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‘Queremos governo cristão’: os discursos sobre a ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’ na Folha de São Paulo 1 PARRA MONSALVE, James León (Comunicador Social, Mestre em História) 2 Núcleo de Altos Estudos Amazônicos / Universidade Federal do Pará / PA Resumo: A „Marcha da Família com Deus pela Liberdade‟, feita em 19 de março de 1964, em São Paulo, foi a manifestação popular mais importante efetuada contra o governo de João Goulart (1961-1964), nos dias prévios ao golpe militar. Acontecimento objeto de ampla cobertura midiática pelas suas dimensões, converteu-se em tema recorrente de sucessivas edições da Folha de São Paulo. A trajetória desses discursos no jornal paulista, entre 1964 e 1999, mostra como são construídos pela imprensa brasileira efeitos de sentido sobre acontecimentos históricos. Neste caso, revela-se o jogo que diversos grupos sociais, religiosos, militares, políticos, empresariais e midiáticos ativaram no jornal depois do comício da Central do Brasil, organizado pelo governo Goulart em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, com o objeto de anunciar reformas políticas, a começar pelos setores petrolero e agrário. Com o auxílio da Análise do Discurso (AD) e da sua perspectiva crítica, definem-se aqui algumas das implicações historiográficas e midiáticas desse acontecimento. Palavras-chave: Marcha da Família com Deus pela Liberdade; Folha de São Paulo; Golpe Militar de 1964; História; Brasil Introdução A imprensa é fonte significativa de matérias e dados para a historiografia. Desde os diversos cantos ideológicos ela tem sido testemunha chave de boatos e fatos, de conspirações e consensos, de fracassos e sucessos, de tristezas e felicidades. Cada jornal, todo dia, recolhe amostras da dispersão desse desenvolvimento histórico. Ela atua na recordação ou no esquecimento de acontecimentos, sociedades e personagens no tempo. Por isso, pode-se dizer que “A história que a mídia faz, conta ou não conta”, tal como é frisado no tema elegido para este encontro, a 50 anos do golpe militar que abateu a democracia constitucional brasileira em 1964. Nesse contexto, analisa-se aqui um corpus de textos produzidos pela Folha de 1 Trabalho apresentado no GT Historiografia da Mídia, integrante do 5º Encontro Regional Sul de História da Mídia Alcar Sul 2014. 2 Doutorando do Programa em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará. É Comunicador Social (habilitação: jornalismo) e Mestre em História, com experiência e interesse nas seguintes temáticas: Jornalismo, Imprensa, História, Amazônia e Tecnologias de Informação e Comunicação. E-mail: [email protected].

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Analise histórico Folha de Sao Paulo

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  • Queremos governo cristo: os discursos sobre a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade na Folha de So Paulo1

    PARRA MONSALVE, James Len (Comunicador Social, Mestre em Histria) 2

    Ncleo de Altos Estudos Amaznicos / Universidade Federal do Par / PA

    Resumo: A Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, feita em 19 de maro de 1964, em So Paulo, foi a manifestao popular mais importante efetuada contra o governo de Joo Goulart (1961-1964), nos

    dias prvios ao golpe militar. Acontecimento objeto de ampla cobertura miditica pelas suas dimenses,

    converteu-se em tema recorrente de sucessivas edies da Folha de So Paulo. A trajetria desses

    discursos no jornal paulista, entre 1964 e 1999, mostra como so construdos pela imprensa brasileira

    efeitos de sentido sobre acontecimentos histricos. Neste caso, revela-se o jogo que diversos grupos

    sociais, religiosos, militares, polticos, empresariais e miditicos ativaram no jornal depois do comcio da

    Central do Brasil, organizado pelo governo Goulart em 13 de maro de 1964, no Rio de Janeiro, com o

    objeto de anunciar reformas polticas, a comear pelos setores petrolero e agrrio. Com o auxlio da

    Anlise do Discurso (AD) e da sua perspectiva crtica, definem-se aqui algumas das implicaes

    historiogrficas e miditicas desse acontecimento.

    Palavras-chave: Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade; Folha de So Paulo; Golpe Militar de

    1964; Histria; Brasil

    Introduo

    A imprensa fonte significativa de matrias e dados para a historiografia. Desde

    os diversos cantos ideolgicos ela tem sido testemunha chave de boatos e fatos, de

    conspiraes e consensos, de fracassos e sucessos, de tristezas e felicidades. Cada

    jornal, todo dia, recolhe amostras da disperso desse desenvolvimento histrico. Ela

    atua na recordao ou no esquecimento de acontecimentos, sociedades e personagens no

    tempo. Por isso, pode-se dizer que A histria que a mdia faz, conta ou no conta, tal

    como frisado no tema elegido para este encontro, a 50 anos do golpe militar que

    abateu a democracia constitucional brasileira em 1964.

    Nesse contexto, analisa-se aqui um corpus de textos produzidos pela Folha de

    1 Trabalho apresentado no GT Historiografia da Mdia, integrante do 5 Encontro Regional Sul de

    Histria da Mdia Alcar Sul 2014. 2 Doutorando do Programa em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido no Ncleo de Altos

    Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par. Comunicador Social (habilitao:

    jornalismo) e Mestre em Histria, com experincia e interesse nas seguintes temticas: Jornalismo,

    Imprensa, Histria, Amaznia e Tecnologias de Informao e Comunicao. E-mail: [email protected].

  • So Paulo antes, durante e depois da nomeada Marcha da Famlia com Deus pela

    Liberdade, demonstrao pblica feita na capital paulista na tarde do dia 19 de maro

    de 1964. Em total foram selecionados 93 textos publicados em diversas sees do

    jornal, entre os anos 1964 e 1999 (o recorte temporal da pesquisa), nos quais aparecera

    enunciada a denominao completa da marcha. E mesmo que o espao da pesquisa

    esteja em princpio relacionado com essa cidade, cabe dizer que as implicaes do

    evento tm a ver diretamente com o Brasil e sua histria, embora desde a viso de um

    jornal influente no pas.

    Com esse intuito, os conceitos de formao discursiva, ideologia, discurso e

    disperso so explorados na procura de fazer uma anlise que d conta da relao mdia

    histria a travs da imprensa. Conjuntamente utilizar-se- o quadrado ideolgico

    desenvolvido por van Dijk (1998), com o objetivo de mostrar a relao das prticas

    discursivas com os grupos sociais envolvidos no acontecimento e as formas em que eles

    so enunciados nos diversos textos do corpus observado.

    Tais ferramentas tericas e metodolgicas auxiliam no desvelamento de algumas

    implicaes sobre o papel da imprensa no estabelecimento de distores, a partir da

    seleo de fontes e fatos na produo da informao. Isto ainda mais evidente no caso

    da Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, evento que traz tona

    posicionamentos de grupo e a ingerncia de setores eclesisticos e militares nos

    assuntos civis.

    A enunciao converteu-se assim numa lide entre os defensores da moral crist,

    alguns setores empresarias e os militares, junto denominada classe mdia, contra a

    cabea do governo da poca: Joo Goulart. Em reduzindo, a luta de quem estava com

    Cristo e quem estava com Jango. No entanto, efeitos de sentido, veiculados na imprensa

    e postos em jogo como prvia do Golpe Militar de 1964.

    Elementos para uma anlise do discurso na imprensa

    Ao se estudar a imprensa como fonte historiogrfica til consider-la como um

    campo privilegiado de enunciao. Por tanto, campo em que tempo e espao so/esto

    atrelados aos diversos contedos nela veiculados. Esta historicidade prpria da prtica

    enunciativa leva ento problematizao da linguagem, como fora j apontado por

  • Foucault, quando sugeria o questionamento da vontade de verdade, a reconsiderao do

    discurso como acontecimento e a elevao da soberania do significante ([1971], 1999,

    p. 51). No mais nas pregoadas unidades da frase, da proposio ou do ato de fala,

    aonde poderia se procurar o sentido, porque

    O enunciado no , pois, uma estrutura (isto , um conjunto de relaes entre

    elementos variveis, autorizando assim um nmero talvez infinito de modelos

    concretos); uma funo de existncia que pertence, exclusivamente, aos

    signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela anlise ou pela

    intuio, se eles "fazem sentido" ou no, segundo que regra se sucedem ou se

    justapem, de que so signos, e que espcie de ato se encontra realizado por

    sua formulao (oral ou escrita). (FOUCAULT [1969], 2008, p. 98).

    O enunciado est assim no limiar da anlise, caracterizado pela raridade, a

    exterioridade e o acmulo, longe da totalidade, da interioridade ou da origem

    procuradas num evolucionismo linear. No h ento um nico sentido ou verdade, e sim

    uma histria especfica, uma regularidade materializada na descontinuidade e a

    disperso dos enunciados. Da a ndole particular do que Foucault chamou de formao

    discursiva:

    No caso em que se puder descrever, entre certo nmero de enunciados,

    semelhante sistema de disperso, e no caso em que entre os objetos, os tipos de

    enunciao, os conceitos, as escolhas temticas, se puder definir uma

    regularidade (uma ordem, correlaes, posies e funcionamentos,

    transformaes), diremos, por conveno, que se trata de uma formao

    discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condies e

    consequncias, inadequadas, alis, para designar semelhante disperso, tais

    como "cincia", ou "ideologia", ou "teoria", ou "domnio de objetividade".

    (FOUCAULT [1969], 2008, p.43).

    Neste caso, tomada a opinio pblica como formao discursiva, que rene uma

    disperso de enunciados e prticas especficas de uma sociedade no tempo e no espao,

    junto ao quadro da formao ideolgica crist, que se poder fazer aqui uma anlise

    dos discursos ativados na Folha de S. Paulo, com ocasio da Marcha da Famlia com

    Deus pela Liberdade. Contudo, uma temporalidade, uma poca, no nem unidade,

    nem horizonte, nem objeto de uma arqueologia e sim (...) um emaranhado de

    continuidades e descontinuidades, de modificaes internas s positividades, de

    formaes discursivas que aparecem e desaparecem. (FOUCAULT [1969], 2008,

    p.198).

    Por tanto, trazer aqui um perodo, relativo ditadura imposta pelo Golpe Militar

  • de 1964, procurar um emaranhado de disperso de enunciados, de continuidades e

    descontinuidades discursivas, deixando que ele mesmo se desenrole em sua

    especificidade.

    preciso ainda explorar o que o discurso como elemento chave dessa anlise.

    O termo 'discurso', como aqui usado, deriva-se dos estudos do discurso, especialmente

    da denominada Anlise Crtica do Discurso (ACD). Nessa linha analtica ele designa

    menos um campo de investigao delimitado do que certo modo de apreenso da

    linguagem; modo no considerado como uma estrutura arbitrria, mas como a

    atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados. (MAINGUENEAU, 1998,

    p. 43, sublinhado no original).

    Dito em outras palavras,

    O discurso, bem menos do que um ponto de vista, uma organizao de

    restries que regulam uma atividade especfica. A enunciao no uma cena

    ilusria onde seriam ditos contedos elaborados em outro lugar, mas um

    dispositivo constitutivo da construo de sentido e dos sujeitos que a se

    reconhecem. (MAINGUENEAU, 1997, p. 50).

    A prtica discursiva nem mesmo comparvel transmisso de informao, j

    que existe ali um processo complexo de constituio de sujeitos e criao de sentidos.

    Tambm no convm fundament-la na ideia de comunicao, pois a linguagem serve

    tambm para no comunicar; lembre-se que a relao de sujeitos e sentidos produz

    efeitos mltiplos e variados, Da a definio de discurso: o discurso efeito de sentidos

    entre locutores. (ORLANDI, 2010, p. 21). Uma prtica privilegiada na formao de

    sujeitos e objetos, por tanto, no apenas de representao do mundo, mas de

    significao do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.

    (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).

    Em relao com os aspectos histricos e relacionais do discurso tambm

    adequado introduzir o noo de 'intertextualidade' ou propriedade que tm os textos de

    trazer fragmentos de outros textos, que so delimitados explicitamente ou misturados e

    que podem ser assimilados, contraditos, ironizados, etc., frisando sua historicidade; este

    conceito enfatiza a heterogeneidade, diversidade e contradio que esto embutidos na

    composio textual; ele () aponta para a produtividade dos textos, para como os

    textos podem transformar textos anteriores e reestruturar as convenes existentes

  • (gneros, discursos) para gerar novos textos. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 135).

    Salienta-se tambm a relao que o discurso guarda com as ideologias. Em

    princpio, a 'ideologia' pode ser vista como uma noo vaga e controversa, como falsa

    conscincia ou crenas erradas que servem aos grupos dominantes, mas, no sentido aqui

    posto, ela pode representar um sistema de crenas ou, de maneira geral, um conceito

    mais flexvel com o qual caracterizar no s quelas dominantes seno tambm s de

    oposio, de resistncia. Ao respeito, entendidas Como sistemas de ideias de

    movimentos e grupos sociais as ideologias no s fazem sentido para compreender o

    mundo (desde o ponto de vista do grupo), mas tambm como uma base para as prticas

    sociais dos membros do grupo. (DIJK, [s.d.], no paginado, friso no original).

    Outra caracterstica importante de se assinalar que algumas ideologias chegam

    at se 'naturalizar', sendo ento no mais visveis como ideologias e enxergadas mais

    bem como 'senso comum'. Esta naturalizao poderia ser explicada no processo de

    construo do sujeito e na noo de 'formaes discursivas ideolgicas' dominantes

    (FAIRCLOUGH, 1995, p. 42). E, se o discurso e a linguagem constituem prticas

    sociais especialmente expressivas das ideologias, esta noo , sem dvida, de utilidade

    metodolgica na hora de analisar as dinmicas grupais, a partir das quais so

    desenvolvidos os contedos publicados na imprensa. Ainda que antes de se fazer aqui

    uma anlise, considera-se necessrio descrever sucintamente o jornal objeto de estudo.

    Folha de noite, manh e tarde em So Paulo

    Publicada primeiramente como Folha da Noite, o dirio comeou sua circulao

    o sbado 19 de fevereiro de 1921, data em que comunicava sua poltica editorial, o seu

    programa:

    Toda e qualquer obstinao a proposito do que ha de mais incerto e inconstante

    referimo-nos aos interesses pblicos sob o pretexto de coherencia de idas, de programma ou de tradies, sempre nos pareceu repugnar s

    verdadeiras intelligencias e ser incompativel com a mutabilidade perenne dos

    problemas sociaes e politicos, que a propria essencia da sua natureza.

    (...) Em synthese: chamamos, ns outros, a isso opportunismo, vontade de acertar, levar em conta a fallibilidade humana. Outros, nisso querem ver

    irresoluo, versatilidade, incoherencia. Seja como fr; no abriremos mo de

    um direito que nos cabe. Sempre ao lado do povo, ou melhor, da nossa Patria

    opportunismo eis o nosso programma.3

    3 O NOSSO PROGRAMA. Folha da Noite, So Paulo, p. 1, 19 fev. 1921.

  • Oportunismo para agir conforme s circunstncias, aproveit-las em sua

    mutabilidade e sua falibilidade; essa a orientao inicial do nascente jornal,

    definindo desse modo uma prtica no dogmtica, sem obstinao sobre os interesses

    pblicos. Junto com esses princpios o jornal mostra nessa edio sua ndole utilitarista

    e comercial.4 Foi criado em contraposio ao O Estado de So Paulo, jornal de

    tendncia conservadora e tradicionalista, publicado desde 1875.

    A Folha da Noite foi se consolidando nos anos posteriores com a chegada da

    Folha da Manh (1925) e da Folha da Tarde (1949). Os trs fusionaram-se finalmente

    com o nome de Folha de So Paulo (1960), quando estabeleceram a divisa Um jornal a

    servio do Brasil, com a preocupao de defender eficazmente os interesses do Estado

    e do pas.5

    Segundo a Associao Nacional de Jornais, a Folha de So Paulo foi o maior

    jornal do Brasil por circulao paga, em 2012, com uma mdia de 297 mil 650

    exemplares publicados diariamente, mantendo-se nos primeiros lugares desse ranking

    durante a ltima dcada.6 A trajetria at aqui apresentada d uma ideia da influencia

    nacional desse jornal, consolidada por mais de 90 anos de publicao. Por sua posio

    ento um dirio que controla grande parte da agenda informativa e de opinio no Brasil.

    Nesse contexto, a Folha de S. Paulo converte-se em sujeito de opinio pblica

    privilegiado, com poder sobre o que contar ou no contar, sobre a palavra dita e no

    dita, em relao com os acontecimentos objeto da sua agenda. Com as continuidades,

    descontinuidades e transformaes que isso representa dentro de sua prtica pblica. ,

    a voo de pssaro, a descrio da fonte de enunciao do corpus emprico selecionado.

    Resta agora o estudo e discusso do sistema de disperso em que emergem esses

    discursos no jornal.

    4 As materias que trataremos nesta folha, que circular com grande tiragem em todo o Brasil, Portugal e

    colonias, sero sempre de muita utilidade para os commerciantes, estudantes etc. pois visaro colocar

    o commercio em guarda contra tantas interpretaes erroneas e indicar-lhe em fim o caminho para

    certas operaes de utilidade para o seu negocio. TOME UMA ASSIGNATURA. Folha da Noite, So Paulo, p. 8, 19 fev. 1921. Inicialmente Olival Costa era o Diretor e Pedro Cunha o Gerente.

    5 UM S NOME para os nossos trs jornais. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 3, 1 jan. 1960.

    6 ASSOCIAO NACIONAL DE JORNAIS. Maiores jornais do Brasil. ANJ. Disponvel em:

    http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil. Acesso em:

    10 fev. 2014.

  • Queremos um governo cristo

    A 19 de maro de 1964, com o apoio especial do governo do Estado, da

    Federao das Indstrias do Estado de So Paulo (FIESP), da Sociedade Rural

    Brasileira e da Igreja catlica, congregaram-se centos de milhares de pessoas na ento

    denominada Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade.7 Em total, foram 59 as

    entidades8 que promoveram diretamente a demonstrao. E ela mesma foi uma contesta

    ao comcio realizado em 13 de maro desse ano na Central do Brasil, no Rio de Janeiro,

    e na qual o Presidente Goulart anunciava uma srie de reformas polticas a se concretar

    no seu governo.

    O nome dado manifestao demonstrava o peso da Igreja catlica na sua

    organizao. No entanto, discursos associados s ideias crists iam junto s arengas

    contra o governo federal em cabea de Jango, como era conhecido o ento Presidente.

    Segundo a Folha de S. Paulo, o movimento cvico levou meio milho de pessoas rua

    para defender a Constituio, dentro do mesmo esprito que ditou a Revoluo de 329

    (Imagem 1).

    Imagem 1. Primeira pgina da Folha de S. Paulo, maro 20 de 1964

    Fonte: Acervo Folha de So Paulo

    7 A DERROTA INGLRIA de uma poltica de conciliaes. Folha de So Paulo, So Paulo, Folhetim, p.

    5, 4 jan. 1984. 8 ENTIDADES DA MARCHA esto alertas. Folha de So Paulo, So Paulo, Edio da Tarde, p. 3, 20

    mar. 1967. 9 SO PAULO PAROU ontem para defender o regime. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 1, 20 mar.

    1964.

  • S um dia antes dessa edio, isto , o dia da marcha, o mesmo jornal anunciava

    o desembarco do General Nelson de Melo em Congonhas com o objeto de acompanhar

    o evento, que era definido tambm como parte do movimento nacional de unidade

    crist.10 Este carter cvico-militar-cristo da manifestao daquele 19 de maro vai se

    consolidar nas sucessivas edies do jornal, ativando efeitos de sentido prprios da

    formao ideolgica crist, junto a motivaes militares, comerciais, industriais e

    polticas desse momento. A viagem feita anteriormente por Goulart China, as reformas

    estatais por ele definidas e o fantasma do triunfo da revoluo cubana, levantavam

    certamente preocupaes por parte desses setores. Foi ento quando os discursos

    cristos exploraram-se ao mximo ante a previso de uma perda de poder decorrente das

    reformas polticas que atingiam tambm ao capital nacional e internacional,

    especialmente com a encampao das refinarias particulares que iriam voltar para a

    petroleira estatal.

    Desse modo, sucederam-se manchetes, relativos marcha, como um

    acontecimento de transcendncia histrica para o pas. Antes do golpe foi chamada

    como Marcha pela Liberdade e expuseram-se cartazes com divisas como Queremos

    governo cristo e Cristo contra o comunismo,11 as quais salientavam claramente o

    carter ideolgico cristo dado ao movimento poltico-militar que procurava o

    derrubamento do governo. J nos dias posteriores ao golpe, as manchetes apelidavam-na

    como Marcha da vitria que festejava a redemocratizao do pas.12

    No comeo, o jornal aproveitou-se dos efeitos de sentido que uma manchete na

    primeira pgina trazia ao se referir a So Paulo como cidade importante para o grande

    capital brasileiro, mas tambm colocando o santo prottipo do cristo, de aquele

    cidado romano que depois de perseguir cristos iria se converter para pregar o

    evangelho cristo. Posto assim, era uma nova epstola dirigida pelo santo aos

    10

    HOJE A MARCHA em defesa da constituio. Folha de So Paulo, So Paulo, 2 edio, p. 7, 19 mar.

    1964. 11

    SANTOS BISA O sucesso da Marcha pela Liberdade. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 21, 26 mar.

    1964. 12

    AMPARO COMEMORA 135 anos com Marcha da Vitoria. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 5, 08

    abr. 1964.

  • brasileiros, desta vez a travs da Folha de S, Paulo. Se o santo parou para defender o

    regime, os cristos brasileiros deveriam faz-lo de igual modo. Deveriam implorar por

    um governo cristo contra um comunista.

    Mas, com posterioridade ao golpe, veio o sentido mais poltico daquela

    manchete de primeira, falando nela como a Marcha da Vitria, dando conta das

    Marchas pela vitoria da revoluo no interior.13 Isto , um dos sentidos acabou-se

    impondo com o estabelecimento do governo militar, nomeado de revolucionrio e

    redemocratizador. Desta maneira, enxerga-se o vis ideolgico do jornal ao suprimir

    elementos positivos dos partidrios do governo Goulart, em quanto frisa esses

    elementos nos setores envolvidos no golpe militar, salienta aspectos negativos daqueles

    e tira nfase desses aspectos nos golpistas. Uma linha que o jornal sustentou

    sistematicamente durante toda a ditadura (mais detalhadamente no Quadro 1).

    Quadro 1. Quadrado ideolgico da Folha de S. Paulo sobre a Marcha

    PRTICA

    GRUPO Frisar (+) Suprimir/tirar nfase (-)

    Ns -A Marcha em defesa da constituio -O sucesso da Marcha pela Liberdade -Queremos governo cristo

    -Cristo contra o comunismo

    -Largo foi pequeno

    -Marcha foi da vitoria -Marcha festeja redemocratizao do pas

    - E, a 31 de maro uniu-se ao movimento

    revolucionario

    -Hoje, o Pas espera que o sistema

    revolucionario prossiga em sua obra

    restauradora e de verdadeira democratizao

    -Todo o pas comemorou a revoluo

    -Foi de So Paulo que partiu o primeiro

    brado de alerta, o primeiro protesto objetivo

    -(...) de maior repercusso e espontaneidade

    histrica da ptria contempornea

    -Ela foi um ato de F, numa hora de Trevas

    -(...) defendendo o pas da invaso pela

    Rssia, para salvar a honra de nossas

    mulheres

    -(...) articulao poltica e militar nesta

    vitria

    -(...) na luta por segurana, tranquilidade, ordem e progresso

    -Somos contra os que esto contra a lei e por ela faremos julg-los, sejam quais forem suas

    vestes -Esta soluo uma das conquistas da

    Revoluo -(...) opor um dique ao caos prestes a instalar-

    se

    -(...) originou a Revoluo de 31 de Maro

    -Contra um quadro catico, veio a revoluo

    -(...) uma democracia genuinamente

    brasileira

    -(...) abatendo a ditadura sindicalista que se

    formava

    -Dulce acha o povo despreparado para eleger

    Presidente

    -No cometeremos o pecado da omisso

    -Missa por trabalho e salrio pode levar 100

    mil praa da S

    -A fome no Nordeste revolta marchadeiras -Porque o sistema falhou

    -Eu tambm estou envergonhado de minha

    participao

    -Dos chefes aos quais ele se havia entregue

    ele reclama sua liberdade

    Eles -Comicio do dia 13 foi o estopim da -Reformas, sim; comunismo, no

    13

    MARCHAS PELA VITORIA da revoluo no interior. Folha de So Paulo, So Paulo, p. 8, 30 abr.

    1964.

  • Revoluo

    -Reformas sim, Jango no

    -Atribui o atentado a descontentes com a

    comemorao do segundo aniversrio da

    Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade -(...) anarquia e irresponsabilidade vigentes

    -(...) o movimento para o caos

    -(...) maus brasileiros desvairados e

    aventureiros

    -(...) visando destruir as nossas instituies

    nacionais

    -(...) dissolver a sociedade em que vivemos

    -(...) idias da fora brutal e materialista -Corrupo e subverso

    -(...) a ameaa do comunismo

    -Cordeiro de Farias negou a existencia da

    chamada Marcha do Silencio, pois no se conhecem sequer os nomes dos seus

    organizadores -(...) alaridos das cassandras comunistas,

    aves agoureiras da traio, travestidas de

    aguias da democracia

    -As ambiguidades do Passeio Democrtico

    Fonte: elaborao prpria a partir de textos da Folha de S. Paulo

    Como mostrado no quadrado ideolgico (Quadro 1), a Folha de So Paulo

    alinhou-se no grupo dos golpistas com suas prticas discursivas. O repertrio de

    enunciados publicados pelo jornal vai caracterizar os seus inimigos como um catico

    grupo comunista de maus brasileiros desvariados e aventureiros, de aves agoureiras

    da traio, travestidas de guias da democracia, visando destruir as nossas instituies

    nacionais. Culpa-o tambm por estar fora da lei e como causa mesma da reao

    (revoluo) que eles empreenderam como obra restauradora e de verdadeira

    democratizao.

    Iseno, objetividade, disperso e vis ideolgico

    Dentro do jornalismo iseno e objetividade so valorados como princpios

    norteadores da prtica informativa. No primeiro caso, procurando se afastar da tomada

    de partido nos acontecimentos objeto de cobrimento. No segundo, atingindo um nvel

    de despersonalizao da escrita que responda, por sua vez, as perguntas bsicas do texto

    informativo: quem, qu, onde, quando e como.

    Contudo, numa perspectiva do jornalismo como prtica discursiva, e,

    especificamente, no caso aqui pesquisado, esses princpios so deixados de lado em

    favor de vieses ideolgicos que invertem a viso do jornalismo como um exerccio

    transparente e veraz. No por acaso que a Folha de S. Paulo tenha publicado textos

    contra a democracia durante toda a ditadura militar. De fato, ela foi um dos apoios mais

    importantes para o regime militar ao servir de porta-voz dos seus partidrios e lembrar

  • por vrios anos consecutivos a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade como um

    ponto chave do mesmo.

    No entanto, uma sequncia dessas no se deu como uma continuidade ordenada

    de textos que tivessem uma coerncia prpria. A pesquisa revela ainda um sistema de

    disperso que teve altas e baixas, inclusive, vozes discordantes do regime militar, as

    quais afloraram mais frutiferamente no ano 1984. Um possvel esboo desse sistema de

    disperso, assim como do vis ideolgico, proclamado em textos contra a democracia,

    pode se enxergar na imagem 2.

    Imagem 2. Vis ideolgico e disperso discursiva sobre a MFDL na Folha de S. Paulo (1964-1999)

    Fonte: elaborao prpria

    Considerando o carter temporal (T), nos meses em que apareceram matrias

    sobre a marcha, alm do vis ideolgico (VI: - democracia, + democracia) e o destaque

    dado pelo jornal aos textos publicados ( destaque maior, menor e mnimo),

    construiu-se uma matriz que apresenta parcialmente o conjunto disperso dos discursos

    sobre o evento de 19 de maro de 1964 na Folha de S. Paulo, publicados entre 1964 e

    1999. Isso demonstra a descontinuidade no cobrimento do tema, atrelado a diferentes

    matrias e conjunturas objeto de interesse por parte do jornal. Embora esse conjunto de

    disperso concentre-se nos discursos por uma menor democracia no Brasil ao comeo e

    durante a ditadura, encontram-se alguns discursos divergentes nos anos 1965 e 1968, em

    uma tendncia que s ia se inverter a partir de 1983, quando os discursos mudaram-se

  • em prol duma maior democracia. Nesse sentido, em 26 de janeiro de 1984 o jornal

    anunciava em primeira pgina e com grande destaque, ad portas dos 20 anos do golpe

    militar, a multitudinria manifestao de pessoas nas ruas da cidade aclamando pela

    volta das eleies diretas de Presidente (Imagem 3).

    Imagem 3. Primeira pgina da Folha de S. Paulo, janeiro 26 de 1984

    Fonte: Acervo Folha de So Paulo

    Consideraes finais

    A imprensa, fonte estimvel historiografia, vista desde uma tica discursiva,

    revela as contradies e as descontinuidades prprias de uma prtica no isenta de

    vieses ideolgicos e de interesses de grupo. Nesse contexto, a anlise feita aos textos

    selecionados sobre a Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, mostrou o papel da

    Folha de S. Paulo como veculo de opinio pblica favorvel ao golpe de estado e

    ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1983. Para isso o jornal explorou efeitos de

    sentido e intertextos relativos ideologia crist e o seu papel perante a destruio da

    sociedade e das instituies brasileiras pelo comunismo, encarnado no governo

    constitucional de Joo Goulart (1961-1964).

    S em setembro de 1983 que emerge uma inverso discursiva no tratamento

    dessa temtica para se concentrar em discursos em prol da democracia e das eleies

  • presidenciais diretas. Assinala-se tambm a fragilidade da iseno e da objetividade

    como princpios da prtica jornalstica ao desvelar vieses ideolgicos alm da mera

    transmisso de informao, como colocado pelos estudos mais tradicionais da

    comunicao.

    Nessa ordem de ideias, optou-se pela Anlise Crtica do Discurso como recurso

    terico e metodolgico para o estudo de um corpus de 93 textos, extrados da Folha de

    S. Paulo dentre os anos 1964 e 1999. Conceitos como enunciao, ideologia, formao

    discursiva, discurso e disperso foram fundamentais para descobrir a funo desse

    jornal no golpe e posterior ditadura militar desses anos. Finalmente, considera-se esse

    arcabouo terico-metodolgico de interesse especial para as pesquisas historiogrficas,

    ao se manter a suspeita sobre a iseno e a veracidade nos discursos jornalsticos da

    imprensa.

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