gramaticalizaçao de conjunçoes coordinativas

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. - 2, 2. sem. 2006 Gramaticalizaçao de conjunçoes coordenativas: a história de uma conclusiva Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi Recebido 30, jun. 2006/Aprovado 30, ago. 2006 Resumo Neste trabalho, analiso aspectos relativos à gramaticalização de conjunções coordenativas. Assumindo que fatores de ordem cognitiva e pragmática interagem para a criação de novos itens gramaticais, e adotando uma concepção de coordenação fundamentada em critérios semân- tico-funcionais, reconstruo o percurso histórico- evolutivo da conjunção conclusiva logo, a partir de fontes históricas do português. Palavras-chave: gramaticalização; conjunção; coordenação; lingüística histórica.

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Gramaticalizaçao

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  • Gragoat Niteri, n. 21, p. - 2, 2. sem. 2006

    Gramaticalizaao de conjunoes coordenativas: a histria

    de uma conclusivaSanderlia Roberta Longhin-Thomazi

    Recebido 30, jun. 2006/Aprovado 30, ago. 2006

    ResumoNeste trabalho, analiso aspectos relativos gramaticalizao de conjunes coordenativas. Assumindo que fatores de ordem cognitiva e pragmtica interagem para a criao de novos itens gramaticais, e adotando uma concepo de coordenao fundamentada em critrios semn-tico-funcionais, reconstruo o percurso histrico-evolutivo da conjuno conclusiva logo, a partir de fontes histricas do portugus.

    Palavras-chave: gramaticalizao; conjuno; coordenao; lingstica histrica.

  • Sanderlia Roberta Longhin-Thomazi

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    Apresentao Este trabalho trata de um fato lingstico - j conhecido e

    anunciado pelos historiadores do portugus - que a relao gentica existente entre os usos adverbial e conjuncional de logo: o primeiro est na base da constituio do segundo. Bueno (1968), por exemplo, argumenta que a conjuno conclusiva logo o mesmo advrbio temporal, mas com nova funo gramati-cal. Contudo, resta explicar ainda como se deu o processo de transio entre essas categorias, o que pretendo fazer ao longo desta exposio, por meio da consolidao de dois objetivos mais especficos. Considerando tal processo como um fenmeno legtimo de Gramaticalizao, meus propsitos so: (i) explicitar a relao que existe entre o sentido da conjuno logoe o sentido do advrbio logo, relao esta que estaria na origem da derivao histrica; e, (ii) explicitar o contexto lingstico que teria favo-recido a alterao na fronteira dos constituintes e a posterior reinterpretao do advrbio como conjuno.

    1. Gramaticalizao de conjunes Entende-se por gramaticalizao um processo especial de

    mudana lingstica, principalmente diacrnico e gradual, em que itens lexicais plenos passam a funcionar como expresses gramaticais especficas, em razo de um conjunto de alteraes nos vrios componentes da linguagem, sobretudo no sinttico e no semntico. trata-se, em outras palavras, de uma evidncia de que as gramticas das lnguas so constantemente remodeladas, via processos de mudana que reutilizam material da prpria lngua.

    Dos muitos fenmenos de gramaticalizao, a formao de conjunes tem se mostrado um domnio extremamente frtil, visto que, na histria das lnguas, essa classe de palavras sempre esteve sujeita renovao (MEILLET, 1912). Particularmente, no campo das conjunes de coordenao, os estudiosos concordam que a fonte diacrnica , at certo ponto, transparente. Paul (1886) j afirmava que as conjunes (palavras de ligao, em sua terminologia) derivam historicamente de advrbios conjuncio-nais ou de alguns usos de pronomes conjuncionais, itens que j serviam para ligar oraes antes mesmo de se transformarem em conjunes propriamente ditas. Said ali (1964, p. 220) tam-bm destaca o papel de advrbios e pronomes na formao de conjunes:

    Obscura a origem de algumas conjunes latinas; porm a julgar por aquelas cujo histrico se conhece, a linguagem no teria creado vocbulos especiais para constituir a nova catego-ria. Serviram a este fim advrbios que, de modestos determi-nantes de um conceito nico, se usaram como determinantes de toda uma sentena; e serviram tambm pronomes do tipo

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    relativo-interrogativo, ou temas pronominais acrescidos de novos elementos.

    Cmara (1975), por sua vez, mais categrico e defende que geneticamente, a conjuno coordenativa sempre um advrbio. Alm disso, ele chama a ateno para o fato de que, em portugus, as conjunes no so os nicos mecanismos gramaticais que do conta de expressar a coordenao sindti-ca. ao lado delas, h uma srie de advrbios que, quer simples ou em locuo, estabelecem um elo coordenativo entre oraes e at mesmo pores maiores de texto. Essa correlao estreita entre advrbio e conjuno tambm mostrada no trabalho de Mithun (1988). A partir do estudo das formas de coordenao em lnguas tipologicamente diversas, a autora mostra que as conjunes coordenativas tendem a derivar principalmente de advrbios discursivos.

    nessa perspectiva que o presente trabalho persegue o objetivo de analisar o processo histrico-diacrnico que levou formao em portugus da conclusiva logo. a anlise pretende enfocar dois aspectos salientes da mudana por gramaticaliza-o. De um lado, examino as alteraes de sentido, tendo em vista que elas so conduzidas por dois mecanismos distintos, mas complementares. Um deles, que de natureza cognitiva, consiste na projeo, em passos discretos, de significados de um domnio cognitivo mais concreto para um mais abstrato, enquanto o segundo, que de natureza pragmtica, consiste na transio gradual e contnua de um significado a outro, por meio da reinterpretao contextual.

    De outro lado, examino as alteraes sintticas, tendo em vista que, segundo Hopper e traugott (1993), a mudana de categoria segue uma tendncia particular em que categorias menores (preposio, conjuno, auxiliares) derivam de cate-gorias maiores (nomes, verbos) ou de categorias intermedirias (adjetivos, advrbios), por meio de estgios de sobreposio, que revelam a gradualidade na fixao das categorias. A constituio do estatuto conjuncional de logo ser examinada luz de uma concepo de coordenao fundamentalmente semntica, for-mulada a partir de um texto de Bally (1944), cuja importncia j foi reconhecida por Ducrot (1977), Geraldi (1981), Koch (1987), Guimares (1987) e Carone (1988).

    2. Alteraes no sentido Em conformidade com os pressupostos da lingstica

    cognitiva e da lingstica funcionalista, defendo que as funes sociais e cognitivas desempenhadas pela lngua tm um papel singular no processo de criao da gramtica dessa lngua que, por sua vez, equivale a um conjunto de estruturas que experi-mentam constantes acomodaes ou gramaticalizaes - j que

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    se prestam satisfao das necessidades de expresso e comu-nicao. Portanto, lano mo sobretudo de fatores cognitivos e pragmticos para explicar aspectos da mudana de significados envolvida na gramaticalizao.

    2.1 Fatores cognitivos e pragmticos o entendimento dos processos semnticos envolvidos

    na gramaticalizao recebeu uma formulao consistente nos trabalhos de Sweetser (1988, 1991), que so fundamentados numa semntica de orientao cognitivista, aliada s tradies em anlise pragmtica e teoria dos atos de fala. A questo que est no centro das discusses promovidas na obra de Sweetser aquela de saber o que acontece com os significados nas mudanas semnticas que acompanham os processos de gramaticalizao. rejeitando a hiptese de semantic bleaching, amplamente aceita desde o trabalho pioneiro de Meillet (1912), a autora prope um mecanismo geral de mudana semntica que opera por meio de projees metafricas entre diferentes domnios conceituais. Nesse mecanismo, a metfora concebida como uma estratgia cognitiva que possibilita a emergncia de itens gramaticais, na medida em que atua como veculo na transferncia de sig-nificados de um domnio cognitivo mais concreto, prximo experincia fsica, para um domnio mais abstrato, prximo s experincias mental e conversacional.

    Segundo a autora, tais projees so sempre parciais. o que transferido de um domnio a outro so unidades inferenciais altamente abstratas, de modo que o mecanismo de mudana se efetiva por meio de duas etapas: (i) uma unidade inferencial abstrada a partir de um domnio de conceituao mais concreto, etapa em que pode haver descarte de traos de significado; e, (ii) essa unidade projetada em um domnio mais abstrato, possi-velmente mais subjetivo, dentro do qual pode assimilar novos traos. Fica evidente, ento, a inadequao do modelo bleaching, j que, na realidade, segundo a autora, h uma reorganizao semntica, com possvel perda, preservao e ganho de traos semnticos:

    [...] there is a sense in which grammaticalization involves loss of meaning, and another sense in which it does not. Whenever abstraction occurs for example, when an image-schematic structure is abstracted from a lexical meaning there is potential loss of meaning. [...] But if the abstracted schema is transferred from the source domain to some particular target domain, then the meaning of the target domain is added to the meaning of the word. (SWEETSER, 1988, p.12)

    Para exemplificao, Sweetser recorre ao processo de mudana de go, do ingls, que de verbo de movimento passou a auxiliar marcador de futuro. Segundo ela, no caso de go, a

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    projeo de movimento fsico para futuridade se deu graas projeo da inferncia deslocamento linear de um ponto a ou-tro, do domnio fsico-espacial, mais concreto, para o domnio temporal, menos concreto.

    Assim, da perspectiva de Sweetser, as mudanas semn-ticas so, at certo ponto, previsveis. Essa previsibilidade tem motivao no interior de uma teoria que toma a percepo hu-mana como o alicerce da estrutura das lnguas. A metfora , nesse contexto, a principal fora de estruturao semntica, pois as mudanas semnticas seguem uma trajetria unidirecional de crescente abstratizao que justificada pela unidirecionalidade inerente s conexes metafricas.

    tambm numa linha cognitivista, Heine e outros (1991) descrevem a transferncia entre estruturas fonte e alvo a partir de uma hierarquia de categorias cognitivas, que eles organizam da seguinte forma: Pessoa > Objeto > Atividade > Espao > Tempo > Qualidade. Cada categoria, que inclui uma variedade de conceitos, representa um domnio de conceituao relevante para a experincia humana. A relao entre as categorias de natureza metafrica, no sentido de que qualquer categoria pode ser usada para conceituar outra categoria, contanto que esta esteja sua direita. Desse modo, objeto pode ser usado para conceituar Espao, que pode ser usado para conceituar tempo, e assim por diante. Outras hierarquias foram propostas, por exemplo, Traugott e Knig (1991) traaram o percurso Tempo > Concesso para explicar o processo de constituio de while, do ingls. Shyldkrot (1995) props a trajetria Quantidade > Qua-lidade > Concesso para dar conta dos processos de mudana sofridos por tout, do francs. Martelotta e outros (1996) propu-seram a trajetria Espao > Discurso para descrever os usos de a, em portugus.

    Mas se, por um lado, as projees metafricas apresentam a vantagem de predizer a direo dos processos de mudana, por outro, no so capazes de recuperar as etapas intermedi-rias desses processos, em que as categorias podem coexistir. A esse respeito, Sweetser argumenta que as mudanas sempre tomam lugar atravs de estgios intervenientes de polissemia: se uma palavra significou A e hoje significa B, certo que em algum momento ela significou A e B. A autora acrescenta ainda que existe uma correlao estreita entre polissemia sincrnica e mudana diacrnica, no sentido de entender as polissemias como pistas capazes de recapitular e de explicar a trajetria histrica de desenvolvimento de uma palavra ou morfema.

    Para recuperar esses estgios intermedirios, a anlise em termos de metfora deve ser complementada pela anlise pragmtico-contextual, que reserva ao contexto contguo um papel crucial na evoluo semntica. justamente por causa da influncia do contexto sobre a interpretao de um item que

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    Hopper e Traugott (1993) e Traugott e Knig (1991) qualificam as mudanas semnticas de metonmicas. Para os autores, a reinterpretao induzida pelo contexto ocorre quando uma pa-lavra ou construo, alm do sentido bsico, permite a inferncia de um sentido adicional (relacionado ao mundo das crenas e atitudes do falante), em funo da contigidade contextual ou metonmica. Com o tempo, pode haver convencionalizao de inferncias, caso o sentido adicional se torne parte da palavra, de forma que o que antes era inferido passa a ser codificado.

    Nesses termos, a gramaticalizao consiste num processo gradual e histrico de pragmatizao do significado, que envol-ve, por um lado, estratgias de carter inferencial, que levam ao aumento de informao pragmtica e, por outro, estratgias de carter metafrico, que levam ao aumento de abstrao.

    3. A construo coordenada a coordenao consiste, grosso modo, numa construo

    sinttica em que duas ou mais unidades funcionalmente equiva-lentes se articulam, com ou sem nexos explcitos, para a formao de uma unidade ainda maior, da qual emerge uma nova relao de sentido. todas as lnguas apresentam construes coorde-nadas de algum tipo (MITHUN, 1988; HASPELMATH, 2000). Em portugus, a coordenao pode se realizar entre sintagmas, oraes e at mesmo entre enunciados, estabelecendo as relaes de adio, alternncia, adversidade, explicao ou concluso. Em razo das possibilidades de encadeamento dentro e alm da orao, Azeredo (2001) afirma que a coordenao mais propria-mente um mecanismo discursivo do que sinttico, que pode ser realizado por conjunes de coordenao, advrbios e locues adverbiais ou simplesmente pela justaposio e entoao.

    Neste trabalho, assumo uma concepo de coordenao essencialmente semntica, nos moldes propostos por Bally (1944). Tal concepo, que confere alguma transparncia ao mecanismo de produo de conjunes coordenativas, tem por orientao a dicotomia tema/comentrio, cuja relevncia para as lnguas foi bastante acentuada por Ilari (1981, p. 62):

    a articulao de orao em tpico e comentrio um fenmeno generalizado nas lnguas de que se tem notcia; [...] a presena de uma articulao desse tipo em oraes do portugus extremamente freqente; para sermos mais exatos obrigatria, no sentido de que toda a ora-o se biparte em tpico e comentrio ou globalmente interpretada como comentrio.

    Nesses termos, as oraes so suscetveis de bipartio em dois segmentos de importncia comunicativa diferente - tema e comentrio - em que o tema entendido como o ponto de parti-da ao qual acrescido o comentrio, que o centro de interesse da comunicao. O padro habitual corresponde seqncia

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    (tema)/comentrio, na qual possvel prever oraes formadas unicamente pelo comentrio.

    Seguindo Bally, acredito que a articulao tema/coment-rio, que estrutura uma orao, tambm estrutura a coordenao de oraes. Em outros termos, na coordenao, as oraes esto relacionadas de tal forma que a segunda toma a primeira como tema e no interior desse tema que ela deve ser interpretada como acrescentando ao discurso a informao mais importante ou saliente. Nessa relao, que essencialmente coesiva, o co-mentrio tem, portanto, a dupla funo de recuperar ou reativar uma informao dada e de predicar sobre ela, acrescentando informao nova.

    Com o acrscimo do comentrio, disparada uma relao semntica particular que justifica a combinao das oraes. Nos exemplos abaixo, em que a articulao tema/comentrio evidenciada em construes binrias cuja independncia dos membros sinalizada por contornos entoacionais distintos e pela existncia de uma pausa considervel, podemos inferir as relaes de causa e de efeito:

    (01) Faz frio. No sairemos. (CAUSA > EFEITO)Faz frio (e a propsito do fato de que faz frio, acrescento:) no sairemos

    (02) No sairemos. Faz frio. (EFEITO > CAUSA)No sairemos (e a propsito desse fato, acrescento:) faz frio

    Est tambm em Bally (1944) a sugesto de que em uma construo coordenada um termo pertencente ao comentrio est predestinado a se tornar uma conjuno quando ele tem, por si s, a propriedade de reiterar todo ou parte do tema. Para o autor, esse termo apareceria inicialmente como um modifica-dor adverbial que, de forma gradual, ganharia posio inicial na orao, ao mesmo tempo em que se tornaria frouxa a noo de que ele somente uma anfora do tema.

    Segundo essa hiptese, as conjunes de coordenao tm uma origem por excelncia: so criadas preferencialmente a partir de advrbios pronominais que, alm de exprimirem circunstncias, atuam como mecanismos de coeso, ligando partes do texto e estabelecendo relaes de sentido. Desse ponto de vista, a conjuno coordenativa resultante se caracteriza por um duplo movimento de retorno e avano, ou seja, retoma um tema, conferindo-lhe especificidade, e, por meio do comentrio, d seqncia ao discurso, estabelecendo novas relaes de senti-do. provavelmente nesse sentido que Guimares (1980) afirma que a funo de uma conjuno coordenativa no fazer que uma orao esteja em outra, mas que as oraes se tornem texto, se constituam, portanto, em discurso.

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    3.1 Conjunes coordenativas conclusivas As conjunes so elementos que tm funo conectiva.

    Contudo, dada a natureza heterognea dos itens que integram essa classe de palavras, o reconhecimento e a classificao das conjunes constituem ainda um domnio pouco preciso da gra-mtica do portugus. Uma amostra disso a falta de consenso que existe no tratamento do uso conjuncional das palavras logo, pois (posposto), portanto, ento e assim. Cunha e Cintra (1985), Cegalla (1990), Rocha Lima (1998) e Abreu (2003) classificam essas partculas como conjunes coordenativas conclusivas. J Bechara (2001, p. 322) argumenta que, influenciados por aspectos semnticos, vrios gramticos incluem no paradigma das con-clusivas certos advrbios que tm a propriedade de estabelecer relaes inter-oracionais e inter-textuais, como o caso, por exemplo, de pois, logo e portanto. Segundo ele, apesar das proxi-midades com as conjunes coordenativas, esses advrbios no tm o mesmo estatuto.

    Nos estudos descritivos, Neves (2000, p. 241) reserva para esses itens o rtulo de advrbios juntivos, e os define como advrbios de valor anafrico que promovem a conjuno de oraes e estabelecem relaes de sentido, sobretudo relaes adversativas (porm, contudo, entretanto, todavia, no entanto) e conclusivas (portanto, por conseguinte, ento). a autora argumenta que: Na verdade, so elementos em processo de gramaticaliza-o. Nesse processo, est em estgio mais avanado o elemento conclusivo logo, que tem o comportamento prximo ao de uma conjuno coordenativa.

    3.2 A conjuno logoEnquanto conjuno conclusiva, logo definido tradicional-

    mente como um item que serve para ligar anterior uma orao que exprime concluso ou conseqncia (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 567), podendo ser parafraseado por portanto, por conseguinte, como o caso do exemplo (03) abaixo, cuja cons-truo apresenta as seguintes caractersticas: logoarticula duas oraes gramaticalmente autnomas,1 ocupa posio fixa no incio da orao, e faz remisso orao precedente, pesando-a, para ento introduzir uma concluso.

    (03) Joo um indivduo perigoso, logo fique longe dele

    Do ponto de vista argumentativo (MAINGUENEAU, 1997), a conjuno logo funciona como um operador, que atua numa construo de implicao do tipo P logo Q, em que o antece-dente P aparece como um fato definitivo, e o conseqente Q aparece legitimado por princpios admitidos pela comunidade, o que justifica o carter polifnico da construo. No caso de (03), o segmento P (Joo um indivduo perigoso) implica o

    1 Guimares (1987) apre-senta exemplos em que logo no se limita a arti-cular oraes, mas tam-bm articula pargrafos e at mesmo captulos.

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    segmento Q (fique longe dele), numa relao necessria de causa-efeito ou argumento-concluso. Essa relao garante a rigidez na ordem das oraes articuladas por logo.a represen-tao em (04) ilustrativa:

    (04) P, logo Q , em que:P argumento em favor de Q

    4. O percurso histrico-evolutivo de logo: da etimologia pragmtica

    Nesta seo, reconstruo o percurso histrico-evolutivo da conjuno logo, a partir de uma base de dados2 que rene vrios textos em prosa, representativos do portugus dos sculos XIII ao XVIII.

    Os dicionrios etimolgicos (FERREIRA, 1983; CUNHA, 1986) indicam que o item logo do portugus proveniente do lo-cus-i latino, que era empregado em sentido espacial (lugar, local, morada, pas), em sentido temporal (poca, ocasio, situao), e ainda em sentidos diversos tais como situao social, emprego, ponto, questo, matria, assunto e captulo.

    os dados investigados sugerem que no portugus arcaico parece ter havido um afunilamento nas possibilidades semn-ticas do item, pois nas ocorrncias relativas ao sculo XIII veri-fiquei a coexistncia de apenas dois usos de logo: o substantivo logoe o advrbio logo, itens que sinalizavam, respectivamente, sucesso espacial e sucesso temporal, como mostram os exem-plos (05) e (06):3

    (05) Mandamos que quando ouuyre morte Del rey, todos guarde senhorio e os dereytos del rey aaquel que reynar en seu logo e os que algua cousa teuerem que perteesca a senhurio Del rey (13FR, p.132) [...todos guardem o poder e os direitos de rei quele que reinar em seu lugar...]

    (06) E Galvam filhou logo o escudo e depois deitou-o ao colo (13DSG, p. 8) [Galvam tomou em seguida (ou imediatamente) o escudo e depois colocou-o no colo]

    Como substantivo, de que (05) exemplo, logo equivale a lugar e integra o sintagma preposicional en seu logo, no qual logoindica mais precisamente posio fsica e social e acrescenta a noo de deslocamento ou sucesso. J como advrbio, de que (06) exemplo, logo muito mais freqente no corpus investigado. Nesse caso, o item indica uma relao de posterioridade temporal (em breve, em seguida) que est ancorada na situao externa e que pode alternativamente ser entendida como particularizada pelo imediatismo da relao, corroborando uma afirmao de Cunha (1986), de que no portugus arcaico, logo funciona como imediatamente.

    2 Para a anlise, optei por uma seleo de trechos dos seguintes textos: Sc. XIII: a demanda do Santo Graal (13DSG); Foro Real de Afonso X (13FR); Testamento de D. Afonso II (13TDA); Notcia do Torto (13NT); Inquiries de Afonso III (13IA). Sc. IV: Cr-nica Geral de Espanha de 1344 (14CGE); Orto do Esposo (14OE); Pri-meyra Partida (14PP); Bblia Medieval Portu-guesa (14BMP); Sc. XV: Boosco Deleitoso (15BD); Livro dos Ofcios de Marco Tullio Ciceram (15LO); Crnica D. Fer-nando (15CDF); Crnica D. Pedro I (15CDP); Leal Conselheiro (15LC); Sc. XVI: Colquios dos sim-ples e drogas e cousas medicinais da ndia (16CSD); Historia da prouincia de Scta Cruz a que vulgame[n]te cha-mamos Brasil... (16HSC); Crnica do Felicssimo Rei D. Manuel (16CDM); os Sete nicos Docu-mentos de 1500 (16OSD); Desengano de Perdidos (16DP); Sc. XVII: Jorna-da dos Vassalos da Co-roa de Portvgal (17JV); Peregrinaam (17P); Chronica Del Rey D. Ioam I (17CDJ); Sermo da Sexagsima (17SS); Corte na Aldeia e Noi-tes de Inverno (17CA); Sc. XVIII: a ordem da Salvao ou a Doutrina Christa (18OS); Neces-sario aviso acerca da Igreja e Doutrina dos Papas em Roma (18NA) ; Reflexoens sobre a ques-ta entre os Estados Uni-dos, e a Frana (18REF); Do Uso, e Abuso das minhas agoas de Ingla-terra (18UA); Theorica verdadeira das Mares (18TM). 3 Nos exemplos, as refe-rncias entre parnteses remetem, respectiva-mente, ao sculo e abreviao do ttulo do texto.

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    Por outro lado, h contextos em que o advrbio temporal logo est ancorado em um momento j especificado no prprio texto. Nesse caso, logo sinaliza uma sucesso temporal, em que um evento se realiza aps outro, recupervel no co-texto prece-dente. Para isso, logo retoma anaforicamente o evento anterior que, em geral, introduzido por uma conjuno de tempo, como mostram os exemplos abaixo:

    (07) tanto que viu Galvam Erec logo o conheceu (13DSG, p. 65) [Assim que viu Galvam Erec logo (= que o viu) o reconheceu]

    (08) Quando Galaaz sto ouviu, filhou logo sas armas e guisou-se o mais toste que pde (13DSG, p.145) [Quando Galaaz ouviu isto, tomou logo ( = que ouviu isto) suas armas...]

    Nos dados relativos a esse perodo da lngua, no encontrei exemplos do uso conjuncional de logo. S no material referente ao sculo XVII que verifiquei as primeiras ocorrncias. O exemplo (09) traz uma delas:

    (09) Para hum homem se ver a si mesmo, so necessarias tres cousas: olhos, espelho, & luz. Se tem espelho, & he cego; no se pde ver por falta de olhos: se tem espelho, & olhos, & he de noyte; no se pde ver por falta de luz. Logo ha mister luz, ha mister espelho, & ha mister olhos. (17SS, p.18)

    Em (09), h uma estrutura do tipo C1. Logo C2, em que os segmentos C1 e C2 so gramaticalmente independentes, se-parados por uma pausa representada por ponto. Cada segmento constitudo por oraes estruturadas em tema e comentrio. Essa relao tema/comentrio se sustenta tambm entre C1 e C2, estruturando-os, uma vez que o segundo deve ser interpre-tado luz do primeiro. Ou seja, C2 acrescenta um pensamento, uma avaliao conclusiva acerca de C1, evidenciando assim a relao de sentido, que condio para a coordenao. Veja o esquema:

    C1 C2Para hum homem se ver a si mesmo, so necessarias tres cousas: olhos, espelho, & luz. Se tem espelho, & he cego; no se pde ver por falta de olhos: se tem espelho, & olhos, & he de noyte; no se pde ver por falta de luz

    logo ha mister luz, ha mister espelho, & ha mister olhos

    tEMa COMENTRIO

    CONCLUSOA relao coesiva entre os segmentos C1 e C2 garantida

    por logoou, mais particularmente, pela foricidade de logo que,

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    encabeando o comentrio, promove simultaneamente um mo-vimento de retorno ao j dito, em que reitera todo o C1, e um movimento de avano, fazendo com que as oraes se constituam em texto. Em C2, no s uma parte do contedo de C1 que reativada, mas tambm a prpria orientao argumentativa de C1 retomada em C2. Portanto, em (09), logo tem as caracters-ticas que, nos termos de Bally, permitem coloc-lo no rol das conjunes de coordenao.

    Alm de mostrar que o uso conjuncional de logo mais recente que os demais, a investigao dos dados histricos evidenciou ainda que o contexto que teria favorecido a reinterpretao do advrbio logo como conjuno aquele exemplificado em (10), uma ocorrncia do sculo XIV:

    (10) [...] e he chamado mar morto, porque nem pexes, nem aves nom vivem em ele, nem pode em ele andar navio, nem outra matria nenhua, senon for bitumada, e se algua cousa morta hi lanarem, logo se afonda, e se for cousa viva, logo saae a cima pero seja amerguda per fora. (14BMP, p.40) [... e se alguma coisa morta lanarem ali, logo afunda, e se for coisa viva, logo sai para cima].

    Configura-se, nesse caso, uma situao de ambigidade. Em uma interpretao, logo atua como advrbio (frico!) de tempo posterior, admitindo parfrase com em seguida. Por outro lado, dado o contexto contguo, logo integra uma construo condicional do tipo Se P, logo Q, cujo significado reside numa relao de implicao entre P e Q, na qual se temos P, devemos ter Q. Assim, conforme (10), o fato de lanar alguma coisa morta implica conseqentemente afundar, da mesma forma que lanar coisa viva implica sair acima. Nessa relao de implicao, logo veicula um sentido de conseqncia ou concluso, que fortemente baseado nas crenas e expectativas do falante/escritor. Acrescente-se a isso que o item, nesse contexto, ocupa posio inicial na orao, tal como uma conjuno prototpica. Nessa condio hbrida, logo revela a fluidez categorial entre o advrbio de tempo e a conjuno conclusiva, isto , a face no discreta da mudana.

    Nessa perspectiva, o embrio da conjuno conclusiva logo seria o uso mais referencial de logo, o ditico temporal, que passou a ser empregado, em determinados contextos, como um item de coeso textual, retomando anaforicamente oraes precedentes e indicando sucesso temporal. Nesses termos, um item que era empregado para sinalizar sucesso temporal no mundo real teve seu uso estendido para sinalizar sucesso temporal entre eventos mencionados no texto. Ratificando os pressupostos de Bally, mencionados anteriormente, sugiro que a natureza pronominal do advrbio logo foi determinante para a constituio da conjuno conclusiva - que at hoje preserva essa caracterstica do advrbio - j que na relao de concluso h um movimento de retroao, a partir do qual o falante/escritor retoma o contedo anterior e ento introduz uma concluso. Por isso que afirmei anteriormente que o modelo de Bally, de certa forma, torna mais transparente o mecanismo de formao de conjunes.

    A alterao de sentido aponta para abstratizao e pragma-tizao crescentes do significado: a posterioridade temporal de

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    logo passou a ser entendida, metaforicamente, como posteriori-dade no discurso: aquilo que vem depois no tempo foi projetado para designar aquilo que vem depois no discurso, a saber, um efeito ou uma concluso. Essa projeo evidentemente no foi abrupta, mas propiciada pelo contexto contguo de implicao que, alm da leitura de tempo posterior, permitia a leitura de concluso.

    Assim, de um lado, a foricidade de logo criou condies para que o item ganhasse gradativamente estatuto conjuncional e, de outro, a transferncia metafrica e a reinterpretao contextual determinaram a emergncia de um novo sentido, mais abstrato e mais subjetivo que o primeiro.

    Concluso A trajetria de gramaticalizao percorrida por logo para a

    constituio da conjuno coordenativa conclusiva corrobora as hipteses de Sweetser (1988, 1991), Heine et al. (1991), Traugott e Knig (1991) Hopper e Traugott (1993), tanto no que concerne ao papel da presso contextual para a emergncia de novos usos, como no que concerne direcionalidade da mudana, que aponta preferencialmente para a abstratizao e pragmatizao do significado: TEMPO > CONCLUSO, e para o surgimento de categorias ainda mais gramaticais: ADVRBIO PRONOMINAL > CONJUNO.

    AbstractIn this paper, I analyze some aspects related to the grammaticalization of the coordinating conjunc-tions. Assuming that cognitive and pragmatic factors interact to create new grammatical items and adopting a coordination approach supported by functional-semantic criteria, I reconstruct the evolutionary-historical course of the Portuguese conclusive conjunction logo from Portuguese historical sources.

    Keywords: grammaticalization; conjunction; coordination; historical linguistics.

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