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ARACELY MEHL

GUERREIRO DE PAPELPrimeira edioSo Paulo2015

Para meu esposo e filha, sem os quais minha vida no teria sentido. Obrigada por terem me escolhido. Amo e amarei vocs para sempre.

De almas sinceras a unio sinceraNada h que impea: amor no amorSe quando encontra obstculos se altera,Ou se vacila ao mnimo temor.Amor um marco eterno, dominante,Que encara a tempestade com bravura; astro que norteia a vela errante,Cujo valor se ignora, l na altura.Amor no teme o tempo, muito emboraSeu alcance no poupe a mocidade;Amor no se transforma de hora em hora,Antes se afirma para a eternidade.Se isso falso, e que falso algum provou,Eu no sou poeta, e ningum nunca amou.

William Shakespeare

Prlogo

A viagem seria longa e angustiante, mas, eu j conhecia aquele sentimento que rondava minha vida havia tantos anos. Uma dor na alma, um grito contido na garganta, um aperto e uma saudade imensa no corao, um retorcer nos msculos dos braos e das mos, como se quisesse alcanar, abraar, tocar, beijar e chorar no ombro de um ser amado do qual eu sentia tanta falta e nem sabia por que, muito menos quem ele era: seu nome, seu cheiro, o som de sua voz, seu sorriso...

Entrei no avio, olhei em volta e encontrei minha poltrona, em cima da asa, corredor, como havia pedido: no me sentia muito confortvel com aquelas sacudidelas infernais que as turbulncias trazem. Um grupo de senhoras de idade avanada entrou enchendo o lugar com um perfume doce e forte, muitas malas, sorrisos e uma conversa alta, pareciam um grupo de velhas amigas que no se viam h anos, pois no paravam de falar. Irritei-me com tantos sorrisos: quando se est triste, ver algum to feliz, irritante! Eu s queria paz, quietude na alma e, sobretudo silncio, por isso dei graas a Deus quando o grupo ruidoso e alegre se dirigiu para o fundo do avio e um rapaz bem jovem, com um fone de ouvido j ligado, sentou- se ao meu lado na janela e logo procurou pelo seu travesseiro. Eu gostava muito de conversar com pessoas idosas e imaginar suas vidas, mas, naquele dia, no queria falar, nem ouvir nada sobre ningum, minha vida j estava complicada o suficiente; novamente. Encolhi-me na poltrona e esperei o sono chegar...

Nada me fez dormir, tentei um lado e depois o outro e tambm tentei tomar um copo do vinho tinto ruim que a aeromoa havia conseguido na classe executiva, mas nada, nem mesmo a combinao do vinho com um remdio para relaxar que eu tomara antes de decolar me faziam esquecer as tantas coisas que havia passado em minha vida, antes de decidir embarcar naquele avio. Minha mente passeava no passado e nos momentos de minha vida que haviam me conduzido at ali e me perguntava se agora, finalmente, conseguiria livrar- me daquela angstia que me perseguia desde minha adolescncia...PARTE I

HELENA...Captulo IO guerreiro de papel.

Helena saiu da escola e se dirigiu at a biblioteca de sua cidade. Adorava aquele prdio que lhe lembrava dos castelos dos livros que tanto gostava de ler. Sempre fora fascinada por histria. Nas aulas, se sentia transportar para um mundo distante ao ouvir as palavras da professora, uma senhora que tentava esconder, a todo custo, sua idade j avanada sob camadas e mais camadas de maquiagem, mas, que tinha o dom de contar os fatos passados de uma maneira que Helena conseguia at mesmo ouvir o som das vozes de protesto da Revoluo Francesa, o poder enigmtico dos faras egpcios, o calor das fogueiras da Inquisio Espanhola e o som dos tiros e gritos no Dia D nas praias da Normandia.

Naquele dia; o dia em que a angstia apareceu pela primeira vez, ela estava feliz: uma amiga, que tinha um irmo mais velho, lhe contara exaltada e sorridente que este iria pedir Helena em namoro. Tudo isso parece no ter importncia hoje, mas, naquele tempo, Helena no era a mulher forte e independente que hoje. Era uma menina gordinha, insegura de sua beleza e, como todo adolescente, procurando ser aceito pelo seu grupo. Ir biblioteca e sentar no meio daqueles livros havia sido muitas vezes uma fuga do mundo exterior que lhe sufocava por ela no estar dentro dos padres que a sociedade lhe impusera. L, a sua inteligncia valia mais que sua beleza e naquele espao cercado por tantos heris e heronas, ningum era melhor do que ela.

Subiu as escadas sem nem perceber os degraus, flutuava, tamanha era a sua felicidade. Naquele dia, no imaginou que era uma revolucionria subindo as escadas de Versailles ou ainda uma caadora de vampiros entrando sorrateira nos domnios do mal. No, Helena no se imaginava uma princesa indefesa esperando por seu heri, na verdade, sempre preferiu os viles das histrias que lia: adorava a madrasta da Branca de Neve e a bruxa que fez Aurora dormir cem anos: Malvola. Queria ser poderosa e independente e achava que algum to coitadinho e mimado como a Bela Adormecida, deveria mesmo dormir para sempre.Estava to absorta com aquela notcia que se sentia meio abobada, devolveu o livro que tinha na bolsa e que havia lido muito relutantemente para um trabalho da escola: A Escrava Isaura: outra coitadinha. Quando j estava saindo, algo lhe chamou a ateno num canto da biblioteca ao qual nunca se dirigira antes: a sesso de artes.

Viu uma coleo nova, dez volumes sobre arte na antiguidade. Esticou o brao e pegou o primeiro que viu. Quando o abriu, ela veio e invadiu sua alma. Sentiu toda a angstia que lhe acompanharia por muito tempo em sua vida se instalando dentro dela, a dor de uma saudade imensa rasgando seu peito e lgrimas inexplicavelmente lhe escorreram pelo rosto. Os sons da rua, das pessoas falando, tudo estava to distante, lento.... Suas pernas amorteceram, um n profundo se instalou na garganta. Olhou ao redor e se sentiu perdida, sozinha num mundo ao qual no pertencia mais e, aquele livro, parecia ser um precioso fio de luz que a ligava ao nico lugar em que queria estar, aquele que era seu lar, seu porto seguro. Abraou o livro como se abraa um ser amado que volta de um pas distante depois de muitos e muitos anos e foi andando at o balco. Suas mos estavam dormentes, sua boca seca e as pernas no a obedeciam. Ana, uma senhora que sempre a atendia nas milhares de vezes que havia estado l, notou a palidez de Helena e perguntou se ela estava se sentindo bem. Helena deu uma resposta evasiva porque sabia que no iria conseguir expressar o que estava se passando sem que achassem que ela estava ficando louca. Ana lhe disse que devia ser fome, afinal, segundo ela, j era quase uma da tarde e crianas precisam se alimentar.15