança.

JAIME (V.O.)Para a minha cabana de caça. Láninguém nos vai incomodar até istoestar resolvido.

48) INT. ESTÁBULO - ENTARDECER

A porta do estábulo abre-se com um ranger forte. MendesOliveira entra aos tropeções, empurrado por Jaime. Miguelvem atrás deles, olhando em redor.

MIGUELVai com calma, Jaime.

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MENDES OLIVEIRANão sei o que vocês querem, mas vãose dar mal.

JAIMECala-te, pulha.

Jaime empurra Mendes Oliveira contra a parede.

JAIME(para Miguel)

Tira-lhe o telefone e osdocumentos.

Miguel hesita.

JAIMEMexe-te, porra!

Miguel começa a revistar o homem. Mendes Oliveira olha-ocom ar suplicante.

MENDES OLIVEIRANão deixe isto seguir, seu Miguel.Seu amigo vai arrastar você comele.

MIGUELPouco barulho!

Miguel tira o telemóvel e os documentos do homem.

JAIMENão te esqueças do cinto.

Miguel vira Mendes Oliveira e desaperta-lhe o cinto dascalças.

MIGUELMendes Oliveira.

(pausa)Alguma vez pensaste ver-te nestaposição, sacana?

MENDES OLIVEIRAEu não sou essa pessoa. Porquêvocês não me acreditam?

Miguel afasta-se com os haveres do homem, sem lheresponder.

JAIMEDesliga o telemóvel dele.

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Mendes Oliveira olha em redor, desesperado.

JAIME(para Mendes)

Se estás a pensar em gritar, nãoadianta. O vizinho mais próximoestá a dez quilómetros. Estamoslonge de ouvidos indiscretos...

(pausa)...como tu gostavas.

MENDES OLIVEIRAVocês estão loucos. Meu Deus, queestória é esta?

Miguel aproxima-se do amigo e fala em voz baixa.

MIGUELIsto não devia ter acontecidoassim.

JAIMEHá muita coisa que não devia teracontecido.

49) INT. MONTE - NOITE

As mãos de Jaime procuram mantimentos dentro de umarmário.

Miguel e Jaime estão na casa do monte, um cubículomodesto, espartano mesmo, que não tem luz eléctrica nemágua. Miguel espreita por uma janela, com ar desesperado.

MIGUELNão é justo teres-me arrastado paraaqui. As coisas não se fazem assim,Jaime.

JAIMEEntão fazem-se como? Só viesteporque quiseste. Tiveste umaoportunidade de te ir embora.

MIGUELIsso eu nunca faria, pá. Nunca teia abandonar. Mas agora... porra. Oque é que eu digo à Ana? O que éque eu digo no hospital?

Jaime abre as portas de outros armários, encontrando duasou três latas de atum.

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JAIMEHá aqui comida. Não é muita, masserve para matares a fome.

Miguel vira-se para olhar para o amigo.

MIGUELIsto ficou uma confusão, Jaime.

JAIMEEu sei. Mas eu tenho de saber averdade, Miguel. E só este gajo éque nos pode dizer.

Jaime encontra uma garrafa de whisky meio vazia. Mete-adebaixo do braço e agarra um copo que limpa na fralda dacamisa.

JAIMEVou voltar para o estábulo.

MIGUELEu vou telefonar à Ana. Tenho delhe dar uma desculpa qualquer.

JAIMESim, faz isso. E aproveita paradormir um bocado. Eu tomo contadaquele crápula.

Apanha uma manta e a sua espingarda, e sai da sala.

50) INT. ESTÁBULO - NOITE

Os pés de Mendes Oliveira, descalços, estão amarrados àspernas de uma cadeira alentejana. O homem está sentado,com as mãos presas atrás das costas.

Uma lanterna petromax pendurada na parede é a únicailuminação disponível.

Jaime entra no estábulo com a manta, a espingarda e agarrafa de whisky. Joga a manta para cima de um monte depalha, ajeitando-a. Mendes Oliveira olha para ele,assustado.

MENDES OLIVEIRANesta altura minha família jácontactou a polícia. Quanto tempovocês acham que isto vai durar atéserem apanhados?

Jaime diminui a intensidade da chama do petromax.

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JAIMEPela polícia? Uma eternidade.

(sorri)A tua família nunca vai contactar apolícia, pá. Mais depressa tedeixam morrer do que revelam quemtu és.

MENDES OLIVEIRAE quem sou eu, então? Me diga -quem sou eu?

Jaime senta-se na manta, com a espingarda encostada aolado e serve-se de um copo de whisky.

JAIMEChega de conversas, agora. Amanhãlogo vais ter muito tempo parafalar.

MENDES OLIVEIRASua filha sabe disto? Ela estáenvolvida neste sequestro?

Jaime hesita um segundo. Depois bebe um golo.

MENDES OLIVEIRAEla não sabe, pois não? Você vaidestruir a carreira da sua filha.

JAIMEEu, se fosse a ti, tentava dormir.

MENDES OLIVEIRAEla é boa advogada, não mereceacabar assim. E vai acabar - quandoeu enterrar vocês todos, ela tambémvai ao fundo.

Jaime levanta-se, com ar aborrecido, e aproxima-se deMendes Oliveira, retirando um lenço de pano do bolso.

MENDES OLIVEIRAO que é que vai fazer? Não façaisso!

Jaime imobiliza a cabeça de Mendes Oliveira, que tentaresistir, e enfia-lhe o lenço na boca. Depois amarraoutro pedaço de corda à volta do lenço, amordaçando ohomem.

JAIMENão podias ter ficado calado?

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Volta ao seu lugar e ao seu copo de whisky.

51) INT. MONTE - NOITE

Na casa do monte, Miguel fala ao telemóvel enquantoprepara uma cama no sofá.

MIGUELSão só uns dias, Ana.

INTERCALA COM:

52) INT. CASA DE MIGUEL - NOITE

Ana, ainda vestida, caminha nervosamente de um lado parao outro da sala enquanto fala com Miguel.

ANACaça, Miguel?! Que raio de desculpaé essa - tu não gostas de caça.

MIGUELA caça é só um pretexto para tiraruns dias. Tenho de pensar nascoisas, na nossa vida.

ANATu estás com quem, Miguel?

MIGUELJá te disse - com o Jaime. Foi eleque me convidou.

ANANão estás com mais ninguém, decerteza? Por favor, Miguel.

MIGUELCom quem? Com quem é que eu haviade estar, diz lá?

ANATu sabes bem com quem.

MIGUELNão metas coisas na cabeça, Ana.Não compliques a situação aindamais.

ANAEu vou telefonar para o hospital.Se eu descobrir-

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MIGUEL(interrompendo)

Telefona para onde quiseres! Faz oque te apetecer, achas que eu meimporto? Olha, tenho de desligar.

ANANão desligues, ainda não. Desculpa,desculpa.

MIGUELEu telefono-te, Ana. Tenta dormir.

Miguel desliga o telemóvel e deixa-se cair na cama.

53) INT. ESTÁBULO - NOITE

Mendes Oliveira dorme, sentado na cadeira, amarrado eamordaçado. A cabeça está tombada para a frente.

A luz trémula do petromax lança sombra sinistras sobre asparedes do estábulo, iluminando algumas alfaias agrícolase ferramentas - foices, tesouras de podar, uma serra delenha, um machado.

O copo de whisky também brilha enquanto Jaime o volta aencher. O homem está com um ar cansado, pensativo.Enquanto bebe mais um golo olha para Mendes Oliveira.

O seu olhar fixa-se nos pés descalços do outro homem.

54) INT. EDIFÍCIO DA PIDE/SALA DE INTERROGATÓRIOS - DIA(FLASHBACK)

Uns pés descalços num chão de cimento. O pé direito estáamarrado à perna da cadeira.

É Jaime, com vinte anos, que está descalço e amarrado auma cadeira. Mendes Oliveira passa por trás dele. Tem umamoca de madeira na mão, e bate com ela na palma da outramão.

MENDES OLIVEIRADaqui ninguém sai sem falar, meumenino.

Jaime olha em redor, com ar assustado. Um outro agente daPIDE agarra na sua perna esquerda e ergue-a, expondo aplanta do pé. Jaime tenta resistir.

JAIMENão, por favor.

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MENDES OLIVEIRAMas tu estás a fazer-te difícil.

Ergue a moca e, com um movimento rápido, dá uma primeirapancada na planta do pé de Jaime...

... que fecha os olhos, tentando aguentar a dor.

Mendes Oliveira ergue novamente a moca e sorri, sádico.

MENDES OLIVEIRAParece que temos um valente aqui.

Baixa-a com violência, e Jaime contorce-se novamente dedor.

55) EXT. MONTE - AMANHECER

Um balde cheio de água é retirado de um bidão metálicoque serve de depósito.

Jaime está em tronco nu. Pousa o balde no chão, ao ladodo bidão. Não está com boa cara - tem olheiras e o rostoà volta da pêra começa a apresentar sinais de barba. Aespingarda está encostada à parede da casa.

Mete as mãos na água gelada e lava a cara, esfregando bemo rosto. Depois lava o peito e os sovacos, com umarrepio, enquanto olha em redor para o campo de sobreirosque se estende até ao horizonte.

Um ruído fá-lo virar-se - é Miguel que se aproxima, comar carrancudo.

JAIMEBom dia.

Miguel não responde e mergulha as mãos na água, lavandotambém a cara.

JAIMEConseguiste dormir?

MIGUELO gajo já comeu?

JAIMENão comeu nem mijou.

MIGUELEntão era bom tratarmos disso, não?Ainda não somos selvagens.

Jaime seca-se numa toalha velha.

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JAIMESim, acho que sim. Cuida dele, queeu tenho outra coisa a fazer.

Afasta-se vestindo a camisa. Aponta a arma.

JAIMEFica com a espingarda. O tipo éperigoso.

Miguel não responde e volta a meter as mãos na água.

56) EXT. MONTE - DIA

Jaime está ao volante do monovolume de Mendes Oliveira.Está a estacioná-lo longe da estrada e das casas, numsítio onde fica escondido de olhares indiscretos.

Tem um telemóvel preso entre o ombro e a cara.

JAIMESou eu.

INTERCALA COM:

57) INT. FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA/ANFITEATRO - DIA

Joana entra na sala vazia de um anfiteatro dauniversidade, procurando privacidade enquanto fala comJaime.

JOANAEu sei que és tu. O que eu não seié onde é que tu estás.

JAIMEPorque é que dizes isso?

JOANAFui ontem a tua casa, paraconversarmos.

JAIMESobre o quê?

JOANAAquela história do pide. Fiquei apensar naquilo.

(pausa)Mas onde é que estás, afinal?

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58) EXT. MONTE - DIA

Jaime desce do carro e caminha em direcção à casa, queestá a alguma distância.

JAIMENa minha cabana de caça. Não queresvir cá ter?

JOANANão posso, Jaime. Estás parvo.Tenho aulas, não posso faltarassim.

JAIMETens de vir, Joana. Eu... tenho umacoisa muito importante para tedizer.

Joana fica um pouco abalada com esta última frase.

JOANAAssim, de repente. Não sei...

Olha o relógio. Hesita, mas está curiosa.

JAIMEVem, não te vais arrepender. Etraz-me roupas e comida. Eu vim semnada.

JOANAÉ bom que seja mesmo importante.

JAIMENem imaginas, Joana. Nem imaginas.

59) INT. FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA/REFEITÓRIO – DIA

(OMITIDA)

59B) INT. TRIBUNAL DE LISBOA/SALA DE AUDIÊNCIAS – DIA

(ERA A CENA 99)

Catarina está no tribunal. O juiz olha o relógio. Tambémestão presentes o procurador e os pais da criançaatropelada.

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JUIZO que é que se passa com o seucliente, doutora?

CATARINAPeço-lhe imensa desculpa, senhordoutor, mas realmente não sei. Elenão atende o telefone.

JUIZEu não vou esperar mais.

CATARINAEu sei, eu compreendo.

(hesita)Meritíssimo juiz, peço o adiamentodesta sessão.

JUIZSe o senhor procurador não tivernenhuma objecção...

O procurador abana a cabeça e começa a arrumar os papéis,com ar chateado.

JUIZEntão - está adiada a sessão paradata a confirmar.

Bate com o martelo.

Catarina levanta-se para sair da sala de audiênciasquando é abordada pela mãe da criança. O pai espera aalguma distância, olhando em redor, nervoso.

MÃEDesculpe, doutora...

Catarina olha-a surpreendida.

CATARINASim...?

MÃEO seu cliente... Ele não vai fugir,pois não?

CATARINADesculpe...?!

MÃEEle não pode fugir antes dasentença. Ele tem de pagar!

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CATARINANinguém vai fugir, não há razõespara isso.

MÃEComo é que você pode defender estehomem? Como?

Catarina fica um pouco incomodada com o rumo da conversa.Olha em redor.

CATARINAEu acho que não devíamos estar aquia falar sobre este caso.

A mulher agarra no braço da advogada, exaltada.

MÃEEu estava lá. Eu vi tudo!

O marido avança e segura a mulher, puxando-a comsuavidade.

MÃEEle tem de pagar pelo que fez.

60) INT. ESTÁBULO - DIA

Mendes Oliveira, barba rala de um dia, ar de mal dormido,acompanha com o olhar Jaime, que anda em círculo à voltada cadeira onde está amarrado.

Miguel está encostado a uma viga, permanecendo um poucoalheado da conversa.

MENDES OLIVEIRAEu posso pagar o que vocêsquiserem. Graças a Deus tenhoposses.

(pausa)A minha família pode pagar por mim.

JAIMEAchas que é isso que nós queremos -o teu dinheiro?

MENDES OLIVEIRAE que mais pode ser? Não tenho maisnada para vocês.

JAIME(para Miguel)

Já viste a lata deste gajo? Aquerer comprar-nos.

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(para MendesOliveira)

Não há dinheiro que pague o que tunos roubaste, cabrão.

MENDES OLIVEIRAVocês estão enganados. Vocês estãome confundindo com alguém, é isso.

Jaime tira algumas moedas do bolso. Mostra-as as MendesOliveira.

JAIMEAquele joguinho das moedas, o queestavas a jogar no tribunal.Lembro-me bem dele.

MENDES OLIVEIRAJoguinho de moedas?! É umpassatempo - um milhão de pessoasdeve jogar daquele jeito.

Jaime atira as moedas à cara do outro homem.

JAIMEPulha!

Miguel afasta-se da parede com um passo, avançando paraJaime, mas não chega a dizer nada. O movimento, contudo,não passa despercebido a Mendes Oliveira.

JAIMEVamos negociar, então. Quanto é quenos ofereces? Qual é o teu preço?

MENDES OLIVEIRAEu não sou rico, mas posso pagaralguma coisa. Tenho uns vinte mileuros à ordem...

JAIMESó...? Pensei que davas mais valorà tua vida. À tua, porque à dosoutros nunca deste muito.

MENDES OLIVEIRAE tenho uns fundos de poupança queposso resgatar, sei lá, mais unscinquenta mil... Sessenta.

Jaime abana a cabeça.

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JAIMEParece-me pouco.

MENDES OLIVEIRAO seu amigo, aí? Porquê ele não diznada?

(para Miguel)Você é Miguel, não é? Cem mileuros, é dinheiro, certo, Miguel?

Miguel abana a cabeça, sorrindo meio incomodado.

MENDES OLIVEIRAEu pago a vocês, me soltam,seguimos cada qual para seu lado. Oque lhe parece, Miguel?

MIGUELEra bom que as coisas fossem assimtão simples.

MENDES OLIVEIRADeixem eu telefonar à minha mulher.Ela deve estar morrendo depreocupação comigo. Ela trata dodinheiro, de tudo.

JAIMECem mil euros, Miguel. O que é queachas? Paga o que sofremos?

MENDES OLIVEIRAA minha mulher é doente. Por favor,seu Miguel, deixe-me falar com ela.Por favor.

61) INT. CAFÉ - DIA

(OMITIDA)

61A) EXT. CASA DE MENDES OLIVEIRA – DIA(ERA A CENA 106)

Catarina está à porta de um vivenda numa zona calma deOeiras. Uma SENHORA IDOSA, na casa dos sessenta anos,desemproada, está a falar com ela.

CATARINANão me pode dar o contacto do seumarido? É para o bem dele, minhasenhora.

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SENHORA IDOSAEu acredito, filha, mas quando oFrancisco viaja assim de urgência,não me diz nada.

CATARINANem quando volta?

SENHORA IDOSANem quando volta. São coisas dehomens, sabe. Eu não me meto nessesassuntos.

Catarina olha a velha senhora, desconfiada.

CATARINATem a certeza de que me está adizer tudo? Parece-me estranho, oseu esposo fazer uma coisa dessas.Ainda ontem falámos nestaaudiência.

SENHORA IDOSAEstou a dizer-lhe tudo o que possodizer, filha. Não me faça maisperguntas.

CATARINASe aconteceu alguma coisa, eu sou aadvogada dele. Pode confiar em mim.

A senhora hesita e baixa o olhar.

CATARINAEu conheço pessoas na polícia-

SENHORA IDOSAA polícia não! Não meta a polícianisto, ouviu? Agora, com licença...

Começa a fechar a porta. Catarina coloca a mão tentandoimpedi-la de fechar.

CATARINAPor favor - deixe-me entrar. Euposso-

A senhora interrompe-a com grande frieza.

SENHORA IDOSATire a mão da porta, menina. Já!

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Catarina tira a mão e a mulher bate-lhe com a porta nacara. A advogada fica especada, olhando para a porta comar surpreendido.

62) EXT. MONTE - DIA

Jaime está sentado em frente à casa do monte. Desmontou aespingarda e está a lubrificá-la com cuidado.

De onde ele está sentado podemos ver a estrada. Umveículo surge à distância. Jaime fixa o olhar nele erecomeça a montar a espingarda.

O carro aproxima-se. É um Volkswagen Polo azul, já comuns anos.

Jaime termina de montar a espingarda e levanta-se. Leva-aao ombro, faz pontaria e descreve um movimento em arcopara cima, como se estivesse a simular um disparo a umpássaro. Depois encosta-a à parede.

JAIME(para a casa)

A Joana está a chegar, Miguel.

Afasta-se em direcção ao caminho que vem da estrada.

63) INT. MONTE - DIA

Jaime entra em casa, carregando alguns sacos de compras.Joana vem atrás dele, com um saco de viagem.

Miguel dirige-se a Joana para a cumprimentar. Ela fazcara de quem não estava à espera de o ver ali.

JOANAMiguel?!

MIGUELO Jaime não te disse que eu estavacá?

Joana olha Jaime, interrogativa.

JOANANão... mas ainda bem.

Jaime joga os sacos para cima da mesa.

JAIMEEsqueci-me, o que é que queres.

(para Miguel)Não sei se a minha roupa te vaiservir.

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Começa a tirar compras de dentro dos sacos.

MIGUELTerão de servir.

JOANAEntão tu também vieste assim derepente?

Miguel olha para Jaime, sem responder. Joana ainda tentabrincar com a situação.

JOANAO que é que se passa, afinal? Qualé o grande mistério?

Jaime larga os mantimentos e começa a andar para a porta.

JAIMEAnda comigo. Quero mostrar-te umacoisa.

JOANA(para Miguel)

O que é se passa?

64) EXT. MONTE - DIA

Joana, Jaime e Miguel abre a porta do estábulo com umachave que tira do bolso.

Miguel entra e Jaime faz sinal para Joana o seguir.

Joana hesita e depois penetra no espaço escuro.

65) INT. ESTÁBULO - DIA

Mendes Oliveira está sentado no escuro, amarrado eamordaçado. A barba por fazer e o cabelo desgrenhado dão-lhe um ar ainda mais envelhecido.

Joana fica parada a olhá-lo, com uma expressão desurpresa.

JOANAO... que é isto? Quem...?

OLha o homem e depois Jaime, completamente confusa.

JAIMEÉ ele.

Joana olha de novo para o pide. Leva a mão à boca,chocada.

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Jaime contorna o homem e tira-lhe a mordaça.

JOANAMiguel...?

Miguel limita-se a acenar afirmativamente com a cabeça.

O pide respira pesadamente, aspirando o ar comsofreguidão.

MENDES OLIVEIRAEu vou morrer. Eu vou morrer aqui.

JAIMENão vais morrer coisa nenhuma. Umbicho ruim como tu não morre assim.

Mendes olha para a recém-chegada com curiosidade e temor.

JAIMEJá viste que temos uma convidada.Tens que ser simpático, ouviste?

Miguel aproxima-se do prisioneiro e puxa-lhe a cabeçapara trás. Observa-lhe o branco dos olhos e vê-lhe apulsação no pescoço, enquanto Jaime fala com Joana.

JAIMELembras-te desta cara? É ou não é otipo?

Joana não responde. Está imersa em pensamentos.

66) EXT. RUA DE LISBOA - AMANHECER (FLASHBACK)

Joana, em criança, corre atrás do pai, tentando agarrar-lhe as pernas.

Um vulto debruça-se sobre ela: é Mendes Oliveira, naépoca, que a agarra ao colo. O olhar da miúda fixa-se nacara do pide, que sorri benevolentemente.

67) INT. ESTÁBULO - DIA

Mendes Oliveira agita-se na cadeira e fala desesperado.

MENDES OLIVEIRAMas eu sou quem?

(para Joana)A senhora, por favor, diga a elesque estão enganados. Eu não souquem eles pensam. Diga-lhes averdade, senhora.

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Joana pára e encara Jaime.

JOANAVocês estão loucos. Vocês...

JAIMEÉ ele, Joana! Não vês o que nósfizemos. Apanhámos o filho da mãe.

MENDES OLIVEIRAMas eu sou quem, senhores? Porfavor.

(para Joana)Eles estão loucos mesmo, senhora.

Jaime debruça-se para ele e fala com raiva.

JAIME(para Joana)

Olha-me este focinho! É ele!(para o pide)

Mendes Oliveira! Chefe de brigadada PIDE-DGS, quando me prendeste.Depois promovido a inspector pelosbons serviços à Pátria. Preso no 25de Abril e fugido de Alcoentre commais 88 pides, uns meses depois.Desde aí desaparecido - no Brasil,sabemos agora.

Jaime endireita-se, tentando acalmar-se. Mendes Oliveiraabana a cabeça, negando.

JAIMEJá te lembras agora? É que eu nuncate esqueci. O teu nome, a tua cara,até o teu cheiro-

MENDES OLIVEIRA(interrompendo)

É mentira! Isso é mentira! O meunome é Francisco Ferraz. Fugi dePortugal, sim, mas por causa doscomunistas. Eu não era pide nenhum,por amor de Deus – eu eraempresário.

JAIMETão empresário como eu.

MENDES OLIVEIRAOcuparam a minha fábrica, a minhacasa. Tive de fugir para refazer a

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vida. É esse o meu pecado, é? Tersido roubado de tudo o que tinha?

Joana avança para o homem. Fala com suavidade.

Joana vira-se e sai do estábulo.

Jaime sai atrás de Joana. Miguel aproxima-se de novo dopide com o pano para o amordaçar.

68) EXT. MONTE - ENTARDECER

Joana está encostada a uma árvore, olhando a paisagem quese estende à sua frente. O sol está a pôr-se sobre ocampo polvilhado de sobreiros, projectando longassombras. Jaime aproxima-se e pára a um metro, inseguro.

JOANAÉ linda, esta paisagem. Tão calma.

(pausa)Vocês são loucos. Não podiam terfeito isto.

(olha Jaime)Tu não podias ter-me feito isto.

JAIMEFiz isto por ti, Joana. Tu-

JOANA(interrompendo)

Não foi por mim, não; nem umminuto. Tu só pensaste em ti,Jaime! Tu achas que isto é um jogo?Uma das tuas novelas?

JAIMEPorra, Joana! É o gajo que matou oteu pai. Não vês que é aquilo quesempre sonhámos - ter um destesporcos nas mãos. Podermos fazer-lheo que ele nos fez.

JOANAIsso não está certo, Jaime. Assimnão.

JAIMEE o que ele fez ao teu pai, estácerto? Desce dos teus romances,Joana, enfrenta a vida. Isto aqui éreal.

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Joana cruza os braços e fecha-se.

JAIME(mais suave)

Vem cá, Joana... por favor.

Jaime aproxima-se e abraça Joana por trás. Ela nãoresiste mas também não colabora. Ficam um instante emsilêncio.

JOANAComo é que achas que eu me estou asentir? Uma coisa destas, assim derepente.

JAIMEDesculpa, não pensei...

JOANAE ele... É um velho. Não era assimque o imaginava.

JAIMENão te deixes enganar, Joana.Aquele tipo é o mesmo que matou oteu pai. O corpo está maisestragado, mas o coração é o mesmo.

Os olhos de Joana enchem-se de lágrimas.

JOANAEle roubou-me tudo o que eu tinha.

JAIMEE vai pagar por isso.

69) INT. MONTE - NOITE

Joana, Jaime e Miguel jantam numa mesa rústica demadeira, na sala da casa do monte. Na lareira ardemalguns troncos.

Joana afasta o prato de massa bolonhesa quase intocado.

MIGUELNão vais comer? É o único prato queeu sei fazer.

Joana sorri.

JOANADesculpa. Estou sem apetite.

Jaime, pelo contrário, come com satisfação.

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JAIMEMas está bom. Uma delícia.

MIGUELFoi a única coisa útil que euaprendi na guerra, esta massa. Foio meu furriel que me ensinou afazê-la.

Joana levanta-se e vai lavar o prato. Miguel remexe namassa, pensativo.

MIGUELEra um porreiro, o Santos.Cozinhava melhor que o cozinheiroda companhia. Quando havia festasnas casas dos senhores importanteslá de Malange vinham pedi-loemprestado para fazer uns petiscos.

JAIMEPodias ter aproveitado paraaprender mais uns pratos como este.

MIGUELNão tive tempo.

Leva uma garfada à boca, como se regressasse à realidade.

MIGUELO Santos foi dos primeiros a ir nomeu pelotão. Numa emboscada. Levoudois tiros na barriga e morreu-menos braços, enquanto esperávamospor um helicóptero.

(pausa)Um gajo demora a morrer com doistiros na barriga, sabias? E sofrecomo o caraças.

Jaime pára de comer, incomodado. Joana aproxima-se damesa.

JOANAAlguém vai dar de comer ao homem?Eu não tenho coragem.

Miguel levanta-se com o seu prato.

MIGUELEu vou.

Jaime empurra o prato para longe.

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JAIMEObrigado pela tua história. Eramesmo o que eu estava a precisarpara me animar.

70) EXT. MONTE - NOITE

Jaime está no exterior da casa, no escuro, a fumar.Miguel sai de casa com um prato cheio na mão e umagarrafa de água.

JAIMEMiguel.

O amigo pára e Jaime aproxima-se, falando em voz baixapara Joana não ouvir.

JAIMEO filho da mãe é duro e é esperto.Nós assim não vamos conseguirtirar-lhe nada.

MIGUELSim. E daí?

JAIMEEu estive a pensar... acho quedevíamos revezar-nos para não odeixar dormir.

MIGUELIsso...

(hesita)Isso já é tortura, Jaime.

JAIMEEle não aguenta muito tempo. Vaisver - uma noite sem dormir econfessa tudo.

MIGUELNão me peças uma coisa dessas,Jaime.

Jaime olha para a casa, certificando-se de que Joana nãoestá por perto.

JAIMEO filho da puta merece isso e muitomais. Lembra-te de tudo o que elenos fez.

(pausa)Posso contar contigo ou não?

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Coloca a mão no ombro do amigo.

JAIMEVá lá, Miguel. Para nos irmos todosembora. Isto já começa a cheirarmal.

MIGUELA merda cheira sempre.

Miguel afasta-se e Jaime dá outra baforada no cigarro.

71) INT. ESTÁBULO - NOITE

Miguel está sentado num banco de madeira a dar de comer aMendes Oliveira, que continua amarrado. O homem come comcalma.

MENDES OLIVEIRAVocê é médico, não é?

Miguel não responde.

MENDES OLIVEIRAComo é que um médico pode fazer umacoisa destas? Tratar uma pessoaassim.

MIGUELVocês também tinham médicos naPIDE, não tinham? Pergunte-lhes aeles.

MENDES OLIVEIRAEu não tenho nada a ver com a PIDE,amigo. Meta isso na cabeça de umavez por todas. Vocês estão todosenganados.

Miguel enfia-lhe outra garfada na boca.

MIGUELEsta noite você não vai dormir.Vamos ter de mantê-lo acordado atévocê falar.

Mendes Oliveira olha para a porta.

MENDES OLIVEIRAÉ ideia deles, não é?

Miguel estende outra garfada.

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MENDES OLIVEIRANão quero mais. Não vou comer maisaté me soltarem. Nem que eu morrade fome, mas não volto a comer.

MIGUELVocê é que sabe.

Levanta-se.

MENDES OLIVEIRAVocê está a enterrar-se por umacoisa em que não acredita. Sabe bemque eu não sou quem eles dizem - euvejo nos seus olhos.

Miguel afasta-se com o prato e o petromax na mão.

MENDES OLIVEIRAEles são loucos e você é que vaisofrer com tudo isto.

72) INT. MONTE - NOITE

Jaime e Joana estão deitados na cama do único quarto domonte, vestidos, só com uma manta por cima. É uma cama desolteiro, o que os obriga a estar apertados um contra ooutro. Jaime abraça Joana por trás e esta aninha-secontra o seu braço na penumbra do quarto branco.

Ouvem a porta do monte abrir e fechar-se. Uma luzbruxuleante ilumina a fresta da porta do quarto.

JAIMEÉ o Miguel. Já deve ter dado decomer ao pide. Espero que lhe tenhacontado a mesma história que noscontou a nós.

Joana não responde. Está sombria e pensativa. A porta doMonte volta a abrir-se e fechar-se e a luz na saladesaparece. Ficam de novo na penumbra.

JAIMEQuando isto tudo acabar...

Interrompe a frase a meio.

JOANASim...?

JAIMEÉ uma estupidez termos de andarsempre a correr para casa de um e

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de outro. Como se fôssemosadolescentes.

JOANAO que é que queres dizer?

JAIMENão sei. Talvez fosse uma boaaltura para fazermos umaexperiência.

JOANANão vamos falar nisso agora, Jaime.Eu...

Cala-se. Jaime apoia-se no cotovelo e fala mais pertodela.

JAIMEO quê...?

JOANANão sei, mas... eu não tenho acerteza se posso confiar em ti.

JAIMEO que é que queres dizer com isso?

JOANAO que tu me fizeste hoje à tarde.Atirares-me assim para a frentedaquele homem, sem estar preparada.

JAIMEJá te pedi desculpa...

JOANAA questão não é essa. É que eusinto que tu vais fazer-me issomais vezes.

Jaime senta-se na cama.

JAIMENão percebo o que é que queresdizer com isso.

Joana vira-se para ele.

JOANAQuando eu chocar com a tua filha;quando eu precisar de apoio, deajuda, de uma palavra – não sei se

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tu vais estar lá, ou se vais estarperdido nesse teu pequeno mundo.

Jaime levanta-se e dirige-se para a porta.

JAIMEEu estou exausto, não consigodiscutir. Vou dormir na sala.

Joana fica de olhos abertos, vendo Jaime sair uma vezmais da sua vida.

73) INT. CASA DE JAIME/SALA - DIA

A porta da casa de Jaime abre-se. É Catarina. A jovementra e olha em redor.

CATARINAPai!

Espreita para a sala.

CATARINAEstás em casa?

Dirige-se à secretária de Jaime e retira da bolsa omanuscrito que o pai lhe entregara. Coloca-a em cima dasecretária e cola-lhe um “post-it” amarelo no qualescreve qualquer coisa (que não vemos).

Depois continua a explorar a casa. Empurra a porta doquarto. A cama está feita.

Catarina volta à sala e retira o telemóvel da bolsa,marcando um número.

Abre a janela, para arejar a casa, e fica a olhar apaisagem.

O telefone dá sinal de desligado.

CATARINA(para si mesma)

Onde é que te meteste agora?

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74) INT. CASA DE JAIME/COZINHA – DIA

(OMITIDA)

75) INT. CASA DE JAIME/SALA – DIA

(OMITIDA)

76) INT. ESTÁBULO - DIA

Mendes Oliveira tem um ar ainda mais cansado do que navéspera, com olheiras profundas. Jaime está sentado àfrente dele, no banco de madeira. Miguel e Joana têmtambém um ar cansado de uma noite sem dormir.

JAIMELembras-te de mim? Olha para aminha cara - lembras-te?

MENDES OLIVEIRAEu já disse-

JAIME(interrompendo)

Se vêm aí mais mentiras, é melhorestares calado.

Joana aproxima-se do pide.

JOANANós não vamos fazer-lhe mal. Nãovamos. Eu só quero pôr uma pedra nomeu passado. Por favor - só querosaber como é que o meu pai morreu.

MENDES OLIVEIRAEu não sei quem é o seu pai,senhora. Juro por Deus que não sei.

JOANAMarcelino Pontes. A PIDE levou-o decasa numa manhã de 1970 e eu sóvoltei a vê-lo no funeral.

Mendes Oliveira baixa a cabeça, abanando-a.

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MENDES OLIVEIRAEu não sei de nada.

JOANADisseram que tinha sido umacidente. Uma queda nas escadas. Eusó quero saber o que realmente sepassou e depois você pode ir-seembora. É só isso.

JAIMEOuviste? Faz-nos um favor a todos,pá. Quem é que matou o Marcelino?Foste tu? Foi um dos teus capangas?Como é que foi?

O homem olha-o sem responder. Jaime irrita-se e dá-lheuma bofetada.

JAIMEFala, porra!

Joana encolhe-se, mas não diz nada.

MIGUELJaime...

JAIMEEste gajo está a começar a irritar-me.

(para Mendes)Tu só tens a perder com essateimosia, pá. Eu tenho o tempo tododo mundo, mas tu, quanto é que vaisaguentar?

Mendes Oliveira reage com uma agressividade inesperada.

MENDES OLIVEIRAVá-se foder! Não tenho nada paradizer.

Jaime dá-lhe outra estalada, mais violenta.

JAIMEIsso é o que vamos ver, porco!

Joana sai do estábulo batendo a porta.

77) EXT. MONTE - DIA

Miguel sai atrás de Joana, que se afasta do estábulo emdirecção à casa do monte.

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MIGUELJoana!

A mulher pára, mas não se volta.

MIGUELO Jaime está a sofrer tanto comonós. Não penses que não lhe custafazer isto.

JOANAE se não for ele? E se estedesgraçado não for o MendesOliveira? Já pensaste nisso?

MIGUELAí podes estar descansada. É ele,sim.

Joana vira-se e encara Miguel.

JOANAComo é que podes ter a certeza?Como é que vocês os dois podemestar tão certos?

O olhar de Miguel perde-se na distância.

MIGUELTu eras miúda, é natural que não telembres. Mas nós... eu passei quaseum mês a ver este senhor todos osdias.

78) INT. EDIFÍCIO DA PIDE/SALA DE INTERROGATÓRIOS - DIA(FLASHBACK CURTO)

Mendes Oliveira tem dois fios eléctricos descarnados nasmãos. Toca com um no outro, produzindo uma faísca.

79) EXT. MONTE - DIA

Miguel olha para Joana.

MIGUELE isso é uma coisa que não seesquece.

Joana passa a mão no rosto de Miguel.

JOANAVolta lá para dentro, Miguel. Nãodeixes o Jaime fazer nenhumdisparate.

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80) INT. ESCRITÓRIO DE HENRIQUE/CORREDOR - DIA

Henrique está a chegar ao seu escritório. Tem o telemóvelencostado ao ouvido. A chamada vai parar ao voice mail.

HENRIQUEJaime, sou eu. Como é que ficou ahistória do cliente da tua filha? OMiguel sempre foi contigo aotribunal? Diz-me alguma coisa.

Desliga o telemóvel e marca outro número da agenda.

81) INT. ESCRITÓRIO DE HENRIQUE - DIA

Henrique entra no seu gabinete e coloca a pasta em cimada secretária. Enquanto o telefone chama aproxima-se dajanela, que tem uma vista fantástica sobre Lisboa.

HENRIQUEBom dia. Posso falar com o Dr.Miguel Miranda, por favor?

INTERCALA COM:

82) INT. HOSPITAL INGLÊS/GABINETE DE ENFERMEIRA - DIA

Quem está a atender o telefonema é a enfermeira Teresa.

TERESABom dia. O Dr. Miguel não está.

HENRIQUESabe dizer-me a que horas elechega?

TERESAO Doutor não vem esta semana. Eletirou uns dias de férias. Quem estáa substitui-lo é o Dr. Pessanha.Quer falar com ele?

HENRIQUENão, não. É um assunto pessoal.

(pausa)Sabe dizer-me se ele marcou estasférias há muito tempo?

TERESAEu acho melhor fazer essasperguntas ao doutor. Tente ligar-lhe para o telemóvel.

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HENRIQUEJá tentei, obrigado.

Henrique desliga o telemóvel e fica pensativo.

83) INT. ESTÁBULO - NOITE

A porta do estábulo está aberta e o jeep de Jaime estáparado de forma a que os faróis iluminam o interior.

Mendes Oliveira está sentado mesmo de frente para aspotentes luzes. Tem um ar exausto e cabeceia de sono.

Jaime bate as palmas mesmo ao pé do seu ouvido. O homemestremece com o som.

JAIMEAbre esses olhos! Não vais dormir,ouviste. Enquanto não disseres oque nós queremos ouvir não vaisdormir.

MENDES OLIVEIRAPor favor...

JAIMENão há favores para ninguém, meupulha. Ou falas ou a festa vaicontinuar.

MENDES OLIVEIRAEu tenho de ir mijar. Não aguentomais.

JAIMEEntão faz nas calças. Mija-te nascalças, porco.

Miguel surge ao lado do amigo.

MIGUELJaime, vamos-

JAIMENão vamos nada. Se ele quer mijarque mije. Ou que fale. A escolha édele.

MENDES OLIVEIRA(para Miguel)

Por favor, Doutor. Eu sofro dabexiga, isto está me matando.

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JAIMESofrer? Tu sabes lá o que é sofrer.Causar sofrimento, isso sim, issotu sabias.

MENDES OLIVEIRADoutor...

O homem não aguenta mais e urina-se. Uma poça forma-senos seus pés e Mendes Oliveira começa a chorar, tentandoaguentar os soluços.

Miguel puxa Jaime por um braço, arrastando-o para fora doestábulo.

84) EXT. ESTÁBULO - NOITE

Jaime solta o braço da mão de Miguel com um safanão.

JAIMEO que é? Qual é o teu problemaagora?

MIGUELÉs tu. O meu problema és tu, e aforma como estás a lidar com isto.

JAIMEDeixa-te de merdas, Miguel. Nãosejas hipócrita, eu só estou afazer o que tem de ser feito.

MIGUELNão - tu estás a gostar do queestás a fazer. Se ele falasse agoraias ficar desiludido.

JAIMEDisparates!

MIGUELIsto já não é justiça - isto évingança.

JAIMEE se for? As duas coisas não podemandar juntas?

(pausa)Está a saber-me bem? Está, estásim. Sonhei muitas vezes com isto.Mas se ele falar vou ficar tãoaliviado como tu.

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Miguel vira-se, abanando a cabeça.

MIGUELSó estás a trazer mais sofrimentopara a tua vida, Jaime. Mais dor,mais memórias amargas para abafar.

JAIMEEu só quero que isto acabedepressa.

MIGUELEm Angola eu também torturei umpreto.

Jaime vira-se para o amigo. A confissão surpreendeu-o.

MIGUELFoi depois do Santos morrer.Apanhámos um gajo na emboscada.Estava ferido, mas o capitão deu-lhe uma coça durante dois dias. Eeu assisti a tudo, até ele morrer.E não fiz nada.

JAIMENão... sabia disso.

MIGUELO que é que me atormenta mais - oque sofri ou o que deixei sofrer?Não sei.

Olha para Jaime.

MIGUELNão sei.

Jaime esfrega a cara.

JAIMEVou voltar lá para dentro. O gajojá deve estar a dormir.

85) INT. ESTÁBULO - NOITE

Jaime está sentado atrás de Mendes Oliveira. Fala-lheperto do ouvido. O homem tem um ar esgazeado, vagueandocom o olhar pelas sombras ameaçadoras que os faróis dojeep projectam.

P.O.V. de Mendes Oliveira - as sombras nas paredesparecem mexer-se, distorcendo-se e desfocando-se.

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MENDES OLIVEIRAEu não quero morrer...

JAIMENinguém vai morrer.

O pide cabeceia de sono e Jaime puxa-lhe o cabelo.

JAIMEAcorda!

MENDES OLIVEIRAEu quero dormir, por favor, deixe-me dormir, só um bocadinho.

Jaime levanta-se de rompante. Contorna o homem e aproximaa cara dele.

P.O.V. de Mendes Oliveira - a cara de Jaime dança à suafrente, distorcida e ameaçadora.

JAIMENão! Vais fazer exactamente como eumando. Quem sabe... se correr tudobem, talvez te deixe dormir... umahora..Sim? Uma hora? Já viste?

MENDES OLIVEIRAUma hora?

JAIMEUma hora inteirinha. Só tens quedizer o teu nome completo.

MENDES OLIVEIRAFrancisco Ferraz.

JAIMENão! O outro, o verdadeiro.

MENDES OLIVEIRAFran-

Jaime dá-lhe uma bofetada.

JAIMEAssim não chegamos a lado nenhum etu não dormes hora nenhuma.

Mendes Oliveira olha para ele, com o olhar desfocado.

MENDES OLIVEIRAEsse nome já não existe, faz partedo passado.

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Jaime endireita-se. Está a chegar a algum lado. Fala emvoz baixa.

JAIMETalvez esteja na hora de acordar opassado. Como é que te chamas?

Mendes Oliveira muda de expressão, deixando transparecerraiva e maldade.

MENDES OLIVEIRAQueres saber o meu nome, cabrão? Eudigo-te quando te apanhar lá fora!

JAIMEComo é que te chamas?

MENDES OLIVEIRAE essa puta que trouxeste agora -vou matá-la também.

Jaime descontrola-se e dá uma violenta estalada na carado pide, rachando-lhe um lábio, que fica a sangrar.

Mendes Oliveira chupa o lábio ferido. Percebemos quecontinua a ser um homem perigoso, apesar da situação emque está.

Jaime esfrega a mão com que bateu no homem.

JAIMEFilho da puta...

86) INT. MONTE - NOITE

Miguel está deitado no sofá da sala do monte, vestido, sócom uma manta por cima. Dorme um sono agitado - os seusolhos agitam-se e rolam por baixo das pálpebras e a suaboca balbucia palavras ininteligíveis.

INTERCALA COM:

87) INT. PRISÃO - DIA (SONHO)

Miguel, tal como ele é hoje, está sentado e amarrado numacadeira, numa sala nua, por trás de um gradeamento.

Passos aproximam-se. É um homem de quem só vemos os pés edetalhes do corpo. Caminha lentamente, batendo com umamoca de madeira nas portas gradeadas por onde vaipassando.

Vemos imagens chocantes de soldados em acção na guerracolonial (imagens de arquivo).

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Miguel agita-se, na sua cadeira.

Vemos nova cena da guerra colonial (imagens de arquivo).

O outro homem aproxima-se, caminhando ao longo docorredor que conduz ao gradeamento.

Vemos ainda outra cena de guerra (imagens de arquivo).

O homem surge de repente das sombras, agarrando ogradeamento mesmo ao lado de Miguel. É Mendes Oliveira,tal como é no presente. Bate com a moca nas grades,fazendo UM ESTRONDO que parece um tiro.

88) INT. MONTE - NOITE

Miguel acorda sobressaltado, com o rosto encharcado emsuor. É Joana que está ao seu lado, a abaná-lo com força.

JOANAMiguel, acorda. Por favor.

MIGUELO que foi - o que é que se passa?

JOANAPareceu-me ouvir um tiro noestábulo.

Miguel levanta-se, sobressaltado.

MIGUELUm tiro?!

Nesse momento ouve-se OUTRO TIRO. Joana endireita-se,tapando a boca, com uma expressão de aflição. Miguelcorre para a porta, calçando-se.

89) EXT. MONTE - NOITE

Miguel sai da casa, ainda a acabar de se calçar, e correpara o estábulo. Joana vem atrás dele.

A porta do estábulo está aberta, deixando sair a luztrémula do petromax.

90) INT. ESTÁBULO - NOITE

Miguel e Joana irrompem pelo estábulo dentro e deparam-secom Jaime, de espingarda na mão.

Na parede, atrás do pide, há marcas dos dois tirosdisparados.

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Mendes Oliveira, de olhos fechados, abana a cabeçaviolentamente. Jaime está desvairado.

JAIMEVais falar ou não, filho da puta?

MIGUELO que é que se passa, Jaime?

Jaime agita a carabina com violência.

JAIMEEste gajo está quase a falar.

(para Mendes)Abre os olhos, cão.

Empurra-lhe a cara com o cano da arma.

MIGUELJaime...!

JAIMEOlha para mim!

Joana adianta-se e mete-se entre Jaime e Mendes Oliveira,empurrando o cano da arma para longe do pide.

JOANAAssim não, Jaime!

JAIMENão te metas agora. Sai da frente.

JOANANão vale a pena, Jaime. Nada mereceisto.

JAIMEEle ameaçou matar-te, Joana. Essegajo está aqui, quase morto, eainda faz ameaças.

Miguel aproveita a interrupção para se aproximar deMendes Oliveira e levantar-lhe a cabeça.

MIGUELOlhe para mim - como é que vocêestá, homem?

O pide abre os olhos, meio enevoados.

P.O.V. de Mendes Oliveira - a cara de Miguel, distorcida,como que flutuando à sua frente.

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JOANAIsto está a ir longe de mais. Eunão quero-

JAIME(interrompendo)

Não se trata do que tu queres,Joana. Eu é que o trouxe para aqui.Se não estás bem, vai-te embora.Mas esse gajo vai falar, juro quevai.

Joana vai responder, mas é interrompida pela voz trémulado pide.

MENDES OLIVEIRAJosé Mendes de Oliveira.

Joana vira-se e Miguel endireita-se. Os três olham paraele.

JAIMEPodes repetir?

MENDES OLIVEIRAO meu nome é José Mendes Oliveira.

Miguel avança para o homem.

MIGUELO inspector da PIDE José Mendes deOliveira?

O pide abana a cabeça afirmativamente.

MIGUELO homem que nos prendeu e torturou,a mim e ao Jaime, e a tantosoutros?

MENDES OLIVEIRAEu fiz o meu trabalho. Só o meutrabalho.

Lágrimas correm dos olhos de Miguel. O médico vira-se ecorre para fora do estábulo.

Joana e Jaime entreolham-se.

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91) EXT. MONTE - ALVORADA

Ao pé do lago, Joana joga pequenas pedras para asuperfície da água, fazendo círculos de ondas. Jaimeaproxima-se dela e acocora-se ao seu lado.

JOANATinhas razão. É mesmo ele.

JAIMEDesculpa eu ter-te falado assim-

JOANA(interrompendo)

Não, não - também tinhas razãonisso. Se eu não tenho coragem parafazer o que tem de ser feito,então...

Jaime endireita-se e tenta passar-lhe o braço por cima doombro. Ela afasta-se discretamente, só o suficiente parao impedir.

JAIMEMas eu peço-te desculpa na mesma.Fui bruto e rude, mas tu sabes queeu não sou assim.

JOANAEu já não sei quem tu és, Jaime.Aliás, acho que tu também nãosabes.

Joana joga outra pedra na superfície da água, queressalta várias vezes. Depois olha para Jaime.

JOANATalvez ainda seja cedo paravivermos juntos. Não tem nada a vercom isto, acredita. Mas tu precisasde tempo para te encontrares, e euacho que ainda não estou preparada.

Afasta-se. Jaime vai segui-la, mas depois hesita e ficaimóvel.

92) INT. FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA/CORREDOR - DIA

(OMITIDA)

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93) INT. ESCRITÓRIO DE HENRIQUE - DIA

A secretária de Henrique atende o telefone.

SECRETÁRIAEscritório do engenheiro HenriqueSerrano.

INTERCALA COM:

94) INT. TRIBUNAL DE LISBOA/CORREDOR - DIA

A chamada vem de Catarina, que está de pé num doscorredores do Tribunal, entre sessões.

CATARINADaqui fala Catarina Ferreira. Seráque o Henrique me pode atender?

SECRETÁRIAVou passar, só um momento, porfavor.

CATARINAObrigado.

94A) INT. GABINETE DE HENRIQUE – DIA

Henrique está sentado na sua imponente secretária.

HENRIQUEOlá, Catarina. Há quanto tempo.

CATARINAÉ verdade. Está tudo bem consigo?

HENRIQUEAs mesmas confusões de sempre.Devia ter feito como o teu pai, eescolhido uma vida mais tranquila.

CATARINAÉ mesmo por causa dele que estou atelefonar. Já há uns dias que não oconsigo encontrar. Ele não dissenada ao Henrique, se ia viajar oucoisa assim?

Henrique fica sério.

HENRIQUENão... não temos falado muito. Nãosei...

(pausa)

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Olha, eu vou tentar saber algumacoisa. Não queres passar lá porminha casa esta noite?

CATARINAEu não quero maçá-lo, Henrique.

HENRIQUENão maças nada. Até logo.

Henrique desliga o telefone e pousa os dois cotovelos nasecretária, apoiando a boca nas mãos, pensativo.

94B) EXT. TRIBUNAL DE LISBOA/CORREDOR - DIA

Joana desliga o telemóvel e tira uma agenda da bolsa,procurando um número. Marca-o no telemóvel.

CATARINAEstá? É da GNR?

INTERCALA COM:

95) INT. ESQUADRA DA GNR - DIA

Um SARGENTO DA GNR atende o telefone, numa pequenaesquadra de província.

SARGENTOÉ sim. Posso ajudar?

CATARINADesculpe estar a incomodar, mas...é o sargento Gomes que está afalar?

SARGENTOSou eu mesmo.

CATARINAEu sou a filha do senhor JaimeFerreira, que tem um monte aí nafreguesia, o Monte das Hortas,lembra-se?

SARGENTOÓ menina Catarina, então não haviade lembrar. A menina é que nuncamais apareceu por cá. Quando é quenos vem fazer uma visitinha?

JOANAQualquer dia, sargento.

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SARGENTOEntão diga lá qual é o problema?

CATARINAProvavelmente não é nada, mas... omeu pai não dá sinal há uns dias,não atende o telefone, se calharfoi até aí e não me disse nada.

SARGENTOE a menina quer que a gente váverificar?

94C) EXT. TRIBUNAL DE LISBOA/CORREDOR – DIA

Catarina sorri, agradecida.

CATARINASe não for incómodo.

SARGENTONão é incómodo nenhum, ora essa.Mas olhe que o seu pai não deve tervindo para cá. Ele só costumaaparecer para caçar e ainda não étemporada.

CATARINAMesmo assim, se puder lá dar umsaltinho...

SARGENTOVou com certeza.

CATARINAObrigada.

Catarina desliga o telemóvel.

96) EXT. FACULDADE DE LETRAS/ESCADAS – DIA

(OMITIDA)

97) EXT. MONTE - DIA

Jaime retira um balde de água de um ribeiro perto domonte e agarra noutro balde que está pousado no chão, jácheio.

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98) INT. ESTÁBULO - DIA

Jaime entra no estábulo com os dois baldes nas mãos.Joana está encostada à parede e Miguel anda de volta deMendes Oliveira. O pide cabeceia de sono.

JAIMEO gajo disse mais alguma coisa?

MIGUELNada de novo.

(para Mendes)Abre os olhos, pá. Abre-me essesolhos.

Abana-lhe a cabeça e Mendes Oliveira desperta,balbuciando.

MENDES OLIVEIRAEu... consigo... deixem-me...

JAIMEIsto já o acorda.

Pousa os baldes no chão, à frente do pide, e agarra numdeles. Joga a água com violência contra Mendes Oliveira,que estremece como se tivesse levado um choque eléctrico.

Joana também se encolhe, como se a água a tivesseatingido a ela.

JAIMEGeladinha! Boa, não é? Em Caxias -grandes banhos de água gelada queeu apanhei.

MIGUELQuem é que matou o Marcelino? Fala!

MENDES OLIVEIRANão sei. Não fui eu, juro por Deus.

JAIMEO gajo fede que nem um porco. Épreciso mais água!

MENDES OLIVEIRANão, por favor...

MIGUELEntão fala. Diz-nos o que queremossaber e vamos todos dormir. Eutambém estou cansado, achas que euquero continuar aqui?

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MENDES OLIVEIRAMas eu não fui-

Jaime joga-lhe o outro balde de água para cima.

MENDES OLIVEIRAMais não... por favor!

Joana vira-se de costas e baixa a cabeça, incomodada.

Miguel dá uma ligeira estalada na cara de MendesOliveira.

MIGUELNão durmas, pá!

JOANAPára, Miguel!

Joana avança para Miguel.

JOANAO que é que se passa? Tu também...?

JAIMEJoana, por favor-

As suas palavras são interrompidas por uma BUZINA vindado exterior. Os três entreolham-se. Jaime espreita pelaporta.

P.O.V. de Jaime - um jeep da GNR sobe pelo caminho queconduz ao Monte. Volta a buzinar.

JAIMEPorra! É a GNR.

MIGUELMerda!

Jaime olha para Miguel.

JAIMEAbafa-me esse gajo! Eu vou lá.

99) INT. TRIBUNAL DE LISBOA/SALA DE AUDIÊNCIAS - DIA

(OMITIDA)

100) INT. ESTÁBULO - DIA

(OMITIDA)

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101) EXT. ESTÁBULO - DIA

Jaime sai do estábulo e dirige-se para o jeep da GNR,ajeitando o cabelo.

O veículo estaciona relativamente perto da entrada doestábulo. O sargento Gomes desembarca e um SOLDADO fica aobservá-los do lugar do motorista.

JAIMEBoa tarde, Gomes.

SARGENTOBoa tarde.

O GNR faz a continência e depois aperta a mão a Jaime.

JAIMEQue surpresa. Não estava a contarcom a sua visita.

SARGENTOEstamos só de passagem. Está tudobem?

O homem olha com curiosidade para a porta aberta doestábulo e dá um passo nessa direcção. Jaime dá também umpasso.

JAIMETudo. Porquê?

SARGENTONão é costume vê-lo por cá nestaépoca.

O sargento dá mais um passo para o lado e Jaime faz omesmo.

JAIMEVim ver como estava a casa. Estou apensar fazer umas obras...

SARGENTOJá está a pedir, já.

JAIMEQuer tomar alguma coisa, Gomes?

Coloca a mão no braço do sargento.

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102) INT. ESTÁBULO - DIA

No interior do estábulo Miguel mantém Mendes Oliveiraimobilizado, tapando-lhe a boca com um pano. O pideagita-se, tentando soltar-se. Consegue soltar uma perna echutar um dos baldes, que tomba com ruído.

Junto à porta, Joana encolhe-se, aflita.

103) EXT. ESTÁBULO - DIA

O sargento olha curioso para a porta aberta do estábulo econtorna Jaime.

SARGENTOTem convidados, Jaime?

JAIMEEu...? Quer dizer...

Nesse momento Joana sai do estábulo, apertando a blusa eajeitando a saia.

JOANAOlá...

O sargento sorri e olha para Jaime, cúmplice.

SARGENTOJá vi que sim.

(pausa)Obrigado pelo convite, mas estou deserviço.

JAIMENem uma cervejinha sem álcool?

SARGENTONem isso.

Volta a entrar para o jeep.

SARGENTOTelefone para a sua filha. Ela estápreocupada consigo. Diz que osenhor deu sumiço.

Jaime sorri, simpático.

JAIMEVou telefonar, obrigado. Váaparecendo, sargento.

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O sargento faz continência a Joana e o jeep arranca,levantando poeira.

104) INT. ESTÁBULO - DIA

No interior do estábulo Miguel solta a cabeça de MendesOliveira, aliviado.

O pide cospe o pano para o chão e fica a arfar.

105) INT. MONTE - DIA

Joana entra em casa de supetão, zangada. Jaime vem atrásdela.

JOANAIsto já foi longe demais.

JAIMEEstá quase a acabar, juro. O tiponão aguenta muito mais.

JOANAE depois? O que é que vão fazerdepois, já pensaste nisso?

Jaime não tem resposta para lhe dar.

JOANAHouve um momento, quando a GNRapareceu, que eu desejei que elesentrassem no estábulo e pusessem umfim a isto tudo.

JAIMENão digas isso.

JOANAÉ que eu não sei como é que istovai terminar, Jaime. O que é quevão fazer a esse homem quando eledisser o que vocês querem ouvir?

Joana começa a arrumar peças de roupa dentro do seu saco.

JOANAVão soltá-lo? Matá-lo? O quê?

JAIMEAinda não sei, Joana. É só o que teposso dizer.

Joana fecha o fecho do saco com um movimento brusco.

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JOANAEu não aguento mais. Não fui feitapara isto.

Sorri para Jaime, tristemente.

JOANAO meu pai ia ficar triste comigo,mas... não tenho coragem paracontinuar.

Jaime não responde e deixa-se cair numa cadeira.

106) EXT. CASA DE MENDES OLIVEIRA - DIA

(OMITIDA)

107) EXT. MONTE - ENTARDECER

Joana dirige-se ao seu carro, com o saco na mão. Miguelvem ao encontro dela.

MIGUELVais-te embora?

JOANANão quero ter mais nada a ver comisto. Vocês passaram todos oslimites.

MIGUELJá há muito tempo. Mas isso agora éirrelevante.

JOANAPara mim, não.

Joana entra no carro e abre a janela.

JOANAO meu pai lutou e morreu por muitascoisas, mas esta não foi uma delas.

Miguel desvia o olhar para a casa. Jaime está à porta.

MIGUELE o Jaime?

JOANAEle é um homem crescido. Nãoprecisa de mim para cometer os seuserros.

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Jaime vira costas e fecha a porta.

Joana liga o carro.

JOANAPensa na tua mulher, Miguel.

Põe o carro em movimento e afasta-se pelo caminhopoeirento.

108) INT. MORADIA DE HENRIQUE/SALA - NOITE

Henrique está a servir dois copos de whisky.

HENRIQUENão queres beber mesmo nada, amor?

Marla abana a cabeça. Está sentada no sofá, olhandoCatarina com um ar desconfiado.

MARLAObrigada, fofo.

Henrique traz os dois copos e passa um deles a Catarina.

HENRIQUEO teu pai gosta deste.

Catarina sorri e bebe um golo leve.

MARLAEntão você perdeu o seu pai, foi,Catarina?

Henrique olha para a jovem com ar severo.

HENRIQUEMarla!

(para Joana)Desculpa, Catarina...

CATARINAÉ uma maneira de pôr as coisas.

(para Henrique)Ele desapareceu há alguns dias enão me deu notícias desde aí.

HENRIQUEÉ mesmo coisa dele.

CATARINATinha esperança que o Henriquesoubesse de alguma coisa, porque o

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Miguel e a Joana também não estãopor cá.

HENRIQUENão, não sei. Se eles foram a algumlado esqueceram-se de me avisar.

MARLAO que é uma falta de respeito,diga-se.

HENRIQUEÓ Marla! Já chega.

Marla levanta-se, aborrecida.

MARLAAté à próxima, Catarina.

Sai da sala e Henrique acompanha-a com o olhar,distraindo-se um pouco de Catarina.

Catarina bebe um golo, ganhando tempo.

CATARINAO nome Mendes Oliveira diz-lhealguma coisa, Henrique?

Henrique reage bruscamente, voltando a olhar paraCatarina.

HENRIQUENão! Que eu veja, não. Porquê?

CATARINAO Miguel chamou isso a um dos meusclientes, no outro dia. Depoisdisfarçou, mas tenho a certeza deque o chamou por esse nome.

HENRIQUEE não é o nome do teu cliente,presumo?

CATARINANão – é Ferraz. Mas o mais estranhoé que ele também desapareceu.

Olha o homem, procurando pistas, mas Henrique não sedesmancha.

HENRIQUEDeve ser só coincidência, Catarina.

(pausa)

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Posso fazer mais alguma coisa porti?

Catarina percebe a deixa e pousa o copo.

CATARINANão, obrigada.

Levanta-se e Henrique ergue-se também.

HENRIQUEBem, nesse caso é melhor eu irfazer as pazes com a Marla. Ela émuito sensível.

Catarina dá um beijo na face de Henrique.

CATARINAObrigada, Henrique. Se o meu pailigar zangue-se com ele.

HENRIQUEZango mesmo, não te preocupes.

109) EXT. MONTE - NOITE

Jaime está sentado à mesa da sala do monte. Enche um copode whisky e bebe metade de um trago.

Encosta-se para trás na cadeira e esfrega os olhos. O seuaspecto, com a barba por fazer e olheiras marcadas,também já foi melhor.

Bebe o resto do whisky e derruba a garrafa vazia em cimada mesa, fazendo-a rodar como a agulha de uma bússola.Depois levanta-se e vai abrir as portas de um armário,procurando. Encontra outra garrafa de whisky, aindaselada. Tira a tampa e bebe um golo directamente dogargalo.

110) INT. ESTÁBULO - NOITE

Miguel está de pé, junto da porta do estábulo, olhandopara a casa onde uma luz brilha na janela. MendesOliveira balbucia atrás dele.

MENDES OLIVEIRASede... tenho sede...

Miguel vira-se. O homem olha para ele com ar suplicante.Miguel dirige-se ao banco de madeira e agarra numagarrafa de água meio cheia. Dirige-se ao pide e dá-lhe ogargalo. O homem bebe com sofreguidão e depois engasga-se, num ataque de tosse.

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MIGUELCalma, calma.

Passa a mão na testa do homem, que está a tremer. Dá-lhemais um pouco de água. Mendes bebe agora com mais calma.

MENDES OLIVEIRAObrigado.

Miguel endireita-se e olha de novo para fora.

MIGUELDurma um pouco.

MENDES OLIVEIRAPosso...?

Miguel não responde e afasta-se, saindo do estábulo.Mendes Oliveira fecha os olhos e baixa a cabeça, exausto.

111) INT. CASA DE MIGUEL/QUARTO - NOITE

Ana está sentada na cama, de óculos, com um romance namão. O telefone do quarto toca e ela inclina-seprecipitadamente para ele, deixando cair o livro.

ANAMiguel...?

INTERCALA COM:

112) EXT. MONTE - NOITE

Miguel hesita um pouco antes de responder a Ana.

ANAMiguel... és tu?

A voz de Miguel é trémula.

MIGUELSim. Como é que estás?

ANAEstou bem, estou bem. E tu?

Miguel não responde.

ANAQuando é que voltas? Estou tãopreocupada contigo.

MIGUELNão é preciso, está tudo bem.

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ANANão está certo, deixares-me assimsozinha, e passares tanto tempo semdizer nada.

MIGUELEu tenho estado a pensar... nonosso casamento. Tenho pensadomuito.

ANANão vamos falar nisso agora. Voltapara casa.

MIGUELJá não temos idade para adoptar umacriança, Ana. Somos velhos demaispara isso. Pelo menos é o que euacho.

(pausa)Para dizer a verdade, já nem temosidade para nos divorciarmos.

As lágrimas começam a correr pelo rosto de Miguel. Elefunga e limpa os olhos.

ANAVolta para casa, Miguel. Sinto atua falta.

Miguel fala com a voz tremida.

MIGUELAi, Ana, Ana... porquê? Sabesdizer-me porquê?

ANAO que é que tens?

MIGUELHá tanta coisa que eu te devia terdito. Tanta coisa... Mas agora – jápassou a altura certa. O nossotempo passou.

ANAO que é que se passa, Miguel? Porfavor-

MIGUELTenho de desligar. Adeus.

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ANAMiguel...?

Miguel desliga o telefone e dobra-se para a frente,soluçando. O telefone toca mas ele não atende. Depoisendireita-se e atira-o para longe.

O telefone fica caído no meio do mato, a tocar, enquantoao longe Miguel regressa ao estábulo.

113) EXT. ESPLANADA - DIA

Catarina está sentada numa esplanada, a tomar um café eum cigarro. O telemóvel toca e ela atende, com umaexpressão de algum espanto.

CATARINASim...?

INTERCALA COM:

113A) INT. CEMITÉRIO DOS PRAZERES – DIA

Joana está ajoelhada junto à campa do pai, falando aotelemóvel enquanto limpa os cravos murchos.

JOANASou eu, a Joana. Podes falar?

CATARINASe for rápido.

JOANAÉ por causa do teu pai.

CATARINAO que é que se passa? Onde é quevocês estão?

JOANAEu não estou com ele.

CATARINAO que é que se passa, então?

JOANANão é coisa para falar ao telefone.Quando é que nos podemos encontrar?

CATARINAAo fim da tarde...?

JOANAEm casa do teu pai, às seis.

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Joana desliga o telemóvel e olha o cravo murcho que estáa segurar.

114) INT. ESTÁBULO - DIA

Mendes Oliveira está sentado, amarrado como de costume. Oseu aspecto está cada vez pior.

Jaime e Miguel estão respectivamente à frente e atrásdele.

JAIMEO Marcelino foi preso por ti emFevereiro de 1970.

MIGUELEm Março começou a ser interrogadona António Maria Cardoso.

JAIMEEm Abril o corpo foi devolvido àfamília, para pagarem o funeral.

MIGUELO que é que se passou durante estesdois meses?

MENDES OLIVEIRANão sei... não lembro.

JAIMEMataste assim tantos que já não telembras dos detalhes?

MENDES OLIVEIRAEu não matei ninguém-

Miguel dá-lhe uma pancada violenta na cabeça.

MIGUELJá chega de mentiras!

JAIMEQuem é que matou o Marcelino?

Mendes Oliveira levanta o olhar para Jaime.

MENDES OLIVEIRANão sei. Não sei, já disse!

Miguel debruça-se para o pide.

MIGUELJá chega de mentiras, meu porco.

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Nesse momento ouve-se uma BUZINA no exterior. MendesOliveira reage imediatamente.

MENDES OLIVEIRASocorro! Aqui! Soc-

Miguel tapa-lhe a boca com o pano, abafando-o enquanto ohomem se debate violentamente.

Jaime corre para a porta, hesita por um momento, e depoissai.

Miguel fica a olhar para a porta, lívido, enquantoimobiliza a cabeça do homem. Inconscientemente, o seuolhar dirige-se para a espingarda de Jaime, encostada àparede. Depois novamente para a porta. Sua abundantementee fala em voz baixa.

MIGUELSe não paras eu parto-te o pescoço.Juro que parto.

Nesse momento uma silhueta recorta-se contra a porta.Miguel semicerra os olhos. É Henrique, que fica especadoa olhar para a cena, abanando a cabeça.

MIGUELHenrique?!

Miguel solta o pano que amordaça o pide.

MENDES OLIVEIRASocorro, por favor, senhor. Tire-medaqui.

115) INT. MONTE - DIA

Henrique anda agitadamente de um lado para o outro,gesticulando enquanto fala com Jaime e Miguel.

HENRIQUEVocês são uns idiotas! Uns idiotascompletos! Fazer uma coisa destas?!

JAIMEAlguém tinha de fazer alguma coisa.

HENRIQUEPara isso é que há a polícia, ostribunais, as prisões, porra!

MIGUELIsso é muito fácil de dizer, lá nosteus gabinetes junto ao céu, e nos

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teus almoços com os ministros e ospoderosos.

HENRIQUENão me lixes, pá! Isso são tretas.Eu também fui preso, eu também fuitorturado. E não ando aí a raptarpessoas.

Jaime fala calmamente.

JAIMEFoi ele que matou o Marcelino. Foieste porco. Achas que um gajo assimmerece viver?

HENRIQUEQue conversa é essa, pá? Se mereceviver?! É claro que merece, estáslouco? Vocês esqueceram tudo peloque nós lutámos? Porra!

Vira-se, desesperado.

HENRIQUEE agora eu sou cúmplice desta merdatoda.

MIGUELPodes ir-te embora, Henrique. Elemal te viu - a tua carreira nãoestá em perigo.

HENRIQUEAchas que eu posso confiar nisso?Em dois loucos como vocês?

Jaime levanta-se.

JAIMEVamos acabar com isto. O gajo vairachar esta noite.

Miguel levanta-se também, decidido.

MIGUEL(para Henrique)

Daqui ninguém sai sem falar.

115A) INT. CASA DE JAIME/SALA – NOITE

Joana e Catarina estão sentadas face a face.

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CATARINAO que é que se passa, afinal?

JOANATu tens um cliente chamadoFrancisco Ferraz, não tens?

Catarina olha-a desconfiada.

CATARINASim...?

JOANANa realidade, o seu nome verdadeiroé José Mendes Oliveira.

CATARINAMendes Oliveira...?!

JOANAJá ouviste esse nome? Eu vivi avida toda com ele.

(pausa)Mas deixa-me contar-te tudo desde oinício.

Tira um cigarro do maço de Joana e acende-o, inspirandoprofundamente. Depois olha para Catarina.

116) INT. ESTÁBULO - NOITE

Mendes Oliveira está sentado, amarrado. O seu aspecto éde um farrapo humano.

Miguel é quem está mais alterado. Jaime acompanha-o eHenrique acompanha tudo à distância.

MIGUELEu não acredito que tu não telembres do Marcelino.

MENDES OLIVEIRANão lembro, juro por Deus.

JAIMETemos a noite toda.

MIGUELOlha para mim. E de mim, lembras-te? Olha para a minha cara - MiguelMiranda.

O pide desvia o olhar. Miguel dá-lhe uma estalada.

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HENRIQUEMiguel...!

Jaime agarra Henrique, não o deixando intervir.

MIGUELNão fujas, olha para mim. Eu luteina guerra, tive louvores, fui umbom militar. Mas isso não me serviude muito quando caí nas tuas mãos,pois não?

Mendes Oliveira olha fixamente para Miguel. Desta vezfala com maldade.

MENDES OLIVEIRAJá estou a lembrar-me... Eu até tetratei bem, não foi?

Miguel dá um passo para trás.

MENDES OLIVEIRAEu nem sempre gostava do meutrabalho, mas confesso que no teucaso abri uma excepção.

Os olhos de Miguel desfocam, perdidos no tempo.

117) INT. EDIFÍCIO DA PIDE/SALA DE INTERROGATÓRIOS - DIA(FLASHBACK)

Miguel está de pé, nu, de costas, imobilizado por doisagentes da PIDE.

Mendes Oliveira aproxima-se dele segurando dois caboseléctricos descarnados nas pontas. Encosta os terminais,fazendo soltar uma faísca.

MENDES OLIVEIRA (V.O.)Militares renegados, desertores,traidores da pátria - para vocês eutinha uma receita especial.

Mendes Oliveira estende os dois fios eléctricos emdirecção à zona genital de Miguel. O médico retorce-se dedor e grita desalmadamente, mas não ouvimos nada.

As luzes da sala de interrogatórios tremem e quase seapagam. Miguel desfalece e só não cai porque os doispides continuam a apará-lo.

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118) INT. ESTÁBULO - NOITE

Mendes Oliveira olha para Miguel. O seu rosto destroçadopelo cansaço transfigurou-se e é agora uma máscara domal.

MENDES OLIVEIRADe ti eu lembro-me, sim.

JAIMEDo que é que ele está a falar,Miguel?

Miguel olha para os amigos.

MIGUELDisto...

Com gestos lentos e deliberados desaperta o cinto dascalças e abre a braguilha.

A expressão nas caras de Jaime e Henrique reflectem ohorror do que estão a ver.

MIGUELEu, que passo a vida a salvarvidas, nunca fui capaz de geraruma.

118A) INT. CASA DE JAIME/SALA – NOITE

Catarina está de pé, exaltada. Joana olha-a, embaraçada.

CATARINAComo é que tu os deixaste fazerisso, Joana? Isto é contra todos osprincípios. Contra os princípiosdeles, bolas.

Vira-se para Joana.

CATARINAO meu pai ensinou-me um código deconduta. Valores. A democracia, aliberdade, a justiça. Foi por causadele que eu fui para advogada,Joana.

JOANAEles estão a fazer justiça, decerta forma...

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CATARINAÉ isso que achas? A lei da selvaagora é justiça? Cada um por si, eolho por olho? É isso?

Joana levanta-se, também exaltada.

JOANAO teu pai não me pediu autorização.

CATARINAE se tivesse pedido, era diferente?

JOANAClaro que sim.

CATARINAIsso eu já não acredito. O meupai...

(pausa)O meu pai era diferente antes devocês começarem a andar juntos.

JOANAEra o que faltava. Agora, a culpado teu pai beber é minha?

CATARINANão - isso não, mas... Ele precisade estabilidade; de umaestabilidade que tu não lhe dás,nem nunca vais dar.

JOANAO que é que tu sabes de nós, paradizer uma coisa dessas? És muitoatrevida.

Joana vai responder, mas depois respira fundo.

CATARINAEu adorava ficar aqui a discutircontigo, mas há coisas maisimportantes a decidir.

As palavras dela têm o dom de fazer Joana cair em si.

JOANASim, tens razão. O que é que vamosfazer? As duas.

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CATARINAEu sei o que é que temos de fazer.Não sei é se temos coragem paraisso.

118B) INT. ESTÁBULO - NOITE

Jaime está perto de Miguel. O ambiente no estábulo éagora opressivo. Os homens entreolham-se, calados,inseguros sobre o que fazer a seguir.

Mendes Oliveira sorri, com malícia, e interrompe osilêncio.

MENDES OLIVEIRATu eras casado, não eras? A tuamulher gostou do meu serviço?

Miguel vira-se para o homem. Depois, e sem aviso, saltapara cima dele, fazendo tombar a cadeira de costas.Agarra-se ao pescoço do pide, tentando estrangulá-lo.

MIGUELMaldito! Maldito!

Jaime e Henrique precipitam-se para ele, agarrando-o, maso amigo está possesso e resiste, continuando aestrangular o pide.

JAIME E HENRIQUEPára! Não, Miguel! Larga-o.

Henrique consegue puxar Miguel para o lado; os doistombam e Miguel rola sobre Henrique.

Jaime debruça-se sobre Mendes Oliveira, que está aestrebuchar, tentando reanimá-lo.

Miguel tenta erguer-se, ainda furioso. A espingarda deJaime está encostada à parede, no lugar do costume.Miguel agarra nela e aponta-a para os outros homens.

MIGUELVou matar-te, porco!

Henrique arrasta-se para o lado, mas Jaime coloca-seentre Miguel e Mendes Oliveira.

JAIMENão faças isso, Miguel.

MIGUELSai da frente! Sai da frente que euquero acabar já isto.

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JAIMEMiguel...

Jaime estende a mão para o cano da arma.

MIGUELNão me obrigues a disparar, Jaime.

HENRIQUESai da frente dele.

Jaime agarra no cano da arma e puxa-a para o seu próprioestômago. Mantém-na aí enquanto continua a falar.

JAIMEQuantas horas é que um gajo demoraa morrer com um tiro na barriga?

Miguel empurra-o com o cano da arma.

MIGUELPor favor...

JAIMEE sofre como o caraças, não é?

O dedo de Miguel acaricia o gatilho da arma. MendesOliveira parou de tremer e olha a cena com evidentedeleite. Henrique começa a levantar-se, devagar, quandose ouve...

UM TIRO.

O cano fumegante da espingarda está virado para cima,para o tecto do estábulo. Miguel, que segura a arma nessaposição, soluça de olhos fechados. Jaime aproxima-se delee abraça-o, acalmando-o.

119) INT. MONTE - NOITE

Jaime entra na sala e pousa a espingarda em cima da mesa.

Henrique entra depois, seguido por Miguel. Este deixa-secair no sofá, exausto.

MIGUELTudo o que a Ana queria nesta vidaera ter filhos. O Mendes Oliveiraroubou-nos isso.

JAIMENão sabia.

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MIGUELNão é propriamente uma coisa que seande por aí a anunciar.

Vira-se para os amigos.

MIGUELMas a vida continua, não é? A nossacontinuou. Não exactamente a vidaque sonhámos, mas a que pudemoster. E agora até essa vai acabar.

Ficam um instante em silêncio.

HENRIQUEO que é que vamos fazer?

JAIMENão sei. Realmente não sei.

HENRIQUEDo meu ponto de vista, só há duasalternativas.

Os outros dois ouvem-no com atenção.

HENRIQUEOu entregamos este gajo à polícia,e arcamos com as consequências doque fizemos.

JAIMEOu...?

HENRIQUEOu o pide desaparece para sempre ea história termina aqui.

JAIMEDesaparece?!

Henrique olha em redor.

HENRIQUEHá muita terra por aqui. E tu tensuma pá, não tens?

O silêncio volta a instalar-se.

MIGUELHá outra solução. Um de nós assumirtudo isto e arcar com asresponsabilidades.

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HENRIQUEQuem?

MIGUELQuem é que tem menos a perder?

(para Henrique)Tu tens a tua carreira, os teusnegócios, o teu filho.

(para Jaime)E tu - tens a Joana e a Catarina.

Jaime avança para o amigo.

JAIMENem penses nisso, Miguel. E a Ana?E os teus pacientes? Além disso, aculpa de tudo isto é minha.

Olha para Henrique.

JAIMEEu amanhã entrego o Mendes àpolícia. Vocês levam o carro dele eeu trato do resto.

HENRIQUEMas ele vai falar. Vai denunciar-nos a todos.

JAIMENão - ele tem coisas demais aesconder. Se eu não o denunciar eletambém não nos denuncia.

(para Miguel)Eu invento uma história, não tepreocupes. É nisso que eu sou bom.

Miguel baixa o olhar.

MIGUELVamos dormir. Hoje não consigopensar.

120) EXT. MONTE - AMANHECER

O dia nasce sobre os intermináveis campos alentejanos,com a sua promessa de vida sempre renovada.

121) INT. MONTE - AMANHECER

Jaime endireita-se no cadeirão onde dormiu. Esfrega osolhos e olha em redor. O seu olhar pára no sofá onde

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Miguel costuma dormir. A manta está lá, amarrotada ecaída no chão, mas de Miguel não há sinal.

JAIMEMiguel...?

Jaime olha para cima da mesa. A arma também já não estálá. Levanta-se e dirige-se à porta da casa.

122) EXT. MONTE - DIA

Jaime sai e olha para o exterior. Nada.

JAIMEMiguel!

Henrique surge atrás dele, com ar de quem dormiu mal.

HENRIQUEO que foi?

JAIMEViste o Miguel?

Henrique abana a cabeça. Os dois olham para o estábulo.

123) INT. ESTÁBULO - DIA

Jaime e Henrique entram de rompante no estábulo. Acadeira está vazia, com as cordas caídas no chão.

JAIMEPorra! O que é que aquele gajo foifazer?

HENRIQUEEra só o que faltava.

Jaime sai.

124) EXT. MONTE - DIA

Jaime olha em redor, vasculhando o horizonte.

Ao longe, noutro monte, a mais de um quilómetro dedistância, vêm-se as figuras longínquas de dois homensque caminham.

JAIMEAli. Porra, Miguel!

(para Henrique)Anda, vamos atrás dele.

Henrique recua.

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HENRIQUENão - eu não vou. Não posso.

JAIMEO Miguel vai fazer uma asneira,Henrique. Ele tem a minhaespingarda.

HENRIQUEAsneiras é só o que vocês têm feitodesde o início.

JAIMEMas isto não. Tu é que deste aideia, Henrique.

HENRIQUENão sejas hipócrita. Diz-me que nãotinhas também pensado nisso.

Jaime começa a descer a encosta, sem responder.

HENRIQUENão sejas estúpido! Deixa-oterminar o que vocês começaram!

125) EXT. CAMPO - DIA

Mendes Oliveira caminha alguns passos à frente de Miguel,que leva a espingarda. O pide carrega uma pá nas mãos efala por cima do ombro.

MENDES OLIVEIRAE agora, como é que vai ser?

MIGUELAnda.

MENDES OLIVEIRANão andámos já o suficiente? Estelocal é tão bom para morrer comoqualquer outro.

MIGUELContinua!

MENDES OLIVEIRAOu está a faltar-te a coragem.

Pára e roda, enfrentando Miguel.

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MENDES OLIVEIRAÉ isso, não é? O senhor doutor nãovai ter coragem de disparar essaarma a sangue frio.

Miguel aponta-lhe a arma.

MIGUELNão me desafies, pá. Continua aandar!

Mendes Oliveira olha em redor e depois recomeça a andar.

126) EXT. ESTRADA RURAL - DIA

Um jeep da GNR acelera por uma estrada rural.

127) INT. JEEP DA GNR - DIA

Um SOLDADO da GNR segue ao lado do condutor.

No banco de trás, em silêncio, segue o sargento Gomes,ladeado por Joana e Catarina.

128) EXT. TRILHO NO CAMPO - DIA

Jaime anda apressadamente pelo trilho no campo,procurando sinais da passagem de Miguel e do pide.

JAIMEMiguel! Miguel!

129) EXT. CAMPO - DIA

Mendes Oliveira continua a caminhar seguido por Miguel.Ouve o grito distante de Jaime.

JAIME (O.S.)Miguel!

Miguel pára.

MENDES OLIVEIRAO teu amigo já aí vem.

Miguel hesita, confuso. Depois aponta a arma para o pide.

MIGUELLarga a pá.

O pide obedece.

MIGUELAjoelha-te! Agora!

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Mendes Oliveira ajoelha-se com dificuldade, levantando asmãos.

MENDES OLIVEIRAVai ser aqui, então?

Olha à volta. Miguel aponta a arma.

MIGUELCala-te!

A expressão de Mendes Oliveira muda novamente. Agoraparece finalmente ter percebido que vai morrer, e estáassustado.

MENDES OLIVEIRAPor favor. Não faças isso. Eu contotudo...

MIGUELO quê...?

MENDES OLIVEIRANão queres saber como é que morreuo teu amigo?

Miguel hesita uma vez mais. Mendes Oliveira olha emredor. A voz de Jaime ouve-se, mais perto.

JAIME (O.S.)Miguel, onde estás?

Mendes começa a falar.

MENDES OLIVEIRAO Marcelino era duro.

130) INT. EDIFÍCIO DA PIDE/SALA DE INTERROGATÓRIOS –NOITE (FLASHBACK)

Vemos Mendes Oliveira por trás de Marcelino, que estásentado e amarrado. O homem tem um saco de plásticoenfiado na cabeça e tenta respirar mas o saco cola-se-lheà boca.

MENDES OLIVEIRA (V.O.)Dos mais duros que encontrei. Nãofalava nem por nada.

131) EXT. MONTE - DIA

Henrique está a entrar a sair da casa do monte quando ojeep da GNR chega ao local.

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HENRIQUEPorra!

Henrique esconde-se atrás da esquina.

O sargento e um soldado desembarcam, seguidos por Joana eCatarina.

Enquanto os militares se dirigem ao estábulo, Joana olhaem redor. Vê os vultos dos homens à distância. Apontapara lá.

JOANAEstão ali!

Os militares começam a correr na direcção que elaapontou.

132) EXT. CAMPO - DIA

Mendes Oliveira continua a falar, sempre sob a mira deMiguel.

MENDES OLIVEIRAAndámos nisto mais de um mês, atérecebermos instruções de cima.

133) INT. EDIFÍCIO DA PIDE/ESCADAS – NOITE (FLASHBACK)

Mendes Oliveira sai de uma sala. Afasta-se para darpassagem a Marcelino, que vem cambaleante, meio apoiadonum dos outros agentes da PIDE.

O agente cruza um olhar com Mendes Oliveira quando passapor ele.

MENDES OLIVEIRA (V.O.)As ordens eram claras. O Marcelinodevia ter um acidente.

No momento em que Marcelino chega ao primeiro degrau dasescadas, o pide que o apoia afasta-se e coloca-lhe a mãonas costas.

Mendes Oliveira carrega no interruptor e tudo ficaescuro. Ouve-se o barulho de um corpo que rola pelasescadas e um grito abafado, até se fazer de novo osilêncio.

As luzes voltam a acender-se. O pide está no cimo dasescadas, olhando para baixo. Mendes Oliveira acerca-sedele e olha na mesma direcção.

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O corpo inerte de Marcelino jaz no fundo do lance deescadas, numa posição impossível.

MENDES OLIVEIRA (O.S.)Eu não queria fazer isso, juro. Eunão sou assassino.

134) EXT. MONTE - DIA

Miguel avança para Mendes Oliveira com a arma apontada. Opide, que continua ajoelhado, ergue as mãos para a cara.

MENDES OLIVEIRAEu só recebia ordens, sabe? Nóstodos só recebíamos ordens. A culpanão é nossa. Você foi militar, sabeo que é isso. A culpa era deles.

Miguel quase encosta a arma ao rosto do pide.

MIGUELFilho da...

Nesse momento ouve-se um barulho próximo.

JAIME (O.S.)Baixa a arma, Miguel.

Mendes Oliveira e Miguel olham para Jaime que está aalguns metros e se aproxima lentamente, com as mãosligeiramente erguidas.

JAIMEJá chega. Já fomos longe de maiscom esta história.

MIGUELEle acabou de confessar.

Mendes Oliveira olha em redor, aproveitando a interrupçãode Jaime. Vê a pá pousada perto de si.

JAIMEJá não interessa, Miguel.

MIGUELEle matou o Marcelino. Matou-o.

Mendes Oliveira agarra na pá e roda-a com violência,acertando na cara de Miguel. O médico cambaleia e larga aespingarda. O pide agarra-a imediatamente e levanta-se.

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Jaime corre para os dois. Mendes Oliveira ergue-se edispara à queima-roupa contra Jaime, que se desvia.

O tiro atinge Jaime de raspão numa perna. O homem cai eMendes Oliveira recua, de arma na mão, de forma aconseguir ter os dois sob mira.

Miguel arrasta-se até Jaime, que está agarrado à pernaferida. Mendes Oliveira sorri. A máscara dearrependimento desapareceu e foi substituída por umsorriso malévolo.

MENDES OLIVEIRAComo as coisas mudam de um momentopara o outro.

MIGUELEle está ferido. Tenho de ir buscarajuda.

MENDES OLIVEIRAPodes é agarrar nessa pá e começara cavar.

MIGUELNão.

Mendes Oliveira ergue a arma, fazendo pontaria.

MENDES OLIVEIRAEntão vais morrer, como o outrocafageste morreu.

O sargento da GNR surge nesse momento a alguns metros,seguido pelo outro soldado. Estaca de repente quando vêMendes Oliveira, e aponta a pistola ao pide.

SARGENTOAlto! Mãos ao ar.

Mendes Oliveira roda, com a arma ainda apontada.

SARGENTOLargue a arma, já!

Mendes Oliveira não obedece e dispara contra osmilitares, que mergulham para o lado, procurando abrigo.

O sargento riposta com um TIRO, seguido pelos DISPAROS dooutro soldado.

Mendes Oliveira é atingido uma, duas vezes, e cai sobreum joelho.

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SARGENTOChega! Chega!

O pide tomba para o lado e fica a olhar para o céu,imóvel.

Joana e Catarina surgem logo a seguir. Passam pelo pidetombado. Catarina leva a mão à boca, chocada, mas Joanapuxa-a pelo braço, e continuam a correr em direcção aJaime e Miguel.

135) EXT. MONTE - DIA

(OMITIDA)

136) EXT. CAMPO - DIA

(OMITIDA)

137) EXT. TRILHO NO CAMPO - DIA

(OMITIDA)

138) EXT. TRILHO NO CAMPO/NOUTRO LOCAL - DIA

(OMITIDA)

FADE TO BLACK.

FADE IN:

139) INT. ENFERMARIA - DIA

(OMITIDA)

140) INT. MORADIA DE HENRIQUE/DIA

Henrique entra em casa, com ar cansado.

HENRIQUEMarla...?

Fecha a porta.

141) INT. MORADIA DE HENRIQUE/CORREDOR – DIA

Henrique sobe os últoimos degraus da escada e entra nocorredor em direcção ao seu quarto. Segue de cabeçabaixa.

Começamos a ouvir o som de vozes e risos que vêm doquarto. Henrique para e levanta a cabeça. A sua expressãomuda.

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Caminha de novo para o quarto, mas desta vez com apreocupação de não ser ouvido. Vindos da portaentreaberta ouvem-se agora, nitidamente, o som das vozes.

Henrique chega ao pé da porta e espreita.

POV de Henrique – Marla, nua, de costas, está sentada emcima de um homem, na cama de casal.

Pior ainda – o homem é Bernardo.

A expressão de Henrique muda. O choque é total. Mas ohomem não faz nada. Recua dois passos e volta a afastar-se pelo corredor.

Chega às escadas e encosta-se à parede. Solta um únicosoluço, abafado, e deixa-se escorregar até ficar sentadonos degraus, sozinho, assombrado pelos risos da namoradae do filho.

CORTA PARA:

142) EXT. CASA DE MIGUEL – DIA

Ana está no jardim da casa, com Maria. Estão a fazerramos de flores. As duas param de brincar quando o carrode Miguel estaciona.

Miguel sai do carro e acena. Ana levanta-se e ajeita aroupa. O marido aproxima-se.

ANAVoltaste.

MIGUELAcho que sim...

Olha para a criança, que lhe estende uma flor, sorrindo.Miguel agarra nela ao colo.

MIGUELComo é que te chamas? Maria?

Começa a caminhar para dentro de casa.

MIGUELJá te disseram que és muito bonita,Maria?

Ana sorri e segue os dois.

CORTA PARA:

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143) INT. CASA DE JAIME – DIA

A porta da casa de Jaime abre-se. Ele entra, coxeando,apoiado em Joana e Catarina. A perna ferida foi ligada.

JOANACuidado... Senta-te aí.

CATARINAVou buscar água.

Jaime deixa-se cair no sofá.

JAIMEJoana...

JOANANão digas nada. Depois falamos.

Afasta-se em direcção à cozinha.

Jaime olha em redor. Vê o manuscrito em cima dasecretária, com o post-it amarelo que Catarina escreveu.Estica-se e agarra no volume.

No post-it está escrito:

“Não arranjas um final melhor?”

Jaime sorri e abana a cabeça. Olha para a cozinha, ondeCatarina e Joana falam com alguma cumplicidade.

JAIME(para si)

Arranjo. Arranjo, sim.

Volta a olhar para o manuscrito. Depois joga-o para ocesto do lixo.

FADE OUT.

FIM