gt 28 a teoria moral de emile durkheim

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XIII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia UFPE, Recife, 29 de maio a 30 de junho de 2007 GT28: Teoria Sociológica Raquel Weiss/USP [email protected] A Teoria Moral de Émile Durkheim o prefácio à segunda edição de sua Crítica da Razão Pura, discutindo as condições de possibilidade de que a metafísica, enquanto conhecimento da própria razão, pudesse “encetar o caminho seguro da ciência”, Kant afirma o seguinte: Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém, todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que nosso conhecimento poderia ser ampliado, fracassaram sob essa pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria mais bem-sucedido se deixasse o espectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso. [Kant, 1998, 38] Neste trecho, Kant assemelha a revolução que pretende fazer na maneira de conceber a razão humana àquela operada por Copérnico ao defender que não é o sol ou os astros que giram em torno da terra, mas esta que se movimenta e gira em torno daqueles. Tratou-se de uma revolução cosmológica cujas implicações são bem conhecidas. Da mesma forma, ao propor que se conhecesse a razão humana antes de querer conhecer os objetos, Kant propôs uma inversão de ponto de vista que possibilitou uma nova forma de entender a relação entre sujeito e objeto, estabelecendo uma ruptura com a filosofia que o precedeu. A idéia que gostaria de defender aqui é a de que a maneira como Émile Durkheim propôs entender a moral também consistiu em uma espécie de “revolução copernicana”, na medida N

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  • XIII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia UFPE, Recife, 29 de maio a 30 de junho de 2007

    GT28: Teoria Sociolgica

    Raquel Weiss/USP [email protected]

    A Teoria Moral de mile Durkheim

    o prefcio segunda edio de sua Crtica da Razo Pura, discutindo as condies de possibilidade de que a metafsica, enquanto conhecimento da prpria razo, pudesse

    encetar o caminho seguro da cincia, Kant afirma o seguinte: At agora se sups que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porm, todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, atravs do que nosso conhecimento poderia ser ampliado, fracassaram sob essa pressuposio. Por isso tente-se ver uma vez se no progredimos melhor nas tarefas da Metafsica admitindo que os objetos tm que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim j concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Coprnico que, depois das coisas no quererem andar muito bem com a explicao dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exrcito de astros girava em torno do espectador, tentou ver se no seria mais bem-sucedido se deixasse o espectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso. [Kant, 1998, 38]

    Neste trecho, Kant assemelha a revoluo que pretende fazer na maneira de

    conceber a razo humana quela operada por Coprnico ao defender que no o sol ou os

    astros que giram em torno da terra, mas esta que se movimenta e gira em torno daqueles.

    Tratou-se de uma revoluo cosmolgica cujas implicaes so bem conhecidas. Da mesma

    forma, ao propor que se conhecesse a razo humana antes de querer conhecer os objetos,

    Kant props uma inverso de ponto de vista que possibilitou uma nova forma de entender a

    relao entre sujeito e objeto, estabelecendo uma ruptura com a filosofia que o precedeu. A

    idia que gostaria de defender aqui a de que a maneira como mile Durkheim props

    entender a moral tambm consistiu em uma espcie de revoluo copernicana, na medida

    NNNN

  • em que defendeu outra maneira de entender a moral, que pressups um deslocamento de

    sua origem e de seu fundamento.

    Para o autor, a moral no seria algo oriundo da vontade divina, como no caso da

    teologia, ou de qualquer forma de razo universal, constitutiva de cada ser humano, como

    no caso de boa parte da filosofia. Ao contrrio, a sociedade, entendida como conjunto das

    interaes e representaes sociais elaboradas ao longo da histria, que seria sua

    verdadeira origem, e na sociedade mesma que se deveriam encontrar as categorias

    fundamentais inerentes a esse tipo de problema. Tratou-se, sobretudo, de propor uma

    maneira sociolgica de abordar a questo, que, a seu ver, deveria constituir uma ruptura

    com a abordagem propriamente filosfica. Para sustentar tal interpretao, discuto a seguir

    alguns dos aspectos mais importantes da teoria moral construda por Durkheim, procurando

    destacar de que modo esta se diferencia das duas principais vertentes de filosofia moral na

    Frana da poca de Durkheim e com as quais debateu continuamente, quais sejam, o

    kantismo e o utilitarismo.

    Na verdade, trata-se de um tema discutido em minha dissertao de mestrado e que

    faz parte de um trabalho, ainda em andamento, que tem por objetivo apreender os principais

    elementos constitutivos da teoria moral de mile Durkheim. Na dissertao, procurei

    defender o argumento de que sua incurso por este terreno foi motivada pelo interesse em

    fundar uma Cincia da Moral leia-se uma Sociologia da Moral -, que, segundo sua

    concepo de cincia, deveria consistir em um empreendimento intelectual diverso da

    Filosofia Moral, o que pressupunha lidar com o problema da moral de uma maneira

    diferente, no mbito de uma epistemologia indutivista que privilegia a anlise emprica,

    tomando a moral enquanto fato, fato social.

  • De modo geral, o principal argumento a ser defendido o de que todas as diferenas

    em relao a essas outras abordagens, e a prpria revoluo copernicana resultam do

    seguinte:

    1) Da pretenso de fazer uma Cincia da moral, que deveria ser algo

    diferente de uma Filosofia Moral [divergncia quanto aos objetivos e

    quanto prpria metodologia]

    2) Da proposio da sociedade como origem e fundamento da moral.

    2. O Debate com a Filosofia Moral

    Nem utilitarismo, nem kantismo. Na verdade, nenhuma dessas teorias, predominantes

    na Frana do XIX, havia dado, na opinio de Durkheim, tratamento cientfico para o

    problema moral. As afirmaes equivocadas a respeito de sua origem, de seu fundamento e

    de sua finalidade, bem como sobre as mximas concretas que deveriam orientar a conduta

    seriam resultantes da adoo de um princpio epistemolgico inadequado, incompatvel

    com uma abordagem cientfica do problema, ao menos segundo os cnones da cincia

    predominantes poca.

    Deduo. Era esse, pois, segundo Durkheim, o princpio epistemolgico comum a toda

    tradio filosfica que, por um caminho ou por outro, teria conduzido os diversos autores

    proposio de solues tericas inconsistentes com a realidade dos fatos. E, deve-se notar,

    era propriamente a realidade dos fatos o nico recorte que interessava a Durkheim.

    Portanto, foi exatamente a rejeio ao dedutivismo que permitiu ao socilogo atirar no em

    dois, mas em vrios coelhos com uma s cajadada e, assim, pde preparar o terreno sobre o

    qual construiu sua prpria teoria, alicerada sobre o princpio da induo. Em verdade, a

  • coadunao de todos os sistemas filosficos em torno dessa varivel epistemolgica tratou-

    se de procedimento corrente em seus escritos, desde seu artigo de 1887, La Science Positive

    de la Morale en Allemagne, passando pela introduo a La Division du Travail Social, de

    1893, at seu ltimo escrito, a Introduction do livro que estava sendo gestado, La Morale,

    redigida em 1917.

    Nesse primeiro texto, deparamo-nos com referncias explcitas a esse elemento comum

    a toda Filosofia Moral por duas ou trs vezes e, em todas elas, nota-se que Durkheim tem

    como objetivo chamar a ateno para o fato de que mesmo aquelas doutrinas que, num

    primeiro olhar, pareceriam apresentar maior afinidade com o indutivismo, em virtude de

    suposto embasamento nos fatos, seriam, tambm elas, dedutivas. Isso ocorreria porque em

    toda escola de Filosofia Moral havia em comum o procedimento de construir um sistema de

    pensamento a partir de idias simples e estabelecidas a priori, as quais renderiam todos os

    frutos se fossem desenvolvidas logicamente. Enfim, com certo tom de ironia que

    Durkheim (2003, p. 107) procura apontar que, apesar das considerveis diferenas

    existentes entre seus sistemas, todos os moralistas estariam presos a um mesmo problema,

    afinal:

    At agora, todas as escolas de moral praticaram o mesmo mtodo: a deduo. A nica diferena entre a moral intuitiva e a moral dita indutiva que a primeira toma uma verdade a priori por princpio, e a segunda, um fato da experincia. Mas, tanto para uma como para a outra, a cincia consiste em deduzir dessas premissas, uma vez postuladas, as conseqncias que elas implicam. Uma parte da noo de utilidade, a outra de um conceito de dever ou de bem, mas to evidente para uma como para outra que toda moral est

    contida numa idia simples e que necessrio apenas desenvolver essa idia.

    Em oposio a tal procedimento, Durkheim sustenta que somente mediante um

    meticuloso estudo da realidade que se poder chegar a uma idia mais ou menos exata do

  • que a moral, e quais so as causas e as funes de cada uma das regras existentes no seio

    das inmeras sociedades. Portanto, mais do que querer determinar logo de incio um

    sistema que d conta de toda a realidade, a atitude demandada de todo aquele que intenta

    seguir os cnones da cincia deveria ser inteiramente outra, qual seja, a de reconhecer que

    a este ponto do estudo no sabemos nada nem poderamos saber nada. Ignoramos

    totalmente o que que faz do homem um ser moral, quais so as causas que suscitaram

    estados de esprito diversos, idias e sentimentos que constituem a moralidade(1975b

    [1920], p. 326). Alm dessa divergncia mais geral, considerou insuficientes as definies

    de moral apresentadas pelas escolas com que debateu, pelo fato de que no teriam

    apreendido a dualidade que a constitui, qual seja, a dimenso do dever e do bem. Isso teria

    ocorrido porque teriam deixado escapar seu verdadeiro fundamento, a sociedade, nico

    passvel de explicar empiricamente essa dupla caracterstica inerente a toda e qualquer

    regra moral.

    2.1. O debate com o utilitarismo

    Em relao ao utilitarismo, as crticas de Durkheim abrangem duas categorias. De

    uma parte, ele rejeita que o fundamento da moral seja nica e exclusivamente o interesse;

    de outra, como conseqncia, alega que, por ter atribudo ao interesse o estatuto de fora

    motriz da moralidade, teria ignorado uma caracterstica constitutiva desse fenmeno, qual

    seja, seu carter universalmente imperativo:

    Alm do mais, o prazer no pode ser o fundamento de uma lei obrigatria. Com efeito, para que a lei seja obrigatria, preciso que possa ser observada por todos e por aquilo que todos possam reconhec-la, quaisquer que sejam suas experincias e seu grau de instruo. A lei moral no pode ser reservada a alguns homens; ela no um favor destinado a uma pequena aristocracia como acreditaram os antigos algumas vezes; no um luxo, algo suprfluo que se pode viver sem: ela necessria. preciso, portanto, que todos os homens possam perceber a lei moral em um s lance de olhar (...) Mas se a

  • lei moral fundada sobre o interesse, ela poderia satisfazer essa condio? Evidentemente no. Nada to difcil como reconhecer nosso verdadeiro interesse; preciso para isso uma longa experincia, e os resultados obtidos ainda no estariam de acordo. A lei moral fundada sobre o interesse no pode, pois, ser obrigatria, portanto, ela no satisfaz a duas condies obrigatrias da lei moral. (Durkheim, 2004: 109)

    Em seus escritos posteriores, a contenda retomada em outro nvel, quando o autor

    procurou se opor tese de que seria normativamente possvel erguer uma moral coletiva

    com base em uma tica do auto-interesse ou, segundo seus termos, do egosmo. Para o autor,

    o egosmo tico representado, sobretudo, por Hobbes e Spencer, mas, tambm, em parte,

    por Bentham e James Mill teria deduzido erroneamente que apenas a ao que tivesse

    como conseqncia a promoo do interesse individual seria verdadeiramente til e,

    portanto, socialmente boa. Isso porque, segundo sua viso, mesmo que tambm existissem

    no Homem impulsos egostas, como seria possvel afirmar que o egosmo seria o princpio

    motor da moralidade, se esta necessariamente demanda o altrusmo? Para Durkheim (2003:

    72), tal coisa seria uma contradio, uma vez que o altrusmo no vem do egosmo, pois

    nada deriva de seu contrrio.

    No que se refere especificamente crtica a Bentham e Mill, o autor avana um pouco

    mais, questionando o prprio conceito de utilidade. Em primeiro lugar, tematiza as

    complicaes relativas premissa do clculo da utilidade e em segundo a impossibilidade de

    que a noo de utilidade possa oferecer uma explicao coerente para a questo sobre a

    finalidade da moralidade.

    Ora, de acordo com a concepo de Durkheim, uma regra moral uma regra de

    conduta pr-estabelecida e que se manifesta imediatamente s conscincias, sem que muitas

    vezes o homem se d conta disso ou questione longamente acerca do que deve fazer; em

  • cada circunstncia, a regra moral deve impor-se com toda clareza, dispensando qualquer

    mediao. Se, como querem os utilitaristas, a regra moral dependesse do clculo, este

    operaria como uma mediao entre a regra em si e a determinao da conduta, tornando

    as coisas um pouco mais complicadas; seria preciso grande esforo mental para tal clculo

    e somente depois disso que a conscincia poderia ento informar a vontade. Portanto, a

    afirmao de que a promoo da utilidade seria o fim da ao moral resultaria em algo

    bastante contestvel, uma vez que a prpria idia do que til no consiste em

    representao suficientemente clara nas conscincias, contrariando uma das premissas

    fundamentais da regras morais. Enfim, conforme afirma Durkheim (1975b [1893], p.265)

    no seguinte trecho, a prpria proposio da utilidade como algo obtido mediante clculo j

    seria um problema para que esta fosse aceita como finalidade ou mesmo como fundamento

    da lei moral:

    Sejam as prticas morais teis ou no sociedade, o que certo que geralmente no em vista desse fim que elas so estabelecidas; porque, para que a utilidade coletiva seja a mola propulsora da evoluo moral, seria preciso que, na maior parte dos casos, ela pudesse ser objeto de uma representao assaz ntida para determinar a conduta. Ora, esses clculos utilitrios, fossem eles exatos, so combinaes de idias muito eruditas para agir com intensidade sobre a vontade; seus elementos so muito numerosos e as relaes que os unem, complexas.

    Para alm dessa observao crtica relativa aos problemas implicados na noo de

    clculo, insiste ainda sobre a definio mesma de utilidade social, com a inteno de

    discutir em que medida tal noo pode ou no ser considerada como a finalidade ltima da

    regra moral. Na interpretao do socilogo, existiria um fato muito simples que sustentaria o

    argumento de que a utilidade no pode ser a finalidade da moral, fato que se refere

  • existncia de coisas que so teis a uma sociedade, mas que no so consideradas morais,

    assim como h coisas morais que no so verdadeiramente teis.

    Como concluso, o socilogo (Durkheim, 1975 [1893]: 266) defendeu que a idia de

    utilidade no contm em si nada que possa justific-la como fator de criao da moral,

    tampouco como finalidade qual tende toda a ao moral, afinal, bem certo que os

    mandamentos da moral, mesmo que pouco complexos, no tm primitivamente por fim o

    interesse da sociedade. Na verdade, o nico papel que a utilidade poderia desempenhar em

    relao s regras morais seria o de realizar certa triagem, eliminando progressivamente

    aquelas que fossem nocivas sociedade; no entanto, a utilidade jamais o fator de criao

    de uma regra moral.

    II. A CRTICA DE DURKHEIM AO KANTISMO

    Ao lado do utilitarismo, a teoria moral de Kant foi o principal alvo de Durkheim em

    seu debate com a Filosofia, sendo que as referncias a ele so ainda mais freqentes e mais

    complexas. Ou seja, enquanto as referncias ao utilitarismo so mais simples, diretas e

    concentradas em algumas obras especficas, os argumentos que dizem respeito obra

    kantiana encontram-se espalhados por todos os seus escritos sobre a moral, muitas vezes

    aparecem de forma indireta e, em certas ocasies, Durkheim utiliza-se de um raciocnio um

    tanto sinuoso para estabelecer qual seu ponto de vista em relao teoria do filsofo

    alemo.

    Essas caractersticas podem ser explicadas, em primeiro lugar, pela complexidade

    inerente aos prprios escritos de Kant, inseridos no mbito de um sistema, que exigem maior

    cuidado para serem devidamente entendidos. Quanto maior ateno dedicada a esse autor,

    possvel explic-la no apenas pelo fato de que o kantismo ter se tornado o mais influente

  • pensamento nos sculos XVIII e XIX, inclusive na Frana, mas tambm porque muitas de

    suas idias esto presentes de maneira marcante na teoria sociolgica do prprio Durkheim,

    especialmente em virtude do perfil de sua formao na cole Normale. O apreo pela

    filosofia de Kant deveu-se especialmente ao fato de que o socilogo considerava importante

    o empreendimento kantiano de tentar fundamentar a possibilidade de um conhecimento

    inteiramente calcado na razo e, sobretudo, de uma moral racional, o que o levou a afirmar

    que, dentre todas as filosofias produzidas pela Alemanha, o kantismo era a nica suscetvel

    de conciliao com os interesses e exigncias da cincia, desde que fosse considerada

    corretamente (Cf. Durkheim: 1975b[1893], p. 279).

    Mais especificamente, para ele, o calcanhar de Aquiles da filosofia prtica de Kant

    residiria no fato de que este procurou fundamentar a moral em um princpio inteiramente a

    priori, o que o teria afastado definitivamente do campo da cincia. Ora, possvel perceber

    aqui que o ponto fulcral da divergncia entre esses dois pensadores se refere antes de tudo

    prpria concepo acerca de qual o conhecimento possvel e verdadeiro. Para o socilogo,

    apenas os fatos podem ser conhecidos e apenas com isso que a cincia deve preocupar-se,

    dado que no considera real a possibilidade de qualquer conhecimento a priori, isto ,

    anterior prpria experincia. Quanto a esse ponto, afirmou que

    possvel que exista uma moral eterna, inscrita em qualquer esprito transcendente, ou imanente s coisas e com relao qual as morais histricas no so mais do que aproximaes sucessivas: trata-se de uma hiptese metafsica que no vamos discutir. Mas, em todo caso, esta moral relativa a certo estgio da humanidade e, dado que esse estgio ainda no se realizou, no apenas no seria obrigatrio para as conscincias ss, mas ainda deve ser nosso dever combat-la (Durkheim: 1975b [1893], p. 273).

  • Na verdade, aqui nos deparamos com uma divergncia que se refere ao prprio

    fundamento atribudo moral. Quanto a isso, o argumento que defendo precisamente o de

    que, no que tange o problema da moralidade, todos os pontos de tenso entre esses dois

    autores so uma conseqncia necessria da substituio da idia kantiana de Razo prtica

    pela idia durkheimiana de sociedade como sendo o fundamento real da moralidade. De

    maneira mais especfica, possvel identificar os efeitos dessa inverso em aspectos

    bastante determinados, como aqueles relativos aos significados dos conceitos de dever e de

    autonomia, bem como no que se refere aos elementos constitutivos da moral e sua

    finalidade.

    Um primeiro problema seria relativo aplicao da mxima formal para a deduo

    de regras particulares, isto , concretas, o que consistiria na primeira evidncia da falha da

    teoria moral de Kant. De acordo com a tese de Durkheim, a moral no pode ser apenas a

    aplicao de uma lei geral; na verdade, trata-se de um conjunto de regras muito especficas

    que determinam a conduta nas diversas situaes e a proposio de uma mxima geral,

    como a formulao do imperativo categrico, no resistiria verificao emprica. Isso se

    justificaria em funo da tese de que a moral um dever porque um imperativo social:

    a sociedade que ordena ao indivduo agir de tal ou qual maneira. Considerando, pois, que

    a obrigatoriedade da moral se refere ao fato de que esta outra coisa no seno um

    imperativo social, qual seria, ento o verdadeiro fim da ao moralmente orientada? Para

    ele, a ao moral aquela que se volta para um fim que transcende os indivduos, que seja

    qualitativamente superior a eles. Vejamos como procura resolver a questo, ao afirmar o

    seguinte:

    Se no podemos estar vinculados pelo dever seno a sujeitos conscientes, depois que tivermos eliminado todo sujeito individual, no resta outra finalidade atividade

  • moral que o sujeito sui generis, formado por uma pluralidade de sujeitos individuais. Chegamos, pois, a esta concluso: se existe uma moral, um sistema de deveres e obrigaes, preciso que a sociedade seja uma pessoa qualitativamente diferente das pessoas individuais que compreende e de cuja sntese o resultado (Durkheim: 1994, p. 80)

    Alm de divergir quanto finalidade do dever moral, o socilogo aponta outros

    problemas inerentes concepo kantiana de dever. Na verdade, sustenta que haveria uma

    insuficincia na prpria explicao de Kant para o carter obrigatrio da moral, por tratar-

    se de explicao que no encontra respaldo nos fatos. Conforme possvel perceber no

    trecho a seguir, embora tenha atribudo a Kant o mrito de ter percebido a moral enquanto

    um dever, Durkheim entende que ele falhou em explicar a origem desse carter obrigatrio.

    De acordo com a leitura do socilogo, a fonte do equvoco a concepo errnea acerca da

    natureza humana e mesmo sobre a prpria origem da moralidade, uma vez que Kant teria

    restringido a moral ao plano da pura racionalidade:

    A hiptese kantiana segundo a qual o sentimento de obrigao seria devido heterogeneidade radical da razo e da sensibilidade, dificilmente concilivel com o fato de que os fins morais so, por um de seus aspectos, objetos de desejo. Se, em certa medida, a sensibilidade tende ao mesmo fim que a razo, ela no se humilha submetendo-se a esta ltima. (Durkheim: 1994, p. 71)

    Para Durkheim (1975b[1908], p. 309), o dever no o nico mbil da vontade, como

    sugeriu Kant, mas defende que a autoridade imperativa necessria, mas, apia-se sobre

    um desejo; portanto, essas duas dimenses so necessrias para que acontea a ao

    moral, e isso que ocorre na realidade, pois, os dois mbeis, dever e bem, penetram-se um

    no outro e se encontram em propores diversas no ato moral.

  • Outro aspecto da teoria kantiana analisado criticamente por Durkheim concerne

    possibilidade de conciliar logicamente o carter inevitavelmente obrigatrio da moral com

    a exigncia racional de autonomia, que deveria ser considerada como o elemento central da

    moralidade. Na verdade, essa foi uma questo levantada por Kant e que Durkheim

    considerou realmente essencial, procurando resolv-la de uma maneira diferente. No livro

    Educao Moral, as ltimas pginas do stimo captulo e as primeiras do oitavo captulo

    so dedicadas exposio do problema, em que procura apresentar uma sntese da soluo

    kantiana e, ao mesmo tempo, critic-la.

    Durkheim1 refere-se exatamente a essa questo e aponta que, logo de incio, a

    soluo kantiana padeceria de um problema lgico. Se fosse aceito seu argumento de que

    a heterogeneidade entre razo e sensibilidade o fator explicativo do carter obrigatrio da

    moral, tal carter no poderia ser uma caracterstica constitutiva da prpria regra, mas seria

    explicado pela natureza do homem. No entanto, Durkheim (2001, p. 171171) diverge dessa

    explicao, sustentando que tal hiptese seria completamente arbitrria, afinal, tudo

    prova, pelo contrrio, que a prpria lei moral se encontra investida de uma autoridade que

    infunde respeito prpria razo. Ns sentimos que ela domina no s a nossa sensibilidade,

    mas toda a nossa natureza, at nossa natureza racional.

    Portanto, a explicao kantiana para conciliar obrigatoriedade e autonomia no

    poderia ser considerada legtima, uma vez que no teria levaria em conta que o carter

    1 Nas aulas sobre a educao moral, Durkheim (2001,p. 170) resumiu da seguinte maneira a explicao

    kantiana acerca da relao entre obrigao e autonomia : Eis como Kant julga resolver esta antinomia. Por si mesma, diz Kant, a vontade autnoma. Se a vontade no se submetesse ao da sensibilidade, se ela fosse constiuda de forma a conformar-se unicamente com os preceitos da simples razo, ela elevar-se-ia ao dever espontaneamente, pelo simples impulso da sua natureza. Para um ser puramente racional, a lei perderia seu carter obrigatrio, o seu aspecto coercitivo; a autonomia seria completa. Na realidade, porm, ns no somos puras razes; possumos uma sensibilidade que tem sua natureza prpria e que refractria s ordens da razo. Enquanto que a razo abrange o geral, o impessoal, a sensibilidade, pelo contrrio, tem uma afinidade com o que particular e individual.

  • imperativo advm da prpria regra moral, independentemente de qual seja a constituio da

    nossa natureza. Alm disso, segundo Durkheim, esse mesmo carter imperativo se

    estenderia tambm nossa dimenso racional, o que nos leva concluso de que mesmo

    que a sensibilidade pudesse ser eliminada por completo, a moral no perderia seu carter

    impositivo. Certamente, preciso considerar que a razo tal qual concebida na teoria

    durkheimiana muito diferente daquela presente no sistema kantiano, mas isso seria uma

    questo para outro texto.

    Enfim, a ateno dedicada ao estudo crtico dessas duas vertentes pode ser explicada

    no apenas pelo fato de que eram os sistemas filosficos mais conhecidos na Frana

    daquele perodo2, mas tambm porque podiam ser considerados como o ponto culminante

    de duas grandes idias sobre a moral que, de um lado, definiam-na apenas como um bem e,

    de outro, to somente como um dever. Por isso, quando Durkheim debate com os autores

    dessas escolas, seus argumentos podem ser generalizados a quase toda tradio filosfica,

    conferindo sustentao e legitimidade para a edificao de uma nova forma de lidar com

    esse tema, no mbito da Sociologia.

    3. A Proposio de Uma Nova Teoria Moral

    O ponto de partida da formulao de uma nova teoria moral deve ser buscado na

    prpria concepo quanto ao que Durkheim considerava o conhecimento verdadeiro

    sobre a moral, qual seja, aquele que depende da observao constante e contnua da

    realidade, uma vez que o que moral para uma sociedade algo que j est dado. Enfim, o

    que est aqui pressuposto a tese fundamental de que, aos olhos da cincia, importa o que a

    2 Conforme a constatao de Durkheim (2003a, p. 11), na Frana s se conhecem dois tipos de moral: a dos

    espiritualistas e kantianos, e a dos utilitaristas.

  • moral , no o que dever ser. Com relao a isso encontramos argumento bastante explcito

    no texto redigido em 1917, em uma formulao reveladora da distncia que separa

    Durkheim dos filsofos com quem debateu. No trecho transcrito mais abaixo, possvel

    notar que o autor percebe como trao comum dos moralistas o procedimento que toma

    como ponto de partida uma intuio, continente de toda a verdade sobre a moral, que basta

    que seja cuidadosamente desenvolvida para que seja criado todo um sistema de verdades a

    esse respeito:

    Sem dvida, sabe-se muito bem que os filsofos divergem a respeito do modo como a moral deve ser formulada e traduzida em conceitos: disso decorrem os debates que duram desde quando a filosofia aplicada s coisas morais. Entretanto, malgrado essas divergncias, estima-se que a moral esteja contida em uma viso muito simples, repousa sobre uma noo elementar que no supe qualquer pesquisa laboriosa, metdica, cientfica, que no poderia ser ocasio de verdadeiras descobertas (...). Mas, com que direito atribuem vida moral essa situao privilegiada no conjunto do real? Para a cincia, no existe realidade que seja imediatamente evidente por ela mesma (Durkheim: 1975b [1920], p. 321)

    Ainda com relao a esse mesmo texto, digno de nota tratar-se do ltimo escrito

    de Durkheim que, segundo Mauss (1975, p. 313), ele havia iniciado em um ltimo ato

    de energia e de esprito de dever mesmo sabendo que no chegaria a conclu-lo. E foi

    exatamente na parte em que Durkheim chegou a finalizar a redao, qual seja, a

    introduo ao livro, que o autor tratou de maneira mais detida das teorias morais

    existentes e da crtica a essas. Na verdade, o socilogo tinha a clara convico de que a

    proposio de sua prpria teoria moral demandaria, antes de qualquer outra coisa, a

    crtica s teorias morais, uma vez que, no prprio ndice dos assuntos que deveriam ser

    abordados em seu livro, tal crtica figurava exatamente como a primeira etapa a ser

    percorrida.

  • De fato, ainda nas primeiras pginas desse texto, possvel encontrar uma passagem

    em que Durkheim resume toda sua crtica a Filosofia Moral em geral. Trata-se de uma

    sntese completa, cuja formulao deve ser lida como a expresso de sua concepo mais

    madura a esse respeito, resultado no apenas de anos de reflexo sobre as implicaes do

    procedimento filosfico, mas especialmente de um aprofundamento de sua prpria teoria e

    de sua viso sobre os limites e possibilidades da cincia e sobre a natureza social da

    moralidade. Vejamos, pois, em excerto um tanto longo, se bem que fundamental, como

    possvel resumir o pensamento de Durkheim sobre o procedimento dos filsofos da moral,

    em contraposio ao qual props a criao de uma Cincia da Moral:

    Eis como, at o presente, procederam os moralistas, de qualquer escola que tenham pertencido. Eles colocam em princpio que o sistema completo das regras morais est contido em uma noo cardeal do qual tal sistema no seno o desenvolvimento. Eles se esforam por atingir tal noo e, uma vez que acreditam t-la encontrado, no resta mais que deduzir os preceitos que ela implica, para obter a moral ideal e perfeita. Pouco importa que esta moral concorde com o que os homens praticam efetivamente, ou se a contradiz: a ele compete reger os costumes, de fazer a lei. Ele no deve preocupar-se com a tica tal qual ela , mas com a tica tal qual ela deve ser. Mas tal noo fundamental, como obt-la?(...) Com muita freqncia, psicologia que o moralista interroga sobre essa noo inicial. Admite-se como uma evidncia que a moral enquanto regra suprema da conduta deve encontrar-se naturalmente compreendida na idia que se faz da natureza humana de que deve ser deduzida. Se sabido o que o homem, sabe-se, ipso facto como ele deve comportar-se nas principais circunstncias da vida, e no isso o que constitui a moral? Ela aparece como a simples aplicao das leis que a psicologia cr haver estabelecido. Mas, inicialmente, essa concepo de moral como psicologia aplicada desconhece uma das caractersticas distintivas da moral. (...) A moral consiste, antes de tudo, em estabelecer fins; ela dita ao homem os objetivos que ele tende a perseguir e, por isso, ela distingue-se das cincias aplicadas propriamente ditas. Por outro lado, como os fins morais poderiam ser deduzidos da psicologia? O homem que a psicologia estuda o homem de todos os tempos e de todos os pases, sempre e em todo lugar idntico a si mesmo. As leis psicolgicas so invariveis, assim como as leis do mundo fsico. O ideal moral, contudo, varia conforme as pocas e os lugares. (Durkheim: 1975b [1920], p. 322-23)

  • Em oposio a tal procedimento, o autor prope que somente mediante meticuloso

    estudo da realidade que se poder chegar a uma idia mais ou menos exata do que a

    moral, e quais so as causas e as funes de cada uma das regras existentes no seio das

    inmeras sociedades. Portanto, mais do que querer determinar logo de incio um sistema

    que d conta de toda a realidade, a atitude demandada de todo aquele que intenta seguir os

    cnones da cincia, deve ser inteiramente outra, qual seja, a de reconhecer que a este ponto

    do estudo no sabemos nada nem poderamos saber nada. Ignoramos totalmente o que

    que faz do homem um ser moral, quais so as causas que suscitaram estados de esprito

    diversos, idias e sentimentos que constituem a moralidade (1975b [1920], p. 326).

    Mas, afinal, porque Durkheim defendia de forma to veemente que apenas os fatos,

    e no as idias sobre os fatos ou sobre o dever ser, devem ser o objeto da investigao

    cientfica? Porque, em sua opinio, a moral uma complexa teia de regras, irredutveis a

    idias gerais; isto , os preceitos gerais no tm a fora suficiente para determinar a conduta

    humana em cada circunstncia particular. Na verdade, o que a realidade evidencia que o

    homem sabe muito bem como agir em cada uma das situaes normais do cotidiano. Isso

    ocorre porque a moral possui regras muito diversas e especficas que ordenam ao homem

    nas diferentes esferas de sua vida, com relao s quais qualquer princpio geral no seria

    mais do que uma expresso esquemtica. Foi partindo dessas premissas epistemolgicas

    que Durkheim teve de reformular a prpria maneira de entender a moral, impulsionado a

    construo de um novo modelo terico que resultou na revoluo copernicana no

    conceito de moral.

  • Ora, se a cincia s poderia conhecer fatos e os fatos da sociologia eram os fatos

    sociais, externos, e no idias que se apresentavam ao puro pensar do investigador, seria

    preciso que a moral tivesse tais caractersticas, para que pudesse ser objeto da sociologia.

    Portanto, a seguir apresento as linhas gerais acerca do que est implicado no conceito de

    moral, ou seja, o que a moral na perspectiva durkheimiana, ressaltando como o autor

    procurou elaborar explicaes sociolgicas para alguns temas clssicos da teoria moral,

    explicaes essas que pressupem uma nova forma de entender a prpria moral, de definir

    sua gnese, seu fundamento e sua finalidade.

    3.1. A Letra e o Esprito: A Proposio da Moral Como Dever e Bem

    Desde muito cedo, Durkheim mostrou-se convicto quanto ao duplo carter da

    moralidade; afinal, temos registros de que j nas aulas em Sens (1883-1884), o futuro

    socilogo deixava entrever sua insatisfao com as teorias morais vigentes, por considerar

    que, enquanto algumas colocavam seu fundamento no puro interesse, eclipsando o fato de

    que a moral sempre um dever, outras, seguindo caminho inverso, sustentavam esse ltimo

    como nico mbil da ao moral. Posteriormente, essa idia tornou-se mais clara.

    Referindo-se dimenso do dever, o autor deixa claro que tal caracterstica emana da

    prpria sociedade, ao afirmar que a coero moral exercida pela opinio pblica no se

    deixa tolher por obstculo algum; sutil como o ar, ela penetra em todo lugar. (Durkheim:

    2003, p. 52) Portanto, a prpria opinio pblica que exerce a coero, afinal, da prpria

    coletividade que emana o dever.

  • Na mesma pgina, o autor ensaia argumento que parece explicar tambm a dimenso

    do bem, isto , da desejabilidade, por seu carter social, quando afirma que se toda ordem

    legal se apoiasse no medo, a sociedade no seria mais do que uma priso, onde as pessoas

    s agem quando vem o chicote erguido. Para que a sociedade seja possvel, necessrio

    que existam em ns alguns sentimentos de despreendimento (ibid., p. 52). Na verdade, so

    esses sentimentos de despreendimento que, em textos posteriores, devero explicar

    porque no apenas respeitamos, mas tambm amamos a regra moral, dando conta de por

    que igualmente o bem um de seus elementos constitutivos.

    Ainda em relao ao dever, cabe observar que considerado como o primeiro e

    mais evidente elemento da moralidade (Cf. Durkheim: 1994; 2001). Na verdade, em sua

    prpria definio de moral, Durkheim a caracteriza como um sistema de regras que

    predeterminam a conduta. Essas regras aparecem ao indivduo como um dever,

    precisamente pelo fato de que no foi ele quem as criou; so regras que tm existncia

    prpria e que se impem sua vontade, do exterior para o interior. Portanto, toda vez que

    algum age moralmente, comete certa violncia contra si mesmo, isso , contra seus

    prprios impulsos.

    A explicao para a obrigatoriedade da moral, isso , para essa ascendncia

    inconteste que exerce sobre o indivduo, deveria ser buscada na prpria noo de

    autoridade, genericamente definida como o carter que atribumos a um ser, no importa

    se real ou ideal, que concebemos como constituindo uma potncia superior quela que

    possumos (Durkheeim:1994, 85). Portanto, isso equivale a dizer que o indivduo obedece

    porque tem a percepo, mesmo que inconsciente, de que existe algo por trs da regra, algo

    de que a regra to somente a expresso mais exterior. Afinal, que algo esse? a

  • sociedade, sujeito sui generis dotado de uma conscincia prpria, que a depositria de

    todos os bens morais e intelectuais produzidos pelo homem ao longo de sua histria. Por

    isso mesmo, o homem percebe-a como potncia que o transcende infinitamente e o respeito

    que nutre pela regra, o cumprimento imediato de suas prescries no mais do que uma

    extenso do sentimento de temor e respeito que nutre por ela.

    Por outro lado, exatamente por tratar-se de uma potncia moral e intelectual que

    a prpria sociedade justifica que a moral seja tambm um bem. Assim, resolve a questo

    afirmando que a moral um bem porque a prpria sociedade um bem, porque sem ela, o

    indivduo no transcenderia o estatuto de mera animalidade; portanto, o homem deseja a

    regra, pode at mesmo am-la, porque a prpria condio para qualquer outro bem que

    possa desejar. Vista sob esse prisma, a moral revelada tambm em seu contedo, no

    apenas em sua forma. Esse contedo refere-se no apenas ao concreta e determinada

    que a moral prescreve, mas realidade que a sustenta, isso , a sociedade mesma, com as

    inmeras redes de interaes sociais, das quais todos fazem parte, em alguma medida, e s

    quais estamos ligados no apenas intelectualmente, mas tambm afetivamente.

    Enfim, uma compreenso adequada da estrutura moral e de sua ao concreta na

    determinao da vontade e, portanto, de sua efetividade como instncia reguladora da ao,

    supe a apreenso de sua letra - isto , de sua forma, de seu signo mais exterior, que seu

    carter coercitivo, e nos remete definio da moral enquanto dever - e tambm de seu

    esprito - ou seja, aquilo que verdadeiramente a anima, os sentimentos coletivos, o

    vnculo estabelecido no seio de um grupo e a ligao de cada indivduo com esse grupo.

    Com relao a isso, vale a pena trazer ao texto as seguintes palavras do autor (2002a, p. 40):

    Portanto, equivocar-se singularmente sobre sua natureza v-la apenas de fora, perceber apenas a sua letra. Assim considerada, ela pode de fato aparecer como uma

  • instruo simplesmente constrangedora, que impede os indivduos de fazer o que querem, e isso num interesse que no o deles: conseqentemente, muito natural que se tente derrubar esse constrangimento ou reduzi-lo ao mnimo. Mas sob a letra h o esprito que o anima; h os laos de todo tipo que ligam o indivduo ao grupo de que ele faz parte e a tudo o que interessa ao grupo; h todos os sentimentos sociais, todas as aspiraes coletivas, as tradies a que se tm apego e respeito, que do um sentido e uma vida regra, que anima a maneira pela qual ela aplicada aos indivduos.

    No mbito de uma moral laica, alm dessas duas caractersticas, deveria existir

    ainda o elemento de racionalidade, garantidor do que chamou de esprito de autonomia,

    de modo que seu fundamento possa ser passvel de explicao racional e suas regras

    possam ser questionadas, aceitas, ou ainda, refutadas. Durkheim defendeu com ardor a

    institucionalizao desse tipo de moralidade que, segundo acreditava, deveria ser ensinada

    na escola pblica (Cf. 1992, 1995, 2001)3. De acordo com sua percepo, isso traria grande

    vantagem em relao moral religiosa, porque tornaria possvel uma maior autonomia,

    sem que houvesse prejuzo das outras caractersticas inerentes moralidade. Mas, afinal, o

    que levou o autor a atribuir tais caractersticas sociedade? Porque tinha tanta convico

    de que a sociedade a verdadeira origem e fundamento da moralidade?

    3.2. A Sociedade como Origem e Fundamento da Moralidade

    A resposta a tais indagaes pressupe que se faa algumas consideraes sobre o

    que, afinal de contas, o autor entende por sociedade ou, ao menos, entender quais

    caractersticas que o autor lhe atribui e que seriam capazes de explicar aquilo que

    constatara ser traos inerentes a todo fato moral. Uma definio mais complexa e

    desenvolvida do que a sociedade foi sendo colmada aos poucos, especialmente em

    3 Os inmeros argumentos de Durkheim em favor de uma educao moral laica podem ser considerados como

    uma parte propriamente normativa de sua obra. Trata-se, contudo, de um projeto normativo, mas no idealista, que procurava realizar o encontro entre cincia e prtica, nos moldes concebidos pelo autor.

  • virtude de seus estudos que tinham como objetivo apreender as origens da vida religiosa.

    Durante esse percurso, ao notar a origem inequivocadamente social de todos os

    sentimentos e representaes religiosos, pde perceber de forma mais acurada algumas das

    caractersticas mais essenciais da prpria sociedade.

    Por esse motivo, quase todos os seus escritos sobre a moral datados desse perodo,

    especialmente aqueles entre 1906 e 1913, tiveram como tnica, em primeiro lugar, a

    referncia histrica ligao entre moral e religio, de modo a explicar sua origem

    comum, e, em segundo lugar, a aluso noo de sagrado, que seria o cerne da explicao

    para os sentimentos de amor e temor inspirados pela sociedade, e que estariam na base da

    formao de todo fato moral. Essa lgica argumentativa est presente no texto j

    comentado, Dtermination du Fait Morale (1975b [1893]), entre outros; contudo, o texto

    em que o autor faz uso desse recurso explicativo de maneira mais clara na conferncia

    aos alunos da cole Normale de Auteuil, no ano letivo de 1908-1909 (Durkheim: 1992).

    Nessa ocasio, o socilogo construiu sua argumentao de maneira dialtica, apresentando

    como postulado o fato de que a moral um sistema de regras sancionadas (cuja

    desobedincia implica uma punio pr-estabelecida) e que despertam em ns um respeito

    incomensurvel. Fiel a sua teoria, afirma logo em seguida que, para que possa ser

    cumprido um dever desse tipo, seria necessrio que os atos exigidos no nos paream

    totalmente estranhos, isso , a regra deve exigir uma ao que, em alguma medida,

    possamos desejar fazer, porque a consideramos correta, ou at mesmo, boa. O que o

    autoriza a afirmar essas caractersticas a respeito da moral , segundo Durkheim, o fato de

    que a prpria opinio pblica a percebe dessa maneira.

  • Portanto, mesmo em seu carter imperativo, quando nos ordena a ao, a regra

    moral no pode abrir mo de sua outra face, isso , no pode deixar de ser desejada, afinal,

    se a moral nada mais fosse, provvel que os homens no poderiam pratic-la (1992, p.

    614). Mas a recproca tambm verdadeira, ou seja, tambm no possvel que uma ao

    moral seja apenas desejada, sem que o sentimento de dever seja imiscudo nessa relao

    entre regra, vontade e ao. A razo para isso que os fins morais no so da mesma

    espcie que os demais fins que perseguimos em nossa vida pessoal; no fomos ns que os

    estabelecemos e, no mais das vezes, mesmo um raciocnio mais imediato insuficiente

    para explic-los. Propriamente por isso, para estar de acordo com aqueles preceitos que

    consideramos moralmente bons, preciso certo sacrifcio. Afinal, seria facilmente

    constatvel o fato de que em certa medida e de alguma maneira, ns fazemos violncia

    contra algo quando realizamos um ato moral, porque sim, seguimos nossos desejos, mas

    tambm abdicamos de outros, ns violentamos nossa natureza em certa medida e de

    alguma maneira, ns fazemos violncia contra algo quando realizamos um ato moral,

    porque sim, seguimos nossos desejos, mas tambm abdicamos de outros, ns violentamos

    nossa natureza (Durkheim: 1992, p. 615).

    Enfim, qualquer que seja o sentimento predominante, a moral jamais destituda

    dessa duplicidade aparentemente contraditria. Em todos os casos, ela algo que nos

    transcende, uma vez que, quer a representemos como sistema de regras que nos comandam,

    quer a percebamos como um ideal que se deseja, ela sempre aparece como realidade

    vinculada a um mundo que nos estranho, um mundo que nos toca, verdade, mas um

    mundo que nos ultrapassa infinitamente (Durkheim: 1992, p. 616). Dada a exigncia

    humana de encontrar resposta, de atribuir um motivo real ou no - para sua ao,

  • preciso, pois, que o homem represente de alguma forma essa entidade, da qual faz parte,

    que est nele, mas que o transcende. A esse ponto da discusso, Durkheim introduz uma

    referncia religio, cujos smbolos foram o invlucro sob o qual as idias morais se

    apresentaram ao homem ao longo da histria.

    Na verdade, sua eficcia como doutrina legitimadora da ordem moral estabelecida

    foi devida, sobretudo, ao fato de que ela ofereceu uma figura que podia encarnar essa

    potncia intangvel e, assim, fornecer respostas a todas as questes envolvidas no

    cumprimento da regra moral: a fora divina, Deus. mesmo notrio que, no mbito da

    religio, especialmente das religies monotestas, a moral, tenha sido apresentada como

    algo sagrado, que preciso obedecer e amar por ser expresso da vontade de Deus. Trata-

    se de uma potncia investida da autoridade necessria para legislar, e a majestade com que

    representado transferida para a prpria lei, enquanto prolongamento de seu ser. Por

    outro lado, diz a religio, Deus tambm a potncia que nos criou sua imagem e

    semelhana - e por isso criou conosco laos de paternidade, de amizade mesmo; trata-se de

    uma fora com a qual podemos contar. Assim, a existncia de Deus explicaria a regra

    moral em sua obrigatoriedade e em sua desejabilidade, uma vez que a relao que se tem

    com a regra no mais que o reflexo da relao que se tem com a prpria divindade.

    Sem avanar em demasia nesse tipo de considerao, necessrio ressaltar que,

    para Durkheim, o que realmente importa com relao idia de Deus o carter sagrado

    que lhe atribumos. Afinal, por definio, ele entende o sagrado como a propriedade de

    uma coisa que faz dela algo proibido, a que no se ousa violar, e ao mesmo tempo bom,

    amado desejado (Cf. Durkheim: 1992, p. 617; 1994, p. 59, 76-77; 1975b[1909b], p. 359 e,

    especialmente, 2002b, p. 11-26, 123-138, 209-211). Mas, considerando a inexistncia de

  • Deus, tal como exigem os pressupostos do racionalismo, devemos aceitar que a origem da

    moral no seja sagrada e, portanto, nada motive a amar e a respeitar as regras? Segundo

    Durkheim, no isso o que ocorre, justamente porque o carter sagrado atribudo a Deus

    ou a qualquer divindade , na verdade, a expresso da sacralidade imanente prpria

    sociedade.

    Para exprimir aquilo que entende por sociedade e, especialmente, o valor que atribui

    a ela, apresenta-a como parte de ns mesmos, porque, de acordo com sua concepo, ela

    no est inteiramente fora de ns: ela est tambm em ns. Ela no verdadeiramente real

    e viva a no ser nas conscincias particulares. Ela est em ns e fora de ns. Ela a melhor

    parte de ns mesmos. Tudo aquilo que em ns existe de verdadeiramente humano no vm

    da sociedade, tudo o que constitui nossa conscincia enquanto homens nos vm dela

    (Durkheim: 1992, p. 619).

    Enfim, partindo das idias de dever e de bem, da magnitude da moral, de sua

    natureza, de sua origem que transcende os indivduos, Durkheim realizou uma referncia

    ligao entre moral e religio, procurando apontar como esta ofereceu um fundamento que

    explicava todas aquelas caractersticas: Deus. Com essa aluso, preparou o terreno para

    apresentar as coisas morais como bens que possuem a mesma sacralidade das coisas da

    religio, embora a origem da moral, sociologicamente considerada, no seja Deus, mas, a

    Sociedade. Ao comentar essa analogia entre Deus e a Sociedade, Gautherin (1992, p. 634)

    percebeu que Durkheim ofereceu resposta consistente para o problema de como

    fundamentar de maneira lgica e factual o fundamento da moralidade, de forma que esta

    pudesse ser objeto de investigao cientfica, e no apenas de especulaes teolgicas ou

    filosficas:

  • Em primeiro lugar, pela analogia entre a sociedade e Deus, ele interrompe a regresso indefinida ao fundamento da moralidade que ocupou os moralistas e pedagogos de seu tempo. Ademais, ao postular que a sociedade sagrada assim como Deus, Durkheim reatou os laos entre os dois mundos que se dedicou a separar: um mundo de interesses individuais, do clculo racional, das equivalncias e das justas propores, de uma parte, e, de outra parte, um mundo do ideal coletivo, da emoo e do amor acima de toda equivalncia, fora de toda proporo.

    Quer dizer ento, que, para Durkheim, no haveria diferena alguma entre Deus e a

    Sociedade, no entendimento e na explicao das coisas morais? Na verdade, para o autor,

    as coisas no se passam dessa maneira. Embora a figura de Deus possa oferecer uma

    explicao para as duas caractersticas essenciais da moralidade, um sistema de regras

    assim fundamentado, tal como ocorre na moral religiosa, no pode ser submetido

    avaliao crtica. No mbito de uma moral laica, ao contrrio, a reflexo deve tornar-se

    parte constitutiva da moralidade, de modo que seu fundamento possa ser passvel de

    explicao racional e suas regras possam ser questionadas, aceitas, ou ainda, refutadas.

    necessrio ressalvar que, embora possa vir a se tornar um elemento constitutivo

    da moralidade, no quer dizer que se trate de uma condio necessria, isso , sem a qual a

    moralidade deixaria de existir. Trata-se de algo que s pode ter lugar em uma sociedade

    poltica, dividida pelo trabalho, e que abre espao para a racionalidade (Cf. Durkheim:

    2001, 2002a). Nesse sentido, afasta-se de boa parte da Filosofia Moral, em que comum a

    tese de que a reflexo seria o primeiro e mais importante elemento da moralidade, ao qual

    as demais caractersticas estariam subordinadas. Em um evento da Socit Franaise de

    Philosophie, cujo tema era Dbat sur La Rationalit de la Morale, Durkheim discutiu

    exatamente esse problema. Em um confronto com o filsofo Gustave Belot reiterou a tese

    de que somente o dever e o bem so elementos intrnsecos e absolutamente necessrios

    moralidade, enquanto a reflexo apenas um elemento desejvel, que s se torna possvel

  • se houverem condies sociais e intelectuais favorveis (Cf. Durkheim: 1975b[1908], p.

    351).

    Na verdade, a prpria sociologia, na medida em que se debrua sobre as regras morais

    como sobre um fato, e procura explic-la, j contribui para revelar-lhe a verdadeira

    natureza e, automaticamente, introduz nela o elemento reflexivo; no quer dizer, porm,

    que, com isso, a reflexo ir transformar, como num passe de mgica, a moral de uma

    sociedade, ou aos olhos de quem a segue. Essa a moral aos olhos da sociologia. Mas,

    tambm a moral que Durkheim defendia que fosse ensinada nas escolas, enquanto a

    considerava como a nica acorde com as exigncias de uma sociedade que se pretendia

    erigir sobre princpios inteiramente racionais, e que, fascinada pelos avanos da cincia,

    buscava explicaes empricas para todas as dimenses da realidade (Cf. Baubrot: 1990;

    Bayet: 1926; Bellah: 1973; Bota & Guasp: 2000; Besnard: 1976).

    Durkheim tomou como sua bandeira a institucionalizao desse tipo de moralidade

    que, segundo acreditava, deveria ser ensinada na escola pblica (Cf. 1992, 1995, 2001). De

    acordo com sua percepo, isso traria grande vantagem em relao moral religiosa,

    porque tornaria possvel uma maior autonomia, sem que houvesse prejuzo das outras

    caractersticas inerentes moralidade. Mas, na teoria durkheimiana, assim como na de

    inmeros outros autores, autonomia no quer dizer a possibilidade agir de acordo com tudo

    o que nos vem cabea; uma liberdade de ao num sentido bastante especfico (Cf.

    Cohen: 1975; Harms: 1990; Lvy-Bruhl: 1971). Para o socilogo, querer livremente no

    querer o que absurdo; pelo contrrio, querer o que racional, (...) querer agir em

    conformidade com a natureza das coisas (Durkheim: 2001, p. 176).

    Essa , pois, a idia mais importante a ser considerada sobre a sua concepo de

    autonomia da vontade: uma vontade autnoma uma vontade racional, o desejo do

  • possvel, daquilo que a razo considera como sendo o bem. Dessa forma, assim como uma

    ao autnoma com relao ao mundo fsico supe que se conheam as leis desse mundo, a

    autonomia possvel, no que se refere moral, aquela que implica considerar a natureza da

    moral, para que se possa aderir a ela de forma espontnea e consciente, ou contribuir para

    que encontre sua normalidade, caso se reconhea que ela est contrariando sua prpria

    razo de ser. Esse , segundo o autor, o nico modo de nos tornarmos senhores de ns

    mesmos, pois, dado que no possvel nos livrarmos das foras que agem sobre ns,

    devemos cuidar de nos tornarmos conscientes dessas foras, e agir sobre elas na medida do

    possvel.

    4. Consideraes Finais

    Essas so, portanto, as linhas gerais da teoria moral de Durkheim, que pressupe 1)

    certa concepo de como apreender a moral, no mbito de um projeto cientfico alicerado

    sobre as premissas do indutivismo, 2) um redefinio do conceito de moral e 3) uma nova

    fundamentao para propostas normativas, ou seja, uma fundamentao sociolgica para a

    ao moral que, no caso de Durkheim coincide com a defesa de uma moralidade racional a

    ser institucionalizada mediante uma educao moral laica. Como procurei defender no

    decorrer do texto, isso implicou um deslocamento no modo como a moral vinha sendo

    abordada no mbito da teologia e mesmo da filosofia, e que pode ser caracterizado como

    uma espcie de revoluo copernicana no conceito de moral, que pressupe um novo

    ponto de vista para entender o problema.

    Contudo, talvez uma aproximao com a atuao de Galileu seja ainda mais

    interessante e nos fornea uma idia mais exata do modo com que Durkheim enfrentou os

    desafios que se impuseram demonstrao e, sobretudo, aceitao de sua teoria moral e

    mesmo de sua sociologia. Na Frana daquele perodo, havia diferentes propostas de

  • sociologia em disputa, sem mencionar a prpria filosofia, cujos representantes com

    freqncia no viam com bons olhos esse tipo de projeto positivista.

    Alm das propostas de sociologia sustentadas por Gabriel Tarde, de um lado, e

    Rene Worms, de outro, havia ainda uma corrente que ficou conhecida como Sociologia

    Catlica, de autores como Le Play, Henri de Tourville, Gaston Richard (Marjolin, 1937).

    Considerando que a principal preocupao de Durkheim era construir uma moralidade

    absolutamente independente de concepes metafsicas e religiosas, no difcil imaginar

    que o autor no fosse bem visto por esse grupo de intelectuais. No terreno da filosofia a

    disputa foi ainda mais acirrada, tal como pode ser constatado nas atas de algumas

    discusses em que Durkheim tomou parte na Socit Franaise de Philosophie4 e nas

    defesas de tese que participou5. No foram poucas as objees levantadas tese de que

    seria a sociedade a verdadeira origem da moralidade e de que s assim se poderia conhec-

    la.

    Galileu, aps ter sido obrigado pela Inquisio a afirmar que a terra no girava em

    torno do sol, no deixou de acrescentar no entanto, ela gira. Essa frase que se tornou

    clebre pode ser entendida como a sntese do dilema vivido por pensadores no momento em

    que a prpria convico quanto verdade de uma nova teoria colocada sob a mira do rifle

    das antigas teorias dominantes. certo que nem todos tiveram a m sorte de enfrentar

    adversrios como os de Galileu; por outro lado, tambm verdade que toda nova maneira

    de olhar um dado fenmeno, de interpretar um conceito, exige mudanas mais ou menos

    profundas de se encarar certa realidade, mudanas essas que no so aceitas de forma

    4 As participaes mais relevantes nas discusses da referida sociedade esto reunidas no livro Sociologia e

    Filosofia, 2004. 5 Algumas das argies de Durkheim, inclusive em defesas de Filosofia, foram publicadas na Coleo

    Textes, organizada por Victor Karady, 1975.

  • passiva, exigindo daqueles que a propem boa dose de coragem e de persistncia. Tambm

    Dukheim, queles que negavam a tese de que a moral sempre uma construo social e por

    isso no eterna, absoluta e tampouco est inscrita em qualquer forma superior de razo,

    teve que constantemente repetir no entanto, a sociedade sua origem.

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