graça aranha - a estetica da vida

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  • 8/22/2019 Graa Aranha - A estetica da vida

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    G R A A A R A N H A

    A E s t h e t i c a d a V i d aA tragdia fundamental da existnciaest nas relaes do espirito humanocom o Universo.A concepo esthetica do Universo abase da perfeio.

    L I V R A R I A G A R N I E R

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    A ESTHETICA DA VIDA

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    G R A A A R A N H A

    A E s t h e t i c a d a V i d aA tragdia fundamental da existnciaest nas relaes do espirito humanocom o Universo.A concepo esthetica do Universo abase da perfeio.

    LIVRARIA GARNIER109, RUA DO OUVIDOR, 109RIO DE JANEIRO

    6, RU E DES SAINTS-PRES, 6P A R I S

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    A UNIDADE INFINITADO TODO

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    O UNIVERSO E A CONSCINCIA

    Como definir o Ser ? Restrinjam os a nossaimpossibilidade a este axioma: o Ser o Ser. E'a substancia com os phenomenos e s ns oconhecemos pelos phenomenos. Para o espiritohumano s ha realidade no que phenomenal;fora d'ahi o Universo, a unidade infinita, uma pura idealidade. Nem a Substancia, nema Vontade, nem o Inconsciente, nem as Idasso o principio causai da existncia. Se o fossem, o supremo problema metaphysico se explicaria por um incorrigivel dualismo, inherentea estes conceitos primordiaes, porque o nossoespirito teria necessariamente de comprehendera dualidade de uma fora ou energia agindosobre a matria, embora se pretendesse explicarque a substancia fora e matria e que noha matria sem fora, nem energia independente da matria. O dualismo subsistiria comouma fatalidade da nossa comprehenso, e porlie jamais chegaramos a explicar o Todo e a

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    4 A E S T H E T I C A D A V I D Aperceber a essncia da causalidade. Ora, o sentimento da Unidade infinita do Universo ofacto transcendente do espirito humano. E' umsentimento e no uma realidade objectiva, sentimento que reside na conscincia. Todo o problema metaphysico (philosophico, religioso ouesthetico) est subordinado conscincia quenos explica o Universo, e este s existe na suarealidade subjectiva pelo facto da conscincia.Sem a conscincia metaphysica o Universono nos seria realisado, como uma unidadeabstracta e transcendental, e assim a questophilosophica, ou melhor a explicao da causalidade, est restricta ao raio de luz da conscincia. Uma demonstrao lgica de um principiocausai, seja o nos, a vontade, o inconsciente, impossvel. O Universo porque , e s nos dado explicar scientiicamente os seus phenomenos, o que importa na fragmentao doTodo, infinito e inattingivel investigao dasciencia. Mas, po r um a necessidade fatal doespirito, aquillo que indemonstravel pela lgica comprehendido como realidade ideal. Ha umaunidade infinita do Ser que se impe ao espiritoe conscincia.

    A formao da conscincia metaphysica omysterio do espirito humano. Fora da conscincia o Universo no existe. S por ella e para

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    O U N I V E R S O E A C O N S C I N C I A Della o Universo se realisa. Pde-se ter a conscincia de si, a conscincia individual, sem se tera conscincia metaphysica. A conscincia desi tem o indivdu o quando percebe pelas suassensaes que elle frma um todo separadoe distincto dos outros seres. Essa conscinciase estende e se amplia, quando o indivduoapplica percepo introspectiva dos phenomenos subjectivos a mesma atteno, que emprega n a observao dos phenomenos objectivos.Mas o indivduo ainda no attingiu ao domnioda conscincia metaphysica da existncia, isto, a explicao ou o sentimento da sua prpriaexistncia, o sentimento do Todo, a causalidade. O indivduo pde sentir e conhecer queelle no outro ser, que est separado dasoutras cousas, tendo a conscincia da sua unidade perfeita, e os outros seres lhe apparecemcomo unidades differentes sem necessidadede as ligar intimamente e compor com ellas aunidade absoluta e infinita. A conscincia de sid ao indivduo o sentimento da separao, aconscincia do seu prprio eu e a interpretaodos phenomenos subjectivos dos outros seres.Antes dessa conscincia conceituai o indivduose considera um entre os outros objectos, e noum em opposio aos outros objectos. Elleainda no sujeito e no comprehende que

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    0 A E S T H E T I C A D A V I D Aoutros o sejam. 0 estado a que se chega pelaconscincia conceituai, metaphysica, o queexplica as unidades psychicas perfeitas, nse os outros, sendo todos objecto de conhecimento de sujeitps conscientes, que somos nsmesmos.Para estes estados de conscincia que sode preceitos ou de conceitos, o Universo noexiste, o sentimento do Infinito ainda no foidespertado. O indivduo indifferentc a tudoque no seja objecto da sua sensao real.Tem a inconsciencia do Todo, no se sentecomo uma expresso, uma simples apparenciaphenomenal do Universo. Ha uma perfeitaincorporao do indivduo no Todo universal,e pelo facto da inconsciencia metaphysica hauma unidade infinita e completa na essnciado Ser.

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    A FUNCAO PSYCHICA DO TERROR

    A conscincia no homem no um phenomenotranscendental, fora das leis naturaes. A conscincia um facto na tura l, um modo dasubstancia universal. Phenomeno neurolgico,commum aos animaes, a conscincia, que temos seus rgos physicos, se desenvolve na escalados seres. Mas no processo dessa evoluo haum instante em que se frma no crebro doanimal superior a conscincia metaphysica doTodo universal. E' o instante da creao dohomem. Por essa conscincia o homem se revela,porque entre todos os seres s elle comprehendeo U niverso, o inte rpre ta, e sente a sua separaodas outras cousas no Todo infinito. Os outrosanimaes tm a conscincia individual, a conscincia dos outros seres, mas esto privadosda conscincia metaphysica, objectiva e subje-ctiva. Para explicar esse magno problema daphilosophia, a hypothese do terro r inicial for-

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    8 A E S T H E T I C A D A V I D Amando a conscincia humana no fortuita, eseria uma luz neste insondavel enigma.

    O homem herdou dos seus anthropoides omedo. E' um animal em que o medo uma dasprimeiras manifestaes psychicas. No perodoinfantil, qualquer alterao do equilbrio, a impresso da gua, os menores animaes e os maisinoffensivos, o ater ram . N 'esse crebro assimpredisposto, as grandes commoes, provocadaspelos inexplicveis phenomenos da Natureza,determinaram a formao de idas transcenden-taes para explicar a origem e a causa dessesphenomenos, que pelo mysterio apavoram oespirito dos homens. A necessidade de explicar,de entend er, essencial ao crebro hum ano. E 'um a conseqncia psychica do seu prpriodesenvolvimento physiologico. No dispondode meios scientificos para explicar a matriauniversal, que o cerca e espanta, interpreta-lheos phenomenos por um a ideologia rud im enta r,vaga e incerta, que se torna a expresso domysticismo inicial, pelo qual se balbucia oconceito da fragmentao do Universo e daseparao dos seres.

    Esse terror inicial fica permanente no espiritohumano e transmitte-se aos descendentes pelahereditariedade psychologica. No homem civi-

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    A F U N C A O P S Y C H I C A D O T E R R O R 9lisado, em cujo espirito a cultura intellectualtem combatido o medo, este perdura como umtrao psychologico dos antepassados, e por ellese d no homem uma regresso physica e moralao estado psychico dos primitivos formadoresda espcie. Sob a influencia do medo vemos oshomens mais civilisados reproduzirem gestose actos dos homens selvagens e dos animaessuperiores de que descendemos. E essa regresso uma das provas da origem animal dohomem. Pela hysteria e pelo somnambulismo,que so muitas vezes manifestaes nervosasdo medo, o homem en tra no estado de sub-cons-ciencia, em que viviam os primitivos homensperdidos no terror do Universo. A um estadosemelhante de sub-consciencia^propicio ao mys-ticismo animista, que transfigura a Natureza,volta o homem civilisado, quando se transportaao meio physico, cujo assombro o apavora eternamente. No somente por uma manifestaophysica retrograda que o terror reside no homem ; tambm pelo retrocesso alma antigados antepassados, reaco em que a culturaadq uirid a se esve, como a luz solar no m ysterioda infallivel noite. Esse retrocesso sub-con-scienciase accen ta n a vida collectiva, nas sociedades humanas, em que o estado de agglome-rao faz despertar os instinctos selvagens

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    1 0 A E S T H E T I C A D A V I D Ados anthropoides e homens primitivos, que viviam em tribus.Outra causa do medo a dr. Antes do soTr-mento moral, a dr physica, agindo nos centros nervosos do animal, determina o pavor dodesconhecido e no homem crea o sentimento dam or te. A dr moral tem um effeito idntico,o de despertar esse sentimento vago do medo,que est no inicio da formao da conscinciahumana. Durante essa reaco physica e moraldo softrmento, o espirito humano procura proteger-se do terror ancestral, que persiste na suamemria, e a imaginao lhe crea as foras tute-lares, que o devem amparar na sua dr. E oeffeito mgico do soffrimento moral o de creara conscincia, que nos explica a nossa separaodo Universo, que nos confina no nosso prprioser, que nos faz sentir o Infinito, que nos d adivina tentao de desapparecer para sempreno Todo universal.Nas relaes do indivduo com o mundoexterior do-se factos que, causando espanto,ficam inexplicveis intelligencia. A necessidade de ligao de causas e effeitos, essencial aoespirito, transportada a esses factos inexplicveis, revela a separao entre o indivduo e umafora mysteriosa, implacvel e fatal, que noreside positivamente nos outros indivduos

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    A F U N C O P S Y C H I C A D O T E R R O R 1 1ou objectos exteriores. A homogeneidade csmica est quebrada, e no indivduo o terrorgerou a conscincia metaphysica. Comea entoo cyclo da tragdia fundamental do espirito,e a vida passa a ser a dolorosa, infatigavel emltipla expresso desse sentimento : a noconformidade com o cosmos. O terror csmico o principio de toda a vida reflexa. A conscincia desse terror crea o sentimento do Universo,de um Todo infinito. A dualidade, eu e' o mundo,e a interpretao das foras ignoradas da natureza passam a ser a cogitao incessante doespirito humano. O sentimento da unidade docosmos essencial conscincia antes da suarevelao metaphysica pelo medo ou pela dr.O espirito tende sempre a voltar a essa unidade, que permanece como o estado profundoe intim o da sua vida inconsciente. O sentimento do Infinito, a indeterminao dos seres, afuso destes n^quelle sentimento, dominam aconscincia. E o espirito mysticamente realisaesse sentimento ideal da unidade csmica nasmanifestaes transcendentes da sua actividade.Sem a conscincia o Infinito no existiria,nem a Unidade, nem o ser, e sem o sentimentodo Infinito no haveria religio, philosophia earte, manifestaes da actividade do espirito,que realisam aquelle sentimento da Uni-

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    1 2 A E S T H E T I C A D A V I D Adade. Se o terror csmico estabeleceu a dualidade, a tremenda separao do Indivduo e doUniverso, procuram a religio, a arte e a philo-sophia restabelecer a hom ogeneidade un iversa lna indiscriminao dos seres, na integrao detodos os seres no Todo infinito.

    RELIGIOA Religio uma melancolia. O homem,deante do espectaculo infatigavel da vida e damorte, do apparecimento e desapparecimentodas cousas, sente-se triste, o pavor invade-lhe

    o espirito, e dessa melancolia nasce a anci deattribuir um destino a si mesmo e ao Universo,de ligar os effeitos s causas e dominar o myste-rio. Assim, a religio desponta na alma assombrada do homem primitivo e permanece naraiz do espirito humano, d' onde a culturadifficilmente a extirpar. Emquanto existir umenigma no Universo, hav er o sentim entoreligioso que, alm de ser uma funco psychicado terror, est ligado intensam ente quellaaspirao unidade do Todo infinito, que osurto irrepremivel e secreto do espirito humano.Por elle o homem se eleva da animalidade ao

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    R E L I G I O 1 3vrtice da imaginao creadora, que commu-mente se chama espiritualidade, como paraaccentuar que todo o sentimento do Infinito uma pura idealisao, uma abstraco metaphysica, de que so incapazes os outros seres.E esta manifestao to inherente ao espiritohu m an o que s por ella se poderia explicar areligiosidade essencial do homem, sem recorrerao motivo inicial do espanto e do terror deantedos enigmas do Universo.Desde que o homem se sentiu separado dasoutras cousas, antes que a sua intelligencia pudesse interpretar scientificamente a natureza,os phenomenos da matria lhe appareceramcomo effeitos de cousas mysteriosas animadoras do cosmos. O animismo a mais remota eracial expresso da religiosidade do homemperdido nas enigmticas apparies de umincognoscivel Universo. As suas razes soadstritas alma dos homens e embora chaoti-cas, essas idas e imaginaes ancestraes formam para sempre o substractum da religiosidade hu m an a. Assim, quan do mais tarde, poruma elevao da intelligencia, surge a ida ese organisa o culto de um deus nico ou dedeuses, que so as expresses de um ideal debelleza superior, o espirito humano insatisfeitovolta ao estado inicial dos seus primitivos sen-

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    1 4 A E S T H E T I C A D A V I D Atimentos. D'ahi o fetichismo indestructivel, assupersties, que so o desmentido da omnipo-tencia de Deus. Para o homem superticioso hasempre algum mysterio tenebroso, que a religio official no explica nem resolve. Deus nobasta. Alm de Deus, ha o Terror, ha a Fatalidade, ha o Destino. A seductora magia domysterio inseparvel do homem. Se se levantasse o mappa moral da religio, ver-se-ia ofetichismo inexpugnvel nos povos mais scien-tificamente apparelhados para domar a natureza, no espirito dos homens mais senhores domysterioso imprio das cousas infinitas. Chamem-se essas mascaras modernas do animismoselvagem, espiritismo, theosophia, espiritua-lismo ; por toda a parte aquelle mesmo mul-tiforme e persistente fetichismo, que escapa sciencia e philosophia, zomba da cultura,nos encanta e aterra, e a < manifestao concreta da pura abstraco da alma humana, domaravilhoso mysticismo.A exaltao espiritual, que arrebata os homens para alm da realidade, transforma a intelligencia em sentimento e d o frmito infinito s idas, s paixes e vem comprovar essaardente aspirao unidade transcendental doUniverso, que a nossa perpetua anci. Poressa suprem a fuso de tod as as cousas, em que se

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    RE L I G I O 15fragmenta o Todo infinito, voltamos grandee total inconsciencia, escapamos dolorosaseparao do nosso ser e do Universo. No fundode todo o mysticismo ha uma realisao daunidade inconsciente e transcendental. No mys-ticismo religioso a alma se julga uma emanaode Deus. A existncia na separao do seu Crea-dor uma condemnao, uma triste peregrinao supportada unicamente pela consola-dora esperana de tornar Essncia de queemanou. A unio com Deus a vida perpetua domystico. E' o toque da divindade em ns, peloqual somos um com o Universo. Nada maisdivino do que a Unio, salvo o Um , exclamouProclus.

    O mysticismo no limita o seu vago e ascen-sional encanto religio. Est em todos ossentimentos transcendentes. O grande Amor' mystico como a paixo religiosa. Por elle serealisa a unio profunda dos dous seres. E nessasuprema unidade o Amor se torna mystico,porque ultrapassa as contingncias da matria,se espiritualisa na maravilhosa fuso das duasessncias que, pela magia do magnetismo dosseres, aboliram o espao e tudo o que limita, e setornam infinitas e eternas. Assim, a Religioe o Amor se identificam na sua remota e altasignificao. No vo sublime d ai d ea lid ad e o

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    16 A E S T H E T I CA D A V I D AAmor religio, como a Religio amor.A felicidade suprema s se realisa na uniocom o ser amado, seja Deus ou o Amante.Emquanto a grande mystica do Amor divinoadora o amado Jesus como um Amante, aquellaoutra linda Theresa, mystica do amor humano,exclama ao seu amante : Leio a Imitao e tus o meu Jesus ! Os dous mysticismos se encontram na mesma paixo sobrenatural, e tudo Religio. O amor se tornou mystico, um frm ito do Infinito divinisou os Am antes. A mysticasanta como a mystica amorosa podem dizerdo ser amado : Toda a cousa que vive em tisomente viva, como no seu xtase exclamavaSanta Maria Magdalena de Pazzi, e aindamais : Eu no sou nada , sou um a cusa quevem de ti, que s infinito. Todas as creaturasque comprehendem o teu amor, tornam-seinfinitas, porque comprehendem as cousas infinitas . E' a mesma anci do Infinito, o mesmoexaltado desejo da conformao total do nossoSer no Universo. Na religio os sexos se at tr em ,como na paixo do amor, para realisar a uniomystica dos Amantes, suprema aspirao dasnossas inquietaes no exlio do mundo.O animismo torna universal a Religio,porque pela sua magia tudo se vivifica, se espiri-tualisa e se divinisa. Esse animismo se engran-

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    R E L I G I O 1 7dece'desde as frmas mais rudes e selvagens atao pantheismo religioso de Buddha e de S. Francisco de Assis. E' a mesma fora motora doespirito que faz de todas as expresses doUniverso as mltiplas imagens da divindade,uma perpetua e infinita representao da causanica, de Deus. Produz-se na alma mysticao maravilhoso processo da humanisao de todaa na tureza, que inspira a tram a de uma fraternidade e liga os iniHimeraveis seres, em que sefracciona o Todo. O Cntico ao Sol de S. Francisco, em que o pantheismo christo alvorece,como toda a primavera do mundo adormecido, o primeiro toque da renascena do espiritomoderno, a magnfica idealisao do cultosolar dos selvagens, agora poesia, musica e almada fraternidade de todas as cousas da natureza.Desse pantheismo, ainda impregnado do sentimento da permanncia individual, se chegarpelo mysticismo quelle conceito buddhista danegao da substancia real, do no-ser, do anni-quilamento final do Universo, cuja existncia uma pura idealidade. Todas as formaesso passageiras, proclama o Buddha, todas asformaes so sujeitas dr, todas as formaes so sem substancia real. Quando se estbem possudo desta verdade ultima, a libertao da Dr. E' o caminho da perfeio.

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    1 8 A E S T H E T I C A D A V I D AEsse supremo conceito pantheista da religio se torna esthetico. Para o mystico que chegou pelo surto espiritual a abolir a existnciaindividual de Deus, pa ra anim ar e divinisaro Todo, a comprehenso do Universo pu ra mente espectacular, o sublime jogo das foras da natu reza que se multiplicam em im agens,so expresses cam biantes e infinitas das frmase das cousas. Assim, a Religio, a Arte e oAmor confluem maravilho sam ente no esp iritohumano, vido de voltar grande inconscienciada natureza.Na aurora do espirito humano a religio e aphilosophia se confundem e do do Universoa mesma viso. Pouco a pouca a investigao

    da matria, a interpretao scientifica da natureza crearam a philosophia e a distinguiram dapura religio. O senso religioso inseparvel dohomem tornou-se philosophico. A philosophiaveiu principalmente apoiar a religio, quando,quebrando a unidade do Todo, institue a perturbadora dualidade do espirita e da matria.Reapparece a funco psychica do terror e denovo se volta, mesmo na extremada culturada intelligencia, ao animismo primitivo, racialno homem. Procura-se ligar todos os effeitoss causas, remontando at causa nica crea-dora de todas~as.cousas. Repete-se com Parme-

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    R E L I G I O 1 9nides que alm do movimento ha o eternorepouso da substancia final, que attingiu aomximo do seu desenvolvimento. A ida deDeus se funde desse modo na metaphysica doterror, no simples animismo. A religio afllrma-se inexpugnvel no espirito do homem perdidona grande inconsciencia do cosmos. A actividade do homem, a sua aco pertinaz, o seucombate de todos instantes com a natureza,nada extirpa da imaginao nascida do terror osentimento religioso que funde todo o Universono conceito de uma substancia creadora dasoutras frmas, que Deus. Por mais que sevena a natureza e seja ella incorporada peladominao ao.nosso espirito, ha sempre paraa imaginao mystica do homem alguma cousade inabordavel, de mysterioso, que a scienciano pde domar. No espao infinito das trevasque assombram o espirito humano, trava-se operpetuo combate e^itre a religio e a scienciapara a explicao final do Universo. A scienciano poder jamais satisfazer a anci do espirito,que aspira realisar a unidade do cosmos. Sha sciencia do'que fragmentrio. O supremosentimento do Todo infinito se realisa pelassensaes vagas e mysticas da Religio, daPhilosophia, da Arte e do Amor, que fundemo nosso ser no Universo.

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    2 0 A E S T H E T I C A D A V I D ASe o terror o ponto de partida da religiosidade do homem, o terror desapparece, extingue-se, quand o pela prpria religio se frma a suaveunidade do nosso ser e do ser creador. Pelamxima espiritualidade da religio voltamos aoineffavel estado de inconsciencia inicial de todosos seres indiscriminados no Todo infinito.

    PHILOSOPHIANo ha maior angustia do que a nossa separao do Todo universal. E' a dr suprema daintelligencia humana. A conscincia creou esse

    terrvel soffrmento; preciso que a conscinciao elimine pela comprehenso da Unidade essencial do Todo, do qual a nossa distinco apenasillusoria. Se podemos pensar o Universo, aindapara nos sentirmos um com elle, sentirmos queno somos uma realidade e que tornamos inconsciencia profunda e eterna do Todo. Eisa ineffavel consolao para a perpetua dr emque se abysma o nosso ser illusorio.Em vez dessa salu tar concepo da substan ciae dos seus phenomenos, as outras explicaesdo Universo e do nosso eu, mantend o a separaoentre um Creador e a cousa creada, distinguindo

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    PHILOSOPHIA 21a m atria e o espirito, s vm p erpetuar a angustia do ser que se comprehende como eternamente separado do Todo universal, prisioneirode uma conscincia metaphysica, que faz dailluso a imaginaria realidade.A esta triste philosophia dualista oppomosa radiante philosophia monista, que s ella pdesuscitar a verdadeira esthetica da vida, A interpretao scientifica do Universo, que o comeo da philosophia e emancipa da religio oespirito, distingue o monismo philosophjco domonismo religioso, que reduz tudo unidadeDeus. No perodo do puro animismo fetichistao homem no procura explicar os enigmas danatureza e reduzil-os s leis que seriam osgermens da sciencia do cosmos. O seu mysti-cismo, ainda muito prximo do terror inicialda separao do Todo, integral, e por elle tod aa m atria divina, a expanso, aprojeco deum ser creador remoto, tenebroso e temvel, Deus.Quando mais tarde , ainda na aurora da intelligencia, o homem disassocia os phenomenos danatureza e tenta explical-os e domal-os pelasleis, o Universo cessa de ser um todo para serum conjuncto de fragmentos. Esta decomposio da matria, este estudo dos phenomenos danatureza a sciencia, que d ao homem uma

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    2 2 A E S T H E T I C A D A V I D Aviso fragmentaria do Todo infinito. O espiritohumano no se pde restringir a essa bmitao.Por uma fatalidade essencial, aspira entendero U niverso, e a realisao da ida transc end enta ldo Todo infinito, sem distinco de partes, oTodo absoluto, , como j \i m o s , o facto supremoda conscincia humana. E como o mysticismoreligioso desfalleceu deante da explicao scien-tifica dos phenomenos do Universo, o mysticismo philosophico, que no desdenha a scienciae antes a funde numa grande unidade, floresceno espirito humano, ancioso de eliminar a suadolorosa separao do Todo infinito.Desde os temp os mais remotos do pensamento,a philosophia, confundindo-se ainda com a religio, exprimiu a anci dessa unidade ulma,em que a nossa fugaz individualidade se extingue para sempre. O tormento da separaodo homem e do Universo cessou para Orpheu,para Buddha, mas nesses systemas primitivos areligio se confunde com a philosophia. O sensoreligioso se torna philosophico pela sua extenso, como a philosophia pela condensao setorna religio.A concepo monista do Nirvana poderia seruma apparencia desse conceito supremo doUniverso, que a base da esthetica da vida.No ha duvida que o buddhismo viu com jus-

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    P H I L O S O P H I A 2 3teza a alma individual permanente e immuta-vel, como o principio que mantm a separaoentre os seres, impede a libertao espirituale perpetua a dr. Tambm a hypothese dorenascimento, a roda dos nascimentos do orphis-mo, o eterno retorno s mesmas frmas e smesmas existncias, seria a perpetuidade domal, do soffrimento e a inextinguivel separaodo ser e do Todo infinito.O Nirvana surge nessas terrveis , angustiasdo espirito, que busca a libertao da prpriaexistncia, como a feliz concepo da unidadefinal e absoluta do Universo. Mas esse termoultimo a que se pde chegar em plena vida,e no pela morte, o fim de todo o desejo.Para o mystico do Nirvana toda a actividade uma expresso de dr; apropria contemplaodo Universo, a meditao, o pensamento, ogoso transcendente da vida suprema do Todoso frmas da permanncia individual, que nosafastam da b eatitud e, em que se extinguempara sempre o prazer e o soffrimento. A essaattitude passiva e incompatvel com a prprianatureza, que ella mesma a perpetua aco,opporemos o conceito da unidade universalrealisada pela prpria conscincia, que nos da miragem sublime da inconsciencia infinita.Para se attingir ao Nirvana, o buddhismo fixa

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    2 4 A E S T H E T I C A D A V I D Auma lei moral. Para extinguir a dr necessriaa piedade, a compaixo que se torna sympathiauniversal, solidariedade entre todos os seres douniverso e responsabilidade de cada um paracom a natureza inteira. O budd hismo se accentuamais como religio do que como philosophia.O anniquilamento do nosso prprio ser, que sepde comprehender m ysticam ente, lucta, narealidade talvez illusoria, mas realidade pa ra ns,com a natureza, que faz da conservao do sera razo primeira da existncia. E' a observaod'onde se originou, o p rincipio philosophico deSpinoza, de que to da a cousa em si se esfora empersverar no seu ser. E d'ahi toda uma ethicabaseada nesta mxima : o esforo de um serpara se conservar o primeiro e nico fundamento da virtude. E' a opposio doutrina dobuddhismo , que estabelece a ethica co ntr aria dadissoluo do ser individual no Todo infinito.Mas a concepo de Spinoza se alarga, quandoprocura conciliar o egosmo do ser com a sym path ia universal en tre todos os seres. Os ho mens, diz elle, nada podem desejar de melhor,para a conservao do prprio ser, que esseamor de todos em todas as cousas, que faz quetodas as almas e todos os corpos formem porassim dizer um a s alma e um s co rpo... Infezmente, esse conceito, de uma vastido

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    P H I L O S O P H I A 2 5essencialmente pantheista, se termina no pensamento de Spinoza como uma ethica, em que oinconsciente substitudo pelo consciente, pelavontade do bem, como uma necessidade, umautilidade conservao do ser. E recahimos nodualismo separador do Universo e do nosso eu.No se pde attingir a esta suprema fuso nouniversal, quando todos os conceitos relativosdo bem, do til, do bello, emfim tudo o que individual persistir no nosso espirito. No haduvida que Spinoza se approximou mais queningum da concepo essencial da Unidadeinfin ita dos seres, quando affirmou que o homem um a infima parte d a natureza eterna. A idada pa rte e do todo ainda um a ida de separao.

    Ha uma unidade secreta e infrangivel na matria universal. Os seres que vemos distinctosuns dos outros, participam todos dus mesmoselementos immorredouros e todos tm a mesmae indissolvel essncia physica. Aqiielles reinos,em que se costuma separar a naturezia, so damesma origem e da mesma substancia, e ellesse entendem secretamente entre si. A theoso-pliia hindu percebeu esse grande mysterio,quando assignalou na escala ascendente dosseres os mineraes que aspiram ao reino vegetale os vegetaes que se tornam animaes pelo desejoda perfeio, e attingindo todos a uma absor-

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    2 6 A E S T H E T I C A D A V I D Apo definitiva no ser divino e recomeando impvidos a marcha forada e eterna do ser e dono ser, passando perpetuamente pelas mesmasvias dolorosas da peregrinao da existnciauniversal. Eliminando-se o que ha ahi de mystico, subsiste inapagavel nessa esplendida imaginao a verdade absoluta da unidade essencialda Natureza, principio em que se baseia a concepo esthetica da vida.Esse principio da unidade fundamental dam atria universal exige como corollario o conceito da mutao infinita dos seres, em que sefracciona apparentemente o Todo. O erro queproclama a permanncia immutavel de cadaser no seu prprio ser, anniquilando-se totalmente pela morte sem se transformar em outras expresses da matria e sem a communica-bilidade com toda a Natureza, de que umsimples aspecto illusorio, mantm no nossoespirito a perpetua dr da nossa separao doTodo infinito. Ao passo que no conceito doUniverso, como unidade infrangivel de to da anatureza, a vida dos seres seria a da perpetuaalegria pela eliminao do terror metaphysico.Desse conceito transc end ental, que exprime aconcepo.esthetica do Universo, como o perpetuofieri de frmas infinitas e incessantes, origina-setoda uma ethica para o espirito humano, em

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    P H I L O S O P H I A 2 7cuja conscincia se reflectem instantaneamentea inconsciencia universal e a magia do Todo.E no s por essa percepo, mas ainda pararealisar em toda a sua plenitude a estheticada vida, o homem tem de realisar trs grandesmovimentos espirituaes. A philosophia da unidade uma philosophia de aco, que regeitaa passividade do Nirvana, proclama que s pelaactividade o espirito se pde tornar um como Universo, extinguir tod as as separaes efundir-se esplendidamente no Todo infinito. Astrs grandes disciplinas em que se baseia aeth ica de sta esthetica da vida, so : I o resignao fatalidade csmica; 2 o incorporao t e r r a ; 3 o ligao com os outros homens.

    So esses os trabalhos moraes do homemdentro das categorias em que fatalmente temde existir, Universo, Terra, Sociedade.Deante do Universo o homem, inspiradopelo puro pessimismo negativo, dir: a vida uma illuso, uma srie de imagens de uma realidade jamais attingida e jamais positiva. Sa morte positiva, ella a entrada, o accessodo ser no absoluto inconsciente do Universo,o fim da illuso instantnea da conscincia,que apparece- como um a luz fugitiva na infin ita indifferena da m atria . Oh ! a estupidezaterradora do Universo, a impassibilidarle

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    2 8 A E S T H E T I C A D A V I D Ainabalvel e silenciosa da matria perpetua-mente movei! A ausncia total da intelligencia,do pensamento, emquanto toda a matria semove, se agita e vive a vida inconsciente !...E o espirito do homem se confrange e jamais seresignar ao seu prprio anniquilamento noinconsciente csmico.Para aquelle, porm, que, possudo do sentimento espectacular do Universo, affirma queno h um destino moral, nem poltico, nemreligioso, um finalismo de qualquer ordem noperfeito jogo das foras da natu reza , ha o sentimento profundo de que o Universo se represe nta como um espectaculo, em que s hafrmas, que se succedem, multiplicam, morrem,revivem, n'uma metamorphose infatigavel edeslumbrante. Desse espectaculo universal,somos uma appario phantastica e passageirae, na inconsciencia da representao, da vidase frma, se abre um intervallo, quando umadessas apparies instantneas do mundo phe-nomenal, que somos ns, pde conceber amagia do Universo. E' a maravilha da con-ciencia, o espelho divino do Universo, que reluzpor en tre as trevas profundas do inconscienteabsoluto e no infinito e inq ue bran tav el silenciodos outros seres.

    Esse conceito esthetico do Universo a base

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    P H I L O S O P H I A 2 9da perfeio. A manumisso do nosso espirito,a libertao da Dr e da Alegria a alcanamosquando esse conceito philosophico se transformaem sentimento. A vida esthetica se abrir parans em todo o seu mysterio fascinador. Como jse disse d'aquelles pensamentos to leves queno podem ser pensados, esse sentimento daesthetica universal to subtil que no pdeser sentido... Existe e no se exprime, mesmono se sabe como sentido, porque no chegaa se separar da inconsciencia profunda, emcujas ondas voga como uma vibrao innomi-navel. E ns nos absorvemos nesse mundo phe-nomenal, em que tudo frma ou illuso dasfrmas. Ainda assim, a vida acreao do nossopensamento, e sem elle esse mundo mgicopde existir, mas como se no existisse, e nemmesmo pde ser concebido...E no h a fim na corrente indefinida da creao.A prpria obra de arte representao, mas aella se j u n ta ou tra creao, a do simples espirito,que se commove e a transforma em cousa sua.O nosso pensamento obedece, como a natureza,ao rythmo do Universo, fatalidade de crearfrmas. E ns pensamos o nosso prpriopensam ento, um a immensa vertigem nos empolgae cahimos nesse abysmo de imagens, que nosabemos se so os aspectos reaes das cousas ou

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    3 0 A E S T H E T I C A D A V I D Aas illuses da ida creadora. Nessa conformaoentre o pensamento e a Natureza, tudo um se indefinido mundo de representao, tudo espectaculo, e ningum pde dizer se h a ummundo objectivo e outro subjectivo, porquetudo um, a unidade absoluta e bemfazeja doUniverso.A grande fatalidade do espirito humano foiter percebido o espectaculo universal. Mas, queessa divina allucinao inspire o sentimento daesthetica da vida. Faamos de todas as nossassensaes, sensaes de arte. E' a grande transformao de todos os valores da existncia.No s a frma, a cr, o som, mas tambm aalegria e a dr e todas as emoes da v ida sejamcomprehendidas como expresses do Universo.Sejam para ns puras emoes estheticas,illuses do espectaculo mysterioso e divino, quenos empolguem, nos arrebatem, nos confundamna Unidade essencial de todas as cousas, cujosilencio augusto e terrvel perturbamos uminstante pela conscincia que se abriu, como umrelmpago, nas trevas do acaso...A cultura ha de se inspirar nesse conceito eha de abandonar todos os outros que fazemda vida um debate moral. E ser a libertao.Passaremos a ter a conscincia de que somosuma fora entre as foras universaes, e assim

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    P H I L O S O P H I A 3 1entramos na vida eterna, na vida da natureza,realisando com esta a communho absoluta emysteriosa, que o termo final da'dolorosaseparao do nosso eu do Todo infinito.Possudos desse sentimento da universalidade do nosso prprio ser, a outra actividadeespiritual a que somos chamados, a da nossaincorporao Terra. Nascido da Terra, ohomem ficou para sempre ligado a ella. Todoo seu organismo uma expresso do meiophysico, de que se originou. Nada no corpohumano que no seja uma immorredoura remi-niscencia da sua formao terre na . O seu sanguebate ainda o rythmo das quentes mars dos primitivos oceanos, em que se germinou a vidaanimal. A historia da Terra se gravou no nossoorganismo e ns a resumimos. Parecendo serum prolongamento do meio physico de que proviemos, somos apenas uma recapitulao. Tudoem ns a Terra viyificadora e magnfica.A composio chimica dos seus mineraes, acombinao mineral do seus vegetaes, tudo seencontra em n s : a nossa vibrao a sua,as molleculas do nosso corpo e tudo o que mais secreto em ns participa do mysterio daTerra, vivemos delia perpetuamente, unidosa ella para sempre na vida e na morte.Filho da Terra, o homem d-lhe a alma.

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    3 2 A E S T H E T I C A D A V I D AElle a intelligencia, a fora subtil e immortalque lhe crea uma personalidade e a faz divina.A nossa historia moral se passou intimamentecom ella. Do seu mysterio vieram os phantas-mas, os deuses da nossa alma primitiva e desempre... Do seu inconsciente nasceu o nossoconsciente. Ora, por essa suprem a indentifi-cao, devemos fazer da Te rra o cen tro esp iritual da nossa actividade. O seu culto umexerccio de amor, que reconhece que o homeme a Terra so um s. Faamos dessa compre-henso uma expresso esthetica do nosso espirito, e ser uma victoria sobre o terror. O maiorrepouso da natureza humana a sua identificao com a natureza universal. Ser um com oUniverso ! E o conhecimento que leva a esserepouso o maior dos conhecimentos.A ou tra categoria em que o homem deveexercer a sua actividade espiritual, a da ligao com os outros homens. Esse mandamentono inspirado por nenhuma razo de ordemreligiosa, por nenhum mysticismo de piedadeou de sympathia, como no christianismo ou nobuddhismo. Elle a deduco lgica da prpriaconcepo philosophica da unidade do Todoe uma das bases da esthetica da vida. A aspirao fundamental do espirito humano, a suaessncia, a sua fuso no Universo. Se o homem

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    PHILOSOPHIA 33diz : eu penso, logo eu sou , affirmando" queelle um ser, no se deve concluir desse co nc eito :que a sua individualidade se desprende dasoutras cousas; ao contrario, uma confirmaode que elle um com tud o mais, e t od a a na tureza vive nelle, como elle em toda a natureza.No ha nada individual ou particular, tudo universal, e o prprio pensamento funcodessa universalidade.Ora, se essa communho essencial entre osseres em que se fraccionou a illuso do U niverso,ella no pde deixar de inspirar a sociedade doshomens, isto , de todos os seres que percebemna sua conscincia a grande inconscienciametaphysica do Todo, a idealidade do Tempo,o fluxo e o refluxo apparente da vida e damorte. E nessa solidariedade profunda as causas de separao entre os hom ens, futil distincopara aquelles que vivem na trgica amarguradas separaes, que a nossa distinco individualdo Todo infinito, seriam extinctas separaescreadas pelo Terror, mesquinhos dios humanos^que s servem para augmentar a immensatristeza dos nossos espritos. A concepoesthetica do Universo, dando ao homem a luminosa comprehenso da sua unidade com oTodo infinito, eliminaria o Terror da vida humana, basearia a sociabilidade na Alegria, que,3

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    3 4 A E S T H E T I C A D A V I D Asegundo percebeu Spinoza, o bem supremo.E a alegria, que a perfeio do espirito hu m ano,s se pde realisar em sua plenitude pela interpretao do Universo como um magnficoespectaculo e ns mesmos como puros, simples efugazes elementos estheticos da indefinivel vidauniversal.

    A PERPETUA DOR E A PERPETUAALEGRIA

    Aquelle que comprehende o Universo comouma dualidade de alma e corpo, de espirito ematria, de creador e creatura, vive na perpetuadr.

    Aquelle que v toda a natureza universalterminada no seu prprio ser, vive na perpetuadr.Aquelle que no percebe o mysterio da Uni

    dade infinita do Todo, que ignora esse segredosupremo da existncia e limita o seu conhecimento aos factos positivos da matria, vive naperpetua dr. . .Aquelle que eliminou o terro r do cosmos e

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    PHILOSOPHIA 35faz do ann iquilamento da v ida u m a razo debelleza, vive na perpetua alegria...

    Aquelle que transforma em belleza todas asemoes, sejam de melancolia, de tristeza,prazer ou dr, vive na perpetua alegria.Aquelle que se sente um com o Universo infinito e para quem todas as expresses da vida

    universal so suas prprias sensaes, vive naperpetua alegria...Aquelle que encontra o repouso na sua absor-po no cosmos, vive n a pe rpe tua alegria. Beatusquia in natura unus.Aquelle que pelas sensaes vagas da frma,da cr e do som, se tran spor ta ao sentimentouniversal e se funde no Todo infinito, vive naperpetua alegria.Aquelle que sabe que o seu ser no permanen te, mas um a simples appario do N ada, que

    se transforma indefinidamente, vive na perpetua alegria.Aquelle que sabe ser a sua conscinciauma illuso, que no tardar a voltar inconsciencia un iversal, e faz da sua existncia

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    3 6 A ESTHETICA DA VIDAo jogo maravilhoso dessa illuso, vive na perpetua alegria...

    Aquelle que se resigna fatalidade csmica,que se incorpora Te rra e ahi busca a long nquae perenne raiz da sua vida; aquelle que se ligadocemente aos outros seres, seus fugazes companheiros na illuso universal, que se votodos abysmando no Nada, vive na perpetuaalegria.

    Aquelle que une o seu ser a outro ser nessaprofunda e m ystica unio dos sentidos e da semoes, dos espritos e dos corpos, e n a sublimefuso do Amor realisa a universal unidade,esse vive na perpetua alegria...

    A R T ENa trgica situao do homem no Universo,

    o sentimento predominante no seu espirito o da unidade infinita do Todo. Pela compre-henso, pela intelligencia, o homem chega aoconhecimento exacto das partes em que sefragmenta e se decompe o Universo. Mas oespirito humano vae alm dos limites da sciencia

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    A R T E 3 7e da comprehenso, sente que o Universo essencialmente um todo infinito apparente-mente fraccionado. 0 sentimento d'essa unidade, quando se realisa pelos contactos sensveis com a natureza, pelos sentidos corporaes,transportando as sensaes at altura de emoes vagas, indefinidas do Todo, constitue aessncia da ar te. Esse senso esthetico inherenteao homem, como o senso religioso, com o qualse assemelha, sendo que a arte reside na emoodo Universo que provem dos contactos dohomem com a natureza e transmittida pelossentidos, produzindo-se em frmas, cores, sons,sabores e tac tos, e a emoo religiosa abstractae independente dessas expresses sensveis.

    Sendo uma funco inseparvel e primordialdo espirito humano, o sentimento esthetico,como o religioso, no est subordinado a umarazo de utilidade social. E' uma faculdadeessencial ao espirito, como a de pensar e deimaginar, e uma das manifestaes psychicasda unidade primitiva do Todo, cuja realisaotranscendente a suprema aspirao do homemno degredo da conscincia metaphysica. A arte ndifierente utilidade. A emoo originadada frma ou do som, a que nos vem da pintura,da esculptura ou da musica, inteiramenteextranha ao til. Essas emoes nascem das

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    3 8 A E S T H E T I C A D A V I D Asensaes e nos do o sentimento vago doUniverso. Como, pois, considerar o til o principio gerador da emoo esthetica ? A ida deutilidade no est na origem nem no fim dosentimento da arte. Se alguma cousa de tilpde resu ltar da sensao do Universo, oconhecimento das suas partes, que a sciencianos communica pela analyse. A sciencia decompe o Universo, discrimina-o, estuda-o nas suasmanifestaes parciaes. S ha sciencia do quese pde fragmentar. Pde-se analysar, explicarcada ordem de phenomenos percebida pelasensa o; a sciencia no dar jam ais a explicaosynthetica do Todo, a essncia da causalidade.Ella ficar extranha ao sentimento da unidadeinfinita do Universo, que s nos pde ser revelada pela religio, pela philosophia, pela arte.A interpretao esthetica do Universo, func-o intima do espirito humano, no obedece anenhum plano da natu reza e nem a um principiode utilidade social. Antes da sociedade humanaest o espirito do homem com as suas forasmysticas, independentes e desinteressadas. Anatureza no tem um fim moral, religioso ouphilosophico, A sua inconsciencia abso luta, ea illuso de sua vontade fictcia est na magiado seu prprio espectaculo, perpetuamente se-ductor. Reflectir esse espectaculo universal,

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    ART E 39transmittir a illuso dessa realidade, que seillude a si mesma, no deixar fora do prismanenhum insignificante e mysterioso personagemda existncia total o milagre da arte.No somente da utilidade, da ida do til,que o conceito da arte deve ser disassociado.Tam bm se deve liber tar da ida de belleza,attribuida como o fim supremo da arte. A associao da ida de belleza ida de arte pe rturbadora para a verdadeira explicao do sentimento esthetico. Nenhum preconceito tem sidomais vivo do que este que faz do bello o fimda arte e a sua razo de ser. A essncia da arte,que est naquelles sentimentos vagos da unidad e do Universo comm unicados pelos contactossensveis, no se pde res tringir ao conceitoabstracto do bello. A arte no reside somentenaquella sensao indeterminada do que conve-vencionalmente se chama belleza. Esse conceitodo bello no abrangeria o sentimento da unidadeinfinita do Todo, j denominado o facto supremo do espirito hum ano . Alheio a elle, lim itar-se-ia a susc itar o p razer, sem chegar totalida detranscendente da emoo esthetica. Que abelleza ? Como precisar a ida do bello ? Nadamais indefinivel e incerto. A belleza em si, abelleza objectiva, uma ida abstracta, cujosubjectivismo infinitamente varivel. O bello

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    4 0 A E S T H E T I C A D A V I D A um perpetuo equivoco entre os homens.Subordinar ainda a ida de belleza ida deharmonia um simples jogo de palavras, queno vem esclarecer o problema e substitueuma ida vaga por outra do mesmo valor.A ida de harm onia tam bm incerta [e convencional ; um preconceito geomtrico que pro vem da tradio grega. A belleza no lhe estindefinidamente associada e existe fora do seuimprio. A ida de belleza indefinivel, e oidelogo Pascal, mesmo, percebeu a sua relatividade, quan do reconheceu que apezar de gravada em caracteres indelveis no fundo da nossaalma , a ida de belleza est sujeita a enormescontingncias na sua applicao. Comprehen-dendo que o elemento pessoal fatalmentedetermina a ida que cada um frma da belleza,diz Stendhal que a belleza uma promessa defelicidade. Pura formula subjectiva, que associa a belleza ao prazer, alegria, mas que, sendoum a ida incom pleta, no a base, a razonica da emoo esthetica e fica independenteda arte. J se disse que por essa seductorapromessa do prazer, Stendhal fazia pensar nabelleza feminina, que seria o espelho imagin-*rio do bello absoluto e ideal. Assim reduzida,a belleza, que seria a belleza humana, ou maisrestrictamento a belleza da mulher, no pde

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    A R T E , 4 1conter toda a arte. Ha mil outras emoesartsticas que lhe so extranhas. Como se explicaria a emoo m usical ? a que nos vem daarchitectura ? A belleza no a.essncia daarte, que sempre exprime a totalidade universalpelos sentimentos vagos nascidos dos contactossensveis. A felicidade o bem, e o bem aalegria. A belleza, promessa da felicidade,seria a prom essa da alegria, e ha um a arte inspirada do terror e gerada pela dr. Tudo isto de ordem sentimental e alheio expressoobjectiva das cousas, s frmas, s cores, aossons, aos tactos e emoo potica creadapela imaginao. A ida do prazer e da felicidade abrange ainda o que est alm do mundosensvel das frmas. A alegria mystica do espirito religioso em communho perpetua com adivindade um gozo ineffavel, mas independente da arte.Aquelles que no percebem no sentimentoesthetico o sentimento do Infinito no espiritohumano, mysteriosa emoo da unidade doTodo infinito, limitam-se a vr na a rte um desenvolvimento dessa faculdade muscular dos animaes, cujo excesso se manifesta no jogo e nodivertimento. Esta theoria remonta a Hume e **foi adoptada por Kant, para quem a arte olivre jogo da nossa imaginao e do nosso senti-

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    4 2 A ESTHETICA DA VIDAmento, e por Schiller, que proclamou no jogo a essncia da arte. A escola evolucionista deSpencer, Grant Allen, Guyau e Ribot apoderou-se dessa explicao para determinar a origemdo sentimento do homem na impulso para ojogo, j manifestada pelos animaes, como effeitoda nutrio e do excesso de fora nervosa.Para esses psychologos a emoo estheticadiffere das outras emoes conservadoras dohomem social, porqu e a actividade que a produz no tem por fim o cumprimento de umafunco til e social, mas o prazer mesmo deexercel-a. No vital para o homem, no lhe essencial, e pde ser considerada intil esuprflua.Disassociando assim por um instantea ida de utilidade da ida de arte, a escolaevolucionista se contradiz, quando affirma denovo que a emoo esthetica um factor dasoei abi li d ade hu m ana, til conservao doindivduo e da espcie.

    Tal a mesquinhez a que fica reduzido oineffavel sentimento esthetico que nos d aemoo do Infinito I Afirmam que a actividadeinicial das nossas faculdades physicas e moraesse subordina a um fim immediato, que o daconservao do indivduo e a adaptao desteao meio, como se a faculdade de pensar a matria, de imaginar um deus, ou de se commover

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    A R T E 4 3pelo sentimento da unidade do Todo, fossemactividades destinadas ao fim da conservaoda espcie humana. O jogo um dos effeitos,uma das expresses d arte e no a razo dosenso esthetico; est mais ligado physiologiados movimentos, mechanica animal do que aosentimento. Os animaes so desprovidos desenso artstico , porqu e lhes falta o sentim ento doUniverso, causa primordial da emoo esthetica,como da philosophia, da religio e do amor.Para mostrar a transio entre o jogo, movimento inconsciente de prazer, e o jogo creaoartstica, aponta-se geralmente a dansa como aarte mais primitiva, aquella que representariaa passagem do movimento physiologico aosentimento esthetico. Ha uma precednciaentre as artes ? Ha verdadeiramente uma hie-rarchia entre ellas ? No"o apparecimento dasartes simultneo no remoto e indeciso instanteem que o espirito hum ano se commove no terro rdo mysterio do cosmos ?Quando o homem primitivo manifestou asua alegria de viver ou disfarou a angustiada sua alma, protegendo-se das calamidades danatureza, esculpindo nas rochas a imagem dosanimaes seus companheiros ou seus deuses,dansando no pavor da noite ou ao esplendordo sol, gritando e modulando o seu xtase

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    4 4 A E S T H E T I C A D A V I D Arude, um artista selvagem complexo e total,um architecto, um esculptor, um dansarno,um m usico, surgiam ao mesmo tem po da conscincia metaphysica desse terror inicial, quemarca a separao do homem e do Universo.Por terem as artes essa mesma origem mystica e simultnea, no se segue que o desenvolvimento de cada uma dellas tenha sido disasso-ciado e desegual. A evoluo das artes se explicapela prpria evoluo do espirito humano.Como o mysticismo religioso recebe as influencias da evoluo social, assim tambm a arte e aphilosophia, que so expresses da intelligencia.O amor poderia ser considerado immovel nasua essncia, na sua fatalidade inconsciente,mas a sua espiritualidade fica dependente doambiente social e da transcendncia moraldos amantes, portanto da evoluo do espiritohumano.E nessa determinao individual e collectiva,que modifica o pensamento e o sentimen to,tem-se a explicao do desenvolvim ento desegualdas artes. Ha epochas de esculptura, como depintura e de musica. A esculptura foi uma artepreponderante na Grcia, no s pelas condiesphysicas e sociaes conhecidas, como tambm,e assim percebeu Schopenhauer, por ser um a a rteem que o optimismo pago se reflecte na repro-

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    ART E 45duco da figura forte e serena dos deuses alegres de viver, e dos homens que parece teremdescido do Parnaso e pousado um instante naatmosphera suave da terra.A pintura tr iumphante na Renascena ado homem christo, a expresso dolorosa,enigmtica de um a alma que sente que tudo nada, devorada pelo pessimismo, e pede loucura sensual o frentico esquecimento.Mais tard e, em nosso tempo , a pin tura se alarga,o assumpto humano no lhe exclusivo, ochristianismo no a absorve completamente;outro personagem intervm, a Natureza.E esse movim ento coincide com o surto do pa ntheismo philosophico e litterario. O eixo domundo moral mais uma vez fica deslocado.Na Grcia os deuses, na Renascena o homem,nos tempos modernos a Natureza. Ainda comoexemplo da influencia da cu ltura geral na tra nsformao da arte, notemos, sob o ponto de vistaestrictamente artstico e formal, o que era aesculptura na Grcia e o que ella hoje, depoisdo advento da biologia. Para o artista gregoo homem um deus, que desceu terra. ParaRodin o homem um animal que vem danatureza e sobe do gorilha. Na primeira concepo a arte represe ntativa da harmonia geomtrica de um conceito religioso ; na segunda,

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    4 6 A E S T H E T I C A D A V I D Aa arte biolgica e entranhadamente animal.Mas em ambas a essncia da arte esculpturalse manifesta esplendidamente. E' intil insistirno destino da arch itectura em obedincia stransformaes espirituaes do homem e scondies da vida collectiva da humanidade.Seja o tringulo do Parthenon, seja a esguiatorre gothica, seja a ampla linha horizontalde palcio, seja a na e vasta ofiicina, em tudoa arte eterna exprime a perpetua tragdiado espirito humano por entre as modalidades dacivilisao.O magnfico surto da musica contemporneacorresponde ao espirito de uma epocha, em quea unidade da Natureza a base e a inspiraodo pensamento. Nenhuma outra arte poderiaexprimir com mais segurana e mais emooos sentimentos vagos determinados pela intuio da unidade do Todo infinito do que a m usica,que a mais vaga e a mais emotiva das artes.Pela sua fluidez ella transforma a naturezaem sentim en to; no se lim itando a interp retar,ella realisa a Unidade universal. Wagner notoucom ex actido onde as outra s artes dizem :isto significa, a musica diz : isto . O enigmado repentino e maravilhoso perodo musicaldo nosso tempo fica resolvido pela prpriaessncia da arte, e no, como querem os puros

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    ART E 47physiologistas, pelo aperfeioamento do sentidodo ouvido. A musica a arte que realisa melhore mais rapidamente a fuso do nosso espiritocom o Todo. Parece que por ella os seres seunem, que o espao, tudo o que separa,desapparece, o Universo se restringe e fazum s corpo com tu do o que existe.Se ta l a m agia da-m usica, que usa do seuNpoder illimitado para transmittir a emoototal do Infinito, as outras artes tambm pelosseus meios de expresso comm unicam e inte rpretam os sentimentos vagos da unidade universal. Pela dansa o ser humano exprime essaemoo. O puro gesto seria mechanico e animal,uma simples manifestao do ser que vive e seagita. Quando, porm, esse movimento inspirado por um pensamento, embora muito obscuro, e vem traduzir uma emoo intima, adansa apparece nesse primitivo rythmo.Pela dansa o homem manifestou as suasrudimentares emoes mysticas e o vagoterror da natureza, O sentimento remoto dareligio se exprimiu pela dansa, quando ohomem se agitou deante do sol e das outrasdivindades naturaes, implorando proteco. Opensamento transformou em arte essa primeirasutura entre os gestos animaes, o puro divertimento physiologico e o movimento reflexo da

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    4 8 A E S T H E T I C A D A V I D Acommoo religiosa. O artista da dansa se tornaum artista creador como os interpretes dasoutras artes. O dansarino reproduz nas suasattitudes as imagens que lhe vm ao crebropara exprimir os sentimentos. Elle v asrie do seu pensamento exteriorisar-se emfiguras como uma successo de estatuas emmovimento, e essas frmas reproduzem a suaprpria frma multiplicada, variada infinitamente. Se no correr dos tempos a dansa seassociou musica e poesia, a sua disassociaodes tas a rtes possvel, e assim vo ltaria a d ansa sua qualidade primitiva e seria ainda maismystica e silenciosa, porque a emoo do arti st a s seria man ifestada por Unhas moveis,silentes, sem o grito da alegria e do medo, queanimava a gesticulao do dansarino selvagem.Sem duvida, no apparecimento simultneodas artes, no foi a dansa que deu origem esculptura, mas a sua influencia na estatuariafoi decisiva. A esculptura surprehende e fixa osmovimentos desenvolvidos na dansa, sugges-tionando ao espirito a continuao desses movimentos. A frma uma expresso csmica e omovimento a vida universal na frma. Naestatua, o que fascina e attre o repouso,a necessidade que o nosso espirito tem da continuao do movimento, que no se produz

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    A R T E 4 9materialmente, mas que se completa na nossaimaginaro. Na dansa a estatua est em movimento, tem-se a sensao do vago, do perpetuofieri, da continua vibrao do Universo, qupassa e se transforma indefinidamente, como seo corpo hum ano fosse a frma infinita m ltipla, impalpavel, do fluido... A esculptura porsua vez s deve reproduzir os corpos quese movem ou se podem mover. Se um escul-p to r quizesse reproduzir um a m ontan ha, um aarvore, seria um a obra sem movimento, destituda de interesse artstico. O sentimento esthetico d a esculptura est n a indicao de um m ovimento, que se imagina prolongando-se, desenvolvendo-se successivamente. O homem queanda, deve andar. O cavallo que galopa, devecontinuar o movimento, e se a obra de arteesculptural impe ao espectador essa solicitao do movimento indicado, uma obra dearte animada por aquelle sentimento vago, que a essncia da arte.Por esta interpretao da essncia da artena esculptura fica resolvido o que Schopenhauerchamou o problema de Lacoonte , pa ra o qualno trouxe soluo acceitavel. O grito de Lacoonte, indicado em todas as expresses dafigura no instante em que a serpente o morde, suggestionado com muita preciso pelo movi-4

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    5 0 A E S T H E T I C A D A V I D Amento iniciado. Pela imaginao ns o completamos, e sentimos logicamente que o velhosacerdote gritava, emquanto o animal o picavaviolentamente. Schopenhauer acha que a atti-tude de gritar fixada no mrmore ou na pedra ridcula e tira o caracter trgico a esse famosogrupo. A explicao de Gcethe mais feliz.Ningum, como Gcethe, presentiu a essnciada arte na esculptura, antes da interpretaoque damos. sua analyse do grupo de Lacoonte extremamente lcida e se ajusta theoria quenos parece agora definitiva. E sta obra, dizelle, muito notvel pela escolha do momento.Se uma obra plstica deve mover-se realmenteaos olhos nossos, preciso escolher um mom entode transio. Um instante mais cedo nenhumapa rte do conjuncto devia e star nessa posio,e um instante depois cada parte ser forada adeixal-a. Para bem comprehender-se a intenoda obra de arte que o Lacoonte, colloquemo-nos a uma certa distancia, de olhos fechados.Abertos os olhos e logo cerrados, ver-se-todo o mrmore em movimento e ter-se- receiode achar todo o grupo m udado , quando os olhosse abrirem . O movimento continuo e perpetua-mente solicitado pelo nosso espirito exprimea arte na esculptura. O grito de Lacoonte esculptura! e trgico, como o grito que se da

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    ARTE 51figura da Marselheza no grupo do D part deRude .E st a solicitao do movimen to no espiritodo espectador o segredo esthetico da contemplao do avio em marcha no espao. O avionos commove pelo mysterio, pelo seu vo transcenden te, pelo risco, po r aquillo que no deviaser e que , o espanto do facto assombroso forada tradio. Ao mesmo tempo, junte-se a essaemoo fundamental a que suggere esse simulacro de pssaro de grandes azas que pairamlongnquas no ar e no se movem, emquantoparadoxalmente a nave viaja serena. Ha umaanci pelo movimento que no vem, e nessaanci cada espectador um artista.

    Naturalmente, no rythmo da obra de arte sereflecte o espirito das raas e do tempo. A esta-tuaria grega representa o movimento na estabilidade, signal de medida e de reteno do genigrego. Os modernos exprimem o desencadeia-mento das cousas, ignorado dos antigos. A liodos gregos foi fecunda para manter o equilbriotechnico das obras de arte, mesmo nos gniosm ais livres, como Miguel ngelo. Basta contemplar os frescos da Capella Sixtina para se verificar que na exuberncia do Juizo Finala medida intervm para evitar o grotesco.Assim, o Deus poderoso, ardente de vida, faz

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    5 2 A ESTHETICA DA VIDAsurgir do chos o homem, a mulher, os astrose em seguida, na possesso de crear, corre peloespao, e Miguel ngelo o representa de bruos,com as immensas costas volumosas, mas afigura no ridcula nem desmedida. A maravilhosa mo de Deus vae pelo Armamentocreando sempre, sem violncia, quasi docemente . . .

    Desde a exaltada Edade-Mdia, de passagempela fremente Renascena, o movimento d a esculptu ra tem o rythm o da sensibilidade que a disciplina grega desconheceu para dar frma umaexpresso impassvel. Essa sensibidade ados esculptores das edades modernas, de Dona-tello, Miguel ngelo, Luca delia Robbia, Rude,Barrye, Rodin. Quando um grande esculptorcomo Rodin, capaz de executar obras do maispuro modelado clssico, commette apparentesimperfeies, preciso explcal-as como reclamadas pela sensibidade artstica , po r umsentimento profundo de arte, que correspondea uma emoo differente da emoo grega eest no inconsciente da alma moderna. O inacabado das obras de Rodin no um signal deimperfeio, nem mesmo uma extravagnciapara se singularisar e provocar a atteno.Tambm no uma zombaria do seu espiritoarti sta , que queira rir dos seus prprios adm ira-

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    ARTE 53dores e do publico incompetente. Esse inacabado intencional, um effeito artstico queaccenta a sensibilidade da esculptura. Rodinseguiu o exemplo de Miguel ngelo, que tam bmno acabou expressamente muitas obras, comoa esta tua da Neve, e deixou no vago outras, comoa Noite. E' um meio de accentuar a impresso.O no-acabado dessas esculpturas torna maisviva a obra de arte, como na pintura o coloridod vida ao desenho.No nessa emoo vinda da ida do movimento propriamente esculptura! que se encontraa essncia da arte da pintura. O prprio decada arte commover-nos pelas suas expressesparticulares e especiaes. A pintura nos devedar a emoo vaga do Universo pela frma epela cr, como a esculptura pela linha, pelomovimento, pela luz e pela sombra. Quandovemos um quadro , o senso artstico se revelaem ns, a emoo se desperta pela sensaodas cores e das frmas. O assumpto do quadro uma impresso de ordem secundaria para oprazer esthetico que a pintura nos deve com-municar. Os indivduos dotados de senso artstico limitado, ou mal educado, procuram vrno quadro o que elle represen ta, isto , a anecdota,o episdio, seja este de ordem histrica, geral,ou mesmo particular ou familiar. Ao passo que

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    5 4 A ESTHETICA DA VIDAo artista creador, o artista que pintou o quadro,no fez mais do que exprimir a sua emoointima , que a cr, a distribuio da luz, a crpor ella mesma e a frma pela sua divina pro-jeco no espao provocam no seu espirito,ancioso de fixar e communicar esse xtaseesthetico da emoo de cousas subtis, intangveis, como a cr e a frma, que nos torna infinitos e universaes.No ha du vida que entre a frma e a cr devehaver uma intima correlao. O quadro, paraproduzir a sensao esthe tica integral, ter odesenho e a cr que lhe so indispensveis.Rodin notou com exactido que as cores empregadas nos quadros de Raphael so reclamadaspelo desenho e as que se harmonisam com oassumpto e melhor exprimem o sentimento doarti sta . Rodin assignala o predomnio das sensaes intellectuaes da ob ra de arte nas pu rassensaes estheticas. No emtanto, estas soindependentes daquellas. A graa, a facilidade,o capricho, o trao em si mesmo de um desenhoproduzem emoes puras, alheias s idas sug-geridas pelo quadro, por mais abstractas quesejam estas. O verdadeiro artista aquelleque se commove pelos meios prprios e simplesde cada arte; aquelle que sente o xtase m usicalpela audio do som, de uma nota independente

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    A R T E 5 5do assumpto do soneto ou do drama; aquelleque se extasia pela cr e pela frma em si mesmas, sem se preoccu par se esta cr ou estafrma esto applicadas a uma anecdota socialou familiar; que v a estatua ou o quadro,e a primeira emoo que recebe a que lhevem directamente da frma e da cr, emboramais tarde perceba que essa frma e essacr so as de um personagem ou do assumpto,que a estatua e o quadro procuram representar. Pela hierarchia dessas emoes se distingueo artista daquelle que o no , pois nos indivduosmenos dotados do senso artstico o interessepelo assumpto da obra de arte mais considervel que as genunas e vagas emoes esthe-ticas.Quando se collocam no seu verdadeiro planogradativo as varias emoes que nos causamas obras de arte, verifica-se que no ha razopara se repellir o esforo dos artistas, que, disas-sociando essas emoes, procuram communicaraquellas que so exclusivamente artsticas,por mais originaes e innovadoras que paream.As dissonncias musicaes, o cubismo e outrastransformaes de valores artsticos obedecema esse movim ente intim o, que aspira a realar aexpresso essencial de cada arte e transmittira emoo esthetica pelos seus meios absolutos,

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    5 6 A E S T H E T I C A D A V I D Aemancipados de toda a relatividade. E noha duvida que, por mais extra nh o que seja,esse movimento de extravagante apparenciae contrario tradi o foi benfico pa ra a pro gresso do sentimento esthetico. A musicase enriqueceu de novos rythmos e o cubismotrouxe pintura maior largueza e maior preciso no desenho pela representao to ta l dosvolumes. Foi um importante servio technicaartstica, interessando naturalmente sensibilidade. Esta se desprende do que tangvele vae alm da linha e da frma. A impressoque vem da arte, o ideal, o indefinivel, o vago,o resto.. . E ella est por toda aparte. Tome-seuma rosa : ha o colorido, o movimento ondu-lante das ptalas, as curvas voluptuosas; hatambm a irradiao, e ainda mais a atmospheraprofunda e mysteriosa da cr e da frma, oindefinivel que paira e se evola e a essncia da flor. A pintura attinge a essa expressosuprema, como na Gioconda, que o retr atodesse mysterio, o retrato da rosa.

    Pela evocao do abstracto e do indivisvel,nenhuma arte superior poesia, que nessasuggesto profunda e vaga tem a sua verdadeira essncia. Plato assignlou essa foramgica de transposio particular poesia,que exprime em geral toda a aco que faz

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    ARTE 57passar uma cousa do no ser ao estado de ser. A poesia comea onde a arte acaba...O sublime jogo da intelligencia que, pelaimaginao, nos a rreb ata alm do mundo sensvel, o acto maravilhoso do Verbo. Ao prodgio evocativo das imagens accrescente-seo encanto suggestivo da musica e da cr, sensaes que emanam das palavras. Toda a matria sonora e toda a matria visvel se animamindefinidamente na imaginao pela magiaverbal.No ha duvida, porm, que o pensamentoe a ida , elementos essenciaes d a poesia e dalitteratura, so limitaes pura emooesthetica. O assumpto um a restrico, queto rn a a poesia menos geral e mais intellectual doque as o utras artes, as quaes exprimem a emoopor meios sensiveis mais directos, como o som,a luz, a linha, a frma e a cr. Na poesia,pelos contactos sensiveis das palavras, o espirito humano levado ao sentimento vago daunidade infinita do Universo.

    Por essa emoo o artista, o poeta, sente-seum com o Todo infinito e torna-se o creadordo Universo. O creador no o que prescreveo bem e o mal, mas o que faz do Universo o seuespectaculo. A funco por excellencia do espirito humano a da creao. Viver crear, e

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    5 8 A E S T H E T I C A D A V I D Anesse poder de crear o homem chega a crearum creador para si e para todas as cousas.A transformao da realidade em uma creaoprpria cada intelligencia uma fatalidade.Pde-se dizer que se vive no meio de ph antasm as,e que nas trevas da matria s essas miragensvivem, se agitam e nos conduzem. A obra dearte a creao que representa a vida, mas ainterpretao da obra de arte outra creao.O sentimento que a obra de arte produz emns, uma creao rival da creao do artista.Cada homem um artista tosco, primitivoou sublime, porque cada homem representa,interpreta, produz imagens, que so frmas,cores ou harm onias intim as, profundas, a musicasecreta da alma. O instante da creao ou daemoo artstica como o de uma magia queviesse ao espirito pelo adormecimento dassensaes da resistncia individual para noslevar fuso infinita no Universo. O individualdo nosso ser se torna universal pela arte.A natureza exerce desse modo a sua funcoesthetica, porque, como a obra de arte, ellasuggere sentimentos e no se limita simplesexpresso destes. Para o artista os sons musi-caes da Natureza, os murmrios do vento,o ruido das arvores, o canto dos pssaros, amusica das guas so to suggestivas de emo-

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    ART E 59es intellectuaes como as harmonias de umaorchestra. E, assim, a linha, a cr, a frma etudo o que phantasia na expresso inexgot-tavel da matria. Na contemplao do mundoe n a sua interpreta o o homem se revela essencialmente um animal artista. O sentimentoesthetico do Universo a funco mgicado inconsciente e estende-se vida toda dohomem , que um a p erpe tua e integral creaoartstica. A arte inseparvel do homem e asua dominao se exerce na existncia humanaainda mais intensamente que a da religio.O homem pde deixar de ser o animal religioso ; no cessar de ser o animal artis ta.A imagem que faz de si mesmo j umaobra de arte. O quadro em que se anima,em que vive e desenvolve a sua plena actividade, uma obra de arte, seja a casa, o temploou a cidade. Por toda a parte a arte se associa existncia do homem, infiltra-se na sua sensibilidade, a transforma, eleva e poetisa. Essadominao objectiva da arte o reflexoe a projeco do sentimento subjectivo, quefaz do Universo um espectaculo infinito. Aconscincia deve-se "apoderar da magia, que oinconsciente creou no esp irito hum ano, e fazerde todas as suas sensaes, sensaes de arte.Que a luz, &. cr, a frma, o som, mas tambm

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    6 0 A ESTHETICA DA VIDAas sensaes moraes da alegria e da dr, e todasas emoes, sejam incorporadas s foras doUniverso, sejam para ns emoes estheticas,creaes, phantasias, illuses, mas espectaculomysterioso e divino que nos domine e enleve,e nos confunda na Unidade essencial da vida.Esse sentimento esthetico intenso e profundo,unindo todas as cousas, volatisando todos ossoffrimentos da alma, nos arre ba tar da nossamsera contingncia, nos dar a sensao doInfinito, nos livrar de toda aquella tristezaem que morre o espirito humano. Tal a suprema esthetica da vida. A arte a prprialibertao do soffrimento que ella exprime.

    AMOROs seres ephemeros, que so os seres hu manos,attingem por um instante eternidade, saemda diversidade consciente em que o terror osexila, voltam Unidade primitiva do Todouniversal, quando os arrebata a paixo doamor. Como explicar esse sentimento sublimee commum que, partindo da sensibidadephysica, se eleva mais alta espirituadade ?Se na base do amor se encontra a ania da satis-

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    AMOR 61fa do instincto, no esta sufficiente paraexplicar a paixo que domina a sensualidade,funde as emoes psychicas dos Amantes ecompe dos dois seres que se attrem e seunem, um s todo espiritual. Se o Amor no possvel sem a attrac o physica, esta pdereasar-se em toda a plenitude sem chegar maravilha do amor. A attraco physica existeentre os innumeros seres do Universo, os animaes superiores a sentem imperiosamente ""epor ella se perpetuam as espcies, mas, pelophenomeno psychico do amor, os homens sedistinguem dos outros animaes.O conceito supremo da fatalidade domina omilagre do amor. Ha neste sentimento, infinitocomo o Universo, um caracter trgico, umamanifestao t o sobren atura l, um desafio ao que a ordem apparente das cousas, to extranhobrilho, que subordinal-o ao impulso myste-rioso da fatalidade satisfaz a humildade dopensamento deante do assombroso e divinoamor, que, como a prpria Natureza , se deixaperceber mais pelos seus phenomenos do qepela sua intangvel essncia. Este conceitoprimordial da fatalidade explicaria o despontardo Amor, o seu mgico apparecimento, semlhe dar a razo metaphysica, remota e mystieaiO instincto sexual move um ser para outro

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    6 2 A E S T H E T I C A D A V I D Aser. Mas, quando se torna amor esse impulsofugaz ? Quando os seres por essa unio doscorpos attingem unidade com o Todo universal, aspirao suprema e intima do ser humano,separado do Universo pelo terror inicial doespirito. Essa razo metaphysica do Amor noexiste nos outros seres privados do senso espiritual das paixes.

    Todas as interpretaes do mysterio do amorso sempre modalidades do conceito da fatalidade, sejam a unio dos semelhantes de Hera-clito e Plato, reproduzida por Pascal, as affi-nidades electivas de Gcethe, o gnio da espciede Schopenhauer, a crystallisao de Stendhal,o magnetismo de Mauclair ou o filtro de Isolda.So apparies, visagens do ineluctavel principio que move as cousas, a innom inavel fata-dade, destino, kismet. Mas no basta. Porqueessa a ttraco infinita e irremedivel en tre osseres que os funde no Universo ?Quando Plato entreviu a unidade primitivados seres na multiplicidade inexg ottave l dosobjectos, uma parte da verdade essencial foipercebida. O mytho dos androgynos umacondensao da hypothese da attraco dossemelhantes realisado n'um s corpo. E noBanquete commenta Plato esta attraco doamor que realisa a un idade. Tal necessi-

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    AMOR M 63dade procede de que a nossa natureza primitivaera uma e que ento cada ser formava um todocom pleto. H oje chamamos amor ao desejo e busca dessa antiga unidade. ramos outr'oraum e por culpa nossa Zeus nos separou... Eusustento egualmente que todos os homens,todas as mulheres, que o gnero humano inteiro seria totalmente feliz, se cada um reali-sasse o seu amor e encontrasse o amante queo pudesse fazer voltar ao primitivo estado daunidade absoluta. Divino Plat o ! A verdadeessencial, a verdade ultima da explicaodo Universo foi desvendada um instante nessatheoria symbolica do amor. Plato percebeuque a anci do ser humano a volta unidadecom o Todo universal, de que a conscinciametaphysica o separa. Desde ento ha o grandevcuo que preciso preencher, o espao vazio,o abysmo que preciso atravessar, e sobre o'qual dansa Eros, tentador sublime, mgico dainconsciencia infinita. E Pascal no trepidouem exclamar : Quem duvida que estamos nomundo pa ra o utr a cousa que no seja am ar ? O homem no pde permanecer s comsigomesmo. Deve sahir do seu prprio eu,preencher o grande vcuo e por outro serque lhe seja semelhante, e essa semelhanase restringe e se encerra na differena dos sexos'.

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    6 4 A ESTHETICA DA VIDAPascal reproduz na mystica christ o mythoplatnico das fuso dos semelhantes. Se elleconhecesse a chimica, como Gcethe, do seucrebro teria sahido a hypothese das affini-dades electivas, por onde se realisa a unidadedos seres fatalmente semelhantes na diversidade sexual, que uma affirmao da unidadeprimitiva e incessantemente buscada pelosseres, que, vencendo os con trrios e as oppo-sies, se fundem, movidos por um a lei de necessidade inexorvel.Ha mais essncia de verdade nessas formulas,que procuram explicar o phenomeno transcendental do amor, ligando-o metaphysica universal, do que na soluo schopenhaueriana dognio da espcie, que d o secreto impulso daunio do homem e da mulher para o fim daperpetuidade dos seres humanos. Essa explicao de ordem physica, indifferente funcopsychica do amor, applicavel indistinctamentea todos os animaes, est m or ta pelo finalismoque a inspira, pela attribio da vontadea um a creao fo rtuita e absu rda, como esseimaginrio, phantastico e caprichoso gnio daespcie, que se diverte em unir os contrastes esuggerir maliciosamente a indispensvel pro-criao.No uma vontade que determina a aco

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    AMOR 65do amor. E' o prprio inconsciente do amor queo leva ao inconsciente universal. O amor creaesse sublime estado de fuso com o Universo,mas no solicitado pela fatalidade a essainconsciencia absoluta da Unidade primitiva.Este o mysterio dos mysterios. Stendhalimagina para explical-o a theoria da crystalli-sao, que nos deixa a meio caminho da revelao do divino enigma. Por ella se compre-hende o nascimento do amor, mas a passagemdas sensaes e dos pensamentos do estadosub-consciente ao campo da conscincia no necessria p ara o amor, que antes um a m anifestao psychica sub-consciente. Alm disso,a hypothese stendhaana se mita a assignalaruma situao sem explicar a causa. Poressas hypotheses physicas de magnetismo, depolarisao, ficamos reduzidos ao relativode uma expcao positiva, a comprovar aexistncia do phenomeno sem ir alm, sem lhedar a razo, que s uma interpretao philoso-phica pde abordar.

    Plato percebeu que ha uma unidade prim itiva dos seres. Ora, se fosse mais ousado,perceberia que ha uma unidade essencial einicial do Universo, e que os seres deviam existiretern am ente na indistinco absoluta. Mas, separados do Todo unive rsal, a v ida interior dos5

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    6 6 A ESTHETICA DA VIDAseres humanos, fundamentalmente levados a seconfundir com o Universo, a continua e irreprimvel aspirao Unidade primitiva. Cessado o instante doloroso da conscincia, ohomem se abysma mysticamente na inconsciencia absoluta. O Amor, unindo-nos a outro ser,d-nos a illuso da universalidade que eliminaas separaes, que nos arrebata para alm darelatividade consciente das cousas para nosconfundir infinitamente com o Todo universal.Esta a mystica do Amor e a sua metaphysica.Abysmando-nos no divino esquecimento, fusio-'nando os seres no Universo, transportando oscorpos ao xtase supremo, arrebatando as duasvontades unidas para o Irreal, o amor a sublime transfigurao, a eternidade instantnea,que dada aos pobres hum anos mergulhados nainfinita misria da vida contingente. Por ellesomos um com a Natureza, um com Deus, umcom o Universo, e, o que mais ineffavel,um com o ser amado. E* o milagre supremo daunidad e, que, partindo da attraco dos corpos,attinge fuso no Todo infinito.A fatadade reina sem duvida sobre oamor, desde o instante em que o instinctosexual age na sua profunda inconsciencia, atao mom ento em que a m orte separa ou une osamantes. O'sentimento da presena da morte

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    AMOR 67d esse caracter trgico, porque, interrompid a a fuso com o ama nte, se desperta airremedivel dr, que separa o espirito humanodas outras cousas. Em Tristo e Isolda, desdeo comeo, Wagner invoca a fatalidade, sob afigura de Frau Minna, que , segundo as lendasgermnicas, uma transformao de Aphro-dite, creadora da vida, geradora da tragdiauniversal. Dessa fatalidade que commanda 0Amor e a Morte, provem o filtro'que os amantestomam. Para Dante o Amor, que move o Sole as outras estrellas, leva a uma s morte...Mas toda essa fatahdade reina, domina, motivada pela necessidade essencial da volta un idad e inconsciente, que se realisa na fusomystica dos corpos e dos espritos. Depois damorte os am antes, que pelo amor fizeram oretorno unidade primitiva do ser e unidadecom o Todo, entrevm a vida eterna n a unidade. Nascidos ao mesmo tempo, disse Leopardi,o Amor e a Morte so irmos. O mundo aquiem baixo e as estrellas l no alto no possuemnada de mais bello. Esses dous divinos irmosdo a magia da inconsciencia suprema, doxtase , do repouso infinito quelles que viverana tortura e na anciedade da separao. Essepensamento da Morte gada ao Amor a angustia dos amantes em anci de eternidade.

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    6 8 A E S T H E T I C A D A V I D AImaginam constantemente continuar almda morte o amor. A religio como fora mystica um a consolao pa ra os am an tes. Que maiorapego, porm, que mais entranhada e absolutaaffeio no existir nos seres libertados dosenso regioso ? Par a elles cad a insta n te aeternidade. O Alm o nada, a vida t u d o .A paixo cresce, exalta-se nesse pensamento, uma chamma em que se consommem os con-demnados ao Nad a, ao absoluto anniquilamento.A AmOr tudo, diro esses amantes quandoseparados, e a separao a imagem da morte ;mas a separao vive da esperana e a esperana uma m agia. E a Morte ? E ' o fim de tudo .E elles aspiram morte unida. Partiremosjuntos, diro; isso tambm uma deliciosa ebella consolao. E assim o sen timento como umavaga do oceano nasce da inquietao, do terrorpa ra se vir acalmar na p az derradeira. E ' orythmo perpetuo da anci da unidade ultima,que subleva eternamente o nosso inconscienteno exilio da separao do Todo.

    O que resta mysterioso no movimento doamor a predestinao dos personagens dagrande tragdia. A unidade fundamental serealisa entre seres a ella fatalmente chamados.A hypothese das affinidades electivas ou a daattraco dos semelhantes interpretaria admira-

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    AMOR 69velmente essa predestinao que, numa elaborao muitas vezes despercebida dos prpriospersonagens, vence as maiores opposies sua imm ortal victoria, que se resgata pelamorte. Onde reside essa attraco ineluctavel,ningum pde determinar. Parece que excedeo nosso prprio ser na sua humanidade, dir-se-iaque vae alm da vida animal, que est no que impondervel e extremamente secreto navid a un ive rsal; dir-se-ia que ha um a attracoatmica entre os seres que pelo amor tm de.sefundir no Universo. Se se imaginasse a evoluodos seres perpetuamente attrahida n'umaescala descendente, seria um maravilhoso motivo para uma allucinadora fuga , em que oamor dos mesmos entes humanos fosse descres-cendo s espcies animaes, aos pssaros, aosinsectos, aos infinitamente pequenos, aos vege-taes, a tudo que palpitasse no mundo; e a persistncia das affinidades dos amantes seriaencontrada inexgottavel e imperecivel nos ato-mos, nas vibraes das molculas do ether. Assim,o Amor, formidvel como a Natureza, v, aliga eterna dos seres predestinados unidadeimmortal.A Amor repelle a relatividade para viver noabsolu to, porque d a essncia do amor essa atmos-phera de plena liberdade, essa ignorncia total

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    7 0 A ESTHETICA DA VIDAde todas as convenes, que lhe so extranhas edas quaes no pde participar. Por essa livreexpanso, e por ser uma fora da Natureza,ou subjectivamente a Natureza, o Amor trazo seu universo em si mesmo e vem alterar osentimento do prprio pantheismo. Antes doinstante da paixo o homem realisa a ideali-dade do Todo por um sentimento metaphysico,que m ostra sermos apen as um a appariodo Nada, uma fora instantnea que se pdepensa r a si mesm a e conceber o Universo evae desapparecer no Nada. Nesse idealismoo sentimento da Dr se tinha eclipsado, tudoera o perpetuo renascimento do Universo,e d'ahi o absoluto scepticismo e a sublime imp as-sibilidade deante das cousas fugitivas e illu-sorias. Mas desde que o Universo, pela magiado Amor, se representa em outro ser, no espirito hum ano se produz a mu tao do pan theismo.A Natureza s comprehendida no ser amadoe s ex iste por essa realidad e. Se o ser adorado se transforma, morre na sua frmaactua l, aquella realidade do U niverso se extinguepara o Amante e toda a vida universal cessacom a vida das vidas.. .

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    A ESTHETICA DO UNIVERSO

    Se o facto transcendente do espirito humano o sentimento da unidade infinita do Universo*no ser por uma concepo exclusivamentematerialista, baseada na sciencia, que chegaremos a formar uma ida do Todo. A sciencia,insistimos, decompe e fragmenta o Universo,e estuda-o nos seus phenornenos. Ora, pelomethodo experimental, que omethodo scien-tifico, jamais se chegar a um conceito do Todoinfinito. A esse mfethodo deve-se aluar o processo especulativo do raciocnio, que no estadoactual dos nossos conhecimentos possa interpretar a natureza e suscitar no nosso espiritouma ida do cosmos, que ser sempre relativa.

    O enigma irreductivel para o espiritohumano o da formao do Universo. Podemossuppr uma substancia universal, nica, com-mum a todos os seres, cujas formaes organicaseriam a sua simples representao . O enigmacontinuaria, porque no saberamos qual a

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    7 2 A E S T H E T I C A D A V I D Aessncia dessa substancia. A composio primordial physica ou chimica da substanciauniversal nos escap a; somos obrigados pelarelatividade da nossa intelligencia a compr-hender essa substancia como uma unidade,que se nos apresenta nos seus phenomenos,dos quaes so a energia e a matria os maisremotos. Assim enunciados, elles tm a appa-rencia de uma permanente dualidade, quandona sua realidade transcendental so uma unidade absoluta. No ha m atria sem energianem energia sem matria. No se pde conceberum desses phenomenos da substancia universaldistinctamente do outro, e j um erro enun-cial-os em duas palavras, como se fossem dousmodos do Ser.A physica pde imaginar a desmaterialisaoda matria e a degradao da energia, sem quedessas experincias se deduza a hypothese deum Universo immaterial, exgottavel um dia,isto , a morte do Universo. Em primeiro logar,a expresso matria deve ser entendida na suaaccepo absolu ta, e a physica a comprehendena accepo relativa. O que se denomina vulgarmente e scientificamente matria, pde-sedesm aterialisar pela radio-actvidade e, torna r-seimpondervel, segundo as balanas actuae s.O Universo no deixa por isso de ser concebido

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    A E S T H E T I C A D O U N I V E R S O 7 3 m ateria lm en te . Assim o , porque" , porque onosso pensamento material e no pde imaginar nada que no seja phenomeno material,nem mesmo um principio absoluto creador,um Deus que abusivamente se chama espirito.Em segundo logar, para se admittir que a matria se extinga, preciso suppr-se que amatria creada. A physica explicar que amatria se desmaterialisa, os tomos se extin-guem, e tudo se absorve d'onde tudo' recreado.Sobre a natureza do ether o mysterio total.J se o imag inou como solido elstico, queenche todo o espao. Para distinguil-o da matria, j se declarou ser elle o impondervel,o corpo sem densidade, livre das leis da gravi-tao ; j se o phantasiou em estado deTepousoabsoluto. Nada, porm, o explica, e nem por elle seexplica a essncia do U niverso. Ao nosso entendimento repugna admittir um phenomeno douniverso privado do movimento. Se o ether oelemento creador, se vibra, o movimento existe,e o prprio movimento, effeito e causa da vibrao, indica que o ether impondervel seconfunde com a energia. Todavia, essa imponderabilidade no absoluta, mas relativa ao nossopoder scientifico. Por menos denso que elle seja,tem uma densidade imaginaria. Se, paraexp-

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    7 4 A ESTHETICA DA VIDAcar o m ovimento universal, se deve supp r,como quer a sciencia physica, o ether sujeitoa uma compresso, d'onde provem ess