grande reportagem os media de cabo verde: liberdade ou novas ditaduras?

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Grande Reportagem Os Media de Cabo Verde: Liberdade ou Novas Ditaduras? Por Cláudio Vítor Vaz No primeiro dia do mês de Maio de 2007, a Freedom House, organismo norte- americano que monitora a liberdade no mundo, apresenta um relatório anual onde Cabo Verde é classificado entre os 100 países que desfrutam de liberdade total de imprensa à escala mundial. Apesar do parecer favorável e das significativas melhorias no sector da comunicação social neste país, a falta de formação, a autocensura e vícios herdados de antigos regimes autoritários são realidades presentes no quotidiano mediático desta jovem e próspera democracia lusófona. Luzes, câmara, acção Ilha de Santiago Gritos juvenis em língua crioula ecoam no bairro do Platô, cidade da Praia. Uma pequena multidão de pessoas paralisa o trânsito da Avenida 5 de Julho. Cartazes coloridos com reivindicações escritas em língua crioula e portuguesa baloiçam pelos ares daquela manhã. O centro da capital cabo-verdiana está em polvorosa. Multidão na rua, para quem acaba de chegar, é sinal de festa, mas falta alegria no rosto dos supostos foliões. Representantes do Sindicato de Indústria Geral, Alimentação, Construção Civil, Serviços, Agricultura e Afins (SIACSA) e dezenas de jovens trabalhadores reivindicam os seus direitos. Alguns cruzam os braços, outros arregaçam as mangas. Chega a comunicação social e, como num passe de magia, os gritos intensificam-se e dão lugar a hinos e palavras de ordem. 1

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Page 1: Grande Reportagem   Os Media de Cabo Verde: Liberdade ou Novas Ditaduras?

Grande Reportagem

Os Media de Cabo Verde:

Liberdade ou Novas Ditaduras?

Por Cláudio Vítor Vaz

No primeiro dia do mês de Maio de 2007, a Freedom House, organismo norte-

americano que monitora a liberdade no mundo, apresenta um relatório anual

onde Cabo Verde é classificado entre os 100 países que desfrutam de

liberdade total de imprensa à escala mundial. Apesar do parecer favorável e

das significativas melhorias no sector da comunicação social neste país, a

falta de formação, a autocensura e vícios herdados de antigos regimes

autoritários são realidades presentes no quotidiano mediático desta jovem e

próspera democracia lusófona.

Luzes, câmara, acção

Ilha de Santiago

Gritos juvenis em língua crioula ecoam no bairro do Platô, cidade da Praia.

Uma pequena multidão de pessoas paralisa o trânsito da Avenida 5 de Julho.

Cartazes coloridos com reivindicações escritas em língua crioula e portuguesa

baloiçam pelos ares daquela manhã. O centro da capital cabo-verdiana está em

polvorosa. Multidão na rua, para quem acaba de chegar, é sinal de festa, mas falta

alegria no rosto dos supostos foliões. Representantes do Sindicato de Indústria

Geral, Alimentação, Construção Civil, Serviços, Agricultura e Afins (SIACSA) e

dezenas de jovens trabalhadores reivindicam os seus direitos. Alguns cruzam os

braços, outros arregaçam as mangas. Chega a comunicação social e, como num

passe de magia, os gritos intensificam-se e dão lugar a hinos e palavras de ordem.

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Câmara aos ombros, gravador na mão, o trabalho inicia-se. Gilberto Lima,

presidente da SIACSA, explica aos jornalistas o desagrado dos manifestantes:

«Estamos a ser explorados pelos empregadores chineses. Queremos um salário

mínimo para Cabo Verde. Aqui no bairro do Platô existem cerca de 150 lojas

chinesas e são pagos apenas 6.500 escudos (cabo-verdianos) por mês (65 euros).

Além disso, não inscrevem os jovens na segurança social». A manifestação segue o

seu curso em direcção à Avenida Amílcar Cabral. Passam as horas e os nervos

tranquilizam-se gradualmente. Os jovens manifestantes abrandam os gritos. Os

jornalistas dispersam-se a caminho das redacções. Uma manhã diferente para os

Media da capital cabo-verdiana. Os políticos não foram, desta vez, o assunto do dia.

A Estrela dos Media

Os profissionais da comunicação social e o público fazem coro: a atenção dos

Media estatais cabo-verdianos está excessivamente voltada para a mediatização da

política nacional. A politização da informação é uma realidade que muitos

consideram exagero e sinal de que alguma coisa vai mal dentro das redacções. O

Estado é o maior empregador do sector. Por isso, alguns profissionais destes órgãos

sentem-se desmotivados e outros, de certa forma, particularmente interessados com

o que acontece nas arenas da política.

«A maior parte dos jornalistas trabalha nos aparelhos do Estado: ou na Rádio

de Cabo Verde (RCV), ou na Televisão de Cabo Verde (TCV), o que faz com que

algumas pessoas que ali trabalham tentem agradar a quem está no poder», explica

Daniel Medina, formado em jornalismo em Portugal, e professor de comunicação

social na Universidade Jean Piaget. No intervalo de um wokshop nas dependências

da Rádio Comunitária Voz de Ponta D´Agua, Medina prossegue: «Quem não está no

poder tenta semear a discórdia de uma forma não objectiva e não natural no

jornalismo, para depois, quando um outro partido estiver no poder, conseguir ser

chefe ou assessor de alguma coisa». O professor pára por uns instantes. Observa

por uma porta aberta os alunos que voltam do intervalo. Nas horas vagas, Daniel

Medina também ensina jornalismo. «Espero que a nova fornada de jornalistas que

estamos a formar não venha com estes vícios. Isto não é exemplo de jornalismo

isento e credível», conclui o professor universitário.

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Enquanto a nova geração de jornalistas não chega, a comunicação social

cabo-verdiana espera ansiosa por dias melhores. Paulo Lima, presidente da

Associação de Jornalistas de Cabo Verde (AJOC), aponta outros factores para

justificar esta ansiedade.

«Temos deficiências graves no que toca à formação. Muitas pessoas

aprenderam as técnicas jornalísticas, mas faltam-lhes ainda certos atributos».

Sentado no sofá da sede temporária da AJOC – no bairro praiano da Achada Santo

António – Paulo Lima, licenciado no Brasil, salienta as possíveis consequências da

falta de formação no sector. «Há profissionais que, por se terem lançado no

jornalismo sem estudos especializados, não possuem conhecimentos básicos sobre

direitos humanos, chefia, lógica e etc. Estas são deficiências que podem contribuir

para a existência da autocensura», remata o presidente da AJOC.

O temor de perder as fontes informativas, o medo de represálias e de perder

o próprio lugar de trabalho, são algumas das preocupações que forçam os

jornalistas a praticar a autocensura. Mas será que os profissionais de Cabo Verde

sofrem deste mal?

«Sem dúvida que há autocensura! Isto acontece porque algumas pessoas

ainda não têm afirmação suficiente e têm medo de perder o emprego», declara

Rosana Almeida, apresentadora do telejornal da TCV, enquanto bebe um sumo na

esplanada do Café Bom Gosto, bairro do Palmarejo. Assim como o professor

Medina, Rosana Almeida estudou jornalismo em Portugal. No regresso a Cabo

Verde, impôs o seu estilo agressivo em busca da verdade e tornou-se uma

referência. Denunciou, criticou, fez jornalismo, criou inimigos. Não praticou

autocensura, mas conviveu de perto com a repressão. «Tive oito processos

disciplinares logo no início da minha carreira televisiva. Foi uma altura em que tive

que sair temporariamente da televisão porque eram processos atrás de processos»,

desabafa a jornalista. Há oito meses à espera do seu segundo filho, a apresentadora

da TVC sente que é hora de se retirar. Antes de partir, cumprimenta todos os

clientes do café Bom Gosto e faz o último comentário sobre a televisão onde

trabalha. «Em Cabo Verde temos uma televisão com um poder enorme, mas não

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passa de uma ressonância dos poderes existentes no país», confirma Rosana

Almeida antes de se despedir.

TCV, a TV que ninguém vê

O Mercado Central dita o som ambiente do bairro do Platô. As vozes dos

vendedores chegam a abafar o ruído dos automóveis. Dentro e fora do Mercado, o

comércio segue num espaço onde tudo pode ser vendido: frutas, roupas, tabaco.

Um jovem estudante apresenta-se como Gil “Sem Medo” para conversar sobre as

peculiaridades do seu país: «Um trocadilho que faço quando os meus amigos me

comparam com o cantor Gil Semedo», nova estrela da música cabo-verdiana. Ao

aperceber-se da presença de um gravador, “Sem medo” volta a ser Gil, cliente

assíduo do Mercado, sempre disposto a dois dedos de conversa: «Gosto da TV5

(França) e da TV Record (Brasil). Quando passava o programa “Cidade Alerta”,

dizíamos que era dia de cinema. Aquilo parecia um filme!». E a TCV? «Muita

política, pouca programação, nada de especial. Dizemos no gozo que a TCV é a

“TV” que ninguém vê», brinca o estudante a caminho da escola.

Dez anos após a sua independência – 5 de Julho de 1975 – Cabo Verde vê

nascer a primeira estação televisiva. Entra em funcionamento, em 1984, a TVEC

(Televisão Experimental de Cabo Verde), que mais tarde atinge a nova designação

TNCV (Televisão Nacional de Cabo Verde). Com a abertura política de 1990, foram

realizadas as primeiras eleições legislativas no país. O escrutínio de 1991 dita o

triunfo do Movimento para a Democracia (MpD). A vitória é sobre o Partido Africano

para Independência de Cabo Verde (PAICV), o mesmo que durante 15 anos

conduziu o país sob o signo de partido único. No seu governo, o MpD leva a cabo

um processo de reestruturação da comunicação social, previsto na constituição de

1992: une a então Rádio Nacional de Cabo Verde à TNCV. A partir dessa fusão

nasce uma nova empresa – a Rádio e Televisão Cabo Verde (RTC), que passa a ser

a gestora da TCV e da RCV. Mesmo com o regresso do Partido Africano para

Independência de Cabo Verde, vitorioso nas eleições de 2001, pouco ou nada

mudou na agenda dos órgãos estatais.

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«Em Cabo Verde é tudo muito oficial, por isso acabamos por ter uma agenda

puramente institucional. Precisamos de conteúdos novos para melhorar a nossa

imagem», declara Júlio Rodrigues, director de informação da TCV, no seu gabinete,

no bairro da Achada Santo António. Com um sotaque brasileiro do Estado do Rio de

Janeiro, onde esteve a estudar jornalismo, Rodrigues conta o que tem feito para

“melhorar a imagem da TCV”: «Pedi ao conselho da RTC uma verba para as

remodelações dos estúdios e para ampliarmos a programação de 6 para 12 horas

no segundo semestre de 2007. Se eu notar alguma falta de interesse do conselho da

RTC que seja reflexo de alguma vontade política, demito-me». É hora de trabalhar.

Júlio Rodrigues despede-se e sai à procura dos seus repórteres para combinar a

execução de mais uma tarefa do dia: uma conferência de imprensa no Palácio do

Governo, com o primeiro-ministro José Maria Neves, do PAICV, e Jorge Santos,

líder do MpD, os representantes dos principais partidos do país.

A Achada de Santo António é o bairro mais bem informado de todo o

arquipélago. É o bairro da comunicação social. Todos os órgãos estatais de Cabo

Verde encontram-se ali: A RCV, a Rádio Educativa, a agência de notícias Inforpress

e o espaço da redacção do extinto jornal Horizonte. Estes últimos ficam no mesmo

prédio em que funciona a delegação da agência noticiosa portuguesa, a Lusa. Na

Achada de Santo António, os jornalistas estão por toda a parte. Pausa para um café:

é a vez de José Carlos Semedo, jornalista da TCV, dar a sua opinião sobre o

funcionamento da comunicação social de Cabo Verde e da televisão onde exerce

jornalismo.

«Em Cabo Verde os assessores políticos têm muita influência nos órgãos de

comunicação públicos: ligam para as chefias e dão orientações. Quem acata

continua no cargo, quem bate o pé fica de fora». Com a chegada do novo governo

em 2001, as direcções dos Media estatais conhecem outros líderes. José Carlos

Semedo é nomeado chefe de redacção e põe em prática o que aprendeu no seu

curso de jornalismo em Portugal. Porém, não tardou muito para que as divergências

com o conselho de administração da RTC o fizessem escolher outras funções. Entre

2003 e 2004, José Carlos Semedo coordena o programa Clube dos Jornalistas, «um

espaço de críticas e opiniões feito por jornalistas». A ideia não agrada à

administração da RTC, e Semedo é afastado das câmaras. «Levei dois meses de

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suspensão e um mês sem vencimento, isto só porque no programa alguém falou

sobre os desmandos da administração», desabafa Semedo.

Durante as eleições legislativas e presidenciais de 2006, os corredores da

TCV presenciam uma contenda entre os jornalistas e administradores da RTC

quanto ao posicionamento da televisão nas campanhas. O jornalista não tem

dúvidas: tinham que escolher alguém que arcasse com as consequências. «Para

variar fui eu», ironiza. «Fiquei 15 dias suspenso e sem vencimento», acrescenta

José Calos Semedo observando a rua que passa entre as instalações da TCV e a

sua mesa no café “O Gordo”.

Ser candidato a recordista de suspensões arbitrárias na Televisão de Cabo

Verde não é um título digno de orgulho. Mas a experiência faz de José Carlos

Semedo uma autoridade quando o assunto é o futuro da comunicação social de

Cabo Verde. «Com a abertura do panorama audiovisual cabo-verdiano, surgiram

novos canais. Penso que esta abertura é o caminho para a afirmação do

jornalismo», conclui o jornalista.

A Opinião do Governo

Desde 2003, a comunicação social cabo-verdiana tem experimentado

significativos avanços no que toca à abertura de novos Media no sector.

Actualmente, Cabo Verde possui sete rádios na ilha de Santiago, uma na ilha Brava,

uma na ilha de Santo Antão e duas na ilha de São Vicente. Na ilha de São Vicente

há dois jornais mensais. Na ilha de Santiago existem dois jornais semanários, quatro

jornais on-line, quatro revistas, e dois canais de televisão por cabo. No que diz

respeito à televisão de sinal aberto, foi revelado no passado mês de Fevereiro o

resultado de um concurso para atribuição de novos canais, realizado pela Direcção

Geral de Comunicação Social (DGCS), em parceria com o ministério que tutela a

pasta da comunicação social. O resultado apresenta as quatro televisões

vencedoras: a TV Record de Cabo Verde, de capital brasileiro, a RTI (Rádio e

Televisão Independente) e a TIVER, ambas de capital cabo-verdiano, e ainda a NOS

TV, de âmbito regional, financiada por emigrantes cabo-verdianos residentes nos

Estados Unidos da América. Apesar do crescente pluralismo nos órgãos de

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comunicação social de Cabo Verde, Apolinário das Neves, proprietário da

MediaPress (uma das concorrentes desclassificadas no concurso para os novos

canais), procura o jornal Expresso das Ilhas a 15 de Fevereiro, e faz uma denúncia

tempestuosa: Neves acusa o Governo de viciar as regras do concurso.

«Na opinião do Governo, não houve nenhuma fraude. A escolha dos canais

ficou a cargo dos elementos do júri responsável pelo concurso». No seu gabinete,

situado no Palácio do Governo, no bairro da Várzea, o director da DGCS, Eugênio

Martins, dá o parecer governamental sobre a denúncia do empresário Apolinário das

Neves: «O que está a ser alegado é uma irregularidade na criação de uma grelha de

classificação dos canais. A grelha foi criada posteriormente ao resultado do

concurso, mas isto é normal em todos os países», justifica.

Atrás de uma secretária onde repousam vários documentos e as chaves do

seu automóvel de marca chinesa, Eugénio Martins comenta outros casos que dizem

respeito à pasta que administra. Um deles é sobre a decisão do Governo de recolher

as antenas parabólicas que distribuiu às autarquias, as mesmas parabólicas então

usadas pelas próprias câmaras para retransmitir, gratuitamente, o sinal de canais

estrangeiros, como a SIC, a TV5 e a TV Record (Internacional). «Isto aconteceu

numa altura em que havia problemas com o sinal da TCV. Já não precisamos das

antenas porque a tecnologia está mais avançada. Queremos fechar todas as

retransmissões ilegais e já começámos no ano passado. Actuámos no caso da TV

do Povo (TVP), pertencente a um particular que instalou antenas retransmissoras

pela ilha de São Vicente e que fazia actividade televisiva sem autorização».

Questionado sobre a possibilidade da TVP poder vir a participar no concurso para as

televisões de sinal aberto, Eugénio Martins é evasivo na resposta: «o responsável

[da TVP] não se candidatou ao concurso…».

Ainda sobre as licenças e a legalidade das transmissões no arquipélago, o

director da DGCS explica a situação da Rádio Comunitária da Ilha Brava, sem alvará

desde Junho de 2006. «A situação da Rádio Comunitária da Ilha Brava ainda não

está regularizada. Pediram uma licença provisória, que expirou. No entanto, a rádio

continua a transmitir. Como já existe um pedido não nos importamos muito, por isso

a rádio vai continuar com o estatuto experimental», conclui Eugénio Martins.

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Entre Ilhas

Ilha Brava

Nove horas de barco separam a ilha de Santiago da Ilha Brava, a menor e

mais isolada ilha de Cabo Verde. Entre nuvens escuras de uma manhã ainda sem

sol, a ilha das flores, como é conhecida a ilha Brava, surge lentamente aos olhos

dos valentes passageiros do ferry MS Sotavento. Uma comitiva de carrinhas todo-o-

terreno aguarda ansiosa a chegada do ferry para oferecer um serviço de táxi. Vila

Nova Sintra, a capital da ilha, é o destino. A mesma vila que há 140 anos (10 de

Outubro de 1867) viu nascer a mais famosa personagem literária de Cabo Verde: o

poeta e também jornalista, Eugénio Tavares. O poeta perde a vida em Junho de

1930 para ganhar a eternidade: imortaliza o seu nome na história cabo-verdiana por

atacar ardentemente o colonialismo e as injustiças contra o seu povo, com a arma

que melhor manuseava – a escrita.

Lee Wang Min não conhece a história de Eugênio Tavares, porém sabe que a

sua loja de artigos chineses fica próxima da antiga casa do poeta. Lee foi polícia na

cidade de WengZhuo, sudeste da China. Entretanto viu com bons olhos a proposta

do Governo chinês para ir trabalhar em Cabo Verde: «O meu salário como polícia

não era mau, mas aqui poderia ter a minha própria loja». Lee Wang Min é o único

chinês a viver na ilha Brava. Chegou ao arquipélago em 2003, juntamente com 5 mil

conterrâneos, todos de WengZhuo. Assim como os seus compatriotas, Lee recebeu

um empréstimo e materiais para abrir uma loja na Brava, a ilha que só deixa uma

vez por mês, para ir buscar encomendas e reencontrar amigos na ilha de Santiago.

Lee Wang Min observa atento os colegas cabo-verdianos a jogar à bisca, mas a sua

contemplação é interrompida quando todas a atenções se viram para um anúncio

que passa na televisão do bar: “O São Caetano vai enfrentar o Coríntians, no

campeonato paulista (Brasil), esta noite na TV Record”. Lee não gosta muito de

televisão, prefere as ondas da rádio comunitária. «Gosto de ouvir música», diz o

comerciante chinês, com um bom domínio da língua crioula.

Planeada em cooperação com a emissora Rádio Batalha de Portugal, para

resolver a falta de cobertura da RCV, a Rádio Comunitária Batalha/Brava é

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actualmente o órgão responsável por fazer circular a informação na pequena ilha. O

presidente da Câmara da Brava, membro do PAICV, Camilo Gonçalves, é optimista

em relação ao futuro da rádio. Acredita que, apesar de o governo deixar a rádio

funcionar sem alvará, o órgão não está a ser favorecido: “Estou à espera da

regularização, afinal uma rádio é um instrumento muito importante e ao mesmo

tempo muito perigoso”, adverte Gonçalves.

Ilha do Fogo

Mesmo à distância, a imagem da ilha do Fogo é um imenso bloco de rochas

que parece ter sido expulso das profundezas do oceano e posto de propósito ali no

meio do mar. Na capital da ilha do Fogo, a Vila de São Filipe, a paisagem induz a

compreensão do nome que baptiza a ilha: um majestoso vulcão eleva-se distante

dando contornos cónicos ao horizonte. O mesmo vulcão que a população da ilha viu

entrar em erupção quando o calendário assinalava o ano de 1995. «O vulcão ainda

está a arder por dentro», explica o director do Parque Nacional da Ilha do Fogo,

Nevisky Rodrigues. No passeio com o director do parque, a história do chinês Lee

Wang Min, da Ilha Brava, vem à tona e algo mais se descobre sobre a imigração

chinesa em Cabo Verde: «A chegada dos chineses contribuiu muito para melhorar a

imagem do povo cabo-verdiano. Graças aos preços praticados pelos chineses, as

pessoas puderam vestir-se melhor e decorar as suas casas, pagando três vezes

menos por produtos que nunca sonharam ter. No entanto, chamamos aos chineses

“formigas ninja”: pequenas, resistentes e que se espalham por todo o lado

rapidamente». O passeio prossegue e o município de Mosteiros dá as boas-vindas.

A Rádio Comunitária Mosteiros FM está a emitir, o silêncio é respeitado. No intervalo

das emissões, John Monteiro, proprietário da rádio comunitária, fala sobre as

dificuldades em ter uma rádio privada em Cabo Verde: «Fiz o pedido de alvará na

época da abertura política (1991), mas só consegui inaugurar a minha rádio em

2001. Desde então nunca tive nenhuma ajuda do Governo, antes pelo contrário,

ainda tenho que pagar ao Estado uma taxa [de funcionamento] de três em três

meses».

No regresso à ilha de Santiago, o MS Sotavento viaja de noite, mas o embalo

do mar não deixa ninguém dormir. O enjoo é geral: a tripulação, acostumada aos

anos de mar, distribui baldes aos passageiros. A água do mar entra pelas escotilhas

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a cada onda que se agiganta, lavando tudo e todos que conseguem adormecer. Os

baldes já não se aguentam em pé, e o chão transforma-se numa pista

perigosamente escorregadia. Assim é a vida daqueles que precisam de navegar

entre ilhas, para ver a família ou para trabalhar. Com certeza estas não são histórias

que atraiam turistas ao “paradisíaco arquipélago de Cabo Verde”.

Já na ilha de Santiago, a próxima paragem é planeada: a ilha de São Vicente.

Por algum motivo, o avião é o meio de transporte escolhido. Infelizmente, uma

alternativa para poucos. Uma viagem pode custar até 15 mil escudos cabo-

verdianos (150 Euros), valor superior a um bom salário pago por um mês de trabalho

em Cabo Verde.

Ilha de São Vicente

Após 40 minutos de voo, uma pequena massa de terra surge como se

estivesse solta num ponto qualquer do Atlântico. A aterragem é perfeita. Na saída do

aeroporto de São Pedro, a recepção fica mais uma vez ao cargo de uma comitiva de

táxis. A cidade do Mindelo, capital da ilha de São Vicente, está a dez quilómetros do

aeroporto. A deslocação é feita ao som dos sintetizadores do Funána (estilo musical

cabo-verdiano), nas frequências da Rádio Morabeza FM.

Em 1998, a Estação Emissora de São Vicente Lda. cria a Rádio Morabeza.

Desde a sua criação, a Morabeza apresenta os programas musicais em língua

crioula, factor determinante para o sucesso da rádio junto do público jovem. A

informação da rádio Morabeza fica a cargo do jornalista Marcos Fonseca, formado

no Brasil, que aponta defeitos aos órgãos do Estado. «Não existem concursos para

aceder aos órgãos públicos, a contratação na RTC funciona por indicação. Esta

situação influencia o trabalho jornalístico. Quando um dirigente indica um jornalista,

este, por sua vez, deve obediência ao dirigente». Quanto à questão da TVP, o único

jornalista da Rádio Morabeza dá a conhecer a sua versão dos factos: «a questão da

TVP é muito complexa. O senhor Pulú fazia retransmissão; as câmaras fazem

retransmissão; o próprio Governo financiou antenas parabólicas para a

retransmissão em todas as ilhas. Portanto, todos estavam a agir na ilegalidade. O

Governo alega que a TVP estava a angariar publicidade, mas a SIC de Portugal, que

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é retransmitida aqui, passa publicidade de produtos vendidos em Cabo Verde e não

paga um cêntimo por isso», afirma.

Para o antigo responsável da TVP, Carlos Alberto Monteiro, mais conhecido

como Pulú, o encerramento da sua televisão não está relacionado apenas com as

irregularidades apontadas pelo Governo. «Foi uma perseguição política! O Governo

sabe que sou militante do MpD, portanto estava com medo que eu usasse a

televisão para fins políticos!». Dentro do seu automóvel, estacionado na Avenida de

Lisboa, Carlos Alberto Monteiro revela mais factos sobre o processo a que está

sujeito. Na sua opinião, a acção judicial que recebeu do Ministério Público, alegando

o crime de desobediência, foi uma manobra do Governo para afastá-lo do concurso

para os canais de sinal aberto. «Aquilo foi um disparate! Quando me disseram para

parar com as transmissões, eu parei. Mesmo assim processaram-me. Sabiam que,

se estivesse a responder a um processo, não poderia participar no concurso». Para

Pulú, «o actual Governo está a usar as regras do tempo do antigo partido único» –

um tempo em que o controle dos Media era ditado à força pelo antigo regime.

«Os anos do Partido Único foram terríveis para a comunicação social cabo-

verdiana, para não falar nos tempos da colonização, que foram ainda piores»,

comenta Silvino Évora, investigador e jornalista cabo-verdiano, radicado em

Portugal, e autor do weblog “nosmedia.wordpress.com”. «Na altura [do Partido

Único] não existiam órgãos privados, pois o Estado controlava toda a informação»,

explica Évora por telefone.

Depois de 520 anos de colonização portuguesa, Cabo Verde ainda teve que

curvar-se, por mais 15 anos, perante regimes autoritários, até conhecer a

democracia. Com a ocorrência de sucessivas divergências no seio do vitorioso

partido pró-independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde – o PAIGC (Partido

Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) – é chegada a hora de

mudanças profundas. A 20 de Janeiro de 1981, nas comemorações do 8º

aniversário da morte do criador do PAIGC e herói nacional, Amílcar Cabral, a ala

cabo-verdiana do partido decide alterar a sua designação para PAICV, formalizando

assim a separação dos governos dos dois países. O PAICV passa a ser o único

partido de Cabo Verde – o Partido Único – que governa o arquipélago de 1981 a

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1991. Neste período, toda a comunicação social do país pertencia ao Estado, à

excepção de um órgão: o Jornal Terra Nova.

«A seguir à independência, o Partido Único meteu no bolso a liberdade das

pessoas», conta o director do jornal Terra Nova, Frei António Fidalgo Barros, nas

dependências da Rádio Nova, na cidade do Mindelo. Numa época marcada pela

escassez de informação “livre”, o jornal Terra Nova apresentava-se como o “tubo de

escape” da sociedade cabo-verdiana, pois «era o único órgão capaz de publicar

artigos que falavam de assuntos proibidos pelo regime». Mas não é só “graças a

Deus” que o jornal sobrevive até hoje. O frei sabe que, para manter o seu jornal,

pode contar com outras “forças” aqui na terra: «como o Terra Nova sempre foi um

órgão ligado à Igreja, o regime não tinha coragem de fechá-lo», conta o Frei da

Ordem dos Capuchinhos de Cabo Verde.

Ilha do Sal

A estátua de Amílcar Cabral observa estática a “invasão” de turistas a chegar

ao aeroporto internacional que tem o seu nome. Cabo Verde atrai anualmente

milhares de estrangeiros que procuram, além das belas praias, calor humano a uma

escala vertiginosa. Além das riquezas humanas e naturais, Cabo Verde está a atrair

credibilidade a nível mundial, tanto por ser classificado como um país de

Desenvolvimento Médio, como por ter apresentado nos últimos anos um

desenvolvimento económico acelerado. Foram estes alguns dos motivos que

trouxeram ao arquipélago, no passado dia 12 de Junho, Stefano Manservisi,

Director-Geral para o Desenvolvimento da Comissão Europeia. Manservisi declara

que Cabo Verde poderá vir, até o final de 2007, a estreitar os seus laços económicos

com Bruxelas através de um Estatuto Especial de Parceria. Apesar da

controvérsia entre a realidade dos Media cabo-verdianos e o relatório da

Freedom House, os ventos da democracia continuam a soprar nas ilhas Cabo

Verde.

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Caixa

Cabo Verde é um arquipélago localizado ao largo da costa da África

Ocidental. As ilhas vulcânicas que o compõem são pequenas e montanhosas. Existe

um vulcão activo, na ilha do Fogo, que é igualmente o ponto mais elevado do

arquipélago, com 2829 m. O país é constituído por 10 ilhas, das quais 9 habitadas, e

vários ilhéus desabitados, divididos em dois grupos: Ao norte, as ilhas de

Barlavento. Relacionando de oeste para leste: Santo Antão, São Vicente, Santa

Luzia (desabitada), São Nicolau, Sal e Boa Vista. Pertencem ainda ao grupo de

Barlavento os ilhéus desabitados de Branco e Razo, situados entre Santa Luzia e

São Nicolau, o ilhéu dos Pássaros, em frente à cidade de Mindelo, na ilha de São

Vicente e os ilhéus Rabo de Junco, na costa da ilha do Sal e os ilhéus de Sal Rei e

do Baluarte, na costa da ilha de Boa Vista; Ao sul, as ilhas de Sotavento.

Enumerando de leste para oeste: Maio, Santiago, Fogo e Brava. O ilhéu de Santa

Maria, em frente à cidade de Praia, na Ilha de Santiago; os ilhéus Grande, Rombo,

Baixo, de Cima, do Rei, Luiz Carneiro e o ilhéu Sapado, situados a cerca de 8 km da

ilha Brava e o ilhéu da Areia, junto à costa dessa mesma ilha. As maiores ilhas do

arquipélago são a de Santiago a sueste, onde se situa a capital do país, Praia e a

ilha de Santo Antão, no extremo noroeste. Praia é também o principal aglomerado

populacional do arquipélago, seguida pelo Mindelo, na ilha de São Vicente.

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