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Carta de Graça Aranha a Afonso Celso Acervo do Arquivo da ABL – Cadeira 38

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Carta de Graça Aranha a Afonso CelsoAcervo do Arquivo da ABL – Cadeira 38

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Uma explicação daconferência de GraçaAranha

Josué Montello

Quando Graça Aranha, a 19 de junho de 1924, proferiu a suaconferência polêmica sobre o Espírito Moderno, propon-

do na Academia Brasileira de Letras a morte da própria Academia, seesta não se colocasse ao lado dos moços que se batiam pela renova-ção total de nossa literatura, várias foram, ao tempo, as interpreta-ções suscitadas por seu gesto rebelde. Como entender-lhe a rebelião?Como explicar-lhe a atitude intempestiva, querendo pôr a pique obarco de que era também tripulante?

Diplomata, homem de sociedade, discípulo de Joaquim Nabuco,o mestre de Canaã era o homem polido por excelência, sem deixarsentir na sua elegância de maneiras o homem de lutas que se revelariade repente na tribuna da Academia.

Dois anos antes, em fevereiro de 1922, na conferência com queinaugurou a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São

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Membro da ABL(Cadeira 29)desde 1954.Além deromancista eensaísta, é autorde várias obrasde histórialiterária e sobre aAcademia, entreas quais Opresidente Machadode Assis, eorganizador dovolume Omodernismo naAcademia, reuniãode textos básicose artigos sobre omovimentomodernista.

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Paulo, havia ele ensaiado a sua oposição à Academia. Mas, entre essa conferên-cia e a outra, o acadêmico parecia reconciliado com a instituição, tanto assimque, assíduo às suas sessões, delas participou sem dar mostras de que iria bre-vemente romper com ela.

O gesto de rebeldia, contrastando com a mansidão da figura polida, tinhade se constituir numa indagação. Por que o diplomata de ontem, tão fino, tãoeducado, se colocara à frente da insurreição dos moços, atirando pedradas naprópria Casa?

Houve quem dissesse, para responder a essa pergunta, que Graça Aranha, deregresso ao Brasil como diplomata aposentado, tentava, com aquela atitude,refazer à sua volta o ambiente de prestígio que os muitos anos de ausência ti-nham desvanecido.

Afirmou-se ainda que, escritor de poucos livros, tendendo a levar mais a sé-rio a vida literária que a literatura, nada mais havia feito do que transformar oModernismo em excelente pretexto para ocupar a cena como figura de primei-ro plano, arvorando-se em chefe do movimento com a autoridade do seu gran-de nome.

Na verdade, teimava no escritor, por ocasião de seu regresso ao Brasil, nãoobstante o decreto de aposentadoria que o mandava descansar, um saldo de ju-ventude, confirmado por seu pendor a entusiasmar-se com as idéias novas.

Esse saldo de juventude identificava-o com os moços. E era ainda um traçode união com o seu passado, visto que Graça Aranha, ao tempo de sua juventu-de, vivera sob o fascínio de Tobias Barreto, que elegera como seu patrono naAcademia e em cujo exemplo recolhera a lição do escritor em perene rebeldiacontra todas as formas de apego excessivo aos valores consagrados.

A lição de Tobias Barreto, recolhida assim na mocidade, ia servir de modeloa Graça Aranha no declínio da maturidade, quando ele se encontrou com osmoços da Semana de Arte Moderna.

No famoso terror cósmico, a que reiteradamente aludiu na sua nebulosa fi-losofia literária da estética da vida, militava, em última análise, como princípioe substância, o terror da velhice. Graça Aranha tinha medo de envelhecer. E

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como um dos meios de conjurar ilusoriamente a velhice é tomar o partido dosjovens, o mestre de Canaã dele se socorreu, fazendo causa comum com a moci-dade que reclamava, no ano do centenário da Independência, uma afirmaçãobrasileira de nossa arte e de nossa literatura.

Entre as muitas interpretações que a sua atitude suscitou, para justificar-lheas palavras de combate à Academia, a mais absurda, e que foi logo posta delado, não deixava de ter, entretanto, a sua lógica.

Refiro-me à que acusava Graça Aranha de estar a serviço da Santa Casa deMisericórdia...

Quem se saiu com essa hipótese extravagante foi o poeta Luís Murat, já en-tão afamado pela freqüência com que, através de processos espiritualistas, dia-logava em sua própria casa com estes amigos: Dante, Homero, Goethe, VictorHugo, Shakespeare.

No entanto, a sua argumentação, ao acusar Graça Aranha, não deixava deser clara, objetiva – e apoiada em documento.

Se Graça Aranha conseguisse acabar com a Academia, quem lucraria comisso? E o poeta respondia, muito sério, com um papel na mão:

– A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro!E para provar que não delirava, exibia, logo a seguir, o testamento do livrei-

ro Francisco Alves, no trecho onde se lê: “Deixo tudo o que possuo à Acade-mia Brasileira de Letras, enquanto ela existir, e, se deixar de existir, à SantaCasa de Misericórdia, desta Capital.”

� A propósito de cartas de amor

Restritas a uma edição de 125 exemplares, fora do mercado, as Cartas deamor de Graça Aranha, que D. Nazaré Prado publicou em 1935, ainda no cli-ma de consternação da morte do escritor, nunca foram aludidas, ao que supo-nho, nas apreciações da personalidade do romancista de Canaã.

A razão do silêncio estará na raridade da obra, e raridade que se teria agrava-do com a destruição de boa parte da edição.

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Uma expl icação da conferência de Graça Aranha

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A verdade é que, não obstante o seu conteúdo extremamente íntimo epessoal, essas cartas constituem subsídio de alta importância na ordem bi-ográfica e literária. Direi mesmo que, sem a correspondência amorosa deGraça Aranha, não teríamos a chave de seu temperamento, e com a qual tal-vez possamos entender algumas de suas atitudes, na fragilidade da condi-ção humana.

Num dos capítulos de O presidente Machado de Assis, tive oportunidade de assi-nalar, estudando o diálogo epistolar do mestre de Dom Casmurro com o seuamigo Graça Aranha, que este viveu sob a fascinação de dois modelos: um, dajuventude, Tobias Barreto; outro, da maturidade, Joaquim Nabuco.

A conferência sobre o Espírito Moderno, com a qual Graça Aranha assu-miu a liderança do movimento modernista no salão da Academia Brasileira,marcaria o instante em que o modelo da juventude voltou a dar a linha norma-tiva ao temperamento do memorialista do O meu próprio romance. Sua palestrapolêmica, aplaudida pelos moços, corresponderia à reprodução do impacto deTobias Barreto no Recife, por ocasião do mais turbulento concurso da Facul-dade de Direito, e a que assistiu o futuro romancista, ainda menino-e-moço,recém-chegado do Maranhão.

O reencontro do diplomata aposentado com o paradigma da juventude nãoocorreu de improviso. Aos poucos a vida o preparou para ele. E aqui se eviden-cia a importância das Cartas de Amor que D. Nazaré Prado reuniu em volume.

Dizia Machado de Assis que o pior pecado, depois do pecado, é a publica-ção do pecado.

Graça Aranha fez de sua paixão o argumento de A viagem maravilhosa. Ele é,ali, Felipe, Nazaré Prado, Teresa.

Por uma dedicatória na primeira edição de Canaã, reproduzida ao fim dasCartas de amor, o romancista confessava, em 1902, a “grande amizade” que jádedicava a Nazaré Prado. Mas a paixão veemente, de que a correspondênciaamorosa seria o espelho, somente se iniciou por volta de 1911, e iria até feve-reiro de 1927, quando os correspondentes se uniram, sem dissimulações oumistérios.

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Autor de obra exígua, Graça Aranha soube ser epistológrafo copioso. Pertode três mil cartas escreveu ele a Nazaré Prado. Lamentavelmente, diz-nos anota introdutória das Cartas de amor, “as cartas escritas nos últimos anos, devi-do aos acontecimentos revolucionários do Brasil, dos quais Graça Aranha foium doutrinador e colaborador, e por outras razões mais íntimas, foram destru-ídas na sua quase totalidade, pela natureza reservada dos assuntos nelas trata-dos e pela dificuldade de serem conservadas”.

Se bem me lembro, foi em Madame Sablière que li que o amor nada mais édo que um egoísmo de duas pessoas.

Daí certamente o tom monótono que nos entedia nas correspondênciasdo amor alheio. O assunto é o mesmo, os mesmos os correspondentes. AtéGraça Aranha, com o fascínio de sua inteligência, não escapa à regra geral –repetindo-se.

Salvam-se de suas cartas, entretanto, os lances característicos de seu tempe-ramento exaltado, sempre aberto às novas idéias. A paixão da maturidade le-vou-o certamente à nostalgia da juventude, e daí ter ele volvido, na conferênciada Academia, ao modelo de Tobias Barreto.

Os jovens a quem Graça Aranha distinguiu com o privilégio de seu conví-vio, na fase em que os cabelos grisalhos lhe realçavam a beleza viril, dele guar-daram a imagem nítida, não de um mestre, mas sim de um companheiro.

Dir-se-ia que o dom da juventude perene, que o gênio de Goethe con-verteu numa transação com o demônio no símbolo do Fausto, o romancis-ta de Canaã o alcançou por intermédio de sua inteligência comunicativa,ágil e cordial. O certo é que, já transpostos os sessenta anos, ninguémsoube ser mais jovem que ele, na renovação das idéias, na irradiação deseus entusiasmos e no poder de deslumbrar-se diante da vida, numa at-mosfera de alegria criadora. E dele se poderia dizer, num resumo de suasvirtualidades, que viveu para ilustrar com o seu exemplo este pensamentode Picasso: “Leva-se muito tempo para ser jovem.”

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Uma expl icação da conferência de Graça Aranha

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Daí ter sido Graça Aranha um elo entre duas gerações, conforme observouAlceu Amoroso Lima. A lição que ele deu aos jovens – diz-nos o mesmo críti-co – foi mostrar a sua alegria de espírito, a sua confiança na vida e o seu desas-sombro de atitudes, ensinando os moços a serem moços.

Mas a verdade é que, se Graça Aranha fosse apenas o autor de Canaã ou de Aviagem maravilhosa, os livros que lhe deram a glória em duas épocas da vida, seriahoje um autor esquecido, como a maior parte dos escritores de sua geração.Porque não é por esses dois romances que ele sobrevive e sim pelo fascínio desua personalidade irradiante, que lhe permitiu chefiar de cabelos grisalhos amais importante rebelião de nossa história literária.

Na origem de toda vocação, afirmou Reger Martin du Gard, explicando oseu próprio destino, há sempre um exemplo.

A vida de Graça Aranha, aparentemente contraditória em muitas de suasatitudes, tem a unidade dos belos destinos coerentes, se a analisamos em facedos dois exemplos que sensivelmente a moldaram: o exemplo de Tobias Barre-to, no plano da vida mental, e o exemplo de Joaquim Nabuco, no plano davida social e política.

Era ele um adolescente, recém-chegado do Maranhão, quando se encontroucom Tobias, no salão da velha Faculdade, à hora em que este, nos embates deseu concurso polêmico, alvoroçava a Província com as muitas idéias de sua ca-beça despenteada.

Quando o concurso terminou, recebeu Tobias uma estrondosa ovação dosestudantes, a que se associou Graça Aranha, saltando a grade que o separava domestre e atirando-se aos seus braços.

– Vá a minha casa esta noite – convidou o mestre, ao saber que o moço ma-ranhense já era acadêmico.

Meio século depois desse episódio, é assim que Graça Aranha termina a suaevocação: “Que deslumbramento! Não voltei aos meus colegas. Fiquei por alimesmo, metido em algum canto da Congregação, e saí acompanhando, comouma sombra pequenina, o mestre. À noite, eu estava na sua casa em Afogados.Nunca mais me separei intelectualmente de Tobias Barreto.”

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Variações sobre ahumildade

Miguel Reale

Ahumildade, dentre as virtudes que ornam a conduta humana,é uma das mais ricas de significado. Nossos dicionaristas que

melhor a interpretam são Caldas Aulete e Antônio Houaiss. O pri-meiro apresenta-a como “a virtude com que manifestamos o senti-mento de nossa fraqueza ou do nosso pouco ou nenhum mérito”,enquanto que o segundo a considera a “virtude caracterizada pelaconsciência das próprias limitações”, ou “um sentimento de fraque-za, de inferioridade, com relação a alguém ou algo”.

Trata-se, pois, de modéstia no trato social, caracterizando-se porser infensa ao orgulho e à ostentação. Por outro lado, lembram osmestres da língua que ela assinala também o respeito a alguém oualgo tido como superior, sendo, assim, uma forma de submissão.

Nessa ordem de idéias, costuma-se afirmar que o sábio, de manei-ra geral, é humilde, reconhecendo a finitude ou até mesmo a precari-edade de seus conhecimentos. Nem sempre, porém, a sabedoria im-plica modéstia, havendo casos em que a posse da verdade, nas múlti-

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Artigo publicadon’O Estado de S. Paulo,7 de junho de 2003.Miguel Reale éjurista, professor,ensaísta. Suabibliografiafundamental abrangeobras de Filosofia,Teoria Geral doDireito, TeoriaGeral do Estado eestudos de DireitoPúblico e Privado. Éo fundador da RevistaBrasileira de Filosofia(1951) e presidentedo InstitutoBrasileiro deFilosofia.

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plas áreas de sua aplicação, culmina em atitudes de orgulho e de vaidade. Tudodepende, no fundo, da espécie de homem ou de mulher que se é, podendo ahumildade ser tanto uma tendência natural como um estado de espírito adqui-rido ao fim de uma longa experiência, como bom senso do valor relativo denossas conquistas.

Cabe, outrossim, observar que se pode ser humilde com plena consciênciade seu próprio valor, de sua significação em confronto com as pessoas aponta-das como representativas da coletividade, preferindo fruir de seu saber comoum patrimônio tanto mais precioso quanto mais recatado.

Há, por conseguinte, uma infinita multiplicidade de experiências existenci-ais, a cada uma delas correspondendo uma ou nenhuma forma de humildade.Esta é, como se vê, uma das mais intrigantes variáveis do comportamento hu-mano. Nem deixam de existir formas postiças de humildade, sendo a modéstiataticamente assumida apenas para se granjear fama de criaturas excepcionais,verdadeiros modelos merecedores do respeito social...

Não devem ser esquecidos os que parece terem nascido sob o signo de bem ser-vir, sentindo-se felizes quando se submetem aos mandos e caprichos dos que seprojetam na liderança política, econômica, científica ou no variegado mundo dasartes e das letras. Nem devem ser considerados seres inferiores, por obedecerem àprópria natureza, sentindo-se realizados com os êxitos dos entes que admiram.

Pela apontada variabilidade de seus conteúdos, a humildade pode ser consi-derada um dos pontos referenciais do universo da cultura, embora nem sempreseja analisada com a devida atenção pelos cultores da ética. A bem ver, deveriaser objeto de constante estudo por parte de psicólogos e sociólogos, sobretudoquando se tem em vista delinear as formas existenciais típicas, para conheci-mento cada vez mais apropriado do ser humano e da sociedade.

A “figura dos humildes”, eis aí um tema dos mais empolgantes para a imagi-nação criadora dos literatos, em seus contos, crônicas e romances, e para quan-tos cuidam de penetrar nos refolhos da consciência ou da alma humana.

Há, todavia, um limite na abdicação da própria personalidade para a glorifi-cação dos méritos alheios, não podendo sair ferida a dignidade da pessoa humana,

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Miguel Reale

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valor que atualmente figura, no Artigo l.o da Constituição de 1988, como umdos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Não posso encerrar estas variações sobre a humildade sem lembrar o quesobre ela escreveram filósofos de todas as correntes de pensamento. Bela sínte-se dessa história é-nos dada por Nicola Abbagnano em seu Dizicionario della Fi-losofia, após lembrar que a antiguidade clássica não tratou da matéria.

A seu ver, foi na Idade Média que surgiram as primeiras manifestações filo-sóficas sobre o tema objeto do presente artigo, a partir do mistério da encarna-ção de Deus na figura humilde de Cristo, o deus-homem. Foi então que To-más de Aquino viu a humildade como parte da virtude “que tempera e freia oânimo a fim de não se elevar sem medida no culto das coisas mais altas”.

Singular é a posição de Spinoza, que não aprecia a humildade como virtude,visto nascer ela do sentimento da própria impotência em confronto com seresmais perfeitos, reduzindo-se, assim, a uma “emoção passiva”.

Já Kant apresenta a humildade como “o sentimento da pequenez de nosso valorperante a lei” e, ao mesmo tempo, como a pretensão de alcançar um valor moraloculto mediante a renúncia do valor moral de si, considerando ele hipocrisia preten-der os favores de Deus ou dos homens graças ao rebaixamento do próprio valor.

É analisando as relações agônicas entre o senhor e o escravo, tema tão deba-tido pela filosofia romântica no século XIX, que Hegel diz que a humildade “éa consciência de Deus e da sua essência como amor”, o que, penso eu, quer di-zer que o acesso a Deus depende de nosso humilde amor por ele.

Por fim, não há como esquecer a posição de Nietzsche, a qual não podia sersenão a de protesto contra a humildade, vista como um aspecto da “moral dosescravos”.

Filosoficamente, para mim, a humildade significa a renúncia aos poderes darazão perante os problemas que a transcendem, aos quais ascendemos pelasvias do amor. É nessa posição que talvez se situe a humilde confissão de Eins-tein quando reconhece que “por de trás da matéria há algo de inexplicável”,contrastando com os que, orgulhosos das conquistas da razão no mundo dasciências positivas, negam Deus e a imortalidade da alma.

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Variações sobre a humildade

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A responsabilidadedos cientistas

Celso Furtado

As palavras que pronunciarei comprometem apenas a mimmesmo. Não tenho a pretensão de falar em nome de todos os

novos acadêmicos. Valho-me, contudo, desta oportunidade para di-zer o quanto admiro os trabalhos acadêmicos do historiador JoséMurilo de Carvalho e do cientista político, meu ex-aluno, Paulo Sér-gio Pinheiro, também eleitos para esta Casa na condição de cientis-tas sociais. Em sua extensa obra, um e outro souberam nos revelar osdesvãos do inconsciente de nossa cultura, na qual o mito do «ho-mem cordial» encobre formas perversas de repressão social.

Foi para mim motivo de profunda satisfação ser convidado paraparticipar das atividades desta nobre instituição fundada há quaseum século com a finalidade de promover, estimular e coordenar odesenvolvimento da investigação científica e tecnológica, em qual-

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Economista, dirigiu oBNDE (1958-59),elaborou o Plano deDesenvolvimento doNordeste e dirigiu aSudene (1959-64);primeiro titular doMinistério doPlanejamento(1962-1963) e autorde extensabibliografia sobre aeconomia brasileira.Discurso de posse naAcademia Brasileirade Ciências,proferido em nomede todos os novosmembros. Rio deJaneiro, 4 de junhode 2003.

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quer domínio do conhecimento. Muito jovem tive a intuição de que estavadestinado ao mundo do saber e tratei de defender-me de todas as tentaçõesque me afastavam desse rumo. Foi então que percebi que as ciências brotam domesmo tronco e que os valores universais, comuns a todas as culturas, se ali-mentam da mesma seiva. No Brasil, o que nos interessa em particular não étanto a ciência em si, mas a relevância da investigação científica que nos permi-ta decifrar esse teorema apaixonante que é a construção deste país continental.

As peripécias da vida, decorrentes da certeza de que nosso povo merecia umdestino melhor, levaram-me a ser cassado de direitos políticos e partir para oexílio, privando-me da fortuna de exercer atividades universitárias entre nós.Mas, vinte anos como professor em universidades da Europa e dos EstadosUnidos permitiram-me reconhecer a importância do trabalho intelectual reali-zado no Brasil, mesmo nos anos em que foi mais duro o exercício da liberdade.

Hoje vem-me certa nostalgia ao rememorar as longas conversas que tivecom José Israel Vargas, ex-presidente desta Casa, à sombra dos vetustos colé-gios da Universidade de Cambridge, quando imaginávamos que dali a dezanos, se muito, o Brasil estaria no chamado Primeiro Mundo. Passado mais deum decênio, tive troca de idéias não menos interessantes com outro ilustremembro desta Academia, José Leite Lopes. Sua lucidez não era menor, mas avisão do futuro do Brasil assumira tons bem mais sombrios. Estávamos naUniversidade de Estrasburgo, onde se integram admiravelmente o espíritofrancês e o espírito alemão. Essas longas caminhadas, que se estenderam a vári-os continentes, me permitiram observar a variedade da produção universitárianos centros de maior prestígio, e consolidaram em mim a convicção de quenosso país é um permanente desafio à criatividade, pela diversidade dos valo-res que integra. Portanto, havia que olhar para a frente, investir nas novas gera-ções.

As ciências evoluem graças a agentes que são capazes de atingir e ultrapassarcertos limites. Não basta armar-se de instrumentos eficazes. O valor de um ci-entista resulta da combinação de dois ingredientes: imaginação e coragem. Emmuitos casos, cabe-lhe também atuar de forma consistente no plano político,

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portanto assumir a responsabilidade de interferir no processo histórico. Nãodevemos esquecer que a ciência está condicionada pelos valores da sociedadeonde é gerada. Basta lembrar que supostas teorias científicas sobre as diferen-ças raciais, que prevaleceram no século XIX, nada mais foram do que um sim-ples subproduto das doutrinas imperialistas em voga na época.

As ciências sociais, talvez mais que outras, são sujeitas a influências ideoló-gicas que refletem o espírito de uma época. Se ajudam os homens a enfrentaruma profusão de problemas, também contribuem para conformar a visão domundo que prevalece em certa sociedade. Assim, podem servir de cimento aosistema de dominação social em vigor, mas também, eventualmente, justificarabusos de poder. Ao longo da história, não foram raros os casos em que as es-truturas de poder procuraram cooptar os homens de ciência. Os fornos crema-tórios foram fruto dessa colaboração espúria.

Daí a importância de que prevaleçam na sociedade compromissos éticos.No campo das ciências sociais, cujo objeto de estudo, diferentemente de

um fenômeno natural, nem sempre é algo perfeitamente definido, e sim algoem formação, criado pela vida dos homens em sociedade, o princípio da res-ponsabilidade moral faz-se ainda mais premente. Na área que me é familiar – aeconomia – verifica-se um empenho em buscar o formalismo, em adotar mé-todos que fizeram a glória das ciências chamadas exatas. Esse louvável esforçotem, todavia, um custo, pois com freqüência nos leva a esquecer que o objetodas ciências sociais nem sempre é compatível com a elegância formal.

Disso me dei conta cedo, ao me debruçar sobre os problemas do desenvol-vimento econômico. Com efeito, o próprio conceito de desenvolvimento jános obriga a perceber que o homem é um fator de transformação agindo tantosobre o contexto social e ecológico como sobre si mesmo. Nesse sentido, a re-flexão sobre o desenvolvimento traz em si uma teoria do ser humano, uma an-tropologia filosófica.

É natural que se esperem dos cientistas sociais, e dos economistas em parti-cular, respostas às questões que mais afligem o nosso povo. Mas, como tudo oque é humano tem uma dimensão social, esses problemas não podem ser apre-

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ciados fora de um contexto amplo que envolve variáveis políticas, portanto,poder e valores. Partindo dessas reflexões, permitam-me abordar alguns temasmais afins com a ciência econômica, os quais, creio, são de atualidade no mo-mento histórico brasileiro.

O primeiro ponto diz respeito à tendência persistente de nossa economiaao desequilíbrio interno e externo. Nas atuais condições de entrosamento in-ternacional dos sistemas produtivos e dos circuitos financeiros, pergunto-mese não estamos em face de um agravamento dos desequilíbrios estruturais comsérias implicações externas? É evidente que nos países desenvolvidos as socie-dades são cada vez mais homogêneas no que respeita as condições básicas devida, enquanto no mundo subdesenvolvido elas são cada vez mais heterogêne-as. A integração política planetária, em processo de realização, está reduzindoo alcance da ação regulatória dos Estados nacionais.

Nesse quadro é que devemos situar o tema da inflação crônica que marca aeconomia brasileira, e leva governos a praticarem uma política recessiva, deelevado custo social. Os economistas tendem a reduzir o problema a umasimples dicotomia entre contração de demanda monetária ou expansão fo-mentada da oferta de bens e serviços. Mas qualquer solução para esse proble-ma exige modificações amplas na distribuição da renda, que por seu lado temdemonstrado ser um objetivo difícil de alcançar. Ademais, deve-se ter emconta que muitas das variáveis com que lidamos no campo da política econô-mica dependem de decisões tomadas fora do país. Levando o raciocínio aoextremo: o espaço de manobra de um governo pode ser tão restrito que ele seveja privado da faculdade de ter política econômica, em razão de compro-missos assumidos com credores externos, e seja forçado a praticar uma mo-ratória com sérias projeções políticas.

Temos de reconhecer, assim, que nos escapa a lógica do processo de globa-lização em curso, o que nos dificulta captar o sentido do processo históricoque estamos vivendo. Não conseguimos compreender os fundamentos doacontecer atual, nem dirimir dúvidas essenciais, não obstante os fantásticosavanços das técnicas da informação. Essa pouca transparência do processo em

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que estamos envolvidos, e a que chamamos de aceleração do tempo histórico,revela a intervenção de fatores que fogem ao nosso entendimento, em particu-lar os de natureza estrutural. Já praticamente não existem sistemas econômicosnacionais dotados de autonomia. Os mercados de maior relevância, em especi-al os de tecnologia de vanguarda e de serviços financeiros, operam hoje unifi-cados e marcham rapidamente para a completa globalização.

Mas este é um processo aberto. O que vai acontecer em cada país dependeráem parte substancial do comportamento de seu povo e de seu governo. Veja-mos o que está ocorrendo nas principais áreas econômicas mundiais. Os paísesda Europa Ocidental estão empenhados na mais rica experiência de coopera-ção política e de integração dos mercados de fatores, inclusive demão-de-obra, o que implica um esforço financeiro comum para reduzir as de-sigualdades de nível de vida existentes na região.

Pretensamente com o mesmo propósito de mobilizar recursos políticospara colher vantagens econômicas, os norte-americanos tomaram uma série deiniciativas cujo objetivo é integrar sob seu comando as economias do hemisfé-rio ocidental. Essa integração, no caso do Canadá, significa dar continuidade aum processo histórico, conquanto enfrente problemas culturais. Mas, comrespeito à América Latina, e em particular o Brasil, os problemas decorrentesdesse plano de integração continental revestem-se da maior gravidade. Comefeito, caso aceite firmar o acordo que acena com uma suposta integração entreiguais, o Brasil estará na realidade firmando um compromisso entre desiguais,pois quem lidera esse projeto é nada menos do que a maior potência mundialem termos econômicos, políticos e militares. É evidente a assimetria entre osfuturos co-signatários desse projeto conhecido pelo nome de ALCA (Área delivre-comércio das Américas), que estabelece regras comuns para um amploespectro de atividades, desde investimentos norte-americanos no hemisférioaté o controle da propriedade intelectual. Em outras palavras, o projeto acarretauma clara perda de soberania para o Brasil, que teria de renunciar a um projetopróprio de desenvolvimento, abdicar de uma política tecnológica independen-te, e esfacelar o seu já fragilizado sistema industrial. Se o modelo de integração

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A responsab il idade dos c ient i stas

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européia objetiva homogeneizar os padrões de desenvolvimento de seus mem-bros, permitindo a mobilidade de mão-de-obra, a ALCA, ao contrário, excluitoda possibilidade de fluxos migratórios. E mesmo que não excluísse, seria tãoprejudicial para o nosso país que, parodiando às avessas o famoso escritor quefugiu do nazismo e veio a morrer entre nós, poderíamos proclamar: o Brasil éum país sem futuro.

Faço essas reflexões para enfatizar a responsabilidade que nos advém coleti-vamente na construção de um Brasil melhor. Somos uma força transformadoradeste mundo. Cabe a nós, intelectuais e cientistas aqui presentes, balizar os ca-minhos que percorrerão as gerações futuras.

Quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras, afirmei que o domí-nio avassalador da razão técnica limita cada vez mais o espaço em que atuam osseres humanos. Quero concluir estas palavras lembrando que a história é umprocesso aberto e o homem é alimentado por um gênio criativo que semprenos surpreenderá. De instituições culturais como esta Academia espera-se quevelem para que essa chama criativa se mantenha acesa e ilumine as áreas maisnobres do espírito humano.

Paris, maio de 2003

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Celso Furtado

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A literatura brasileiravista da Espanha

Bas il io Losada

Em primeiro lugar, um prefácio: eu não nasci para uma ocasiãocomo esta, não sei nunca em que língua devo falar. Eu nasci no

mundo galego da montanha, essa foi a minha primeira pátria. O gale-go foi a minha primeira língua. Foi a primeira língua que eu falei e aprimeira em que eu vim falar. O espanhol é, para mim, uma línguaaprendida, mas logo depois, na minha vida, tive que aprender muitaslínguas e tive que passar por muitas outras culturas. A minha mulher, aminha querida Ilse, que hoje não está aqui, é alemã, nasceu em Hano-ver, mas está aprendendo galego, porque eu quero que as últimas – emgalego dizemos derradeiras – palavras que eu sinta na minha vida se-jam também na primeira língua em que falei e em que me falaram.

Vou falar em espanhol, com a segurança de que ninguém vai terproblemas nesta língua.1

1 Até aqui em português no original. (N. do T.)

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Catedrático deFilologia Galegae Portuguesa naUniversidade deBarcelona.Tradutor deautoresbrasileiros eportugueses parao espanhol,agraciado com oPremi Nacionalde Traducción.

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Bas il io Losada

Machado de Assis em Madri. Réplica da estátua instalada à entradado Petit Trianon, no Rio de Janeiro, doada ao povo espanhol,em 1998, pela Academia Brasileira de Letras e a Fundação Roberto Marinho.

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Feito este prefácio, passo, como é lógico nestas liturgias acadêmicas, à grati-dão. Eu tenho muitos motivos de gratidão: à Academia Brasileira, ao InstitutoCervantes, que tornaram possível minha viagem ao Brasil. Não é a primeira vezque estou neste país. Em espírito, com pensamentos, com a ilusão e em sonhos,estive muitas vezes. Mas creio que esta é a quinta vez que venho ao Brasil, e es-pero que não seja a última. O Brasil é, para mim, uma pátria, a pátria maior. Eucoleciono pátrias, sou uma personagem estranha que coleciona pátrias e cole-ciona rios. Tenho dezenove pátrias e, à noite, conto minhas pátrias, uma auma, e, se me falta alguma pátria de que não me lembro, tenho de abrir minhacaderneta de pátrias até encontrar a que me falta. Baviera, Alsácia, Flandres...Colecionar pátrias e colecionar rios: muitas vezes viajei por toda a Europa sim-plesmente com a ilusão de ver o Danúbio, ou ver o Volga, ou ver o Elba, ou vero Sena, e esses rios também são parte de minhas lembranças, como o são mui-tos rios desta minha pátria que é o Brasil.

Esta honra insigne, esta honra de falar-vos, é um dos atos em que minha vida– já muito, muito avançada – em que minha vida culmina. Na verdade, eu deve-ria intitular esta minha palestra “História de uma paixão”. Como descobri Por-tugal? Como descobri o Brasil, o mundo da lusofonia que agora se prolonga commeus amigos de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, como descobri estecontinente de pátrias imensas, profundas e conflitivas? Foi a partir de minhacondição de menino galego que não sabia falar castelhano. Meu primeiro dia deescola, tinha eu cinco anos, foi numa cidade de língua castelhana, León, e eu nãosabia falar castelhano. A primeira frase que eu disse na escola foi uma frase emgalego. Disse eu: “Ve, ve alí hai un gato e ten un rabo estalicado.” E aí todo omundo riu-se de mim, a começar pela freira, pela professora; e aí durante um anoeu não quis falar. E não falei. Um ano inteiro fui à escola sem falar. E se me per-guntavam quantas pessoas tinha a Santíssima Trindade, uma pergunta então ra-zoável, eu sabia que eram três, mas me calava, e sempre havia algum obtuso quedissesse “Tem oito pessoas”. Eu sabia que eram três, mas não me atrevia a falar,até que me impus a obrigação de falar o espanhol melhor que os outros – coisaque, realmente, consegui – mas sempre carreguei comigo, e ainda hoje a carrego,

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a lembrança daquele menino que falava uma língua desprezada, que era um es-tigma, uma marca de inferioridade, mas que nunca abandonei. E por isso esperoque, quando a morte chegar – como diz Woody Allen, eu não tenho medo damorte, mas tentarei estar ausente quando ela chegar –, tentarei estar ausente,mas, caso não possa estar ausente, quero ouvir as últimas palavras nesta variantedo português, que é o galego, porque hoje o português não é uma língua, é umaconstelação de línguas, é um sistema lingüístico que está em permanente evolu-ção, em recriação constante. E eu falo com meus amigos angolanos, com escrito-res de Angola ou de Moçambique, e me surpreende a capacidade criativa desteidioma que se renova constantemente.

Descobri por mim mesmo a literatura brasileira: durante meus estudos mé-dios e na universidade, ninguém jamais me falara do Brasil nem da existênciade uma literatura brasileira. Terminei meus estudos de Filologia Românica, nauniversidade, e ninguém me falara de Machado de Assis, por exemplo. A ver-dade é que, naquele tempo, falava-se de muito poucas coisas, e minha ignorân-cia de então era uma ignorância enciclopédica que tudo abrangia. Mas um belodia vi, numa livraria de segunda mão, Os velhos marinheiros, de Jorge Amado, queviria a ser um grande amigo meu, muito admirado e muito querido, e li Os velhosmarinheiros com paixão. Lia-o no ônibus. Nas aulas do curso de doutorado, nauniversidade, eu escondia Os velhos marinheiros embaixo da carteira e o lia alitambém. Foi a partir daí que começou esta história de uma paixão. Mais tardetornei-me editor. Dirigi a seção de literatura de duas editoras muito importan-tes, hoje desaparecidas, a Editorial Caralt e a Editorial Noguer. Minha primei-ra preocupação, por conseguinte, foi que essas editoras publicassem livros deliteratura brasileira. E elas publicaram alguns. Publicaram, evidentemente, Osvelhos marinheiros e mais algumas obras de Jorge Amado. Publicaram obras deAutran Dourado, numa época em que parecia impossível que uma editora es-panhola publicasse livros do Brasil. Daqui a pouco explicarei qual é o proble-ma da literatura brasileira, uma literatura fora dos circuitos, uma literatura quenão entra nos intercâmbios editoriais. Quando eu dirigia a Noguer, que erauma grande editora de Barcelona, com milhares de títulos publicados, eu soli-

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citava autorização para publicar um livro da Inglaterra ou da Alemanha e, fre-qüentemente, respondiam: “Está bem, cedemos-lhe os direitos deste livro, setambém publicarem este outro”. Há uma palavra em catalão, que é outra dasminhas línguas e outra das minhas pátrias, uma palavra para a qual não encon-trei tradução em nenhuma das línguas que conheço. Esta palavra é torna. A tornaé o que acontece quando alguém vai comprar um quilo de pão e, ao pesa-rem-no, verificam que ali só há 900 gramas. Cortam, então, um pedaço de 100gramas que equilibre a balança e o peso. E eu não sei se isto existe em algumaoutra língua.2 Além do mais, este é um elemento que caracteriza perfeitamentea mentalidade catalã, o pesar as coisas e medi-las. Pois bem: quando eu nego-ciava os direitos de publicação de um livro, outros livros entravam como torna,para equilibrarem o peso; e eu nunca podia impor, como torna, um livro em es-panhol. Pouco a pouco fui construindo minha própria imagem do Brasil, umaimagem em nada diferente da imagem do Brasil que se tem, hoje em dia, naAlemanha ou na Bélgica. Mensalmente dou um curso na Alemanha e outrona Bélgica, em Lovaina e Antuérpia, e às vezes falo de um tema que, paramim, é um tema permanente e de que logo voltarei a tratar: a oralidade naliteratura. E dou como exemplo de oralidade sublime, magnífica, uma dastrês ou quatro grandes obras narrativas do século XX, Grande sertão: Veredas,de Guimarães Rosa. E vejo em meus alunos alemães ou flamengos o estupor,o assombro que lhes causa a existência da literatura brasileira. Por que essedesconhecimento? Porque a literatura brasileira está fora dos circuitos, dosgrandes circuitos editoriais em que entram as literaturas que hoje em dia, noaspecto narrativo, são de segundo plano. Por exemplo, a literatura narrativafrancesa, obcecada por problemas técnicos, por novas maneiras de narrar, es-queceu-se de que um romance é, essencialmente, uma histsória bem contada.E, se esquecemos que um romance é uma história bem contada, estamos alie-

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2 Existe. Leia-se o que diz o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, na acepção 5 do verbetecontrapeso: “Porção menor de uma mercadoria vendida a peso, que o vendedor acrescenta paracompensar o peso pedido.” Idêntico vocábulo existe em castelhano, com a mesma acepção.(N. do T.)

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nando o público, estamos assumindo uma atitude elitista e altaneira que bempode ser a ruína da literatura.

Do Brasil existe a imagem tópica, a imagem dos tópicos: o carnaval, o fute-bol e as praias. Os tópicos são realidades, dizia Ortega y Gasset, um filósofoespanhol que, atualmente, ninguém lê, mas que se deveria voltar a ler; os tópi-cos, dizia Ortega, são verdades cansadas, verdades que, de tão evidentes, esque-cemos. Cumpre, então, reinventar os tópicos, cumpre reinventar os luga-res-comuns, para que voltem a ter seu poder agressivo, seu poder de obrigar apensar. Carnaval, futebol e praias eram o que se me pedia quando, antes de serdiretor editorial, eu ia de editora em editora com um livro brasileiro debaixodo braço e o dava a examinar. O mesmo me sucedeu com a literatura portugue-sa. Li o primeiro livro de Saramago – o primeiro não, perdão; o primeiro livrofulminante, que foi o Memorial do convento – e fui àquela grande editora espanho-la, a Seisbarral, dizendo: “Vejam, aqui está um escritor português que me pare-ce extraordinário.” E olharam o Memorial do convento e me disseram: “Éportuguês, não desperta interesse.” E eu: “Mas é uma obra extraordinária!” Eeles: “Sim, mas esse homem publicou algum outro livro, além desse?” E eu:“Bem, ele publicou O ano da morte de Ricardo Reis.” E eles: “Ah, Ricardo Reis éPessoa, e Pessoa interessa.” Logo falarei deste fenômeno, de que hoje em dia,na Europa, falar de literatura brasileira é difícil; mas, se, por exemplo, propo-nho-me falar de Machado de Assis, dizem-me: “O que os estudantes da uni-versidade esperam é que lhes fale de Paulo Coelho.” Bom, então eu falo de Pa-ulo Coelho, por que não? O mesmo se passa em relação a Saramago. Para a po-lítica cultural de um país, é muito difícil superar esses lugares-comuns, essasbarreiras. Qualquer novelista inglês de segunda classe tem possibilidades – e,se for de terceira, ainda mais – de vir a ser publicado em espanhol. Há paísesque encontram as barreiras fechadas, que estão fora de circulação.

Tenho para mim que toda grande literatura é uma grande literatura regio-nal. Quero também dizer que sei, e disto estou convencido, que todo grandeescritor tem um mundo próprio e uma linguagem própria para exprimir essemundo. E foi isto que descobri na literatura do Brasil: um mundo próprio, di-

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ferente, e uma linguagem ou umas linguagens capazes de exprimir essa diferen-ça. Ler na Europa a literatura do Brasil é um descobrimento permanente. Nãovou citar nomes, mas poderia ser qualquer um dos que traduzi – Autran Dou-rado, Rubem Fonseca, Clarice, de modo especial. Tenho a imensa satisfaçãode ter transmitido meu amor a este país e à sua variante lingüística a minha fi-lha, que me sucedeu na direção do Departamento de Língua e Literatura Gale-go-Portuguesa, na Universidade de Barcelona e que vai começar a dirigir numaeditora prestigiosa, Ciruela, a publicação de toda a obra de Clarice Lispector,com prólogos dela e também meus, ainda que a coisa se arrisque a parecer umaempresa familiar. Pois bem: esta é uma literatura fora do circuito. Como se po-deria mudar essa situação? Eu vejo a coisa com muita clareza: os futuros leito-res da literatura do Brasil deverão sair das universidades. Desgraçadamente, emtoda a Europa, exceto em Roma, enfim, em todas as universidades européiasque eu conheço, não há docentes universitários de origem brasileira. Todossão portugueses e, naturalmente, defendem sua literatura, sua língua canônica,e até, em certos casos, me dão a impressão de que pretendem penetrar demasia-do a fundo na literatura do Brasil. Creio que apenas Roma e a Universidade deBarcelona têm, dentro do programa de licenciatura e doutorado, uma presençaconstante da língua do Brasil, em sua variante brasileira, e da literatura do Bra-sil, certamente muito bem acolhida. Quando me jubilei, me aposentei, no ano2000, tínhamos 1300 alunos, não desta licenciatura, os licenciados eram pou-cos, eram dez, mas vinham alunos de muitas outras faculdades ou de muitasoutras especialidades, para assistirem, por exemplo, a um curso sobre Guima-rães Rosa, um curso de 60 aulas, ou um curso para doutorandos, em 20 aulas,sobre a narrativa do Nordeste do Brasil.

Tendes uma língua em ebulição, uma língua magmática, uma língua criati-va, uma língua que ultrapassa todas as definições canônicas. O espanhol dehoje me parece rígido, impreciso, incapaz de manifestar emoções profundas apartir de uma perspectiva nova. Por isso a grande literatura em espanhol não sefaz, hoje, na Espanha, mas sim nos países americanos de língua espanhola, nosquais se entra na língua com um espírito libertário, com uma criatividade que,

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possivelmente, o espanhol, o francês, o português, o alemão nem tanto, perde-ram já. A literatura alemã continua a ser muito importante, e cada vez mais,porque é a literatura que nasce da amargura, da frustração, da decepção, da tra-gédia, da rebeldia dos filhos contra os pais, quando lhes perguntam – coisa quevivi em minha própria família – quando as crianças perguntam, agora ao avô,anteriormente ao pai, por que aconteceu aquilo, como foi aquilo, como sepode justificar aquilo. Uma literatura que nasce da tragédia é uma grande lite-ratura, como o foram as literaturas medievais.

Pouco tempo depois tive a sorte de conhecer João Cabral de Melo Neto,que foi cônsul em Barcelona. (Meu relógio estava marcando a hora espanhola,e não a brasileira, de sorte que vi, alarmado, dez da noite e pensei: “Que diabo éisso? Que aconteceu?” Mas, agora, já o acertei para a hora brasileira.) Mas eudizia que o enorme valor da literatura do Brasil é a oralidade. Foi o que desco-bri, por exemplo, em Guimarães Rosa. Era algo que se movia ao redor de mime dentro de minha cabeça: Onde está e quais são as razões da crise das literatu-ras narrativas nos dias que correm? Na realidade, as razões da deserção do pú-blico leitor é o fato de a literatura ter-se convertido em algo muito maçante.Não me refiro à poesia, refiro-me ao romance que, na Europa, é infinitamentemaçante. Eu, que fui jurado dos prêmios nacionais de literatura narrativa naEspanha, por vinte e cinco anos, tive de abandonar a coisa porque não estavadisposto a ler oitenta livros detestáveis, horrorosos, por ano. E decidi que jánão queria ser jurado do Prêmio Nacional de Narrativa. Fizeram-me, então, enomearam-me jurado permanente do Prêmio Nacional de Poesia. Estou dis-posto a ler oitenta ou cem poemas por ano, mas ler oitenta romances abomi-náveis era algo que só se poderia oferecer a título de penitência. A literaturatornou-se muito enfastiante porque o leitor foi esquecido e o narrador estáensimesmado, experimentando técnicas que, quando justificadas, funcionam,mas que, quando não têm justificativa, são uma agressão ao leitor. É evidenteque, muitas vezes – e, no caso de James Joyce, é evidente –, o monólogo interi-or é necessário. Mas simplesmente introduzir um monólogo interior sem qual-quer necessidade, como um exercício de exibição heráldica, de ostentação de

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saberes prescindíveis, isso não tem sentido algum e ameaça o futuro da litera-tura narrativa.

Certa vez, em Marrakech, no Marrocos, uma cidade deslumbrante, desco-bri a oralidade que vislumbrara desde minhas origens na Galícia. Dei-me contade que havia narradores orais, ou seja, um mouro se sentava, tocava uma cam-painha e, imediatamente, as pessoas se reuniam ao redor dele para ouvirem ashistórias que ele contava. O narrador oral tem de estar muito atento às reaçõesdo público. O mesmo, aliás, nos acontece, a nós, professores. Eu sempre disseque um bom professor tem de ser um bom ator e, se não é um bom ator, não éum bom professor. Se aborrece os alunos, se os leva ao desespero, se os alunosvão para a aula como quem vai para a guerra, o professor fracassou. Eu via, en-tão, os narradores de Marrakech contando histórias e muito atentos às reaçõesdo público, porque quem escutava a história, caso esta não lhe interessasse oufosse enfadonha, ia ouvir outro narrador. E assim, na hora de passar o chapéuou a bandeja, o dinheiro também iria para o outro. Oralidade, então, é, funda-mentalmente, o ter presente o leitor, ter presente que a criação literária é umsistema de colaboração. E, em poesia, isto fica muito claro. Eu, que sou um po-eta frustrado, antes, quando era jovem, diria que daria seis anos de minha vidapara escrever um bom poema. Agora, que não me restam seis anos de vida, jánão daria nada. Mas houve um tempo em que, para escrever um grande poema,eu daria seis anos de vida. A poesia é como uma partitura para um músico. Épreciso ler a partitura. E a poesia é, em grande parte, enriquecida pelo leitor. Éo que eu explico a meus alunos, que agora são alunos americanos, e não espa-nhóis, contando-lhes uma história que vivi e que se relaciona com este aspectoda literatura enquanto participação, e, de modo especial, com a poesia. De cer-ta feita li um poema que me pareceu um bom poema, mas nada mais que isso.Intitulava-se “A carta do amigo suicida” e um poeta, amigo meu, explicavaque, um dia, outro poeta, amigo dele, se suicidou e ele viu uma carta fechadasobre a mesa de seu escritório e não a abriu. O poema me pareceu um hábilexercício de poesia, até que a viúva de outro amigo me chamou: meu amigo sesuicidara, e ela me disse que pusesse os papéis dele em ordem, por faltarem-lhe,

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a ela, forças para tanto. Passei, então, uma tarde na casa de meu amigo, buscan-do papéis, e, ao abrir uma gaveta, encontrei uma carta fechada. De repente,aquele poema, “A carta do amigo suicida”, se converteu numa vivência minha.Já não num fato literário puro, mas numa enorme experiência emocional, por-que eu sabia por que meu amigo se suicidara. Meu amigo tinha uma amante, esua amante lhe dera um ultimato: ou te divorcias e vens viver comigo, ou ter-minamos. E ele não se atrevia a divorciar-se e se matou. De pronto aquele poe-ma, que não me parecera um poema especial, se enriquecera com minha expe-riência.

Em poesia o leitor é fundamental. Mas também o é no romance. A expe-riência dos narradores orais de Marrakech trouxe-me de volta o mundo da mi-nha infância. Eu digo aos meus alunos de agora, que são americanos, que nascino século XII; e eles me olham e dizem: “Também não exagere!” Eu nasci nasmontanhas da Galícia, numa casa que não tinha luz elétrica. Vivíamos, minhagrande família de sessenta pessoas, numa casa imensa, e vivíamos exatamentecomo se vivia no século XII, e falávamos uma língua também medieval, a mi-nha língua. A oralidade, ali, era fundamental. Quando caía a noite, vinham oscamponeses das redondezas para a grande cozinha de minha casa, para a larei-ra, onde sempre ardia o fogo. É possível que, em quinhentos anos, aquele fogo,aquele lume, jamais se tenha apagado. E então um tio meu contava históriasque nós, meninos, ouvíamos assombrados, porque eram histórias de mortos,de gente que vinha do outro mundo; mas eram histórias que também transmi-tiam os sinais de identidade da tribo e tinham enorme valor antropológico,eram histórias que também transmitiam um mundo de cultura. Vou tentartransmiti-lo em minha própria língua. Contava-se aos meninos, por exemplo,que un día ían dous pequenos á escola e pasaban polo bosque, xa sabedes onde estaba o bosque,aquel bosque tremendo, e alí, xunto á ponte vella, viron chegar un home, un vello que viña carga-do con leña, era un vello moi feo, cunha barba longa, todo esfarrapado, e entón os pequenos ríansedel. E o home aquel fixo así: Pluf! E aqueles dous nenos quedaron convertidos en dúas cerdeirasbravas, dous cerezos salvaxes, no? E dicían: Son as cerdeiras bravas que hai alí, xunto á pontevella. Entón os nenos da casa, os meninos da casa, demos nomes àquelas duas cerejeiras:

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uma se chamava Daniel e a outra, Genaro. E falávamos com as cerejeiras, e,quando voltávamos da escola, dizíamos: “A professora é muito má, bate emnós, é uma mulher terrível...” Aquelas cerejeiras eram dois meninos também.Mas, quando íamos pelo bosque e víamos algum velho carregado com o quequer que fosse, aproximávamo-nos dele e dizíamos: “Senhor, podemos aju-dar-te. Queres que te ajudemos em algo?” Não eram apenas os sinais de identi-dade da tribo: era também um sistema de valores que transmitia aquela litera-tura oral. E, de certa feita, contei por escrito outra historia oral, e um amigomeu, escritor, compôs um conto baseado nessa história e pediu-me licençapara antecipar-lhe a publicação: a lareira da casa3 não se apagava nunca e mi-nha avó dizia (a porta de casa, a da cozinha, deixavam-na sempre aberta), e mi-nha avó dizia, então: “Aquí, se algún día, se algún día vedes aquí alguén que ven de fóra, haique deixalo entrar e pode comer todo o caldo que queira, todo o que queira, non preguntedes nada,non lle digades cal é o seu nome, porque pode ser Noso Señor.”4 E Nosso Senhor, não é ver-dade, não gosta que se lhe façam perguntas. E sucedeu que um dia voltamospara casa, meu primo, que já morreu, e eu, muito crianças ainda, e vimos umvelho com uma barba branca servindo-se de conchas de caldo. Esconde-mo-nos num canto e eu perguntava a meu primo: “Achas que é Deus? Achasque é Nosso Senhor?” E ele dizia: “Eu acho que é.” Mas estávamos em dúvida,até que, depois de tomar sete xícaras de caldo – digo sete porque é um númeromágico, talvez fossem seis ou nove – o velho se levantou, juntou as mãos e dis-se: “E agora unha Ave María polos mortos desta casa.”5 E se foi. Neste pontofiquei convencido de que vira a Deus. Mais tarde vim a pensar que ele não eraDeus. E, já agora, volto a pensar que talvez fosse. Mas tudo isso era o mundoda oralidade, e este mundo pode ser reconhecido na literatura do Brasil, em mui-tas histórias de Jorge Amado, de Guimarães Rosa, de tantos e tantos escritoresque fazem com que hoje a literatura do Brasil seja a mais estimulante, a maiscarregada de novidade e a mais rica entre as literaturas que eu conheço. E eu

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3 Em galego no original. (N. do T.)4 Idem.5 Idem.

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prego de universidade em universidade, em Chicago, ou em Heidelberg, ou emMalinas, prego que a literatura brasileira é a melhor do mundo, a mais interes-sante, a que pode devolver aos entediados leitores europeus a paixão pela artede narrar. Mas, com uma condição: não esquecer o leitor. O leitor é uma peçaimportante, inclusive porque compra o livro. Isto é, se um homem gasta trêsmil pesetas (eu ainda calculo em pesetas e não em euros), se um homem gastatrês mil pesetas num livro e o livro o enfara ou o leva à loucura, não torna acomprar outro livro. Tem opções muito mais baratas, no futebol ou onde querque seja.

A literatura brasileira se move no âmbito do romance mais vivo. Por quê?Porque este é um país magmático, incrivelmente confuso, um país em perma-nente recriação, onde o absurdo é o quotidiano. Eu, por exemplo, nunca viviem outro país do mundo uma aventura como a que vivi ontem, em meu hotel,quando lá entraram três pistoleiros e armaram uma tremenda confusão. Eu, es-condido, assistia à coisa com interesse evidente e me dizia: “Estou compondoum capítulo de minhas memórias.” Isto nunca me aconteceu na Alemanha ouem Nova York. É claro que é triste, mas, literariamente, é algo efetivo, é algoque hoje tem valor. Também tem valor, tristemente, mas tem, outro incidenteque me aconteceu, ao almoçar num restaurante. No Rio de Janeiro as porçõesde comida são brutais, são imensas, são intermináveis. E, por isso, deixei umagrande parte da comida que trouxeram e disse: “Não agüento mais.” Veio, en-tão, o criado, o garçom, e me perguntou: “O senhor se importa se dermos osrestos a alguém?” E eu disse: “Não, de modo algum.” Chamaram então umamenina que estava na rua, uma menina linda, de uns doze anos, branca, mascarregando um menino negro, e me emocionava o amor com que estreitavacontra seu corpo ainda infantil aquele menino negro. Deram-lhe a comida,numa embalagem de papel de estanho, e, pouco depois, ao passar eu junto aum jardim, vi essa menina comendo a comida que me sobejara. Outra expe-riência, creio eu, que jamais viverei na Europa. Não há dúvida que é uma expe-riência dramática, mas é também uma experiência que daria matéria para umbelo conto. Este país, o Brasil, no qual, em duzentos quilômetros, se pode pas-

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sar do neolítico à tecnologia mais avançada; um país que está não apenas navanguarda da criatividade literária, mas também da criatividade artística emdesign e arquitetura; este país de tremendos contrastes, um país invertebrado,magmático; a miscigenação, que é uma realidade viva e é o futuro do nossomundo.6 Neste sentido, mesmo quando pensamos, por exemplo, que 15% doshabitantes de Berlim são turcos, ou quando pensamos que 30% dos habitantesde Paris são gente do norte da África, vemos, então que, também nisto, dolo-roso, difícil, possivelmente amargo, o Brasil está na vanguarda de um mundocom o qual vamos ter de aprender a conviver, porque o futuro está na mestiça-gem. Digo-o eu, que sou um mestiço cultural e, possivelmente, físico. Querodizer: no sangue de qualquer espanhol há muçulmanos, marroquinos judeus,gente do norte: a mestiçagem é a liberdade. O mestiço é aquele que, tomandoum pouco daqui e um pouco dacolá, pode construir seu próprio mundo. Amestiçagem, no meu caso, mestiçagem cultural, é algo que só reconheço na ve-lhice e que foi uma imensa fortuna, uma imensa fortuna. Foi a minha grandeexperiência de liberdade pessoal. Por isso coleciono pátrias e coleciono rios. Epor isso qualquer viagem, para mim, é a tentativa de descobrir mais uma novapátria que me enriqueça. Um rio a mais, no qual eu possa adivinhar, como Pes-soa, os barcos que por ele transitaram ou as pessoas que o atravessaram repletasde esperança ou desespero.

Pois bem: este país, que vive em permanente trabalho de reconstrução – nosanos em que passo por aqui tenho visto mudanças de moeda, mudanças de go-verno – poderia, também, contar exercícios de oralidade e aventuras minhasneste Brasil inusitado e assombroso. Por exemplo, como, no ano de 1970 meprenderam sob a acusação de pretender seqüestrar um avião... Absurdo... Mas,ao fim e ao cabo, o absurdo é a realidade! Muitas editoras me pediram que es-crevesse um romance sobre esta minha experiência dos anos 70, quando me

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6 Assim no original. Não há uma oração principal, à cuja volta se estruture, organicamente, todo operíodo. Cumpre não esquecer que esta palestra constitui um bom exemplo daquele estilo oral, noqual o encadeamento espontâneo das idéias tende a deixar a estruturação sintática em segundo plano.(N. do T.)

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confundiram com um terrível revolucionário que ia seqüestrar um avião e des-viá-lo para Cuba. E me perguntavam: “Mas o senhor ia para Cuba, não?” E eurespondia: “Não, ia modestamente para Barcelona...” Coisas assim. E tudoisso pode ser incidentes, anedotas, elementos passíveis de considerar-se desti-tuídos de importância, embora, para mim, tenham sido muito importantes,enormemente importantes, qualquer um desses fatos: a menina a quem, hoje,deram os restos do meu almoço e que, pouco depois, os comia com uma fomeatrasada, junto aos gradis de um jardim; minha experiência de 1970, na minhaprimeira visita ao Brasil. Digamos que o Brasil é, hoje em dia, um país ondeacontecem coisas interessantes. Há muitos outros países, desgraçadamente noIraque também estão acontecendo coisas interessantes, mas este é um país comesperança, este é um país aberto, este é um país com tecnologia – e, cada vezque venho aqui, noto avanços consideráveis, que dão alento, não à minha espe-rança no futuro, mas à minha convicção de que hoje o Brasil está avançando eabrindo caminhos para o mundo.

Pois esta é sua literatura. Lembro-me de uma dos primeiros romancesque traduzi, A barca dos homens, de Autran Dourado. É um romance terrí-vel, impressionante e belíssimo. Poderia falar das permanentes transgres-sões de linguagem de Clarice Lispector, sua constante tentativa de inven-tar uma linguagem nova, porque inventar uma linguagem nova é inventarum mundo novo. Dizia Pessoa que a pátria do homem é sua língua. Ou-tro, Rilke, dizia que a pátria do homem é sua infância. Outros dizem quea pátria não é o lugar onde nascemos, mas aquele onde queremos morrer(esta definição não me serve, porque eu não quero morrer em parte algu-ma). Outros, enfim, dizem que a pátria é o lugar onde nasceram nossos fi-lhos. Eu sou muito mais modesto e digo: a pátria é o lugar onde as coisasquotidianas não são um problema, onde alguém sabe onde comprar no-vos cordões para os sapatos, quando os cordões velhos se rompem, ouuma aspirina (isto, literalmente, já me causou dores de cabeça em certospaíses). Na pátria, em qualquer pátria, o quotidiano não é um problema.Pois bem, a literatura do Brasil sempre me fascinou, porque nela vejo es-

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Capas de Clóvis Graciano

De Jorge Amado Basilio Losada traduziu:Los pastores de la noche (Os pastores da noite). Barcelona: Luis de Caralt, 1970; Barcelona:Ediciones B, 1995.Los subterráneos de la libertad (Os subterrâneos da liberdade). Barcelona: Bruguera, 1980.Mies roja (Seara vermelha). Barcelona: Luis de Caralt, 1985.Los viejos marineros: dos historias del muelle de Bahia (Os velhos marinheiros: duas histórias do cais da Bahia).Barcelona, Ediciones B, 1988.Jubiabá. Barcelona, Plaza & Janes, 1994.Navegación de cabotage: apuntes para un libro de memorias que jamás escriberé (Navegação de cabotagem).Madri: Alianza, 1995.De cómo los turcos descubrieron América. Barcelona: Ediciones B, 1996.

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tes elementos de oralidade. Contar bem uma história, sem perder de vistao leitor.

As últimas obras brasileiras que traduzi, Patrícia Melo, por exemplo, ou oúltimo livro de Rubem Fonseca, são literatura absolutamente insólita na Euro-pa. Agora, como convencer os europeus daquilo que eu prego, a saber, que oBrasil, não só em literatura, em muitas áreas (mas, para mim, por razões profis-sionais, fundamentalmente em literatura) está na vanguarda do mundo? Esteseria um trabalho que, no melhor sentido da palavra, poderia ser chamado depolítico. Eu gostaria de ver em Heidelberg, em Hanover, em Göttingen, emFlorença, em Malinas, em Gand, docentes de literatura brasileira7 como o quetemos em Barcelona, que simplesmente transmite a seus alunos o amor a estaliteratura e lhes revela o seguinte: que esta literatura é de vanguarda, que elaestá rompendo os velhos esquemas das literaturas européias. Quando vejo quena França continuam escrevendo romances cujo tema central é saber se a Se-nhora Dupont vai para a cama com o pintor do lado – um assunto que não in-teressa nem sequer ao Senhor Dupont – parece-me que a literatura será viver ascoisas, escrevê-las (e talvez eu escreva esta minha experiência de hoje, quandocompartilhei meu almoço, o que foi um ato involuntário, mas, não obstante,fez com que me sentisse enobrecido; e, logo depois, eu teria gostado de falarcom aquela menina, para que ela me explicasse algumas coisas, e, talvez, dei-xar-lhe algum dinheiro a fim de que, durante um mês, ela e aquele menino ne-gro que ela carregava pudessem esquecer a angústia de sobreviver um dia depo-is do outro).

Se a literatura, portanto, tem algo importante, se ela é algo importante, ela oserá nisto: descobrir-nos mundos, descobrir-nos novos usos da linguagem quejamais prevíramos, pôr um adjetivo novo ao lado de um substantivo com oqual esse adjetivo nunca se casara antes, provocar em nós essa emoção que àsvezes, tantas vezes, traduziu-se para mim na experiência de estar lendo, sobre-

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7 No original está “lectores de literatura portuguesa”, um evidente lapsus linguae corrigível pelocontexto. (N. do T.)

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tudo um poema, e ter de fechar o livro, porque a tensão emocional era tão altaque eu vislumbrava que aquilo não era deste mundo nem correspondia a minhaprópria experiência. É esta a grandeza da literatura.

Continuarei a pregar, talvez inutilmente, de universidade em universidade,dizendo que a literatura do Brasil é a mais nova, a mais rica, a mais sugestiva domundo. Continuarei a peregrinar pelas editoras com um livro brasileiro debai-xo do braço (antes isto era fácil, porque todos os editores eram meus colegas,gente de minha geração; em seguida, eram alunos meus; mas agora já é uma ter-ceira geração, é gente que eu não conheço e que não me conhece e, aí, a coisa setorna um exercício apostólico). Sinto-me em permanente apostolado, comqual tento pagar tudo o que este país e esta língua me deram. Porque aquelemenino humilhado na escola, por falar uma língua humilhada, descobriu, maistarde, que essa mesma língua era uma língua carregada de dignidade. E a partirdaí viveu e assumiu essa língua com um orgulho imenso.

Esta é a história de uma paixão.

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