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GRUPO DE TRABALHO I CULTURA, IDENTIDADE E DIVERSIDADE Coord.: Profª Marlene Novaes; Coord.: Prof. Thomas Burneiko Meira A cultura afro e a percepção de religiosidade no Brasil atual Richard de Freitas Gomes .......................................................................................................................................................... 12 A produção social da marginalidade entre “flanelinhas” da cidade de Maringá-PR Francieli Muller Prado ................................................................................................................................................................ 23 A relação entre religiões africanas e malandragem na belle-époque carioca Thauan Bertão dos Santos ........................................................................................................................................................ 34 Antropologia do corpo e consumo através da análise da vigorexia Mirela Valério Lopes.................................................................................................................................................................... 47 Aproximações entre Bourdieu e a etnologia Kaingang no Paraná Vanessa de Souza Lança ........................................................................................................................................................... 62 Cultura e natureza: a emergência das novas sensibilidades no século XIX Rafael Ferreira Silva; Carolina Steinke Xavier; Rosana Steinke ........................................................................................ 71 Maria Bueno: um diálogo sobre religiosidade católica Tônia Kio F. Piccoli; Solange R. de Andrade; Vanda F. Serafim......................................................................................... 78 O individualismo oitocentista e a renovação católica contemporânea: debate sobre a racionalidade Gabriel Farias Galinari; Patrick Aparecido Trento ............................................................................................................... 88 Sobre causas e consequências: notas sobre a história da presença libanesa em Foz do Iaguaçu Danillo Alarcon; Douglas de Toledo Piza; Amani Rafic Sleiman; Amira Read Rahal; Bruno Vinicius Nascimento de Oliveira; Dominique Ribeiro Gentil; Fernanda Ferreira Chan ..................................................................................... 98 Sujeitos religiosos e participação política Luiz Ernesto Guimarães ........................................................................................................................................................... 114 Um município chamado Curralinho: análise sob o ponto de vista da alimentação marajoara Stefany Ferreira Feniman ........................................................................................................................................................ 129 Zé Carioca e o homem cordial: um retrato do brasileiro no cinema Anderson A. Rocha .................................................................................................................................................................... 137

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GRUPO DE TRABALHO I CULTURA, IDENTIDADE E DIVERSIDADE

Coord.: Profª Marlene Novaes; Coord.: Prof. Thomas Burneiko Meira

A cultura afro e a percepção de religiosidade no Brasil atual

Richard de Freitas Gomes .......................................................................................................................................................... 12

A produção social da marginalidade entre “flanelinhas” da cidade de Maringá-PR

Francieli Muller Prado ................................................................................................................................................................ 23

A relação entre religiões africanas e malandragem na belle-époque carioca

Thauan Bertão dos Santos ........................................................................................................................................................ 34

Antropologia do corpo e consumo através da análise da vigorexia

Mirela Valério Lopes.................................................................................................................................................................... 47

Aproximações entre Bourdieu e a etnologia Kaingang no Paraná

Vanessa de Souza Lança ........................................................................................................................................................... 62

Cultura e natureza: a emergência das novas sensibilidades no século XIX

Rafael Ferreira Silva; Carolina Steinke Xavier; Rosana Steinke ........................................................................................ 71

Maria Bueno: um diálogo sobre religiosidade católica

Tônia Kio F. Piccoli; Solange R. de Andrade; Vanda F. Serafim ......................................................................................... 78

O individualismo oitocentista e a renovação católica contemporânea: debate sobre a racionalidade

Gabriel Farias Galinari; Patrick Aparecido Trento ............................................................................................................... 88

Sobre causas e consequências: notas sobre a história da presença libanesa em Foz do Iaguaçu

Danillo Alarcon; Douglas de Toledo Piza; Amani Rafic Sleiman; Amira Read Rahal; Bruno Vinicius Nascimento de Oliveira; Dominique Ribeiro Gentil; Fernanda Ferreira Chan ..................................................................................... 98

Sujeitos religiosos e participação política

Luiz Ernesto Guimarães ...........................................................................................................................................................114

Um município chamado Curralinho: análise sob o ponto de vista da alimentação marajoara

Stefany Ferreira Feniman ........................................................................................................................................................129

Zé Carioca e o homem cordial: um retrato do brasileiro no cinema

Anderson A. Rocha ....................................................................................................................................................................137

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22 a 26 de Outubro de 201212

A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL

Richard de Freitas Gomes

Acadêmico do curso de História - UEM - Maringá (2012)E-mail: [email protected]

Resumo: A presença da cultura afro no Brasil remonta ao século XVI onde ocorre a partir da chegada de escravos para a lida nas lavouras de cana de açúcar. Compartilha também nesse período, a cultura cristã vinda através de colonizadores e Jesuítas. Essa comunicação visa observar alguns aspectos da cultura afro no Brasil em paralelo ao modelo religioso descrito como cultural para a sociedade brasileira. Nossa problemática se apoia na premissa de que a cultura afro, engloba valores antropológicos que se chocam com as estruturas religiosas trazidas da Europa para o Brasil, a partir do século XVI, nesse sentido, a cultura afro se apresentaria muito mais ampla impossibilitando a afirmação de que essas instituições pertencentes a um enquadramento cultural onde, valores em que o bem e o mau, a vida e a morte não partilham do mesmo universo. Em suma, tentaremos abordar de maneira científica que, as estruturas que tomamos como estruturas religiosas, não dariam conta de afirmar que os Candomblés são apenas uma religião, mas sim, um complexo cultural mais amplo. Para apoiar nossa discussão lançaremos mão de autores como Mircea Eliade o qual assume fundamental importância para uma delimitação inicial de alguns conceitos sobre o sagrado e o espaço; Paula Montero, a qual nos ajuda a compreender a organização do espaço religioso, Peter Burke nos fornece conceitos acerca da cultura e suas diferentes formas de hibridizações culturais, Lísias Negrão e Renato Ortiz nos contemplam com estudos sociológicos acerca das macumbas cariocas e paulistas; Reginaldo Prandi com descrições importantes que nos farão compreender a aplicabilidade de conceitos de vida e de morte e bem e mal, na cultura afro; e Pierre Verger o qual, contribuiu exponencialmente para o enriquecimento informativo acerca da cultura afro no Brasil e na própria África.

Palavras-chave: Religiosidade afro; Cultura; Cristãs; Modelo religioso; Candomblé.

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A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL

INTRODUÇÃO

Objetivamos com essa comunicação, observar um possível grau de divergência cultural presente nas críticas que norteiam a ética ou a moral observada no exemplo que colocaremos mais adiante. Contudo, entendemos que para dar sustentação para nossa análise metodológica, Mircea Eliade assume fundamental importância para uma delimitação inicial de alguns conceitos sobre o sagrado e o espaço; Paula Montero, nos ajuda a compreender a organização do espaço religioso, Peter Burke nos fornece conceitos acerca da cultura e suas diferentes formas de hibridizações culturais, Lísias Negrão e Renato Ortiz nos contemplam com estudos sociológicos acerca das macumbas cariocas e paulistas; e Reginaldo Prandi com descrições importantes que nos farão compreender a aplicabilidade de conceitos de vida e de morte e bem e mal, na cultura afro; e Pierre Verger contribuiu exponencialmente para o enriquecimento informativo acerca da cultura afro no Brasil. De forma que nossa discussão poderá ser observada em duas partes, sendo que: na primeira parte objetivamos mostrar de maneira sucinta algumas considerações sobre o termo religião, sagrado, e o posicionamento do indivíduo em relação ao sagrado; em um segundo momento colocaremos, também de forma sintética, algumas constatações dos autores sobre a cultura afro.

DESENVOLVIMENTO

Quais elementos são necessários para afirmar o que é moralmente correto dentro do campo religioso? Emerson Giumbelli (2008), chama nossa atenção para uma abordagem apoiada na busca de respostas para a prevalência de religiões no espaço público e seu reconhecimento a partir de dispositivos jurídicos os quais, se aplicam a partir de uma legitimidade social, de forma que essa legitimidade somente foi possível com a laicidade de algumas formas de religião, ou seja, o autor chama à atenção para um fato em que o rompimento do Estado com a Igreja propiciou a legitimidade de algumas formas religiosas que até finais do século XIX, estariam a sombra da Igreja Católica no Brasil. Sendo assim, seria uma legitimação religiosa iniciada pelas instituições jurídicas e posteriormente assimiladas pela sociedade. Paula Montero (2006), concorda com Giumbelli, admitindo que algumas práticas religiosas a partir do rompimento do Estado com a Igreja, se modificaram e se adequaram a uma nova realidade, visto que almejavam a liberdade religiosa, ou seja, as religiões não-cristãs tiveram que passar por um processo intenso envolvendo modificações em sua forma de apresentação, para então se enquadrarem a um modelo religioso aceito e legitimado pela esfera tripartite - Estado, Família e Sociedade Civil. Pierre Bourdieu1, por sua vez, entende que as estruturas que definem o campo religioso estão ligadas a um mercado econômico de bens simbólicos, uma vez que o autor admite a existência de um grupo especializado na produção de bens religiosos e de um grupo que sustenta esse

1 Essa é uma reflexão obtida através do trabalho de Nivia Ivette Paz e Rogério Sávio Link. Bourdieu e o fazer teológico. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo.2007.

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RICHARD DE FREITAS GOMES

grupo especializado que em troca, produz um sustento espiritual, esse sustento poderia ser entendido como uma espécie de catalizador para a legitimação da presença religiosa. Seja qual for o critério adotado para definir como legítima ou não uma determinada prática religiosa, uma coisa é possível de ser afirmada: toda religião necessita de estruturas - cultos, signos, magia, sagrado, doutrina, sacerdote e fiel. Iniciemos, portanto, nossa comunicação com um pequeno exemplo prático e muito comum observado dentro de algumas religiões de matriz afro para então, a partir dele desenvolver toda a nossa argumentação:

“Uma pessoa com problemas de natureza afetiva, uma mulher, por exemplo, chega à uma consulta dentro de um terreiro qualquer e põe-se a lamentar diante de uma entidade. Essa pessoa pede auxílio à entidade com o objetivo de trazer para si o amante que se encontra atualmente ao lado de outra. A entidade analisa e aceita o pedido lhe prometendo que dentro de alguns dias, mediante o cumprimento de oferendas por ela solicitada, ela teria o que havia pedido.” 2

Para Martins (2009), até o século XIX acreditava-se que a religião teria surgido a partir de um mentor ou mentores com datas e locais aproximados, porém, a partir do avanço no campo de pesquisa etnográfica, antropológica, histórica e arqueológica, na segunda metade do século XIX, observou-se um novo direcionamento nos estudos das religiões e com isso novas interpretações.

Entendemos que o termo “religião”, segundo Silva (2004), deriva da palavra latina religio e implicava inicialmente em um conjunto de regras, interdições e advertências sem fazer referência a rituais, divindades, mitos, signos ou qualquer manifestação que atualmente interpretamos como religiosa. Nesse sentido, podemos inferir que a religião é um produto da construção histórica e cultural, uma vez que ao chegar no ocidente adquiriu uma roupagem ligada a tradição Cristã.

Para Mircea Eliade (1999), autor romeno que melhor delineou conceitos acerca das religiões, a religião estaria ligada diretamente ao sentimento de sacralidade do indivíduo primitivo onde há um sagrado intrínseco na natureza humana, ou seja, o indivíduo em busca de se aproximar do sagrado, modifica seu espaço moldando-o de acordo com sua visão do sacro, ou nas palavras do autor:

A profunda nostalgia do homem religioso é habitar um “mundo divino”, ter uma casa semelhante à “casa dos deuses”, tal qual foi representada mais tarde nos templos e santuários. Em suma, essa nostalgia religiosa exprime o desejo de viver num Cosmos puro e santo, tal como era no começo, quando saiu das mãos do Criado (Eliade, 1999; p. 37).

O espaço sagrado também sofre alterações, uma vez que, para viver no Mundo é preciso

2 Esse é um exemplo inserido na problemática da comunicação e fictício, no entanto, está embasado em exemplificações observadas por nós em conversas mantidas com pessoas de credos distintos. A figura de Exu aparece aqui com o objetivo de mostrar um perfil controverso ou ambíguo o qual, trataremos mais adiante.

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A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL

fundá-lo e é a manifestação do sagrado que funda o mundo e permite a obtenção de um ponto fixo capaz de orientação na homogeneidade do profano a fim de se viver o real. Nesse sentido, o autor nos mostra que em várias religiões, o território só pertence ao homem religioso à medida que ele o consagra como tal, em outras palavras, quando o homem religioso repete o ato de criação executado pelo sagrado, tem-se, portanto, a fundação de um mundo pois, instalar-se em um território equivale a consagrá-lo.

Portanto, o homem imerso no sentimento religioso, busca viver permanentemente em sintonia com o sagrado imitando os deuses em sua obra criadora. Nesse sentido entendemos que o sentimento religioso é algo inerente ao indivíduo.

Para estruturar nossa argumentação precisamos ter em mente os conceitos de vida e de morte e bem e mal dentro da cultura afro e a cultura Cristã, uma vez que essas variáveis devem ser compreendidas dentro de seus respectivos espaços para melhor elucidarmos nossa problemática. Para isso lançaremos mão das observações de autores especializados nessas leituras.

A partir de Prandi (2000), entendemos que os iorubás e outros grupos africanos que sustentaram as bases de nossa cultura afro brasileira, creem que a vida e a morte se circunscrevem em um círculo aonde, o contato com a natureza coincide com o mundo no qual vivemos, esse mundo chama-se aiê, enquanto o outro mundo - o mundo dos espíritos, ancestrais, dos orixás, ou de outras divindades - coincide com o mundo para onde vão os mortos, esse local para os iorubás é chamado de orum. De forma que, quando alguém morre no aiê, seu espírito ou parte dele segue para o orum, de onde após algum tempo pode retornar ao aiê nascendo novamente.

Segundo o relato de Prandi, é possível compreender que o indivíduo a partir da cultura afro, mais precisamente iorubá a qual, o autor confere maior enfoque, não almeja qualquer prêmio no seu pós-vida, não existe o conceito de vida e de morte semelhante ao conceito de bem e de mal, inferno, purgatório ou céu, incorporado a partir da chegada de colonos europeus no século XVI ao Brasil, cultura essa desenvolvida a partir da sociedade ocidental Cristã-católica, que entende que o ser humano é formado de alma - espírito indivisível - e corpo material. Nas tradições iorubás, segundo Prandi, existe sim a ideia de corpo material, porém, esse corpo se decompõe após a morte se reintegrando a natureza enquanto o espírito aguarda o retorno para o mundo dos vivos ou o aiê.

Em suma, observando com olhar antropológico a partir do autor, para nós ocidentais - Brasil - imersos na cultura ética e moral do cristianismo de matriz europeia, é possível inferir que algumas propriedades são tomadas como inerentes e indissolúveis, como é o caso de alma e matéria, uma vez que somos compelidos a ter uma existência terrena exemplar com o propósito de garantirmos um local agradável no pós-morte, enquanto que para algumas culturas afro, aqui a cultura iorubá, essa divisão é inexistente, uma vez que o indivíduo não se sustenta na vida

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RICHARD DE FREITAS GOMES

terrena em busca de um paraíso ou uma existência gratificada nos pós-morte, esse indivíduo não possui os mesmos valores éticos e morais comuns a sociedade Cristã-ocidental. Tal afirmação pode ser melhor verificada quando nos remetemos a obra intitulada Os Orixás - Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo - Pierre Verger (1981). Nas palavras de Arlete Soares, responsável pela citação ao autor no início de sua obra, [...] Pierre Fatumbi Verger, viveu durante dezessete anos em sucessivas viagens, desde 1948, pelas bandas ocidentais da África, em terras iorubás. Tornou-se babalaô em Kêto, por volta de 1950, e foi por essa época que recebeu de seu mestre Oluwo o nome de Fatumbi: "Aquele que nasceu de novo (pela graça) de Ifá".

O autor faz referência a diversos Orixás, um deles Ogum ou ÒGÚN - orixá da guerra tanto no Brasil como em terras iorubás - nas palavras de Verger:

Ogum, como personagem histórico, teria sido o filho mais velho de Odùduà, o fundador do Ifé. Era um temível guerreiro que brigava sem cessar contra os reinos vizinhos. Dessas expedições, ele trazia sempre um rico espólio e numerosos escravos. Guerreou contra a cidade de Ará e a destruiu. Saqueou e devastou muitos outros Estados e apossou-se da cidade de Ire, matou o rei, aí instalou seu próprio filho no trono e regressou glorioso, usando ele mesmo o título de Oníìré, “Rei de Ire”. (Verger, 1981; p. 44).

Com essa passagem, Pierre Verger nos mostra que historicamente um indivíduo com características que a princípio se chocam com a moral Cristã brasileira - o bem e o mau - ou invadir, roubar e pilhar, estão presentes na cultura dessa personagem. Evidencia portanto, que sua cultura não pode ser observada a partir dos mesmos valores antropológicos e morais adotados no Brasil. Por outro lado mostra também o respeito adquirido pelo indivíduo seja em vida como no pós-morte, visto que esse indivíduo ainda é relembrado na condição de um orixá até nos dias atuais, portanto, venerado e cultuado como tal.

Em outra obra, A Lendas Africanas dos Orixás, também de Pierre Verger (1997), o autor argumenta a partir da narrativa de um Babalaô, as condições que levaram alguns indivíduos a assumir a postura de orixá:

Um babalaô me contou: "Antigamente, os orixás eram homens. Homens que se tomaram orixás por causa de seus poderes. Homens que se tomaram orixás por causa de sua sabedoria. Eles eram respeitados por causa da sua força, Eles eram venerados por causa de suas virtudes. Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram. Foi assim que estes homens tomaram-se orixás. Os homens eram numerosos sobre a Terra. Antigamente, como hoje, Muitos deles não eram valentes nem sábios. A memória destes não se perpetuou. Eles foram completamente esquecidos; Não se tornaram orixás. Em cada vila, um culto se estabeleceu Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio E lendas foram transmitidas de geração em geração, para render-lhes homenagem". ( Verger, 1997; p. 10).

A narrativa fala por si só, o que cabe ressaltar aqui são os fatores que levaram alguns

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A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL

ao estado de merecimento de cultos, nesse sentido temos alguns mais outros menos conhecidos dentro dos rituais afro, mas a ancestralidade do indivíduo é um fator de extrema importância no que sugere respeito e devoção de seus entes e familiares que contribuíram para perpetuar historicamente a imagem do ancestral, uma vez que o processo se pauta na oralidade histórica e valores atribuídos a indivíduos de acordo com seus feitos no passado. Alguns indivíduos, em vida, se tornam ilustres - são os eguns - a eles são prestados cultos em sua memória, sacrifícios podem lhes ser ofertados como se faz com os orixás - deuses que representam às forças da natureza e vivem no orum - esses eguns representam os ancestrais de uma determinada comunidade ou família, representam as raízes e identidades do coletivo, segundo Prandi. Teríamos, portanto, duas identidades: os orixás que são reconhecidos e legitimados por um coletivo, e paralelamente os eguns, com semelhantes atribuições, porém, com reconhecimento mais reduzido, restrito ao seio familiar.

O bem e o mal não se separam, segundo Prandi (2007), tanto para os Candomblés como para às Umbandas. Porém a Umbanda durante a sua formação almejava uma religião ética aos moldes da religião ocidental Cristã3, isso acabaria por se tornar um transtorno pois, ela abarcaria de um lado a direita4 - lado que compreende os orixás e guias espirituais como caboclos, pretos velhos, crianças, boiadeiros, baianos, marinheiros, ciganos, mineiros, encantados, sereias e povo do oriente - em oposição a esquerda - trabalhos voltados para transes com exus e pombagiras - essa divisão nos permite observar dois campos éticos bastante distintos. No entanto, no passado, os cultos voltados para a esquerda eram bastante velados, de forma que apenas participantes internos tinham acesso, nos dias atuais esses cultos ganharam espaço nos trabalhos umbandistas e passaram a ser abertos.

Temos, portanto, de um lado a caridade aos moldes cristãos kardecistas, a direita, enquanto do outro a representação do mal a esquerda. Note-se que essa interpretação de mal, pode ser observada a partir de diversos ângulos, optamos por ressaltar a exemplificação de Prandi (2007), por ser a visão que melhor se projetou para nossa problemática.

[...] o culto dos exus e pombagiras, identificados popularmente, especialmente pelos religiosos oponentes, como figuras diabólicas — culto tratado durante muito tempo com discrição e segredo — veio recentemente a ocupar na umbanda lugar aberto e de realce. Era tudo de que precisava um certo pentecostalismo: agora o diabo estava ali bem à mão, nos terreiros adversários, visível e palpável [...] Pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, em cerimônias fartamente veiculadas pela televisão, submetem desertores da umbanda e do candomblé, em estado de transe, a rituais de exorcismo, que têm por fim humilhar e escorraçar

3 Prandi, 2007; p. 18.

4 A termologia “direita” e “esquerda” está presente ao longo da obra de Lapassade, Georges; Luz, Marco. O Segredo da Macumba. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. Assume o propósito de diferenciar alguns orixás dentro das casas religiosas de forma que, a direita estaria voltada para a prática do bem, enquanto a esquerda estaria direcionada a praticar o mau.

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RICHARD DE FREITAS GOMES

as entidades espirituais afro-brasileiras incorporadas, que eles consideram manifestações do demônio, num ataque sem trégua ao candomblé e à umbanda e a seus deuses e entidades. (Prandi, 2007; pp. 18-19).

O caráter atribuído a exu - o mau - segundo Pierre Verger (1981), pode assumir um perfil semelhante ao caráter do homem, uma vez que o autor chama nossa atenção para o arquétipo de exu no sentido de enfatizar que seus valores estariam inerentes aos valores da sociedade, visto que vivemos em uma sociedade ambivalente, segundo a nomeação dada pelo autor, onde proliferam indivíduos de caráter dúbio - pessoas com inclinações para o bem e para o mal simultaneamente - ou nas palavras do autor:

[...] Pessoas que têm a arte de inspirar confiança e dela abusar, mas que apresentam, em contrapartida, a faculdade de inteligente compreensão dos problemas dos outros e a de dar ponderados conselhos, com tanto mais zelo quanto maior a recompensa esperada. As cogitações intelectuais enganadoras e as intrigas políticas lhes convêm particularmente e são, para elas, garantias de sucesso na vida. (Verger, 1981; p. 42).

Essa argumentação começa a tomar forma quando recordamo-nos do passado onde, a cultura afro havia sido suprimida no Brasil, restringia-se quando possível, às senzalas e a cultos isolados e escondidos dos senhores (PARÉS, 2006; p. 181) .

Como saída para perpetuar suas tradições, escravos tomaram para si a roupagem das figuras dos santos católicos para camuflar seus cultos de adoração aos deuses e com isso procuravam permanecer no anonimato. No entanto, ocorre que existiu uma figura que não se encaixava aos moldes éticos e morais cristãos, devido ao seu caráter ambivalente - exu. Para melhor caracterizar o perfil desse orixá, recorremos novamente a Verger:

[...] O lado malfazejo de Exu é evidenciado nas seguintes histórias: Uma delas, bastante conhecida e da qual existem numerosas variações, conta como ele semeou discórdia entre dois amigos que estavam trabalhando em campos vizinhos. Ele colocou um boné vermelho de um lado e branco do outro e passou ao longo de um caminho que separava os dois campos. Ao fim de alguns instantes, um dos amigos fez alusão a um homem de boné vermelho; o outro retrucou que o boné era branco e o primeiro voltou a insistir, mantendo a sua afirmação; o segundo permaneceu firme na retificação. Como ambos eram de boa fé, apegavam-se a seus pontos de vista, sustentando-os com ardor e, logo depois, com cólera. Acabaram lutando corpo a corpo e mataram-se um ao outro. (Verger, 1981; p. 40).

Essa é apenas uma das diversas lendas atribuídas a esse orixá, Caroso e Rodrigues (1998), chamam nossa atenção para o perfil dessa divindade, de forma que a ele é consagrado a provocar e curar doenças, promover a desordem e estabelecer a ordem. Seu caráter trickster, colaborou para que no passado, a religião Cristã o associasse ao diabo ou ao demônio católico, devido o destaque para seus aspectos negativos, ou seja, pela capacidade de proporcionar ganhos para uns e perdas para outros.

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A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL

Lísias Negrão (1996), nos fornece um panorama geral acerca da presença dessa entidade na Umbanda:

Os exus e suas mulheres, as pombas-giras, aceitam qualquer pedido de seus clientes, independentemente de preocupações de ordem moral, desde que pagos para isso [...] Não são propriamente o diabo, apesar da catequese católica ter feito essa identificação, já que sua iconografia africana o representa com chifres, tridente de ferro e com falo evidente, além de ter no fogo o seu símbolo. [...] são vistos como espíritos de mortos, “eguns” ou “quiumbas”, que em vida foram assassinos, ladrões, etc. Ficaram vagando até serem recolhidos por Lúcifer, que os colocou a seu serviço. [...] tratam sobretudo do relacionamento sexual, arranjam namorados, amantes e esposos e fazem as “amarrações” de pessoas amadas, mesmo que casadas com outros. (Negrão, 1996; pp. 82-87).

Através de Negrão conseguimos observar um resumo das qualidades ofertadas a essa entidade ambígua - exu - e conseguimos perceber também que a sua moral e ética contribuíram para a promoção de uma imagem negativa acerca de sua pertença nas religiões de matriz afro.

CONSIDERAÇÕES

Com o propósito de responder a nossa problemática acerca de uma possível divergência de valores morais envolvendo as religiões de natureza afro, elencamos essa argumentação, embora parecendo um tanto quanto desfragmentada - uma colcha de retalhos - entendemos que seria possível tecer algumas possíveis considerações sobre essa temática e amarrar os argumentos para justificar nossos objetivos.

A cultura modifica-se e adequa-se de acordo com o meio no qual ela está se articulando. Elementos novos são agregados enquanto antigas práticas acabam por se perder na linha do tempo e do espaço. Peter Burke (2003), anunciava essas ideias quando, sugeriu conceitos que exploram às hibridizações culturais, tais como: apropriação cultural, empréstimo cultural, acomodação e aculturação, dentre outros conceitos. Porém, entendemos que o conceito de acomodação proposto por Burke, é o modelo que melhor se projeta em nossa problemática, ao mesmo tempo que por um lado ressoa como apaziguador de conflitos, por outro lado acabaria por se mostrar negativo ao que tange a perpetuação cultural. Esse conceito proposto por Burke acabaria por responder parte dos percalços percorridos pelas religiões de matriz afro, no Brasil, visto que esse modelo conceitual engloba uma aceitação de uma das partes em prol de um melhor enquadramento social, nesse caso, teríamos as religiões de matriz afro acomodando-se aos moldes da sociedade para se fazer ouvir. Essa acomodação não seria necessariamente um problema, uma vez que visa abarcar o maior número de adeptos, porém, a que preço?

Como pudemos constatar, no passado, houve retaliações por parte do Estado - policiais invadiam casas de cultos religiosos afro e prendiam dirigentes e participantes, sacerdotes e

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RICHARD DE FREITAS GOMES

filhos de santo - a Igreja não tardou a perseguir todas as condutas que se mostrassem não-cristãs e sobretudo a propagar imagens negativas acerca das práticas afro no Brasil do século XX, isso viria a forçar, tanto por parte do Estado como por parte das instituições, mudanças em seu quadro doutrinário, visando a liberdade religiosas. Isso se constata a partir de Montero, Negrão, Ortiz, dentre tantos outros autores que nos revelam tais práticas no século passado. No entanto, o que se observa quanto produto dessa acomodação, por parte das religiões afro é o afastamento da cultura, iniciado primeiramente pela Umbanda e nos dias atuais comuns pelos Candomblés, de forma que a língua, os ritos e os signos acabam por se perder dando lugar a novas práticas híbridas. Essa constatação no entanto, já havia sido melhor explorada por Ortiz em A morte Branca do Feiticeiro Negro (1978), quando o autor trata a ideia do continuum religioso5, nesse método o autor já observava um gradiente aonde, nos extremos apareceriam as religiões mais ocidentalizadas e as menos ocidentalizadas.

Inicialmente observamos um exemplo bastante comum e vivenciado por nós em discussões que envolvem as religiões de matriz afro. A partir desse exemplo configuramos argumentos que nortearam essa temática. O sagrado, estrutura religiosa, legitimação da função religiosa, para então abordarmos alguns aspectos culturais próprios da cultura afro. O que entendemos com tais argumentações refere-se ao tocante onde, a cultura afro possuí características próprias e inerentes a sua tradição e seu quotidiano. Seus valores jamais devem ser computados ou nivelados aos valores atribuídos ao modelo religioso ocidental Cristão, visto que são completamente diferentes. Seria portanto, uma prática anacrônica atribuir valores estruturais cristãos a essa ou aquela cultura.

O indivíduo de natureza iorubá, por exemplo, nasce e vive sem uma expectativa de salvação pós-morte e portanto, para esse indivíduo valores antropológicos comuns a sociedade ocidental cristianizada, não assume o mesmo peso, visto que, matar, pilhar e escravizar, eram práticas comuns no passado, mais precisamente no que se pontuam nas lendas dos orixás e na ancestralidade dos indivíduos.

Quando nos remetemos a questão de ancestralidade dos indivíduos, assumimos aqui que indivíduos morrem e se tornam figuras passíveis de cultos devido a sua importância quando vivos - não queremos entrar em discussão sobre os critérios que o tornam ou não merecedor de cultos - gostaríamos apenas de ressaltar que indivíduos que um dia estiveram em vida e a partir da cultura afro, em seu pós-morte, se tornaram entidades que aos olhos de seus adeptos e ancestrais merecem cultos. Nesse sentido entra a figura de exu. Uma entidade, como afirmada anteriormente, bastante ambígua que teve sua imagem associada ao demônio cristão devido o seu caráter entendido de maneira negativa no mundo ocidental.

5 Essa é uma termologia utilizada inicialmente por Procópio Camargo que tem por objetivo classificar e enquadrar as religiões em um gradiente, de forma que nas extremidades estariam as religiões mais e menos africanizadas. No entanto esse entendimento está inserido na obra já citada de Renato Ortiz (1978).

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A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL

Renato Ortiz (1978), mostra-nos que houve por parte dos cultos afro, uma tentativa de embranquecimento dessa imagem, uma vez que, sacerdotes passaram a incorporar a doutrinação espírita kardecista aos cultos afro, mais precisamente nas Umbandas paulistas e cariocas, elevando a condição de entidades pagãs - exus pagãos - para a condição de exus-batizados, esses ao se converterem para a direita, já estariam, segundo o autor, livre de todos os malefícios que antes lhes eram impostos e, já não se comportavam mais de maneira primitiva, com efeito, já não falavam mais palavrões, não praticavam os atos que antes lhes eram inerentes, não bebiam e não fumavam, essa era a condição. Essa tentativa de domesticação e doutrinação dessas entidades, narrada pelo autor, aparentemente serviram para abrandar as interpretações externas, visto que dificilmente, segundo Negrão (1996), se encontra uma casa aonde o guia principal é um exu, embora moralizado, o que prevalece portanto, a imagem moralizante kardecista aonde, essas entidades assumem novamente a imagem ambígua e original - da porta da casa para dentro - fazem tanto o bem quanto o mau, são desprovidos de moral sendo portanto, amorais.

Em um quadro geral, embora bastante amplo que necessita de um maior aprofundamento, porém, podemos entender que as estruturas religiosas que as religiões brasileiras possuem, são insuficientes para entender e englobar os conceitos e valores culturais afro, dessa forma algumas imagens prevalecem moralmente inferiores.

REFERÊNCIAS

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RICHARD DE FREITAS GOMES

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A PRODUÇÃO SOCIAL DA MARGINALIDADE ENTRE “FLANELINHAS” DA CIDADE DE MARINGÁ-PR

Francieli Muller Prado

Acadêmica do 4º ano do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá- PR

Resumo: Tendo em vista que parte dos discursos cotidianos sobre os “flanelinhas” tendem desqualificar tais agentes e suas atividades, o presente trabalho tem por objetivo compreender suas atuações em Maringá – PR, a fim de contribuir para uma nova percepção acerca desses atores sociais, frequentemente estigmatizados. A partir de contribuições teóricas que contemplem as relações entre indivíduo e sociedade, pretende-se demarcar pressupostos fundamentais, que sugerem hipóteses a ser exploradas, tais como a produção social da condição de “marginalidade” dos “flanelinhas”. Diante dessas suposições, buscar-se-á avaliar influências externas e condicionantes mais amplas que se impõem a esses agentes e limitam suas possibilidades profissionais, embora esses fatores sejam relativamente ignorados nas concepções da população maringaense. Desse modo, a análise pretende contribuir para que as questões urbanas, como a pobreza, a informalidade e a exclusão, não sejam reduzidas a problemas individuais e, assim, resolvidas de forma paliativa e discriminatória. Pois, conhecer e compreender a atuação dos guardadores de carro no município implica em identificar os fundamentos sociais das desigualdades socioeconômicas, já que, em última análise, se acredita que estes fenômenos estejam relacionados.

Palavras-chave: Flanelinhas; Exclusão social; Segregação socioespacial; Marginalidade.

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FRANCIELI MULLER PRADO

INTRODUÇÃO

As cidades metropolitanas se apresentam como uma área de multiplicação cultural que se caracteriza pelas suas peculiaridades geográficas, ecológicas e econômicas baseada na divisão do trabalho. Para Park “a multiplicação de ocupação e profissões dentro dos limites da população urbana é dos mais notáveis e menos entendidos aspectos da vida citadina moderna” (PARK, p 27,1967). Já que nas cidades, as atuações mais improváveis tendem a se tornar profissão. O individuo ao dedicar-se a uma atividade, seja ela supostamente válida ou não se especializa e desempenha a atividade como uma vocação. É assim que a divisão do trabalho produz no meio urbano os tipos vocacionais e a pluralidade de ocupações como, bombeiro, flanelinha, guarda de trânsito, arquiteto, entre outros.

No momento em que a cidade passa por um processo de modificação, estimulado pelo desenvolvimento industrial e comercial, as relações de trabalho também tendem a se modificar. Frequentemente esse processo deixa para traz as antigas organizações sociais de trabalho, abrindo espaço para novos interesses e vocações que surgem com o novo cenário citadino. Assim sendo, salienta-se que as ocupações dos agentes podem ser entendidas como o produto das condições de vida das cidades, que determina a individualidade para cada vocação e logo, para toda a cidade.

A partir de contribuições teóricas que contemplem as relações entre indivíduo e sociedade, pretende-se demarcar pressupostos fundamentais, que sugerem hipóteses a serem exploradas, tais como a produção social da condição de “marginalidade” dos “flanelinhas”. Diante dessas suposições, buscar-se-á avaliar influências externas e condicionantes mais amplas que se impõem a esses agentes e limitam suas possibilidades profissionais, embora esses fatores sejam relativamente ignorados nas concepções da população maringaense.

AS CIDADES METROPOLITANAS E SUAS REPRESENTAÇÕES

É possível ressaltar que a cidade pode ser pensada como um fenômeno cultural formado por diversas categorias profissionais e sociais. Essa associação possibilita pensar o ambiente urbano para além da estrutura física. Além disso, pode revelar a dimensão complexa da temática urbana na busca de elucidar diversas problemáticas que surgem na sociedade moderna.

Em Maringá, as análises do processo de conhecimento interagem nos campos segregacionistas e da exclusão social. Assim, parte-se do pressuposto que os fenômenos essencialmente urbanos é a causa das diferenças sociais marcantes na cidade de Maringá. Conforme algumas análises, o espaço urbano de Maringá se constitui a partir de uma lógica

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segregacionista. Isso se deve ao fato de que, desde sua formação1 se instituiu um caráter de cidade planejada, promissora nos aspectos urbanos e na atração de investidores2. Os agentes econômicos e políticos conjecturaram uma cidade com retorno financeiro aos investimentos, mascarando a pobreza e desigualdade presente desde que foi implantada. Sobre este aspecto, Rodrigues comenta:

Com isto, neste período, configurou-se o fenômeno da periferização da pobreza, [...] Em Maringá, essa ocupação periférica já ocorria desde o início da expansão da área urbana, oriunda do projeto residencial (segmentador) que se concebeu, [...] (RODRIGUES, 2004, p.34-35).

Ainda, não obstante as problemáticas relacionadas à segregação espacial que vem ocorrendo desde sua formação. Atualmente, relacionado ao mercado de trabalho, Maringá apresenta como ponto positivo um grande número de oportunidades de emprego, no entanto com baixa remuneração e alta rotatividade nos postos de trabalho3. O rendimento mensal médio, medidos em salários-mínimos, é muito baixo em todos os municípios da região de Maringá4. A especialização exigida pela estrutura produtiva aumenta a rotação nos postos de trabalho e em função disso, os trabalhadores não especializados encontram recurso no subemprego ou na informalidade. Nesta perspectiva observa-se o crescimento do setor informal, resultado da tendência dos agentes de satisfazer suas necessidades individuais. Ou seja, o que o indivíduo não consegue consolidar na formalidade, busca sua renda ou complemento no mercado informal. Na maioria das vezes, estes trabalhadores desempenham atividades como a de flanelinhas, vendedores ambulantes, catadores de matérias recicláveis entre outros. Acabam por ocupar os locais públicos, de maior circulação ou de grande valorização comercial o que lhes propicia ganhos financeiros.

Conforme estudo elaborado pelo Observatório das Metrópoles (2009), grande parte da população da Região Metropolitana de Maringá (RMM) atua no setor informal, o grau de formalização do mercado de trabalho em Maringá chega a 50%. Este indicador aponta que a

1 Maringá foi implantada no final da década de 40, pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP), nos moldes de um loteamento imobiliário. Ainda, para Tonella (1991), Maringá teve processos de urbanização e modernização bastante acelerados, devido às condições especiais peculiares de interiorização das relações capitalistas (GALVÃO, 2012).

2 Sobre a valorização do espaço urbano em Maringá ver: Galvão, Altair Aparecido. Políticas públicas urbanas, espaço público e segregação em Maringá – PR. Tese de Doutorado em Geografia - Universidade Estadual de Maringá, 2012.

3 De acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Maringá apresenta grande rotatividade no mercado de trabalho, um dos casos que podem ser analisados é profissão de pedreiro, esta ocupa a 5º posição das profissões que mais demitiu em 2011, foram contratados 1.495 profissionais e no mesmo ano foram demitidos 1.445, o salário médio é de 965,38 mensais (DIARIO, 2011).

4 Rendimento médio em salários-mínimos: Ângulo 3,0; Floresta 2,9; Iguaraçu 2,7; Mandaguaçu 3; Mandaguari 2,8; Marialva 3,9; Maringá 5,4; Paiçandu 2,4; Sarandi 2,6 (RODRIGUES, 2009).

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RMM apresenta os mesmos índices de informalidade que se verificam no Brasil e no Paraná5 (RODRIGUES, 2009). O trabalho informal pode indicar uma estratégia de sobrevivência diante da colocação deficiente no mercado de trabalho, ou como uma opção de vida de alguns segmentos de trabalhadores que preferem desenvolver o seu “próprio negócio”. Este escopo possibilita pensar na informalidade sob dois aspectos. O primeiro diz respeito aos trabalhadores informais socialmente aceitáveis, como, por exemplo, costureiras e diaristas. Já o segundo compreende o trabalho informal entendido a partir da precariedade da ocupação, os socialmente estigmatizados; neste caso, os flanelinhas.

Conforme análise histórica realizada por Haag (2010) acredita-se que a atividade de guardador de automóveis – popularmente nomeada como “flanelinha” – teve inicio em meados de 1945, após a mobilização de cerca de 25 mil combatentes, para compor as tropas que lutariam na Europa contra o nazismo, entre 1944 e 1945. As tropas brasileiras, após se juntarem às norte-americanas, com o fim da guerra, retornaram ao Brasil, ficando, assim, sem ocupação. Nesse contexto, o governo de Getulio Vargas, deu origem à profissão de guardadores de carros a partir de uma tentativa de empregar esses ex-combatentes. Posteriormente, a profissão se consolidou com a criação da “Associação dos Guardadores de Automóveis do Estado da Guanabara”, mais tarde transformada no “Sindicato dos Guardadores de Automóveis do Estado do Rio de Janeiro” (O GLOBO, 2009). Contudo, os “flanelinhas” só foram oficializados anos depois, em 1977, pelo, então, Presidente Ernesto Geisel, com base no decreto número 79.797, que regulamentou o exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos (LEGISLAÇÃO, 1975). Mais recentemente, com o aumento dos conflitos sociais e econômicos – implicando na baixa remuneração e alta rotatividade nos postos de trabalho6 –, acredita-se que a atividade tenha sido ampliada, já que, como demonstra a experiência cotidiana, foi assumida por desempregados e moradores de rua, também por um número expressivo de crianças (O DIÁRIO, 2011).

A partir de uma leitura, com base em alguns levantamentos acerca de como se constituiu a atuação dos flanelinhas em Maringá, nota-se o surgimento dos primeiros profissionais aproximadamente no ano de 19967. Neste período a atividade era desenvolvida por adolescentes e moradores de rua. Ainda, segundo informações da Secretária e Assistência Social de Maringá esta atuação foi coibida pelo Conselho Tutelar, por indicar situação de trabalho infantil. Logo, com o passar dos anos, a atividade foi sendo ampliada gradativamente e assumida por outros indivíduos em idade adulta.

5 Em 2005 no Brasil entre os trabalhadores apenas 46,6% eram trabalhadores formais, e 53,4% eram informais (VILLA,2011).

6 De acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Maringá apresenta grande rotatividade no mercado de trabalho, um dos casos que podem ser analisados é profissão de pedreiro, esta ocupa a 5º posição das profissões que mais demitiu em 2011, foram contratados 1.495 profissionais e no mesmo ano foram demitidos 1.445, o salário médio é de 965,38 mensais (ODIÁRIO, 2011).

7 Informação disponibilizada por um funcionário de abordagem da Secretária e Assistência Social de Maringá.

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Vale resaltar que, o período compreendido entre 1996 e 2010 a população de Maringá saltou de 266,628 habitantes para 357.077 (IBGE, 2012). Motivado pela expansão populacional, outras áreas foram se modificando, transformando a conjuntura urbana para um modelo de complexidade. Diante disso Velho (1994) cita que:

As sociedades complexas industriais modernas abrangem, em principio, um maior número de indivíduos devido ao desenvolvimento das forças produtivas [...] esse aumento do número de pessoas, embora por si só não seja suficiente para distinguir a sociedade complexa moderna industrial de outros tipos de sociedades complexas, é, no entanto uma característica marcante (VELHO 2008).

O grau de complexidade evidência um conjunto de transformações que interfere diretamente no grau de sociabilidade. Estimulado pela desigualdade social presente em Maringá. À indiferença das classes dominantes acaba por gerar um crescente sentimento de abandono, violência e criminalidade. Essas considerações são reforçadas por Wacquant, (2001), quando afirma que:

Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do subemprego crônico continuará a buscar no “capitalismo de pilhagem” da rua os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da miséria no cotidiano (WACQUANT, 2001).

É necessário, pois, analisar que nas questões de criminalidade e violência, Maringá se apresenta em uma posição favorável em relação a outros municípios metropolitanos brasileiros. Vale destacar que Maringá, em 2003, recebeu o titulo de cidade com menor índice de violência do Brasil e, por conseguinte, maior qualidade de vida. Entretanto, esta exposição acaba dissimulando questões presentes relacionadas às problemáticas urbanas, como a pobreza, miséria, bairros de periferia, falta de planejamento (COSTA E BONDEZAN, 2009). Enfim, o ideal de cidade verde e com “qualidade de vida” mascara a existência da pobreza e da violência que se mostram presentes em Maringá.

A ATIVIDADE DE “FLANELINHA” A LUZ DA TEORIA

Na busca de contribuições teóricas que contemplem as relações entre indivíduo e sociedade, a análise de conceitos se faz essencial para demarcar pressupostos fundamentais, que sugerem hipóteses a ser exploradas, tais como a produção social da condição de “marginalidade” dos “flanelinhas” na cidade de Maringá, com vias a defender o argumento de que a disseminação desses atores sociais encontra-se associada a fatores sociais mais amplos, sobretudo no que se refere a um processo de urbanização marcado pela desigualdade e exclusão social.

Dessas acepções, pode-se ressaltar que os conceitos elaborados por Emile Durkheim (1858-1917) - “fatos sociais” - é fundamental para analise de valores, que nesta perspectiva,

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independem de uma escolha individual. Durkheim refere-se às dificuldades que um individuo deverá enfrentar se não atender as regras de uma sociedade, como, por exemplo violar uma lei ou uma regra moral. O sujeito encontrará complicações, em relação aos demais membros da sociedade, que tentarão restringir sua ação, usarão de punições, da censura, do estigma, ignorando a idéia de que as ações, sejam elas aceitáveis socialmente ou não, são resultado de um processo social.

Isso pode ser melhor exemplificado se pensarmos na atual dinâmica urbana, que freqüentemente apresenta atores sociais cujas condutas são resultantes do processo de coerção e marginalização. Neste aspecto apresentam-se alguns exemplos, tais como, Flanelinhas, moradores de rua, vendedores ambulantes, entre outros.

Dadas essas considerações, supõe-se que, embora sob certas ressalvas, os fundamentos de Durkheim podem ser empregados nos estudos dos fenômenos atuais. Para entender a estrutura social, cada vez mais complexa, existem inúmeras perspectivas de análise; no entanto, muitos dos acontecimentos que surgem na sociedade contemporânea são decorrentes de variáveis sociais como a modernização, desenvolvimento social, econômico, urbano e crescente empobrecimento das camadas populacionais.

Os conceitos durkeimianos podem se tornar menos rígidos se levar em conta o uso de outros autores que consideram o social, mas também, vislumbram inclinações individuais. Dessas acepções, pode-se ressaltar que nas grandes cidades observa-se a existência de uma área de manobra, de um “campo de possibilidades” (Velho, 1978), que da maior possibilidade de decisão e escolha para o agente individual. Desta forma, as análises sócio-antropológicas não poderiam ser reduzidas a um fenômeno puramente social, conforme apresenta Durkheim, pois também estão associadas à subjetividade. Embora os agentes estejam fortemente relacionados com a sociedade, a cultura não é, exclusivamente, resultado da estrutura social. Os agentes têm a possibilidade de lidar com as circunstâncias, permitindo, desta maneira, uma relação entre individuo e os espaços socioculturais de que fazem parte.

Segundo Velho, portanto, devemos pensar na dinâmica social sem desconsiderar a vida dos indivíduos, das decisões que esses têm de tomar, e que, por sua vez, não devem ser entendidas como escolhas livres, mas sim orientadas pelo “campo das possibilidades”. Dada as escolhas oferecidas pelo campo, frequentemente, condutas entram em conflito em torno de interesses e valores sociais que se diferenciam de individuo para individuo.

O objetivismo durkheiniano parte da idéia de que formas já estruturadas moldam a atitude dos indivíduos, e logo, nossas condutas são o resultado das regras orientadas por esta estrutura. Existe uma estrutura objetiva que coage o agente a agir independente da vontade individual. Já o subjetivismo fenomenológico parte da sociologia compreensiva Weberiana, em que acredita na consciência do sujeito individual e racional, ou seja, que são as ações individuais

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A PRODUÇÃO SOCIAL DA MARGINALIDADE ENTRE “FLANELINHAS” DA CIEDADE DE MARINGÁ-PR

que levam às relações sociais. Diante destes conceitos, Bourdieu (2003) propõe combinar estas duas vertentes, acreditando que o individuo é produto e produtor da sociedade. Designa, deste modo, a sociologia da prática, ou seja, a prática do agente é uma estratégia traçada de acordo com a antecipação do resultado e o que o agente faz, na prática, é produto da situação prática, logo, é o resultado na situação e estrutura.

O conceito de habitus de Bourdieu surge da necessidade empírica de apreender as relações de afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas e condicionamentos sociais. Habitus é, então, concebido como um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientadas para funções e ações do agir cotidiano (BOURDIEU, 1983). Nas palavras do autor, habitus pode ser compreendido como:

[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (BOURDIEU, 1983).

Bourdieu subdividiu habitus em ethos, eidos e hexis, sendo, respectivamente, ethos entendido como os valores que os agentes colocaram em pratica na sua conduta cotidiana; eidos é o principio prático de classificação, percepção e raciocínio lógico, entendido como qualquer ação cotidiana desempenhada quase que inconscientemente; hexis pode ser entendido como modos transformados em gestos, postura corporal, dicção. Estas acabam determinando, por apreciação, a origem do agente (BOURDIEU, 2003).

É possível pensar habitus como um capital, uma forma de relação social de valorização, na qual nossos valores e modos de agir ganham valor na sociedade. Capital foi dividido por Bourdieu em cultural, econômico, social e simbólico. O primeiro, capital cultural, é incorporado da vivência de familiares, ainda, pode ser subdividido como cultural institucionalizado - criado pelas instituições, como universidade e igreja - e cultural objetivado - valor que se dá aos objetos. O segundo, capital econômico é entendido como a propriedade, e bens propriamente ditos, dos quais o agente é possuidor. O terceiro, capital social, é a rede de vínculos e confiança que o agente tem com as outras pessoas. Por fim, o capital simbólico pode ser entendido como qualquer capital, o qual, em uma estrutura, pode ser melhor valorizado dependente das relações sociais existentes (BOURDIEU, 2003).

As distribuições dos capitais - cultural, econômico, social e simbólico - determinam a estrutura do campo, que Bourdieu define como:

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[...] espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes [...]. Há leis gerais dos campos: campos tão diferentes como o campo da política, o campo da filosofia, o campo da religião possuem leis de funcionamento invariantes (BOURDIEU, 1983).

Deste modo, o campo pode ser considerado um espaço onde os agentes sociais interagem de formas distintas e ocupam diversas posições, em interações que se dão na forma de luta pela apropriação ou monopolização de um capital específico. No entanto, o capital existente dentro de um campo é distribuído de forma desigual, formando, assim, agentes dominados e dominantes. Desse modo, cada agente do campo é marcado por sua trajetória de vida social, pelo seu habitus e a posição que ocupa dentro do campo (LAHIRE, 2002).

A partir de uma leitura compreensiva dos conceitos elaborados por Bourdieu, vale destacar o conceito de habitus como objeto particular para entender o diálogo proposto entre os autores Durkheim, Gilberto Velho e Bourdieu. Contrário ao estruturalismo Durkheimiano, a teoria do habitus bourdiniana defende que os agentes constroem o mundo social através de suas experiências interiores e assim, dialoga com o principio baseado na relativização da individualização, defendida por Gilberto Velho. No entanto, o habitus propicia um princípio social, e desse modo, as categorias de juízo e de ação vindas da sociedade são partilhadas por todos aqueles que passaram por condições sociais parecidas. Contudo, Bourdieu ao ressaltar que “habitus é um sistema de disposição duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes” (BOURDIEU, 2003, P.20), Bourdieu os vê como estruturados por causas sociais anteriores e estruturantes por ações presentes. Assim, existe a capacidade de criar o que não há na estrutura, pois não existe essencialmente a necessidade de reproduzir o passado, ou seja, o agente também é construtor da estrutura. Estas associações levam a uma razão prática, que resulta em uma reflexão sobre as regras sociais, os interesses e desejos individuais, ou seja, concilia a vontade individual com as possibilidades que a estrutura proporciona.

Na busca para compreender alguns fenômenos, bem como a dinâmica dos agentes inseridos no cenário social moderno, o entendimento do habitus contribui de forma significativa. A análise da prática determina a necessidade de conhecer a estrutura social do habitus e do campo e compreender como estes dois conceitos se atrelam, elucidando, desta forma, muitas respostas ocultas ou mascaradas pelo senso comum, pois, para Bourdieu, a maior parte das ações dos agentes é o resultado de um encontro entre um habitus e um campo.

Na perspectiva do autor, a sociedade, então, não é uma totalidade única, mas são vários espaços – campos – autônomos que não podem ser entendidos como uma única lógica social. Assim, as estratégias e práticas destes campos também serão diversas. Retomando a reflexão de Bourdieu sobre capital, quanto mais um agente o possui, mais bem posicionado este tende a estar dentro de um campo, e, desta forma, os indivíduos sem capital cultural, econômico,

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A PRODUÇÃO SOCIAL DA MARGINALIDADE ENTRE “FLANELINHAS” DA CIEDADE DE MARINGÁ-PR

social e simbólico, provavelmente, se encontrarão mal posicionados, justificando, assim, suas estratégias “improdutivas”. Sendo assim, a lógica de funcionamento de uma sociedade competitiva é baseada no campo, habitus e estratégias dos agentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o suposto conjunto de fatores que levam ao surgimento desses atores sociais – flanelinhas – na paisagem urbana, vale salientar que esse processo tem a exclusão social, pobreza e o preconceito como suas principais causas. Uma vez que Maringá é marcado por um desenvolvimento segregado e deficiente em políticas públicas voltadas para a população marginalizada. Nesta perspectiva, supõe-se que os guardadores de carro sejam alvo de um estigma individualizante, incidido por parte da população local. Afinal, possivelmente, na visão de muitos, trata-se de uma ocupação que ganha dinheiro de modo “ilegal”, além de ser praticada por indivíduos apontados como oportunistas, ladrões e preguiçosos.

Sobretudo, é importante considerar os determinantes sócio-estruturais na explicação do surgimento e atuação dos guardadores de automóveis em Maringá, similarmente nas outras cidades metropolitanas. A estrutura, em grande medida, apresenta uma função importante de conduzir, bem como acolher os agentes para uma melhor performance no campo social. As falhas na estrutura social podem ser apresentadas por diversas frentes como, falta de políticas públicas, desigualdade social, exclusão social, precarização das bases de ensino. Estas problemáticas, entendidas como seminal, acabam por abrir precedentes para o surgimento de outros problemas sociais, tais como, falta de preparo para o mercado de trabalho formal, informalidade, precariedade das ocupações, dependentes químicos, aumento da criminalidade, pobreza, entre outros. Desta forma, para esta gama de problemáticas urbanas deve ser dada e reservada à qualificação de sociais, portanto de responsabilidade da estrutura.

Por outro lado, a atuação dos “flanelinhas” pode ser associada, também a subjetividade, deste modo os atores têm a possibilidade de lidar com as escolhas, permitindo uma relação entre as opções e espaços socioculturais de que fazem parte. Vale observar que estas alternativas são orientadas pelo “campo das possibilidades”, isto é, são pelas escolhas oferecidas pela estrutura que o individuo vai orientar suas condutas.

Tais afirmações vêm ao encontro de nossos anseios, no sentido de mostrar que se pode pensar no “flanelinha” como produto e produtor da sociedade, ou seja, a atuação de guardador de automóveis é uma estratégia realizada pelo agente, de acordo com as possibilidades apresentadas pela estrutura. As estratégias, por sua vez, são geradas de modo subjetivo de acordo com o capital acumulado pelo individuo no decorrer da sua vida, deste modo, nas analises e reflexões realizadas acerca da atividade devem ser meditados todos os fatores relacionados, a fim de transcender o senso comum.

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FRANCIELI MULLER PRADO

Considerando os vários fatores que perfazem o tema sobre “flanelinhas”, a principal propriedade da análise é conciliar os conceitos acadêmicos com o senso comum a fim de oferecer um panorama consistente das questões explicativas da atuação dos guardadores de automóveis, frequentemente marginalizados e sem voz, que atualmente se fazem presentes na grande maioria da cidades metropolitanas.

REFERÊNCIAS

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A PRODUÇÃO SOCIAL DA MARGINALIDADE ENTRE “FLANELINHAS” DA CIEDADE DE MARINGÁ-PR

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A RELAÇÃO ENTRE RELIGIÕES AFRICANAS E MALANDRAGEM NA BELLE-ÉPOQUE CARIOCA

Thauan Bertão dos Santos

Membro do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades – Universidade Estadual de Maringá; Graduando em História/Pesquisa de Iniciação Científica. Orientadoras: Dra. Solange Ramos de Andrade e Ms. Vanda Fortuna SerafimE-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo pretende discutir a relação entre as religiões africanas, presentes no Rio de Janeiro do início do século XX, e malandragem, impostas por João do Rio (1881-1921) à respeito das práticas dos negros cariocas. Na série de reportagens intituladas “As religiões no Rio”, publicada por este jornalista entre janeiro e março de 1904, presenciamos nas cinco reportagens sobre as religiões de matrizes africanas essa relação de maneira bastante presente, pois João do Rio, como intelectual e membro da elite carioca nesse período, vê-se como um “civilizado”, tomando para si o pensamento social da época, que via uma diferenciação social entre aqueles que contribuem ao desenvolvimento de uma sociedade civilizada e aqueles que a atrasam, ou impedem sua concretização. Analisamos, portanto, nosso objetivo, por meio dos aportes teórico-metodológico de Le Goff (1990) e sua concepção de documento/monumento e de Michel de Certeau e as categorias de “lugar-social” e “não-dito” (1982).

Palavras-chave: João do Rio; Rio de Janeiro; Religiões africanas; Malandragem.

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Ao compreendermos o contexto social da Primeira República, através das políticas públicas voltadas a um controle social, principalmente no perímetro urbano da capital federal, percebemos uma gestão marcada pela diferenciação social entre aqueles que contribuem ao desenvolvimento de uma sociedade civilizada e aqueles que a atrasam, ou impedem sua concretização. Em “As religiões no Rio” vemos uma das consequências dessa política para com os “perigosos”, na figura dos pais e mães-de-santo, que recebem a conotação de malandros e suas práticas: malandragem.

Analisaremos, primeiramente, o Rio de Janeiro desse período, para que enquadremos a figura de João do Rio dentro dessa sociedade e, por conseguinte, consigamos perceber como seu “lugar social” influencia tal retratação, ou seja, o “meio de elaboração” na qual o autor está circunscrito, onde “toda pesquisa historiográfica é articulada a partir de um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural”, (CERTEAU, 1982, p. 66). É dizer, a influência não “verificável” que o lugar introduz no sentido do objeto, ou seja, o “não-dito”, “escolhas” que são anteriores à objetividade inerente ao cientificismo. O “não-dito” é o papel que as localizações pessoais exercem sobre as ideias, sendo exterior ao indivíduo (CERTEAU, 1982).

O Rio de Janeiro, como capital do país, torna-se palco das mudanças que ocorriam na sociedade durante os últimos anos do Império. Com a abolição da escravatura, a mão de obra escrava, agora livre, forma uma massa de subempregados e desempregados que migram para as áreas urbanas dessa capital, onde se encontram com um número cada vez maior de imigrantes estrangeiros, resultando um aumento substancial da população urbana carioca na década de 1890 a mais de 700 mil habitantes (CARVALHO, 1987). Nota-se, portanto, um hibridismo populacional, social e cultural, característicos de cidades metrópoles e também zonas de fronteira. Peter Burke, ao citar as variedades de situações, locais e contextos que proporcionam uma hibridização cultural, faz uso de exemplos de metrópoles e zonas de fronteiras, como locais ideais à propagação de tais trocas culturais, “onde pessoas de diferentes origens se encontram e interagem.” (2003, p. 70).

Marcela Melo de Carvalho, em sua dissertação sobre os candomblés cariocas na obra de João do Rio, faz essa ponte entre o Rio de Janeiro do início do século XX com a teoria da metrópole como local de hibridização cultural que propomos por meio da teoria de Peter Burke. Assim descreve a autora:

(...) essa convivência entre brancos, negros e feiticeiros, candomblés e repressões vindas desde a época colonial (...) ainda permanecia no início do século XX. Por mais que a belle époque carioca quisesse apagar todos os vestígios de barbárie e de seu passado negro e inculto, as reportagens de João do Rio somadas às diversas notas de candomblés e feiticeiros nos periódicos da época provam que esse tipo de coisa não só existia como era algo do cotidiano da população. Embora tratassem do assunto com exotismo, brancos conviviam com e mesmo participavam de candomblés, havendo circulação entre culturas diferentes, ou seja, trocas culturais. (2010, p. 34).

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THAUAN BERTÃO DOS SANTOS

Comecemos, portanto, descrevendo as influências que as ciências e as instituições sobrepunham ao Brasil, nesse período. Uma delas, e entre as mais importantes, é a influência do catolicismo, que se encontra desde os tempos coloniais, delineando e mapeando a população por meio de seus ensinamentos, sua moral e sacramentos, que mais tarde, durante a República, se tornariam atos civis. Notamos como o catolicismo está inserido nessa sociedade por meio do sacramento do batismo, um dos exemplos mais presentes na preocupação, tanto das autoridades eclesiásticas, quanto dos pais e mães de crianças nesse período. Como a primeira grande festa para a criança, era o que realmente marcava o nascimento, por isso o batizado era visto com muita seriedade, tendo a necessidade de cumprirem esse sacramento às crianças no prazo de oito dias após o nascimento, para que se morressem, elas pudessem alcançar o céu. Era cumprido até mesmo sem a vontade dos pais (DEL PRIORE, 2006).

O Padroado, união dos poderes entre o Estado e a Igreja, que esteve presente sociedade brasileira imperial, instituía no Império as normas da Igreja como normas sociais. Assim, apesar de rompida a união desses poderes na República, seus ensinamentos e verdades continuaram a serem as verdades vigentes para toda a sociedade, onde os inimigos da Igreja se tornariam inimigos do Estado. Artur Cesar Isaia, ao citar um documento escrito pelos bispos na Pastoral Coletiva de 1915 nos deixa clara a influência do pensamento católico na época:

Esse documento, traz a marca de um tempo em que ainda os ensinamentos católicos tinham condições de serem impostos como normas sociais, em que os inimigos da Igreja podiam ser tratados como inimigos de uma sociedade ainda dócil ao seu magistério e distante de uma situação pluralista. (2001, p. 243).

João do Rio, apesar de partilhar de um misticismo de consultas a videntes e cartomantes, como demonstra sua amizade com Madame Zizina, uma das grandes paranormais da época,

e de ter como religião familiar o positivismo, influência de seu pai, Alfredo Coelho Barreto, matemático e positivista, coloca-se como católico em resposta dada por ele a uma acusação de que a Gazeta estava publicando reportagens anticatólicas, feita por Carlos de Laet no Jornal do Brasil. João do Rio assim responde: “Quando não tenho outra preocupação, sou fervorosamente católico.” E assim comenta Rodrigues: “Mesmo dito em tom de blague, essa afirmação é o primeiro sinal de um misticismo de fundo cristão que se anuncia, e que evoluirá lado a lado com sua doença” (2010, p. 161).

Além do catolicismo, outra influência importante da época foi o evolucionismo cultural, que, presente no pensamento dos clássicos antropólogos do século XIX, e por extensão na sociedade da época, lançava “verdades científicas”, que sob o signo da Ciência fariam parte todo um conjunto de políticas públicas nos mais diferentes Estados Nacionais. Para Castro, “um dos fatores fundamentais para a aceitação da idéia de evolução era sua associação com a idéia de progresso, cuja imagem mais comum é a de uma ‘escada’ cujos degraus estão dispostos numa hierarquia linear.” (2005, p.12).

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Esse progresso dizia respeito a uma única escala evolutiva ascendente, a que se enquadrariam todas as sociedades conhecidas, ou seja, todas as sociedades deveriam passar pelos mesmos estágios evolutivos, do mais simples ao mais complexo. Da mesma forma estavam os homens para os evolucionistas, pois apesar de acreditarem em uma humanidade como homogênea em natureza, era considerada desigual, geralmente se não em gênero, ao menos em grau (CASTRO, 2005). Assim afirma esse autor:

Como decorrência da visão de um único caminho evolutivo humano, os povos “não-ocidentais”, “selvagens” ou “tradicionais” existentes no mundo contemporâneo eram vistos como uma espécie de “museu vivo” da história humana — representantes de etapas anteriores da trajetória universal do homem rumo à condição dos povos mais “avançados”; como exemplos vivos daquilo “que já fomos um dia”. (2005, p. 14).

Assim como as sociedades, a Cultura, definida formalmente pela primeira vez por Tylor (1832-1917), um dos clássicos antropólogos desse período, também era colocada no singular e hierarquizada em “estágios” evolutivos. Ao contrário da acepção contemporânea de cultura, popularizada no início do século XX por Franz Boas, e melhor definida no plural, sem uma preocupação hierárquica. (CASTRO, 2005).

As teorias científicas nesse período, como o evolucionismo e a quantificação, contavam ainda com a craniologia, que se ocupava da medição de crânios e de seu conteúdo. Todas elas convergiam com as ideias de indivíduos mais e menos evoluídos, o que para Gould proporcionou uma justificação ainda maior ao racismo presente na sociedade da época. Em suas palavras:

A evolução e a quantificação formaram uma temível aliança; em certo sentido, sua união forjou a primeira teoria racista “científica” de peso, se definirmos “ciência” erroneamente, como muitos o fazem, como sendo toda afirmação aparentemente respaldada por cifras abundantes. (1991, p. 65-66).

Partindo desses entendimentos científicos do século XIX, os povos em estágios considerados atrasados nesse caminho evolutivo, tenderiam à buscar alcançar os estágios mais evoluídos de uma civilização, ou seja, a modernidade correspondente aos países europeus daquele contexto histórico. Notamos, portanto, no pensamento da elite intelectual e política brasileira a busca por medidas que os afastassem dos modos de vida e costumes dos ditos povos atrasados, primitivos e barbarizados que em nada contribuíam para a civilização do país.

João do Rio, ao se considerar parte integrante da camada civilizada da população brasileira, como deixa claro neste dizer: “Diante dos meus olhos de civilizado” (2008, p. 54), nos proporciona por meio de alguns dos termos utilizados, indicações de algumas dessas ideias evolucionistas, como, por exemplo, ao descrever os negros cariocas e seus cultos. Alguns dos trechos que estão presentes nas reportagens sobre as religiões africanas nos permitem identificar tais ideias:

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A recordação de um fato triste – a morte de uma rapariga que fora à Bahia fazer santo – deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais bárbaros e inexplicáveis costumes de fetiches do Rio. (2008, p. 35).

Eu abrira os olhos para ver, para sentir bem o mistério da inaudita selvageria.

(2008, p. 48).

Para Juliana Farias, João do Rio não “descartava as teorias que circulavam pelos meios literários e acadêmicos de sua época. Ainda mais num país em que a moda cientificista era divulgada por meio da literatura e não da ciência mais diretamente.” (2010, p. 262). Bem como, “não era um cientista, mas, à sua maneira, também selecionava e ajustava algumas dessas ideias a seus objetivos”. (2010, p. 263). Para a autora, “não havia dúvidas: na hierarquia racial apresentada pelo cronista carioca, homens e mulheres procedentes da África ocupavam, naturalmente, o lugar mais baixo.” (2010, p. 266).

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) serve-nos como exemplo de penetração e utilização dessas teorias na intelectualidade brasileira, pois, financiado pelo imperador e pelos próprios sócios – membros da elite imperial – e criado com o intuito de “construir uma história da nação, recriar o passado, solidificar mitos de fundação, ordenar fatos buscando homogeneidades em personagens e eventos até então dispersos” (SCHWARCZ, 1993, p. 99), reproduz as marcas de um saber oficial, centrado no desejo da construção nacional católica, na presença do elemento civilizador branco, a exemplo dos modelos europeus. Vigorava, portanto, uma visão evolucionista, onde o negro representava o incivilizável, que impede o progresso da nação; o índio, um elemento redimível mediante a catequese e assim, civilizável; o branco europeu, como já dito, seria o elemento civilizador; e, por fim, o mestiço, que seria a esperança do país, por meio de um possível branqueamento, pois estava melhor adaptado ao meio, enquanto produto local (SCHWARCZ, 1993).

Sobre a elite política na formação da sociedade, especialmente na primeira metade do século XIX, vemos em José Murilo de Carvalho (2007) a importância de uma homogeneidade ideológica, capaz de não separar os grupos em diferenças sociais, étnicas ou culturais e assim garantir a estabilidade da comunicação, necessária à imposição de efeitos estatais coesivos. Logo, as decisões da política nacional, e a consequente regulação da vida social, eram tomadas pelas pessoas que ocupavam os cargos do executivo e do legislativo, onde houve uma intensa participação de padres, o que consistia à Igreja associação na burocracia estatal. Entretanto, o autor coloca que seria exagerado afirmar grande influência da Igreja na formulação de políticas públicas, a não ser naquilo que lhes diziam mais respeito, como a educação, o casamento civil, etc.

O Estado, representado por essa elite política, preocupada em regular a vida social por meio da política nacional e alcançar a sociedade dita civilizada, empreenderia um controle social das camadas “perigosas” e “ociosas” da população já na segunda metade do século XIX,

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por meio do recrutamento forçado no Exército, como nos informa Beattie:

(...) o Exército era um tipo de sistema de degredo penal interno para realocar estrategicamente uma parcela pequena, mas significativa, de homens “perigosos” e “ociosos”. Assim, os oficiais em algumas áreas “trocavam” o risco de segurança representado por criminosos e vadios àqueles que estavam desesperados por tropas de Exército nas suas fileiras locais. (2009, p. 197).

Esses conceitos foram, contudo, melhor pensados pelos deputados republicanos, com o mesmo intuito, por meios do termo “classes perigosas”. As políticas públicas, no início da República, ampliam esse controle social e voltam-se ao perímetro urbano, estabelecendo uma gestão marcada pelas diferenças sociais entre aqueles que contribuem ao desenvolvimento de uma sociedade civilizada e aqueles que a atrasam, ou impedem sua concretização.

Para isso, a elite política, responsável pela manutenção dos ideais republicanos, necessitava criar ideologias para “o extravasamento das visões de república para o mundo extra-elite” (CARVALHO, 1989, p. 10), por meio de sinais universais como símbolos, alegorias, mitos e ritos e não do discurso, inacessível a população com baixa formação educacional. Assim, empenhou-se na organização de critérios homogêneos para lidar com a diversidade urbana. Temos, então, em primeiro lugar, a construção da noção de “classes perigosas”, voltada à organização do trabalho e à repressão da ociosidade. Em sequência, nos deparamos com a extensão ao movimento higienista, que se utiliza dos conhecimentos científicos do período para a intervenção no ambiente urbano com o intuito de controlar as doenças (CHALHOUB, 1996).

O conceito de “classes perigosas” é trazido pelos parlamentares brasileiros através das leituras de autores franceses, que assim definiam uma camada social composta por todos os tipos de “malfeitores” presentes nas ruas de Paris. Entretanto, a definição francesa descrevia as condições de vida das camadas pobres e não distinguia uma fronteira entre “classes perigosas” e “classes pobres”. É nesse ponto que os deputados no Brasil teorizam o termo de acordo com suas preocupações, filosofando sobre a questão do trabalho, da ociosidade e da criminalidade (CHALHOUB, 1996). Para eles, os pobres eram os perigosos. Podemos compreender um pouco melhor o raciocínio que enquadrava os pobres como perigosos, a partir dessa descrição de Chalhoub:

(...) para os nobres deputados, a principal virtude do bom cidadão é o gosto pelo trabalho, e este leva necessariamente ao hábito da poupança, que, por sua vez, se reverte em conforto para o cidadão. Desta forma, o indivíduo que não consegue acumular, que vive na pobreza, torna-se imediatamente suspeito de não ser um bom trabalhador. Finalmente, e como o maior vício possível em um ser humano é o não-trabalho, a ociosidade, segue-se que aos pobres falta a virtude social mais essencial; (...) os pobres carregam os vícios, os vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os pobres são, por definição, perigosos. Por conseguinte, conclui

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decididamente a comissão, “as classes pobres [...] são [as] que se designam mais propriamente sob o título de – classes perigosas –”. (1996, p.22).

Proposto o conceito e definidos os pobres como perigosos, cabia agora decidir qual seria a estratégia de ação do Estado para com essa parcela da população. Trata-se aqui do que se entende por suspeição generalizada, ou seja, uma estratégia de repressão contínua fora dos limites onde eram cercados pelas regras do local de trabalho, pois como os trabalhadores eram livres e não tinham mais os proprietários que os mantivessem no trabalho, o Estado tomou para si a manutenção da “ordem”, através de suas instituições políticas de controle, que se baseiam na polícia, na carteira de trabalho e de identidade (CHALHOUB, 1996).

Ora, no contexto do pós-abolição, a substituição da mão de obra escrava pelo trabalhador livre insere vertiginosamente o imigrante europeu neste trabalho, ficando a mão de obra brasileira absorvida apenas onde a imigração internacional fora pouco numerosa ou quase nula. Aos ex-escravos, que, agora libertos, não se sujeitariam facilmente a trabalhar nos mesmos moldes tradicionais de quando escravos, a possibilidade de emprego foi praticamente extinta (MARTINS, 1998).

Assim, a intenção dos parlamentares em coagir os perigosos recai preferencialmente sobre os negros. Entretanto, esses perigosos não diziam respeito apenas ao ideal de trabalho e consequente manutenção da ordem pública, eram perigosos, também, nas questões de saúde pública, pois ofereciam riscos de contágio e suas habitações, cortiços de maneira geral, eram focos de epidemias (CHALHOUB, 1996).

O governo, ainda imperial, já se viu na necessidade de intervir socialmente, frente às epidemias de febre amarela e cólera da década de 1850, através da criação da Junta Central de Higiene, preocupado com a questão da salubridade pública e da higienização dos cortiços. A inquietação estava principalmente com a qualidade da habitação popular, onde os proprietários deveriam zelar minimamente pela saúde dos moradores, regulando a coleta de lixo, empreendendo calçamentos e ampliação de janelas, por exemplo. Essa política foi, entretanto, modificada nas décadas seguintes, visando agora o extermínio de tais habitações e por consequência a expulsão das “classes perigosas” das áreas centrais da cidade (CHALHOUB, 1996).

Anteriormente as medidas tomadas, médicos e autoridades públicas da época buscavam compreender as causas da epidemia de febre amarela, assim, dividiam-se entre as teorias de contágio e infecção. Os contagionistas acreditavam que a doença era transmitida de pessoa a pessoa. Por outro lado, os infeccionistas tinham como forma de propagação da febre amarela a ação que substâncias orgânicas em putrefação exerciam no ar ambiente. Foi desta última forma que surgiu a estrutura para a construção ideológica das reformas urbanas (CHALHOUB, 1996).

Contudo, as mudanças na capital vieram após uma estratégica política adotada pelos higienistas e parlamentares, que tomavam como primordial a estabilidade da economia

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predominante. Temos, assim, em 1850, durante o primeiro surto de febre amarela, uma pequena preocupação por parte dos governantes, devido a grande resistência que os negros possuíam em relação à febre, o que não correspondia a uma ameaça à propriedade escrava. Algumas teorias surgidas no período para explicar tal fato diziam respeito a um tipo de aclimatamento, ou seja, entendia-se que os negros sofriam menos com a mudança dos climas entre África e Brasil, ambos tropicais. Ao contrário, vemos no surto que sucedeu a abolição do tráfico negreiro, década de 1870, uma extensiva atenção à erradicação da doença, pois atingia de maneira muito mais abrangente o imigrante branco, que viria para substituir a falta de mão de obra escrava nas lavouras de café (CHALHOUB, 1996).

A política imigrantista adotada pelo governo imperial a partir de 1850, quando o tráfico negreiro havia sido definitivamente suprimido, foi o que redefiniu as relações de trabalho, que segundo Alencastro e Renaux (1997) seguem dois objetivos distintos. A “imigração dirigida”, que foi incentivada pelos fazendeiros para substituir os escravos em suas fazendas, e a “imigração espontânea” pelo Estado, para “reestruturar a propriedade da terra, as técnicas de produção, a zona rural, e ao fim e ao cabo, a sociedade brasileira” (p. 294). Ao que nos interessa, descrevem os mesmos autores sobre a política estatal:

Preocupados, ao contrário, com o mapa social e cultural do país, a burocracia imperial e a intelectualidade tentavam fazer da imigração um instrumento de “civilização”, a qual, na época, referia-se ao embranquecimento do país. (p. 293).

No horizonte da questão imigratória, os debates definem uma visão da contemporaneidade oitocentista brasileira, da evolução das sociedades modernas, dos modos de vida predominantes no país. (p. 295).

Essa estratégia fez parte, então, de uma ideologia dos políticos e governantes da época, que viam na política imigrantista e na higiene pública a solução para atingir a prosperidade dos países ricos e seguir, aquilo que entendiam como, o “caminho da civilização”. Assim, havia uma interdependência do pensamento médico com as ideologias políticas e raciais, resultando no que Chalhoub (1996) denomina como “ideal de embranquecimento”. Em suas palavras:

“ao lidar com o problema da febre amarela num momento histórico particular, as autoridades de saúde pública dos governos do Segundo Reinado inventaram alguns dos fundamentos essenciais do chamado ‘ideal de embranquecimento’ – ou seja, a configuração de uma ideologia racial pautada na expectativa de eliminação da herança africana presente na sociedade brasileira. Tal eliminação se produziria através da vinda de imigrantes, do incentivo à miscigenação num contexto demográfico alterado pela chegada massiva de brancos europeus, pela inércia, e também pela operação de malconfessadas políticas específicas de saúde

pública.” (p. 62).

Os cortiços, em tal contexto, por representarem um dos mais influentes fatores

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responsáveis pelas péssimas condições de higiene municipal, além das malfeitas obras de esgoto sanitário, foram alvo das políticas de transformação do espaço urbano. Bem como, com suas destruições, contribuíam para o afastamento das camadas ditas perigosas do centro da cidade. A República, preocupada, portanto, com uma nação voltada à “ordem” e ao “progresso”, adotou o mesmo caminho das autoridades imperiais, tomando as medidas necessárias para a melhoria das condições de saúde pública, enfatizando o combate às doenças, como a febre amarela e ao “ideal de embranquecimento”, integrantes de um processo anterior de reconstrução das relações de trabalho.

A esse “ideal de embranquecimento” e de modernidade soma-se também a influência francesa na sociedade brasileira, que, principalmente na elite carioca, se apresenta da mesma maneira desde o Segundo Reinado. Segundo Alencastro e Renaux, “a chegada de profissionais europeus, engendram no Rio de Janeiro um mercado de hábitos de consumo relativamente europeizados”, “entretanto, o estabelecimento do Segundo Império na França (1852-70) dá ao Segundo Reinado um novo tom de modernidade e confirma o francesismo das elites brasileiras.” (1997, p. 36 e 43). Os costumes locais esforçavam-se por se combinarem aos costumes franceses, que apareciam como um modelo de civilidade.

A aparência, dentro desse contexto, era preocupação aos de pele mais escura, pois ao preconceito racial não havia limites, “desde logo, convinha que não houvesse dúvidas quanto ao cotidiano: livres e libertos procuravam parecer brancos. Brancos e bem-apessoados.” (ALENCASTRO; RENAUX, 1997, p. 83). Assim, como nos traz Alencastro (1997), o uso de perucas de cabelos lisos era adorno costumeiro e tinha boa aceitação; bem como, a utilização de loções para embranquecer a pele.

Em João do Rio esse “ideal de embranquecimento” está presente, pois, filho de pai branco e mãe mulata, tentava se afastar de suas aparências amulatadas, como percebemos pelos retoques feitos em sua foto oficial para a ABL, diminuindo os traços característicos dos negros. Assim como, Monteiro Lobato afirmava que o jornalista usava “corte escovinha” para disfarçar o cabelo “pixaim”, porém Rodrigues relata que não encontrou nenhuma foto com tais aparências, pelo contrário, diz que ao longo do tempo foi ficando careca. Entretanto, apesar de não se considerar negro, e tratá-los, por exemplo, em nossa fonte, na terceira pessoa, demonstrando seu afastamento, escreve em reportagem de nome “Patriotismo”: “(...) há negros que representam a sua pátria muito melhor que muito branco” (RODRIGUES, 2010).

Em suma, João do Rio por fazer parte dessa sociedade híbrida e ser produto/produtor do século XIX, compartilha de inúmeros dos pensamentos que estão imperando no período, apesar de ser inovador em algumas de suas ideias. A influência, por exemplo, da Igreja Católica, do evolucionismo cultural, das teorias biológicas, das ciências presentes no período em geral e das sociedades ditas civilizadas e seus costumes, dentre muitos outros, demonstram algumas das justificativas para as políticas implementadas nesse período, e os motivos pelos quais estão

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implantadas socialmente muitas normas de grupos ou instituições, que se tornam leis a serem seguidas por toda a população brasileira.

Dentro do que discutimos sobre a construção da noção de “classes pobres” como “classes perigosas”, voltada à organização do trabalho e à repressão da ociosidade, é que enquadramos o entendimento das práticas religiosas dos negros cariocas pela sociedade da época como malandragem. Para a elite política e intelectual desse período, a virtude era o trabalho (CHALHOUB, 1996). Logo, nos explica Martins:

O trabalhador ideal deveria ser produtivo, ordeiro e seu comportamento moldado por uma moral rígida de condenação à preguiça, ao vício, à sensualidade e à indisciplina. O contraponto seria o vadio, que carregava consigo todos os males que a sociedade ordeira queria longe de si. Era ignorante, preguiçoso, corrupto, imoral, entregava-se aos prazeres do corpo, era enfim, fraco e indisciplinado. (1998, p. 191).

Notamos, portanto, no discurso de João do Rio, como enxergava os negros, principalmente os que vivem de sua religiosidade:

Os pretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. Não fosse a credulidade, a vida ser-lhes-ia difícil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.

Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.

(...)

Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá. As filhas-de-santo, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar dá-lhes o supérfluo. (2008, p. 30).

Só pelos candomblés, ou sessões de grande feitiçaria, em que os babalaôs estão atentos e os pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocações diante dos fogareiros com o teçubá na mão, é que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de acaçá com azeite-de-dendê. (2008, p. 31).

Nestas palavras do jornalista, dentre outras que inundam as reportagens sobre as crenças africanas, ficam claras a ociosidade presente na vida desses negros, contrária a virtude do trabalho que era valorizada pela sociedade da Primeira República. Portanto, eram reprimidos, tanto pela população, que os viam com olhos de desdém, quanto pelas políticas públicas repressivas ao ócio.

Com a vida ociosa, vivendo para o Orixá, precisam de dinheiro para que possam sobreviver, e assim, são criticados também por cobrarem por seus feitiços. Mais uma das explicações para a possível malandragem, como discorre João do Rio:

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Quando já sabe o santo, o babalaô atira a sorte no opelé para perguntar se é de dever fazê-lo. A Natureza mesma do culto, a necessidade de conservar as cerimônias e a avidez de ganho da própria indolência fazem o sábio obter uma resposta afirmativa. (2008, p. 37).

O feitiço é nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhes; explora, deixamo-nos explorar, e, seja ele maître-chanteur, assassino, larápio, fica sempre impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro. (2008, p. 51).

Duas de suas reportagens, João do Rio finaliza falando do dinheiro que é envolvido nos candomblés. Ao perguntar ao negro Antônio sobre o futuro da filha-de-santo que acompanhou a saída, o informante responde: “– Vai trabalhar, pagar no fim de três meses a sua obrigação, ochú metá, dar dinheiro a pai-de-santo, ganhar dinheiro...” (2008, p. 48). E o jornalista discorre: “– Sempre o dinheiro! – fiz eu olhando a velha casaria.” (2008, p. 49). Finaliza a série de reportagens, no capítulo “Os novos feitiços de Sanin”: “Dinheiro, mortes e infâmia: as bases desse templo formidável do feitiço!” (2008, p. 87).

Compreendemos, portanto, como um ideal construído pelo pensamento homogêneo dos grupos dominantes para impor seus valores a uma sociedade, aqui discutido por meio da virtude do trabalho, estigmatiza a camada social que se desvia desse comportamento e transgride as regras impostas a eles.

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THAUAN BERTÃO DOS SANTOS

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ANTROPOLOGIA DO CORPO E CONSUMO ATRAVÉS DA ANÁLISE DA VIGOREXIA

Mirela Valério Lopes

Discente de Mestrado na PUC-SP

Resumo: O presente artigo visa discutir os padrões estéticos do corpo brasileiro levando em consideração, sobretudo o público masculino que atualmente teve seu corpo “descoberto” pela mídia e pelas empresas de produtos estéticos impondo sobre estes um novo padrão de corpo a ser atingido. A pressão midiática seria uma das responsáveis pela imposição de padrões estéticos, do dito “corpo perfeito”, levando o indivíduo a cometer excessos como o uso de drogas anabolizantes uma vez que estes aceleram o processo de aquisição de músculos e também cometem excessos na prática repetitiva de exercícios físicos mesmo que desnecessários, o qual se convencionou chamar de vigorexia, um distúrbio por exercícios físicos além de um distúrbio de imagem no qual os praticantes não enxergam seu crescimento muscular.

Palavras-chave: Corpo; Consumo; Masculinidade; Vigorexia.

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MIRELA VALÉRIO LOPES

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa discutir o estatuto do corpo na sociedade brasileira atual em que ele passa a ser objeto de consumo. A pressão midiática seria uma das responsáveis pela imposição de padrões estéticos, do dito “corpo perfeito”, levando o indivíduo a cometer excessos como o uso de drogas anabolizantes uma vez que estas aceleram o processo de aquisição de músculo e também cometem excessos na prática repetitiva de exercícios físicos mesmo que desnecessários, o qual a medicina convencionou chamar de vigorexia, um distúrbio por exercícios físicos excessivos além de um distúrbio de imagem no qual os praticantes não enxergam seu crescimento muscular. Tal fenômeno evidencia até onde o indivíduo está disposto a se sacrificar para atingir um corpo correspondente aos padrões de beleza instituídos pela sociedade através da mídia. Para que isso seja possível o corpo deve estar livre de gorduras e totalmente “trabalhado”. O público a ser pesquisado é o masculino, por muito tempo negligenciado em pesquisas sobre beleza e corpo. Estudos mais recentes mostram que os homens também se preocupam cada vez mais com a estética corporal.

O corpo tornou-se objeto de estudo privilegiado na sociedade contemporânea e as ciências sociais, sobretudo a antropologia, têm dado ênfase a análise do culto ao corpo,seus desdobramentos relativos às relações sociais e a difusão da técnica corporal , resultante da constante exposição dos corpos através da televisão, revistas, escolas,intervenções sociais de um padrão a ser seguido.

Como a todas as categorias, a de corpo foi uma das que sofreu mutação ao longo das mudanças da sociedade, principalmente quando se fala de sociedade ocidental. Na época medieval havia uma mistura muito grande entre referências locais e populares e referências cristãs. O homem bem como seu corpo era confundido com a comunidade, ou seja, o corpo não era dissociado do seu dono uma vez que este nem dava tanta importância a sua existência, separação que só será concretizada com a introdução da ideia individualista da Modernidade.

Com o advento da medicina e a necessidade de consolidá-la como ciência faz com que o vocabulário anátomo- fisiológico se torne cada vez mais presente e dentro dessa linguagem a separação do homem e do seu corpo. O corpo torna-se a partir daí um mero objeto de estudos para a ciência que passa a dissociá-lo do indivíduo que o porta. Ele se torna um empecilho e tem que ser esquecido e apagado através de rituais em que se deve ser comedido nos usos corporais em público, passando a pesar quando a doença o atinge porque aí esse corpo mostra sua existência, mostra que sempre esteve ali. Porém atualmente o corpo virou o centro das atenções desse indivíduo dessa fase que se apresenta depois da Modernidade, uma época em que a vida contingente, ou seja, uma vida cheia de incertezas os faz ver que o corpo é algo sempre concreto e que sempre permanece com eles, como se fosse aquilo que procuravam como a volta da tradição. Ao se dedicar ao corpo é como se, se dedicassem a essa volta as raízes

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e pudessem encontrar aquela comunidade almejada por todos.(LE BRETON, 2011)

O corpo tornou-se modelo objetivado de consumo, sendo exposto constantemente na mídia e de certa forma sendo imposto às pessoas. Esse corpo imposto é o corpo magro considerado saudável. Entretanto, não basta ser somente um corpo magro, é preciso que não contenha resquícios de gordura (CASTRO, 2007). A gordura, nesse contexto, é a grande vilã, uma inimiga interna que deve ser eliminada a todo custo por meio das práticas de gerenciamento corporal, como por exemplo, a musculação (SAUTCHUK, 2007).

Apesar da maior parte dos trabalhos sobre padrões estéticos corporais até então estarem focados no corpo feminino, uma vez que este foi sempre o alvo das indústrias e propagandas ligadas à aparência física, há ultimamente estudos que tratam com igual alcance os corpos masculinos, como o de Sabino (2002) que descreve o cotidiano de uma academia de ginástica e musculação, mostrando as hierarquias presentes nesses espaços. O autor analisa como homens praticantes de musculação compensariam sua baixa autoestima, referente às suas relações pessoais e profissionais, escondendo-se na “carapaça de músculos que a associação com as drogas produz.” (p.169). Segundo, Goldenberg, Sabino, e Ramos (2000) tais homens estariam tentando exibir sua virilidade em um contexto social no qual a mulher ganhou grande destaque no mercado de trabalho, ameaçando o poder delegado aos homens em séculos de opressão patriarcal. (KAUFMAN, 20001)

O trabalho de Pope, Phillips e Olivardia (2000) refere-se ao Complexo de Adônis,em que um conjunto de fatores psicológicos levariam o homem a negligenciar sua vida social por conta da insegurança com sua aparência física. Apesar de se tratar de uma literatura da área biomédica, os autores enfatizam que os distúrbios que acometem os homens pesquisados são desencadeados pela pressão da sociedade e da mídia e, através da análise de mídias impressas norte americanas mostram como o padrão corporal masculino mudou em um período de 20 anos, passando a privilegiar homens com uma massa muscular bem aparente, ao invés de homens magros. Outra análise apresentada pelos autores trata dos brinquedos para meninos, os bonecos que também apresentaram um aumento de massa muscular nesse mesmo período, o que incutiria no homem, desde a infância, como o seu corpo deve ser para que seja valorizado socialmente. O estudo revela um processo de busca do homem pela modificação de sua identidade através do corpo, como se pela transformação do corpo a mudança em todos os aspectos da vida fosse uma consequência daí decorrente. Segundo Castro (2007), a relação entre consumo e corpo tem início quando este é redescoberto na década de 1950. O fato está relacionado com a exposição publicitária do corpo no pós-segunda Guerra mundial, em que há a difusão dos cuidados corporais, através de práticas como higiene, saúde, beleza e esportes. Outro fato crucial na exposição do corpo se deve ao desenvolvimento do cinema e da televisão que, além de comercializarem produtos de higiene pessoal, passam a ditar um padrão corporal e estético inspirado em atores e atrizes de Hollywood. Também não pode ser esquecida a importância da

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democratização da moda, que resulta em um conjugado de consumo, efemeridade, cultura de massa, fatores estes que ultrapassam as barreiras sociais.

Outro autor que discorre exaustivamente sobre a cultura do consumo é Featherstone (1982, 1995), para quem a economia atual difere da economia clássica na qual o consumo estava atrelado à produção. O autor mostra como os bens de consumo começaram a definir identidades e estilos de vidas individuais. A discussão se pauta no que Baudrillard (1981) denominou de mercadoria-signo, e o autor problematiza como o signo se descolou da mercadoria permitindo ao individuo proceder entre elas às mais diversas relações associativas conforme o seu “estilo de vida”.

E dentro da discussão sobre “estilo de vida” há a banalização do uso de drogas anabolizantes e suplementos alimentares, bem como a nova tendência dos anabolizantes ditos naturais. Sobre esse assunto é possível traçar paralelo com o trabalho de Azize (2005), a respeito da banalização de antidepressivos e medicamentos usados para disfunções sexuais. Para o autor, tal banalização está associada às noções de “qualidade de vida” e “estilo de vida” saudável, valores veiculados tanto pela mídia como pelo discurso biomédico, nos quais, toda “doença” deve ser tratada imediatamente. Nesse contexto, possuir um corpo sem gordura é sinal de um estilo de vida saudável e o processo de aumento da massa muscular, através da musculação, vale a pena ser empreendido, mesmo que leve tempo para dar resultados ou mesmo que haja a necessidade de se recorrer ao uso constante de anabolizantes e suplementos alimentares para acelerar o processo. É nessa conjuntura que os “medicamentos” passam a ser “acessórios” para um estilo de vida saudável, exigência que engloba uma série de conhecimentos para a gerência dos corpos como a nutrição, a educação física e a medicina. Os significados atribuídos a saúde ultrapassam, então, os limites dos estados considerados normais e/ ou patológicos, uma vez que estão relacionados à qualidade de vida e à doença, como no caso da obesidade, que foge dos padrões estéticos corporais aceitáveis. (LATANZA, 2007)

METODOLOGIA:

A pesquisa de campo atual teve início no meio virtual. Seu “local” foi a página Facebook1, atual rede social mais usada no Brasil, na qual os usuários criaram páginas para falar de assuntos específicos de musculação como a página “Eu curto musculação”, “Em um relacionamento

1 Facebook é um site e serviço de rede social que foi lançada em 4 de fevereiro de 2004, operado e de propriedade privada da Facebook Inc.. Em junho de 2012, o Facebook tinha mais de 950 milhões de usuários ativos. Os usuários devem se registrar antes de utilizar o site, após isso, podem criar um perfil pessoal, adicionar outros usuários como amigos e trocar mensagens, incluindo notificações automáticas quando atualizarem o seu perfil. Além disso, os usuários podem participar de grupos de interesse comum de outros utilizadores, organizados por escola, trabalho ou faculdade, ou outras características, e categorizar seus amigos em listas como “as pessoas do trabalho” ou “amigos íntimos”. O nome do serviço decorre o nome coloquial para o livro dado aos alunos no início do ano letivo por algumas administrações universitárias nos Estados Unidos para ajudar os alunos a conhecerem uns aos outros.O Facebook permite que qualquer usuário que declare ter pelo menos 13 anos possa se tornar usuário registrados do site. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Facebook> acesso em 24/09/12 11:40.

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sério com a academia” e páginas internacionais como a “ Muscle and Strength”. Nessas páginas foram coletadas fotos e frases, bem como observados comentários (posts) sobre as fotos postadas nas páginas o que possibilitou traçar bem o perfil dos praticantes de academia.

Após julho de 2012 a pesquisa começou a ser efetuada simultaneamente on e offline, inicialmente frequentei uma academia do interior de São Paulo, por ocasião das minhas férias, na qual coletei dados e desenvolvimento da rotina local.Após meu retorno para a cidade de São Paulo me matriculei em uma academia cujo espaço possui três andares, situada na Zona Oeste da Capital. No térreo tem a musculação (aparelhagem) e o que eles denominam de “pesos livres”(anilhas e barras). No 1º andar ficam os aparelhos aeróbicos como esteiras (em torno de 50 ou mais) e os elípticos2. No 2º andar fica uma parte com colchonetes e caneleiras, mais alguns elípticos e os vestiários masculinos e femininos. Observei que as categorias usadas em pesquisas anteriores tiradas da pesquisa de Sabino (2000) que classificam os participantes de academia como fisiculturistas, ou seja, aqueles que malham com o intuito de participar de uma competição, os veteranos, que seriam aqueles praticantes de academia de longa data e os comuns,que seriam pessoas que só estariam de passagem pela academia ou aquelas que não exagerariam tanto nos exercícios poderiam se repetir. Porém, algumas ressalvas devem ser feitas pela dinâmica dessa academia ser totalmente diferente, como por exemplo funcionar aos sábados e domingos, o que a torna mais interessante uma vez que as pessoas que frequentam esses dias em particular mostra duas características: Uma de que metade das pessoas que frequenta academia nesses dias são pessoas “viciadas” por musculação e a outra metade de pessoas que não tem tempo suficiente para malhar durante a semana.

Em ambas as pesquisas o público pesquisado é o masculino jovem cujo objetivo é entender o anseio por um corpo perfeito que vem acometendo os homens nos últimos anos e a busca incessante por este como uma forma de individualização e ao mesmo tempo busca de inserção em um grupo específico, qual seja, o dos “sarados”.

CORPO E MEDICINA - A ÂNSIA PELA CLASSIFICAÇÃO:

Na ânsia de classificar as doenças e enfermidades e torná-las cientificas os médicos tentaram então separar o corpo do homem criando assim, dualidade e dualismo acerca da relação homem-corpo.

A história da relação entre corpo e homem é antiga visto que este acompanha o sujeito por onde ele for. O autor David Le Breton (2011), inicia seus estudos na Idade Média e sua transição para Idade Moderna para mostrar como a medicina e a sociedade em geral lidou e ainda lida com o estatuto de corpo. Na Idade Média o gerenciamento do corpo misturava as

2 O Elíptico tem esse nome porque seus pedais fazem um movimento de elipse. Alguns dizem que é uma mistura dos movimentos da esteira, da bicicleta e do stepper. < http://estarbemmelhor.blogspot.com.br/2011/09/eliptico-o-que-e-e-como-escolher.html> acesso em 24/09/12 11:46.

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tradições populares nas quais não se colocavam tabus restritivos quanto aos usos do corpo, como por exemplo, arrotar em público era um ato corriqueiro, já que era derivada de uma necessidade fisiológica do próprio corpo, e as concepções cristãs nas quais o corpo era algo sagrado, a “morada da alma” e por isso mesmo não poderia ser profanado. Nesse contexto, no que diz respeito à medicina, existiam os barbeiros, que cuidavam das enfermidades enquanto os médicos não eram muito bem vistos, e sua prática era associada ao uso de magia, uma vez que profanavam o corpo. A partir do século XVII a medicina passa a ser uma profissão estudada nas universidades e nas quais os estudantes e futuros médicos eram em sua maioria clérigos e passam a desprezar aqueles “barbeiros” uma vez que possuíam o saber escolástico passando assim a ter um status privilegiado dentro da sociedade. A partir daí começam as pesquisas sobre o corpo e seu funcionamento que dariam origem ao individualismo corporal.

Esse individualismo começa, sobretudo com o dualismo existente entre homem e corpo, ou seja, o corpo é um e a “alma” é outra. O rosto passa a ser bem demarcado como uma parte importante a ser privilegiada, uma vez que era a marca da individualidade, ou seja, cada rosto é único. É nesse contexto que as dissecações dos corpos acontecem e se inicia a descoberta do funcionamento do corpo e as causas internas de suas doenças. De acordo Le Breton (2011) a nova visão tem o início com Vesalius (1514-1564), com seu livro De Humanis Corporis Fabrica que abre a invenção do corpo no pensamento ocidental, mostrando os obstáculos que ainda deveriam ser ultrapassados para que o corpo fosse considerado virtualmente como distinto do homem, como por exemplo, o embate entre a vontade do anatomista em conhecer o interior corporal e o seu inconsciente ainda ligado às tradições.

Há nesse contexto o nascimento de um conceito moderno de corpo, porém, ligado à concepção anterior do homem confundido com o microcosmo. Apesar disso, a penetração da carne demonstra que há o distanciamento entre o homem moderno e o homem da Idade Média. Descartes (1596-1650) será outro autor a discorrer sobre a separação do corpo e de seu “ dono” tratando o corpo através de uma metáfora mecânica, ou seja, “o corpo máquina” e nesse contexto há também a separação do homem e do cosmos; ele já não terá um vinculo tão grande com os outros atores sociais uma vez que o individuo encontra um fim em si mesmo. E nesse âmbito o corpo passa ser um resto, algo pesado, cuja existência se dá somente quando o sujeito está doente. Ao mesmo tempo há a legitimação do saber biomédico e a depreciação dos saberes populares em relação ao corpo, mesmo que eles continuem existindo na clandestinidade. Todos os aspectos relacionados ao corpo principiam ser classificados e, diferentemente da Idade Média o corpo não é algo que se é e sim algo que se tem.

Atualmente o saber biomédico é o que define oficialmente o corpo nas sociedades modernas mesmo que na vida contemporânea os indivíduos não tenham tanta consciência de seus corpos se resignando com as informações passadas pela televisão, escola e outros meios. Há ainda a procura na atualidade pelos saberes populares sobre o corpo, como aqueles vindos

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dos curandeiros, uma vez que estes saberes tratam o corpo somente como uma parte indissociada do ser e não somente como um mero objeto que necessita de reparos, o que faz com que os indivíduos se sintam mais a vontade e não vejam seus corpos somente como aquilo que os atrapalha cotidianamente. O processo de cura que usa a eficácia simbólica não se preocupa com as causas do problema e com o funcionamento dos órgãos e sim leva em conta a crença do indivíduo na cura. Por essas razões que atualmente muitas pessoas passam a associar essas duas formas terapêuticas principalmente quando estão desenganadas quanto a eficácia biomédica, ressimbolizando algumas técnicas como, por exemplo, a acupuntura, saber oriental de cura que atualmente virou prática biomédica, operando com as práticas terapêuticas o que Lévi-Strauss chamou de bricolagem, que nesse contexto seriam as formas de agenciamento de maneiras distintas e contraditórias de cuidado com o corpo.

O CORPO E SUA VISÃO COTIDIANA

Ao estudarmos o cotidiano dos indivíduos na sociedade atual devemos levar em consideração o corpo assim como diz Le Breton:

O estudo do cotidiano centrado nos envolvimentos do corpo lembra que nesta espuma dos dias o homem tece sua aventura pessoal, envelhece, ama, sente prazer ou dor, indiferença ou cólera. As pulsações do coração fazem ouvir a permanência de seus ecos na relação com o mundo do sujeito por meio da filtragem da vida cotidiana (Le Breton,D. 2011 p. 143)

Ou seja, os rituais de existência feitos pelos homens durante sua vida cotidiana usam o corpo em sua totalidade bem como estabelece relações e constrói seu estilo de vida através dele, apesar de sua existência não ser “sentida”,dessa forma o individuo é levado pelas pressões sociais a apagar seu corpo ritualmente e fazer com que ele fique invisível e não pese nas relações cotidianas. Exemplo disso são certas manifestações corporais serem condenadas quando aparecem em público como por exemplo, arrotos, flatulências, espirros etc, uma vez que mostram que o corpo por mais que o indivíduo não aceite está presente e pesa, assim o é também em caso de doenças. Nesses casos a dualidade homem-corpo escancara ao máximo, o que para muitos é um sintoma de desordem.Por essa razão na atualidade tem sido pregado o estilo de vida saudável uma vez que a saúde coloca harmonia nessa desordem já que o indivíduo dá sentido ao seu corpo mediante essas práticas saudáveis.

Toda essa recorrência pela saúde e um corpo bem “construído” sem falhas se dá pela importância que os atos de “olhar” e o “ser olhado” tem em nossa sociedade. O olhar é uma figura hegemônica na sociabilidade urbana atual, tanto que o projeto arquitetônico das cidades é desenhado para privilegiar a visibilidade, e, apesar disso, o corpo continua sendo negligenciado por tais rituais de apagamento do corpo. Segundo P. Virillo, o corpo é um obstáculo ao avanço do homem principalmente quando este não está saudável e ele só sentirá prazer em reencontrá-

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lo na prática de esportes. A musculação seria uma dessas formas de reencontro com o corpo; essa é uma técnica corporal ocidental de gerenciamento do corpo cada vez mais difundida em vários segmentos sociais como medida paliativa para as mais diversas doenças e que ajuda a estabelecer essa harmonia e ratificar o estilo de vida saudável da sociedade moderna, colocando o indivíduo em confronto com ele mesmo através do corpo, evidenciado a necessidade deste por um enraizamento, ou seja, ser parte de um grupo e que possa recuperar sua identidade.

O corpo na atualidade, apesar de constantemente apagado por rituais de restrição de seus usos em determinadas ocasiões sociais é, todavia usado pelo indivíduo, principalmente na prática de esportes, como no caso do presente trabalho em que a musculação é forma de construção da identidade dos indivíduos, principalmente os homens e jovens.

O LIMITE ENTRE SAÚDE E DOENÇA

Na contemporaneidade categorizar atos entre saudáveis e doentios não passa mais pela descoberta ou não de uma enfermidade nos termos biomédicos. Nesse contexto observa-se a ampliação do significado de saúde, em que levar uma vida saudável pressupõe percorrer os caminhos de uma alimentação saudável, o que implica não consumir alimentos gordurosos, bem como aderir a prática de exercícios físicos. Esses aspectos atualmente são veiculados pelas mais diversas mídias como um “estilo de vida saudável” e estão cada vez mais relacionados com o padrão de corpo belo, uma vez que, praticando exercícios e mantendo uma dieta equilibrada a estética corporal é algo inevitável.

Porém, a maioria dos indivíduos não leva em conta que o padrão de corpo não se aplica a todos, e as diferenças de metabolismo fazem com que para algumas pessoas o ideal seja difícil quando não impossível de ser atingido. Dessa maneira alguns passam a seguir dietas extremamente rígidas e um plano de exercícios massacrante, o que pode acarretar em práticas como a anorexia e a bulimia e a vigorexia, objeto desta pesquisa. Esta prática está relacionada majoritariamente com o público masculino, que exagera na prática de exercícios físicos, em especial, a musculação, numa tentativa de obter resultados eficazes em um período de tempo curto, tendo como possíveis resultado a lesão de ossos e fadiga muscular. Esse quadro se estabelece quando que o praticante percebe que o resultado da musculação se dá de maneira lenta mediante ao “treinamento” constante, levando ao extremo do significado de constante, bem como a recorrência a suplementos alimentares, usado de maneira indevida e em casos extremos o uso de esteroides anabolizantes.

Tanto os suplementos quanto os anabolizantes operam na mesma ótica pesquisada por Azize (2002; 2005) para tratar dos medicamentos para obesidade, depressão e problemas sexuais. O discurso biomédico produz a noção de uma “doença”, que precisa ser tratada a qualquer custo. No caso do presente trabalho, a sobra de gordura no corpo é mal vista, sinal de que não

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existe uma preocupação com a saúde, levando o homem a procurar diversos medicamentos que resolvam o seu problema, desde o remédio para emagrecer até os anabolizantes. Estes passam a ser peças fundamentais na vida de seu usuário, uma forma não só de atingir o resultado corporal almejado, mas também de se sentir “em paz com a consciência”. Nesse contexto, todos os aparatos potencializadores da forma como os suplementos e anabolizantes, que puderem ser utilizados para otimização do corpo serão usados, como o autor relatou na sua pesquisa, “se existe, porque não usar?”. Nas palavras do autor,

Já não se trata mais de questionar o porquê do uso de medicamentos. A emergência de novas tecnologias de cuidados do corpo e da saúde parece gerar novas obrigações no cuidado de si. Um corpo que já não é mais o bastante se torna um consumidor em potencial. Para ‘ser’, o corpo precisa estar à altura dos desejos dos indivíduos em relação a ele. (AZIZE, P.13, 2005)

Dessa maneira, os indivíduos além de utilizarem todos os produtos ao seu alcance, relativizam a dor na prática de exercícios, como se ela fosse algo inevitável, porém necessário, como dizem muitos praticantes, uma “dor gostosa”, uma vez que sua ocorrência denota que o resultado almejado está próximo de ser obtido. Essa representação da dor é corrente nas sociedades ocidentais contemporâneas, pois ela se liga a superação dos limites pessoais; nessas sociedades há atualmente a fragmentação das referências, e o corpo bem como a superação de seus limites passa a ser o referencial. (LE BRETON, 2007). Nesse contexto, há a ocorrência de alunos que treinam lesionados somente para não deixarem de obter resultados. Segundo eles, treinar com uma lesão não parece ser uma atitude errônea, já que tal dor é recorrente à prática de exercícios físicos.

A manutenção do corpo passa desse modo, refletir a capacidade do “cuidado de si” do indivíduo, uma vez que mantendo seu corpo saudável e exercitado, mesmo que esse fato pressuponha sentir dor, ou machucar-se eventualmente, ele viverá mais. Featherstone (1981) denominou esse ato de health education, ou seja, uma educação em saúde na qual o individuo aprende como se manter com qualidade de vida, através de dietas, exercícios físicos e o uso de pílulas. Como salienta Azize, essas não são vistas como medicamentos e sim como um potencializador para o alcance do “estilo de vida saudável”. Porém, segundo o autor, essa pedagogia da saúde estaria cada vez mais influenciada pela idealização da cultura do consumo, do corpo jovem e bonito. Neste contexto a academia também faz parte do itinerário terapêutico de algumas pessoas, como, por exemplo, para correção de postura, para se livrar do estresse do trabalho, bem como para prevenir doenças que possam vir a existir.

CULTO AO CORPO NA CULTURA DO CONSUMO

Em meados do século XIX, mostrar o corpo não era comum. As roupas tanto de homens quanto de mulheres tinham por finalidade esconder qualquer parte do corpo que despertasse vazão aos

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desejos sexuais. No início do século XX verifica-se o desnudamento do corpo e vestimentas mais flexíveis, com tecidos mais leves e que demarcam mais o corpo, como por exemplo, o jeans,que começa a ganhar espaço na vida dos indivíduos bem como a aparência física passa a depender do corpo, sendo os cuidados com este corpo essenciais e ele deve a partir de agora ser moldado.

Ao passar dos séculos, as concepções sobre o corpo mudaram diversas vezes e na atualidade, ele vem sendo muito explorado pela mídia. Porém, para que o corpo ganhasse tal projeção, houve inúmeros conflitos e polêmicas ao longo dos anos, conforme suas partes iam sendo reveladas pela indústria da moda; um exemplo disso é a polêmica causada pelo uso do biquíni nos anos 50. (CASTRO 2007)

Atualmente o corpo explorado pelas mais diversas mídias consiste no corpo magro, porém não esquelético, mas aquele com músculos bem distribuídos, proporcional e simétrico, sem cicatrizes ou marcas. O corpo passa dessa maneira a ser consumido através de uma pedagogia imagética engendrada pelas empresas de publicidade e propaganda, tornando-o uma mercadoria-signo. Não só o corpo, mas também os produtos relacionados a ele passam a ser mercadorias que são usadas de acordo com o estilo de vida do indivíduo. Esse fator, segundo Le Breton (2011) seria um dos paradoxos da sociedade contemporânea que mostra que apesar da vontade de não se evidenciá-lo , em certos lugares e em certos momentos a sociedade o evidencia como em propagandas de higiene,roupas íntimas, etc. Dessa forma o culto ao corpo passa a ser um dos ícones da cultura do consumo contemporâneo. Atualmente não só as mulheres, como também os homens passam a ser doutrinados para a obtenção do corpo perfeito, não só músculos, como a estética, a isso se deve o crescimento da venda de cosméticos ao público masculino.

A cultura do consumo é amplamente discutida por Featherstone (1995),que traça um panorama da economia clássica até os teóricos atuais mostrando como os bens produzidos passaram da esfera da produção para a esfera do consumo, bem como, o valor de uso dos produtos tornou-se secundário em relação ao seu valor de troca. Esse quadro se estabeleceu mais precisamente na época do fordismo, em que houve a educação do público consumidor pelas propagandas e mídias. A partir disso o autor estrutura a sua teoria da cultura do consumo em três pilares:

1- concepção de que a cultura do consumo tem como premissa a expansão da produção capitalista de mercadorias, através da acumulação material na forma de bens e locais de compra e de consumo, como as atividades de lazer, que tem um controle “sedutor” sobre a população;

2- concepção mais estritamente sociológica na qual a relação entre a satisfação proporcionada pelos bens e seu acesso socialmente estruturado seja um jogo de soma zero no qual a satisfação e o status dependem da exibição e da conservação

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das diferenças em condição de inflação em que as “pessoas usam mercadorias de forma a criar vínculos ou estabelecer distinções sociais.”

3- essa concepção diz respeito aos prazeres emocionais do consumo, ou seja, os sonhos e desejos celebrados no imaginário cultural consumista e em locais específicos de consumo que produzem diversos tipos de excitação física e prazeres

estéticos. (FEATHERSTONE, Mike. p 31, 1995)

Segundo Featherstone (1982), vários autores nessa época começam a descrever um novo tipo de personalidade, que foi denominada de narcísica, descreve um indivíduo que tem autocontrole, está sempre preocupado com a sua saúde, tem medo do envelhecimento e da morte, sempre procurando sinais de decadência do corpo e que usa seu corpo como uma mercadoria (essa discussão pode ser encontrada em Goldenberg (2000), na qual há o uso do capital corporal como uma forma de agenciamento das relações sociais contemporâneas). O autor ainda salienta que essa nova cultura narcísica que emerge conjuntamente com a cultura do consumo faz com que o indivíduo estabeleça uma nova relação com o seu corpo, que ele denominou de performing self ou o eu performático. Ele constatou essa tendência através de manuais de autoajuda que proclamavam o “eu” ideal no século XX, como pessoas que tinham o dom de fascinar, atrair e magnetizar o outro não somente através da fala, mas também através de sua imagem. Segundo ele o eu performático tornou-se mais amplamente aceito na era entre guerras com a propagação de Hollywood e a legitimação na imprensa popular do novo ideal.

No campo da academia de ginástica e musculação, segundo Hansen e Vaz (2004), o desempenho é desportivo, ou seja, a postura dos praticantes de academia passa a ser igual a de atletas desportivos competidores, como por exemplo, superação da dor, não falhar, “treinar”, obter um ótimo rendimento, sem contar a competição que existe em relação ao capital corporal dos outros indivíduos presentes no interior do local. No meu campo, o desempenho desportivo descrito acima estaria também ligado às roupas de ginástica que seriam de marcas famosas, como Nike, Oakley, Adidas, Rebook, Everlast entre outras, mostrando que tal desempenho não influencia somente na postura e na condução dos corpos, mas também na maneira como se operacionaliza o consumo no local.

CONCLUSÃO:

Mais do que provar a ocorrência da vigorexia no meu campo, o objetivo desse artigo, foi mostrar como a sociedade impõe um padrão de corpo e como essa imposição se torna massacrante para algumas pessoas ao ponto de lhes acarretarem excessos. A pesquisa de campo foi muito importante nesse sentido porque pude ver in locus como se sucedem as pressões dentro de uma academia de ginástica e pude teorizar o que eu como praticante de musculação já havia naturalizado há muito tempo. O que me levou a pesquisar sobre o tema foi primeiramente um matéria veiculada na TV e depois a observação de que nas academias de ginástica e musculação

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em geral, o que é mais desejado é o corpo perfeito. E ao mesmo tempo comecei a estudar teorias dentro da antropologia que tratavam da questão do corpo, não somente como um aparato biológico como também toda a dimensão social envolta nas maneiras em que o gerenciamos.

Apesar da pesquisa ainda estar em andamento é possível algumas conclusões como por exemplo, o estatuto do corpo na sociedade atual como algo marcante para a construção das individualidades, no qual os indivíduos o usam como capital, ou seja, ter um corpo “sarado” faz uma enorme diferença nas formas de gerenciamento da vida social. Outro ponto é a questão do consumo que vai além de um mero consumo de coisas para o corpo e sim o consumo do corpo. O indivíduo passa a construir um corpo como uma estratégia para sua auto divulgação no meio social.

Nesse contexto, a pesquisa de campo também me levou a discussão de saúde uma vez que esta é endossada correntemente no meio fitness pelos praticantes de musculação como motivação principal de sua empreitada e a estética é mencionada por eles como algo secundário e decorrente da manutenção do “estilo de vida saudável”. Nesse ínterim há a banalização do uso de suplementos alimentares, bem como anabolizantes que passam a ser vistos como parte de um tratamento e ao mesmo tempo não são vistos com o status de medicamento e sim como aditivos que podem potencializar a saúde e a estética.

A musculação nesse âmbito é entendida como uma técnica corporal em relação ao rendimento, uma vez que os movimentos dos praticantes são de certa forma adestrados para um fim, qual seja, a definição muscular e extirpação da gordura corporal, bem como a “imitação prestigiosa” daqueles que no presente campo, a sala de musculação possuem um maior capital corporal. O habitus desse grupo em relação à musculação de dá pelo constante trabalho muscular para um fim, bem como há a divisão sexual do trabalho muscular; prioritariamente os homens malham as partes superiores do corpo, que são consideradas socialmente masculinas e as mulheres malham as partes inferiores.

Os excessos são cometidos quando os resultados almejados não são conseguidos e por ser a musculação um processo lento, o que leva muitos a treinarem lesionados e também apresentarem overtrainnig, ou seja, fadiga muscular por excesso de treinamento, bem como a administração errada de suplementos alimentares e anabolizantes. Nesse âmbito a dor é vista como uma parte do treino e esta também denota que os resultados almejados estão sendo conseguidos, o que leva com que a dor por uma lesão seja banalizada, uma vez que esta é inerente as conquistas pelo corpo com uma total delineação muscular. Por isso o lema das academias em geral é uma expressão norte americana, no pain no gain. Aqui as noções de saúde e doença ficam um pouco confusas, pois a dor é algo visto comumente como inerente à doença, mas nesse caso é visto como um “passo” para se conseguir a saúde perfeita. E também a cura nesse caso é a eliminação da gordura e isso pode ser constatado pela expressão “corpo sarado” que é o corpo tracejado de músculos em oposição ao “corpo doente”, dos obesos ou anoréxicos.

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A mídia, sobretudo a mídia impressa, no âmbito desse trabalho, é uma das maiores reprodutoras dos padrões de corpo existente nas sociedades. Dentro da academia de ginástica e musculação torna-se impossível não se influenciar com as imagens, primeiramente dos professores e alunos veteranos que possuem um capital corporal valorizado dentro do local e depois das revistas nos quais os modelos possuem um corpo inatingível pela maioria dos indivíduos. As intervenções digitais muito presentes nesse tipo de mídia não são percebidas e quando o são, os indivíduos as ignoram o que faz com que a confusão entre o real e a imagem seja iminente, o que faz com que o corpo se torne uma mercadoria-signo, ou seja, além de ser amplamente consumido é algo que dá status ao seu possuidor bem como o possibilita mediar suas relações sociais através desse. A vigorexia, assim como descrita pelos meios biomédicos, não foi encontrada no meu campo, ou seja, não encontrei nenhum praticante que eu poderia afirmar ser vigorexo, porém, o vício em musculação, ou pelo menos, em estar na academia constantemente mesmo que correndo na esteira foi o mais evidenciado pelos próprios praticantes bem como pela observação participante. A vontade de “estar em forma” como uma maneira de autoafirmação bem como uma maneira de ser visto aos olhos dos outros é recorrente. O corpo passa então a ser vetor dos desejos de seu possuidor, passa a ser o seu passaporte para as relações sociais dentro de uma sociedade em que os referencias se encontram fragmentados, em que esse corpo como algo concreto dá o respaldo de continuidade.

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22 a 26 de Outubro de 201262

APROXIMAÇÕES ENTRE BOURDIEU E A ETNOLOGIA KAINGANG NO PARANÁ

Vanessa de Souza Lança

Unesp/Marília

Resumo: Este artigo se propõe a analisar, ainda que de forma incipiente, alguns aspectos da identidade étnica da sociedade Kaingang atual a partir de conceitos cunhados por Pierre Bourdieu, como habitus e campo. Mais conhecido como um grande teórico social, Bourdieu, em sua juventude, realizou pesquisa etnográfica entre os Cabila, no norte da Argélia, e em sua aldeia natal no Béarn francês, que foram extremamente importantes para a construção de seu legado intelectual. Assim como Bourdieu analisou as sociedades berbere e camponesa em processos de transformação social, procuramos utilizar suas categorias para refletir sobre o mesmo processo entre os Kaingang, uma etnia indígena da região Sul do Brasil, tendo sempre em vista, no entanto, as diferenças contextuais e as contribuições da etnologia brasileira para a questão.

Palavras-chave: Índios Kaingang; Habitus; Poder simbólico; Ressignificação cultural.

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APROXIMAÇÕES ENTRE BOURDIEU E A ETNOLOGIA KAINGANG NO PARANÁ

INTRODUÇÃO

A obra de Bourdieu, mais conhecido como teórico social, teve profunda influência de seu início profissional como etnógrafo, no norte da Argélia e na região francesa do Béarn. Foi, então, durante a década de 60, que desenvolveu alguns de seus principais conceitos, como habitus, campo e capital simbólico.

Neste artigo procuramos analisar as relações entre os indígenas Kaingang e a sociedade envolvente, baseados em dados empíricos observados no interior do estado do Paraná1, tendo as concepções cunhadas por Bourdieu como suporte teórico, principalmente a categoria de habitus.

Por habitus, entendemos uma categoria que nos auxilia a pensar “as características de uma identidade social, de um sistema de orientação ora consciente ora inconsciente” (SETTON, 2002, p.61)

Para Bourdieu, a maior parte das ações dos agentes sociais é produto de um encontro entre um habitus e um campo (conjuntura). Assim, as estratégias surgem como ações práticas inspiradas pelos estímulos de uma determinada situação histórica. São inconscientes, pois tendem a se ajustar como um sentido prático às necessidades impostas por uma configuração social específica. (idem, p. 64).

No caso dos Kaingang, pretendemos demonstrar que, apesar de ser um povo “tradicional”, cujos modos de vida antepassados foram irremediavelmente transformados pelo avanço da sociedade capitalista, suas ações diante de tal realidade não são tão inconscientes no sentido de incorporarem totalmente as categorias exógenas, muitas vezes, ao longo da História, imposta a essas populações. Pelo contrário, observamos muito mais um movimento de assimilação daquilo que se torna necessário, diante da realidade vivida pelos grupos, e manutenção de categorias tradicionais, por eles manipuladas e ressignificadas.

Na antropologia encontramos diversas discussões sobre este movimento de manutenção e assimilação cultural entre grupos étnicos, e teremos isso sempre em consideração, mas para os fins deste artigo, optamos por utilizar as categorias de Pierre Bourdieu, procurando captar sua eficácia.

ETNOHISTÓRIA KAINGANG NO PARANÁ E A QUESTÃO DOS “ÍNDIOS MISTURADOS”

Antes de mais nada, faz-se necessário apresentar os Kaingang e o contexto em que se encontram inseridos no estado do Paraná e, rapidamente, na produção etnológica e etnohistórica brasileira.

1 Entre os anos de 2008 e 2011 estive ligada ao Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história/UEM e pude conhecer algumas Terras Indígenas Kaingang e Guarani no Paraná.

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VANESSA DE SOUZA LANÇA

Considerado um dos cinco povos indígenas mais populosos do Brasil, atualmente apresentam uma população de aproximadamente 34.000 pessoas (FUNASA, 2010), habitando pouco mais de 40 Terras Indígenas legalizadas ou em vias de legalização (ISA, 2009), distribuídas entre os estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além de famílias que vivem nas zonas rurais e nas periferias de centros urbanos destes estados. Fazem parte do ramo Meridional do tronco linguístico Macro-Jê (juntamente com os Xokleng) e, assim como outros grupos Jê, os Kaingang possuem um sistema dualístico que “divide” a população em metades ao mesmo tempo contrárias e complementares. Entre os Kaingang essas metades são denominadas Kamé e Kairu, que além de produzirem as metades entre os homens, dividem todos os elementos da natureza. Através do dualismo todas as outras regras sociais tradicionais são organizadas, tais como o casamento, que só poderia ocorrer entre pessoas de metades diferentes; a descendência, sempre patrilinear, onde os filhos pertencem à metade paterna; e a nominação, onde a criança recebe um nome pertencente a sua metade.

No Paraná, segundo estudos (MOTA, 1997, 2009; TOMMASINO, 1995), os primeiros contatos dos Kaingang com as frentes exploratórias datam do século XVI, na região da bacia do Rio Tibagi, estendendo-se para as outras regiões do estado. A região foi alvo de expedições espanholas e portuguesas que cruzavam as matas em busca de metais, escravos e de rotas para o Paraguai e Peru (MOTA, 1997). Nessa época foram construídas reduções jesuíticas como a do Guairá e as bandeiras paulistas também invadiram a região, intensificando a captura dos índios. As expansões territoriais de grandes proprietários de terras acentuaram-se nos séculos XVIII e XIX, assim como as expedições militares que cruzavam a região em direção ao Mato Grosso.

Durante esse processo criou-se a ideia do vazio demográfico existente no território paranaense, retirando-se dos povos indígenas sua historicidade e seu pertencimento a terra. Como aponta Mota (2009),

A ideologia corrente alimenta um conceito de natureza externa à sociedade, à espera de ser possuída. Assim o norte e oeste paranaense, da metade do século XIX em diante, com suas florestas, campos, rios, terras roxas, climas amenos, aguardariam a sua internalização no processo de produção da sociedade industrial moderna (MOTA, 2009, p. 20).

De acordo com o autor, a predominância da concepção de vazio demográfico, por parte da comunidade científica com relação ao território paranaense, foi reproduzida principalmente em livros didáticos e os Kaingang foram por séculos considerados diferenciados da sociedade nacional e suas terras como locais inóspitos, mas fontes de riqueza e domínio para as frentes colonizadoras. Assim, o ideal de vazio demográfico foi um dos pretextos para a tomada e colonização deste território, bem como da dominação, aldeamento e “integração” dos Kaingang ao sistema nacional, decorrente das políticas indigenistas que vigoraram ao longo do século XX.

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APROXIMAÇÕES ENTRE BOURDIEU E A ETNOLOGIA KAINGANG NO PARANÁ

Pelo longo período de contato intercultural na região, muitos trabalhos antropológicos sobre os Kaingang acentuaram seu alto grau de interação com a cultura envolvente, como uma característica prejudicial à manutenção de uma cultura tradicional que se perdia.

De acordo com Fernandes et al (1999), os “estudos sobre a aculturação e a integração dos Kaingang ocuparam parte central das pesquisas realizadas a partir dos anos 60 [...]”, o que torna relativamente recentes os estudos que valorizam aspectos da tradição Kaingang que, pelos processos de dinâmica histórica e cultural não se perderam mas permanecem ressignificados em práticas atuais.

Principalmente a partir da década de 60, novas teorias como a de fronteiras e grupos étnicos (BARTH, 2000), fricção interétnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1964) e de “índios misturados” (OLIVEIRA FILHO, 1999), influenciaram e possibilitaram uma nova reflexão sobre esses processos entre os povos indígenas brasileiros e, consequentemente, esse movimento refletiu na produção etnográfica sobre os Kaingang nas décadas posteriores.

Particularmente a teoria de fricção interétnica, desenvolvida por Cardoso de Oliveira, adaptando as ideias de Frederik Barth, marcou fortemente a etnologia da época e se tornou um marco na mudança de perspectiva analítica, fazendo a crítica das teorias da aculturação que marcaram as décadas anteriores.

Ao contrário dos estudos sobre aculturação, aqueles voltados essencialmente para a descrição dos processos de difusão, transmissão e assimilação de “traços culturais”, os estudos sobre a fricção interétnica têm por base o exame de relações sociais entre os grupos tribais e os segmentos regionais da sociedade brasileira aos quais estão ligadas; passa-se assim de uma orientação “culturalista” a uma orientação teórica de caráter sociológico. [...]. Sendo assim, o contato é concebido como relação processual no interior de um sistema interétnico. (ATHIAS, 2007, p. 109-110).

Seguindo por essas perspectivas, etnografias dos anos 1990, como a de Tommasino (1995, p. 313), apontam que os povos indígenas de uma forma geral e os Kaingang de forma específica não foram totalmente assimilados pela sociedade nacional. Apesar de estarem distantes do modo de vida de seus ancestrais, “as estratégias desenvolvidas pelos Kaingang foram no sentido de viabilizar a sua sobrevivência física e a diferenciação cultural”. Pela perspectiva da etnohistória, defendida por Pacheco de Oliveira ao discutir a situação dos “índios misturados” do Nordeste, entendemos que:

[...] as manifestações simbólicas dos índios atuais estarão marcadas comumente por diferentes tradições culturais. Para serem legítimos componentes de uma cultura, costumes e crenças não precisam ser exclusivos daquela sociedade, frequentemente sendo compartilhados com outras populações (indígenas ou não). [...].

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VANESSA DE SOUZA LANÇA

A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas não necessariamente significa que aquela cultura já não seria “autenticamente indígena” ou pertencesse a “índios aculturados” (no sentido pejorativo de “ex-índios” ou “falsos índios”). Operadores externos são ressemantizados e fundamentais para a preservação ou adaptação de uma organização social e um modo de vida indígena. (OLIVEIRA FILHO, 1999, p. 117).

É tomando esse posicionamento, levando em consideração o histórico de contato entre os Kaingang e as frentes colonizadoras e sua realidade empírica em algumas TIs (Terras Indígenas) no Paraná atualmente, que procuramos aplicar os conceitos que Pierre Bourdieu primeiramente formulou entre os cabilas e os bearneses.

TENTANDO SEGUIR PIERRE BOURDIEU NO CAMPO2

As reflexões que passo agora a fazer tratam da questão das relações interétnicas entre uma população indígena e a sociedade envolvente que, como procurei demonstrar, têm um campo profícuo dentro da antropologia em geral e da etnologia brasileira, e desta forma, procurarei ter cautela ao tentar apropriar os conceitos de Bourdieu para o caso específico dos Kaingang.

De maneira sintética, a situação dos Cabilas quando Bourdieu chega a campo, em um contexto de intenso processo de luta anti-imperialista (a região da Cabília, no norte da Argélia quando ainda colônia francesa, em fins da década de 50), e as relações entre os sexos em uma vila camponesa da França, no início dos anos 1960, aparentemente não têm nada em comum entre si e, muito menos, com uma população indígena que habita o interior do Brasil.

Porém, Bourdieu vê, em seus dois objetos de pesquisa empírica, as contradições de dois mundos em choque, a saber: o mundo rural, tanto cabila como bearnês, das tradições; e o mundo capitalista que pode ser entendido, em cada situação, como o imperialismo francês, desestabilizando as tradições e a organização social cabila e a abertura do campo à influência econômico-cultural das cidades.

Em sua acepção primeira, como aponta Loïc Wacquant (2006, p. 18), “choques de civilizações” significava para Bourdieu “a confrontação entre dois sistemas sociais fechados em relações assimétricas de poder material e simbólico”, utilizado em oposição a uma noção de “aculturação” e à uma “teoria da modernização” em que os processos de desenvolvimento socioeconômico do Terceiro Mundo se dariam de forma gradual e orgânica, impulsionados pela difusão cultural. Pensando tanto o Béarn como a Argélia,

2 O título dessa seção faz alusão e paráfrase ao artigo de Loïc Wacquant, Seguindo Pierre Bourdieu no campo, publicado originalmente em inglês na revista Ethnography, v.5, n.4, Dec. 2004, e traduzido e publicado em Revista de Sociologia e Política, n. 26, Jun. 2006. A intenção aqui exposta, pela alusão ao título do artigo de Wacquant, não é simplesmente seguir o método de Pierre Bourdieu, mas encontra-se dentro do esforço realizado para conciliar meu objeto de pesquisa e as discussões apresentadas por este autor, nas condições esclarecidas na nota 1.

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APROXIMAÇÕES ENTRE BOURDIEU E A ETNOLOGIA KAINGANG NO PARANÁ

Bourdieu (1962b; 2002, p. 113) articula a mesma problemática do “choque de civilizações” e dos seus multifacetados impactos na estrutura social e na subjetividade, incluindo o “des-dobramento da consciência e do comportamento” de acordo com os princípios conflitantes do sentimento e do interesse, a erosão das hierarquias e autoridades tradicionais (baseadas na linhagem, idade e gênero), e a relação recursiva entre a degenerescência de unidades sociais tradicionais, a deflagração da competição individual e a distorção das estratégias sociais.(WACQUANT, 2006, p. 18).

Dessa forma, ao desenvolver a antiga noção aristotélica-tomista de habitus – como sistemas de disposição socialmente constituídos e incorporados, que condicionam práticas socioculturais – Bourdieu usou-a como “categoria mediadora, transcendendo a fronteira entre o objetivo e o subjetivo” (WACQUANT, 2006, p. 17), pois procura apreender “as relações de afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas e condicionamentos sociais” (SETTON, 2002, p. 62). Por meio do conceito de habitus, Bourdieu procurou captar e descrever as crises das estruturas sociais e mentais, geradas entre as práticas baseadas em uma lógica milenar dos camponeses berberes e as novas configurações econômicas e sociais que o sistema colonial vinha impor-lhes, assim como o desconforto gerado nos homens bearneses através de uma nova influência cultural adquirida pelas mulheres, que transformou as expectativas e as formas avaliativas destas sobre aqueles.

Em suma, temos nestes dois cenários etnográficos apresentados por Bourdieu, o que podemos chamar, contemporaneamente, de crises de identidade (étnica, política e econômica no caso dos cabilas; e de grupo, simbólica e social no caso dos bearneses), em que ficam aparentes as permanências e crises de valores e comportamentos tradicionais, na tentativa de se adaptar a um novo campo, ou sistema sociocultural.

Transpondo essa discussão para o cenário das Terras Indígenass Kaingang no Paraná, podemos utilizar o conceito de habitus para analisar as ações aparentemente inconscientes dos indígenas, mas que demonstram profunda objetividade e conhecimento do campo tênue em que se encontram, entre a tradição indígena e as contradições da sociedade não-indígena.

Como procuramos explicar acima, o longo período de contato dessas populações com as frentes colonizadoras e as políticas de aldeamento ao longo do século XX, configuraram um quadro de dependência material, que hoje podemos observar nas relações dos Kaingang com a sociedade envolvente das cidades próximas às aldeias.

Podemos dizer, então, que um habitus indígena já vem sendo reformulado desde a “pacificação” e aldeamento, através da introdução do idioma português, das vestimentas ocidentais, de alimentos industrializados, etc. (e recentemente, da crescente dependência em relação à instituições e órgãos do governo como Funai, Funasa, Núcleos Regionais de Educação, etc., e programas sociais do governo federal e estadual, pois essas agências repassam verbas,

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alimentos, remédios e insumos agrícolas sem os quais a população não conseguiria se sustentar), e que a cultura tradicional, a língua nativa, os valores, estariam seriamente comprometidos pela influência (leia-se dominação) dos valores da sociedade capitalista.

Porém, para além desse fato, uma análise um pouco mais profunda demonstra que as possibilidades dessa realidade podem ser um pouco diferentes.

Pensar a relação entre indivíduos e sociedade com base na categoria habitus implica afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente orquestrados. O habitus é uma subjetividade socializada (Bourdieu, 1992, p. 101).

Dessa forma, deve ser visto como um conjunto de esquemas de percepção, apropriação e ação que é experimentado e posto em prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam. (SETTON, 2002, p. 63).

No caso dos Kaingang, o que podemos observar são as relações de transformação, sim, da cultura tradicional e busca por artefatos e valores que antes não faziam parte das necessidades do grupo. No entanto, se aprofundarmos a observação e utilizarmos a ideia de habitus como forma de análise, veremos que essas “novas” formas de comportamento, além de serem resultantes de transformações socio-históricas3 e de dinâmicas próprias da cultura4, revelam que a apropriação de categorias exógenas é também objetiva, pensada dentro da conjuntura (campo) em que se encontram.

A necessidade de aprender e dominar a língua portuguesa e fazer uso dos conhecimentos da sociedade envolvente na luta por seus direitos, por exemplo, e a resignificação de objetos e práticas tradicionais demonstra que, mais do que simplesmente “dominados” pela cultura da sociedade capitalista, os Kaingang, assim como outros povos indígenas brasileiros, se aproximam e adaptam suas práticas para não serem totalmente engolidos por ela e ainda assim manter sua distinção étnica.

Nesse sentido, podemos retomar Cardoso de Oliveira (1976 apud Athias, 2007) para pensar a formação de identidades étnicas, também aplicável nessa situação:

A identidade étnica é, enquanto forma ideológica das representações coletivas de uma sociedade, concebida como um caso particular de identidade social e como uma forma ideológica das representações coletivas de um grupo étnico determinado. A definição da identidade étnica se faz, portanto de maneira dialética observando as relações entre o nós e os outros. Isto implica bem entendido que

3 Não podemos esquecer que a História do “contato” interétnico das populações indígenas brasileiras com os não-índios dura mais de 500 anos, e das consequências físicas e simbólicas trágicas para a manutenção de suas culturas tradicionais.

4 Sobre o conceito de dinâmica na cultura, ver LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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duas entidades estejam em relação, pois nenhum grupo social pode se conceber ideologicamente se não percebe a existência de outro grupo. (ATHIAS, 2007, p. 120)

CONCLUSÕES

De uma forma geral, o que queremos deixar como conclusão dessa discussão é a forma, nativa, dos Kaingang, de se adaptar e incorporar, a partir das necessidades objetivas que se apresentam atualmente, às muitas transformações pelas quais passaram e continuarão a passar, dada a condição dinâmica das conjunturas socioculturais que estão em interação contínua nesse cenário.

A tentativa de aproximar os conceitos utilizados por Bourdieu ao contexto Kaingang foi, acreditamos, elucidativa, e demonstra ainda como as categorias de análise do autor procuram descobrir a especificidade de uma “lógica universalmente pré-lógica da prática”, como ele mesmo procurou comprovar realizando uma “antropologia cruzada” de duas situações etnográficas aparentemente bem diferentes.

Apesar de hoje terem seus direitos como povo específico garantidos na Constituição, os Kaingang (e todos os povos indígenas do Brasil) têm uma condição de vida muito diferente daquela de seus antepassados e precisam lutar para que ao menos o básico (educação, saúde, alimentação) lhes seja garantido, por um Estado com leis e regimentos muitas vezes contraditórios com relação a eles.

Como quisemos demonstrar, existem estratégias de “sobrevivência” social e cultural, mas assim como no caso dos Cabilas, os indígenas se libertaram das condições violentas do período colonial, sem na realidade serem libertados das contradições que a colonização incutiu neles, fazendo-se assim necessário o movimento dialético de manutenção (e recuperação) das tradições e adaptação do habitus ao campo e às categorias da sociedade envolvente, que configuram suas práticas atuais.

Assim como Oliveira Filho (1999, p. 118) acreditamos ser necessário “fugir de uma idealização do passado e de uma pureza original, da naturalização da situação colonial e ainda de uma etnologia das perdas culturais.” Dessa forma esperamos contribuir para os estudos antropológicos das populações indígenas que sofreram com intensos processos de contato interétnico e incitar maiores reflexões sobre as formas de ressignificação de elementos tradicionais entre a população Kaingang no Paraná.

REFERÊNCIAS

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VANESSA DE SOUZA LANÇA

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CULTURA E NATUREZA: A EMERGÊNCIA DAS NOVAS SENSIBILIDADES NO SÉCULO XIX

Rafael Ferreira Silva; Carolina Steinke Xavier; Rosana Steinke

1 Graduando Licenciatura em Letras-Francês – UEM

2 Graduanda em Comunicação e Multimeios – UEM

3 Professora Orientadora. Docente do DHI (Departamento de História - UEM)Licenciada em História e Mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP)Pesquisadora do CEAPAC(Centro de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural-UEM)

Resumo: A aproximação entre a história, literatura e pintura é um campo que oferece interessantes perspectivas para a pesquisa nas ciências humanas. Este é o caso do final do XIX e começo do século XX na Europa, período de importantes registros acerca da transformação da paisagem e como esta foi sendo redimensionada simbolicamente. Tais aspectos podem ser observados em autores como Thomas Mann nas obras como Morte em Veneza e A montanha mágica. A pintura de Monet também se apresenta repleta de representações sobre as estações do ano e as paisagens das diferentes regiões da França contemplando o campo, à beira-mar ou a montanha. Os numerosos sítios e itinerários que fizeram parte deste repertório e que invocou o universo dos impressionistas, bem como a literatura, estão ligados a uma mudança de hábito e práticas culturais em relação à natureza que começa a se delinear a partir do final do século XVIII. Começa-se a perceber a natureza como uma aliada dos malefícios de doenças do corpo e da alma e teorias acerca da profilaxia são difundidas e colocadas em prática. Os jardins e as montanhas, antes antíteses de lugares pútridos, revestem-se de virtudes e tornam-se locais de uma busca múltipla ; novos códigos trazem um conjunto de preceitos higiênicos que tem por finalidade a satisfação narcisista. Estabelecer uma breve comparação entre a literatura de Thomas Mann e duas obras de Monet a partir do olhar sobre a natureza colocada nas mesmas é o intuito este artigo.

Palavras-chave: Literatura; História; Cultura.

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22 a 26 de Outubro de 201272

RAFAEL FERREIRA SILVA; CAROLINA STEINKE XAVIER; ROSANA STEINKE

A aproximação entre a história, literatura e pintura é um campo que oferece interessantes perspectivas para a pesquisa interdisciplinar. Neste artigo abordar-se-à especificamente o aspecto da paisagem e sua transformação a partir do conceito de natureza domesticada que vai se estabelecendo na Europa, principalmente na Inglaterra e França, a partir do século XVI e toma contornos mais nítidos no século XIX. Pensando nas distintas concepções de natureza ao longo do tempo, usado para legitimar diferentes conceitos, pode-se apontar que esta, longe de uma neutralidade, também carrega em si os aspectos simbólicos da conjuntura do processo histórico que a precede. Desde o Renascimento a curiosidade e a “redescoberta” da natureza, amparada pela esfera cientificista, se manifesta como uma construção de um discurso sobre a mesma no qual dificilmente se difere a emergência das ciências naturais e as práticas culturais que vão amorfoseando os hábitos de determinadas classes sociais.

Como ressalta Burke (2000), a cultura pode ser compreendida como toda esfera de criação humana relacionada com seu lugar social de produção e suas variáveis, como a economia e a política. A partir de Guinzburg (1987 e 1989)e suas noções de cultura popular e circulariedade cultural e também da história cultural trabalhada por Chartier (1990) e seus conceitos de representação e apropriação, ou mesmo da contribuição da historiografia inglesa de Thompson (2005) levando em conta os movimentos sociais e o cotidiano das classes trabalhadoras, há elementos para elaborar um diálogo entre a cultura e suas práticas. Para estes historiadores, levando-se evidentemente em conta os debates específicos que os cercam, ainda que não serão tratados mais demoradamente aqui, a história cultural, as relações econômicas, sociais e mentais são campos de práticas e produções culturais.

Neste aspecto, podemos citar as práticas que envolvem todo o espaço da experiência vivida e a cultura permite ao indivíduo pensar essa experiência, ou seja, criar as formulações da vivência, conforme apontam Burke e Guinzburg. Se a atribuição de valores num determinado contexto é simbolicamente fator de identidade, e toda cultura é cultura de um grupo, pode-se dizer que história é ao mesmo tempo e indissociavelmente social e cultural.

Este é o caso do final do XIX e começo do século XX na Europa, rico em registros acerca da transformação da paisagem e como esta foi sendo redimensionada simbolicamente. Tais aspectos podem ser observados na obra de inúmeros autores consagrados pela literatura deste período. Como exemplo podemos citar Thomas Mann nas obras como Morte em Veneza e A montanha mágica. Nas duas referidas obras, publicadas respectivamente em 1912 e 1924, a visão da natureza que se estabelece está intimamente imbricada com o processo de mudança na concepção desta, antes tida como algo distante e selvática e que vai, ao longo dos século XVII e XVIII, criando vínculo baseados na simpatia. Thomas (1996) e Corbin(1989) exploram essa mudança de atitude diante da natureza e dos animais. Thomas fala sobre os pressupostos que fundamentaram as percepções dos ingleses no início da época moderna perante os animais, plantas e paisagem física, mostrando como se acentua o predomínio do homem sobre o mundo

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CULTURA E NATUREZA: A EMERGÊNCIA DAS NOVAS SENSIBILIDADES NO SÉCULO XIX

natural. Na obra dos referidos autores a abordagem mostra que este desenvolvimento da história natural não está voltada meramente para uma exposição detalhada da natureza, com relatos sobre as plantas e descrição de animais selvagens, mas também para a criação de um novo sistema de classificação da história natural.

Ela está presente em diferentes formas de expressão enas novas sensibilidades que emergem a partir do século XVIII. Exemplo disso é a obra A montanha mágica, Thomas Mann, repleta de descrições do espaço e no deslocamento do personagem para um lugar desconhecido e que vai tomando ares de um novo território que se descortina, trazendo a amplidão, o convite ao devaneio. Ao ingressar na nova paisagem o personagem ingressa em outro mundo, no qual o entorno é desconhecido. Embora trate do tema da morte, é a força da natureza e sua sedução – a conotação do espaço - que constói a narrativa, contribuindo fortemente para a experiencia catártica do leitor.

Pode-se dizer que a obra de Thomas Mann tem como significação primeira o conceito de tempo que é apreendido de forma diferente nas montanhas e principalmente no sanatório onde se passa a narrativa descrita pelo autor, fazendo uma alusão à sociedade burguesa e suas práticas culturais em relação ao espaço e à natureza.

Na Europa do século XIX, a partir do conjunto da obra inúmeros pintores, podemos destacar Édouard Manet como um representante desta narrativa na linguagem pictórica. Um exemplo disso é quando este retrata pessoas sentadas em barcos nos arredores de Paris, em 1872; a o opção era por barcos de passeios e não barcos a vapor que já existiam e eram usados tanto para fins industriais quanto com propósitos recreativos. Embora adquirir um veleiro ou um barco a vapor eram possíveis apenas para os chamados jovens de fortuna1 pode-se dizer que, assim como o curismo, a prática turística também chega às classes menos abastadas. A identificação dos passeios de barco com as chamadas classes média e baixa, que costumavam passar as tardes de domingo subindo e descendo o Sena já pode ser observada e foi largamente retratada nas artes plásticas e na literatura (FRANSCINA et alii, 1993). Édouard Manet, contemporâneo de Claude Monet, um dos principais pintores impressionistas, difere deste último por retratar as mesmas paisagens, mas deixando implícita em sua obra uma natureza já não intocada, com nuances de industrialização que se fazia presente nas peças da ponte ferroviária, na fumaça de uma chaminé, entre outros exemplos que podem ser citados aqui. A diferença entre os dois é que se observa no quadro de Manet uma justaposição, ou mistura, de códigos sobre o moderno (FRANSCINA et alii, 1993: 121).

Os impressionistas vão pintar a impressão primeira2, como diz o próprio epíteto, retratando o fugaz e o efêmero. Se, por um lado, a industrialização se fazia presente e descartava tudo que era feito à mão, pode-se dizer que com a produção em grande escala surge

1 Grifo nosso.

2 Grifo nosso.

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também o inacabado e o descartável. Com o surgimento do mundo industrial e do efêmero, os impressionistas são considerados como artistas de obras em aberto pelo fato de deixarem pairar sobre as mesmas alguma dúvida sobre o tema pintado. Mais sugerindo do que reproduzindo a natureza, buscam na luminosidade o foco principal de suas experiências. No entanto, nesta busca intensa pelas cores e suas mudanças, a irisação e a mistura ótica das matizes, eles também se tornam inovadores na forma e no conteúdo.

Nas obras retratadas por Monet pode ser observado o reflexo da luz solar formando um espelho, imagens turvas da passagem da escuridão para a luz, denotando ao longo do tempo o aperfeiçoamento do pintor na mistura das cores sobre a tela e de sobreposição de tons criando o efeito de distorção e movimento. Em sua obra os desenhos não têm contornos, havendo um deslocamento de foco visual do desenho para as cores. A técnica impressionista não preenchia os desenhos com cores, mas as deixava justapostas. Além disso, o contraste do claro-escuro em voga anteriormente, foi substituído pela relação entre tons complementares, com o uso de tonalidades muito próximas, representando as figuras humanas apenas pela silhueta e aproveitando a visão dos objetos à luz do sol nascente para deixar sua imagem refletida na água, como se fosse uma metáfora.

Vivendo em Giverny, na região da Normandia, Monet cultivou um enorme jardim que foi tema de inúmeras obras do pintor. O jardim recebia cuidados pessoais do pintor e nele havia uma ponte (influência da arte japonesa), plantas aquáticas e uma região à margem do lago cercada por salgueiros, íris e outras arcos de rosas.

Pintado entre 1892 e 1898 o quadro Jardim de Monet em Giverny (1900) revela os traços citados anteriormente e as sutis e arrojadas pinceladas do autor, dando à obra o movimento, forma e volume às águas, a alternância entre cores puras e mistas e os reflexos da cena.

Já em Terraço em Sainte-Adresse (1867), Monet apresenta um cenário tipicamente burguês. Neste quadro o pintor retrata sua família no terraço da casa de uma tia, em frente ao mar. O jardim está em primeiro plano, bem como a balaustrada. O pintor utiliza o efeito colorido das sombras e cores que contrastam entre si (vermelho e verde). A sombra das pessoas, os objetos e plantas estão presentes no quadro que mostra um dia de sol e vento, percebido pelas águas encrespadas e o tremular de bandeiras.

Se em Argentuil o pintor exploraria aquilo que mais marcou sua obra, ao retratar os gerânios e papoulas com a mesma cor ou cores próximas, estas características já podem ser obervadas no quadro referido acima, datado da época em que o artista ainda era jovem. A pintura ao ar livre, cujas pinceladas sugerindo metáforas ao retratar o mar com suas ondulações, sugere uma obra repleta de representações sobre as estações do ano e as paisagens das diferentes regiões da França contemplando o campo, à beira-mar ou a montanha.

Os numerosos sítios e itinerários que fizeram parte deste repertório e que invocou o

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CULTURA E NATUREZA: A EMERGÊNCIA DAS NOVAS SENSIBILIDADES NO SÉCULO XIX

universo dos impressionistas, bem como a literatura de Thomas Mann, são expressões artísticas mas também estão ligados a uma mudança de hábito e práticas culturais em relação à natureza que começa a se delinear a partir do final do século XVIII e vai se acentuando ao longo do século XIX, conforme nos mostram os estudos de Corbin e Thomas. Começa-se a perceber a natureza como uma aliada dos malefícios de doenças do corpo e da alma e teorias acerca da profilaxia são difundidas e colocadas em prática. Os jardins e as montanhas, antes tidos como lugares pútridos, revestem-se de virtudes e tornam-se locais de uma busca múltipla.

Conforme Chartier, os novos códigos trazem um conjunto de preceitos higiênicos que tem por finalidade a satisfação narcisista. Na pintura de Monet, bem como de alguns outros pintores deste período, é possível apontar o delineamento do moderno. Por “moderno” entendemos as novas práticas sociais, tanto na “arte erudita” como na “cultura de massas”, que se enagajavam nas experiências da vida moderna. Esse engajamento era às vezes crítico, às vezes comemorativo, às vezes irônico (FRASCINA, 1993: 127). Apesar de alguns autores apontarem a ênfase dado às questões técnicas e formais na prática de Monet, os aspectos sociais estão codificados em todos seus quadros, na relação inseparável entre o método de pintura e o que é pintado (FRASCINA, 1993: 128-129). Ainda que talvez este tenha evitado o realismo crítico de Manet, nem por isso deixou de representar as formas objetivas de recreação burguesa que também refletem na própria escolha de temas dos novos artifícios estéticos, a concepção da arte como unicamente um campo de gozo individual, alcançando, talvez um grau ainda desconhecido da arte, como sugere Schapiro (2002). São estas condições de sensibilidade, intimamente ligadas às do passeante urbano e do consumidor refinado de artigos de luxo, que nos remetem aos clássicos literários como Baudelaire (1988) ao falar da experiência moderna, do transitório e do fugidio, tão característico ao século XIX.

Estabelecer uma breve comparação entre a literatura de Thomas Mann, a partir de breves observações sobre a obra A montanha mágica, e os dois quadros de Monet (Terraço e Os jardins de Monet em Giverny), buscando contextualizar o olhar sobre a natureza colocada nas referidas obras por seus respectivos autores, é o intuito desta reflexão. Pensamos a história cultural não como monopólio dos historiadores. É multidisciplinar, pois se faz com invasões de fronteira e território comuns com a história literária, a arte e antropologia, tomando emprestados seus conceitos.

Importantes estudos sobre o impressionismo enfatizam o engajamento permanente de artistas, incluindo Monet, em temas urbanos e suburbanos, mas principalmente mostrando que a pintura impressionista como uma arte da paisagem, da luz e da atmosfera, falseia a variedade de obras associadas ao movimento e, ao mesmo tempo, encobre um mundo de problemas do qual essa obra emerge. Por isso, considera-se oportuno tratar este tema, relacionando-o com a emergência das novas sensibilidades ao longo do século XIX. Para Schapiro (2002) na visão dos impressionistas havia algo não convencional e indisciplinado. Na descoberta de

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um mundo fenomenal e ao ar livre em constante mudança do qual as formas dependiam da posição momentânea do espectador casual havia uma crítica implícita às formalidades sociais e domésticas simbólicas, ou pelo menos uma norma oposta a elas (FRASCINA, 1993: 181).

Como se nota, os processos estabelecidos a partir da História Cultural envolvem a relação que se estabelece entre a história dos textos, a história dos livros e a história da leitura, conforme assinala Chartier. Tais reflexões nos levam a pensar o campo da historiografia e suas nuances como um discurso acerca da realidade, e sobre como o historiador exerce o seu ofício para compreender tal realidade. Neste aspecto, os estudos da História Cultural, amparados no trabalho de Chartier, possibilitam que se tenha uma postura frente aos métodos, temas e fontes eleitos para se estudar num diálogo frequente e fértil com outras áreas.

Chartier afirma que não há uma relação unilateral, e sim, dialética, entre realidade social e representações estéticas, na medida em que uma determina a outra. Para este autor é necessário inverter os termos habituais da relação entre realidades sociais e representações estéticas, pois estas não representam diretamente uma realidade já presente e constituída, mas contribuem com sua produção e possivelmente com mais força do que as outras representações desprovidas de poder de ficção.

Da mesma forma, vemos a relação entre literatura e outras artes, confirmando a perspectiva de Chartier, em um âmbito que trava uma negociação com o mundo social e não apenas como uma troca, pois só olhando para a literatura e a pintura como fonte historiográfica rica em dispositivos para o olhar do historiador, que a obra de arte se torna compreensível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna: A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

BURKE, P. O que é História Cultural?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008.

CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

CORBIN, A. Território do vazio. A praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CORBIN, A. Saberes e odores. O olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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CULTURA E NATUREZA: A EMERGÊNCIA DAS NOVAS SENSIBILIDADES NO SÉCULO XIX

FRASCINE, Francis; BLAKE, Nigel; FER, Briony; et al. Modernidade e modernismo: a pintura francesa no século XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1993.

GUINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

GUINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.

MANN, T. A montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

MANN, T. A morte em Veneza. São Paulo: Abril Cultural, 1970.

SCHAPIRO, M. Impressionismo: reflexões e percepções. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

THOMAS, K. O homem e o mundo natural. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

THOMPSON. E. P. Costumes em Comum. Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

WILLIAMS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

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22 a 26 de Outubro de 201278

MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA

Tônia Kio F. Piccoli; Solange R. de Andrade; Vanda F. Serafim

1 UEM/LERR. E-mail: [email protected] UEM/LERR – Orientadora3 UEM/LERR – Co-orientadora

Resumo: Neste artigo, pretendemos analisar a santidade em Maria Bueno a partir da religiosidade católica, buscando perceber suas diversas representações e como se constitui enquanto uma santa de cemitério. Utilizaremos a análise das mentalidades para explicar os conceitos de Religião e Religiosidade, prescritos nas obras de Solange Ramos de Andrade (2010) e Jacqueline Hermann (1997). Por meio dos jornais será possível levantar alguns dados relevantes sobre o desfecho de sua morte. Maria Bueno foi assassinada de forma brutal pelo militar Ignácio José Diniz, na madrugada do dia 29 de janeiro de 1893. O motivo da violência é controverso, seus devotos afirmam que foi morta por defender sua honra; já seus detratores sugerem que Maria Bueno era uma prostituta e teria sido morta por desobedecer às ordens de seu cafetão, Ignácio Diniz. Santa ou Prostituta? Mártir nas mãos de um algoz malévolo ou vítima de seu próprio modo de viver? São muitas as contradições a respeito de Maria Bueno, e podemos antecipar que é justamente essa dubiedade que torna a análise de sua vida e morte tão fascinante. Entendemos nossa abordagem como pertinente dentro da percepção da terceira geração do Annales, a partir de autores como Pierre Nora e Jacques Le Goff (1974), de que a História pode incorporar estes novos objetos e problemas.

Palavras-chave: Santidade; Maria Bueno; Religiosidade católica; Cemitério.

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22 a 26 de Outubro de 201279

MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA

Este artigo tem por o objetivo apresentar algumas considerações acerca do Projeto de Iniciação Científica “Maria Bueno: um estudo de religiosidade no Paraná”, no qual objetiva-se analisar a santidade em Maria Bueno a partir da religiosidade católica, buscando perceber suas diversas representações e como se constitui enquanto uma santa de cemitério.

Ao tomar jornais como fonte histórica será possível levantar alguns dados relevantes sobre o desfecho de sua morte. Maria Bueno foi assassinada de forma brutal pelo militar Ignácio José Diniz, na madrugada do dia 29 de janeiro de 1893. O motivo da violência é controverso, seus devotos afirmam que foi morta por defender sua honra, já seus detratores sugerem que Maria Bueno era uma prostituta e teria sido morta por desobedecer as ordens de seu cafetão, Inácio Diniz. Santa ou Prostituta? Mártir nas mãos de um algoz malévolo ou vítima de seu próprio modo de viver? São muitas as contradições a respeito de Maria Bueno, e podemos antecipar que é justamente essa dubiedade que torna a análise de sua vida e morte tão fascinante.

Entendemos a proposta como pertinente dentro da percepção da terceira geração do Annales, a partir de autores como Pierre Nora e Jacques Le Goff (1974), de que a História pode incorporar estes novos objetos e problemas. A fim de problematizar tais questões utilizaremos a análise das mentalidades para explicar os conceitos de Religião e Religiosidade, prescritos nas obras de Solange Ramos de Andrade (2010) e Jacqueline Hermann (1997).

As considerações presentes neste artigo estão vinculadas ao projeto de pesquisa em desenvolvimento, a partir de 2011, no Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades (LERR – UEM) com o objetivo de compreender a santidade em Maria Bueno por meio da análise da religiosidade envolvida nos dos santos de cemitério. Dando enfoque em dois aspectos: Maria Bueno enquanto homem-comum, a análise da vida de Maria Bueno; e Maria Bueno enquanto objeto de culto, representações de sua santidade.

No final do século XIX, mais precisamente em1854, nasceu Maria da Conceição Bueno, no seio de uma família pobre e conturbada. Maria nasceu no dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição e foi batizada em sua homenagem. Posteriormente, quando a própria Maria se tornaria uma santa de cemitério, seria lembrada apenas como Maria Bueno. Conta-se que desde que nasceu já persistia em torno de si uma aura mítica.

Sua insígnia começa a tomar forma quando decide partir de Rio da Prata, sua terra natal, para começar uma vida nova e solitária em Curitiba. Seu modo de vida era considerado pouco convencional para uma cidade que nesse momento despontava para o crescimento e ainda compartilhava de uma mentalidade interiorana. Morava sozinha, não tinha pudor em desfrutar da vida social dos bailes e festas e era provedora de seu próprio sustento. Desafiava os bons costumes da época ao rejeitar uma figura masculina como protetor e provedor.

Maria Bueno é um personagem histórico que nasceu com sua morte. Partindo desse princípio, escolhemos dar ênfase aos aspectos sociais, para melhor atender ao objetivo deste

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22 a 26 de Outubro de 201280

TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM

artigo a respeito de um objeto que poderia definir, nas palavras de Michel de Certeau (1974), como homem-comum. Para analisar sua história, buscaremos no conceito de lugar social, compreender os fatos que formaram o caráter humano de Maria Bueno.

Quando se fala em Religiosidade Católica, é impossível dissociar as doutrinas da Igreja das imagens dos santos. Desde a constituição da cristandade católica essas figuras míticas estiveram presentes como modelo de virtude e valores morais a serem seguidos. Mas o que é necessário para ser um santo? Para a Igreja Católica, santo é aquele que durante a vida se arrependeu de seus pecados e se propôs a uma vida de santidade e dedicação aos preceitos de Deus - da Igreja - e também da divulgação da boa nova de Jesus. Mas, só será santo perante a Igreja Católica aquele que em morte tiver seus milagres atestados pelo Papa, passar pelo processo de beatificação e for depois canonizado. Portanto não basta ter fiéis que atestem seus milagres, há um grande processo burocrático para que três milagres sejam comprovados.

Porém para aqueles que necessitam de auxilio espiritual, o que mais importa é a graça alcançada, independente da sua legitimidade perante o Vaticano. Essa mentalidade leva ao culto dos chamados Santos Populares, que podem assumir diversas formas de culto como as romarias, o culto em grutas onde imagens de santos foram achadas, o culto a pertences dos mortos que se tornaram santos e o culto aos Santos de Cemitério.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E RELIGIOSIDADES

Realizaremos um breve discurso sobre o conceito de Religião Institucional e Religiosidade como também uma análise acerca de como a religião/religiosidade tem influenciado a sociedade, e ajudado a moldar seu caráter histórico. Segundo Andrade a religiosidade católica são todas as manifestações e crenças ligadas ao catolicismo, ainda que estas práticas não sejam em parte ou totalmente reconhecidas oficialmente pela Igreja.

É um contato com um transcendente que, apesar de estar fortemente ligado ao institucional, ao mesmo tempo distancia-se dele, num processo de apropriação que muitas vezes marca um conflito simbólico na adoção de crenças e práticas não sancionadas. (ANDRADE, 2010, p.132).

De acordo com Andrade (2010) a fé não se preocupa com instituições, o devoto acredita estar vivendo sua religião e os cultos praticados em cemitério, destinado ao que chamamos de santos populares, é a manifestação material dessa forma de religiosidade. Os cultos em cemitérios estão espalhados por diversas regiões do Brasil e historicamente estão tanto ligados aos aspectos milenares do culto aos mortos, como também traduzem uma adaptação do povo, do culto institucional aos santos, para a sua realidade.

Para a história, cultuar santos em seus jazigos não é novidade, foi exatamente assim que os primeiros cultos aos santos começaram. Nos primórdios do cristianismo, como atesta

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22 a 26 de Outubro de 201281

MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA

Andrade (2010), os devotos dos primeiros santos se dirigiam para onde estes estavam enterrados e lá faziam orações, pedidos de interseção e depositavam oferendas. Com o tempo para abrigar essas relíquias depositadas por seus fiéis, foram sendo construídas capelas ao redor desses sepulcros; e os santos mais populares acabaram ganhando construções maiores, os templos. Foi assim que surgiram as primeiras igrejas dedicadas aos santos. Portanto, historicamente falando, todo santo em seu primórdio era um santo de cemitério. Hoje em dia institucionalizados como Santos Padroeiros Locais.

Dando continuidade ao discurso de Andrade (2010) a respeito da historicidade dos santos, descobrimos que os primeiros santos a serem cultuados foram os mártires e que a devoção por eles foi dada de maneira espontânea, como se o povo reconhecesse uma divindade naquele que sofre em nome de Cristo. Com o passar do tempo, porém, o conceito de mártir passou a abranger não apenas aqueles que davam a vida para defender a palavra de Cristo, mas também aqueles que morriam de forma violenta, provocada por homicídio ou doenças graves que causavam períodos prolongados de dor e sofrimento. O sofrimento na Terra representaria a redenção por seus pecados e a morte uma possibilidade de purificação. Neste contexto, apresentamos Maria Bueno, uma santa de cemitério, cultuada no Cemitério Municipal de Curitiba onde jaz seu corpo, e considerada como mártir por seus devotos.

FONTES DE ANÁLISE PARA O OBJETO MARIA BUENO

As informações obtidas até o fechamento deste artigo é que Maria da Conceição Bueno, era de uma família humilde de pouca instrução, que sua mãe foi Júlia Bueno e seu pai Pedro Bueno. Quando Maria Bueno tinha 15 anos de idade, Pedro se alistaria no exercito como voluntário na guerra do Paraguai e acabaria morrendo logo depois. Não tardou muito, e outro infortúnio na vida de Maria Bueno levou também sua mãe, restando a ela ir morar com sua irmã Maria Rosa que a maltratava. Para fugir dos maltrato da irmã, Maria Bueno partiu para Curitiba com a ajuda de alguns padres locais. Lá se estabeleceu e permaneceu até sua morte. (KOSTER, 2011).

Desde o início a história de Maria Bueno mistura realidade com elementos da fé, como a própria narrativa de seu nascimento.

“Na noite do nascimento de Maria Bueno, sua mãe estava contente porque, na véspera, sonhou que havia visto uma santa muito bonita entrar em seu quarto. Ela teve vontade de gritar, não de medo, mas de alegria. A Santa, porém, fez um sinal, dizendo-lhe: “Júlia, não temas”. Eu sou a Mãe de Jesus. Venho avisar-te que vais dar à luz a uma menina, e que está reservada a ela uma grande missão sobre a terra. Será uma alma milagrosa, que há de fazer muitos benefícios, aos seus semelhantes. Tenha Fé e Confiança”. Contam que Pedro Bueno, embriagado, quis matar Maria Bueno, quando nasceu. Quando se preparava para arrebatar a cabeça da criança com uma garrafa, uma forte luz bateu em sua cabeça, fazendo-o cair desfalecido. Depois disso acordou diferente. Transformou-se num bom homem.

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22 a 26 de Outubro de 201282

TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM

Deixou de beber e adorava Maria Bueno. (KOSTER, 2011) 1

As pesquisas em sites que se propõem à contar a biografia de Maria Bueno indicam, por um lado, que ela era uma jovem bonita e que apesar dos costumes da época frequentava bailes desacompanhada e gostava muito de dançar. Numa dessas noites conheceu o soldado do Exército, Ignácio José Diniz. Depois de alguns encontros as escondidas ele insistiu e foi morar junto com Maria Bueno, causando certo constrangimento na sociedade da época. Talvez esse fosse o motivo que levaria a difamação de Maria Bueno em vida e a dificuldade de sua aceitação como santa pela Igreja após a morte. (KOSTER, 2011).

Outra versão, ao contrário, diz que Maria Bueno era humilde e trabalhadora e que seria incapaz de manchar sua honra se envolvendo de maneira perniciosa com um homem de má índole como Ignácio Diniz. Além disso, teria permanecido pura até sua morte, motivo pelo qual poderia ser uma verdadeira santa perante a Igreja Católica. Mas não há como discordar sobre o fato de sua morte e nem de seu assassinato: Maria Bueno foi assassinada na noite de 29 de janeiro de 1893, com 39 anos, quando passava por um matagal na Rua Campos Gerais, a atual Vicente Machado, entre Visconde de Nácar e Visconde do Rio Branco. Zona do meretrício da época. Teve quase a cabeça e as mãos separadas do corpo à navalhada, por Diniz, que foi preso, julgado e absolvido. (KOSTER, 2011).

A repercussão da morte chamou muito a atenção na época pelo fato de ter sido o primeiro crime passional2 de Curitiba. Até então, não havia registro de um crime como este. Chocada, a população por curiosidade ou comoção, começou a frequentar o túmulo de Maria Bueno. Logo, começaram a surgir as primeiras placas de agradecimentos colocadas por fiéis, que diziam terem sidos agraciados por Maria Bueno. Em 1962, foi inaugurada na primeira Rua do Cemitério São Francisco de Paula a capela de Maria Bueno, onde estão até hoje os restos mortais. Com uma imagem em tamanho real, local para acenderem velas à alma de Maria Bueno e local para oração. Santa ou não, segundo a administração do cemitério, no Dia de Finados o túmulo de Maria Bueno recebe em média 3 mil visitantes por dia. O muro em frente à capela está quase tomado por placas de agradecimentos, com datas que vão de 1983 até os dias atuais. Fiéis de todo o Brasil e exterior frequentam o túmulo, aberto todos os dias (SILVA, 2011).

DIÁLOGO COM HISTORIADORES MENTAIS PARA JUSTIFICAR A ESCOLHA DE UM PERSONAGEM AMBÍGUO

Maria Bueno, uma santa de cemitério, com história de vida dúbia e acusada de prostituição, foge do estruturalismo da Igreja Católica Oficial. Primeiro porque não foi canonizada e mesmo

1 KOSTER, Julia. Maria Bueno - Um Crime Passional e a Construção de uma “Santidade” Popular. Disponível em: http://www.mariabueno.com.br/maria-bueno-construcao-de-uma-santidade-popular/. Acesso: 21/08/2011.

2 KOSTER, Julia. Maria Bueno - Um Crime Passional e a Construção de uma “Santidade” Popular. Disponível em: http://www.mariabueno.com.br/maria-bueno-construcao-de-uma-santidade-popular/. Acesso: 21/08/2011.

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MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA

assim é cultuada e desperta grande devoção até os dias atuais. Segundo porque não viveu em santidade e mesmo assim é reconhecida como santa pelos seus fiéis. E historicamente foge também do determinismo de que só grandes heróis reconhecidos como tal, e não pessoas de vida comum merecem “fazer parte da história”.

Para justificar nossa escolha de estudar as representações da religiosidade em Maria Bueno seguiremos a linha de pensamento de três autores: em primeiro lugar, o surgimento da religião como disciplina inerente a História, através de Jacqueline Hermann; em segundo lugar, o estudo de Maria Bueno enquanto exemplo da religiosidade a partir de Solange Ramos de Andrade. E por fim, a escolha de Maria Bueno como objeto de estudo histórico através de Pierre Nora e Jacques Le Goff.

A Religião como disciplina surgiu porque mesmo com o racionalismo se instando como palavra de ordem, ainda havia - e há - a persistência de expressões da religiosidade guiando a sociedade. Segundo Hermann (1997), em “História das Religiões e Religiosidades”, foi ao longo do século XIX e início de XX, que a história das religiões se instaurou como disciplina específica, da necessidade de se aprofundar relações entre a defesa do caráter racionalista do homem ocidental e a persistência de formas de expressões ainda classificadas como religiosas. A princípio conferia-se a religião um sentido pragmático, porque tinha o papel de reestruturar a vida em grupo através de uma reaproximação com o passado ritual e mítico. Hermann acrescenta ainda que o papel da sociologia foi fundamental para o desenvolvimento da religião e religiosidade, motivo pelo qual até hoje é inseparável a História da Sociologia quando se pretende estudar a religiosidade dos povos.

Para Hermann a religião se definiria a partir de uma dicotomia sagrado/profano que ora se completam hora entram em embate. Mas que seria impossível um existir sem o outro, são conceitos intrínsecos que precisam que um exista para o outro poder se manifestar. Hermann distingue Religião de Religiosidade da seguinte forma. Segundo a autora, Religião estaria relacionada ao conceito de funcionamento da estrutura e organização do clero e da pregação religiosa, incluindo as formas de proselitismo religioso, a disciplina clerical e a normatização do ritual, a exemplo das diversas histórias institucionais da Igreja. Já na religiosidade, ao superar obstáculos etnocêntricos, os indivíduos terminariam por fomentar novas abordagens no contexto religioso que se enquadrariam no conjunto de produções da chamada história cultural, onde a história das religiosidades pode ser englobada (HERMANN, 1997). Fechando o discurso de Jacqueline Hermann, chega-se ao ponto onde Religião e Religiosidade se cruzam, esse contexto é chamado de hibridismo pela autora. O hibridismo pode ser definido como as relações históricas entre mitos e ritos encontráveis em diferentes momentos e lugares sociais, tornando possível utilizar um método comparativo de análise historiográfica para compreender a essência das experiências religiosas.

De acordo com Andrade, a busca para uma conceituação das manifestações populares

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TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM

no catolicismo coincide justamente com o período em que a Igreja percebe que esta perdendo fiéis para tais práticas, seja para expressões dissonantes como a Umbanda, Espiritismo, Protestantismo ou mesmo para vertentes dentro de sua própria doutrina como é o caso dos santos de cemitério (2010). Andrade afirma em sua obra, que mesmo com todas as dificuldades de interpretação que as manifestações religiosas impõem, elas devem ser vistas como um importante objeto para aprofundar a compreensão histórica das sociedades.

Para inserir Maria Bueno no presente artigo, enquanto um objeto histórico, partimos do princípio da subjetividade da História e o fato desta estar em constante mutação. Modificações estas que criam e recriam o tempo todo, novos objetos de estudos. O que passaria despercebido para gerações anteriores, hoje é foco de atenção acadêmica. Para seguir esta linha de raciocínio nos apoiamos em Nora e Le Goff (1974), que possuem teorias que justificam a importância do homem-comum como personagem historicizante a partir da abordagem de novos objetos históricos. De acordo com Nora e Le Goff em sua obra “História: Novos problemas” (1974), a história não é o absoluto dos historiadores do passado, mas o produto de uma situação, de uma história. Essa constante mutação faz com que os historiadores estejam constantemente se interrogando a respeito de como interpretar as novas histórias que surgem. Partindo da premissa dos novos objetos de Nora e Le Goff, podemos atribuir a Maria Bueno o lugar de centro de discussão histórica, pois ela constitui em si todas as características de um novo objeto, tanto por ser mulher, excluída socialmente, moralmente dubitável e por fazer parte do legado dos santos de cemitério, grupos de santos notadamente discriminados pela Igreja Católica. Citando novamente Nora e Le Goff (1974) a história nova se afirma como tal, ao anexar novas disciplinas fora do território da história. Na análise sobre a santidade de Maria Bueno é imprescindível a anexação do campo social, pois por Maria Bueno se tratar de um personagem carente de documentos históricos oficiais, se torna impossível estudá-la sem levar em conta aspectos sociais como a subjetividade da fé, o lugar social onde Maria Bueno formou seu caráter humano e as transformações sociais que ocorreram na mentalidade de seus devotos para elevá-la de condenada, à mártir e posteriormente santa.

CONTEXTO HISTÓRICO COMO FATOR DETERMINANTE EM UMA ANÁLISE

Para nos ajudar a pensar os aspectos da vida e culto pós-morte de Maria Bueno consideramos necessário primeiro entender o contexto histórico em que ela viveu e o que levou as pessoas, a considerar Maria Bueno como uma santidade. Dialogando com Certeau (1974), o lugar social consiste na época e no local onde aconteceu o fato histórico a ser estudado. Segundo o autor não se trata apenas de uma local físico, mas de todas as influencias pela qual o objeto histórico passou até construir seu caráter humano. Poder-se-ia dizer que fatos desde o nascimento até sua morte, e como cada um deles foi recebido pelo personagem e futuramente como esses acontecimentos definiram seu modo de pensar e agir, e como influenciaram em suas escolhas. Somente a partir do lugar social, é possível compreender os aspectos históricos constitutivos

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MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA

em Maria Bueno.

Para compreender como uma mesma figura mítica pode tomar diferentes conotações de acordo com quem a aborda, Roger Chartier em sua obra “Textos, Impressão, Leituras” (1992) nos auxilia na análise de como as pessoas interpretam a figura de Maria Bueno. No trecho abaixo, de sua obra, exemplifica-se bem esse conceito de leitura e interpretação:

A questão é simples: como é que um texto, que é o mesmo para todos que leem, pode transformar-se em instrumento de discórdia e de brigas entre seus leitores, criando divergências entre eles e levando cada um, dependendo de seu gosto pessoal, a ter uma opinião diferente? (CHARTIER, 1992, p.02)

Quando Chartier fala a respeito de leitura, não se refere apenas aos textos impressos e livros, mas a toda leitura que um ser humano faz, a partir de seu próprio olhar e convicções, a respeito de um dado personagem ou de um fato histórico. Para Chartier, o homem-comum tem o direito de julgar os acontecimentos de acordo com sua bagagem cultural, ele vê os fatos e tira conclusões de acordo com a educação que recebeu a época em que vive e os valores pessoais. Portanto a mesma atitude de um personagem pode ser interpretada para o bem ou para o mal de acordo com a testemunha ocular. Já para um historiador cabe apenas compreender o fato, tomando cuidado de analisar cada objeto em seu contexto histórico para não cometer o anacronismo. Ressaltando mais uma vez que a historia de Maria Bueno é feita em sua quase totalidade de relatos orais, a metodologia de Chartier quanto à interpretação de leitura se torna indispensável. De acordo com o autor a crença e descrença andam juntas, e a aceitação da verdade naquilo que se lê ou ouve não diminui as dúvidas fundamentais a cerca dessa suposta autenticidade.

JORNAIS: FONTE DE CONHECIMENTO POPULAR DE UMA ÉPOCA

Para o desenvolvimento de nossa pesquisa, o uso do periódico foi imprescindível como documento histórico, principalmente ao narrar sua morte trágica, pois através dessa morte é que se cria o mito de Maria Bueno. Este artigo propõe um espaço para a apresentação de tais análises.

Por meio da metodologia de Luca (2008), pretendemos compreender como a morte de Maria Bueno foi recebida pela sociedade do final do século XIX, como as pessoas a descreviam antes do mito de santificação. E principalmente quando e de que forma começou a surgir a devoção por ela até que fosse afirmada santa por seus fiéis

O principal jornal a ser analisado é “A Gazeta do Povo”, a partir do levantamento das reportagens sobre Maria Bueno no decorrer do desenvolvimento da pesquisa, além de outros periódicos da época de sua morte. Por muito tempo acreditou-se que apenas documentos oficiais eram dignos se serem objetos históricos, ignorando outras fontes históricas, como os jornais. De

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TÔNIA KIO F. PICCOLI; SOLANGE R. DE ANDRADE; VANDA F. SERAFIM

acordo com os críticos do periódico como fonte metodológica, isto ocorria porque os jornais apresentam registros fragmentários do presente e porque fornecem uma visão parcial, distorcida ou subjetiva dos fatos; como afirma Tania Regina de Luca (2008) no capítulo “História dos, nos e por meio dos periódicos”, contido na obra “Fontes Impressas”. Porém, como observa Luca, esse panorama começou a mudar a partir da década de 1930, com a Escola do Annales que abriu a disciplina histórica para uma nova forma de abordagem do contemporâneo, usando elementos do cotidiano para analisar objetos antes relegados ao anonimato.

No trecho abaixo, Luca expressa como seria essa transformação da visão histórica:

A face mais evidente do processo de alargamento do campo de preocupação dos historiadores foi a renovação temática, imediatamente perceptível pelo título de pesquisa, que incluíram o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os filmes, os jovens e as crianças, as mulheres, aspectos cotidianos, enfim uma miríade de questões antes ausentes do território da História. (LUCA, 2008, p.113)

Seguindo o discurso da autora, tais mudanças alteraram a própria concepção de documentos, abrindo a possibilidade do jornal se tornar fonte de estudo para os historiadores. Luca afirma ainda que a forma como um documento é escrito, é tão ou mais importante do que seu conteúdo. Para usar um termo de Luca, o jornal é a ‘enciclopédia do cotidiano’; através da escrita contida em suas páginas podemos visualizar uma sociedade, ou um grupo social. Isto, é, por intermédio de um periódico enxergamos a mentalidade de uma época. O que está impresso, expressa a importância que foi dada a cada fato histórico, tenha ele repercutido em pequena ou grande escala. Qual o impacto de determinada notícia na opinião pública, o que anseiam os cidadãos, pelo o que lutam? Luca propõe que, um historiador pode entender uma sociedade em seu contexto histórico ao analisar a forma e intenções verificadas em sua forma de escrita. É justamente a dubiedade com que Maria Bueno é retratada que nos permite pensar suas distintas representações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Solange Ramos de. O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo. In: Revista Brasileira de História das Religiões. Ano III. n.7, Mai, 2010. Disponível em: <http://www.dhi.uem.br/gtreligiao>. P. 131-145.

ANDRADE, Solange de. A tolerância como estratégia da igreja católica frente à religiosidade. In: Tolerância e Intolerância nas manifestações religiosas. Manoel, Ivan A.; ANDRADE, Solange Ramos (orgs.). Franca: UNESP – FHDSS, 2010. p. 43 – 155.

ANDRADE, Solange de. A identidade Católica: entre a religião e a religiosidade. In: Manoel,

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22 a 26 de Outubro de 201287

MARIA BUENO: UM DIÁLOGO SOBRE RELIGIOSIDADE CATÓLICA

MANOEL, Ivan; ANDRADE, Solange Ramos de. Identidades Religiosas. Franca: UNESP – FHDSS; Civitas Editora, 2008. P. 253 – 281.

ANDRADE, Solange Ramos de; SERAFIM, Vanda Fortuna. A religiosidade católica e seus santos: o Cemitério Municipal de Maringá/PR como espaço de devoção. História Agora, v. 10, 2010, p. 103 - 136.

CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LEGOFF, Jacques; NORA, Pierre (org). História novos problemas. 4.ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves , 1974. P. 17 – 48.

CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leitura. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1992.

HERMANN, Jacqueline. História das religiões e religiosidades. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da historia: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Introdução. In: ____. Historia novos problemas. 4. ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves ,1974. P. 11-15.

LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINKSY, Carla (org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. P. 111 – 154.

REFERÊNCIAS DE JORNAIS

KOSTER, Julia. Maria Bueno - Um Crime Passional e a Construção de uma “Santidade” Popular. Disponível em: http://www.mariabueno.com.br/maria-bueno-construcao-de-uma-santidade-popular/. Acesso: 21/08/2011.

SILVA, Vanusa Pereira da. Maria Bueno, mito, verdade ou crença popular. Disponível em: http://www.sesfepar.org.br/documentos/curiosidades/HistoriadeMariaBueno.pdf. Acesso: 21/08/2011.

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22 a 26 de Outubro de 201288

O INDIVIDUALISMO OITOCENTISTA E A RENOVAÇÃO CATÓLICA CONTEMPORÂNEA:

DEBATE SOBRE A RACIONALIDADE

Gabriel Farias Galinari; Patrick Aparecido Trento

1 Graduando em História pela Universidade Estadual de MaringáMembro do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades

2 Graduando em História pela Universidade Estadual de MaringáMembro do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades

Resumo: Baseado em leituras acerca das origens do pensamento moderno, levantou-se o interesse sobre o modo como a racionalidade é tratada em diferentes épocas e por distintos segmentos, cada qual com suas próprias interpretações, segundo autores aqui representados por Friedrich Nietzsche e o papa João Paulo II. Com esse trabalho pretendemos ampliar o leque sobre a imagem tradicional construída a partir destes autores, buscando fugir das abordagens dominantes a fim de expandir os horizontes no debate acerca desse assunto. Almejamos a geração deste trabalho a partir de análises bibliográficas e comparação metodologicamente rigorosa das fontes de pesquisa, utilizando obras de centralização das ideias tais como, A Genealogia da Moral, Ecce Homo e da carta encíclica Fides et Ratio.

Palavras-chave: Nietzsche; João Paulo II; Fé; Razão; Modernidade; Igreja; Individualismo; Verdade; Subjetividade.

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22 a 26 de Outubro de 201289

O INDIVIDUALISMO OITOCENTISTA E A RENOVAÇÃO CATÓLICA CONTEMPORÂNEA: DEBATE SOBRE A RACIONALIDADE

A IGREJA CATÓLICA E A MODERNIDADE

A humanidade não atravessa os séculos dedicando-se a uma mesma coisa. Os valores mudam, por vezes se invertem, as prioridades se transformam e a forma de ver e pensar o mundo sofre alterações. Se antes prezávamos a objetividade em nosso pensamento, hoje é a subjetividade que ocupa seu espaço. Mas para saber como isso ocorreu, precisamos recorrer à história, filosofia, sociologia, psicologia e diversas outras áreas do saber que nos proporcionem o devido entendimento acerca dessa transformação.

Para melhor compreensão do debate que faremos a cerca da racionalidade, neste artigo, é necessário uma contextualização histórica a cerca do mesmo. Antes de debatermos F. Nietzsche ou João Paulo II, precisamos conhecer as questões que, de certa forma, precederam o diálogo que faremos entre ambos. Apoiamo-nos, então, em João Batista Libanio, padre e professor de Teologia Fundamental do CES (Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus), e em sua obra Igreja Contemporânea: encontro com a modernidade (2002), para entendermos, sobretudo, o embate da Igreja Católica com a modernidade.

Segundo Libanio, em fins da Idade Média e início da Modernidade, surge um novo modo de pensar, uma nova forma de organizar o saber, oriunda das ciências naturais, como a matemática e a física. Tal paradigma se diferencia de outros campos, como o senso-comum, devido aos seus limites metodológicos muito bem vigiados. A todo e qualquer outro modelo, que não siga suas bases e modelos, é negada a racionalidade, tornando essa nova corrente do pensamento uma ruptura nos paradigmas anteriores. O mesmo, portanto, fundamenta-se, sobretudo, nas ideias e leis de pensadores como Kepler, Galileu, Copérnico, Newton e na base filosófica que principalmente Bacon e Descartes deram. A dita “ciência moderna” dedica-se, então, em separar o homem da natureza e pauta-se na dúvida nas evidencias da experiência humana imediata, valendo-se de “leis” que tem por objetivo padronizar e dominar a dita natureza.

Esse mundo moderno que, segundo o autor, se apresenta por meio da ciência apareceu como a maior ameaça à integridade de uma instituição: a Igreja Católica. Em sua visão, se a Igreja Católica estava “ameaçada”, isso significava que a sociedade, em linhas gerais, passava por transformações que a referida instituição parecia não conseguir acompanhar.

Libanio expõe que, o primeiro embate da Igreja Católica com a modernidade, talvez tenha ocorrido com a Reforma Protestante, quando Lutero propôs sola fide, sola gratia, sola Scriptura (somente pela fé, somente pela graça, somente pela Escritura), anunciou, além do valor teológico destas palavras, o avanço da modernidade sobre o campo religioso. Quando opôs-se ao fiel encontrar-se com Deus, sozinho, em seu interior, numa atitude pessoal, quando sente-se desconfortável com a santificação pela graça do fiel e quando nega a interpretação própria do fiel das escrituras, necessitando de alguém que faça tal ato por ele, a Igreja nega e entra em conflito com alguns aspectos importantíssimos do início da modernidade e acaba

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22 a 26 de Outubro de 201290

GABRIEL FARIAS GALINARI; PATRICK APARECIDO TRENTO

se fechando para ela. Nega-se, portanto, o caráter pessoal do homem, a autonomia humana, sua individualidade e sua subjetividade em detrimento da objetividade visível que a tradição católica possuía. O Concílio de Trento, embora tenha tirado a Igreja da Reforma, não ajudou na abertura da mesma para os tempos modernos.

Vale ainda ressaltar, segundo o autor, a questão de alguns pensadores que realmente colocaram a instituição “contra a parede”. Um deles foi Erasmo de Rotterdam (1467-1536), considerado um dos mais notáveis humanistas do século XVI. Em suas obras, atacou ferrenhamente os diversos estamentos da Igreja, não deixando de lado teólogos e monges, causando imenso impacto devido à enorme influência que possuía em seu tempo. A situação era tão tensa, que mesmo os membros da Igreja dedicados aos estudos humanísticos, reservavam imensas críticas as suas obras devido ao caráter e espírito antieclesiásticos.

O outro pensador apresentado por Libanio em sua obra (2002) foi Galileu Galilei (1564-1642). Sua importância possui natureza diferente da de Erasmo. As ideias de Galileu marcam o pensamento moderno por entrarem em choque com a visão católica do mundo que garantia ao homem um lugar privilegiado sob os olhos de Deus. Não era, portanto, somente uma questão científica, física ou matemática, mas também religiosa. O novo paradigma entra em oposição cultural ao cristianismo vigente e à visão aristotélica de mundo. O “pensar livre” entra em contradição e questiona uma Igreja fechada na Tradição e no entendimento literal das Escrituras. Sendo assim, os atos movidos contra Galileu não tiveram importância apenas pela mudança da imagem heliocêntrica. Mostrava-se, contudo, como um ponto de referência entre duas maneiras distintas de se enxergar o mundo, dois modos de pensar, duas convicções.

No século XVIII, com a Revolução Francesa e com o Iluminismo, o autor expõe o fato de que os embates contra a Igreja se intensificam. O fechamento da Companhia de Jesus, pelo papa Clemente XIV, deixa a instituição desprovida de uma ordem com alto conhecimento intelectual, fechando-a mais ainda para a modernidade. Pensadores como Voltaire, Diderot, d’Alembert e Kant, movem mais uma força que violentamente se opõe à tradição e ao caráter objetivo da religião, prezando a dita “racionalidade” acima de todas as outras formas de pensamento. Já no século XIX e início do século XX, em que o choque com a modernidade é ainda maior, a Igreja se esbarra em autores que são suspeitos de “radical humanismo ateu”: Marx, Nietzsche e Freud. Deixaremos Marx e Freud de lado e iremos focar nossas atenções em Nietzsche.

O CONCÍLIO DO VATICANO II

Em meados do século XX, com a morte de Pio XII, a Igreja Católica vê-se diante de um novo papa: João XXIII. Mais intuitivo e menos intelectual do que seu antecessor, segundo Libanio, João XXIII fora escolhido com um “papa de transição”, ou seja, alguém para aguardar a chegada daquele que realmente seria considerado o sucessor efetivo de Pio XII, em toda sua

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22 a 26 de Outubro de 201291

O INDIVIDUALISMO OITOCENTISTA E A RENOVAÇÃO CATÓLICA CONTEMPORÂNEA: DEBATE SOBRE A RACIONALIDADE

grandeza. Embora visto como tradicionalista, João XXIII era aberto a mudanças e dotado de uma preocupação social por parte da Igreja, o que o levou a reunir, em 11 de outubro de 1962, mais de 2.500 padres em um concílio, chamado de Vaticano II, que decidiria os rumos do catolicismo contemporâneo.

O principal discurso do concílio foi “abrir a doutrina tradicional ao pensamento moderno e promover a unidade da família crista e humana”, e era carregado principalmente por um grande grupo de conciliares denominado pelo autor de “progressistas”, em oposição a uma minoria “tradicionalista” formada por bispos de diversos países ligados à burocracia eclesiástica, que possuíam receio de que a abertura ao mundo moderno viesse a corroer a fé e as práticas cristãs.

Em suma, o Concílio do vaticano II voltou a Igreja para uma questão mais social e abriu espaço para a interpretação do evangelho promovendo diversos diálogos da Teologia com a modernidade, introduziu também as línguas vernáculas ao invés do latim na liturgia e fez-se revisar em diversos pontos a vida interna da Igreja valorizando atuação da “colegialidade episcopal”, como aponta Libanio (2002). O autor também indica outras mudanças, expondo a relação da Igreja com os Protestantes:

As transformações atingiram também a própria auto compreensão da Igreja e das suas fontes de vida. A Igreja apoia-se na revelação de Deus expressa na Sagrada Escritura e na Tradição. Estas eram ate então vistas coma duas fontes paralelas. Os protestantes, par sua vez, privilegiavam a fonte única da Escritura. Assim, durante séculos, as teologias católica e protestante discutiram a questão da existência de uma ou de duas fontes da revelação. O Concilio, em espírito ecumênico, buscou uma posição mais facilmente aceitável pelos protestantes afirmando que a Escritura e a Tradição são estreitamente unidas e comunicantes,

formando uma só fonte divina. (LIBANIO, 2002 p. 75).

E continua:

[...] Para a Igreja Católica, o Concilio Vaticano II transformou- se na maior façanha dos últimos séculos. Arrancou- a de um imobilismo defensivo diante das críticas da Reforma e da modernidade triunfante. Lançou-a na aventura imprevisível do dialogo com esses seus dois maiores inimigos. E ela empreendeu esse dialogo com coração aberto e destemido. Por isso, os anos seguintes ao Concilio serão carregados de tensões, feitas de esperanças e medos, de avanços e recuos, de coragem e temor. (LIBANIO, 2002 p. 76).

As mudanças externas e internas foram diversas, mas os anos pós-conciliares foram decisivos para estabelecer o sucesso ou o fracasso do Vaticano II. Segundo o autor, os tradicionalistas, que haviam perdido espaço nas decisões do Concílio (embora alguns de seus pontos tivessem sido considerados), voltaram a ganhar força nos vinte anos que se seguiram após

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22 a 26 de Outubro de 201292

GABRIEL FARIAS GALINARI; PATRICK APARECIDO TRENTO

a realização do mesmo. Em sua visão tradicionalista a Igreja não havia alcançado o desejado. Acusaram-na de superficialidade e subjetividade exacerbada no que se referia à liturgia, de não conter o avanço da secularização e do ateísmo, do materialismo, da indiferença, da injustiça no mundo, e, sobretudo, de não conter o avanço do individualismo crescente (que se arrastava desde muito antes e ganhara força no século XIX), produzindo efeitos negativos também em seu interior. As divergências entre progressistas e tradicionalistas chegaram a tal ponto que Libanio aponta uma espécie de cisma quando alguns bispos e cardeais passaram utilizar uma hierarquia diferente da desejada pelo papa, durante o papado de Paulo VI e João Paulo I.

Todavia, o que mais nos interessa e que foi apontado na obra de Libanio, é a relação da Igreja com a ciência moderna. É principalmente na leitura das Escrituras que a Igreja pós-conciliar passa então a recorrer ao auxílio das ciências, ou seja, o sentido rígido e literal abre-se ao campo da interpretação. E é no papado de João Paulo II, depois da publicação de sua décima segunda encíclica, Fides et Ratio (1998), que a instituição tenta se aproximar do mundo das ideias.

Contudo, por que Fides et Ratio? As demais publicações que anteviram o Concílio do Vaticano II e as publicações posteriores (tais como Rerum Novarum de Leão XIII aos trabalhadores: Mater et Magistra de João XXIII sobre a questão social à luz da doutrina cristã: e Pacem in Terris, do mesmo, a cerca da paz de todos os povos), não eram suficientes para estabelecer de fato um vínculo com o mundo moderno e/ou pós-moderno? Fato é que, segundo Sylvio Fausto Gil Filho (doutor em história e professor da Universidade Federal do Paraná), Fides et Ratio não é uma encíclica diretamente direcionada a sociedade, de uma forma, geral, mas ao pensamento, as ideias. Segundo ele:

É um discurso elaborado para se contrapor à fragmentação do mundo das ideias. Trata-se de uma mensagem destinada ao mundo da filosofia e da teologia na tentativa de restaurar a autoridade da Igreja como mantenedora da «única verdade» diante da pluralidade do pensamento científico e especulativo. (GIL FILHO, 2002 p. 4).

RACIONALIDADE, VERDADES E REFERENCIAIS

Agora contextualizados, podemos abrir o leque de discussões a cerca da racionalidade. Ao se falar de pluralidade e fragmentação de pensamento, logo pode-se imaginar o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) que certamente foi, em seu período de atividade, um dos maiores críticos das doutrinas cristãs. Segundo, Néstor Juan Gómez Beretta (Professor de Filosofia da Universidade Complutense de Madrid), as articulações de seu pensamento apontavam para uma incompatibilidade com as ideias e modos de agir preconizados pela Igreja de seu tempo.

Indo mais além, seus escritos expressam uma fúria para com as mais diversas instâncias da cultura ocidental do século XIX, tendo-os por objetivo, muitas vezes, a destruição de todos

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os aspectos culturais que, segundo o próprio autor, negassem a vida, ou seja, ameaçassem a sobrevivência humana ou nos privassem de uma existência plena, como exposto em Ecce Homo, de 1888.

Tradicionalmente, o que não deixa de ser mais ou menos verdadeiro, os preceitos cristãos são entendidos na obra de Nietzsche, como uma grande face dessa cultura que nega a vida, decadente, existindo, inclusive, em sua bibliografia uma obra destinada a esse embate: O Anti-Cristo, publicado em 1895. Porém, o que talvez não seja tão explorado, é a influência que tais críticas podem ter exercido nas transformações ocorridas no pensar da Igreja ao longo do século XX, principalmente em sua segunda metade.

Tais influências podem vir a ser sentidas em várias instâncias doutrinárias do catolicismo moderno. Entretanto, não cabendo a um trabalho dessa dimensão tratar da totalidade delas, ou de sua grande maioria, centrar-se à discussão em apenas umas poucas e já complexas perspectivas referentes ao papel que as críticas às doutrinas cristãs, expressas aqui em Nietzsche, no tocante às questões acerca da racionalidade e verdade, encontra na construção da realidade humana proposta pela Igreja ao final do século XX, representada aqui pela encíclica de 1998, Fides et Ratio, escrita pelo Papa João Paulo II, o então líder da instituição.

Já de início pode ser observada alguma similitude na problemática dada ao pensamento racional pelos dois autores; a de que a ampla valorização da racionalidade carregada pela cultura ocidental desde os tempos clássicos, traz adversidades para a condição humana. Contudo, cada uma das interpretações, logo em seguida, guiam-se para lados diferentes na busca por alternativas para essa tribulação.

O pensamento de Nietzsche é usualmente relacionado a uma filosofia das paixões, instintos, vontades, entendendo o modelo racional como uma distorção, uma doença, que nos encaminha para uma realidade cognoscível, repleta de senso, significado, todavia ilusória. Esta ilusão é explicada da seguinte maneira, a de que a partir de ações isoladas, quebrando-se a subjetividade e individualidade das mesmas, arbitrariamente são agrupadas em um só conceito, atribuindo-se aí um valor e sentido comum, objetivo e fictício.

Temos em A Genealogia da Moral, obra de 1887, uma amostra disso no tratado primeiro, no qual a origem de conceitos é analisada:

Como ocorre, por exemplo, na Europa de nossa época; hoje, o preconceito que revela algo de “moral”, “não-egoísta”, “desinteressado”, para conceitos de valor idêntico, se impôs, provido da força de uma “ideia fixa” e de uma doença mental. (NIETZSCHE, 2007 p. 25-26).

Ainda nesse mesmo tratado, o filósofo nos coloca que o motivo pelo qual esses conceitos encontram lugar no imaginário humano, se deve somente a uma decadência e distorção dos valores considerados nobres, seria o agir em rebanho, o instinto gregário¹, manifestando-se,

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pela simples acomodação e busca de aceitação social.

Desse modo, a rejeição por heranças culturais, moralidades e bases pré-estabelecidas, se torna na visão de Nietzsche, um caminho a ser seguido para uma existência em sua plenitude. Tomando por ponto de partida essa interpretação do pensador, pode-se identificar um conflito com as ideias expressas na encíclica Fides et Ratio.

Há aqui uma grande divergência e afastamento entre tal entendimento e o que o individualismo nietzschiano coloca, já que o que apoia os escritos do pontífice seria uma moralidade herdada, novamente o instinto gregário. Podemos pressupor explicitamente esse contraponto ao encontrar frases na encíclica como:

A sede de verdade está tão radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existência ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas. São respostas de cuja verdade estamos convencidos, até porque notamos que não diferem substancialmente das respostas a que muitos outros chegaram. (Fides et Ratio, p. 17)

Observa-se, uma continuidade, nesse aspecto, nas estruturas de pensamento daquele cristianismo examinado por Nietzsche, no final do século XIX, no qual o mesmo já identifica e critica tais faces da religião cristã. Porém, na época em que o filósofo ainda realizava seus escritos, ainda estavam em sua gênese os pensares que preconizam o abandono do metafísico e da relativização como pressuposto, que tinham o próprio autor alemão como um de seus expoentes.

O problema então reside em entender, como, após essas transformações nas ideias, o comportamento e o julgo cristão podem ser entendidos no que se refere ao papel a ser desempenhado pela Igreja nesse novo cenário.

Já no início da encíclica consegue-se enxergar uma crítica aos ideais relativistas, apontados como um problema que decorreu do abandono da valorização do transcendental na construção de conhecimento e que tornou o homem incapaz de atingir o saber verdadeiro. Dessa forma, ao ser inalcançável, a verdade acaba por ser negada, gerando descrença no poder dos recursos cognoscitivos humanos, o que se vê claramente em Nietzsche. Porém, o que o Pontífice nos propõe em seu escrito é que essa falha só se dá pela utilização errônea de tais recursos. A racionalidade aqui, portanto, não é entendida como ilusória, mas sim como incompleta, pois, ela só exprime a face da verdade quando trabalha em conjunto com a fé, ou seja, na realidade que o transcende.

Assim sendo, na visão católica presente na encíclica, quem é colocada como portadora da verdade, e dos meios possíveis de se consegui-la, é a Igreja. Nesse ponto é clara uma rejeição

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ao modo de vida do período no qual alguns pensadores (como Ernest Gellner) hoje nos inserem, chamado de pós-modernismo², no qual a perda dos referenciais morais é característico e que tem a já citada influência direta das ideias de pensadores como Nietzsche.

Gellner, em sua análise, coloca o período pós-moderno como um movimento, uma moda, em que elementos tidos como norteadores das práticas de construção de conhecimento da modernidade, estão sendo abandonados.

Uma dessas ditas práticas consiste na noção de progresso na qual a ciência moderna se pautou por séculos, caracterizado pela larga utilização do discurso positivista, que já não cabe nesse novo movimento. Como já dito anteriormente, como em Nietzsche, a verdade e a razão como instrumento para atingi-la são questionados. Esse período, não muito bem claro do que se trata ainda, é, portanto, grandemente aberto ao relativismo.

Entretanto, já desde o Concílio do Vaticano II, tal relativismo é criticado pela área tradicionalista da Igreja que, mesmo antes da publicação de Fides et Ratio, mostrava a fragilidade de expor as doutrinas e o pensamento da instituição ao relativismo, temendo a perda do senso divido, do espírito cultista. Há na Igreja católica, então, uma espécie de perda da força da sua autoridade institucional. As pessoas sentem-se mais livres, autônomas diante de leis e prescrições. E João Paulo II diz:

Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral. E, mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança na verdade. (Fides et Ratio, pág. 4).

Dessa forma, o papa, em seu escrito, traz a Igreja mais uma vez para seu lugar de detentora da “verdade”. A fim de atingir o verdadeiro conhecimento deve-se não somente ater-se à razão, mas também à fé proferida pelo catolicismo. O que afastou a Igreja da modernidade acaba sendo, séculos depois, o que a reaproxima da mesma.

Considero que todos os que actualmente desejam responder, como filósofos, às exigências que a palavra de Deus põe ao pensamento humano, deveriam elaborar o seu raciocínio sobre a base destes postulados, numa coerente continuidade com aquela grande tradição que, partindo dos antigos, passa pelos Padres da Igreja e os mestres da escolástica até chegar a englobar as conquistas fundamentais do pensamento moderno e contemporâneo. Se conseguir recorrer a esta tradição e inspirar-se nela, o filósofo não deixará de se mostrar fiel à exigência de autonomia do pensamento filosófico. (Fides et Ratio, pág. 46).

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GABRIEL FARIAS GALINARI; PATRICK APARECIDO TRENTO

Assim sendo, encerramos aqui o trabalho com ressalvas daquilo que provavelmente já foi explicitado: não procuramos aprofundar-nos na discussão acerca da racionalidade em Nietzsche e João Paulo II, por pressuposto de que nosso objetivo primário seja uma exposição inicial da mesma, com a provável intenção de ampliar a discussão neste campo teórico, segundo a visão dos autores aqui apresentados.

REFERÊNCIAS:

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.

BERETTA, Néstor Juan Gómez. Las creencias y la crítica a la religión en Friedrich Nietzsche. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2006.

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. História das ideias. In:_____. Domínios da história. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Cap. 4, p. 139-188.

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In:_____. Domínios da história. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Cap. 5, p. 189-241.

DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. Fé e saber. In:_____. A Religião. 2ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. Cap. 2, p. 11-90.

DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. O vestígio do vestígio. In:_____. A Religião. 2ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. Cap. 3, p. 91-108.

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

GELLNER, Ernest. Pós-Modernismo, Razão e Religião. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

FILHO, Sylvio Fausto Gil. Fides et ratio: notas para uma crítica ao discurso religioso. In: VIII Encontro Regional de História - PARANÁ: História e Historiografia. Curitiba: Anais do VIII Encontro Regional de História, 2002. Disponível em <http://www.geog.ufpr.br/gilfilho/arquivos/fides_et_ratio_discurso_religioso.pdf>. Acessado em: 17 de Setembro de 2012.

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O INDIVIDUALISMO OITOCENTISTA E A RENOVAÇÃO CATÓLICA CONTEMPORÂNEA: DEBATE SOBRE A RACIONALIDADE

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In:_____. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

LIBANIO, João B. Igreja Contemporânea: encontro com a Modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anti-Cristo. São Paulo: Martin Claret, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O paradigma dominante. In:_____. Um discurso sobre as ciências. 7ª Ed. Porto: Edições Afrontamento, 1995. Cap. 1, p. 10-22.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crise paradigma dominante. In:_____. Um discurso sobre as ciências. 7ª Ed. Porto: Edições Afrontamento, 1995. Cap. 2, p. 23-35.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O paradigma emergente. In:_____. Um discurso sobre as ciências. 7ª Ed. Porto: Edições Afrontamento, 1995. Cap. 3, p. 36-58.

WOJTYLA, Karol Józef. Fides et Ratio. 1998. Disponível em <http://www.vatican.va/edocs/POR0064/_INDEX.HTM>. Acessado em: 26 de Setembro de 2012.

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SOBRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA PRESENÇA LIBANESA EM FOZ DO IAGUAÇU

Danillo Alarcon; Douglas de Toledo Piza; Amani Rafic Sleiman; Amira Read Rahal; Bruno Vinicius Nascimento de Oliveira; Dominique Ribeiro Gentil; Fernanda Ferreira Chan

1 Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu.2 Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu.3Acadêmicos do curso de Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Foz do Iguaçu.

Resumo: A despeito de a migração libanesa para Foz do Iguaçu ter se consolidado como presença estrangeira notável, poucos avanços para o conhecimento acadêmico sobre ela foram feitos. Em um reino povoado de estereótipos, o senso comum continua sendo a fonte contumaz de informação sobre esta realidade. Esta comunicação tem a intenção de reconstruir a história da migração libanesa para Foz do Iguaçu a partir de material pessoal, especialmente a história oral e registros iconográficos. Adota-se a orientação teórico-metodológica da “experiência da microanálise” de Jacques Revel, segundo a qual micro-dados e fontes pessoalizadas podem contribuir para a compreensão de um fenômeno, cotejando a história social e a individual e variando os níveis de análise. Nossa hipótese a partir das entrevistas é que as quatro primeiras famílias chegaram em 1951, na esteira da emigração libanesa devido às penúrias da Segunda Guerra Mundial e à agitação quando da criação do Estado de Israel. São Paulo foi um destino possível, demonstrando a pregnância das redes sociais de migrações anteriores, mas outros preferiram desbravar novos caminhos e chegaram ao oeste paranaense. Pode-se dizer que a reconstrução histórica da migração libanesa por quem dela participam é um resgate à memória coletiva, cujos efeitos são não apenas a reconstituição do traçado familiar dentro da trajetória migratória social do grupo, como uma presentificação de tal história na medida em que recontá-la abre a possibilidade da autoidentificação atemporal individual e grupal a fim de combater os estigmas criados. Neste sentido, dar voz aos migrantes recontarem sua história encerrou na possibilidade de eles a fazerem como justificativa de sua presença histórica e contemporânea.

Palavras-chave: Migração; Libaneses; Foz do Iguaçu; Microanálise; História oral.

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SOBRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA PRESENÇA LIBANESA EM FOZ DO IGUAÇU

A despeito de a migração libanesa para Foz do Iguaçu ter se consolidado como presença estrangeira notável, poucos avanços para o conhecimento acadêmico sobre ela foram feitos. Em um reino povoado de estereótipos, o senso comum continua sendo a fonte contumaz de informação sobre esta realidade. Esta comunicação tem a intenção de reconstruir a história da migração libanesa para Foz do Iguaçu a partir de material pessoal, especialmente a história oral e registros iconográficos.

Nossa hipótese a partir das entrevistas é que as quatro primeiras famílias chegaram em 1950, na esteira da emigração libanesa devido às penúrias da Segunda Guerra Mundial e à agitação quando da criação do Estado de Israel. São Paulo foi um destino possível, demonstrando a pregnância das redes sociais de migrações anteriores (TRUZZI, 1993, 2008a e 2008b), mas outros preferiram desbravar novos caminhos e chegaram ao oeste paranaense.

Pode-se dizer que a reconstrução histórica da migração libanesa por quem dela participam é um resgate à memória coletiva, cujos efeitos são não apenas a reconstituição do traçado familiar dentro da trajetória migratória social do grupo, como uma presentificação de tal história na medida em que recontá-la abre a possibilidade da autoidentificação atemporal individual e grupal a fim de combater os estigmas criados. Neste sentido, dar voz aos migrantes recontarem sua história encerrou na possibilidade de eles a fazerem como justificativa de sua presença histórica e contemporânea.

Os perfis dos entrevistados variam e as entrevistas colhidas foram feitas em situações bem diversas. Foram realizadas cinco entrevistas semi-estruturadas e gravadas com pessoas que puderam recontar as histórias de suas próprias vidas ou, através da formação de associações étnicas, das trajetórias sociais dos migrantes em geral, e puderam remontar o início da migração libanesa para Foz do Iguaçu. A escolha por estas pessoas se deveu à proeminência das mesmas dentre os libaneses e seus descendentes.

A primeira entrevista se deu com o provável único vivo dentre as pessoas que conviveram com os primeiros migrantes que vieram para Foz do Iguaçu ainda na década de 1950, Mohamad Ibrahim Barakat. Outras entrevistas foram realizadas com líderes religiosos: o chaikh Mohamad Al-Khalil da Housseynya Al-Khomeini e o chaikh Mehsen Alhassani da Mesquita Omar Ibn Al-Khatab. Ainda foram entrevistados simultaneamente Faisal M. Ismail, Presidente do Centro Cultural Beneficente Islâmico, e Samira Omairi também da instituição. Outra entrevista foi coletada por apenas um dos integrantes do grupo, sendo o informante seu parente. Nestas ocasiões, foi solicitado que os entrevistados trouxessem fotografias de suas histórias familiares em Foz do Iguaçu, cujas cópias nos foram depois cedidas.

Além disso, os integrantes do grupo estreitaram laços com pesquisadores da presença libanesa em Foz do Iguaçu, proporcionando contextos diversos de coleta de dados; inclusive alguns de nós assistimos palestras, discutimos suas opções metodológicas e achados de pesquisas,

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DANILLO ALARCON; DOUGLAS DE TOLEDO PIZA; AMANI RAFIC SLEIMAN; AMIRA READ RAHAL; BRUNO VINICIUS NASCIMENTO DE OLIVEIRA; DOMINIQUE RIBEIRO GENTIL; FERNANDA FERREIRA CHAN

e, testemunhamos suas entrevistas com informantes libaneses ou descendentes, neste caso com uma maior variação etária. Por fim, ressaltamos que a participação de libaneses e descendentes no grupo de pesquisa facilitou tanto o acesso como a interpretação das informações.

POR ENTRE AS LENTES DA REALIDADE

Ao tentar reconstruir a história de um determinado grupo, localizado temporal e espacialmente, o pesquisador se depara com o impositivo de tentar encontrar a melhor forma de narrá-la, de modo que sua realidade possa ser transmitida e interpretada da maneira mais completa possível.

Com o objeto de estudo do presente trabalho não poderia ser diferente. Tentar costurar os retalhos de uma malha tão cheia de pormenores pode não ser tão simples e evidente.

Quando se questiona sobre como reconstruir essa história de forma a não desprezar os detalhes fundamentais que lhe são inerentes, bem como se é possível transitar por uma história pouco retratada sem “pecar” por desconsiderar partes importantes de sua trajetória. Ou ainda sobre como saber quais são essas peças e como alcançá-las.

A primeira resposta que nos ocorre é que, levando em consideração somente o que nos fornecem os livros de história, os resultados atingidos seriam insatisfatórios. Escutar o que os próprios membros da comunidade têm a dizer e mostrar nos parece uma solução, visto que ninguém melhor que os próprios para revelar (consciente ou inconscientemente) detalhes que se perdem nas linhas esquecidas do senso comum com o passar dos anos.

Neste sentido, o presente trabalho é construído a partir de material pessoal e registros iconográficos que podem auxiliar nessa reconstrução. Temos como foco reconstruir a história dessa comunidade a partir de detalhes que só puderam ser captados pelas lentes de quem a viveu ou a apreendeu no seio familiar, contribuindo para a melhor compreensão de sua inserção político-social no contexto da Tríplice Fronteira.

Adotamos, deste modo, a perspectiva da “experiência da microanálise”, de Jacques Revel, que nos dá os instrumentos necessários para tecer essa “malha histórica” sem desconsiderar aspectos que muitas vezes são ignorados pela história convencional.

O conceito da microanálise surge no campo da micro-história, encerrando-se em uma análise que se utiliza da variação entre as perspectivas de análise da macro e da micro-história para recontar determinado contexto. Resgata, a partir de histórias pessoais, dados que a macro-história tem a tendência a desconsiderar devido a sua abrangência. A principal tradição em história social procurava narrar fenômenos sociais amplos e prezava pelas regularidades e por certas leis ou tendências, afastando do individual, do singular, pelo que alguns pesquisadores reagem e propõem “uma tomada de posição frente a um certo estado da história social” (REVEL, 1998, p. 15). Trata-se também da defesa de uma postura interdisciplinar, que permita cruzamentos

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SOBRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA PRESENÇA LIBANESA EM FOZ DO IGUAÇU

férteis entre domínios metodológicos e entre níveis de análise o mais das vezes separados pela compartimentalização dos saberes e pela institucionalização das áreas de conhecimento, a saber: a história, a psicologia, a antropologia, a sociologia e as Relações Internacionais, dentre outras.

A reivindicação de que a dimensão “macro” não tem nenhum privilégio especial na construção histórica se acompanha do alerta de que tampouco os micro-dados são suficientes, importando apenas a variação entre as duas escalas, e não a escolha de uma em particular (REVEL, 1998, p. 20). Ambas sozinhas seriam incompletas; em associação, trariam um panorama mais detalhado dos fatos históricos. Os indivíduos, não sendo corpos isolados na construção da história social, atuam de maneira mais ou menos presente nos fatos histórico, o que lhes confere a posição de participante, senão “co-criador”, da história.

[...] Cada ator histórico participa, de maneira próxima ou distante, de processos – e portanto se inscreve em contextos – de dimensões e de níveis variáveis, do mais local ao mais global. Não existe portanto hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que do ponto de vista micro-histórico oferece[-se] à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades macrossociais [...] (REVEL, 1998, p. 28)

Reivindica-se utilizar as fontes por muito tempo consideradas apenas reveladoras da realidade imediata para compreensão de fenômenos amplos. Zugueib Neto (2008), sobre sua pesquisa acerca da construção identitária individual e coletiva dos drusos durante um contexto de crise política social advindo da guerra civil e religiosa dos anos 1975-1990 no Líbano, afirma que os depoimentos que recolheu entre combatentes e não-combatentes oscilam entre a dimensão pessoal e os fenômenos sociais em que estão imersos. Segundo suas próprias palavras, eles revelam:

[...] um conjunto renovado interior através do qual o sujeito conta sua própria história, quando os eventos ainda quentes, transformam-se em referências simbólicas para sua própria vida. Tempo para transformar a biografia em história. (2008)

Assim sendo, reforçar a análise da presença libanesa em solo iguaçuense com registros pessoais contribui para o entendimento de como a comunidade refletiu os momentos históricos globais, brasileiros e libaneses no cotidiano local, bem como para perceber a maneira pela qual esse legado ressoa no momento atual de sua realidade macrossocial.

Bem compreender a presença deste grupo na cidade pressupõe desvelar as condições que contribuíram para migração. A migração é um fenômeno social complexo, um “fato social total” nas palavras de Abdelmalek Sayad (1998), que se inicia muito antes da chegada do migrante à sociedade de acolhida: um imigrante para um país é sempre um emigrante de outro.

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DANILLO ALARCON; DOUGLAS DE TOLEDO PIZA; AMANI RAFIC SLEIMAN; AMIRA READ RAHAL; BRUNO VINICIUS NASCIMENTO DE OLIVEIRA; DOMINIQUE RIBEIRO GENTIL; FERNANDA FERREIRA CHAN

Ykegaya, em sua pesquisa sobre a construção da identidade étnica dos libaneses, comenta a contribuição de do autor argelino:

Assim, a imigração deve ser pensada também a partir do meio social que a permitiu ser idealizada e operacionalizada, como também do entendimento e interpretação que o imigrante tem de si e de sua própria condição. Vários elementos foram determinantes da decisão de emigrar, ato que tem uma dimensão dramática assumida numa condição de abandono da terra em que se vive, em busca de possibilidades de vida diferentes da atual, como no caso do imigrante libanês. É caracterizada uma situação limite, que não permite às vezes sequer esperanças. (2004)

Ateremo-nos mais a fundo às condições do Estado libanês na época em que o fluxo migratório começa a convergir para a América do Sul, e em especial, para o Brasil.

CONDIÇÕES QUE DETERMINARAM AS MIGRAÇÕES DOS LIBANESES

As migrações desde o território libanês podem ser divididas em dois grandes ciclos distintos (TRUZZI, 1993; YKEGAYA, 2004). O primeiro ciclo, entre 1860 e 1938, deveu-se à repressão do Império Otomano controlador da região e às duas Guerras Mundiais. Foi uma migração composta majoritariamente por cristãos e que chegou a cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, de onde se irradiou para o interior paulista devido à mascateação, e também Buenos Aires e Asunción. O segundo ciclo, que se estende até os dias atuais, teve impulso devido à crise sócio-econômica e às baixas expectativas de melhoria de vida instaladas no após a II Guerra Mundial e criação do Estado de Israel em 1948, e foi fomentada ao longo dos anos por diversos conflitos civis e internacionais. É uma migração especialmente de muçulmanos sunitas e xiitas e de drusos, constitutivo do fluxo que aporta em Foz do Iguaçu.

O Estado libanês tem como marco histórico o fim do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial, e a disposição franco-britânica de “tutelar” os territórios árabes antes sob domínio otomano, alegando que não tinham condições de se tornarem completamente independentes sem antes um período de domínio para que aprimorassem seus instrumentos de Estado (ROGAN, 2009). Na verdade, já existia influência francesa na região desde pelo menos o século XIX, apoiando os grupos maronitas. Para Zugueib Neto e Sahd (2010), o que passou a existir após a guerra de 1914-18 foi um conglomerado de povos tradicionalmente rivais obrigados a viver sob a bandeira francesa, em um único Estado.

As divisões sectárias levaram a diversas visões sobre o destino daqueles povos obrigados a viverem sobre uma mesma bandeira. Os grupos cristãos, por exemplo, apoiavam o mandato francês. Desta feita, a República Libanesa foi fundada em 1926, com uma câmara de representantes eleitos, um senado apontado, uma constituição e um presidente escolhido pelas duas câmaras. Os grupos nacionalistas libaneses tinham várias propostas, desde uma junção

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com a Síria até a busca por independência completa (ROGAN, 2009).

Como apontam Zugueib Neto e Sahd (2010) o ímpeto inicial nacionalista libanês foi um movimento conservador cristão, associados à região do Monte Líbano, autocontrolada desde os anos 1860, que se baseou em diversos mitos e narrativas para dar vazão ao sentimento de que a segurança dos cristãos estava em um Estado separado e independente do controle muçulmano. No Pós-primeira Guerra Mundial, a intervenção francesa pró-Maronitas fez estender o controle cristão para além das áreas do Monte Líbano, aglutinando populações que estavam profunda e irremediavelmente separadas.

Essa mélange de identidades não surtiu os efeitos esperados, pois a identificação com a comunidade e com a religião ultrapassavam qualquer vinculação à ideia de nação. Mesmo a concepção de uma nação era diretamente informada pela concepção que cada grupo confessional tinha de seus mitos formadores.

As divisões sectárias eram demasiado profundas a ponto de questionar constantemente o mandato francês, que enfrentou diversas revoltas e já se previa o fracasso do Estado recém-criado (ZUGUEIB NETO; SAHD, 2010). Em 1943 foi assinado o Pacto Nacional, que selado entre as principais lideranças maronitas, xiitas e sunitas, estabeleceu a atual divisão dos cargos políticos do país em bases confessionais. Foi um passo importante, mas com caráter efêmero, entre elites que já estavam reticentes quanto ao controle francês.

O primeiro confronto civil ocorreu em 1958, não antes sem um lastro de violência sectária e embate direto de propostas e visões do que deveria ser o país, ganhando força os movimentos pan-arabistas com a criação da República Árabe Unida (Egito e Síria). Para Zugueib Neto e Sahd (2010, p. 28), “[o] efêmero embate terminou com uma intervenção militar estadunidense que assegurou o status quo, recalcando e postergando outra vez o atendimento das demandas dos oposicionistas”.

Enquanto isso, nesse mesmo período, a década de 1950, o Brasil estava passando por uma fase de transição entre o período de guerras da primeira metade do século XX e a fase revolucionária comportamental e tecnológica nomeada os “anos dourados”. Sustentada por uma política desenvolvimentista que trouxe um novo estilo de vida para a sociedade brasileira.

No Líbano, as décadas seguintes foram marcadas por uma má distribuição de renda e de recursos de investimentos, o preconceito étnico-religioso, as injustiças sociais e a expulsão dos refugiados palestinos para o país, que acarretaram em uma longa guerra civil que durou quinze anos (1975-1990). Neste período, uma nova onda migratória que tomou mais força após a invasão e ocupação israelense em 1982, dando o surgimento de resistência libanesa contra essa ocupação israelense e a retirada da mesma, a reconstrução do Líbano, a retirada das forças sírias e a nova invasão israelense no sul do Líbano em 2006. Esses são os principais fatores que, na segunda metade do século XX, fizeram com que um número considerável de libaneses

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abandonassem a sua terra em busca de uma melhoria de vida, incentivados pelo seu patriotismo, do qual até hoje não se desapegaram.

O amálgama desses rancores étnicos, do processo colonizador, como apontado por Rogan (2009) e dos novos elementos acrescidos da formação do Estado de Israel levaram ao conflito civil, já citado, que acabou se tornando por outro lado em causa de maior sectarismo, que se perpetua até os dias atuais.

POR QUE FOZ DO IGUAÇU E NÃO OUTRO LUGAR?

Pode-se afirmar que o primeiro destino dos imigrantes libaneses no Brasil foi a cidade de São Paulo. Nesse período, a partir do início do século XX, as consequências da produção do café faziam-se perceptíveis. O ciclo trouxe o desenvolvimento industrial e urbano para o país, especialmente no Sudeste, além de ter trazido também a construção de ferrovias, necessárias para escoar o produto do interior para o litoral. São Paulo, sendo a região onde estas consequências mostravam serem maiores, tornou-se não só ponto de destino de imigrantes europeus, que procuravam melhores condições de vida em terras brasileiras, como também de libaneses, que saiam do Líbano conflituoso em busca de um lugar onde pudessem gerar renda rapidamente para enviar aos parentes que permaneceram na terra natal. A imigração era composta na sua maioria por jovens rapazes, solteiros, que vinham a ser mascates, vendendo sapatos, confecções, entre outros utensílios. Essa ocupação era uma forma de rápida obtenção de capital e ainda permitia uma maior mobilidade a estes, que não se fixavam em um local, permitindo com que se deslocassem por novos territórios para vender seus produtos apesar de não serem muitos os mercadores que se deslocavam para longe do litoral (YKEGAYA, 2004).

Analisando especificamente o caso do entrevistado Mohamad Ibrahim Barakat, migrante libanês que chegou a Foz do Iguaçu em 1961 e conviveu com os primeiros libaneses a chegar à cidade, descobre-se que seu avô, ainda no século XIX, alegadamente o primeiro muçulmano a deixar o vale do Bekaa em 1892, parte de São Paulo onde havia se instalado provisoriamente e começa a percorrer o Brasil mascateando e passa por Foz do Iguaçu, relatando aos familiares sua visita às Cataratas do Iguaçu. Anos depois, em 20 de abril de 1950, seu filho e outros familiares decidem por Foz do Iguaçu.

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Imagem 1: 1961. Viagem ao Paraguai para o casamento de Yosra e Adnan Barakat. Membros das quatro famílias libanesas muçulmanas pioneiras de Foz do Iguaçu (provavelmente todos os libaneses resisdentes

em Foz do Iguaçu estão nesta foto).

Nessa época, Foz não passava de um batalhão de fronteira do exército brasileiro, privilegiada por fazer fronteira com Paraguai e Argentina. Por ser um povoado e estar localizada longe dos grandes centros era inevitável que seus produtos fossem rapidamente vendidos para os habitantes, muitos deles soldados estabelecidos no local, suas famílias, entre outros. É importante ressaltar que, a princípio, os imigrantes libaneses não tinham a intenção de se estabelecer definitivamente no território. No oeste paranaense, a cidade de Guarapuava parecia ser um destino mais atrativo para os migrantes e passou a compor o circuito das redes migratórias.

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Imagem 2: 1961. Chegada de Mohamad Ibrahim Barakat a Foz do Iguaçu. Da esquerda para a direita do leitor: Mohamad Barakat, Adnan Barakat, Yosra Barakat, Khalil Aboughouch e Ibrahim Barakat.

Porém, percebeu-se a possibilidade de (juntamente com a família) se viver bem devido ao potencial do comércio local e futuramente internacional. Dessa forma o caráter da imigração mudou, fazendo os imigrantes trazerem suas famílias e se estabelecerem, reconstituindo suas vidas em um novo território. Consequentemente, amigos e conhecidos deram mais força ao processo, formando a colônia. Foz do Iguaçu pareceu ser um território receptível a novas culturas, por sua localização estratégica e por propiciar novas atuações econômicas. Os ciclos maiores de imigração libanesa iriam ecoar, trazendo consigo maior desejo de inserção a comunidade local, aprendendo o idioma e os costumes, o que inclusive facilitaria o comércio e também o convívio.

De acordo com Ikegaya (2004), dois elementos contribuíram primordialmente para o estabelecimento na cidade, o que estão pormenorizados nas falas dos entrevistados. Primeiro, as possibilidades da vida baseada em uma atividade comercial, o que era culturalmente valorizado devido às dificuldades jurídicas, sociais e linguísticas de outras formas de inserção sócio-econômicas, além de uma transmissão das práticas comerciais de geração em geração. Mas, como se nota, não se trata da mascateação e sim de um desejo de assentamento e possibilidade de explorar a atividade mercantil em uma cidade ainda muito pequena e promissora desde o ponto de vista de desenvolvimento de uma economia urbana. Isso se relaciona com o segundo elemento: o tipo de migração libanesa deste momento, que era familiar e feito por etapas. Ao contrário dos fluxos anteriores, que se baseavam em uma presença masculina peregrina com

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vistas ao acúmulo rápido de pecúlio e retorno ao local de origem, este período comportou o arrefecimento das migrações de retorno e a crescente migração de reagrupamento familiar já em Foz do Iguaçu.

Imagem 3: Aproximadamente 1963. Visita às cataratas do Iguaçu. Da esquerda para a direita do leitor: Yosra Barakat e Najla Barakat. Abaixo: Adnan Barakat. A outra pessoa não pode ser identificada.

Imagem 4: Aproximadamente 1963. Visita à Ponte Internacional da Amizade entre Brasil e Paraguai, inaugurada em 1961 e definitivamente em 1965. A única pessoa identificada é a mulher à esquerda do

leitor: Najla Barakat.

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No primeiro momento da migração para Foz, o número de migrantes ainda pequeno crescia conforme novos membros das famílias pioneiras foram chegando. Somente depois é que o aumento do fluxo migratório se deveu à chegada de novas famílias, e cada vez mais oriundas de outras cidades libanesas.

A cronologia das criações de associações étnicas ajuda a remontar esta história. Em 1963 é criado o Clube Social Árabe, quando os libaneses ainda se resumiam às famílias pioneiras. Há um incremento do fluxo migratório devido à guerra civil libanesa iniciada em 1975 e do aumento das potencialidades da região da Tríplice Fronteira com a criação por decreto da atual Ciudad del Este (feito pelo presidente Stroessner em 1958) e de decisão de torná-la zona franca de importação em 1971, e na década de 1980 são criadas duas associações importantes. O Centro Cultural Beneficente Islâmico de Foz do Iguaçu é criado em 1981 com o objetivo geral de estreitar laços entre os patrícios e, principalmente, de construir uma mesquita que pudesse abrigar o crescente número de fiéis, antes reunidos nas casas dos migrantes de modo rotativo. A Mesquita Omar Ibn Al-Khatab é inaugurada em 07 de outubro de 1988, e em 1998 é inaugurada a Escola Árabe de Foz do Iguaçu vinculada ao Centro Cultural. Em 1984 é inaugurada a Sociedade Beneficente Islâmica de Foz do Iguaçu, que abriga a Housseynya1 Al-Khomeini e que depois estabeleceu a Escola Libanesa Brasileira, em 2002.

Imagem 5: Cerca de 1984. Construção da Mesquita Omar Ibn Al-Khattab

A presença massiva de migrantes ao longo dos anos significou também uma pluralização

1 O local de oração na tradição xiita é chamado pelos muçulmanos de housseynya, embora às vezes seja também chamado de mesquita.

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desta comunidade, com maior diversidade de regiões de origem, profissão religiosa, orientação político-ideológica etc. e rendeu mais complexo o processo de construção da identidade dos libaneses e descendentes na cidade. No geral, a formação identitária, entendida como a identificação individual e a designação coletiva, é resultado de um sentimento de pertença ao grupo que remonta à representação e à memória coletivas. Portanto, compreender quem são os migrantes e seus filhos e netos requer atentar para as classificações simbólicas diversas que unem os indivíduos desta coletividade: localidade de origem, a religiosidade, a língua falada etc.

Os elementos que marcam a autodesignação identitária deste grupo são a inserção sócio-econômica na região (especialmente a profissão de comerciante e a herança simbólica da mascateação), a religião muçulmana e a língua árabe. É interessante entender o mosaico de referências que, segundo Ikegaya (2004), forma a identidade do grupo. A língua cumpre uma função estratégica de dupla busca simbólica: de um lado, reforça a identidade religiosa devido ao fato de o corão ser lido apenas em árabe, e, de outro, remete a um grupo muito maior de pessoas de fala ou etnia árabe. Neste sentido, a própria comunalidade de origem expande-se, reforçando os laços da cidade ou região de origem no Líbano com um sentimento de pertença e uma memória coletiva mais amplos, que transcendem até mesmo a identidade nacional libanesa, e apóia-se no arabismo. Assim, a marca mais forte da identidade individual e grupal é “ser árabe”: denota a pertença a um grupo muito amplo, de cultura e história milenares, ao mesmo tempo em que permite incluir o signo religioso e lingüístico.

Esta forma de olhar para os indivíduos do grupo não diferencia as diversas categorias de classificação e outras clivagens internas, as quais aparecem o mais das vezes de maneira visível apenas dentro do grupo. Trata-se da busca por uma categoria autoatribuída legítima – árabe – que seja abrangente o suficiente para temporária e estrategicamente apagar diferentes classificações que de certo modo separariam os indivíduos do grupo entre si. Mas, internamente, todo e qualquer um destes “árabes” sabe identificar, por exemplo, libaneses de outros nacionais, originários do vale do Bekaa daqueles que vieram do sul do Líbano ou sunitas de xiitas. Posições políticas, lealdade à nacionalidade materna e mesmo atributos fenotípicos são outros elementos diferenciadores dentro do grupo que terminam suspensos na sua forma de autoclassificação para fora dele. Isto reforça a existência do próprio grupo e simplifica a forma de apresentar-se para os demais moradores e transeuntes de Foz do Iguaçu. Não raro é complicado para o olhar externo ao grupo saber corretamente identificá-lo, ainda mais se as diferenciações internas aparecem. Ademais, há na cidade libaneses ou descendentes que não são muçulmanos, bem como muçulmanos vindos de outros países, quer do golfo árabe quer não.

O fator de maior dificuldade contemporaneamente para a construção coletiva desta identidade é a estigmatização do grupo derivada da associação feita entre ele e o financiamento

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do terrorismo internacional, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 20012. A estratégia implícita ou explícita dos primeiros migrantes a chegarem em Foz do Iguaçu foi suprimir as diferenças existentes dentre estes indivíduos para fortalecer os laços existentes e enfrentar as adversidades neste contexto de inserção em uma sociedade e cultura novas, tendência esta que persiste até atualmente. Isto resultou em uma autoapresentação do grupo relativamente homogênea e fundamentada em uma ampla comunidade árabe muçulmana para além do território brasileiro. Porém, no contexto contemporâneo em que há uma confusão generalizada das clivagens internas ao grupo e uma associação imediata dos muçulmanos com o terrorismo, o esforço de construção identitária precisou necessariamente incluir uma explicação mais pormenorizada sobre estes indivíduos.

Sem o intuito de defesa de qualquer ponto de vista referente à questão e trazendo ao conhecimento geral as conclusões prévias sobre as origens e motivos pelos quais cidadãos libaneses chegaram a Foz do Iguaçu, pretendemos contribuir, de alguma forma, com visões mais aprofundadas e refletidas sobre a comunidade, que não somente aquelas carregadas do estigma veiculado habitualmente.

Segundo Erving Goffman (2006, p.11-12), cujos estudos tratam, além de outras questões, sobre o estigma, a sociedade estabelece as formas de categorizar os indivíduos e o conjunto de atributos que caracterizam como correntes e normais nos membros dos grupos estigmatizados. Desse modo, quando a sociedade observa o indivíduo estigmatizado, capta diversas características que se lhe foram imputadas anteriormente, construindo uma visão pré-concebida e depreciativa a seu respeito.

Entretanto, o estigmatizado tem consciência da condição à qual a sociedade o coage. Isso se torna notável nos códigos construídos quando da interação com os indivíduos “normais”, na classificação do autor. São exemplos desses códigos o tipo de apoio que devem prestar aos seus iguais, o tipo de fraternização que mantém com os normais, de quais feitos relacionados aos seus iguais deve orgulhar-se etc. (GOFFMAN, 2006, p. 130). Notou-se durante todas as entrevistas declarações sobre ações construtivas da comunidade em benefício da sociedade iguaçuense ou posicionamentos de tolerância com relação a outras religiões ou nacionalidade, numa espécie de tentativa de provar o caráter pacífico da comunidade como um todo e sua boa inserção no contexto social da cidade e do país.

2 Contribuiu para a reflexão em torno da questão da estigmatização dos libaneses e descendentes a fala de Tupiara Guareschi Ikagaya em sua palestra de 06 de setembro de 2012 na Faculdade Anglo-Americano intitulada “Imigração, identidade e fronteira: libaneses em Foz do Iguaçu/PR”.

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NOTAS CONCLUSIVAS: HISTÓRIA É O PASSADO QUE IMPORTA NO PRESENTE

É sabido pelas ciências sociais que a dinâmica de entrevistas muitas vezes revela mais do que as palavras apenas podem exprimir. Gestos, expressões, silêncios, entrelinhas e intervalos, ditos e interditos. Por vezes, omissões significam mais do que frases inteiras: perguntas que pairam no ar sem respostas evidentes. Especialmente durante as entrevistas ao longo do desenvolvimento desta pesquisa em andamento, foram significativas as respostas dadas às perguntas que não foram feitas.

As perguntas que moviam as entrevistas eram sobre a história da migração libanesa para Foz do Iguaçu e diziam respeito ao momento da migração, às suas causas e como ela se tornou possível. E as respostas cumpriram esta demanda. Mas também entraram em outro terreno: o da refutação ao estigma imposto sobre esta comunidade estrangeira. O conjunto das entrevistas surpreendeu por apresentarem invariavelmente uma dupla característica: todas elas incorporaram uma resposta gritante à pergunta muda sobre a veracidade da associação com o terrorismo, e, trouxeram a história para o tempo presente, pois a recontaram como forma de legitimar sua presença na cidade e de afastar pelas qualidades desta história migratória um mal que assola a situação atual. Não era nossa expectativa ouvir a percepção que os migrantes e seus descendentes têm de si ou da representação que julgam os outros fazerem deles atualmente.

Parece haver um imperativo de defesa da imagem vinculada ao grupo que, implícita ou explicitamente, criou para os indivíduos uma ligação entre características da migração histórica e os elementos auto-atribuídos de sua construção identitária. Apresentar sua história é uma maneira de auto-apresentação no passado e no presente, e possibilita falar seletivamente do tempo pretérito filtrando os fatos que permitem uma vinculação com um argumento louvável sobre si nos dias atuais. Retomava-se, assim, em cada uma das falas, a história de penúria e dificuldades das condições de emigração bem como o ambiente de hospitalidade e a chegada pautada na solidariedade intra-grupal e inter-étnica para qualificar a relação de respeito às diferenças. Ao mesmo tempo em que se afirmava (o respeito para com) a diferença, era mister desfazer o medo e o preconceito, esclarecer que não havia nesta diferença a conotação negativa e mesmo pejorativa inculcada no fenômeno do terrorismo. A busca de suas próprias origens fortifica e valida as ações presentes dos membros do grupo enquanto tal (ZUGUEIB NETO, 2008).

Os elementos do processo identitário (identidade esta amalgamada caleidoscopicamente pela superposição entre etnia, língua, religião, localidade de origem e nacionalidade) ganham, paradoxalmente, uma dimensão de aproximação com a sociedade iguaçuense. As histórias da escola feitas pelos migrantes incorpora a transição abertamente dita desejável para também o público local. As fundações do Centro Cultural e da Sociedade Beneficente, originalmente

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voltados para a solidariedade étnica, são narradas de maneira a ressaltar o papel atual de formação da identidade pública e íntegra do grupo. Mesmo instituições sociais, como o período sagrado do Ramadan, adquirem contornos de aproximação com os indivíduos de fora do grupo: neste caso, a esperada doação pode ser feita também para pessoas carentes da região, não muçulmanos, como forma de retribuição com a acolhida histórica dos migrantes na cidade.

Nas falas dos entrevistados também ficou evidente a memória da relação de solidariedade de que participaram os migrantes mesmo com indivíduos com quem não se esperava isto acontecer: seja o apagamento das diferenças internas do grupo com relação à religião, local de origem e ideologia política, sejam as aproximações com a maioria numérica de brasileiros que lhes parece diferente tanto quanto os enxerga como diferente, sejam ainda as assim ditas surpreendentes relações com os judeus. Isto tudo é creditado às atribuições culturais brasileiras percebidas em termos de uma sociedade multi-étnica e na ideia de uma democracia racial.

Quando apontamos não apenas para as causas senão também para as consequências da história da migração libanesa, atinamos para os sentidos da narração da trajetória coletiva dos migrantes, feita pelos próprios agentes nas falas recolhidas das entrevistas. Fala-se mais propriamente das causas da imigração e das consequências da forma como ela é contada. Portanto, não se trata de analisar os efeitos da migração para membros deste grupo ou para a sociedade iguaçuense; trata-se de compreender o significado atribuído pelos migrantes de sua história enquanto grupo.

REFERÊNCIAS

FONTES

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BIBLIOGRAFIA

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SOBRE CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA PRESENÇA LIBANESA EM FOZ DO IGUAÇU

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ZUGUEIB NETO, Jamil; SAHD, Fabio Bacila. Líbano: nação ou agregado de grupos religiosos? Tensões Mundiais, v. 6, n. 11, 2010.

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SUJEITOS RELIGIOSOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Luiz Ernesto Guimarães

Mestre em Ciências Sociais pela UEL

Resumo: Desde a implantação do cristianismo na América Latina no século XVI, a teologia da libertação obteve uma formulação que mais se aproximou do contexto político-social desse continente, contribuindo na contestação do status quo por alguns religiosos. Diante de um contexto de dominação exercida por uma pequena parcela da população sobre a grande maioria, contribuindo para a acentuação das desigualdades entre as classes sociais, a teologia da libertação se destacou por desenvolver no campo religioso, um pensamento crítico às mazelas sociais resultantes da colonização europeia e do sistema capitalista na modernidade. No Brasil, duas lideranças protestantes foram importantes na formulação e disseminação desse pensamento: Richard Shaull e Rubem Alves, ambos ligados à Igreja Presbiteriana. O objetivo deste estudo é observar como a teologia da libertação exerceu influência em alguns sujeitos ligados ao cristianismo na América Latina, em especial no Brasil, e o engajamento político decorrente desse posicionamento. A sociologia compreensiva de Max Weber é importante no desenvolvimento desse estudo, pois, diante de um tipo de ação coletiva, o indivíduo é interpelado em sua produção de sentido. Evidencia-se, assim, não apenas os fatos em si, mas as representações e o significado que a teologia da libertação exerceu nesses sujeitos. Conclui-se, portanto, que a proposta defendida por teólogos da libertação foi o que houve de mais autêntico no cristianismo latino-americano, referente religião e política, resultando em diversas intervenções desenvolvidas por religiosos cristãos no âmbito da realidade social latino-americana.

Palavras-chave: Sociologia da religião; Teologia da libertação; Protestantismo.

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SUJEITOS RELIGIOSOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

INTRODUÇÃO

Desde a implantação do cristianismo na América Latina no século XVI, a teologia da libertação obteve uma formulação que mais se aproximou do contexto político-social desse continente, contribuindo na contestação do status quo por alguns religiosos. Diante de um contexto de dominação exercida por uma pequena parcela da população sobre a grande maioria, contribuindo para a acentuação das desigualdades entre as classes sociais, a teologia da libertação se destacou por desenvolver no campo religioso, um pensamento crítico às mazelas sociais resultantes da colonização europeia e do sistema capitalista na modernidade.

No Brasil, duas lideranças protestantes foram importantes na formulação e disseminação desse pensamento: Richard Shaull e Rubem Alves, ambos ligados à Igreja Presbiteriana. O objetivo deste estudo, portanto, é observar como a teologia da libertação exerceu influência em alguns sujeitos ligados ao cristianismo na América Latina, em especial no Brasil, e o engajamento político decorrente desse posicionamento. A sociologia compreensiva de Max Weber é importante no desenvolvimento desse estudo, pois, diante de um tipo de ação coletiva, o indivíduo é interpelado em sua produção de sentido. Evidencia-se, assim, não apenas os fatos em si, mas as representações e o significado que a teologia da libertação exerceu nesses sujeitos.

RICHARD SHAULL, ECUMENISMO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

O que tornou possível a difusão da Teologia da Libertação no cristianismo latino-americano foi o diálogo entre católicos e protestantes, desejosos de obter mudanças no continente, no campo político, econômico, social e também religioso. A superação do distanciamento entre essas duas vertentes do cristianismo é fundamental para a compreensão do pensamento de libertação encontrado em religiosos que se inseriram nos setores progressistas dessas duas instituições cristãs.

Richard Shaull, missionário presbiteriano de origem norte-americana, destaca-se nesse sentido, quando se observa o tempo em que ele viveu na América Latina, em especial, no Brasil. Sua trajetória de vida foi influenciada pelo pensamento da Teologia da Libertação, antes mesmo de sua formulação, e pela práxis marxista. Nesse sentido, ele se diferenciava do modelo da teologia tradicional que privilegiava a salvação futura, pós-morte. Essa forma de religiosidade predominava entre católicos e protestantes.

Sob a perspectiva do ecumenismo, Richard Shaull contribuiu ao articular o engajamento político e a fé cristã, estabelecendo as bases iniciais para a formulação da Teologia da Libertação e sua inserção no protestantismo. O pensamento de Shaull parte da conjuntura estrutural da sociedade capitalista, marcada pelo estabelecimento de classes, em busca de minimizar as desigualdades sociais no continente latino-americano.

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Richard Shaull nasceu em 1919 e faleceu em 2002. Trabalhou como pastor, professor e missionário nos Estados Unidos e em alguns países da América Latina, inclusive no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960. Esse tempo vivido no Brasil, Shaull contribuiu de forma significativa para a formação de uma nova esfera de ação do protestantismo histórico. Embora de origem norte-americana e por ter recebido formação e influência teológica semelhantes às de muitos outros missionários protestantes – que assumiram postura conservadora no Brasil – Shaull se identificou com os povos latino-americanos e seus problemas sociais.

Sobre isso, Rubem Alves, ao escrever “quase uma apresentação” na obra De dentro do furacão, declara:

Há homens que vêem mais longe que os outros e apontam para horizontes novos. Um deles foi Richard Shaull, missionário norte-americano. Estrangeiro, ele nos entendeu melhor que nós mesmos, e nos revelou o nosso destino. Identificou-se com a América Latina e assumiu-a como sua pátria. Tornou-se um profeta, e toda uma geração de estudantes universitários, seminaristas, jovens e leigos comprometidos com o destino do nosso continente foi marcada pelo seu pensamento e pelos seus atos (ALVES, 1985, p. 13).

Arnaldo Huff Júnior (2009) aponta Shaull como um ícone entre os protestantes por conta de seu engajamento político e social. Todo movimento social possui seus heróis; e aquilo que se conta sobre eles pode resultar na formação de identidades coletivas, contribuindo para a manutenção e renovação do referido grupo. Para o autor, “Shaull tornou-se, assim, um lugar de memória, foi homem feito monumento” (HUFF JÚNIOR, 2009, p. 3).

Embora não existam muitas obras acerca de Shaull, as “menções ao seu nome são, todavia, frequentes na maioria dos textos que se referem ao ecumenismo no Brasil e na América Latina, aos antecedentes intelectuais da teologia da libertação e às relações entre fé cristã e política em meios protestantes” (HUFF JÚNIOR, 2009, p. 4).

O teólogo uruguaio Julio de Santa Ana, em sua participação na primeira parte da obra De dentro do furacão, estabelece o significado de ser teólogo. Ele enfatiza a ideia de que Karl Barth1, no século XX, percebeu a responsabilidade do teólogo, o qual deveria trabalhar com a Bíblia em uma mão e o jornal em outra (SANTA ANA, 1985). Mas, segundo o teólogo uruguaio, isso aconteceu por meio de seu contato com Richard Shaull. De acordo com Santa Ana (1985), houve um deslumbramento entre os jovens estudantes de teologia de sua época e a compreensão melhor de algo que se pressentia, sem poder, entretanto, perceber claramente: “nossa avidez pela teologia não podia ser satisfeita somente com a leitura da Bíblia e dos textos de grandes teólogos, mas sim, também requeria a participação na história, com todas as suas tensões e com todos os perigos que ela pressupõe” (SANTA ANA, 1985, p. 36 – grifo nosso).

1 Karl Barth, teólogo protestante suíço, é considerado um dos mais destacados teólogos do século XX, conhecido especialmente pela sua teologia dialética ou teologia da crise. Fez oposição ao nazismo. Maiores informações, ver: OLSON, Roger. História da teologia cristã. São Paulo: Ed. Vida, 2001.

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Julio de Santa Ana também define Shaull como um profeta moderno, ou seja, “mestre em indicar-nos que fazer teologia é tomar parte nas lutas de nosso tempo, participar da história” (SANTA ANA, 1985, p. 36-37).

O movimento ecumênico que começou a ser desenvolvido no Brasil e na América Latina, a partir da década de 1950, não pode ser compreendido sem remetê-lo ao contexto latino-americano e ao movimento ecumênico internacional, influenciado pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI)2, empenhado na solidariedade e fraternidade (DIAS, 1998).

De acordo com Zwinglio Mota Dias, o CMI nasceu “como fruto de um esforço de solidariedade entre os cristãos europeus, perplexos com a capacidade destrutiva da civilização moderna e belicosa que ajudaram a construir” (DIAS, 1998, p. 129). De acordo com o autor, esse órgão é hoje o principal instrumento de articulação entre as igrejas cristãs e ortodoxas na busca por unidade cristã.

Segundo Magali Cunha, o movimento ecumênico no Brasil data do século XIX, desde a aspiração pública pela formulação da Aliança Evangélica Brasileira (CUNHA, 2007). Juntamente com esse movimento, havia também posições contrárias, antiecumenistas, de caráter pietista, “predominantemente individualista, e dos ideais de separação igreja e mundo e da não preocupação com as questões políticas que caracterizaram a ação protestante dos primeiros missionários no Brasil” (CUNHA, 2007, p. 138). Essa visão se restringia, de acordo com autora, a um pensamento de missão anticatolicista e de uma pregação espiritualizada da fé cristã, com fins de aumentar a adesão de novos fiéis.

No desenvolvimento do ecumenismo no Brasil, Richard Shaull é um dos nomes que mais se destacam. Ao chegar ao Brasil em 1952, tornou-se professor de História da Igreja no Seminário Presbiteriano do Sul, na cidade de Campinas, pertencente à Igreja Presbiteriana do Brasil (HUFF JÚNIOR, 2009). Além de sua atuação como professor, colaborador do jornal Mocidade e das atividades junto à juventude presbiteriana, ele passou a “realizar palestras sobre o pensamento católico e a promover encontros entre seminaristas protestantes e dominicanos, em um tempo em que a oposição protestante ao catolicismo era generalizada” (HUFF JÚNIOR, 2009, p. 5).

Abordando o comunismo em suas palestras, um dos assuntos mais discutidos entre os estudantes na década de 1950, Shaull proferiu uma série de palestras a estudantes de teologia em Buenos Aires, com o tema O cristianismo e a revolução social, conclamando “os cristãos a uma participação ativa na transformação social” (HUFF JÚNIOR, 2009, p. 6).

O posicionamento e engajamento de Shaull em questões sociais e políticas, em grande

2 No inglês a sigla é WCC (World Council of Churches). No subtítulo da página na internet, encontra-se a seguinte frase: “Uma comunidade mundial de 349 igrejas que buscam a unidade, o testemunho comum e o serviço” (tradução livre). Para maior conhecimento, ver: <www.oikoumene.org> Acesso em: 20 nov. 2011.

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medida orientados sob o paradigma marxista, “criou uma situação de desgaste tão grande que resultou no seu imediato retorno aos EUA e um maior policiamento do presbitério com expulsões de seminaristas e pastores recalcitrantes nos anos seguintes”3. Nota-se, portanto, a dificuldade do protestantismo brasileiro em lidar com questões novas, preferindo permanecer com a tradição herdada dos primeiros missionários que aqui chegaram. O tradicionalismo dificultava o diálogo com as demais religiões, bem como a reflexão sobre questões de ordem social e política.

Em uma de suas aulas no Seminário em Campinas, ao falar sobre o ecumenismo, Richard Shaull declarou que “nenhum grupo de cristãos e nenhuma denominação pode se arrogar o direito de guardião da verdade total da fé. Como cristãos dependemos uns dos outros na busca da fidelidade a Cristo. Esta é a mensagem central do movimento ecumênico” (RAMOS, 1985, p. 26).

O ecumenismo proposto por Shaull, segundo Julio de Santa Ana (1985), não foi formal ou teórico, atrelado ao campo institucional. O ecumenismo em Shaull “não se esgota na procura da unidade das Igrejas, mas sim tende à unidade dos povos, para o que é imprescindível o diálogo entre as culturas” (SANTA ANA, 1985, p.38-39).

A juventude teve participação importante no processo de formulação do movimento ecumênico e foi base para a sua expansão posterior. Destacam-se: Adalto Araújo Dourado, Boanerges Cunha, Jether Ramalho, Lysâneas Maciel, Waldo César, Rubem Alves, entre outros (CUNHA, 2007).

Magali Cunha menciona a importância das publicações como forma de disseminação das novas ideias que estavam surgindo entre esses jovens. Destacam-se: o jornal Mocidade, dos jovens presbiterianos; a revista Cruz de Malta, dos jovens metodistas; e o jornal O Exemplo, dos jovens congregacionais (CUNHA, 2007, p. 139).

A autora afirma que, além dessa nova configuração de parte da juventude protestante no Brasil, outros elementos contribuíram para o desenvolvimento e nova significação do ecumenismo, como o questionamento ao próprio protestantismo sobre a responsabilidade sociopolítica dos cristãos. “Esta interrogação tem, por primeiro efeito, o de estimular a atuação protestante para além das fronteiras denominacionais, re-significando a sua própria acepção do conceito de missão” (CUNHA, 2007, p. 140).

O que faz, portanto, a memória de Richard Shaull tornar-se monumento (HUFF JÚNIOR, 2009), inspirando novas gerações ao engajamento no movimento ecumênico, é sua ênfase em colocar a renovação da igreja sob a responsabilidade do ser humano, ou seja, “a partir da ação dos deserdados e oprimidos na história. Quer dizer, é uma unidade que se faz a partir de baixo,

3 O que é teologia da libertação III. Disponível em: <http://www.comunidadewesleyana.blogspot.com>. Acesso em: 12 set. 2011.

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participando nas tensões e lutas sociais” (SANTA ANA, 1985, p. 39).

O contato de Shaull com grupos católicos ocorreu de forma não programada e até mesmo contrária aos planos do missionário norte-americano. Para ele, o início do diálogo com católicos foi uma ironia. Afirma Shaull:

Eu fui para lá [América Latina] a fim de converter católicos romanos ao protestantismo. Hoje, confesso que a única coisa que realizei e que produziu continuidade institucional até os dias presentes nasceu de meus antigos diálogos com grupos católicos no Brasil, especialmente os dominicanos (SHAULL, 1985, p. 205).

Assim, o ecumenismo do qual Shaull se tornou um dos disseminadores no Brasil e na América Latina teve por princípio uma abordagem vinculada aos problemas sociopolíticos locais; trouxe para a discussão eclesiástica assuntos que normalmente eram pouco contemplados diante de uma postura espiritualista, característica comum entre as igrejas protestantes históricas, as quais preservavam suas raízes no conservadorismo implantado pelos primeiros líderes norte-americanos e europeus. Mesmo sendo um deles, um missionário originário dos Estados Unidos, Shaull assimilou não apenas a cultura dos povos do hemisfério sul durante o tempo vivido em alguns países latino-americanos, mas também contribuiu para a formulação de um pensamento teológico que futuramente se tornaria conhecido como Teologia da Libertação. Ele buscava dar ao ser humano condições de vida mais dignas do que aquelas que presenciou nos anos em que residiu fora dos Estados Unidos. Encontrou no movimento ecumênico condições mais adequadas para a reestruturação da vida social, enfatizando a participação do cristão na história.

Para efetivar as mudanças diante do quadro apresentado no continente latino-americano, marcado pela perpetuação secular do poder e concentração de riquezas entre um pequeno grupo de pessoas, Richard Shaull (1966) destaca a importância da revolução como meio de transformação da realidade. Diante das diferenças existentes entre nações ricas e pobres e da crescente tentativa da classe pobre de usufruir das riquezas, experimentada apenas por uma parcela da população mundial, ele afirma que

[...] a revolução social é o fato primário com que a nossa geração terá de se defrontar, na mediada em que muita gente em todo o mundo vai sendo tomada de paixão pela derrubada total das velhas estruturas e pela tentativa de um novo começo com o estabelecimento de uma nova ordem (SHAULL, 1966, p. 12 – grifo nosso).

É provável que Shaull tenha sido um dos primeiros a pensar sobre a revolução entre os protestantes no Brasil, embora não deixe clara a maneira como ocorreria tal fato, devido à retração do setor protestante ante a política. Tais pensamentos eram recebidos com receio entre os religiosos temerosos e avessos ao comunismo, alinhados com ideologia norte-americana anticomunista implantada nos países latino-americanos.

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A teologia da revolução é abordada por Shaull como hipótese de transformação social. Esse pensamento foi formulado especialmente por teólogos alemães, obtendo reconhecimento e contribuindo para uma nova geração de teólogos. No entanto, para Shaull, existem obstáculos a serem considerados nesse pensamento. Um deles é a “separação tradicional, no mundo acadêmico, entre a teoria e a práxis, o que acaba sendo particularmente desastroso quando se tenta abordar a questão da revolução” (SHAULL, 1985, p. 124).

Para Shaull, qualquer forma de avanço exigirá “uma ruptura fundamental com a tradição acadêmica e uma nova relação entre a universidade e o mundo, entre o estudioso e o político” (SHAULL, 1985, p. 124). Evidencia-se, assim, a reflexão, aspecto fundamental, segundo Gustavo Gutiérrez (GONZÁLEZ; GONZÁLEZ, 2010), para conduzir a prática sob uma orientação adequada a um objetivo específico, não fazendo dela um fim em si mesmo.

Não foram, portanto, poucas as dificuldades no processo de revolução no protestantismo brasileiro, segundo propôs Richard Shaull. Além dos problemas externos, “existiam as tensões internas provocadas por aqueles que viam a necessidade de ir ao encontro da nova situação e os que preferiam evitar isso” (FARIA, 2002, p. 85-86). A juventude, com quem Shaull tanto trabalhou em seu período no Brasil, já não se familiarizava com a postura adotada pela Igreja Presbiteriana do Brasil, tão desconexa da realidade social em que eles próprios viviam. Segundo Shaull,

Já não podemos confiar em avançar, fechados em nosso isolamento acadêmico, analisando velhos sistemas teológicos, desenvolvendo-os e tratando de traduzi-los em termos contemporâneos. Nosso ponto de partida deve situar-se na praxis, mas numa praxis de natureza muito especial: a que seja o resultado de nossa própria experiência de êxodo e exílio, ao desvincular-se da ordem de opressão social da qual somos vítimas [...] até a criação de uma nova ordem de existência social e pessoal (SHAULL, 1985, p. 125).

A “própria experiência de êxodo” da qual trata Richard Shaull não foi bem aceita por todos os setores do protestantismo, trazendo divergências de opinião sobre um tema delicado: questionava-se a relevância das igrejas protestantes na sociedade; reivindicava-se uma postura mais próxima da realidade da classe trabalhadora que pudesse inserir em sua praxis o engajamento político.

Shaull (1985) reconhece a importância trazida pelo conceito de dialética no marxismo para a interpretação histórica. Nessa perspectiva, Marx, em seus estudos, chegou a compreender melhor a sociedade moderna, bem como a emancipação do proletariado, sob a perspectiva de um movimento messiânico. Mas “seu esforço para dar conteúdo específico à dialética levou-o a restringi-lo demais, e sua confiança exagerada no poder da razão produziu certa rigidez na interpretação histórica que prejudica a análise da realidade empírica” (SHAULL, 1985, p. 107).

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Embora Shaull reconhecesse no pensamento marxista elementos que contribuíam para a sua proposta de transformação social a partir do campo religioso, ele postulava que isso apenas não era suficiente. Na perspectiva teológica, “a dialética é vista em termos mais amplos, o que permite melhor compreensão da realidade concreta, ao mesmo tempo que oferece uma nova base de confiança no futuro” (SHAULL, 1985, p. 107).

No pensamento bíblico, de acordo com o autor, a história “é o campo em que o homem é destinado a lutar pela criação de condições adequadas para uma ordem de vida mais humana. Devido ao egoísmo, sem dúvida, as estruturas criadas pelo homem para alcançar esse fim podem impedir seus esforços” (SHAULL, 1985, p. 107). A desconfiança de Shaull paira, portanto, em qualquer movimento formulado para responder a determinadas questões sociais, pois “uma instituição criada para defender os interesses de um grupo ou classe despreza as necessidades de outros grupos e provoca sua reação” (SHAULL, 1985, p. 107). Não basta a substituição de estruturas sociais; sobretudo, para o missionário norte-americano, é necessária a transformação desses modelos, à luz da justiça.

RUBEM ALVES E A LIBERTAÇÃO DA TEOLOGIA

Rubem Alves seguiu a mesma vertente teológica de seu professor no Seminário Presbiteriano de Campinas, Richard Shaull. A proximidade entre esses dois religiosos continuou após os anos de estudos no interior paulista (1953 – 1957). Em Nova York, no Union Theological Seminary, Alves obteve o título de mestre em teologia em 1964; posteriormente, retornou aos Estados Unidos, a convite da United Presbyterian Church - USA4 e do presidente do seminário teológico de Princeton para o doutoramento, cuja orientação ficou sob a responsabilidade de seu professor e amigo5, Richard Shaull.

Sua tese de doutorado, publicada em 1969, demonstra já em seu título uma proposta teológica associada ao pensamento de libertação que se formulava naquele momento: Towards a Theology of Liberation6. No entanto, desde a defesa, até a publicação de sua tese, Alves enfrentou oposição das mais variadas e, para publicar o texto, precisou alterar o título para A Theology of Human Hope7. Afinal, libertação não era um tema muito recorrente no pensamento teológico da época. O que estava em voga era o tema sobre a esperança, evidenciada especialmente nos escritos do teólogo alemão Jürgen Moltmann8.

De acordo com Alves (2012), no prefácio de sua tese, escrito em 1987, a troca do título,

4 Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América.

5 O próprio Rubem Alves é quem o menciona como “amigo” (ALVES, 2012, p. 52).

6 Por uma Teologia da Libertação.

7 Uma teologia da esperança humana.

8 A principal obra de Jürgen Moltmann data de 1964, sob o título Teologia da Esperança.

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substituindo libertação por esperança, não lhe trouxe satisfação. Embora a esperança seja um tema relevante e que o agrada, há um aspecto de subjetividade, “é coisa interior. E isto não me bastava. Eu não queria só continuar a ter esperança. Queria ser capaz de perceber os sinais de sua possível realização, na vida dos indivíduos e dos povos. [...] A esperança tinha de se exprimir como política” (ALVES, 2012, p. 51 – grifos do autor).

Nessa perspectiva, ao tornar o termo libertação mais essencial do que a esperança, Rubem Alves (2012) expressa a ideia de um fazer teológico associado à política, resultando em uma práxis teológica presente no cotidiano da população, distinta do ponto de vista da teologia da esperança, cuja abordagem se encontra em um sentido mais amplo teologicamente e restrito sociologicamente, ou seja, a teologia da esperança não se aplicava diretamente aos problemas do tempo presente, ou pelo menos não oferecia mecanismos de transformação da atual realidade, embora os considerasse. Tais problemas seriam solucionados em um futuro próximo, e é necessário aguardar tal momento, típico do messianismo.

O período da produção de sua tese e de sua publicação, final da década de 1960, é importante para se pensar a ênfase que Rubem Alves coloca na política. Afinal, não somente o Brasil, mas muitos países da América Latina viviam em grande efervescência política e social, causada pela tomada de poder por governos ditatoriais. A supressão de movimentos democráticos e o tolhimento da liberdade de expressão provocaram, no continente, uma onda de terror e medo; quem se opusesse a tais lideranças governistas ficava completamente vulnerável, sem quaisquer direitos assegurados.

O protestantismo histórico, implantando no Brasil desde meados do século XIX, ainda não havia expressado, pelo menos em aspecto prático, a mesma postura encontrada nos religiosos do século XVI na Europa, cuja interligação entre religião e sociedade – ou política – era evidenciada.

O pastor presbiteriano e sociólogo Antônio Gouvêa Mendonça (2008), destaca a maneira como o protestantismo de missão (ou histórico) foi implantado no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. Nessa pesquisa, Mendonça analisa alguns hinos utilizados por esse setor protestante em seus cultos, constatando um caráter messiânico, cuja esperança se evidencia no “celeste porvir”, ou seja, com o retorno de Cristo a terra.

A crítica que Rubem Alves (2012) realiza sobre esse mesmo setor protestante, do qual ele fez parte, atuando como pastor na cidade de Lavras, interior de Minas Gerais (1958 – 1963), está associada diretamente à tese de Antônio Gouvêa Mendonça. Assim, em sua recusa do termo esperança e o favorecimento da palavra libertação, Alves busca romper com o pensamento protestante tradicional e ao mesmo tempo propor uma postura diferente, sendo o campo político o lugar mais propício para a atuação religiosa em busca de liberdade na história. Nesses termos, Alves se utiliza do êxodo para pensar esse processo de libertação: “E me pareceu que uma

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bela imagem poética para descrever este movimento era aquela de um povo que fora escravo, caminhando pela esperança, através do deserto” (ALVES, 2012, p. 52). Futuramente, teóricos da libertação ligados à Igreja Católica também utilizariam o mesmo evento bíblico em sua formulação.

Rubem Alves torna-se, portanto, um dos pioneiros da Teologia da Libertação, mesmo tendo o título de sua tese alterado. Diante dos problemas encontrados ao defender sua tese, Alves declara: “Não sabia que aquele era um primeiro afluente, quase sem água e sem nome, de um grande rio: teologia da libertação...” (ALVES, 2012, p. 53). José de Souza Martins, ao escrever o Prefácio da 3ª Edição da obra de Antônio Gouvêa Mendonça (2008), destaca Rubem Alves como o elaborador original da interpretação da Teologia da Libertação, tendo o mesmo reconhecimento vindo de um dos mais renomados teólogos da libertação, o padre Gustavo Gutiérrez.

Em sua formulação desse pensamento teológico de libertação, Rubem Alves (2012) utiliza o conceito de humanismo político para definir um novo paradigma na humanidade. Ao definir tal conceito, Alves ressalta o surgimento de uma nova consciência, que gera uma nova linguagem, resultando em uma nova comunidade. A esta comunidade, Alves denomina de “proletariado mundial”9, buscando no marxismo sua fundamentação.

O ponto de partida pelo qual Alves (2012) abordou o surgimento dessa nova consciência é a pobreza, encontrada nos países denominados de Terceiro Mundo, que, durante a Guerra Fria, não se viam pertencentes a nenhum dos dois mundos, a saber, leste e oeste. Tornaram-se, portanto, o Terceiro Mundo. A população desses países aguardava que houvesse um desenvolvimento à semelhança dos demais, o que não ocorreu. A consciência proletária, assim, percebeu a disparidade existente entre as nações ricas e as pobres, bem como o distanciamento que aumentava cada vez mais entre elas. Enquanto alguns conviviam com a fome e a miséria, encontrando dificuldade de prover o próprio sustento físico, outros viviam sob um sistema de abundância, desperdício e com elevado investimento em armamentos bélicos.

Além da percepção da pobreza, a consciência proletária também se deparou com o sentimento de impotência historicamente constituído, diante, por exemplo, do colonialismo (ALVES, 2012). Nessa perspectiva, o discurso de Rubem Alves insere-se no pensamento de Manoel Bomfim (2005) sobre a colonização predatória na América Latina, provocando dependência dos antigos moradores aos novos. E, de acordo com Alves (2012), é esse sentimento que faz unir pessoas do Terceiro Mundo, por exemplo, com estudantes dos países

9 Embora o termo proletariado seja um termo marxista, Rubem Alves (2012) não o associa apenas às relações econômicas e políticas de uma sociedade como fez Marx. Antes, Alves o utiliza no sentido da existência de uma consciência que reconhece a si mesma como proletária, em seu próprio contexto em que vive. Ao fazer isto, Alves não determina que essa nova consciência surja somente entre grupos pertencentes a países pobres; ela pode também ser encontrada em grupos raciais ou de estudantes que vivem em países social e economicamente desenvolvidos. Assim, Alves denomina essa comunidade por ecumênica, não no sentido estritamente religioso, mas sob o ponto de vista social, ou seja, composto por grupos de vários países, independentemente de sua classe social.

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mais desenvolvidos sob a perspectiva da consciência proletária. Embora não sendo pobre, esses estudantes também se veem impotentes e impedidos de tornarem-se sujeitos livres para criar a sua própria história.

Ao abordar a consciência proletária, ligada a um novo sujeito, Alves (2012) utiliza os termos: “nova geração”, “hoje”, “linguagem diferente”, “contradição”, “negação” e “novo amanhã”, referindo-se ao homem de sua época em busca não apenas de alcançar a libertação, mas, sobretudo, capaz de realizar tal objetivo. Ou seja, a criação da própria história só é possível por meio do exercício do poder. “Somente através do exercício histórico do poder é possível negar-se o hoje inumano e abrir-se caminho rumo a um futuro mais humano” (ALVES, 2012, p. 78).

Encontra-se, na utilização do poder, a forma histórica de libertação do ser humano, afirma Alves (2012). E o emprego do poder é um ato político. A política seria, de acordo com Rubem Alves,

a prática da liberdade, uma atividade do homem livre com o intuito de criar um novo amanhã. Neste contexto a política não mais é entendida como uma atividade de poucos, como um jogo de poder das elites. Antes, ela consiste na vocação do ser humano, pois todos são chamados a participar, de uma forma ou de outra, na criação do futuro (ALVES, 2012, p. 78-79).

Percebe-se que o novo homem que Rubem Alves aborda tem um forte vínculo com a sua trajetória de vida religiosa. Embora o autor mencione os negros nos Estados Unidos, estudantes universitários e grupos de países subdesenvolvidos como criadores de sua própria história, Alves está dialogando com o sistema em que o protestantismo histórico se encontrava na América Latina e especialmente no Brasil, em que ele próprio, quando fazia parte dessa instituição religiosa, foi delatado por líderes de sua igreja aos militares no período da ditadura militar, sendo acusado de subversivo, tornando-se, assim, mais um entre vários religiosos perseguidos10.

No pensamento de Alves (2012), parece não haver conciliação entre a atuação na história, como sujeito livre, e ao mesmo tempo pertencer a uma comunidade de fé, que justamente inibe quaisquer aspirações e anseios de intervenção libertadora na história. São linguagens diferentes. Para aprender uma, é necessário desaprender a outra. Para Alves, a questão não está apenas em serem linguagens diferentes. “O fato, contudo, é que elas parecem ser estruturalmente opostas, de forma que o verdadeiro aprendizado de uma, isto é, a apreensão da experiência histórica que ela carrega em si, requer o esquecimento da outra” (ALVES, 2012, p. 100-101).

O pessimismo de Alves quanto a um possível entendimento entre ambas linguagens é

10 Além de religiosos, outros grupos sofreram perseguição pelos militares, como: jornalistas, estudantes, intelectuais, trabalhadores etc. Para maior aprofundamento do tema, ver: Brasil: nunca mais (1989).

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SUJEITOS RELIGIOSOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

notório: “nesta atmosfera de ‘diálogo’ que se tem hoje, as arestas tendem a ser esquecidas na tentativa de se encontrar um terreno comum para a conversação” (ALVES, 2012, p. 101). Ou seja, para Alves deve haver o confronto na tentativa de se chegar a um entendimento comum. Mas, na percepção do autor, não é o que ocorre, o que torna fracassada qualquer aproximação entre essas linguagens.

Em Nietzsche, Alves (2012) encontra a forma mais elaborada de uma nova linguagem que rompe completamente com a linguagem da igreja – e, portanto, religiosa –, ao decretar a morte de Deus.

Se a morte de Deus significa a libertação do homem é porque a vida de Deus implicava sua escravidão. Ele constituía os muros de uma prisão, uma limitação da liberdade, uma domesticação da ousadia e da criatividade humanas – pelo menos este Deus de que fala a linguagem da Igreja (ALVES, 2012, p. 102).

O final do texto deixa clara a crítica de Alves à igreja como instituição. Portanto, para ele, o que causava a escravidão, prisão, limitação da liberdade, domesticação da ousadia e da criatividade humanas não era Deus, mas a igreja cristã, inclusive aquela a que ele pertencia: Igreja Presbiteriana do Brasil.

De igual modo, Alves se apropria dos estudos de Feuerbach ao fazer sua crítica contra a linguagem cristã, citando algumas frases desse filósofo alemão, como: “o empobrecimento do mundo real e o enriquecimento de Deus se dão num único ato” (FEUERBACH apud ALVES, 2012, p. 103).

Alves (2012), no entanto, não se apoiou apenas em pensamentos oriundos da filosofia clássica alemã, ou seja, de homens que em grande parte eram ateus. Em uma nota de rodapé, menciona Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo alemão, que criticava a igreja de sua época – em que o nazismo estava em ascensão sob a liderança de Hittler – que impedia a emancipação e liberdade do ser humano no mundo.

A proposta de libertação no pensamento de Alves propõe um rompimento, um ato de negação com a realidade em que o homem aprisionado vive. O evento de libertação, para o autor, “implica uma interrupção do curso normal dos acontecimentos. A realidade tem de ser negada e resistida. Não se lhe dá o direito de prosseguir no curso já determinado” (ALVES, 2012, p. 242). Alves mostra-se taxativo e não vê outro meio, senão o da negação do presente. A nova consciência que Alves menciona em sua tese, que se caracteriza pela busca de um novo amanhã, está associada à ação humana no tempo presente.

Alves não nega que exista no protestantismo a recusa à libertação humana ou que haja alguma forma de negação de tal ação; tema, aliás, sugestivo e até mesmo com capacidade de

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legitimar uma tomada de posição por parte desse segmento cristão.11 O discurso de Rubem Alves demonstra haver, na concepção protestante de libertação humana, a exaltação da figura do Messias como personagem único nesse processo de libertação, cujo ápice não se encontra na história. Esse ato de libertação gera, no entanto, efeito contrário: ao transferir para o Messias a tarefa de agir em prol da liberdade, cria, consequentemente, um espírito de alienação e de falsa esperança no homem, que não consegue ver-se como sujeito histórico, passível, ele próprio, de libertar-se na história. Tal possibilidade, em Alves (2012), é passada ao homem como uma ilusão.

Ao se revelar ao homem essa perspectiva, retirando dele o espírito criativo na história, Alves conclui que, “em vez de libertar o homem para a criatividade, a graça torna-a supérflua ou impossível” (ALVES, 2012, p. 271). Ou seja, um potencial que o protestantismo possuía em suas mãos, tendo os primeiros reformadores e as consequências resultantes de sua forma de engajamento, foi desperdiçado, assumindo no Brasil e na América Latina um sentido não apenas contrário, mas também contraditório, ao entrelaçar libertação humana e alienação em um mesmo sentido. Daí a proposta de Alves (2012) de se criar uma nova linguagem – a “linguagem de fé” –, que é a junção da linguagem teológica, cristã, com a linguagem do humanismo político. Por não haver diálogo entre ambas as linguagens, Alves sugere a morte de cada uma para que surja a “nova linguagem de fé”, que, ao mesmo tempo, promova a libertação humana, no presente, sem se esquecer da futura, de âmbito religioso. Esse é o primeiro embrião do que veio a se tornar a Teologia da Libertação, difundida nos setores do cristianismo – e até mesmo fora dele12.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou analisar a possibilidade de aproximação de sujeitos religiosos ao campo político, normalmente distante das práticas religiosas encontradas no protestantismo histórico no Brasil e na América Latina. Percebe-se no discurso de Richard Shaull como Rubem Alves, cada um de uma maneira, a relevância social da aproximação do campo religioso e político, o que resultou na formulação da Teologia da Libertação, também assumida posteriormente em segmentos católicos.

11 Ao falar sobre a preocupação com os pronunciamentos do papa, bem como quanto aos textos produzidos pelas Conferências dos Bispos da América Latina, se existe ou não um posicionamento a favor dos pobres, como houve nas Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), Jung Mo Sung (2008) afirma ser esta uma posição quase que inevitável nos dias atuais, visto que várias instituições assumem esse debate em suas agendas. Para o teólogo católico, tal posicionamento não reflete a real intenção, tendo em vista o processo de colonização e dominação dos povos do hemisfério sul, sob o discurso da civilização e do progresso para a região. Assim, para o autor, a questão maior não é se falam ou não em favor dos pobres, mas, sim, como falam. No caso do protestantismo, a questão que Alves (2012) discute não é se a libertação humana está ou não presente nas igrejas protestantes, mas como essa libertação é formulada.

12 Jung Mo Sung (2008) afirma que a proposta da Teologia da Libertação alcançou não apenas setores do cristianismo (católicos e protestantes) como também pessoas que já não mais faziam parte dessas igrejas, mas que ainda se identificavam com o pensamento cristão.

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SUJEITOS RELIGIOSOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

A crítica levantada ao conservadorismo existente no protestantismo no decorrer de sua história no continente, sua prática espiritualista e afastamento da realidade social em que as camadas populares viviam, ganhou força nessa nova teologia que estava em processo de formação no final da década de 1960, abrindo caminho para uma religiosidade que pudesse colocar em sua agenda a participação política de seus fiéis nos diversos segmentos sociais.

Embora não se tornou um pensamento hegemônico no protestantismo histórico, na verdade, apenas uma pequena parcela assumiu esse posicionamento crítico, torna-se importante o estudo desse tema, ao buscar compreender essa nova elaboração religiosa a partir de um contexto sócio-político da América Latina.

Conclui-se, portanto, que a proposta defendida por teólogos da libertação foi relevante para questionar o modelo tradicional estabelecido e pouco debatido entre religiosos, além de possibilitar o desenvolvimento de uma religiosidade que não legitimasse o status quo e os interesses de pequenos grupos interessados em perpetuar seu domínio econômico, social e político, bem como as desigualdades historicamente constituídas no continente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. O Deus do furacão. In: VVAA, De dentro do furacão: Richard Shaull e os primórdios da Teologia da Libertação. São Paulo: CEDI, CLAI, Prog. Ecum. de Pós-Grad. em C. da Religião, 1985, p. 19-24.

_____. Por uma teologia da libertação. São Paulo: Fonte Editorial, 2012.

BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

CAMPOS, Leonildo Silveira. O discurso acadêmico de Rubem Alves sobre o “Protestantismo” e “Repressão”: algumas observações 30 anos depois. Religião e Sociedade, v.28, nº. 2, Rio de Janeiro, 2008, p. 102-137.

CUNHA, Magali do Nascimento. O passado nunca está morto. Um tributo a Waldo Cesar e sua contribuição ao movimento ecumênico brasileiro. Estudos de Religião, Ano XXI, nº.33, jul./dez., 2007, p. 136-158.

DIAS, Zwinglio Mota. O movimento ecumênico: história e significado. In: Numen. Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, 1(1), jul.-dez., 1998, p. 127-163.

GONZÁLEZ, Ondina E.; GONZÁLEZ, Justo L. Cristianismo na América Latina: uma história. São Paulo: Vinda Nova, 2010.

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LUIZ ERNESTO GUIMARÃES

HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico. Richard Shaull pelo ecumenismo brasileiro: um estudo acerca da produção de memória religiosa. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano II, n.4, Mai/2009.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: EdUsp, 2008.

RAMOS, Jovelino. Você não conhece o Shaull. In: VVAA, De dentro do furacão: Richard Shaull e os primórdios da Teologia da Libertação. São Paulo: CEDI, CLAI, Prog. Ecum. de Pós-Grad. em C. da Religião, 1985, p. 25-32.

SANTA ANA, Julio de. A Richard Shaull: teólogo e pioneiro ecumênico – um testemunho reconhecido. In: VVAA, De dentro do furacão: Richard Shaull e os primórdios da Teologia da Libertação. São Paulo: CEDI, CLAI, Prog. Ecum. de Pós-Grad. em C. da Religião, 1985, p. 33-39.

SHAULL, Richard. As transformações profundas à luz de uma teologia evangélica. Petrópolis: Vozes, 1966.

_____. De dentro do furacão: Richard Shaull e os primórdios da Teologia da Libertação. São Paulo: Sagarana, 1985.

SUNG, Jung Mo. Cristianismo de libertação: espiritualidade e luta social. São Paulo: Paulus, 2008.

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UM MUNICÍPIO CHAMADO CURRALINHO: ANÁLISE SOB O PONTO DE VISTA DA ALIMENTAÇÃO MARAJOARA

Stefany Ferreira Feniman

Graduanda do 4º ano Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá/PR;Bolsista do Núcleo Unitrabalho/UEM

Resumo: Este trabalho analisa os principais resultados de uma pesquisa realizada sobre hábitos alimentares no município de Curralinho, no Pará. Tal investigação concretizou-se no contexto do Projeto Rondon, fomentado pelo Ministério da Defesa, em julho de 2012. Dentre as principais implicações investigadas, destaca-se a dupla combinação de açaí com farinha d’água, itens imprescindíveis de uma refeição base, do tipo almoço ou jantar, consumidos com algum tipo de carne. O apreço por tal combinação é generalizado na cidade de Curralinho e em toda a cultura da ilha marajoara, servindo também como itens para refeições intermediárias, do tipo cafés da manhã ou da tarde e lanche. Destaca-se também a prosperidade de recursos frutíferos que as condições geográficas e naturais oferecem para enriquecer a dieta do curralinhense, tendo sido registrados cerca de 40 desses itens típicos, incorporados no conhecimento popular e na dinâmica alimentar. Sublinhe-se também a pupunha, o taperebá, o muruci, a bacába, o bacuri, o buriti, o cacau, a castanha-do-pará, o cupuaçu, a mangaba e o tucumã. Apesar da dinâmica alimentar ser um dos principais marcos identitários de tal comunidade amazônica, observa-se que as políticas locais acerca da segurança alimentar e nutricional não contemplam tal idiossincrasia, como pode ser verificado, por exemplo, no cardápio das merendas escolares, que não incorporam nenhum item alimentar que valorize as características dos hábitos alimentares locais e regionais.

Palavras-chave: Hábitos alimentares; Cultura, Curralinho/PA.

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STEFANY FERREIRA FENIMAN

INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado da experiência de participação no Projeto Rondon, Operação Açaí, no município de Curralinho, no Pará. O Rondon é um projeto nacional de intervenção social fomentado pelo Ministério da Defesa, que executa ações para promover e melhorar o bem-estar de cidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A execução das ações é feita voluntariamente por estudantes universitários, cursando as séries finais de graduação, em parceria com os demais Ministérios, o apoio logístico das Forças Armadas para suporte e segurança durante a realização, e a colaboração dos governos estaduais e prefeituras1.

O projeto que representou a Universidade Estadual de Maringá foi submetido à avaliação do Ministério da Defesa e resultou aprovado em primeiro lugar dentre o total de 110 Instituições de Ensino Superior concorrentes ao edital. Isso concedeu à equipe maringaense o privilégio de escolher onde atuar dentre os 19 municípios de destino no estado do Pará.

A intervenção proposta continha 22 ações voltadas à linha da “Cultura, direitos humanos e justiça, educação e saúde” e a execução das mesmas coube à uma comitiva multidisciplinar, formada por outros 8 acadêmicos, dos cursos de psicologia, pedagogia, direito, administração de empresas, enfermagem e medicina. As diferentes áreas de atuação dos alunos convergiram para o mesmo objetivo, de lutar pelos direitos de cidadania através da intervenção social, sob a coordenação da Profª Drª Marlene Novaes, docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.

O projeto se desenvolveu entre os dias 6 e 22 de julho deste ano. A ação que preparei e assumi no município foi uma oficina de “Educação alimentar e nutricional”, sob a forma de um curso com carga horária de oito horas de realização, planejado para os dois últimos dias de permanência na cidade. Nos dias que antecederam, instiguei-me em uma pesquisa pelos peculiares hábitos alimentares marajoaras e como estes poderiam ser melhor assimilados a fim de auxiliar o cumprimento e promoção de políticas de Segurança Alimentar e Nutricional a nível local.

Esta é a justificativa para a apresentação deste trabalho, usar o papel social da universidade para retonar a sociedade seus saberes. A experiência de participação no Projeto Rondon foi marcante na trajetória acadêmica porque consolidou o sentido de responsabilidade social, estimulando sem medida a luta em prol da cidadania, do desenvolvimento e da defesa dos interesses sociais.

A CIDADE

Não à toa Curralinho foi escolhido para execução das ações. Com uma população da ordem

1 Fonte: < http://projetorondon.pagina-oficial.com/portal/> Acesso em 12 de outubro de 2012

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UM MUNICÍPIO CHAMADO CURRALINHO: ANÁLISE SOB O PONTO DE VISTA DA ALIMENTAÇÃO MARAJOARA

de 28.549 (IBGE, 2010), em que 10.938 indivíduos habitam área urbana e 17.611 a zona rural, trata-se de município com o mais baixo Indice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado do Pará (0,468). A população é predominantemente jovem. Na cidade não há carros, água tratada. Não há hotéis, mas grande número de casas palafitas posicionadas sobre esgoto a céu aberto.

A precária estrutura, aliada aos altos escândalos de corrupção que o município noticia, bem como brusca mudança climática que atinge o organismo, foram grandes motivos de choque. Apesar do desconforto e da falta de comprometimento do poder público pelos seus cidadãos, Curralinho é cidade de gente amável. Gente que não pode ser definida como carente porque erraríamos ao caracterizá-la por aquilo que falta. Preferimos, sim, definir esta gente pelas riquezas que possuem. A riqueza de itens alimentares foi aquela que cuidei de iluminar, a fim de concretizar com sucesso a oficina e honrar meu compromisso ético de cientista social na luta por um país mais justo.

OS DADOS

A abordagem adotada para realização desta pesquisa pautou-se eminentemente pelo método etnográfico, apreendendo os processos, as interações sociais, as práticas e representações da singularidade e complexidade do viver cotidiano.

Sobre o critério metodológico utilizado para empreender a pesquisa, a autora Leny Sato (2001) indica:

uma estratégia que informa o trabalho de pesquisa, rica para o estudo dos processos e interações sociais, das práticas e das representações. Possibilita por todas as suas características, acessar a complexidade, a singularidade, a ‘arte de fazer’, (Certeau, 1994), que constituem as atividades diárias das pessoas. (SATO, 2001).

Baseada nestas potencialidades, as reflexões surgiram a partir do procedimento metodológico que se pautou na abordagem etnográfica, com ênfase na observação participante, com aplicação e análise de 25 questionários, de perguntas abertas-fechadas, sobre o histórico da forma de se alimentar nas três comunidades rurais e ainda, relatório do diário de campo.

Desde a chegada a Curralinho, até o último dia, quando dá ocasião de encerramento da oficina, desempenhei observação participante, anotações em diário de campo. Para adentrar no universo daquela população, adotei um questionário semi-estruturado, usado como pretexto inicial para abordagem de uma conversa, e eu entrevistei sete indivíduos.

A receptividade com que a cidade acolheram minha pesquisa de campo foi aberta e disposta, a vezes mais familiar e expansiva, outras mais tímidas e formais, mas sempre cercada de respeito. A população é imensamente hospitaleira, de modos simples, e com isso a pesquisa ganhava estímulos nova aproximação com aquela gente tão amável. Com o decorrer do trabalho

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STEFANY FERREIRA FENIMAN

foi possível apreender valores comuns aos produtores, familiarização com as produções do sítio, produções para o consumo próprio e para o consumo externo, suas histórias de vida e laços de parentesco existentes.

Sobre a alimentação, o autor Martin Tempass (2005) explana:

A alimentação é um traço cultural que expressa relações e pertencimentos grupais e define identidades. Além de boa para comer, a comida também é boa para representar e significar. A origem e as características sócio-culturais de um determinado grupo podem ser reconhecidas por meio do estudo sobre a maneira de comer, o cheiro, a aparência e o sabor dos alimentos por ele consumidos. (TEMPASS, 2005:88)

Isto significa dizer que para o entendimento dos grupos sociais, da sua estrutura, da sua dinâmica, organização, para compreender que grupos são esses, os hábitos alimentares revelam-se como um eficaz instrumento e objeto analítico. Neste trabalho são esses hábitos alimentares que permitem a reflexão sobre os fatores sociais, culturais, ecológicos, econômicos e históricos, associados às redes de representações, simbolismos e rituais presentes nas comunidades rurais envolvidas.

Assim, para o entendimento dos grupos sociais, da sua estrutura, da sua dinâmica, organização, para compreender que grupos são esses, os hábitos alimentares revelam-se como um eficaz instrumento e objeto analítico. Neste trabalho são esses hábitos alimentares que permitem a reflexão sobre os fatores sociais, culturais, ecológicos, econômicos e históricos, associados às redes de representações, simbolismos e rituais presentes na comunidade envolvida.

Eu poderia afirmar com tranquilidade que a combinação do açaí com a farinha dágua constitui o maior elemento identitário que poderia haver na cultura alimentar curralinhense. A relevância atribuída à farinha e ao açaí é imensa, indispensável que se tenha sempre em casa. O açaí com farinha começa a ser servido já aos bebes e crianças desde pequenos. Em casos repetitivos, fui informada de que a substituição ideal para o arroz dinâmico é o açaí com a farinha. Outro elemento que não poderia deixar de ser comentado consiste na abundância de peixes, camarão e frutos do mar compondo o cardápio dos curralinhenses.

Os peixes podem ser fritos, ensopados, cozidos, assados. O camarão também merece um adendo especial, porque em consenso dos entrevistados, é apreciado por ser típico da região, ter em abundância, o que explica o fato de ele sempre estar presente na mesa dos Curralinhenses, apesar de possui a delicadeza de ser um alimento do tipo “reimoso”, expressão antiga que é conferida ao “alimentos perigosos”.

Durante disponibilidade em Curralinho, ocupei-me da investigação, registro e análise dos recursos alimentares naturais disponíveis na região. Tamanha foi a surpresa ao topar com uma variedade amplamente diversificada de frutas, muitas delas genuinamente nativas da região

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UM MUNICÍPIO CHAMADO CURRALINHO: ANÁLISE SOB O PONTO DE VISTA DA ALIMENTAÇÃO MARAJOARA

norte, e desconhecidas ao paladar sulista desta pesquisadora. Dentre elas, registro os seguintes tipos:

Abricó, açaí, arabu, araçá, bacába, bacuri, biribá, buriti, cacau, cajá, caju, carambola, castanha do pará, ceeu, cipó alho, cubiu, cupuaçu, fruta do conde, graviola, inajá, jenipapo, ingá (cipó, grande, batalão, cururu), jambu, mangaba, mangostão, marí, mari-mari, muruci, noni, piquí, piquiá, pupunha, taperebá, tento, tucumã, turanja, urucum, uxi, alfavaca, e etc.

Dentre essas, as mais comuns são o açaí, taxado como o “outro preto” por um dos entrevistados, e o elemento que mais se destaca na produção de lá, sendo colhido em abundância, sua presença se aproxima também da disseminação de um “mito de origem” comum para a cidade, com a construção dessa ideia, o açaí se mistura à promessa de sucesso e desenvolvimento à cidade, onde a partir dele tudo te, começo.

As outras melhores frutas disponíveis lá que são populares são o araçá, bacaba, bacuri, buriti, castanho do Pará, cupuaçu, jambu, muricu, pupunha, taperebá e uxi.

Jambu é uma erva típicamente da região norte, sobretudo do Pará, utilizada em larga escala como tempero culinário conferindo à comida um gosto especial e muito peculiar.

Cipó de alho é uma planta do tipo trepadeira, também muito popular entre os curralinhenses para o tempero dos alimentos. Sobre este cipó também repousa o vínculo com os traços da cultura, uma vez que plantado na frente das casas, repelia o “boto” de aproximar-se da casa.

Dentre as descoberta a aprendizagens sobre essa cultura do “outro”, a pupunha foi uma das grandes conquistas. Incrível saber que se trata de um alimento rico em gordura - Alto conteúdo energético, elevado teor de vitamina A, tem um desenvolvimento que não agride o meio ambiente nem as pessoas, é uma das maiores fontes de selênio do reino vegetal, mineral que atua na prevenção do câncer, de acordo com pesquisas da USP.

Entre os benefícios da pupunha: “No estado do Amapá, por meio de um programa governamental de desenvolvimento sustentável, a pupunha está sendo incluída nos cardápios escolares no preparo de mingaus ou misturados a pratos salgados, apresentando boa aceitação.” (BRASIL, 2002).

Os pratos típicos Pará, como o tacacá, a maniçoba, o vatapá, o arroz paranse, pato to tucupi, lá são feitos com menor frequência em Curralinho. Apesar de que o tacacá é comercializado livremente na rua do centro e atrai a todos.

O assunto da alimentação é um campo de pesquisa que intersetorializa diversas áreas, acionando o potencial de cada uma delas. Envolve a área de cultura, quando valoriza as relações sociais, resgata o sentimento de identidade, pertencimento a um grupo por meio

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do compartilhamento de hábitos alimentares comuns; de saúde, quando foca na questão de Segurança Alimentar e Nutricional a fim de garantir qualidade de vida à população e evitar vulnerabilidade à doenças advindas de ausência alimentar ou dieta inadequada; a área de educação, pois promove a informação, conscientização e reeducação das pessoas, capacitando-as à novos saberes; de política, porque também contempla a participação de gestores, autoridades e lideranças para assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), bem como promover a relevância da temática. Desta forma, em rede integrada

Durante a experiência foi possível notar questões importantes referentes à alimentação. Apresento aqui a revitalização e o resgate do patrimônio alimentar do município de Curralinho, concretizado nas dimensões simbólicas e culturais do alimento e da alimentação.

A farinha é um componente alimentar de extremo valor na dieta alimentar marajoara, sendo apontada pelos entrevistados como uma herança de família, consumida desde que tomam consciência de si e constroem a identidade curralinhense. Nas palavras do entrevistado se traduz da seguinte forma: desde quando me conheço por gente. Isso é ilustrativo do quanto o alimentar-se constitui fato social digno de análise e reflexão, e também uma região que demarca identidade, na medida em que Stuart Hall explana: “Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento” (HALL, 2011, p. 38).

A apreensão dos costumes alimentares pelo indivíduo tem início desde o nascimento e se estende ao longo da vida. Esses significados, valores e sabores partilhados pelo grupo pré-existem ao indivíduo e independem dele para continuar existindo, de forma não estática, não acabada, suscetível de transformações.

A economia familiar em Curralinho, em muito, se beneficia do comércio de itens alimentares (tacacá, bolos, salgados e etc.) que, preparados nos domicílios, são vendidos dispostos em pequenos tabuleiros posicionados em frente das casas. Nesta comercialização, observou-se a necessidade de reeducação dos cuidados com manipulação dos alimentos, uma vez que o preparo é feito de forma simples, rudimentar, ausente de cuidados básicos de limpeza e higiene responsáveis por imprimir segurança ao item alimentar a ser consumido.

Em Curralinho, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), já consta com a aprovação federal para destinação de verbas para o município, carecendo apenas da sensibilização da população para criação de Conselho de Segurança Alimentar, exigência formal para repasse dos recursos.

O PAA consiste em uma das iniciativas do Programa Fome Zero, desenvolvida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, para garantir o acesso aos alimentos em quantidade, qualidade e regularidade suficiente às populações em situação de insegurança alimentar e nutricional e ainda promover a inclusão social no campo por meio do fortalecimento

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UM MUNICÍPIO CHAMADO CURRALINHO: ANÁLISE SOB O PONTO DE VISTA DA ALIMENTAÇÃO MARAJOARA

da agricultura familiar.

A prefeitura, por meio do PAA, pode adquire alimentos com isenção do processo licitatório, por um custo de referência, nem superior nem inferior aos praticados nos mercados regionais, até o limite de R$ 3.500,00 ao ano por agricultor familiar que esteja devidamente contemplado no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF2.

Um dos motivos de militância política à que este trabalho de presta, é de que haja o casamento entre toda esta cultura alimentar aqui exposta e as políticas voltadas ao cardápio da merenda escolar. Por exemplo: mesmo o açaí seja de longe, o alimento mais consumido dos moradores, ele não está incorporado de forma correta pelas profissionais de nutrição.

Compete aos curralinhenses definir as próprias políticas e estratégias de produção, distribuição e consumo de alimentos.

É preciso garantir o direito à alimentação adequada com correlato respeito às múltiplas características culturais, bem como estimular um movimento de educação alimentar e nutricional, oposto à globalização da alimentação, do consumo e das dietas inadequadas e sanar a carência de boas práticas de manipulação de alimentos.

O resgate do patrimônio alimentar deve contribuir para a promoção da saúde, da soberania alimentar e da preservação da identidade alimentar e cultural da cidade. O interesse é valorizar o conceito nativo de comida como expressão de identidade cultural, social, de gênero e da ancestralidade de forma emancipatória.

Houve o choque cultural, a troca de conhecimentos, o descobrir-se no outro, e o intenso desejo de fazer honrar o conhecimento acadêmico em prol de uma sociedade mais justa e cheia de esperança. De forma que a postura adotada diante das circuntâncias eram mediadas pelo que Geertz (2010) adverte:

“Assim como não devemos esperar que um cirurgião diga ‘morreu e já vai tarde’, uma antropólogo não exclamaria, retirando-se da cultura que houvesse acabado de investigar como quem tirasse as roupas de trabalho: ‘Que jeito horroroso de viver!’ Porque, mesmo que os nativos estivessem pobres e cobertos de pó e feridas, mesmo que estivesse morrendo como moscas, ainda assim o observador podia notar com que frequência eles riam como era raro brigarem, ou como eram serenos.” (Geertz apud Gass, 2000)

O trabalho realizado, como boa parte das atividades de pesquisa e extensão, levou a uma transformação entre pesquisador e pesquisado, devido ao que pôde ser apreendido por meio da relação durante o desenrolar da pesquisa de campo. Essa troca enriquece o estudo e torna essas experiências relevantes ao estudo das culturas, de seus hábitos, valores e formas de vida.

2 Fonte: <http://www.ceasa.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=13> Acesso em 12 de outubro de 2012.

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STEFANY FERREIRA FENIMAN

Entra em campo a alteridade do etnógrafo por reconhecer-se no outro, familiarizando-se com o exótico e estranhando o que lhe é familiar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição. Alimentos regionais brasileiros. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição. – 1. ed. – Brasília: Ministério da Saúde, 2002

IBGE. Incorporação da cultura alimentar à garantia do Direito Humano a Alimentação Adequada. IBGE. Sinopse do censo demográfico de 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/sinopse.pdf>. Acesso em 18.03.2012.

MACIEL, Maria Eunice. Cultura e Alimentação ou o que tem a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin?. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 7, n. 16. p. 145-156, 2001.

PEDRAZA, Dixis Figueroa. Padrões alimentares – da teoria à prática – o caso do Brasil. Revista Virtual de Humanidades, 9(3), jan/mar, 2004. Disponível em: <http://www.periodicos.ufrn.br> Acesso em 22 de agosto de 2011.

SATO, Leny; SOUZA, Marilene Proença Rebello de. Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em Psicologia. Psicol. USP [online]. 2001, vol.12, n.2, pp. 29-47. ISSN 0103-6564. <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642001000200003>.

TEMPASS, Mártin César. Antropologia e comida. In: ASSIS, Valéria S. (org.). Antropologia, cultura e educação. Maringá: Eduem, 2005.

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ZÉ CARIOCA E O HOMEM CORDIAL: UM RETRATO DO BRASILEIRO NO CINEMA

Anderson A. Rocha

Professor da Faculdade Maringá e Unifamma;Mestrando do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.E-mail: [email protected]

Resumo: O objetivo deste trabalho é relacionar o personagem Zé Carioca, da Walt Disney, com o conceito de Homem Cordial apresentado por Sérgio Buarque de Holanda. Para isso serão apresentados a animação americana e o curta metragem, Aquarela do Brasil, onde o referido personagem é introduzido. Além disso, será discutida a formação da identidade nacional e a sua difusão por meio do cinema. Outra abordagem do debate será a caracterização do brasileiro mediante as discussões do pensamento social do início do século passado no Brasil.

Palavras-chave: Identidade nacional; Desenho animado; Cultura.

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ANDERSON A. ROCHA

O Brasil e o brasileiro têm seus ícones de representação facilmente visualizados na cultura pop dentro e fora do país. As expressões, costumes e características que marcam essa brasilidade estão visíveis no cotidiano, e congelam no imaginário a figura simbólica do brasileiro por meios de alguns de seus representantes. Em reproduções estereotipadas, o Brasil aparece sempre representado pelas mesmas imagens: a mulata, a baiana e o malandro se tornaram os arquétipos deste país.

Porém, é fato que apresentar o país, seus habitantes, e toda sua gama de costumes e tradições não pode ser feito de maneira única. As demais tradições que compõem a nação ficam de fora, para dar espaço a uma figura única e generalizada que suprimi em si toda a diversidade. Ou não é fato, que dentro do Brasil cabem igualmente outros representantes? O gaúcho, o sertanejo ou até mesmo os nikkei1 somam-se ao retrato geral que dá rosto ao país.

Contudo, numa produção cinematográfica, como o objeto de análise deste trabalho, os aspectos mais complexos e gerais da identidade brasileira ficam suprimidos, por diversos fatores, e esta “micro-representação” passa a representar, dando voz, ao todo. Assim, utilizando como objeto para ser estudado o filme “Saludos Amigos2 (Alô, Amigos)” (1943), e tendo como base a bibliografia acerca da identidade brasileira e da brasilidade este trabalho pretende entender a relação que se estabelece entre a animação e o “Homem Cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, e como essa relação pode ser usada para ilustrar, por meio do cinema, a figura do brasileiro.

Desta forma, pretende-se mostrar, com base na da revisão das discussões sobre a brasilidade, o cinema como o reprodutor desta identidade brasileira, que nasce numa figura representativa do Brasil e que, por meio das próprias práticas do cinema, reproduz-se como uma espécie de “identidade nacional”.

Assim, cabe apresentar o objeto de análise deste trabalho: em meio à Segunda Guerra Mundial, nasceu nos Estados Unidos da América, produzido pelos estúdios Walt Disney Company, o personagem de cinema, televisão e quadrinhos “José Carioca”. Um papagaio, vestido esteriotipadamente como o “malandro do Rio de Janeiro”. O personagem foi apresentado no desenho “Saludos Amigos”, no qual os famosos animais antropomorfizados da Walt Disney passeavam pela América do Sul (Brasil, Argentina, Chile e Peru). A animação fazia parte da campanha de “boa vizinhança” dos EUA durante a Guerra. O comportamento abertamente preconceituoso dos Estados Unidos para com a América Latina começa a mudar durante a grande depressão, e se intensifica no período da Guerra. “A velha fórmula da política da boa vizinhança foi retomada em todos os jornais, as duas estações de rádio existentes à época, e obviamente Hollywood, foram conclamados a participar da luta contra o nazi-facismo”

1 É uma denominação em língua japonesa para os descendentes de japoneses nascidos fora do Japão ou para japoneses que vivem regularmente no exterior.

2 Distribuido por Walt Disney Productions e produzido pela RKO Radio Pictures

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ZÉ CARIOCA E O HOMEM CORDIAL: UM RETRATO DO BRASILEIRO NO CINEMA

(FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 10). O propósito era disseminar a cultura dos EUA pela América e encorajar a opinião pública em favor dos interesses americanos em meio à Guerra.

Na animação, o trecho que se refere ao Brasil foi nomeado “Watercolors of Brazil” (Aquarela do Brasil), dura pouco mais de 8 minutos, e mostra o personagem Pato Donald sendo apresentado ao Rio de Janeiro pelo nativo “Zé Carioca”. O desenho tem abertura com o samba “Aquarela do Brasil”3. Durante a passagem de Donald ele tem a oportunidade de conhecer cenários do Rio de Janeiro e experimentar a cachaça brasileira. Acompanhado de uma trilha sonora com o famoso samba Tico-Tico no Fubá4.

Vídeo Áudio / Descrição

(trecho do filme “Saludos Amigos”, 38’51’’)

Enquanto caminham pelo calçadão de Copacabana, dançando ao som de Tico-Tico no Fubá, Zé Carioca Convida Donald para se sentar num bar.

Donald: - Ah... um refrigerante!

Zé Carioca: - Não! Cachaça. Que tal uma cachacinha agora, hein?

-Saúde!

Donald: - Goela abaixo, José!

(depois de Pato Donald ficar bêbado)

Zé Carioca: - Donald, agora você está com o espírito do samba.

A representação do Brasil por meio das telas do cinema, em uma produção feita fora do país, que une elementos comuns e representativos da identidade brasileira, encoraja a realização desse estudo, que visa entender esse perfil da identidade brasileira, transposta no cinema; e, ainda, analisar através de ferramentas metodológicas, como essa apresentação do Brasil aconteceu, se ela se aproxima da identidade brasileira e como ela se modificou durante esses 70 anos entre uma produção e outra.

[...]Zé Carioca, criada por Walt Disney em 1942 para o filme ‘Alô, Amigos’. Nessa ocasião, Zé Carioca introduzia Pato Donald nas terras brasileiras, bebendo cachaça e dançando samba junto com o mais famoso e teimoso pato de Disney. Tamanho foi o sucesso do simpático papagaio brasileiro que três anos depois a mesma personagem voltava às telas, desta vez como estrela principal do exótico

3 Composta por Ary Barroso em 1939

4 Composto por Zequinha de Abreu em 1917.

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ANDERSON A. ROCHA

desenho Você já foi à Bahia?, que apresentava ao público norte-americano ‘as belezas dessa terra alegre de Carmen Miranda’. Com efeito, era o próprio olhar que vinha de fora que reconhecia nesse ‘malandro simpático’ (Disney, 1945) uma espécie de síntese local, ou ao menos uma boa imagem a ser exportada. (Schwarcz, 1995, p. 3, grifo nosso)

É importante ressaltar que este período é de extrema ligação do Brasil e dos demais países da América Latina com os Estados Unidos, e que este filme não é o único que pretende retratar o país por meio do cinema de Holywood. Essa relação teve como um dos mais fortes ícones a “baiana” Carmen Miranda5. Porém, o Brasil retratado pelo cinema americano tem inicio antes disso.

O cinema começou a abordar o país na década de 1920, na primeira película a ter o Rio de Janeiro como cenário, no filme Girl from Ipanema6(1927) tinha “personagens cariocas com nomes hispânicos e o Rio era apresentado como uma vila esquálida” (FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 8). Daí em diante, impulsionado por interesses comerciais e ideológicos em conquistar a América Latina, o cinema de Hollywood passou a desenvolver obras tendo o Brasil (na maioria dos casos representados pelo Rio de Janeiro) como pano de fundo para as produções.

Nessa escalada da relação entre os EUA e o Brasil, deve-se destacar como perpetuadora da identidade brasileira fora do país, na década de 1930, a cantora e atriz portuguesa Carmen Miranda. “Sim, nós temos bananas” associou a imagem do país à festividade, à música alegre, às roupas ousadas e coloridas e à simplória fruta que passou a simbolizar o país. “A Brazilian Bombshell7, como passaria a ser conhecida, explodia na cena americana com suas canções de letras indecifráveis, com seu exotismo e seu excesso” (FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 18).

Carmen Miranda inicia essa representação do Brasil fora do país, e vai transferir ao mundo essa figura do brasileiro mediado pelo cinema. Um novo passo nessa ideia é dado com o lançamento, pelos estúdios Walt Disney, do filme “Saludos Amigos” e com a apresentação de José (Joe) Carioca, como mais um personagem representativo da identidade brasileira.

‘Alô, amigos’, exaltava precisamente um país de coqueiros e mães-pretas, ‘o país do samba e do pandeiro’. [...] Apesar de Zé Carioca celebrar o malandro, sempre disposto a abrir mão do trabalho para gandaiar, o filme como um todo foi visto pelo governo brasileiro como um retrato positivo do país, apesar (ou por causa) da ausência de atores negros em papéis proeminentes. (FREIRE-MEDEIROS, 2005, P. 22).

Segundo Simone de Sá (apud FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 22) “esses produtos

5 Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu em Porto, Portugal em 1909, e morreu em Los Angeles, EUA em 1955. Apesar de Portuguesa foi marcada nos EUA como “Baiana”, portanto brasileira.

6 RKO Radio Pictures, direção de Herbert Brenon.

7 A mulher sensual do Brasil, tradução livre.

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artísticos nunca eram questionados internamente; ao contrário, eles passaram a ser conhecidos como ‘expressões autênticas’ da ‘alma brasileira’”. Assim, é possível visualizar essa relação das representações da identidade por meio do cinema reproduzindo para o mundo e para o Brasil essa “alma”.

Mas, é fundamental entender o que é essa brasilidade que se reproduziu por meio do cinema no início do século passado, e até hoje continua a atestar o nosso “eu” enquanto brasileiros.

No começo do século XX, a sociologia brasileira volta seus olhos para entender esta figura. O brasileiro era a base para entender e demonstrar características e categorias do “ser brasileiro”, principalmente voltado a entender a transição da vida rural para a urbana, no processo de modernização do país.

A idealização do Brasil moderno passou pelo o foco dos cientistas sociais, que procuravam a resposta, ou seja, entender a “atrasada” modernização brasileira.

A indissociação entre o público e o privado, a herança ibérica e a latinidade, o personalismo e o paternalismo foram usados como faces deste personagem “brasil” que parecia atravancado para a modernidade weberiana.

É importante ressaltar, que segundo Adrian Lavalle (2004), a explicação do Brasil por meio da raiz Ibérica, do paternalismo, patriarcalismo, paternalismo, etc., apresenta-se como possibilidade de esclarecimento de problemas sócio-políticos brasileiros até o início do século passado. Entretanto, estas explicações não podem ser transportadas como respostas ao dilema do espaço público no país, desconsiderando outras explicações mais pertinentes à contemporaneidade e mais complexas, envolvendo elementos materiais que constroem a modernidade brasileira.

Entretanto, esta discussão sobre a explicação “ad hoc”, sistematizada por Lavalle (2004) não será o foco do debate proposto. Assim, vale ressaltar a observação, sobre a existência do debate mais atual acerca da modernidade brasileira, em autores como Adrian Lavalle e Jessé de Souza (2000), que repercutem esta explicação primordial e inicial da sociologia brasileira.

Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando Azevedo, Oliveira Vianna e outros autores, foram responsáveis, pela solidificação do pensamento social brasileiro, utilizando ferramentas pertinentes ao seu período para solidificar as questões como a “identidade nacional”; a crítica de Lavalle (2004) é à apropriação direta destes pensamentos para explicar hoje a modernidade brasileira, fazendo com que esses conceitos viagem no tempo os mesmos conceitos.

O que é significativo para este trabalho é a existência desta tipificação do brasileiro,

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elaborada por estudiosos do início do século passado, e que vai formar uma imagem inicial do brasileiro, mais tarde reproduzida no cinema e fixada no imaginário como a realidade.

O fato de a raiz ibérica e o personalismo, sugeridos por Sérgio Buarque de Holanda, não se propor a responder os problemas da modernidade brasileira, como argumentado por Souza (2000), não exclui esse pensamento como molde inicial da fotografia que mostraria para todo o país e para fora dele a figura do brasileiro. Não se trata do “culturalismo atávico” proposto por Souza, mas de reconhecer que o entendimento destas ideias iniciais formaram base para a proposta da figura do brasileiro. O que propõem Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre entre outros intelectuais do século passado, deste ponto de vista, é olhar para o que é o Brasil e tentar compreender a sociedade brasileira a partir da questão da existência ou não de um “tipo próprio de cultura”.

Desta forma, uma descrição sobre o brasileiro e sobre as práticas sociais no início do século passado está retratada nas explicações de Sérgio Buarque de Holanda sobre o “Homem Cordial”. Para o pesquisador Avelino Filho (1989) este homem é a síntese do pensamento da época a respeito do que é ser brasileiro. “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro [...]” (1988, p. 106). Esta era a imagem do brasileiro, a de um “homem cordial”, que representava o dilema do país, entre o atraso e o moderno. Na visão de Souza

Nele, Buarque une as perspectivas micro e macrossociológicas, os componentes subjetivo e objetivo, os aspectos cultural e institucional, os pontos de partida da esfera da personalidade e os da esfera cultural mais ampla sob forma de uma concepção de mundo abrangente. (SOUZA, 2000, p. 164)

Na figura do homem cordial está retratado o Estado patrimonial, derivado direto como uma evolução da família e a relação afetiva (e “desrespeitosa”) com o sagrado, por meio do catolicismo familiar.

Fica claro que a constatação de Sergio Buarque sobre o “homem cordial” não se trata de um elogio ao jeito “brasileiro de ser”. A crítica se apresenta na relação estabelecida entre as práticas modernas e as “cordiais”. Aquilo que pode ser entendido como polidez é na verdade “impolidez”, já que não partilha de um código comum, que transforma todos em iguais, mas são regidos por regras abstratas de conduta. “Nossa forma de convívio social é no fundo justamente o contrário da polidez. [...] e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas do ‘homem cordial’” (HOLANDA, 1988, p. 107).

Para Avelino Filho (1989), este pensamento “cordial” e pessoal exerce na realidade, o contrario que faz parecer. A cordialidade é a troca do concreto pelo abstrato, das regras

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definidas e iguais pelo julgamento pessoal e passional. A força da cordialidade foi tão grande entre nós que penetrou em terrenos classicamente constituídos sobre uma relação impessoal, um dos exemplos utilizados por Holanda, é o do “mundo dos negócios”, “lugar por excelência do cálculo e do número, onde passa a existir uma tendência devido à limitação das relações pelo pequeno círculo de comércio - a tornar conhecidos o vendedor e seus compradores, e à confusão entre o cliente e o amigo na figura do freguês” (HOLANDA, 1988 , p. 109)

Vídeo Áudio / Descrição

(trecho do filme “Saludos Amigos”, 36’12’’)

(36’17’’)

Ao descobrir que estava frente ao famoso pato da Disney, o personagem brasileiro dispensa o aperto de mão oferecido por Donald, para abraça-lo.

Zé Carioca: - O Pato Donald? O Pato Donald?

- Ora, venha de lá um abraço!

Um mesmo daqueles. Um quebra-costelas, um bem carioca, bem amigo.

É interessante introduzir neste momento, a relação do pensamento de Sérgio Buarque, com o cinema. O pesquisador Maurício R. Gonçalves escrevendo sobre a identidade nacional e o cinema ressalta.

“O estudo de determinados fluxos de produção cinematográfica desenvolvidos no Brasil durante o século passado possibilita estabelecer como o cinema participou da construção do retrato da nação brasileira e com quais discursos processou a formação de uma imagem identitária nacional.” (2011, p. 11).

Essa relação do brasileiro proposto e descrito, com as práticas do cinema é que arquiteta essa imagem característica. Para Maurício Gonçalves (2011) o cinema de Hollywood exerceu

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papel fundamental para veicular informações sobre o nosso país, fixando aqui dentro e fora esta representação.

Ainda, na descrição da figura deste brasileiro, Buarque mostra a aversão ao ritualismo social e as regras abstratas guiando este “homem”; como exemplo a reverência aos superiores é evitada e só aceita quando há uma possibilidade desta relação se tornar mais familiar. “A manifestação de respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em geral, no desejo de estabelecer intimidade” (1988, p. 107). Buarque ainda atenta para o fato da omissão do nome de família. Em geral, essa cordialidade permite que as pessoas se identifiquem pelo nome de batismo, simbolizando uma aproximação de dois indivíduos, seja ele quem for. Até na linguística essa aproximação intimista fica marcada por uma característica da brasilidade. A adição do sufixo “inho” permite sonorizar e expressar um caráter de mais intimidade e apreço a pessoas e objetos.

O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por um ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida do brasileiro que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade. E, é tão característica entre nós essa maneira de ser, que não desaparece sequer nos tipos de atividade que devem alimentar-se, normalmente, da concorrência.

Nem nas engessadas tradições religiosas nosso “jeito brasileiro”, a cordialidade retratada por Sérgio Buarque de Holanda, dá lugar a uma relação polida com a divindade. A nossa aproximação com outro ser humano transfere-se, da mesma forma, para a relação com o divino, permitindo ao brasileiro uma intimidade com os símbolos religiosos. Os santos e santas do catolicismo e até a figura de Cristo “ganham” uma relação cordial, permitindo e difundindo-se o acréscimo do sufixo “inho” aos seus nomes. “No Brasil é precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza” (HOLANDA, 1988, p. 110)

Não atoa, o malandro clássico brasileiro, da televisão ou do cinema, tem nos itens que compõem seu estereótipo o crucifixo pendurado no pescoço. Não como forma de devoção, mas como marca de sua relação intima com o além.

A própria imagem do Cristo Redentor, marca representativa do Brasil nos produtos da cultura pop, não tem relação mais direta com o sagrado do que tem com as praias, as mulatas e o futebol.

Gilberto Freyre, discutindo o confronto eminente entre o Brasil rural e o urbano, em Sobrados e Mucambos, descreve a ascensão da juventude, não mais respeitosa, quieta e “ordeira”. Os jovens do inicio do século passado mudaram sua atitude, para as roupas que importavam o gosto da moda europeia, os charutos e as bebidas e os novos interesses. “Esses rapazes tão sem medo, tão sem respeito pelos mais velhos e até pelos santos, pelo próprio Santíssimo Sacramento?” (FREYRE, 1977, p. 87)

Ao refletir o declínio do patriarcalismo, Gilberto Freyre descreve esse novo personagem

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que, poucos anos a seguir, viria cristalizar a imagem do brasileiro, vestido a moda europeia, musical, fumando um “charuto Havana na cachucha”, bebendo cachaça e esbanjando “cordialidade”.

É importante ressaltar que essa identidade nacional, passa por uma construção “programada”. Durante o período em que escreveram suas obras, os pensadores clássicos da sociologia brasileira viviam em um momento de definições da formatação do Brasil. O conceito de nação é uma ideia construída, e não adquirida por meio de uma realização etérea. Renato Ortiz ressalta que “existe uma história da identidade e da cultura brasileira que corresponde aos interesses dos diferentes grupos sociais e de sua relação com o Estado” (1998, p. 9). A identidade nacional é um efeito da modernidade.

No pensamento de Habermas (apud GONÇALVES, 2011), a cidadania e a consciência nacional se definem como representantes de uma consciência cultural coletiva. Essa identidade não nasce com o indivíduo, mas, como diz o autor, é formada e transformada “[...] no interior da representação, não sendo apenas uma entidade política ‘mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural’” (GONÇALVES, 2011, p. 24, grifo do autor).

Essa construção da identidade nacional, reflexo da ideia de nação, é uma entidade histórica, que está sempre em processo de mudança e redefinições. “[...] a identidade nacional, que alimenta e formata a nação. Subjuga-se à temporalidade, adotando características de cada momento histórico em que se processa” (GONÇALVES, 2011, p. 26).

E essa identidade nacional, criada e mutável, pode ser refletida ao público por meio do exercício do cinema. “Não importa se escrito, musical, visual ou audiovisual, um texto contém em si o potencial de contribuir para a construção identitária de uma nação” (GONÇALVES, 2011, p. 28). Essa noção reforça o entendimento de que o filme pode ser usado para ilustrar este “brasileiro cordial”, que se transfere dos estudos de Sérgio Buarque (entre outras fontes) para o cinema e de volta ao público.

É importante ressaltar que as descrições do Brasil, desta “figura brasileira”, pode não estar presente na animação cinematográfica da Disney por força da coincidência. Vale lembrar que a empresa de entretenimento fez uma extensa pesquisa nos países que comporiam o filme, descobrindo elementos da sua cultura para apresentá-los no cinema. A equipe que participou da produção da animação fez uma longa viagem por toda a América Latina, ficando no Brasil em duas cidades, Belém e Rio de Janeiro. Na capital carioca os desenhistas, roteiristas, produtores e músicos permaneceram por mais de três semanas. Segundo Rosa (2010, p. 4), “a equipe de Disney fez, antes da viagem, uma ampla pesquisa sobre aspectos culturais dos países a serem visitados, de modo a tentar esboçar ideias para o filme.”.

Na ideia de Renato Ortiz, ao discutir a cultura e a identidade nacional, esse processo de disponibilizar essa identidade nacional para uma esfera popular (plural) passa pela figura de

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um mediador. Na sua análise, ele propõem o intelectual como o agente desta mediação. “Se os intelectuais podem ser definidos como mediadores simbólicos é porque eles confeccionam uma ligação entre o particular e o universal, o singular e o global” (ORTIZ, 1998, p. 139).

Desta forma, cabe interpretar o cinema e seus produtores como difusores desta mediação, porta vozes da mensagem mediada. A identidade, que é estabelecida por meio de momentos históricos, lutas, interesses e relações, é construída e apresentada utilizando-se desta mediação. Assim, o cinema pode ser entendido como difusor deste conteúdo apresentado, onde caminham as informações que construíram essa visão. É importante ressaltar que o cinema é fonte de prazer e significados para grande parte da população.

Segundo Graemer Turner (1997), o cinema se apresenta como representação do real e se apropria de diversos elementos que dizem respeito à cultura daquele local, proporcionando a disseminação de ideologias próprias daquele ambiente. Neste sentido, o consumo de filmes proporciona ao indivíduo um conhecimento de novos rituais e hábitos contribuindo para a hibridação cultural, fator comum na contemporaneidade. Na perspectiva de Turner, “o cinema é revelado não tanto quanto uma disciplina separada, mas como um conjunto de práticas sociais distintas, um conjunto de linguagens e uma indústria” (1997, pg. 49)

Na visão de Gonçalves (2011) os filmes americanos da década de 1930 carregavam uma ampla bagagem de mensagens sobre o modo de vida americano. Nos enquadramentos, comportamentos dos personagens, falas e cenários, nos itens técnicos e de drama as peças cinematográficas continham mensagens que se reproduziram por meio do cinema. Como exemplo, na análise do filme da Disney “Os Três Porquinhos”, de 1933, pode-se perceber o que ora se afirma.

Enquanto dois porquinhos constroem casas de palha e madeira, de modo displicente, cantando, dançando e tocando seus instrumentos, o terceiro constrói sua casa de alvenaria, ciente da importância de seu trabalho e diz: “construo minha casa de pedras, construo minha casa com tijolos. Não tenho oportunidade de cantar e dançar, pois trabalho e diversão não se misturam”. Assim, ele deixa claro ter feito sua opção pelo trabalho sério enquanto os outros continuavam a cantar e a dançar. Ao final, veremos os frutos dessa opção: enquanto os dois primeiros têm suas casas destruídas pelo Lobo Mau, e acabam colocando suas vidas em perigo, o terceiro porquinho fica são e salvo em sua casa de tijolos, onde acaba dando refugio aos outros (GONÇALVES, 2011, pg. 83)

Quando contextualizamos o período do lançamento do filme, que coincide coma Grande Depressão e o New Deal, percebemos que existe uma mensagem de perseverança e de crença no trabalho duro recompensador, que só o sacrifício pode fornecer a segurança e estabilidade.

Ao fazer a relação com a película da mesma empresa, a Disney, lançada nove anos após, é possível acreditar na adoção da mesma forma de difundir uma mensagem. Em sua

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ZÉ CARIOCA E O HOMEM CORDIAL: UM RETRATO DO BRASILEIRO NO CINEMA

análise sobre o mesmo tema, o filme e o personagem Zé Carioca, Lilia Schwarcz argumenta, “[...] é esse o período da criação do famoso Zé Carioca, que representava de forma mimética a simpática malandragem carioca, na recusa ao trabalho regular e na prática de expedientes temporários que garantiam uma boa sobrevivência” (SCHWARCZ, 1995).

Essa caracterização do brasileiro é carregada também pelas mensagens difundidas pelo cinema, cristalizando-se nos sentidos do senso comum. A identidade nacional, esse jeito, essa brasilidade se reproduz, ganha força e segue em frente por meio deste produto midiático. Essa cara do Brasil ganha força através do filme, e por ele se legitima na cultura. Turner reforça essa ideia, “o cinema desempenha uma função cultural, por meio de suas narrativas, que vai além do prazer da história” (1997, p. 69)

É importante salientar que o cinema não é o retrato da realidade, mas uma representação a partir do olhar do interlocutor e a apropriação do receptor que consome mediante as relações que estabelece a partir de suas crenças, ideologias, dentre outras formas. Nesse ponto de vista, há sempre um ressignificar, do conteúdo assimulado.

Porém, é característica da linguem do cinema a identificação do público com aquilo que assiste nas imagens em movimento. Para Turner (1997, p. 115), a identificação do público para com os personagens tem explicação na psicanálise Ao citar o teórico pós-freudiano Jacques Lacan, Turner explica que o fascínio exercido pelo cinema vai além dos heróis e enredos, mas é a fascinação pela própria imagem. Faz parte de uma característica psicológica chamada “fase do espelho” de acordo com a qual o individuo procura o deslumbramento em se ver refletido nas imagens.

Tomando como base essa discussão, é possível relacionar o momento de criação da identidade nacional com a exibição do filme, criando no público esse mesmo efeito, de dar forma a uma idiossincrasia coletiva, de se ver refletido.

Tendo como base as análises e revisões efetuadas, é possível propor esta reflexão, que toma o filme como a representação cristalizadora desta “personalidade coletiva”, da brasilidade. O personagem Zé Carioca assume em si as características propostas para o brasileiro daquele período, tendo como referencia o “homem cordial” de Sérgio Buarque e os jovens do começo do século passado de Gilberto Freyre.

O objetivo deste trabalho foi mostrar como essas referências do pensamento inicial do ser brasileiro passaram a ser representadas pelo cinema e como esse cruzamento pode ter contribuído para a formatação dessa identidade. Ao longo da história, a comunicação colaborou para com a formação de diversos valores e para com a intensificação de elementos que poderiam fazer surgir ideias ou ideologias. Maurício Gonçalves (2011, p. 27) apoiado no pensamento de Habermas, afirma que os esforços intelectuais de escritores e historiadores cooperaram para a “fabricação das identidades nacionais que foram difundidas pelos meios de comunicação de

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massa consolidando a ideia de uma nação unificada em bases culturais”.

Assim, Timothy Brennan (apud GONÇALVES 2011) reforça que o conceito de nação e identidade nacional depende de “um aparato de ficções culturais nas quais a literatura imaginativa tem um papel decisivo”, como foi apresentado neste trabalho, com base nas referências do brasileiro apresentado pelos estudos da sociologia do início do século passado.

Desta forma, entende-se que a relação estabelecida pelo filme com a figura do brasileiro e com o Homem Corial, com base nas descrições acima, podem apresentar a descrição do brasileiro icônico, que se reproduziu e se reproduz por meio do cinema.

REFERÊNCIAS

AVELINO FILHO, George. Cordialidade e Civilidade em Raízes do Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1989. Disponível em <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_12/rbcs12_01.htm>.

FREIRE-MEDEIROS, Bianca. O Rio de Janeiro que Hollywood inventou. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977.

GONÇALVES, Maurício R. Cinema e identidade nacional no Brasil 1898 – 1969. São Paulo: LCTE Editora, 2011.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1998.

ROSA, Marli. Pato Donald no Batuque nos “Bons Amigos”: Manifestações Culturais na Política na “Boa Vizinhança”. 9º Encontro Internacional Anphlac, 2010. Disponível em <http://anphlac.org/upload/anais/encontro9/marli_rosa.pdf>

SCHWARCZ, Lilia K. M. Complexo de Zé Carioca: Notas Sobre uma Identidade Mestiça e Malandra. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1995. Disponível em <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_03>.

TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997.

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RESUMOS SIMPLES - GRUPO DE TRABALHO I CULTURA, IDENTIDADE E DIVERSIDADE

Antropologia Ecológica: um olhar para as fronteiras agrícolas

Laís Vitória Moreira Bonifácio; Felipe Augusto Moreira Bonifácio ................................................................................150

A trezena na consagração de um taumaturgo franciscano

Élen Ângela Silva .......................................................................................................................................................................151

Colonialismo e resistência em Angola: algumas reflexões

Amanda Palomo Alves .............................................................................................................................................................152

Individualismo: o mal do século XXI?

Claudinéa Justino Franchetti .................................................................................................................................................153

Política e Gênero no Brasil: estudo sobre as dimensões subjetivas da sub-representação feminina

Renata Andrade de Oliveira; Ednaldo Aparecido Ribeiro ................................................................................................154

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ANTROPOLOGIA ECOLÓGICA: UM OLHAR PARA AS FRONTEIRAS AGRÍCOLAS

Laís Vitória Moreira Bonifácio; Felipe Augusto Moreira Bonifácio

1 Graduanda da Universidade Estadual de MaringáBolsista [email protected]

2 Mestrando do Programa de pós-graduação em Geografia - UEMBolsista [email protected]

Resumo: O seguinte trabalho refere-se à Antropologia Ecológica, estudo que tem a abordagem da relação do homem com o meio ambiente levando em consideração a cultura como forma de adaptação e alteração do meio em que ele se encontra. Partindo desse ponto, é possível verificar as abordagens, mecanismos e metodologias utilizadas por essa disciplina, entendendo epistemologicamente os seus processos, definindo uma melhor relação com ela, e posteriormente, interligando a teoria obtida através dessas bibliografias com estudos de casos específicos. Tal visão materialista é ainda pouco utilizada na antropologia em nosso país, dificultando o estudo e o desenvolvimento, fazendo da Antropologia Ecológica pouco conhecida. Há, dessa maneira, uma intensa dificuldade nos estudos nacionais dessa matéria que relata a importância da relação do homem com o seu espaço. Essa dificuldade resulta da escassez de pesquisas e publicações realizadas com essa temática. O objetivo desse artigo é evidenciar a prática desse estudo nas pesquisas sobre o avanço das fronteiras agrícolas modernas, sinalizando como tais métodos são colocados à prova e como de fato se dá as relações de interação entre os mundos biofísico e social e o que os fundamentam.

Palavras-chave:

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A TREZENA NA CONSAGRAÇÃO DE UM TAUMATURGO FRANCISCANO

Élen Ângela Silva

Mestranda/Unesp/MaríliaEmail: [email protected]ência Financiadora: Capes

Resumo: Esse trabalho apresenta parte das reflexões tecidas a partir da etnografia da festa de Santo Antônio das Tabocas em Abaeté, na região do Alto São Francisco em Minas Gerais. A trezena, realizada pelos franciscanos por meio da devoção litúrgica de Santo Antônio é marco fundador dos leilões e de uma peculiar rede de troca e doação dos mais variados objetos. Aqui, vislumbra-se o ritual festivo de Tabocas como um momento extraordinário que particulariza aspectos da vida social e que individualiza fatos e/ou relações sociais inserindo-os em foco através da dramatização. A partir da etnografia e das contribuições de Marcel Mauss para a Antropologia, busca-se analisar a importância dos leilões formatados por meio das doações dos mais variados objetos, não deixando de haver nelas, comidas e animais. Pensar a “reciprocidade hierárquica” através desse processo também é o foco deste trabalho na medida em que ela pretende anunciar a organização política da região onde a festa se realiza.

Palavras-chave:

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COLONIALISMO E RESISTÊNCIA EM ANGOLA: ALGUMAS REFLEXÕES

Amanda Palomo Alves

Universidade Federal Fluminense – UFF

Resumo: A presente comunicação apresenta as primeiras reflexões acerca do nosso projeto de pesquisa sobre o papel da canção nas lutas de libertação e no pós-independência em Angola. Os quatrocentos anos da presença portuguesa em África são marcados por diversas formas de resistência. Em meados dos anos 1940 e 1950, grupos de estudantes das colônias portuguesas se organizaram em torno de associações culturais legais a fim de formarem organizações que combatessem o jugo colonial e em prol da independência. Uma parcela da jovem intelectualidade de Luanda procurou se expressar através de poesia e textos literários que transmitiam a angústia dos angolanos e, ao mesmo tempo, reivindicavam os valores culturais negados pelo colonialismo. Neste contexto, surge o movimento “Vamos descobrir Angola” e a revista “Mensagem”. Ambos foram muito importantes enquanto elementos mobilizadores e de conscientização daqueles que futuramente iriam direcionar a luta anticolonial. Neste período foi gravada, também, uma série de canções que sinalizavam a necessidade de descolonizar e enalteciam o sentimento nacional. Em nome da independência política, os artistas manifestaram uma soberania cultural que os moveu em direção à nação e ao nacionalismo e assim foram capazes de criticar o sistema colonial português.

Palavras-chave: Angola; Colonialismo; Resistência.

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INDIVIDUALISMO: O MAL DO SÉCULO XXI?

Claudinéa Justino Franchetti

UEM

Resumo: A dimensão cultural do individualismo representa um dos temas mais teorizados atualmente pela área de Ciências Humanas. Principalmente porque esta dimensão se refere à posição e comportamento do individuo frente à sociedade, e em geral, ao grupo que pertence. Dessa forma, propomo-nos, neste estudo, a lançar algumas discussões acerca do exacerbado individualismo na sociedade atual. Abordaremos o tema fundamentado em um referencial teórico atualizado e interligado a discussões acerca da contemporaneidade. Para isso, em um primeiro momento, será discutido o conceito de individualismo, e em sequencia, o individualismo relacionado a questões como: o mundo competitivo do trabalho; a cultura e identidade de consumo; o “medo do outro”; os valores humanos e a emergência do “ser antissocial”; o narcisismo; a violência e o espaço urbano; o anonimato; a tecnologia que une e separa e, as amizades em uma sociedade solitária. Este estudo torna-se relevante, à medida que, toca na questão do individualismo exacerbado como um problema social, ou seja, o individualismo que gera indiferença política, violência física e psicológica, falta de solidariedade e falta de consciência critica e cidadã.

Palavras-chave:

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POLÍTICA E GÊNERO NO BRASIL: ESTUDO SOBRE AS DIMENSÕES SUBJETIVAS DA SUB-REPRESENTAÇÃO

FEMININA

Renata Andrade de Oliveira; Ednaldo Aparecido Ribeiro

1 PIBIC/CNPq-UEM

2 Orientador

Universidade Estadual de Maringá/ Departamento de Ciências Sociais/ Maringá, PR

Resumo: Dados coletados por diversas organizações nacionais e internacionais apontam a existência de grandes disparidades na representação política entre os gêneros. Estes revelam um quadro de sub-representação feminina que impacta negativamente a qualidade de nossa jovem democracia. Para isso, o primeiro ponto trata da necessidade de pesquisar a desigualdade de gênero existente dentro do meio político. Isto porque ainda há sociedades democráticas que possuem nas suas estruturas sociais pilares de valores tradicionais e conservadores que acabam por dificultar a abertura deste meio para a inserção feminina. Isto demonstra claramente a existência de uma falha do processo de democratização dessas sociedades, já que comportamentos como esses ferem princípios fundamentais de uma democracia. A relação entre a aceitação da igualdade de gênero e os valores democráticos torna-se, assim, importante alvo na investigação, pois a posição tomada pelos indivíduos será correspondente aos valores, atitudes e comportamentos do plano social no qual estão inseridos. Partindo de uma análise multicausal que se baseia nos elementos culturais e subjetivos resultantes dos processos sociais e econômicos, tem-se a cultura política como um aspecto cultural relevante da estrutura das sociedades. Neste sentido, é necessária a verificação das mudanças nesses valores, pois se busca compreender qual a força dos impactos que essas transformações possuem para configurar toda uma estrutura social, em especial, a cultura política do Brasil e, assim, oferecer subsídios para que ações positivas possam ser criadas para minimizar a sub-representação feminina.

Palavras-chave:

1 2