guéroult, martial - o método em história da filosofia

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  • 7/25/2019 Guroult, Martial - O mtodo em histria da filosofia

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    O MTODO EM HISTRIA DA FILOSOFIA*

    Martial Gueroult (Collge de France)Traduo: Nicole Marcello

    * Texto da conferncia ministrada na Faculdade de Filosofia da Universidade de Ottawa em19 de outubro de 1970.

    Caros Colegas,

    Permitam-me comear expressando o prazer que sinto ao estar entre vocs. Todo o prazer, etambm toda a emoo, pois como poderia um francs de Frana no se emocionar aodiscursar no Canad, numa Universidade do Canad, perante um auditrio de franco-canadenses? Essas poucas semanas que passei em seu pas fizeram brotar em mim tantossentimentos, tantas lembranas, e eu fiquei profundamente tocado pela acolhida que aqui

    recebi, de modo que mais do que natural que eu esteja emocionado! Por outro lado, paramim tambm uma grande alegria encontrar ocasio de difundir entre vocs, fora de Paris eda Frana, ideias que me so caras, pois nos apegamos s nossas ideias medida que nospersuadimos de sua verdade; e ns as amamos, como diz Bossuet, como aos nossos filhos,felizes de poder abrir-lhes caminhos mundo afora, e esta Universidade um desses caminhos.Quais so essas ideias? So, em primeiro lugar, alguns princpios simples que regem omtodo da histria da filosofia. So tambm, para fund-los, uma concepo da natureza ouda essncia da filosofia, no edificada a priori, ou deduzida como uma consequncia de umadoutrina j pronta, mas nascida de uma reflexo espontnea acerca dos objetos naturalmenteaqui disponveis para o historiador, nesse caso, as filosofias, monumentos eternos do

    pensamento humano, fonte perene, geradora incessante de reflexo e de luz. , enfim, aaplicao desse mtodo a casos concretos. Esse uso aquele que, na realidade, o maisimportante, porque um mtodo nada mais do que um instrumento e sua utilizao queacaba por decidir seu valor. Discutir in abstracto os mritos de um mtodo no tem o menorsentido. O que conta, antes de mais nada, como dizia Kant, a resposta questo quid facti:qual de fato seu rendimento. Na histria da filosofia acontece a mesma coisa. Quando ummtodo se mostra de fato melhor do que outro para esmiuar os textos difceis, para tirar dasombra teorias fundamentais somente aventadas que esclarecem todo o resto, e assimfornecer as chaves para uma compreenso perfeita, esse mtodo ter se provado e seestabelecido de fato como legtimo e recomendvel. Buscar ento seu fundamento na

    natureza de toda filosofia nada mais do que um empreendimento especulativo cujoresultado pouco poderia aumentar ou diminuir seu crdito, o qual pde de antemo inspirarseus resultados concretos.A aplicao desse mtodo a Fichte, Descartes, Malebranche e Berkeley, pareceu darresultados suficientemente interessantes para que eu me animasse a coloc-lo em prticarecentemente no estudo de Spinoza.Dito isso, urgente caracterizar de forma mais precisa um mtodo que me parece que, talvezcom um pouco de presuno, eu insinuei que tivesse valor antes de ter dito, finalmente, emque ele consistia.

    O historiador da filosofia tem de escolher entre dois pontos de vista. Ele pode levar em contaa sucesso de doutrinas, o movimento das ideias atravs do tempo, a passagem de uma

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    doutrina para outra, a transformao de temas e problemas. Ele se interessa, portanto, maispelas ligaes e pelas transies do que pela economia interna de doutrinas e obras. Ele sesitua num ponto de viso dinmico, no devir, deixando-se levar, de certa forma, pelo fiocondutor do pensamento humano. Esse ponto de vista mais propriamente histrico est entreos mais legtimos. Ele permite ampliar perspectivas, reunir grupos, fazer perceber num

    mesmo contexto os eventos polticos, econmicos, religiosos, ideolgicos, de acordo com osincronismo de suas evolues ou revolues. A essa escola eu darei o nome de histriahorizontal da filosofia. Ela ilustrada por esses tratados que comeam em Tales e terminamem Heidegger e, num estilo totalmente diferente, pelas obras daqueles que chamamos dehistoriadores das ideias, ou ainda tambm pelos historiadores da cultura. A vantagem dessahistria que ela eminentemente histrica. Seu inconveniente que, o que ganha no mbitohistrico, ela perde no mbito filosfico. Porque, finalmente, ela deixa de se fixar em seusprprios objetos: as doutrinas. Estas esto apenas levemente esboadas, resumidas em seusprincpios gerais, suas afirmaes e seus resultados esto separados de suas provas e de suaarquitetura, e tudo isso em detrimento de uma anlise aprofundada, de exibir sua estrutura

    interna. Ela projeta a nossa frente uma espcie de pelcula cinematogrfica, desfilandosilhuetas que, assim que aparecem, esmaecem para depois sumirem. Ela nos faz vagar comonum cemitrio, onde nos detemos com certa reverncia por alguns minutos diante de cadalpide. Ou, ento, ela nos conduz por essa Galerie der Narrheiten que ironiza Hegel seguindoDiderot. Ela evoca essa Tentao de Santo Antnio, onde Flaubert exibe diante do santo osdeuses de diversas religies que, assim que passam, viram p. Ela tambm geradora deceticismo e de desencorajamento. Para que serve retomar esse rochedo de Ssifo? Quevaidade o esforo dos homens a partir do momento em que pensam filosoficamente!Contudo, aquele que se apega expressamente aos objetos dessa histria, isto , s grandesfilosofias, desconhece esse sentimento. Ele sente como se elas fossem eternas. Ele constata

    que elas sempre esto de p, algumas h milnios, como objetos passveis de reflexoinesgotvel e indefinida. Ele no tem dvida de que elas vivero para sempre e que nocessaro jamais de brilhar no firmamento do pensamento humano: Fulgebunt sicut stellae,diria Renan, citando um texto conhecido!Mas se o indivduo experimenta esse sentimento, porque ele se detm nelas para ali seaprofundar e viver em sua meditao assdua.Aqui surge para o historiador da filosofia um novo ponto de vista. As doutrinas so vistas emsi mesmas e por si mesmas. Todos os esforos so feitos para a fixao e o aprofundamentode seu sentido para os fins da meditao filosfica. O historiador se encerra nas monografias.Esse o lugar do que chamarei de histria vertical da filosofia, histria menos propriamente

    histrica do que a outra, menos preocupada com o movimento coletivo das ideias, masfilosfica no sentido em que ela busca a significao filosfica profunda de tais ou tais obrasanalisadas uma a uma.

    Mas, ainda nesse mbito, vrias escolas se confrontam. Nos deteremos nas duas maisimportantes.Na primeira, chegamos por um vis histria propriamente dita, atravs da prtica do mtododas fontes e da biografia, o qual se assemelha ao de uma histria literria. Atento scircunstncias da vida, poca, educao, s leituras do autor, ela explica sua obra em parteatravs das obras dos outros, em parte tambm pela ateno que dispensou s preocupaes,

    cultura, aos costumes intelectuais do pblico ao qual ela se dirigia. Em suma, cada filosofia tratada como um acontecimento que se passou num dado momento.

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    Sem dvida, esse mtodo indispensvel. O meio em que nasceu e se desenvolveu umadoutrina, as filosofias s quais ela sucedeu, s quais ela teve de se opor ou se espelhar, osignificado da linguagem da poca, os problemas que lhe so prprios, nada disso pode sernegligenciado sem que se impea definitivamente a compreenso da obra.O essencial saber se esse mtodo basta. Constataremos, a princpio, que com ele corremos o

    risco de no reconhecer a originalidade da doutrina, restringindo-a ao que j foi dito, ou dejulgar que a originalidade que o mtodo apresenta reside somente na experincia individualdo autor, completamente subjetiva, e dessa forma o mtodo tende a despoj-la do alcanceuniversal que toda filosofia pretende. Ele leva a um interesse, no tanto pela obra, mas pelohomem que a produziu, pelos "caminhos de vida" que a possibilitaram. Dessa perspectiva,deve-se buscar o significado menos na doutrina realizada do que em sua inteno original. Aforma da obra tambm considerada como subsidiria e determinada pelas necessidadesextrnsecas de sua difuso para o exterior. O essencial uma certa Weltanschauung originalna qual tudo surge ao mesmo tempo como que por um momento de graa, a contextura daobra, a ordem de suas razes nada mais do que uma ordem de exposio em que ela mesma

    nada cria, mas se contenta em traduziruma inteno j pronta. Encontramos a um fundo depsicologismo bergsoniano: a afirmao que uma filosofia j existe antes de ser feita, ou seja,antes de ser realizada numa obra cujas estruturas e cujas palavras s a degradariam aobanaliz-la.Contudo, podemos nos perguntar a que se reduziria essa inteno caso nenhuma obra tivessesido criada e se, longe de ser a ltima etapa de uma degradao, a obra no seria o pice deuma escalada. Se nessa realizao, o esprito, longe de se extenuar, no seria a transcendnciade si mesmo. a grandiosidade do monumento que atesta a grandiosidade do artista e que,como Michelngelo, o assusta e o esmaga, fazendo-o sentir, por contraste, a pequenez dohomem quando este reduzido a si mesmo, fora de sua criao. Ademais, quando dissemos

    que uma filosofia Weltanschauung, fizemos uma afirmao infinitamente vaga, pois muitasWeltanschauungen esto longe de serem filosofias. Dever-se-ia, portanto, ao menosesclarecer o que uma Weltanschauunge de que modo especfico a filosofia mereceria talttulo. Enfim, no h filosofia sem a resoluo de problemas e evidente que sua soluo no dada gratuitamente ab ovo, antes da concepo clara de seus termos e de um esforointelectual de resoluo que leve a tenso espiritual ao mais alto grau.Assim, esse mtodo, quando proclamado mtodo nico e suficiente para tudo, no reconhecea essncia da filosofia, sacrifica-a em favor da biografia, da histria propriamente dita, dapsicologia das individualidades. Ele negligencia a interioridade da obra em prol dainterioridade de um homem. Ele tende a reduzir as estruturas constitutivas internas aos

    artifcios literrios de exposio. Mas, repitamos isso, ele s condenvel se ele se exacerbar,pretendendo ser exclusivo e suficiente para tudo. Se, ao contrrio, ele for concebido como uminstrumento de inspeo preliminar, ele no s ser legtimo, como indispensvel, pois quemanalisa uma obra sem considerar poca, lugar, fontes e influncias que a marcaram se expe acometer um contrassenso. Dentro desse limite, sob a condio de fazer dele uma entrada eno o prato principal de sustentao, esse mtodo permanece vlido. Ele deve co-existir juntoa esse outro mtodo que est em contraste com ele, a saber, o das estruturas ou das razes,que o nosso mtodo e sobre o qual falarei a vocs nesse momento.Aqui nos vemos diante de uma segunda Escola. O mtodo das estruturas consiste em explorarmaisa interioridade da obra do que uma suposta interioridade de seu autor. Porque mesmo

    que seu autor no se encontre mais entre ns, sua obra estar diante de ns nos livros, comoum monumento, um objeto cujo sentido s percebido quando se colocam em evidncia as

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    disposies conceituais que a tornaram possvel. Esse mtodo , portanto, antes de tudo, ummtodo de anlise. Mas ele no simples anlise. A anlise, com efeito, decompe oselementos de um sistema e pode demonstrar como de fato esses elementos se agrupam nele,mas ela se restringe a isso e no se preocupa em nos mostrarpor queo agrupamento se d deuma maneira e no de outra. O mtodo das estruturas, ao contrrio, se esfora para descobrir

    esse porqu. Ele no s coloca em evidncia as estruturas, como tambm indica de algumamaneira as razes. por isso que, mesmo quando as estruturas de uma filosofia noconsistem em uma ordem de razes, o mtodo das estruturas sempre um mtodo de razes:sempre h uma razo que preside o posicionamento deste ou daquele elemento. Assimtambm, dentro de um dado contexto filosfico, me parece que certas concluses podem serobtidas de forma semelhante e at mais facilmente atravs de combinaes, ou de vias, ou dedemonstraes, legtimas dentro do quadro do sistema contemplado, as quais, entretanto, noso aquelas que o autor escolheu. Trata-se, portanto, de investigar porque essas foramescolhidas em vez de outras. A resposta a essa pergunta permite progredir um passo nacompreenso da obra. Por exemplo, a propsito de Spinoza, uma coisa analisar suas

    demonstraes e expr por que entre vrias demonstraes possveis ele escolheu ou teve deescolher uma no lugar de outra. Ou, ainda, explicar por que suas demonstraes, que so,segundo ele, "mais claras e mais simples", s aparecem margem da deduo principal e sorelegadas a simples esclios. A deduo cartesiana segundo a ordem das razes, acombinatria to complexa prpria de Malebranche, com seus deslocamentos de equilbrio eseus deslizamentos de conceitos etc., requerem a soluo de problemas anlogos. Quandorespondemos a essas questes, quando descobrimos a razo da ordem, ou das vias, ou dascombinaes adotadas, circulamos pelo monumento filosfico com a mesma desenvoltura doarquiteto cujo edifcio ele desvendou os segredos, ou seja, os fatores de seu equilbrio, osclculos que presidiram sua edificao em funo das intenes do construtor. Ora, a

    compreenso dessa arquitetnica dos conceitos rege por fim a compreenso dos prpriosconceitos de acordo com as intenes mais profundas da doutrina.Vejamos agora como, ao se colocar no interior da obra a fim de determinar suas estruturasconstitutivas, este mtodo se funda sobre a natureza da obra filosfica, por um lado enquantoobra, por outro lado enquantofilosfica.Como toda obra humana, a realizao de uma filosofia est condicionada pelo emprego deuma tcnica. A natureza da obra e a finalidade qual ela se presta determinam sua escolha, ea obra concluda carrega sua marca. Visto que existe uma tcnica da obra de arte e umatcnica da obra cientfica, deve haver uma tcnica para a obra filosfica, tcnica esta quedeve se diferenciar das outras na medida em que a filosofia difere da arte e da cincia. A

    dificuldade comea quando se trata de definir essa diferena, pois h tantas definies danatureza e das finalidades da filosofia quanto h doutrinas. Para responder a essa questo,portanto, deve-se partir no dessas definies, mas dos fatos recolhidos na experincia e nahistria.Se consideramos o que a filosofia foi de fato desde suas origens, constatamos que ela sempreesteve mais ou menos ligada, como seu nome indica, a uma sabedoria, ou seja, busca deuma forma de ser e de viver, esclarecida pela razo e com a misso de oferecer ao homem omximo de uma felicidade pautada na plenitude e no contentamento.Ao oferecer uma receita do bem viver que abarca todas as circunstncias possveis daexistncia, a filosofia inevitavelmente levada a situar o homem no conjunto das coisas, a

    unir em um s o enigma da vida e do universo, a descobrir uma soluo comum numa nicateoria que se apresenta como conhecimento da verdade.

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    Disso resulta uma intuio de conjunto que, animada por uma aspirao fundamental, seapresenta como viso do mundo (Weltanschauung). Por esse vis, a filosofia se aproxima daarte e da religio, que so as nicas a constiturem isoladamente uma viso do mundo.Podemos, a partir da, como fez Dilthey, definir o que uma Weltanschauunge a medida naqual a filosofia Weltanschauung. O que distingue as Weltanschauungende outros sistemas

    culturais (Direito, Cincia, etc.) , segundo Dilthey, que nelas a vontade humana no apontapara objetivos definidos, mas para um fim desinteressado: responder o enigma do universo eda vida. Em suma, toda Weltanschauung aparece como um complexo espiritualcomportando um conhecimento do mundo, um ideal, um sistema de regras, uma finalidadesuprema excluindo, de outro lado, toda inteno de realizar aes precisas, toda atribuio

    prtica determinada1. O que diferencia a Weltanschauung filosfica das outras , segundo omesmo autor, que ela combina os trs elementos que constituem o conjunto estruturalpsicolgico, a saber: o conhecimento, a vontade e a afetividade, tomando o conhecimentocomo princpio organizador, enquanto a religio toma como princpio regente a vontade, e apoesia, a afetividade. por isso que toda filosofia provm do pensamento lgico. Osdiferentes tipos de filosofia naturalismo, idealismo da liberdade e idealismo objetivo nascem do que ora conhecimento, ora vontade e ora afetividade, que o pensamentolgico escolhe como eixo de sua sistematizao.De acordo com essa concepo, o elemento lgico parece ser fundamental para a filosofia,visto que ele constitui a diferena especfica. Eis a um primeiro ponto sobre o qualpoderemos estar de acordo. Contudo, e na nossa percepo esse o ponto fraco dessaconcepo, que a de Dilthey, o elemento lgico ainda no aqui um fator to fundamental,pois o essencial, para Dilthey, o substrato psicolgico, base de toda Weltanschauung,substrato esse que a organizao lgica se contenta em informar de maneira extrnseca. Bemmelhor, essa constituio em propores universais, que a distingue das Weltanschuungen(potica e religiosa), considerada como a fonte de iluses enganosas das quais estas ltimasescapam. Toda filosofia parece ento reduzir-se a um tipo de poema de gnero inferior. Seunico interesse o subjetivo, ela somente o reflexo de uma paisagem mental. Quanto aosmomentos constitudos pela arquitetura dos conceitos e seus encadeamentos lgicos, eles

    prprios s so "tecidos empoeirados de entidades abstratas"2. Por vias diferentes, Bergson,em sua conferncia de Bolonha, chegar a concluses anlogas, as estruturas conceituaissendo somente a traduo para uma linguagem acessvel ao homem comum de uma intuioinefvel que se encontra, dessa forma, degradada e banalizada.Entretanto, se consideramos mais atentamente as filosofias, percebemos que todas se revelam

    como outra coisa, de tal forma que o elemento lgico e arquitetnico, longe de sersecundrio, lhes fundamental.Primeiro, so doutrinas (Doctrina docere Lehre) ou, noutras palavras, ensinamentos.Sem dvida, esse ensinamento , em alguns aspectos, a comunicao de uma mensagemsalvadora, o que o aproxima da pregao religiosa. Mas ele se afasta dela ao pretender imporuma verdade a todos os seres racionais, usando como recurso somente evidncias, anlises edemonstraes que provenham diretamente da razo ou que a razo assuma indiretamente,quando ela habilita como elemento de prova ou como vias de acesso os fatores irracionais.Em segundo lugar, os conceitos e concluses so para o filsofo o meio, no s desimplesmente comunicar sua doutrina para outros, mas de constitu-la para si prprio etorn-la vlida sob sua tica. Por meio deles, ele no traduz uma intuio original cada docu, mas promove uma intuio e uma frmula de entendimento, qual ele se sente

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    necessariamente compelido a aderir como a uma verdade. Essa intuio inteligente no oponto de partida, mas o ponto de chegada de todo o processo.Por ser uma construo racional que impe invencivelmente inteligncia uma verdadedentro de um saber especfico em virtude de seu rigor demonstrativo, a filosofia parece entomuito mais prxima da cincia do que da poesia e da religio. Essa estreita afinidade da

    filosofia e da cincia parece atestada pela histria, a qual nos mostra a evoluo de umaintimamente mesclada da outra: a maior parte das cincias fundamentais tiveram filsofoscomo seus inventores; a maior parte das grandes revolues cientficas foram traduzidas emsistemas filosficos (Descartes, Kant, etc). Ora, se a filosofia tem afinidade com a cincia,parece natural que os elementos lgicos sejam seu fator constitutivo primordial. Sendo, comoa cincia, um esforo para conhecer e compreender o real, ela institui, como ela, umaproblemtica. Todas as grandes doutrinas podem se caracterizar por problemas: seja oproblema do Um e do mltiplo nos pr-socrticos; o da possibilidade da cincia e dapredicao em Plato, o das causas primeiras e do mtodo geral da cincias em Aristteles; odo valor objetivo da matemtica, das ideias claras e distintas e da possibilidade de uma fsica

    matemtica em Descartes; e o problema dos juzos sintticos a priori em Kant, etc.Institudos os problemas, a filosofia deve, assim como a cincia, respond-los por meio deteorias. Ora, toda teoria s vlida se demonstrada. A demonstrao no tem por objetivosimplesmente imp-la a outros, mas sim fazer nascer em toda inteligncia, incluindo a de seuprotagonista, a compreenso do problema e de sua soluo. por isso que o elemento lgico deve assumir em toda filosofia, no uma funo de traduo(de uma paisagem mental ou de uma intuio), mas uma funo de validao e mesmo deconstituio. Da a importncia da sistematizao, que no aparece somente como umaformatao extrnseca de um contedo anteriormente dado, mas como a razo pela qual essecontedo se engendra (ao menos em parte, em todo caso) e se constitui como filosofia. Alm

    disso, a sistematizao aparece por toda parte onde se instituem teorias, a comear pelacincia, na qual todas as teorias so sistemas de explicao. Por exemplo: as teorias dasequaes, das sees cnicas, dos conjuntos, da gravitao universal, do metabolismo, etc.Sem dvida, a sistematizao cientfica no de forma alguma o sistema filosfico. Aprimeira aberta, a segunda, fechada. Mas essa diferena se deve natureza do problema aser resolvido. O problema do mundo e do homem no mundo um problema universal queenvolve uma resposta universal e absoluta. Ao se concentrar na totalidade do objeto, cadafilosofia envolvente sem ser envolvida. Ela deve, consequentemente, qualquer que seja seugnero, idealista ou realista, naturalista ou espiritualista, organizar o conjunto sob umprincpio de totalidade que, no podendo estar contido em nenhum dado, necessariamente a

    priori.A tcnica de toda filosofia , portanto, sempre um mtodo de essncia lgica e construtiva,que visa ao mesmo tempo a compreenso e a descoberta, buscando a soluo de um problemae a instaurao de uma verdade considerada como demonstrvel direta ou indiretamente. Issoquer dizer, ento, que toda filosofia se institui por meio de razes, razes que so para ofilsofo as causas reais de seu monumento, pois por meio delas que ele o produziu. No hdvida de que ele orientado em sua empreitada por causas determinantes, sem relao comas razes constitutivas: aspirao que exprime seu temperamento, sua personalidade,sugestes provenientes do meio social, influncias recebidas e aceitas, o estado dosproblemas cientficos do momento, movimentos da conscincia religiosa, etc...

    Mas cada filsofo est convencido de que sua filosofia surgiu em completa independnciaexceto da fora de suas razes constituintes, de que ela escapa da trama de causas cegas,

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    exteriores implicao interna de conceitos, e de que ela no um resultado morto, impostode fora por foras obscuras sua inteligncia passiva, preocupada somente em colocar emordem o que ela no saberia produzir por si mesma. o movimento nascido da ligao das razes, o jogo e a imbricao de conceitos dos quaisele feito que abrem sozinhos perante a inteligncia as perspectivas filosficas que

    transcendem as aspiraes elementares ou necessidades que puderam inicialmente comandara orientao do gnio criador. Alm disso, no est l a alma do indivduo Kant, nem ascondies psquicas de sua produo literria, nem as tendncias originais que o levaram aquerer fundar a cincia contra Hume, e, contra o dogmatismo de Espinosa e Leibniz, arealidade da liberdade, que detm o filsofo. Essas so as combinaes conceituais queimplementam as trs crticase que impem invencivelmente nossa viso, como um objetoresistente, um mundo no qual parecemos nos manter presos assim que consentimos empenetr-lo. por isso que, como j disse e escrevi, cada filosofia deve ser definida menoscomo uma viso de mundo (Weltanschauung) do que como um mundo de conceitos(Gedankenwelt).

    A sistemtica racional no , portanto, somente aquilo pelo qual uma filosofia se constri,mas tambm aquilo pelo qual ela constitui um objeto e conquista uma realidade. Se essasistemtica completa a demonstrao ao assegurar a coerncia de diferentes temas, se elaintroduz assim uma srie de comparaes que fundam definitivamente as concluses, com opropsito de dar um valor incontestvel de objeto representao construda.Resoluo de problemas, construo demonstrativa necessria constituda de razes, visandoa uma universalidade de ordem racional, implicando operaes lgicas graas s quais elapode se apresentar compreenso como uma verdade, a filosofia parece se inclinar nadireo da cincia. Mas, por outro lado, valendo em si e por si, independentemente de todaverdade do entendimento, visto que engendra uma realidade, e implicando uma referncia a

    um valor cuja afirmao privilegiada responde a uma vivncia e comanda um estilo deconduta, ela parece se inclinar na direo da poesia e da religio. E, contudo, ela no nemcincia, nem religio, nem poesia, porque nem a religio nem a poesia se constituem porrazes, enquanto as razes que constituem a cincia no produzem nenhuma realidade vlidapor si mesma. Enfim, as cincias so nicas e annimas, enquanto cada filosofia para elaprpria toda a cincia; sistema de razes irredutveis aos outros, ela leva consigo sempre onome de seu autor.Vemos assim um pouco de como podemos fundar na natureza da obra filosfica comoobrae como filosfica a legitimidade do mtodo das estruturas, e como essas estruturasconstitudas de cada filosofia, conquanto racionais, no so universais, mas diferentes para

    cada uma. Como as monografias so indispensveis para seu estudo e devem ter como tarefarestituir de alguma forma o mundo lgico que lhe seu.Entretanto, como dizia h pouco, o valor de um mtodo de interpretao s pode se fundar demodo definitivo sobre seus frutos. Se ao final de um estudo, o mtodo recomendado permitiuexplicar os textos mais difceis, dissipar as obscuridades e responder s questes at agoradeixadas sem resposta pela crtica, ele ser vlido. Seno no. Assim, portanto, a utilizaopermite decidir e o julgamento deve se manter suspenso enquanto no satisfizermosplenamente essa prova decisiva.

    1. DILTHEY, W.Das Wesen der Philosophie(Ges. Sehr) V. p. 372-380.

    2. DILTHEY, W.Das Wesen der Philosophie(Ges. Sehr) V. p. 382.

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