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1 INTRODUÇÃO Diante de um contexto que combi- na globalização, incerteza sobre a balança de poder global e a presença de conflitos relacionados a território e religião, a emergência de agentes não estatais geradores de inseguran- ça é crescente. Entretanto, a presen- ça destes não é inédita na história das relações internacionais. Após o Tratado de Vestfália, 2 o Estado pas- sou a ser considerado como o único ator com legitimidade para empregar a força com justiça a fim de proteger seus cidadãos. Essa compreensão leva à suposição que o uso da força por parte dos atores não estatais é ilegal e criminoso. 3 Para manter o sistema internacional organizado e para prevenir possíveis conflitos entre os Estados, o direito internacional 4 passou a reger o seu comportamento e, de acordo com suas normas, outras entidades não estatais não poderiam participar le- galmente de conflitos, com exceção dos movimentos de libertação nacio- nal se cumprissem as condições es- tipuladas nas Convenções de Haia e de Genebra de 1949 e seu Protocolo Adicional I de 1977. 5 Além disso, o direito internacional proíbe ataques a pessoas que não estejam ativas nas hostilidades. Tais convenções regu- lam os combatentes, que é uma ca- tegoria mais ampla que aquela dos membros das forças armadas das par- tes do conflito, englobando milícias e voluntários. 6 Estes combatentes irregulares devem cumprir algumas condições para serem considerados protegidos pelas convenções. 7 Mem- bros de movimentos de resistência que não cumprem tais condições não podem ser considerados combaten- tes e, em caso de captura, devem ser tratados como criminosos comuns e não prisioneiros de guerra. Neste sentido, a ação de agentes não estatais geradores de insegurança deve ser combatida, independente da caracterização que possam ter. O principal agente não estatal que causa insegurança atualmente no sistema internacional é o terrorista. Entretanto, há outros tipos, como o delinquente, que usa a violência apa- rentemente sem justificativa e sim- plesmente como meio para alcançar seu benefício pessoal e o insurgente, que utiliza a violência como meca- nismo para combater o regime que pretende eliminar, e justifica esse exercício como nobres propósitos para a instalação de melhores condi- ções de vida para seus partidários e para a comunidade que representa. 8 O QUE É TERRORISMO? Embora sem uma definição consen- sual no meio acadêmico ou político global, o terrorismo apresenta alguns pontos comuns em sua manifestação como a ameaça ou o uso da violência indiscriminada, extorsão da vítima, geração de insegurança e medo, al- teração da ordem pública, busca de GRUPOS NÃO ESTATAIS GERADORES DE CONFLITOS: SÍRIA, IRAQUE, SOMÁLIA, NIGÉRIA, LÍBIA E MALI Letícia dos Santos Colombo 1

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V. 3, n. 3 - Junho de 2016

INTRODUÇÃO

Diante de um contexto que combi-na globalização, incerteza sobre a balança de poder global e a presença de conflitos relacionados a território e religião, a emergência de agentes não estatais geradores de inseguran-ça é crescente. Entretanto, a presen-ça destes não é inédita na história das relações internacionais. Após o Tratado de Vestfália,2 o Estado pas-sou a ser considerado como o único ator com legitimidade para empregar a força com justiça a fim de proteger seus cidadãos. Essa compreensão leva à suposição que o uso da força por parte dos atores não estatais é ilegal e criminoso.3

Para manter o sistema internacional organizado e para prevenir possíveis conflitos entre os Estados, o direito internacional4 passou a reger o seu comportamento e, de acordo com suas normas, outras entidades não estatais não poderiam participar le-

galmente de conflitos, com exceção dos movimentos de libertação nacio-nal se cumprissem as condições es-tipuladas nas Convenções de Haia e de Genebra de 1949 e seu Protocolo Adicional I de 1977.5 Além disso, o direito internacional proíbe ataques a pessoas que não estejam ativas nas hostilidades. Tais convenções regu-lam os combatentes, que é uma ca-tegoria mais ampla que aquela dos membros das forças armadas das par-tes do conflito, englobando milícias e voluntários.6 Estes combatentes irregulares devem cumprir algumas condições para serem considerados protegidos pelas convenções.7 Mem-bros de movimentos de resistência que não cumprem tais condições não podem ser considerados combaten-tes e, em caso de captura, devem ser tratados como criminosos comuns e não prisioneiros de guerra.

Neste sentido, a ação de agentes não estatais geradores de insegurança deve ser combatida, independente

da caracterização que possam ter. O principal agente não estatal que causa insegurança atualmente no sistema internacional é o terrorista. Entretanto, há outros tipos, como o delinquente, que usa a violência apa-rentemente sem justificativa e sim-plesmente como meio para alcançar seu benefício pessoal e o insurgente, que utiliza a violência como meca-nismo para combater o regime que pretende eliminar, e justifica esse exercício como nobres propósitos para a instalação de melhores condi-ções de vida para seus partidários e para a comunidade que representa.8

O QUE É TERRORISMO?

Embora sem uma definição consen-sual no meio acadêmico ou político global, o terrorismo apresenta alguns pontos comuns em sua manifestação como a ameaça ou o uso da violência indiscriminada, extorsão da vítima, geração de insegurança e medo, al-teração da ordem pública, busca de

GRUPOS NÃO ESTATAIS GERADORES DE CONFLITOS: SÍRIA, IRAQUE, SOMÁLIA, NIGÉRIA, LÍBIA E MALILetícia dos Santos Colombo1

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Série Conflitos Internacionais

objetivos políticos e ataques a não combatentes e civis. O terrorismo internacional afeta a estrutura e a distribuição de poder em regiões específicas ou amplas, havendo or-ganizações que têm como alvo todo o sistema internacional, estendendo suas atividades por um significativo número de países ou áreas geopolí-ticas de acordo com os propósitos a serem alcançados.9

O terrorismo em nível global, muitas vezes associado ao extremismo islâ-mico, iniciou-se no Paquistão, no fi-nal da década de 1980, com a conver-gência de um grupo de combatentes que participou da luta contra os so-viéticos do Afeganistão, favorecendo o subsequente processo de ‘islamiza-ção radical’ de países da região. Esta é caracterizada por um ódio ao Oci-dente e a negação da assimilação de

seus valores. Por outro lado, jovens mulçumanos que vivem em culturas ocidentais sentem que estão traindo seus próprios costumes e religião o que, alinhados a sentimentos de ex-clusão social, acabam levando a pen-samentos coletivos de ódio e a pro-pensão de cometerem atos terroristas como manifestação simbólica.10

A Al Qaeda transformou-se numa rede de terrorismo global, utilizando do terror como lógica11 com o obje-tivo de espalhar o medo e fazer com que as sociedades atingidas perce-bessem que as autoridades legais não seriam capazes de garantir sua segu-rança e, com isso, diminuir a credi-bilidade do público com relação aos seus governantes de modo a deses-tabilizar governos e criar sociedades melhores baseadas na lei islâmica. A Organização criou uma rede de gru-pos afiliados, além de simpatizantes pelo mundo todo. Estruturada em cé-lulas, seus métodos de recrutamento, preparação e execução dos atos ter-roristas são descentralizados. Atual-mente, vê-se a emergência de outro grupo que procura adquirir poder de atuação global e que também forjou uma evolução estratégica do terro-rismo aliada ao problema cultural e religioso - o Estado Islâmico (EI).12

PRINCIPAIS ATORES NÃO ESTATAIS CAUSADORES DE INSEGURANÇA: CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

Embora sua ideologia e retórica se-jam similares às da Al Qaeda, à qual se manteve afiliado por um breve período, o Estado Islâmico não re-presenta uma fase avançada daquele grupo, mas uma nova ameaça jiha-dista. Podemos admitir que o EI não seja uma organização terrorista, em-bora use atos terroristas como mé-todo. O EI atualmente controla um território, gerencia cerca de trinta

Atentado à embaixada dos EUA em Beirute - 1983

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mil combatentes, possui capacidade militar, controla a comunicação e in-fraestrutura do seu ‘califado’, finan-cia a si mesmo por meio do contra-bando de petróleo e outras atividades criminosas, e se engaja em operações militares sofisticadas com o objetivo de manter seu Estado islâmico sunita governado pela sharia e eliminar as fronteiras políticas do Oriente Médio que foram criadas pelo ocidente no sé-culo XX.13 Algumas diferenças podem ser percebidas entre os dois grupos.

Para a Al Qaeda, ataques de impac-to, bem organizados e centralizados, atingindo grandes massas – como o 11 de setembro de 2001 – teriam prioridade. Isso demanda comando e controle centralizado da organização em todas as fases do atentado - da concepção à execução. Já o Estado Islâmico empoderou seus membros e as organizações afiliadas, dando au-tonomia aos que apoiam o grupo para atacar quando sentirem necessidade e quando tiverem oportunidade.14 Além disto, a presença da guerra ci-vil potencializa as ações do grupo. Na guerra civil síria frentes jihadis-tas, facções islamitas e remanescentes do Exército Livre da Síria disputam território com o governo de Assad. A ausência de uma estratégia política e o fato de que nenhuma das partes do conflito possui poder militar sufi-ciente para ‘ganhar a guerra’ faz com que ela já dure mais de quatro anos e provoque onda de refugiados que remonta a 2ª Guerra Mundial. A si-tuação síria é agravada pela presença de outros atores estatais envolvidos. Após os atentados em Paris, em no-vembro de 2015, alguns Estados pas-saram a atuar enfaticamente no ter-ritório ocupado pelo EI e a financiar grupos armados contrários ao grupo. A evolução da situação acabou au-mentando a propensão do grupo em

praticar atos terroristas que passaram a ser realizados, também, como for-ma de reivindicar o fim da atuação internacional e da influência religio-sa cristã, judaica e islâmica xiita no território sob seu domínio.

Dessa forma, o EI tenta acabar com a coalizão liderada pelos Estados Uni-dos. Por outro lado, a Rússia lidera outra coalizão que foca mais no ata-que à oposição do regime de Assad do que ao Estado Islâmico propriamente dito. Alguns especialistas apontaram, inclusive, que a Rússia poderia fra-turar a coalizão liderada pelos EUA. Com isso, seria ampliado o espaço para atuação de atores contrários ao Ocidente no Oriente Médio, como o Irã e o Hezbollah, polarizando a re-gião de tal forma que o EI continua-ria a atuar.15

O Estado Islâmico conseguiu criar o que nenhum outro grupo salafista al-cançou até hoje, uma forte fidelidade diante do lema baqia wa tatamadad - Permanecer e Expandir. Apesar de ainda se manter, essa narrativa se tor-na mais frágil conforme aumentam as perdas territoriais, de produção de

petróleo, redes de transportes e da população que vive sob o regime de impostos que financiam o grupo. O primeiro resultado já anunciado foi o corte pela metade dos salários dos combatentes.16 Entretanto, a ideia de sobreviverem ao fim do mundo – como acreditam os fiéis na profecia maometana17 – é um incentivo aos simpatizantes da ideologia do Estado Islâmico a promoverem ataques ter-roristas por todo o mundo.18

Sendo assim, o EI dependeria do êxi-to militar para sobreviver já que faz jus ao seu lema de expansão e resis-tência. Como este está sendo limita-do no território que controla devido à intervenção das potências externas, o grupo deve procurar outros locais e meios para manter o mito aceso. Isto pode se dar através do apelo a outros grupos se juntarem à sua base ou de-monstrando capacidade de outras maneiras violentas como a prática de atentados fora de seu espaço físi-co. O esforço de expansão do grupo estaria focado no Oeste e Norte da África, Oriente Médio e sul da Ásia19, enquanto que os atentados focam o Ocidente e prioritariamente a Euro-

Ministério da D

efesa da Rússia/CC

Aeronaves Russas na operação contra o Estado Islâmico na Síria

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pa. Nessas regiões os grupos jihadistas focam na retaliação por meio de atos terroristas diante da perda de territó-rio.

Um dos grupos aliados ao EI é o gru-po somali Al Shabaab. Como respos-ta às tentativas de intervenções mili-tares da coalizão que reuniu Somália, Quênia e Etiópia, o grupo realizou diversos ataques terroristas na Somá-lia e em países vizinhos, como o rea-lizado em um colégio na cidade de Garissa, no Quênia, que matou 147 pessoas em 2015.

O Al Shabaab surgiu em um contex-to de conflito interno da Somália que inclui fatores religiosos e políticos diante da oposição entre o sul e o norte do país e entre clãs que formam a base da sociedade somali. No início de 2016, o grupo foi responsável por um ataque a um voo que iria para Djibuti, como parte de uma série de operações militares e de inteligência que visaram agentes locais e estran-geiros que operavam contra o grupo. Assim, além de ataques contra civis, o Al Shabaab busca afetar as oposi-ções com uma estratégia militar que

combina táticas de guerrilha e terro-rismo para tomar o poder na Somá-lia, incluindo alvos governamentais e agentes internacionais, num cená-rio de guerra assimétrica.20

A mídia do grupo foca em atrair combatentes internacionais da re-gião do leste africano que falam swahili, principalmente no Quênia e na Tanzânia, por meio de filmes pro-duzidos em inglês, árabe e swahili. Esse recrutamento se utiliza também

de mensagens que enfocam a discri-minação aos mulçumanos do Quênia que acreditam serem perseguidos pelo seu próprio governo. Embora acredite em uma identidade islâmica, a propaganda do grupo clama por um nacionalismo somali, exacerbando o orgulho ao país e denunciando uma possível perseguição da etnia somali no Quênia e a inclusão de leis britâni-cas sobre uma perspectiva colonial que universalizou grupos somalis em outros países cujas fronteiras foram forjadas artificialmente pelo Ocidente.21

Seu esquema administrativo passou, então, a controlar o território através do gerenciamento regional e local que inclui escritórios e comitês para educação, judiciário (através de cor-tes que impõem a sharia), propagação missionária, programas que provêm ajuda alimentar, médica e agrícola, taxação e distribuição de impostos no modelo concretizado pelo EI na Síria e no Iraque. Entretanto, com relação ao Estado Islâmico, o Al Sha-baab possui opiniões divergentes internamente e parte dos membros que ocupam cargos mais altos não querem que seus recrutas se filiem ao

Membros do Al Shabaab se entregam às forças da União Africana – Set. 2012

Exército Sírio rompe o cerco em Nubl e Al-Zahra – Fev. 2016

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califado do Estado Islâmico.22

O EI, por sua vez, encoraja novos so-malis a aderir a sua causa através de propaganda voltada para audiência que compreende o idioma swahili, alegando que ele seria o autêntico defensor da jihad. Contra essa ofen-siva, os defensores do Al Shabaab de-nunciaram todos aqueles que buscam dividir mulçumanos e mujahidins. Sendo assim, aliados regionais, como o grupo queniano Al Muhajiroun se declararam leais ao grupo somali e clamaram pela unidade dos islâmicos daquela área contra a tentativa do Estado Islâmico de unificar todos os grupos regionais em só uma frente de luta aliada aos seus interesses.23

Domesticamente, o autoproclamado califado do Al Shabaab encontra di-ficuldade no recrutamento de jovens somalis devido às complexidades dos clãs locais e a falta de confiança existente nesses jovens. Estes, por sua vez, se juntam ao EI mas não de-monstram um apoio considerável às suas ações e utilizam o dinheiro en-viado pelo grupo para financiar gru-pos locais e regionais. Além da So-mália o EI investe em outras regiões como o chifre da África, em especial áreas que sofrem com governança fraca como a costa Swahili do Quê-nia. Além disto, a maior resistência do Al Shabaab em se aliar ao Estado Islâmico é o fato de que o primeiro grupo necessita de aliados dentro do território somali para manter sua administração e impor suas leis com eficiência visando os objetivos locais. Assim, a evasão do apoio interno ao EI significaria uma perda da força ideológica dos apoiadores locais do Al Shabaab. Apesar das tentativas de ofensiva por parte da coalizão lide-rada pelos Estados Unidos na região, o grupo somali continua a se benefi-ciar do enfraquecimento dos grupos

de apoio à coalizão estabelecida no país devido à constante divergência interna entre grupos políticos opos-tos que não auxiliam com eficácia no combate ao grupo insurgente, dan-do espaço ao Al Shabaab de impor sua governança e de prover serviços onde o governo central não conse-gue oferecer à população.24

No mesmo sentido, o grupo nigeria-no Boko Haram25, foi pressionado com o cerceamento de suas ativida-des no nordeste da Nigéria, em Ca-marões, Chade e Níger, por meio da ação da Brigada Multinacional. As-sim, como parte de uma ‘contraofen-

siva transnacional terrorista’ foi de-clarado o califado islâmico, de modo a criar um imperativo para a defesa do território com todos os meios pas-síveis de serem utilizados.26

O Boko Haram comprometeu-se em uma aliança com o Estado Islâmico em março de 2015.27 A insurgência nigeriana mantém ataques terroris-tas com suicidas contra civis para reivindicar o governo do país que também passa por embates internos entre o sul e o norte. A corrupção no país deu lugar à incompetên-cia para lidar com serviços básicos à população, crise exacerbada pela

Magharebia/C

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Militante da Brigada AQIM Taureg no Mali

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falha no sistema de presidência ro-tativa entre as duas regiões do país, agravando ainda mais a situação do norte e nordeste nigeriano. O grupo teve, nesse contexto, a oportunidade de estabelecer o controle territorial usando sua ideologia islâmica e luta contra o governo oficial e grupos cristãos do centro do território, que seriam aliados ao atual presidente. O Boko Haram possui vínculo com grupos sub-regionais que enfrentam situação de extrema pobreza em ou-tros Estados do Sahel, como Chade, Níger e Camarões, oferecendo uma esperança para essa população que vê no grupo uma tentativa de reivin-dicar sua fé islâmica e receber servi-ços básicos que o governo oficial não oferece. Sendo assim, uma aliança com o Estado Islâmico aumentaria a chance de financiamento e recruta-mento do grupo para exercer sua go-vernança nos territórios ocupados e aumentá-los, visando à consolidação do ‘califado’.28

Na Líbia, a queda de Gadafi em 2011, resultou no surgimento de grupos insurgentes islamistas. A situação se agravou em 2014 com a atuação vio-lenta do Fajr Libia - união de milícias islamistas - que reivindicaram a le-gitimidade das eleições democráticas com a tomada do controle de Trípoli. Além disto, no mesmo ano o Estado Islâmico tomou o controle de Derna, expandindo seu poder sobre a região e somando forças com outras milícias islamistas. A proximidade marítima com países como a Itália e Grécia preocupa a União Europeia, visto que já houve ameaças de ataques a esta através de imigrantes aliados ao Estado Islâmico, além da realização de atentados aos cristãos do Egito. A ausência de controle governamental oficial no país dá espaço para a toma-da de território pelo Estado Islâmico e outras milícias islamistas, desesta-bilizando o país e a região do Sahel,

levando preocupações à Europa que vão além do problema da imigração. Isto porque no caso líbio, o Estado Islâmico controla um grande arsenal militar proveniente do regime dita-torial de Gadafi e possui capacidade de distribuição e gerenciamento des-sas armas para seu próprio uso em países onde o grupo atua como Argé-lia, Níger, Mali, Somália, Síria, Egito e Tunísia.29

O Mali, neste sentido, é desafiado pelo conflito entre os membros de etnia nômade Taureg, que buscam a criação do Estado de Azawad, e mo-vimentos islamistas, principalmente os grupos Ansar Dine, Al-Mourabi-toun e a Jihad da África Ocidental, empoderados pelo arsenal vindo da Líbia, que objetivam tomar o poder no norte do país.30

Embora a necessidade seja de desar-mamento, desmobilização dos grupos rebeldes armados, desmilitarização e descriminalização, isso não ocorre nestes países que sofrem com gru-pos insurgentes, principalmente de ideologia islamista, devido à alta cor-rupção e a deficiência de governança pelos governos, dentre outras.31

CONCLUSÃO

Denominar um grupo simplesmente como terrorista é negar toda a com-plexidade de fatores que influenciam no surgimento e crescimento de vá-rios grupos que usam atos terroristas como método, favorecendo o discur-so da securitização das medidas con-traterroristas sem cuidar das causas que provocaram a presença desses grupos. Com a emergência de gru-pos religiosos islamistas no cenário internacional32, principalmente o Estado Islâmico, o discurso do ter-rorismo gera uma retórica de xeno-fobismo e aumenta a dificuldade de se manter um diálogo com países mulçumanos que também sofrem com atos de terror. De acordo com Rezende e Schwether “uma vez que a principal motivação do ter-rorismo é política, evidencia-se que a política externa das potências ocidentais, intervencionistas, gera sentimentos de descontentamento e ódio”.33 Além disto, indo de en-contro com Saint-Pierre,

Quando nenhuma ação diplomática é eficiente para defender interesses postergados, quando nenhum organismo internacional

Tasnim N

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Atentado a bomba em Bagdá – Julho 2016

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é suficientemente forte para distribuir justiça entre interesses afetados, quando nenhuma forma convencional de violência é eficaz para defendê-los, fica aberta a porta para que o ódio da impotência se manifeste de maneira incontrolável e algumas vezes irracionalmente com relação aos seus objetivos.34

Sob o contexto de guerra assimétri-ca, os grupos com ideologia islâmica citados anteriormente se utilizam de métodos terroristas também para ga-rantir territórios ocupados e se pro-

teger de contraofensivas, e afetam a atual ordem de poder mundial e valores como a paz e a segurança in-ternacionais. Combater esses grupos com ataques a locais que possuem ci-vis significa utilizar atos de terroris-mo como um efeito colateral, o que acaba por reforçar o ódio e incentiva o recrutamento de jovens que não se identificam com a cultura ociden-tal. Esses jovens passam, então, a se enquadrarem em uma categoria de insurgentes irregulares e a entrarem na luta por defenderem uma posição

ideológica e por acreditarem perten-cer a uma insurgência bem definida. Neste sentido, definir e contextuali-zar o fenômeno do terrorismo para diferenciá-lo das ações terroristas tomadas por grupos insurgentes se-ria imprescindível para a produção de normas que previnam de manei-ra eficaz as ações desses grupos em territórios com pouca ou nenhuma governança oficial e que auxiliem na intervenção de coalizões que buscam estabelecer novos governos locais, legítimos e capazes.

A presença de grupos não estatais que causam insegurança atualmente no sistema internacional provocam mudanças na dinâmica de poder e de resolução de conflitos global. Uma delas seria não haver mais a neces-sidade de ser um Estado para poder lutar em uma ‘guerra’ internacional e não haver mais um ‘território de-finido’ para se travar essa guerra. O mundo passou a ser palco de reivin-dicações ideológicas, por território e pelo poder econômico, e o uso da violência é recorrente para alcançar essas demandas. Nesse cenário, al-terações no modo de combater gru-pos insurgentes – a maior parte dele cunhadas de terroristas – diminui-riam, talvez, a utilização por parte dos mesmos de atos terroristas.

Militantes Tauregues no Mali

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CC

2 “Há muito que os apelos às convicções autojustificáveis vêm sendo entendidos como um meio efetivo de mobilizar apoio para fins políticos, especialmente em momentos de crise. No entanto, desde o fim das guerras religiosas do século XVII na Europa, ou mesmo desde que o surgimento do humanismo renascentista desafiou a autoridade religiosa em nome de uma comunidade política secular, uma das principais ambições da política moderna tem sido evitar a redução da política a qualquer ética simples de convicção. Por isso, a Paz de Westphalia de 1648, no fim da Guerra dos Trinta Anos… uma guerra disputada principalmente em função de fundamentos religiosos…, é vista tão frequentemente como o momento fundador básico das relações internacionais modernas”. WALKER, R. B. J. ‘Guerra, terror, julgamento’. Contexto Internacional, v. 25, n. 2, p. 297-332, Rio de Janeiro, jul./dez. 2003, p. 303.

3 MORENO, Marta Fernández y Garcia. ‘Novo terrorismo: um desafio às teorias dominantes das relações internacionais’. In: SILVA, C. T. da.; ZHEBIT, A. Neoterrorismo: Reflexões e Glossário. Rio de Janeiro: Gramma, 2009, p. 101-118.

4 GASSER, Hans-Peter. “Actos de terror, ‘terrorismo’ y derecho internacional humanitário”.

Revista Internacional de la Cruz Roja, 2002. Disponível em: <https://www.icrc.org/spa/resources/ documents/misc/5ted8g.htm>. Acesso em: 10 fev. 2015.

5 “ As Convenções de Haia de 1899 e 1907, ao codificarem a guerra, supunham vários requisitos que caracterizariam o estado de conflito, e ordenaram alguns procedimentos e questões relativas ao ato da guerra, seu início e fim, suas partes, suas vítimas, embora não cobrisse todos os conflitos armados, civis e internacionais devido à diversidade de motivos que foram surgindo ao longo do século, como aqueles que vieram da expansão imperial dos países ocidentais em regiões que não estavam sob a jurisdição de países soberanos reconhecidos internacionalmente, nem de rebeliões contra Estados já estabelecidos. Entretanto, no século XX alguns fatores tiraram esta clareza da diferença entre guerra e paz. Hobsbawm (2007) aponta, por exemplo, que a diferença entre guerra internacional e guerra civil já não era mais tão limitada pela capacidade que as guerras civis, revoluções e desmembramentos dos impérios afetavam a situação internacional, principalmente durante a Guerra Fria. Além disto, a distinção entre guerra e paz não ela clara, advindo de uma herança das guerras mundiais que desenvolveram um período de confrontação entre ideologias incompatíveis que foram conduzidos em torno de finalidades não negociáveis, como a ‘rendição incondicional’. Assim foi rejeitada qualquer limitação à capacidade de ação dos beligerantes que pudesse ser imposta pelas convenções de guerras”. COLOMBO, Letícia dos S. Terrorismo: Definições e Lacunas Conceituais no Sistema Internacional. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Relações Internacionais) – Universidade Estadual Paulista, Marília, 2015, p. 40.

1 Letícia dos Santos Colombo Graduada em Relações Internacionais e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (linha de pesquisa em Relações Internacionais) da UNESP – Campus de Marília/SP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Conflitos Internacionais (GEPCI).

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Série Conflitos Internacionais

Série Conflitos Internacionais é editada pelo Observatório de Conflitos Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP) - Campus de Marília – SP

Editor: Prof. Dr. Sérgio L. C. AguilarLayout: Paula Schwambach MoizesISSN: 2359-5809Comentários para: [email protected]ível em: www.marilia.unesp.br/#oci

Série Conflitos Internacionais mais recentes:

O Estado Islâmico V. 2, n. 2Haiti: a atual conjuntura da Minustah e o Brasil V. 2, n. 3Congo: desordem, interesses e conflito V. 2, n. 4Libia: 4 años después de la intervención humanitaria y el R2P V. 2, n. 5Mali: conflito complexo e multifacetado V. 2, n. 6O conflito na República Centro Africana V. 3, n. 1Conflito no Iêmen, o caso Huti V. 3, n. 2

6 SCHMID Alex P. ‘Frameworks for conceptualising terrorism’. Terrorism and Political Violence, v. 16, n. 2, p. 197-221, 2004. Disponível em: <http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09546550490483134>. Acesso em: 12 jun. 2015.

7 “1 Os combatentes irregulares devem ser ‘comandados por uma pessoa responsável pelos seus subordinados’; 2 Eles devem tem um ‘sinal distinto fixo e reconhecido a distancia’; 3 Eles devem carregar seus armamentos ‘abertamente’; 4 Eles devem conduzir suas operações ‘de acordo com as leis e costumes de guerra”. Idem, p. 203, tradução nossa.

8 AMADO, Ivan González. ‘El terrorismo: un delicado límite’. Revista del Instituto de Ciencias Penales y Criminológicas, v. 27, n. 81, p. 93-118, 2006.

9 COLOMBO, Op. Cit.

10 COLOMBO, Letícia dos S. ‘Terrorismo: Lacunas Conceituais no Sistema Internacional’. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP/Marília, ed. 16, novembro 2015.

11 “Sobre o caráter instrumental do terrorismo, Michael Wieviorka (1992) acrescenta que se o terrorismo for abordado sob uma reflexão superficial, haverá dificuldades para defini-lo, pois o terrorista pode ser um combatente da liberdade ou resistente de outros, dependendo do campo que está sendo observado. Este lugar comum, que depende das análises em prática, seria caracterizado em uma categoria de terrorismo em que o terror e o medo são utilizados como uma ação instrumental inscrita em um campo político ou similar. Neste caso, o terrorismo seria um método de ação, utilizado por um ator político que se mantém dentro de um espaço político determinado por fraqueza ou por estratégia, ou busca penetrar neste campo através do terror. Assim, o terrorista possui alguma legitimidade e base social de uma nação ou comunidade e em seu nome se utiliza do terrorismo. Sua ação é política porque se baseia nas demandas ou consciência nacional e social, sendo utilizado de maneira conjuntural, e o ator tem a liberdade de não utilizar mais este método na medida em que a situação se altere. Entretanto, o terrorismo também aparece como uma lógica de ação, pois ele define o ator e lhe dá a mobilidade da luta, gerando uma violência extrema sendo que a ordem dos fins e dos meios se inverte. O importante passa a ser o terror, o objetivo do terrorista, desenvolvendo-se em um enfrentamento mortal contra o Estado.” COLOMBO, Op. Cit. p. 21.

12 “Em 29 de junho de 2014, o grupo fundamentalista sunita Estado Islâmico (EI), declarou o estabelecimento do califado islâmico que designou Ibrahim ibn Awad, mais conhecido como Abu Al-Bagdhadi, como califa da região situada ao noroeste do Iraque e em parte da região central da Síria [...].Em 2000, o grupo firmou aliança com Osama Bin Laden, mudando seu nome para Tanzim Qaidat al-Jihad fi Bilad al-Rafidayn, ou Al Qaeda do Iraque (AQI). [...]Em 2011, a AQI recebeu apoio financeiro do Ocidente para entrar na guerra civil síria ao lado dos rebeldes. No mesmo ano, os EUA retiraram parte de suas tropas do Iraque. Apesar da elaboração de uma nova constituição e da transformação do país em uma república parlamentarista, os ataques na região continuaram, abrindo espaço para a estruturação de um novo grupo. Em 2013, Abu Bakr Al-Baghdadi anunciou a Combatentes do EIIL unificação das forças do Iraque e da Síria (Frente Al-Nusra) numa só organização, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL, ou ISIS, sigla em inglês). A Frente Al-Nusra, no entanto, se negou a aderir ao grupo. Os dois grupos agiram separadamente até janeiro de 2014, quando se instaurou um conflito entre eles. Nesse momento de ampliação das ações para a Síria, o EIIL rompeu seus laços com a Al-Qaeda, contestando a autoridade de seu líder e rejeitando seu pedido para que permanecesse no Iraque, deixando a Síria sob controle das ações da Al-Nusra.Após as ofensivas que levaram o grupo a conquistar dezenas de cidades, em junho de 2014 foi declarado o califado do Estado Islâmico.” LAURIA, Bianca Vince; SILVA, Henrique Roder; RIBEIRO, Poliana Garcia. ‘O Estado Islâmico’. Série de Conflitos Internacionais, v. 2, n. 2, abril de 2015, p. 2. Disponível em <www.marilia.unesp.br/#oci>. Acesso em 04 jul. 2016.

13 CRONIN, Audrey Kurth. ‘ISIS Is Not a Terrorist Group: Why Counterterrorism Won’t Stop the Latest Jihadist Threat’. Foreign Affairs, 2016. Disponível em < https://www.foreignaffairs.com/articles/middleeast/Isisnotterroristgroup>. Acesso em 20 jun. 2016.

14 WATKINS, Andrew. ‘Losing Territory and Lashing Out: The Islamic State and International Terror’. Combating Terrorism Center at West Point, v. 9, Issue 3, p. 14-18, mar. 2016.

15 MCFATE, Jessica Lewis. ‘The Islamic State Digs’. Combating Terrorism Center at West Point, v. 8, Issue 10, pp. 1-7, out. 2015.

16 Idem

17 Os líderes do Estado Islâmico promovem a ideia do apocalipse no qual os infiéis – caracterizados pelo mundo ocidental – devem morrer. Embora esse evento não tenha uma data certa, o Califa tem a responsabilidade de cuidar de seu povo e preparar seus seguidores para o acontecimento. Daí a necessidade de manter a administração do Estado apropriada, com seu exército eficiente e preparado, e não somente a atuação através de atentados terroristas. BARETT, Richard. ‘The Islamic State Goes Global’. Combating Terrorism Center at West Point, v. 8, Issue 11, pp. 1-4. nov/dez 2015.

18 BARETT, Op. Cit. WATKINS, Op. Cit.

19 Idem

20 ANZALONE, Christopher. ‘The Resilience of al-Shabaab’. Combating Terrorism Center at West Point, v. 9, Issue 4, pp. 13-18, abr. 2016.

21 Idem

22 Idem

23 Idem

24 Idem

25 “O Boko Haram surgiu influenciado pelo antigo grupo islâmico Maitatsine, que surgiu na década de 1980, com uma atitude agressiva contra a influência ocidental e às autoridades governamentais, sendo o primeiro a tentar impor uma ideologia religiosa na Nigéria. O Boko Haram, além de se apropriar das ideias do Maitatsine, estabeleceu ligação com a Al Qaeda e com outros grupos jihadistas africanos. Seu principal objetivo é criar um estado islâmico na Nigéria, e, para isso, procura fazer com que seus seguidores acreditem que esta seria a solução para a corrupção e a má governança no país.” PALADINI, Rafaela Tamer. ‘A Nigéria e o Boko Haram’. Série de Conflitos Internacionais, v. 1, n. 5, out. 2014, p.3. Disponível em <www.marilia.unesp.br/#oci>. Acesso em 04 jul. 2016.

26 WATKINS, Op. Cit.

27 BOKO HARAM pledges allegiance to ISIL, reports say. Al Jazeera, 8 março 2015. Disponível em <http://www.aljazeera.com/news/2015/03/nigeria-boko-haram-pledges-allegiance-isil-150307201614660.html>. Acesso em 01 jun. 2016.

28 BELLO, Ola. ‘Nigeria’s Boko Haram Threat: How the EU should act’. FRIDE, nº 123, abril 2012. Disponível em <www.fride.org>. Acesso em 9 out. 2015.

29 HENAO, John González. ‘Libia: 4 años después de la intervención humanitaria y el R2P’. Série de Conflitos Internacionais, v. 2, n. 5, out. 2015. Disponível em www.marilia.unesp.br/#oci>. Acesso em 04 jul. 2016

30 LAURIA, Bianca Vinc et all. ‘Mali: Conflito Complexo e Multifacetado’. Série de Conflitos Internacionais, v. 2, n. 6, dez. 2015. Disponível em <www.marilia.unesp.br/#oci> Acesso em 04 jul. 2016.

31 Idem

32 “Hoffman (2001) aponta que a religião é, de fato, a principal particularidade deste terrorismo moderno, uma vez que produz “sistemas de valores, mecanismos de legitimação, conceitos de moralidade e visão de mundo radicalmente diferentes”. Apud REZENDE, Lucas Pereira. SCHWETHER Natália Diniz. ‘Terrorismo: a Contínua Busca por uma Definição’. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, v. 2, nº 1, p. 87-105, jan/jun. 2015.

33 Idem, p. 90

34 Idem