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ISSN 0102-0625 Ano XXXVI • N 0 365 Brasília-DF • Maio 2014 – R$ 5,00 O caos da educação indígena Páginas 6 e 7 Manifestação em Brasília – Foto:Rafael Vilela/Mídia Ninja Índice de suicídios no MS bate recorde Página 11 Dom Tomás, eternamente presente Página 15 Governo Retrocede × Indígenas Avançam De um lado, o governo federal insiste em ignorar as determinações da Constituição Federal em relação à demarcação das terras indígenas, é cúmplice na estratégia de subtrair direitos desses povos, fortalece sua aliança com os latifundiários e criminaliza a luta pela terra. De outro, 600 lideranças explicitam durante a Mobilização Nacional Indígena que estão unidos na defesa de seus direitos e dignidade. Mesmo diante da inaceitável violência com que foram recebidos na capital do país. Páginas 8, 9 e 10

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ISSN

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Em defesa da causa indígenaAno XXXVI • N0 365

Brasília-DF • Maio 2014 – R$ 5,00

O caos da educação indígena

Páginas 6 e 7

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Índice de suicídios no MS bate recorde

Página 11

Dom Tomás, eternamente presente

Página 15

Governo Retrocede × Indígenas AvançamDe um lado, o governo federal insiste em ignorar as determinações da Constituição Federal em relação à demarcação das terras indígenas, é cúmplice na estratégia de subtrair direitos desses povos, fortalece sua aliança com os latifundiários e criminaliza a luta pela terra. De outro, 600 lideranças explicitam durante a Mobilização Nacional Indígena que estão unidos na defesa de seus direitos e dignidade. Mesmo diante da inaceitável violência com que foram recebidos na capital do país.

Páginas 8, 9 e 10

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2Maio – 2014

Egon Heck, do Secretariado Nacional

obilizar a memória perigosa. Lutar sábia e tenazmente contra todas as tentativas de suprimir direitos constitucionais. Dizer

um enfático basta às violências e viola-ções dos direitos dos povos indígenas e de outras populações oprimidas.

Nesse contexto realizou-se em maio, em Luziânia, a reunião da Co-missão Indígena da Verdade e Justiça. Esse é um dos espaços de luta do movi-mento indígena e de aliados para fazer frente à avalanche de iniciativas que visam retirar direitos constitucionais e consuetudinários desses povos, articu-lados pelos ruralistas e o agronegócio com a complacência e anuência tácita do governo.

O objetivo maior da Comissão In-dígena é que se faça justiça através da reparação coletiva e individual pelos crimes perpetrados contra os povos indígenas com a participação direta de entes do Estado ou pela omissão do mesmo. O Ministério Público Federal, que participou da reunião, constituiu um grupo de trabalho que já está atuando em alguns casos.

Também insistiu-se na importância de se reescrever a história desse país em relação aos povos nativos para que aflore a verdade desses 500 anos de invasão, em que em cada século se exterminou mais de um milhão de indígenas, conforme afirmação de Orlando Villas-Bôas. Esta história não pode continuar sendo jogada embaixo do tapete. A memória militante e per-manente contada por cada ancião dará visibilidade à resistência combativa e insurgente dos povos massacrados, porém não vencidos.

Nesse sentido, uma vez mais o governo brasileiro foi denunciado, neste mês de maio, na Organização das Nações Unidas (ONU) pela violação dos direitos dos povos indígenas. Situação semelhante ocorreu em 1980, quando Daniel Pareci denunciou na Assembleia Geral do Conselho Mundial dos Povos Indígenas (CMPI), as arbitrariedades e violências contra estes povos pratica-das pelos governos da ditadura militar. Naquela ocasião foi aprovada uma reso-lução de encaminhar essas denúncias

Memória e mobilização indígenaPorantinadas

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

ISSN

010

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APOIADORES

Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Faça sua assinatura pela internet:

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Ass. anual: R$ 60,00

Ass. de apoio: R$ 80,00

Ass. dois anos: R$ 100,00

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Outros Países: US$ 70,00

Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM

significa remo, arma, memória.

Dom Erwin Kräutler Presidente do Cimi

Emília AltiniVice-Presidente do Cimi

Cleber César BuzattoSecretário Executivo do Cimi

REPORTAGEM:Carolina Fasolo, Renato Santana,

Luana Luizy (Estagiária)

ADMINISTRAÇÃO:Marline Dassoler Buzatto

SELEÇÃO DE FOTOS:Aida Cruz

Fotos: Arquivo Cimi

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:Licurgo S. Botelho (61) 3034-6279

IMPRESSÃO:Mais Soluções Gráficas (61) 3435-8900

REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO:SDS - Ed. Venâncio III, sala 310 CEP 70.393-902 - Brasília-DF

Tel: (61) 2106-1650Fax: (61) 2106-1651

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Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício

de Registro Civil - Brasília

EDIÇÃOPatrícia Bonilha – RP: 28339/SP

CONSELHO DE REDAÇÃOAntônio C. Queiroz, Benedito Prezia, Egon D. Heck, Nello Ruffaldi, Paulo Guimarães,

Paulo Suess, Marcy Picanço, Saulo Feitosa, Roberto Liebgot, Elizabeth Amarante Rondon e

Lúcia Helena Rangel

Artigo

MO público na defesa do privado

Cerca de 20 indígenas Xikrin foram recebidos pela Força Nacional com bombas e balas de borracha ao tenta-rem entrar, pacificamente, no canteiro da usina de Belo Monte para conversar sobre as condicionantes indígenas com representantes da Norte Energia S.A, no dia 25 de maio. Quatro indígenas ficaram feridos. O Ministério Público Fe-deral (MPF) já tinha um procedimento para investigar a legitimidade e as justi-ficativas para a Força Nacional defender o patrimônio da Norte Energia e do Consórcio Construtor de Belo Monte. Segundo os Xikrin, nenhum projeto de compensação ou mitigaçãopelos impactos de Belo Monte foi realizado.

Falta de éticaTendo 20% da sua campanha de

2010 (cerca de R$ 2 milhões) finan-ciada pelas mineradoras Acerlomittal, Gerdau, Usiminas, Ecosteel e LGA, o deputado federal Leonardo Quintão (PMDB-MG) deveria ter rejeitado a relatoria do projeto do novo marco legal da mineração (Projeto de Lei 37/2011). O inciso VIII do Art. 5º do Código de Ética da Câmara afirma que fere o decoro parlamentar “relatar matéria submetida à apreciação da Câmara, de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral”. Quintão chega a admitir em um vídeo gravado em uma audiência na Câmara, em dezembro, que é finan-ciado por empresas de mineração e que defende o setor.

SOS governamentalOs usineiros, que já foram chamados

de heróis pelo ex-presidente Lula, estão em maus lençóis. Depois de dobrarem a capacidade produtiva de etanol no país, entre 2005 e 2010, foram surpreendidos pela crise mundial, que mudou a política de preços da gasolina e derrubou o consu-mo de etanol. Além de todos os subsídios de que normalmente desfruta, o setor sucroenergético se prepara para em breve pedir socorro ao governo federal. É que as dívidas da safra 2013/2014 totalizam R$ 42,42 bilhões, valor 8% superior ao da safra anterior. Nos últimos quatro anos 48 usinas já fecharam no país.

MARIOSAN

à ONU e ao Vaticano. Naquele mesmo ano, assim como aconteceu no último mês de abril com o cacique Babau Tupinambá, Juruna foi impedido de ir ao Tribunal Russel, na Holanda, onde foram analisadas as violações dos direi-tos dos povos indígenas nas Américas. Só após intensa batalha judicial ele conseguiu viajar, presidindo o último dia dos trabalhos. O Brasil foi condena-do por violação dos direitos indígenas e por genocídio. Darcy Ribeiro, Alvaro Tucano, Dom Tomás Balduíno, Marcio Souza e Egydio Schwade também participaram do Tribunal. Os gover-nantes de então temiam que as de-núncias graves maculassem a imagem do país.

Os povos primeiros ocupam os lugares proibidos

Brasília amanheceu em tom acin-zentado no dia 27 de maio. Para os 600 representantes indígenas de todo o país, reunidos no 10o Acampamento Terra Livre, era um dia de intensa mo-bilização e manifestações na capital federal.

Parece que procuraram testar o esquema de repressão a vir a ser uti-lizado durante a Copa do Mundo com os povos indígenas. O acampamento foi permanentemente vigiado e tenta-ram intimidar as lideranças parando os ônibus na BR-040.

Nada mais simbólico, portanto, do que ocupar, com rituais, danças, flechas, maracás e bordunas a Praça dos Três Poderes. Ecoou forte o grito: “Estamos vivos! E estamos aqui!”.

A parte da manhã terminou com os indígenas protocolando uma queixa-cri-me contra os parlamentares Luis Carlos Heinze e Alceu Moreira por recentes declarações racistas e incitamento à violência contra os índios.

Sob um sol escaldante, os indíge-nas irromperam para a plataforma que envolve os plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Ali fi-zeram rituais e danças, à semelhança de 1988 quando da conquista dos direitos indígenas na Carta Magna. A diferença é que, desta vez, a manifestação era para evitar a retirada dos direitos conquista-dos. Esse espaço público é fechado ao povo. Porém, assim como ocuparam o plenário por dentro, em abril do ano passado, desta vez os indígenas os ocuparam pelo lado de fora.

A manifestação seguiu até o Mi-nistério da inJustiça, onde cobraram do ministro Cardozo a retomada das demarcações de terras indígenas.

O dia já avançava para seu final, quando os manifestantes se dirigiram ao Estádio Internacional Mané Garrincha. Como brasileiros, tinham o direito de protestar. Porém, no caminho, a mar-cha foi brutalmente interrompida com cavalaria, gás lacrimogêneo e de efeito moral, balas de borracha e spray de pimenta. Seis indígenas foram feridos. A caminhada pacífica até o estádio mais caro do país havia sido convocada pelo Comitê Popular da Copa – DF.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou nota de repú-dio contra mais essa violência. Repe-tiu-se a repressão cometida em Coroa Vermelha, no ano 2000. n

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3 Maio – 2014

“S

Apoio internacional

enhora Presidente, demais parentes indígenas de todo o mundo,

A organização que repre-sento, chamada Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), reúne organi-zações regionais indígenas e de base dos quatro cantos do Brasil e atua na defesa dos direitos e da vida de mais de 300 povos, falantes de 270 línguas. Apesar de sermos apenas 1 milhão de indígenas que sobreviveram à grande invasão de 1500, ainda hoje, representamos 1/3 da diversidade étnica na América do Sul.

Viemos a este Fórum porque a situação de violação de direitos huma-nos e territoriais dos povos indígenas no Brasil se agravou intensamente nos últimos anos. Contrariamente ao que o governo brasileiro divulga em espaços internacionais, relatando uma suposta harmonia entre os povos indígenas e o Estado nacional, temos certeza que a situação dos povos indígenas no Brasil hoje é a mais grave desde a redemocratização do país, seja na quantidade de indígenas assassinados, seja nas iniciativas de esfacelar nossos direitos, conquistados ao custo do sangue de nossos povos.

Está em curso no Brasil uma série de articulações e iniciativas que buscam reduzir e suprimir os direitos dos povos indígenas, reconhecidos pela Constitui-ção Federal Brasileira e reafirmados por tratados internacionais, textos normativos, dos quais o país é signatário.

No Congresso Nacional, a bancada ruralista, os representantes do agronegócio, querem de todas as formas aprovar mudanças nos direitos constitucionais estabelecidos principalmente nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Somam-se a elas as iniciativas de Propostas de Emendas à Constituição (PECs) 038 e 215, que pretendem transferir para o Senado e o Congresso, hoje majoritariamente composto por representantes do agronegócio, a competência de demarcar as terras indígenas, usurpando uma prerrogativa constitucional do poder Executivo.

O modelo desenvolvimentista brasileiro objetiva disponibilizar os territórios indígenas, e de outros segmentos e comunidades tradicionais, para a explo-ração descontrolada dos bens naturais, a expansão do agronegócio e a implantação de grandes empreendi-mentos, principalmente energéticos (hidrelétricas) e de exploração mineral, e obras de infraestrutura: portos, estradas, linhas de transmissão, etc, que comprometem a sobrevivência e continuidade física e cultural dos povos indígenas.

Para tanto, o governo brasileiro paralisou o pro-cesso constitucional de demarcação de nossos territó-rios, aumentando gravemente os conflitos territoriais em várias regiões do Brasil. Nunca, em nossa história recente, vimos tantas lideranças ameaçadas de morte, comunidades inteiras inclusas em programas de pro-

Brasil é novamente alvo de denúncias na ONU

teção e, no caso do estado em que moro, lideranças assassinadas à luz do dia, e com seus assassinos im-punes. Meu estado concentra a maior quantidade de lideranças indígenas assassinadas na última década devido à luta pela terra. Ontem mesmo, uma lideran-ça de meu povo, Paulino, sofreu um atentando. Dos vários tiros dados em seu carro, felizmente, apenas um acertou sua perna e ele segue vivo. No meu estado, pelo menos 20 lideranças indígenas foram assassinadas na última década devido às suas lutas por territórios; outros 350 assassinatos no mesmo período resultam do processo de confinamento de nossos povos em pequenos territórios.

Devido ao fato de não estarem vivendo em suas terras, o povo Kaiowá e Guarani contabilizou, desde 2000, cerca de 690 suicídios, sendo que somente em 2013 foram 73 casos, o maior índice já registrado em um ano. Destes, 70% eram jovens. Diante da inércia do governo e alimentada pela desinformação e pelo racismo, uma cidade inteira se revoltou contra o povo Tenharim no Amazonas no final de 2013. O povo Tu-pinambá, após vários casos de conflitos e ataques às suas comunidades, tem seu território militarizado, suas lideranças ameaçadas e impedidas de denunciar sua realidade. Trazemos também a situação do povo Kain-gang que, na semana passada, teve sete lideranças de seu povo presas no Rio Grande do Sul como resultado de ações de defesa da comunidade.

Há no Brasil uma virulenta campanha de crimi-nalização, deslegitimação, discriminação e racismo contra os povos indígenas. Informações midiáticas são difundidas visando burlar os fatos reais e pro-jetar inverdades que constituem uma verdadeira inversão de direitos. Na concepção deles, os povos e comunidades indígenas se constituem em invasores, subverteres da ordem e, principalmente, obstáculos ao desenvolvimento nacional.

O poder Executivo, por meio do Ministério da Justiça, tem atuado para convencer o movimento indígena a ne-gociar nossos direitos, propondo graves mudanças no processo de demarcação de nossos territórios estabelecidos pelo Decreto 1775/96. Tudo em favor dos in-teresses do latifúndio, do agronegócio e da reterritorialização do capital sobre as terras tradicionais dos povos indígenas.

Sobre o processo estabelecido pelo governo para regulamentar a conven-ção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, a Apib se retirou das mesas de negociação porque o próprio governo atropelou o encaminhamento publicando a Portaria 303/12, que desrespeita e desqualifica a Convenção e que, em suma, quer viabilizar seus megaprojetos em terras indígenas como, por exemplo, o fez em relação aos casos das hidrelétricas Belo Monte e Tapajós, levadas a cabo sem um processo de consulta.

Para vossa informação, sobre a reunião de alto nível a ser realizada em setembro conhecida como Confe-rência Mundial dos Povos Indígenas, venho afirmar que os povos indígenas no Brasil só souberam desta iniciativa este ano, através de um informe rápido que o governo brasileiro fez em reunião, afirmando que há apenas uma vaga. Não houve por parte do governo brasileiro a realização de um processo de consulta, de construção coletiva e nem o esforço de garantir uma representatividade à altura do Brasil.

Face a esse quadro, a Apib recomenda:1. Que o Fórum Permanente envie urgentemente

observadores ao Brasil para que acompanhem a rea-lidade dos conflitos territoriais, situação ausente nos relatórios do governo;

2. Que o Fórum urja ao Brasil a retomada do proces-so constitucional de demarcação das terras indígenas, cuja paralisação tem ampliado gravemente os conflitos territoriais;

3. Que o Fórum realize um Seminário Internacional em conjunto com o UNODC e UNHRC, sobre a crimina-lização dos povos indígenas e suas organizações;

4. Que o documento final da reunião de alto nível em setembro, conhecida como Conferência Mundial dos Povos Indígenas, caso realizada, seja contundente quanto à implementação de ações efetivas nas distintas áreas de interesse dos povos indígenas, principalmen-te quanto à efetiva devolução e proteção dos nossos territórios tradicionais.

A Apib acredita que espaços como este são funda-mentais para que nossos povos tenham vidas melhores e, por isso, pedimos o apoio dos parentes indígenas de outras regiões do mundo, convidando-os a se somar conosco nesta luta pela vida.

Eis o caminho para a construção de uma socieda-de realmente democrática, multiétnica, pluricultural e justa”. n

Representante dos povos indígenas brasileiros, Lindomar Terena afirmou na ONU que a situação no Brasil hoje é a mais grave desde a redemocratização

do país, seja na quantidade de indígenas assassinados, seja nas iniciativas de destruir os

direitos garantidos

As violações de direitos humanos e territoriais dos povos indígenas no Brasil foram denunciadas na 13ª sessão do Fórum Permanente da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Questões Indígenas, realizada na sede da entidade, em Nova Iorque, no dia 20 de maio. Leia abaixo o discurso de Lindomar Terena, liderança indígena do MS e representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), no evento:

Divulgação ONU

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“Nós sabemos que existem

muitos interesses,

mais fortes do que políticos,

para fazer a mineração em

nossa terra. São interesses

de quem tem muito

dinheiro, de quem quer

ganhar muito mais dinheiro”

4Maio – 2014

V

Mineração

Davi Kopenawa YanomamiPresidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY)

ocês, brancos, dizem que nós, Yanomami, não queremos o desenvolvimento. Falam isso porque não queremos a mi-

neração em nossas terras, mas vocês não estão entendendo o que estamos dizendo. Nós não somos contra o desen-volvimento: nós somos contra apenas o desenvolvimento que vocês, brancos, querem empurrar para cima de nós. O desenvolvimento que vocês falam em nos dar não é o mesmo que conhecemos: vocês falam em devastar a nossa terra-floresta para nos dar dinheiro, falam que somos carentes, mas esse não é o desenvolvimento que nós conhecemos. Para nós, desenvolvimento é ter nossa terra com saúde, permitindo que nossos filhos vivam de forma saudável num lugar cheio de vida.

Nós, Yanomami, entendemos mui-to bem sobre esse assunto e ficamos apenas preocupados com aqueles que dizem representar todo nosso povo e pedem por mineração. São pessoas que ficam pensando como as mineradoras funcionam, pensam que elas não devas-tam a floresta, mas não entendem o que realmente vai ocorrer. A mineração não é como o garimpo, não são pessoas que entram na floresta e degradam apenas algumas regiões. A mineração precisa de estradas para transportar os minérios, precisa de grandes áreas para guardar a produção, precisa de locais para alojar os funcionários, fará grandes buracos na terra, que não deixarão a nossa floresta voltar a se recuperar.

Entendemos como as mineradoras atuam, não pensem que confundimos

Impactos graves e irreversíveis: único legado para os indígenas Assessoria de Comunicação Cimi

omo parte do “Seminário Inter-nacional Carajás 30 anos, resis-tências e mobilizações frente a projetos de desenvolvimento

na Amazônia Oriental”, aconteceu na tarde do dia 6 de maio, um debate sobre o histórico e as experiências dos povos indígenas diante do modelo desenvolvi-mentista. Reunindo mais de mil partici-pantes de doze países, o Seminário foi

realizado em São Luís (MA) entre os dias 5 e 9 de maio.

No seminário, um dos expressivos exemplos do avanço do modelo econômi-co brasileiro fundamentado na exploração de recursos naturais, especificamente a mi-neração, foi o projeto Ferro Carajás S11 D, maior investimento da Vale e da indústria global de minério de ferro que deverá mais do que dobrar a produção da companhia, para uma produção de 230 milhões de toneladas ao ano, a partir de 2016.

Neste contexto, Rosana Diniz, repre-sentante do Conselho Indigenista Mis-sionário (Cimi), afirmou em sua fala que para os povos indígenas e movimentos sociais o pioneiro Projeto Carajás causou severos impactos desde a década de 1970. Segundo ela, as comunidades indígenas perderam, ou tiveram totalmente altera-dos, seu modo de ser e viver. Enquanto, antes, ocupavam territórios em que não careciam de nada, com a chegada dos empreendimentos, ficaram sem casa,

sem autonomia alimentar, sem saúde, sem terem sua dignidade respeitada e até mesmo sem território, em alguns casos. Além disso, ainda convivem com o racismo e ameaças de genocídio. “É preciso explicitar que os povos indígenas não estabelecem relação nenhuma com os empreendimentos. O que acontece é a imposição de um projeto de forma totalmente impositiva e assimétrica, em que só resta aos indígenas resistir”, afirmou Rosana. n

seu trabalho com o dos garimpos. Co-nhecemos muito bem a diferença, mor-remos muito na época do garimpo ilegal em nossa terra, sabemos as diferenças. Sabemos que as mineradoras vão preci-sar de energia para funcionar. De onde virá essa energia para fazer as máquinas funcionarem? Como vocês transportarão os minérios? Quando os minérios mais valiosos terminarem e as mineradoras forem embora, o que acontecerá com os trabalhadores que foram até a terra indígena? Quando transformarem e pro-duzirem minério, quais são os resíduos que podem contaminar nossa terra por muito tempo?

Vocês falam que somos pobres e que nossa vida vai melhorar. Mas o que vocês conhecem da nossa vida para falar o que vai melhorar? Só porque somos diferentes de vocês, que vivemos de forma diferente, que damos valor para coisas diferentes, isso não quer dizer que somos pobres. Nós, Yanomami, temos outras riquezas deixadas pelos nossos antigos que vocês, brancos, não conseguem enxergar: a terra que nos dá vida, a água limpa que tomamos, nossas crianças satisfeitas.

Vocês, brancos, pensam que nós somos pássaros, ou somos cotias, para nos darem apenas o direito a comer os frutos que nascem em nossas terras? Não pensamos as coisas de forma divi-dida, pensamos na nossa terra-floresta como um todo. Se vocês destruírem o que está abaixo do solo, tudo que está acima também sofrerá.

Não estamos preocupados apenas com o que vai acontecer com os povos indígenas. Vocês pensam que os brancos não serão afetados? Vocês não apren-dem com o que está acontecendo no

mundo? Está ficando mais quente, em outros lugares o clima está mudando, os grandes rios estão morrendo, os animais também estão morrendo e todos estão sofrendo. Vocês ainda não aprenderam que esse tipo de desenvolvimento pode matar todos nós?

Não somos apenas nós, povos in-dígenas, que vivemos na nossa terra. Vocês querem perguntar a todos os moradores da floresta o que eles acham sobre a mineração? Então, perguntem aos animais, às plantas, ao trovão, ao vento, aos espíritos xapiri, pois todos eles vivem na floresta. A floresta tam-bém pode se vingar de nós, quando ela é ferida.

Sabemos que as leis do Brasil dizem que o subsolo da terra pode ser explo-rado. Mas queremos garantir nosso direito de escolher o que é melhor para nós, como as próprias leis bra-sileiras garantem. Não pensamos que todos os povos indígenas são contra a mineração: alguns não querem, outros querem. Mas queremos que seja discu-tido primeiro o Estatuto das Sociedades Indígenas, porque as palavras do nosso Estatuto já estão muito velhas. Quere-mos isso para garantir nosso direito de escolher.

Nós sabemos que existem muitos interesses, mais fortes do que políticos, para fazer a mineração em nossa terra.

Vocês pensam que os brancos não serão afetados?

São interesses de quem tem muito dinheiro, de quem quer ganhar muito mais dinheiro. Nós sabemos que não querem nos ajudar, eles dizem apenas que querem nos ajudar, que farão escola, darão assistência à saúde, darão luz, mas sabemos que por trás dessas palavras falsas está o desejo de fazerem crescer seu dinheiro. Eles podem enganar outras pessoas, mas não nos enganam.

Nós, Yanomami, não queremos mineração, não queremos que ela seja feita em nossa terra. Nós já nos manifes-tamos contrários à Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), que o governo criou, mas resolveu ignorar criando, depois, a Comissão Especial para discutir a lei de mineração em terras indígenas. Se vocês, brancos, mostrarem um lugar onde os povos indígenas vivem realmente bem com a mineração, um lugar onde vivem com saúde, respeitando suas culturas, onde os brancos os ajudem de forma correta e não os enganem ao darem dinheiro, onde os indígenas não passem fome e onde não passem sede, se virmos esse lugar, do mesmo tamanho que nossa terra-floresta, nós, Yanomami, podemos voltar a discutir esse assunto.

Vocês estão realmente escutando nossas palavras? Vocês, brancos, real-mente escutaram nossas palavras, as palavras do povo da floresta? n

“Nós somos contra apenas o desenvolvimento que vocês, brancos, querem empurrar para cima de nós... Para nós, desenvolvimento é ter nossa terra com saúde, permitindo que nossos filhos vivam de forma saudável num lugar cheio de vida... Vocês não aprendem com o que está acontecendo no mundo? Vocês ainda não aprenderam que esse tipo de desenvolvimento pode matar todos nós?”

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5 Maio – 2014

Polícia Federal e governo armam emboscada e transformam cinco lideranças Kaingang em presos políticos no Rio Grande do Sul, reafirmando a opção do Estado de criminalizar a luta legítima pela terra tradicional ao invés de obedecer à Constituição e finalizar os processos de demarcações

Criminalização da luta

Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Frente Nacional de Defesa dos

Territórios Quilombolas/RS

o dia 9 de maio, cinco indígenas Kaingang foram presos pela Po-lícia Federal, numa verdadeira emboscada, enquanto partici-

pavam de uma “reunião” promovida por representantes do governo do Rio Gran-de do Sul, no município de Faxinalzinho. Sem elementos concretos, evidências ou provas que ligassem as lideranças indígenas à morte de dois agricultores daquele município, os Kaingang foram presos pela polícia como se fossem criminosos há muito procurados. De caráter totalmente político, esta pri-são se configura como mais um triste episódio de criminalização explícita do movimento indígena por parte do governo federal e do estado do Rio Grande do Sul.

Entre os presos, encontra-se o caci-que da terra indígena Kandóia, Deocli-des de Paula, que vinha reivindicando a continuidade do processo de demar-cação da terra Kaingang e a garantia dos direitos constitucionais dos povos originários junto ao governo federal.

Dois dias antes das prisões, os Kaingang esperavam ansiosos a vinda do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, à terra indígena de Kandóia, onde seria realizada uma reunião com a comunidade indígena para discutir a continuidade dos processos de demar-cação e resoluções acerca do clima de conflitos na região. O ministro mais uma vez, ausentando-se de sua responsabili-dade com os indígenas e com os peque-nos agricultores, não foi ao Rio Grande do Sul. Enviou, porém, seu assessor especial, Marcelo Veiga, a Porto Alegre para “dialogar”, a portas fechadas, com representantes do governo Tarso Genro e da Polícia Federal.

Apenas posteriormente a esta reu-nião, o governo do estado, na figura de Elton Scapini, Secretário de Desenvol-vimento Rural do RS, Ricardo Zamora e Milton Viário, assessores diretos do governador Tarso Genro, junto ao coor-denador regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), Roberto Perin e o prefeito do município de Faxinalzinho, Selso Pelin, convenceram os Kaingang a deslocaram-se para fora da aldeia Kandóia.

Mesmo alertados por agentes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de que a reunião poderia se tratar de uma emboscada, os Kaingang da terra indígena Kandóia confiaram nas au-toridades públicas federais, estaduais e municipais e foram para a reunião, na sede do município de Faxinalzinho, na expectativa de darem, finalmente, encaminhamentos práticos na perspec-

tiva da efetivação de seu direito à terra tradicional. O resultado da reunião, no entanto, traduziu-se em mais uma traição do Estado e de agentes públi-cos aos Kaingang. Os indígenas foram presos minutos após o início da reunião de maneira abrupta por um verdadeiro batalhão de agentes federais.

Presos políticosA prisão dos indígenas, ao que tudo

indica, não teve nada de espontânea e muito menos parece ter sido uma “infeliz coincidência” como defendeu o ministro da Justiça, poucas horas após o fato. Os próprios Kaingang denunciam que a reunião para a qual foram cha-mados tratava-se de uma emboscada forjada dentro do Palácio Piratini pelos governos para incriminar as lideranças

e responder publicamente às acusações de negligência e incitação de conflito que vinham sofrendo de setores ligados ao agronegócio, eternos inimigos dos povos indígenas.

Os cinco indígenas presos foram levados à noite para Porto Alegre e ficaram recolhidos na carceragem da superintendência da Polícia Federal até por volta das 11 horas do dia seguinte (10). Ainda durante a madrugada, ad-vogados peticionaram representação junto à Justiça Federal requerendo que os mesmos fiquem sob custódia da Fu-nai, ou na aldeia de origem, ou mesmo na Funai em Brasília, que, por meio de ofício da sua Presidência, se colocou à disposição para a custódia, obedecendo o que prescreve o Estatuto do Índio (Lei 6001/73). Em resposta à petição, o juiz

Sem provas, PF e governo prendem 5 Kaingang

Após o conflito ocorrido no dia 28 de abril em que agricultores tentaram romper o bloqueio de uma estrada vicinal que passa dentro da terra reivindicada pelo povo Kaingang que, infelizmente, causou a morte de dois agricultores, o povo Kaingang sofreu vários episódios de violação de seus direitos. Intimidações, abordagens truculentas, insultos, ameaças e revistas de seus pertences e veículo foram feitas pelos próprios policiais, inclusive os da Brigada Militar e do Batalhão de Operações Especiais (BOE). Após a mídia exibir reportagem apresentando agricultores com armas de grosso calibre e, afirmar, sem constrangimento que, com apoio da Fetraf-Sul, eles estão se armando para a “resistência” contra a demarcação de terras indígenas, carros da Polícia Federal sem placa dianteira nem traseira foram fotografados rodando as proximidades da aldeia Kandóia. Ainda antes da prisão das lideranças, no dia 6 de maio, uma kofá (idosa Kaingang) de aproximadamente 60 anos, Carmen Marcelino, foi alvo de um atentado a tiros quando caminhava de sua casa em direção a um roçado, na Terra Indígena de Votouro.

Abusos oficiais“Depois das prisões, passamos a ficar totalmente isolados e perseguidos

pela Polícia Federal. Os homens não podem sair da aldeia – nem para trabalhar e nem mesmo para ir ao mercado - porque a polícia está parando e entrando nos ônibus e intimando as pessoas, criando medo. Esse abuso de autoridade por parte da polícia se repercutiu inclusive nas escolas. Na escola da Terra In-dígena de Votouro/Benjamin Constant, os policiais entraram na sala de aula e bateram em um professor indígena na frente das crianças, para tirar informações sobre o ocorrido. Quando os indígenas pediram o mandato para fazer isso, os policiais disseram que não precisava de nada. Caso que se repetiu também na escola, em Faxinalzinho, uma pessoa ofereceu R$ 500 para que uma menina de 13 anos desse informações”.

Pronunciamento da Comunidade Kaingang de Kandóia-Votouro

federal Murilo Brião da Silva propalou despacho determinando manifestação do delegado da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.

Ignorando a determinação judicial em questão, a Polícia Federal transferiu os cinco indígenas, no final da manhã do dia 10 para o presídio de Jacuí, no interior do estado do Rio Grande do Sul, após os mesmos terem recebido visita do advogado da Frente Nacional Quilombola e de missionários do Conselho Indigenis-ta Missionário (Cimi).

No estado de exceção e de omissão do governo Dilma, os indígenas conti-nuam sendo tratados como criminosos e a luta pela terra concebida como um caso de polícia. A prisão dos Kaingang da Terra Indígena Kandóia faz lembrar o recente episódio envolvendo o cacique Babau Tupinambá, preso em Brasília como estratégia governamental para que não denunciasse internacionalmente as violações que os povos indígenas vêm sofrendo no interior do país. A deter-minação do governo Dilma, atendendo interesses ruralistas, de suspender o andamento dos procedimentos admi-nistrativos de reconhecimento e demar-cação das terras indígenas constitui-se num atentado à Constituição Federal e ao Estado de Direito e joga combustível nos conflitos fundiários Brasil afora. No Brasil do governo Dilma, os presos políticos têm cor e traços étnicos bem definidos, são os filhos da terra, os povos originários. n

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6Maio – 2014

O acesso à escola durante

a época de chuva fica

intransitável, colocando a vida e a

segurança das crianças Xokleng em

risco. A escola necessita

de reformas e obras de

saneamento básico

Educação IndígenaA Constituição Federal, as convenções internacionais e a legislação indigenista garantem o direito a uma educação específica, diferenciada e intercultural, baseada nas tradições de cada povo indígena. No entanto, o que se vê Brasil afora são escolas sem as condições mínimas de funcionamento; professores e servidores atuando sem contrato e sem receber por meses seguidos; estradas intransitáveis, que colocam a vida de crianças e jovens em risco; pais e professores assumindo funções de merendeiras, vigias e equipe de limpeza; e a falta de orçamento específico para o transporte, dentre outros problemas. A formação continuada dos professores e o material didático específico ainda não se tornaram realidade em um contexto em que a negligência, a falta de diálogo, o esvaziamento dos conselhos de educação, a não garantia da participação dos povos nos espaços de controle social e a falta de autonomia dos povos na gestão das escolas caracterizam uma atuação em que o Estado (nos níveis federais, estaduais e municipais) não cumpre suas responsabilidades e atribuições para com a educação indígena.

EM PERNAMBUCO

Doze povos ocupam Gerências Regionais

de EducaçãoCarolina Fasolo,

de Brasília

ais de 1.600 indígenas de 12 povos ocuparam na manhã de 22 de abril as Gerências Regionais de Educação

(GRE) dos municípios de Arcoverde, Floresta e Salgueiro, em Pernambuco. Um documento que elenca os problemas e irregularidades na oferta da educação indígena no estado foi protocolado no Ministério Público Federal (MPF) em Serra Talhada.

“O Estado tem se omitido sistematica-mente na oferta da educação escolar indígena e tem nos forçado a estar insistentemente ocupando as Gerências Regionais, nos obri-gando a fechar nossas escolas e a comprome-ter a aprendizagem de nossos estudantes”, diz trecho do documento.

“Enviamos para a Secretaria de Educação a demanda pela contratação dos novos pro-fissionais, mas até agora não autorizaram. Em todo o estado são 30 professores e 100 motoristas sem contrato e sem receber nada desde o começo do ano letivo. Estavam traba-lhando por amor mesmo, para não deixar as crianças sem aula” conta Francisca Kambiwá.

Na maioria das cerca de 200 escolas indígenas do estado não há merendeiras ou auxiliares de serviços gerais, obrigando pais e professores a se organizarem para preparar a merenda e fazer a limpeza.

Além de questões estruturais, como as deficiências e atrasos no pagamento do transporte escolar, o ensino indígena em Per-nambuco ainda não disponibiliza a formação continuada dos professores e não tem mate-rial didático específico e diferenciado para os diferentes povos, conforme determina a legislação.

O Ministério Público Estadual chegou a celebrar um Termo de Ajustamento de Con-duta (TAC) no ano de 2008 com o governo do estado, porém, cinco anos depois, nenhuma das cláusulas foi cumprida. n

EM SANTA CATARINA E NO RIO GRANDE DO SUL

Professores denunciam precariedade Cimi Regional Sul

rofessores indígenas dos povos Kaingang, Guarani Mbya e Xokleng, participan-

tes do “ Encontro dos Educadores Indígenas”, realizado nos dias 3 e 4 de maio em Chapecó (SC), repre-sentando 14 terras indígenas e mais de 20 aldeias dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, de-nunciaram: a situação das escolas e da educação escolar indígena; a falta

de autonomia dos povos indígenas com a gestão de suas escolas; e a distância das coordenadorias dos estados com a educação escolar.

Diante do não cumprimento da legislação, os professores deman-dam: formação continuada para professores indígenas; participação indígena, a partir de concursos e outros mecanismos, na gestão das escolas, inclusive em cargos de di-reção e coordenações; realização de concurso público para efetivação de

professores indígenas, com participa-ção dos povos indígenas na elabora-ção do mesmo; aprofundamento da discussão junto ao MEC a respeito do “Programa Nacional dos Territó-rios Étnico-Educacionais”; criação de um sistema educacional próprio para os povos indígenas; e criação de espaços internos dentro das coordenadorias e gerências onde os indígenas possam discutir e deliberar de forma direta suas políticas e ações para a educação. n

EM SANTA CATARINA

Comunidade Xokleng fecha estrada por segurançaCimi Regional Sul

o amanhecer de 6 de maio a estrada que corta a Terra Indígena (TI) Laklãnõ Xokleng

foi bloqueada por pais e alunos da Escola de Educação Básica Laklãnõ. Eles cobram segurança e garantia de vida às crianças que frequentam a escola. O clima é de revolta com o descaso da Secretaria de Estado da Educação (SED) do governo de Santa Catarina que abandonou a escola e a comunidade indígena. Os prédios (escola, ginásio de esportes e casa da cultura) estão caindo. As estradas que dão acesso à escola estão intran-sitáveis e colocam em risco a vida

das mais de 530 crianças e jovens. A comunidade divulgou uma

nota na qual externa os problemas: “A escola indígena atende alunos de sete aldeias: Toldo, Coqueiro, Figueira, Palmeira, Barragem, Pa-vão e Sede. [...] Exigimos reforma da escola Laklãnõ, do ginásio da escola, da casa de cultura e obras de saneamento básico. As crianças correm risco de vida ao irem para as escolas, principalmente quando começa a época de chuvas. A Ge-rência Regional de Ensino não dá a assistência necessária”.

Basta poucos dias de chuva para que a escola fique sem acesso. Uma barragem de contenção de cheias das cidades de Ibirama, Indaial e Blume-

nau foi construída no final da década de 1970, durante o governo militar. Ao acumular alguns metros de água, ela deixa ao menos quatro das sete aldeias sem acesso à escola. Inúme-ras manifestações foram realizadas pedindo a construção de ponte, mas até o momento nenhuma providência foi tomada. A cada enchente ocorrem desmoronamentos por conta da flu-tuação da água represada e uma aldeia está condenada pela Defesa Civil.

Além de não atenderem a deman-da dos 12 anos do ensino (ensino fundamental e ensino médio), os prédios estão deteriorados. Se nos períodos de chuvas as crianças ficam sem aula, em períodos de estiagem ficam sem água. n

Do Norteao Sul,um caos

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7 Maio – 2014

Povo Pataxó reivindica transporte escolar de qualidade e o fim das indicações políticas nas licitações de empresas que fazem este serviço

NO PARÁ

Munduruku ocupam prefeitura por retorno de professores Movimento Xingu Vivo Para Sempre

erca de 200 indígenas do povo Munduruku ocuparam no dia 12 de maio a prefeitura de Jacarea-

canga, reivindicando o retorno às aulas de 70 professores Munduruku, que este ano não tiveram o contrato renovado com o município. Os indígenas conside-ram que as demissões são políticas uma vez que grande parte dos professores tem se manifestado contra a construção de hidrelétricas no Rio Tapajós.

As manifestações acontecem desde o dia 5 quando os indígenas ocuparam

a Câmara Municipal e a Secretaria Mu-nicipal de Educação Cultura e Desporto (SEMECD), para protestar contra a demis-são arbitrária dos educadores indígenas, transmitida por rádio em fevereiro deste ano. A situação foi denunciada ao Minis-tério Público Federal, Ministério Público do Trabalho e à Fundação Nacional do Índio (Funai).

O Secretário da SEMECD, Pedro Lúcio da Luz, afirma que a decisão da demissão se ampara na Lei de Diretrizes de Base (LDB) de 1996 e na Lei Municipal 328/2010, criada em 15 de dezembro de 2010: “A LDB determinou que só pode-

ria trabalhar na educação quem tivesse graduação superior. Seguimos a LDB. Demos um prazo de quatro anos para os professores se formarem, mas isso não aconteceu”.

O advogado indigenista Sérgio Martins aponta duas irregularidades na decisão da SEMECD. A lei municipal que garante os contratos temporários com professores indígenas sem nível superior iria terminar somente no final deste ano. Outra questão apontada pelo advogado é que o artigo da LDB no qual a prefeitura se ampara é direcionado a professores não-indígenas. n

Munduruku são atacados com rojões Renato Santana,

de Brasília (DF)

erca de 500 garimpeiros, comerciantes e membros do poder público de Jacarea-

canga (PA) atacaram 20 Munduruku na manhã do dia 13 de maio, durante ação contra a presença dos indígenas no município. Dois Munduruku acabaram feridos nas pernas, depois de atingidos por rojões lançados pelos manifestantes anti-indígenas.

“Não podemos nem levar os dois feridos ao hospital porque tem ódio contra a gente por todos os lados. Ma-nifestantes diziam que índios não têm direitos aqui em Jacareacanga”, afirmou uma indígena Munduruku presente du-rante o ataque e não identificada por motivos de segurança. A Polícia Militar presenciou o ataque, porém ficou na retaguarda dos manifestantes que ata-cavam os indígenas e nada fez. A Polícia Federal foi acionada.

No final da tarde do dia 12, após agendar uma reunião com o poder pú-blico sobre a demissão de 70 professores indígenas, cerca de 200 Munduruku de-socuparam a prefeitura de Jacareacanga.

Ao se prepararem para retornar às aldeias, dispersas pelo Rio Tapajós e por

seus afluentes, um grupo de 20 Mun-duruku, que tomava café na frente da casa de uma indígena, foi surpreendido pelo ataque.

Crianças e mulheres não foram poupadas. “Chegaram atacando mesmo, xingando a gente. Só foi o tempo de deitar no chão e correr para dentro da casa. Eu estava com meu bebê no colo e tive que me jogar para não ser acertada pela bomba (rojão)”, afirma a indígena Munduruku.

Articuladores da violência Entre os manifestantes anti-indí-

genas, os Munduruku identificaram o secretário de Assuntos Indígenas de Jacareacanga, Ivânio Alencar, como o principal insuflador e líder da horda. Conforme indígenas ouvidos, Alencar

gritava que os Munduruku queriam tirar o direito dos mo-radores do município.

“Desde que começamos a manifestação pela volta dos professores ele (Ivânio) está contra a gente. Só fala mal dos Munduruku, coloca o povo da cidade contra a gente. Nossa reivindicação não era contra a cidade ou as pessoas que moram nela. Nunca quisemos isso”, declara a indígena.

Integrantes da extinta Associação Pusuru, fechada pelo próprio povo Munduruku durante assembleia no final do ano passado, estavam entre os ma-nifestantes que atacaram os indígenas. Conforme lideranças, estes indígenas estão atrelados ao poder público de Jacareacanga e comumente defendem propostas que não atendem aos anseios do povo Munduruku, caso de grandes empreendimentos no Tapajós.

O vice-prefeito Roberto Crispim também estava na manifestação, que contou ainda com garimpeiros expulsos da Terra Indígena Munduruku pelos próprios indígenas durante ação de fiscalização e proteção do território, em janeiro deste ano. Os garimpeiros, desde então, passaram a ameaçar os indígenas e a participar de ações anti-indígenas. n

Povo exige investigação; MPF quer recontratacãoMovimento Munduruku Ipereg Ayu, principal organização de repre-

sentação e resistência dos indígenas Munduruku da bacia do Tapajós, publicou no dia 15 de maio um documento em que conclama as autoridades para investigar os ataques contra os 20 Munduruku realizados no dia 13. Nele, também divulgam uma decisão tomada tem-pos atrás, na assembleia geral Munduruku, de extinguir a Associação Pusuru, antiga representação dos indígenas, em função do que consideram uma série de desvios de conduta, citando inclusive a polêmica tentativa de acordo

com a multinacional Celestial Green para venda de créditos de Carbono em 2012.

Em reunião com indígenas e autoridades do município de Jacareacanga no dia 21, o pro-curador do Ministério Público Federal em Santarém, Luis de Camões Lima Boaventura, afir-mou que a prefeitura da cidade

será instada a recontratar os 70 professores Munduruku demitidos em fevereiro com “argumentos inconsistentes”. Além das irregularidades na demissão, Camões atenta também para a sobrecarga em que os poucos professores que não foram demitidos se encontram. n

NA BAHIA

Povo Pataxó exige fim de indicações

políticas nos cargos e licitações

Equipe Extremo Sul da BahiaCimi Regional Leste/

o dia 21 de maio, cerca de 200 Pataxó ocuparam a Diretoria Regional de Educação, Cultura e

Cidadania (Direc) 9, no município de Tei-xeira de Freitas, extremo sul da Bahia. O movimento pede transporte escolar de qualidade e o fim das indicações políticas nas licitações de empresas que fazem este serviço. Por conta disso, os Pataxó exigem a exoneração do atual coordenador do Direc 9 e que o cargo seja exercido com o compromisso de atender a demanda das comunidades, não de políticos e seus partidos.

Conforme os indígenas, o coordena-dor do Direc-9 ocupa o posto subme-tido a interesses partidários, inclusive em sua preferência por determinadas empresas no transporte escolar. Os indígenas afirmam que o deputado fe-deral Valmir Assunção (PT/BA) influencia nestas indicações políticas do Direc-9. O deputado, inclusive, faz parte da recém criada Frente Parlamentar em Defesa das Populações Atingidas por Áreas Protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas), de iniciativa da bancada ruralista, inimiga história do Movimento dos Sem Terra (MST), do qual Assunção é destacada liderança.

Os indígenas enviarão ao Ministério Público Federal (MPF) um dossiê com as denúncias e o pedido de apuração delas. Além disso, afirmam que os veículos escolares não correspondem ao que foi prometido. São carros com carroceria, que oferecem risco às crianças de caírem. Para piorar, quando chegam à escola, depois de expostos às consequências da insegurança, os alunos não encontram livros, cadernos e merenda. n

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Maurício Torres

Maurício Torres

Munduruku protestam contra a demissão arbitrária de 70 professores indígenas. A maioria deles é contra a construção da usina hidrelétrica no Rio Tapajós, o que indica que a demissão tem cunho político. Após o protesto, foram atacados em Jacareacanga

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8Maio – 2014

Após a ocupação

do plenário da Câmara

Federal, em abril de

2013, e a Mobilização

Nacional realizada em

outubro, os indígenas

voltam a Brasília para

defender seus direitos

constitucionais

Comitê de Comunicação da Mobilização Nacional Indígena

m mais uma clara demons-tração de a quais interesses serve, o governo federal se portou de modo lamentável durante a Mobilização Nacio-nal Indígena que aconteceu em

Brasília entre os dias 26 e 29 de maio. Tendo como objetivo principal impedir o retrocesso na garantia dos direitos indígenas, a mobilização reuniu 600 lideranças representando mais de 100 povos de todo o país. Ao invés de atuar no sentido de cumprir suas obrigações constitucionais - por exemplo, demar-cando as terras tradicionais -, através de seu braço repressor armado, o governo utilizou bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, gás pimenta, balas de borracha e cavalaria, além de um exage-rado contingente policial, para reprimir uma manifestação pacífica que denuncia-va as violações de direitos cometidas em nome da realização da Copa do Mundo.

Como se essa ação fisicamente tru-culenta não fosse suficiente, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em reunião com uma comissão de lide-ranças escancarou que vai continuar utilizando as mesas de diálogos para “ajustar direitos” constitucionais com os interesses do agronegócio. Ou seja, que as demarcações vão continuar paralisadas. O golpe, desta vez imoral, foi dado apenas uma semana após a pre-sidente Dilma Rousseff e ministros da República participarem de jantares com os mais significativos representantes do latifúndio brasileiro.

Na contramão do governo, os indí-genas deram lição de cidadania. Explici-taram para o Brasil e o mundo que não abrem mão de seus direitos, duramente conquistados, e que estão mobilizados para impedir a aprovação da série de projetos que estão em tramitação no parlamento contra os povos indígenas. Este é o caso da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que pretende transferir aos congressistas a atribuição de aprovar a demarcação das Terras Indí-genas (TIs); do Projeto de Lei (PLP) 227, que visa abrir essas áreas à exploração econômica; do PL 1610, que regulamenta a mineração nas TIs; da proposta de alte-ração do procedimento de demarcação das Terras Indígenas (TIs); e da Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), que objetiva generalizar a todas as TIs as condicionantes definidas para a TI Raposa Serra do Sol (RR). Na prática,

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Mobilização Nacional

Indígenas protocolam queixa-crime contra parlamentares no STF

Defesa de Direitos Indígenas×

todas essas propostas do Executivo e do Legislativo pretendem paralisar definiti-vamente os processos de demarcação, já suspensos pelo governo federal. Na defesa da dignidade dos povos, ainda protocolaram queixa crime contra dois parlamentares que foram preconceituo-sos com os indígenas.

Promovida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com apoio do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Instituto Socioambiental (ISA) e Greenpeace, entre outras organizações, a mobilização demanda a tramitação de projetos importantes como o Estatuto dos Povos Indígenas e o Conselho Nacio-

nal de Política Indigenista (CNPI), ambos paralisados há anos nos corredores do Congresso, sem qualquer avanço.

Mais do que um ataque aos seus direitos, os povos indígenas têm o enten-dimento de que está em curso no Brasil um amplo atentado contra a própria de-mocracia. “Hoje tentam usurpar o direito dos povos indígenas e da natureza. Isso vai repercutir para todo mundo. Depois começam a retirar os direitos de outros grupos e a sociedade não discute nada, não sabe de nada”, destacou Lindomar Terena, da Apib, no Fórum Permanente da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Questões Indígenas, realizado em maio em Nova Iorque.

Após se reunirem em assem-bleia durante todo o dia 26 de maio para denunciar as violências e violações de di-

reitos permanentes sofridas em cada uma das regiões, as delegações de indígenas vindas de todo o Brasil acompanharam, no final da manhã do dia 27, uma comissão de indígenas protocolar no Supremo Tribunal Fede-ral (STF) uma queixa-crime contra os deputados federais Luis Carlos Heinze (PP/RS) e Alceu Moreira (PMDB/RS).

A comissão – composta pela direção da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por

lideranças indígenas de cada uma das regiões do país – entregou ao Supremo um documento em que pedem que os ministros apurem as declarações racistas e homofóbicas desses parlamentares contra povos indígenas, quilombolas e movimento LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). O documento solicita ainda a apuração dos crimes de incitação ao ódio e à violência contra as comunidades que reivindicam seus territórios tradicionais.

Os ataques foram desferidos por Heinze, presidente da Frente Agrope-cuária da Câmara Federal, e Moreira durante audiência pública da Comissão

de Agricultura, em novembro do ano passado, no município de Vicente Dutra (RS). Durante a audiência, financiada com dinheiro público, Heinze incentivou agricultores a formar milícias e Moreira pediu que eles impedissem as retomadas indígenas com violência. As polêmicas declarações dos parlamentares foram gravadas em vídeo e tiveram ampla repercussão nas redes sociais no início deste ano.

Segundo Cretã Kaingang, o confli-to fundiário em Faxinalzinho (RS) foi acirrado por essas declarações. “Nunca quisemos tirar o direito de ninguém. Apenas queremos o pouco que restou

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9 Maio – 2014

“Ao invés do governo obedecer a Constituição e concluir as demarcações de todas as terras indígenas, prioriza e investe bilhões de reais em um evento que dura somente um mês e ainda prejudica o povo. Para quem o governo brasileiro trabalha, afinal?”, questiona Lindomar Terena

Indígenas protocolam queixa-crime contra parlamentares no STF

Ataque do Governo Ruralista×

ais de 500 indígenas, cerca de 400 trabalhadores sem teto e outras 1.500 pessoas engrossaram o pro-testo, realizado no dia 27 de maio

em Brasília, contra o modelo excludente de sociedade que tem na Copa do Mundo um de seus maiores símbolos. Apesar do ato ser pacífico e contar com a par-ticipação de muitas crianças e idosos, a Polícia Militar utilizou a cavalaria, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, gás pimenta e balas de borracha, além de um exagerado contingente policial. Como resultado da truculenta ação, seis indígenas, um padre, o fotógrafo de uma agência internacional e dois integrantes do Comitê Popular da Copa – DF ficaram feridos.

À tarde, após protocolarem uma quei-xa-crime contra os parlamentares Luis Carlos Heinze e Alceu Moreira por declara-ções racistas e incitamento à violência, os indígenas foram em marcha para o Palácio do Planalto e seguiram em direção ao Congresso Nacional. Ali, subiram a rampa e ocuparam a plataforma que envolve os plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, onde fizeram rituais e danças, lembrando atos realizados em 1988, quando os direitos indígenas foram garantidos na Constituição Federal. A dife-

rença é que desta vez a manifestação tinha como objetivo evitar a retirada destes mesmos direitos. Na frente do Ministério da Justiça, os indígenas cobraram do mi-nistro José Eduardo Cardozo a retomada das demarcações das terras tradicionais e a garantia dos direitos indígenas.

Por volta das 16h30, juntamente com integrantes do Movimento dos Trabalha-dores Sem Teto (MTST), eles se uniram ao ato de Julgamento Popular das Violações e Crimes da Copa, cometidos pela Fifa, pelos governos Federal e do Distrito Federal e pelos patrocinadores e empreiteiros contra a popu-lação brasileira, convocado pelo Comitê Popular da Copa – DF, que aconteceu na Rodoviária do Plano Piloto. O objetivo do Julgamento Popular foi explicitar os diversos crimes e violações cometidos contra a população para possibilitar a realização de uma Copa do Mundo que não traz benefícios para a população.

Nesse sentido, a proposta do ato foi demandar uma inversão do atual projeto de sociedade, priorizando as obras e ações que beneficiem a maior parte da população. Dentre as demandas consta-vam: moradia digna para todas as pessoas removidas; arquivamento imediato dos projetos de lei que tramitam no Congres-so, e das normas infra-legais emitidas

pelos governos, que tipificam o crime de terrorismo e avançam contra o direito à manifestação, criminalizando movimen-tos sociais e fortalecendo a violência contra a população pobre e a juventude do país; e desmilitarização da polícia e fim da repressão aos movimentos sociais.

A partir da perspectiva de que esta é uma causa de todos os brasileiros, os indígenas carregavam faixas com as principais demandas trazidas pelos povos para a Mobilização Nacional: a retomada imediata das demarcações de terras indígenas; a revogação de todas as portarias ou decretos que restrinjam direitos indígenas; o fim da criminalização de comunidades e lideranças indígenas e a punição dos executores de violência contra estes povos; e a efetivação de políticas públicas específicas, efetivas e de qualidade, especialmente nas áreas da saúde e educação.

“Ao invés do governo obedecer a Cons-tituição Federal e concluir as demarcações de todas as terras indígenas, prioriza e investe bilhões de reais em um evento que dura somente um mês e ainda prejudica o povo. Para quem o governo brasileiro tra-balha, afinal?”, questiona Lindomar Terena, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Repressão violenta a protesto contra as violações e os gastos da Copa

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de nossas terras. Os deputados estão querendo jogar pequenos agricultores e a sociedade não-índia contra nós”, afirma a liderança.

Durante o trajeto das delegações indígenas de Luziânia (GO) para Bra-sília (DF), a Polícia Rodoviária Federal parou os ônibus na BR-040, na altura do município de Santa Maria, para contar a quantidade de indígenas em cada ônibus. Segundo as lideranças, o policiamento, ostensivamente arma-do, afirmou ter recebido ordens para informar quantas pessoas estavam se deslocando para a Esplanada dos Ministérios. (CCMBI)

Egon Heck

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10Maio – 2014

A Apib repudiou a violenta e

despropositada ação e exigiu

a apuração imediata

dos abusos cometidos

pela polícia, avaliados pela

organização “como parte

da estratégia do Estado

brasileiro de criminalização

dos movimentos sociais e dos

nossos povos”

Mobilização Nacional

Ministro da Justiça insiste em não cumprir a Constituiçãoepois de deixar 600 lideranças esperando por 12 horas sob um sol escaldante, o ministro da Justiça, José Eduardo Car-

dozo, resolveu receber uma comissão de 18 representantes indígenas. Pouco antes, cinco índios acorrentaram-se ao mastro da bandeira do Brasil, em frente ao Ministério da Justiça, e arriaram o pavilhão nacional a meio mastro para simbolizar o assassinato de várias li-deranças indígenas nos últimos anos e o desprezo do governo pelos direitos indígenas. Eles também hastearam uma bandeira preta no mastro ao lado, que simbolizava a necessidade de Cardozo assinar as portarias declaratórias das terras indígenas.

“Estamos aqui desde as 8 da manhã. O que é receber 20 lideranças, conside-rando os 600 que estão aqui? Não tem espaço, não tem cadeira? Não importa, a gente senta no chão! O que a gente quer é a garantia dos nossos territórios. E aqui estão os parentes, com esse ato, acorrentados, mostrando que sem a nossa terra é assim que nós ficamos.

Acorrentados. Presos. E viemos aqui simplesmente exigir a efetivação dos nossos direitos”, protestou Sonia Gua-jajara, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Na reunião, a comitiva entregou uma carta com suas reivindicações ao ministro. Nela, os indígenas exigem que Cardozo dê sequência às demarcações de terras indígenas em todo país e ar-quive de vez sua proposta de alterar o procedimento de demarcação – o qual, na prática, pode paralisar definitivamen-te as demarcações. São 37 os processos de demarcação nas mãos de Cardozo que, sem pendências ou disputas, aguar-dam apenas a assinatura das portarias declaratórias que reconhecem a posse permanente das comunidades indígenas sobre seus territórios.

Interesses eleitoreirosSegundo as lideranças, esta foi a

pior reunião em cerca de 20 anos do movimento indígena. Insensível às demandas, o ministro sinalizou que vai manter a suspensão das demarcações

de terras indígenas em todo o país e informou que vai insistir em modificar os procedimentos demarcatórios. Afir-mou ainda que seguirá implantando “mesas de diálogo” locais - envolvendo governos, produtores rurais e indíge-nas - para discutir as demarcações sob a justificativa de evitar a judicialização desses processos.

“O que o governo quer é fazer acordos políticos para ganhar votos. O travamento das demarcações é uma ati-vidade eleitoreira. Certamente os povos indígenas do Brasil vão dar uma resposta a este governo”, declarou Wilton Tuxá, da Apib.

De acordo com uma liderança indí-gena que participou da reunião, Cardozo disse que é necessário negociar com os produtores rurais mesmo nos processos onde não há contestação judicial porque, quando a demarcação avança, novos con-flitos aparecem. “A reunião foi péssima porque o ministro não demonstrou que tem interesse em resolver nosso proble-ma. Ele não quer se prejudicar com os ruralistas”, avaliou Sônia. (CCMBI)

PEC 215 não irá à votação sem consenso, diz presidente da Câmara

presidente da Câmara Federal, Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), sintetizou em uma palavra seu compromisso com os povos indígenas sobre a Proposta de

Emenda à Constituição (PEC) 215: con-senso. “Posso afirmar que enquanto eu estiver presidente só terá chance de ir à votação se tiver o consenso dessa casa. Precisa ser unanimidade”, afirmou Alves durante reunião no dia 28 de maio com a comissão formada por 20 lideranças da Mobilização Nacional Indígena.

Em trâmite numa comissão especial instalada pelo próprio Alves, a proposta forçada pela bancada ruralista visa trans-ferir do Executivo para o Legislativo a demarcação de terras indígenas. “Os ru-ralistas da comissão têm feito audiências pelo país, mas não para dialogar. Querem

apenas legitimar uma decisão que eles já têm”, explicou ao presidente da Câmara Sônia Guajajara, dirigente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Sônia frisou que durante o segundo semestre do ano passado uma comissão paritária de indígenas e parlamentares levou a Alves um relatório final apon-tando a inconstitucionalidade da PEC 215, depois de debates e audiências públicas com os juristas Dalmo Dallari e Carlos Frederico Marés. “Este relatório não foi considerado, mas as teses dos ruralistas sim. Seguiram adiante”, com-pletou Sônia.

O presidente da Câmara ressaltou que “por mais forte numericamente que possa ser a bancada (ruralista), eu digo a vocês que, com a responsabilidade que eu tenho, não posso ser instrumento de

uma proposta que fere as nações indíge-nas”. Alves ainda tratou de outras medi-das legislativas que visam flexibilizar ou desconstruir os direitos territoriais dos povos indígenas, e se surpreendeu ao dar conta de que sobre algumas delas ele ao menos demonstrou não ter co-nhecimento.

“Não passarão”No Senado, a comissão se reuniu com

o presidente da casa, Renan Calheiros (PMDB/AL), para tratar da PEC 038, irmã siamesa da 215, mas que deixa a Câma-ra Federal de fora da decisão sobre as demarcações. Um pouco mais enfático que seu colega de partido e cadeira, Calheiros refutou o avanço destas PECs e garantiu que em sua presidência o des-tino delas será a gaveta: “Não passarão”.

Violência despropositada

Por volta das 17h40, cerca de 2.500 pessoas marchavam tranquilamente em direção ao Estádio Nacional Mané Garrincha, na Esplanada dos Ministé-rios. Na linha de frente da marcha, os indígenas cantavam, tocavam maracá e dançavam. Eles carregavam uma peque-na taça que simbolizava as violações de direitos que o Brasil tem cometido em nome da Copa quando foram sur-preendidos pela cavalaria da polícia e pelas bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, spray de pimenta e tiros de bala de borracha.

A primeira violência ocorreu de modo bastante sutil. Após fazer um acordo com integrantes do Comitê Popular e assegurar que não haveria barreira policial e, portanto, que os manifestantes poderiam chegar ao estacionamento do estádio, o Tenente Coronel Moreno, da Polícia Militar, descumpriu os termos com os quais havia se comprometido e quando a marcha ainda estava a cerca de 700 metros do estádio ela começou a ser atacada pela polícia.

Seis lideranças indígenas foram atingidas por balas de borracha, entre elas uma mulher do povo Pankararu, do Nordeste. Um fotógrafo da agência Reuters sofreu ferimento na perna por resquícios da explosão de uma bomba de efeito moral e precisou ser levado para o hospital. Um padre que acom-panhava o povo Xerente foi atingido na mão por uma bala de borracha. Um integrante do Comitê Popular foi ferido na região do olho também por uma bala de borracha e, por apenas meio centímetro, escapou de ficar cego. Três manifestantes não indígenas foram pre-sos. Além de haver diversas crianças e idosos, dezenas de indígenas presentes na manifestação não falam português e se assustaram bastante com a ação abusiva dos policiais.

Apesar do modo como a violência foi desencadeada e dos dez manifestan-tes feridos, a mídia brasileira preferiu dar repercussão para o fato de que um policial havia sido flechado na perna. A imprensa internacional, no entanto, além de contextualizar os motivos do protesto que uniu os indígenas e os sem teto aos manifestantes, destacou em sua cobertura que a violência partiu da polícia e foi bastante exagerada.

A Apib repudiou a violenta e des-propositada ação e exigiu a apuração imediata dos abusos cometidos pela polícia, avaliados pela organização “como parte da estratégia do Estado brasileiro de criminalização dos mo-vimentos sociais e dos nossos povos”. (CCMBI)

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11 Maio – 2014

Otoniel, liderança Guarani-Kaiowá, acredita que o motivo de tantos jovens cometerem suicídio é a falta de perspectiva. “Não têm futuro, não têm respeito, não têm trabalho e nem terra pra plantar e viver. Escolhem morrer porque, na verdade, já estão mortos por dentro”

Extermínio silencioso

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Carolina Fasolo,de Brasília (DF)

o dia 3 de abril, quando ama-nheceu em uma aldeia Guara-ni-Kaiowá, localizada no sul do estado de Mato Grosso do Sul,

uma mãe de três filhos abriu a porta de casa e paralisou ao ver o corpo frágil de sua menina mais nova suspenso pelo lençol, amarrado à árvore por um nó que parecia firme. No dia anterior, a garota havia completado 13 anos.

“A mãe disse que ela chegou da es-cola muito triste e reclamando de dores na cabeça”, conta Otoniel, liderança Guarani-Kaiowá. “Depois que todos foram dormir ela amarrou o lençol na árvore e se matou. Um primo dela de 12 anos tinha se enforcado uma semana antes. E uns dias depois que ela morreu outro adolescente, de 16 anos, também se suicidou na mesma aldeia. Fui até lá para saber o que estava acontecendo”.

Os três enforcamentos em menos de duas semanas fazem parte de uma esta-tística que no ano de 2013 ganhou con-tornos históricos. Foram contabilizados 73 casos de suicídios entre os indígenas de Mato Grosso do Sul. De acordo com registros do Conselho Indigenista Mis-sionário (Cimi), é o maior número em 28 anos. Os dados, apurados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei/MS), constam no Relatório de Violência Con-tra os Povos Indígenas no Brasil, a ser divulgado pelo Cimi em julho.

Dos 73 indígenas mortos, 72 eram do povo Guarani-Kaiowá, a maioria com idade entre 15 e 30 anos. Otoniel acredita que o motivo de tantos jovens cometerem suicídio é a falta de perspec-tiva. “Não têm futuro, não têm respeito, não têm trabalho e nem terra pra plan-

tar e viver. Escolhem morrer porque, na verdade, já estão mortos por dentro”.

O procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, do Ministé-rio Público Federal (MPF) em Dourados (MS), explica que as oportunidades de trabalho para os indígenas são pratica-mente restritas a atividades subalternas degradantes, como o corte da cana-de--açúcar. “Temos escolas indígenas, mas o modelo educacional não foi construído para a comunidade. Existe apenas uma ‘casca indígena’, que não contempla a inserção do jovem no processo produ-tivo”, completa.

“A discriminação e o ódio étnico, condutas incentivadas inclusive pelos meios de comunicação, acentuam so-bremaneira o problema dos suicídios. Os indígenas são pintados como entraves, empecilhos, obstáculos ao desenvol-vimento. É como se a mídia passasse a mensagem ‘Se você quer ficar bem, tire o índio do seu caminho’, ressalta o procurador.

13 anos, 684 suicídios No período de 1986 a 1997, foram

registradas 244 mortes por suicídio entre os Guarani-Kaiowá de MS, número que praticamente triplicou na última década. De 2000 a 2013 foram 684 casos. “As

atuais condições de vida desses indíge-nas, que desembocam em estatísticas assombrosas de violência, têm origem num processo histórico”, explica Delfino. “O que aconteceu foi uma transferência brutal, por parte da União, de territórios indígenas para não índios”.

A transferência se deu, principalmen-te, pelo então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) que demarcou, entre 1915 e 1928, oito pequenas reservas no sul do estado para onde diferentes povos indígenas foram obrigados a migrar. “As reservas demarcadas serviam como um depósito gigantesco de mão de obra a ser utilizada conforme os interesses econômicos. Todo o processo de confi-namento indígena teve como finalidade sua utilização como mão de obra para os projetos agrícolas implantados no país, desde a cultura da erva-mate até recentemente, com a cana-de-açúcar”, completa o procurador.

O confinamento compulsório, com a sobreposição de aldeias distintas e de dinâmicas político-religiosas peculiares, acirrou o conflito dentro das reservas, alterando profundamente as formas de organização social, econômica e cultural dos indígenas, o que resultou em índices alarmantes de superpopulação, miséria e violência nestes espaços.

Definida pela vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, como “a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo”, a Reserva Indígena de Dourados é um dos exemplos mais contundentes desse processo histórico. Encravada no perí-metro urbano do município, na reserva vivem hoje mais de 13 mil indígenas em 3,6 hectares de terra. É a maior densidade populacional entre todas as comunidades tradicionais do país, e onde aconteceram 18 dos 73 casos de suicídio no estado em 2013.

“Hoje enfrentamos uma carência extremamente aguda de políticas pú-blicas. Desde 2009 existem discussões para implantar um Centro de Atenção Psicossocial Indígena em Durados mas, por enquanto, não foi adotada nenhuma medida concreta para sua construção”, diz Delfino. “A impressão que se tem é que as pessoas perderam o controle sobre o monstro que criaram, que são essas reservas. Então, fica nesse jogo de empurra-empurra, sempre com soluções paliativas. Precisamos reco-nhecer e reparar os erros cometidos para que existam soluções efetivas. O primeiro passo é demarcar os territórios usurpados dos indígenas”, conclui o procurador. n

Índice de suicídios de indígenas no MS é o maior em 28 anos

No de suicídios entre os Guarani-Kaiowá de MS

Período No de suicídios

1986 a 1997 244

2000 a 2012 611

apenas em 2013 72** deste total de 72 suicídios, 18 aconteceram na

Reserva Indígena de Dourados

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12Maio – 2014

“Uma vida digna para

o nosso povo está no espaço territorial

em que se encontram

nossos antepassados,

e que Tupã consagrou ao

povo que ali habita. Sem

esse espaço sagrado não

há a presença dos espíritos,

e sem os espíritos

não há tranquilidade

para aquele povo que

foi retirado da sua terra

sagrada e concedida por

Tupã. Assim, cresce a

violência nas reservas

São 3 textos sobre assembleias realizadas, dos povos Guarani kaiowá, Terena e Xukuru. O abre é o texto da Aty Guasu, que tem uma foto. No finalzinho dele, há uma informação sobre uma ordem de despejo, com outra foto.

A outra foto é da assembleia do Xukuru, ok?

PaísAfora

Apyka’i sofre nova ameaça de despejoCerca de dez famí-

lias Guarani-Kaiowá do Tekohá Apyka’i, que vi-vem em um pequeno pedaço de sua terra tradicional, retomado em setembro de 2013, podem ser despejadas do local, que fica a pou-cos metros da BR-463 e a aproximadamente sete quilômetros do município de Dourados (MS). A decisão judicial os obrigaria a voltar para as margens da ro-dovia BR-463, onde sobreviveram em condições subumanas por 13 anos e onde oito indígenas já morreram.

Um recurso pedindo a suspensão da reintegração de posse seria proto-colado no Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto isso, a Polícia Federal pode ser acionada a qualquer momento para cumprir a ordem de despejo. O clima de tensão pelo risco iminente remete ao histórico de violências que os indígenas de Apyka’i foram submetidos ao longo do tempo, rconforme elembra a cacique Damiana Cavanha, que há mais de 25 anos vê sua família e comunidade ser massacrada para favorecer o “desenvolvimento” e as plantações de cana-de-açúcar.

Grande Assembleia Aty Guasu

ideranças indígenas, reza-dores, professores, agentes de saúde, jovens, mulheres e alunos Kaiowá e Guarani

reuniram-se na Grande Assembleia Aty Guasu, com aproximadamente 800 pessoas, entre os dias 21 e 25 de maio no tekoha Yvy Katu, onde aprofun-daram o debate sobre os territórios, a segurança, a saúde e a educação. Seguros de que somente podem ser indígenas plenamente dentro de seus territórios sagrados, eles demandam a demarcação das terras tradicionais Guarani e Kaiowá e afirmam que re-tomarão suas terras e não permitirão que as comunidades em iminência de despejo sejam desalojadas.

O encontro contou com a presença dos povos Kadiwéu, Kinikinawa e Tere-na. Leia abaixo trechos do documento final:

Nós, JovensRelatamos a urgência em voltar

para nossos territórios, pois as reser-vas não são o espaço em que nossos antepassados viveram. Também por não haver espaço suficiente para de-senvolver nossa cultura. Nas reservas, não temos mais como caçar e pescar, não tem mais mata, e isso facilita a entrada de drogas, bebidas alcoólicas e a violência, por isso, voltaremos ao território onde temos nossa origem.

Nas áreas de retomada, nós, jovens, estamos reencontrando nossa paz na caça, na pesca, voltamos a ter nossa or-ganização própria e a gestão territorial Kaiowá e Guarani.

Nós, MulheresRelatamos as dificuldades encon-

tradas nas comunidades, constatamos que todos esses problemas de educa-ção, saúde, alimentação e o desafio de ter uma vida digna vêm da falta de demarcação dos nossos Tekoha, pois sem ele não podemos ter os alimen-tos tradicionais e o espírito não fica tranquilo.

Nós, LiderançasRelatamos que nas áreas em que

estamos na posse de parcela do nosso Tekoha não temos como produzir ali-mentos suficientes para o povo porque a terra está degradada e não há projeto de recuperação ambiental.

Nós, Rezadores e RezadorasRelatamos que uma vida digna para

o nosso povo está no espaço territorial em que se encontram nossos antepas-sados, e que Tupã consagrou ao povo que ali habita. Sem esse espaço sagra-do não há a presença dos espíritos, e

“Jamais nos impedirão de voltar ao nosso Tekoha”

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eck sem os espíritos não há tranquilidade

para aquele povo que foi retirado da sua terra sagrada e concedida por Tupã. Assim, cresce a violência nas reservas.

Contudo, o povo Guarani-Kaiowá reunido na Aty Guasu, busca resposta do governo brasileiro referente aos direitos fundamentais dos povos indí-genas, o território, a saúde, a educação e a segurança.

“Podem até matar as nossas lideran-ças, mas jamais impedirão de voltarmos ao nosso Tekohá”

Território Não permitiremos que as comuni-

dades em iminência de despejo sejam desalojadas. Entre elas: Apykaí, Pacurity, Guaiviry, Pyelito Kue, Passo Piraju, La-ranjeira Nhanderu, Boqueron, Kurusu Ambá, Ipoi, Nhu Porã, Nhu Verá, Arroio Corá, Sombrerito, Ivy Katu, Itay, Guyra Kambiy, Pindoroky, Taquara, Nhanderu Marangatu do povo Guarani-Kaiowá, ou de qualquer outro povo do estado. Se sentirmos que isso acontecerá, avança-remos mais ainda.

Exigimos:u a continuidade dos Grupos de Tra-

balho de identificação e delimitação dos Tekoha;

u a publicação dos estudos de identi-ficação e delimitação realizados;

u a publicação das portarias declara-tórias que estão paralisadas;

u a demarcação física dos territórios que estão nesta fase;

u a homologação dos Tekoha que estão pendentes.Por fim, reiteramos que não iremos

mais participar/legitimar a “mesa de diálogo” feita pelo governo, não vamos negociar nossos direitos, legítima e arduamente conquistados. Por isso, re-pudiamos todas as medidas promovidas pelos ruralistas e seus parlamentares, especificamente: PEC 215, PEC 38, PEC 237, Portaria 303, PLP 227, minuta do Ministério da Justiça que visa alterar o Dec. Lei 1.775, ou qualquer outra ini-ciativa que busca desconstruir nossos direitos. n

CONGREGAÇÃO ‘IRMÃS LAURITAS’ CELEBRA CENTENÁRIOCimi Regional Mato Grosso do Sul

m celebração ao centenário da Congregação ‘Irmãs Lauritas’ aconteceu em Campo Grande (MS), de 10 a 14 de maio, o

“Encontro de Espiritualidade dos Povos Indígenas”, que contou com a participa-ção dos povos Terena, Guarani Kaiowá,

Xavante, Aymara, Quechua e Pai Tavyterã do Chile, Paraguai, Bolívia e Brasil.

O que ficou evidenciado no encontro é a centralidade que tem a espiritualidade nos processos de resistência e luta dos povos indígenas por seus direitos, par-ticularmente pelos seus territórios. Daí, decorre uma espécie de espiritualidade da terra, da mãe terra, da Pacha Mama. Um

momento importante é o de harmonizar e trazer aqueles que já partiram para a celebração. Os espíritos dos antepassados se fazem presente nos rituais.

A religiosidade e espiritualidade, após mais de 500 anos de intensa relação com outras religiões, especialmente as cristãs, construíram uma espiritualidade muito própria. Nas raízes profundas de

suas espiritualidades há elementos do cristianismo. Evidenciam-se os aspectos festivos e alegres dos rituais e celebra-ções, da partilha, da reciprocidade, dos presentes, da cura, da gratidão à Pacha Mama.

Uma das manifestações importantes foi o desejo de construir e reconstruir caminhos e formas de solidariedade entre

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Arquivo Cimi

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13 Maio – 2014

Com a perspectiva do projeto de vida fundamentado no Bem Viver, o povo Xukuru de Ororubá reafirmou a citação pronunciada pelo cacique Xicão e que serve de inspiração para a continuidade da luta em defesa do território sagrado: “A água é o sangue da Terra, as matas são os cabelos da Terra, as pedras são os ossos da Terra”

PaísAfora

“Não negociaremos nossos direitos”

Grande Assembleia do Povo Terena

eunidos na Hánaiti Ho’únevo Terenoê, a Grande Assembleia do Povo Terena, entre os dias 07 e 10 de maio, na aldeia

Babaçu, no município de Miranda (MS), as lideranças indígenas Terena, juntamente com representantes dos povos Guarani, Kaiowá, Kinikinau, Ofaié, Kadiwéu e Pataxó, avaliam que os povos indígenas vivenciam o período mais assombroso em sua história de luta. Esta situação se deve ao fato de que tramitam nos âmbitos dos poderes constituídos dispositivos que visam retirar os direitos territoriais histori-camente conquistados pelos indígenas.

No documento final da Assem-bleia, eles afirmam: “O poder legis-lativo tenta a todo custo aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, proposta flagrantemente inconstitucional pois ataca nosso direito fundamental que é nosso terri-tório, nossa mãe, nossa vida! O poder Executivo, por meio do Ministério da Justiça, tem sistematicamente ataca-do nossos direitos quando propõe a mudança no procedimento demarca-tório de terras indígenas. O governo brasileiro adotou um modelo de de-senvolvimento que não contempla os povos indígenas. O Estado brasileiro está em mora com os povos indíge-nas, pois não cumpriu com seu dever constitucional de demarcar nossos territórios. Repudiamos a mesa de ne-gociação do Ministério da Justiça que tem o nítido objetivo de postergar os procedimentos demarcatórios... Nós povos indígenas não aceitamos mais as políticas publicas impostas de cima

para baixo, sem consulta e participa-ção de nossas comunidades, seja na saúde, educação e sustentabilidade. Exigimos a observância dos princípios consagrados na Convenção 169 da Organização Internacional do Traba-lho (OIT) quando do relacionamento do Estado com nossas comunidades”.

Convictos de que chegou a hora da retomada dos territórios tradicionais, da efetivação da educação própria e da autonomia do povo, dentre os diversos encaminhamentos feitos na Assembleia, demandam a apuração da morte de Oziel Gabriel, ocorrida durante uma ação violenta da polícia federal no cumprimento de ordem judicial em ação de reintegração de posse; e que o ministro da Justiça expeça portaria declaratória da Terra Indígena Taunay/Ipegue, em virtude de não existir mais a decisão judicial que impeça esta demarcação.

As lideranças também rechaçaram a audiência da PEC 215 que aconteceu na Assembléia Legislativa de Campo Grande (MS) no dia 9 de maio. “Não negociaremos nossos direitos! Nós, lideranças indígenas, decidimos e não participaremos da audiência proposta pois não legitimaremos essa tentativa de consulta sobre a PEC 215, que além de ser inconstitucional, é um verdadeiro atentado contra os direi-tos dos povos indígenas e significa um retrocesso em relação às garan-tias constitucionais”, afirmaram em documento assinado pelo Conselho do Povo Terena, Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá, Conselho do Povo Kinikinau, Conselho do Povo Ofaié, Povo Kadiwéu e por um representante do Povo Pataxó.

Liderança sofre terceiro atentado em um anoO indígena Paulino Terena foi

baleado na perna direita depois que homens não identificados atacaram a tiros, na madrugada de 19 de maio, a casa onde ele vive com a família na retomada Pillad Rebuá, território indígena localizado no município de Miranda (MS), foco de conflito agrário. Este é o terceiro atentado sofrido pelo

indígena em menos de um ano. “Foram muitos tiros. Nunca que eu tinha visto tantos assim. Não vieram para assustar, mas para me matar. Estou bem e não va-mos desistir de nossas terras”, garante Paulino. Ainda no dia 19 o indígena saiu do hospital de Miranda, onde passou por cirurgia para a retirada do projétil alojado na panturrilha. n

Água é o sangue da terraCimi Regional Nordeste

água é um elemento sagrado que faz parte do contexto es-piritual do povo Xukuru. Quem escolheu esse tema foram os

Encantados, para que o povo Xukuru possa saber a importância do território sagrado”, afirmou o cacique Marcos Xu-kuru durante a XIV Assembleia do Povo Xukuru de Ororubá, que ocorreu entre os dias 17 e 20 de maio na aldeia Pedra d’Água, “Recanto dos Encantados”, terra indígena localizada no município de Pesqueira (PE).

O tema da assembleia foi “Limo-laigo Toipe – Terra dos Ancestrais: A Água é o Sangue da Terra”. A aldeia Pedra d’Água foi a primeira retomada do território sagrado realizada pelos Xukuru e é lá que está enterrado o cacique Xikão Xukuru, assassinado em 1998 no contexto da luta pelo ter-ritório, que acabou sendo demarcado em 2001 e hoje também é motivo de debate na assembleia.

Com a presença de vários povos, dentre eles os Potiguara, da Paraíba, Xukuru-Kariri, de Alagoas, e Kambiwá, de Pernambuco, foi possível debater a conjuntura da região, os problemas que afetam a vida das comunidades indíge-

nas do sertão da Bahia até o Ceará e a necessidade de contínua mobilização dos povos indígenas do Nordeste. A água, por exemplo, é uma questão em-blemática em todo o Nordeste, tanto na oposição à transposição do Rio São Francisco como nas cercas que impe-dem o acesso de vários povos a fontes de água pura.

A assembleia trouxe para reflexão do povo Xukuru a importância e os cuidados com a água que nasce dentro de seu território. A água como fonte de vida e espiritualidade, e que vem re-forçar o pensamento do cacique Xikão, que sempre dizia que a água é o sangue da terra. Considerando as questões climáticas, a água torna-se cada vez mais escassa e comercializada dentro do sistema capitalista, retirando toda a sacralidade e restringindo o acesso dos povos do Brasil.

Em 2017, o tema da campanha anual da Organização das Nações Unidas (ONU) terá como tema “Água e Espiritualidade”. Com a perspectiva de contribuírem nestas discussões in-ternacionais e no contexto da gestão territorial interna, os Xukuru apontam para a necessidade de preservar o ecos-sistema e os mananciais hídricos, além de democratizar o acesso à água. n

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CONGREGAÇÃO ‘IRMÃS LAURITAS’ CELEBRA CENTENÁRIOos povos, como aconteceu com frequência nas lutas das décadas de 1970 e 1980. Foi expresso pelos Xavante seu desejo de apoiar concretamente a luta dos parentes Kaiowá-Guarani e Terena, por exemplo.

O povo Guarani do Paraguai ‘Pãi Tavyterã e os Guarani Kaiowá do Brasil celebraram e reverenciaram a Mãe Terra, o Tekoha Sagrado. Para os Guarani, a própria

história é sagrada. Apesar das fronteiras nacionais os separarem, o professor Eliel Benites Kaiowá Guarani afirmou “somos todos Guarani, temos mais semelhanças do que diferenças entre nós”.

Missionárias LauritasA Congregação das Missionárias de

Maria Imaculada e Santa Catarina de

Sena, conhecidas familiarmente como Missionárias Lauritas, nasceu no seio da comunidade indígena em Dabeiba (Antioquia), Colômbia, em 14 de maio de 1914. Quando as comunidades indígenas estavam abandonadas e numa época que era inadmissível que uma mulher traba-lhasse sozinha na selva, a jovem Laura se aventurou a empreender o que ela chama

de a Obra dos Índios. Atualmente, as Missionárias Lauritas dão continuidade a esta missão e estão presentes em 21 países da América Latina, África e Europa, trabalhando em favor das comunidades marginalizadas, especialmente os povos indígenas.

Com informações de Irmã Emília, Irmã Joana, Lídia Farias, Egon Heck e Laila Menezes

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14Maio – 2014

INa acolhida

e durante o Encontro,

a Escola de Música

Espírito Santo e o Ritual

Chiquitano das Bandeiras explicitam que

a influência dos jesuítas,

desde 1692, foi

incorporada e permanece

forte na tradição

Chiquitana, mesmo

após muito tempo sem a presença

desses religiosos

PaísAfora

Mario Bordignon, Cimi Regional Mato Grosso

solados perto da fronteira do estado do Mato Grosso com a Bolívia e esquecidos há muito tempo pelas autoridades e mes-

mo pela Igreja, os Chiquitano resolveram fazer ouvir sua voz. Fazendeiros e polí-ticos chegando à região, se aproveitam do isolamento geográfico e assistencial para negar a eles os direitos originários à terra onde nasceram seus ancestrais. Estes senhores, esquecendo que quem traçou as fronteiras em território Chi-quitano foram espanhóis e portugueses, soltam frases como: “Vocês não são índios” e “Vocês são bolivianos”.

Fazem de tudo para não deixar demarcar suas terras tradicionais. Mas no começo do século XXI as coisas co-meçaram a mudar. A Fundação Nacional do Índio (Funai) começou timidamente a fazer alguns estudos das áreas. A Portal do Encantado está agora delimitada. Nada foi feito ainda na área Vila Nova Barbecho e na Bahia Grande, onde se en-contra a aldeia Aparecida. Indescritíveis são os sofrimentos nestas duas últimas áreas e até os direitos humanos mais essenciais são constantemente amea-çados: proibido o encanamento da água potável, o direito de ir e vir, de caçar e de ter um pedaço de chão para manter com dignidade a própria família. A Igreja se fez presente primeiro através da Pastoral da Criança e depois através do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), também com uma equipe itinerante.

As lideranças começaram a frequen-tar as repartições públicas em Cuiabá e em Brasília para defender seus direitos à terra, à saúde e à educação. Um bom grupo de jovens está se formando nas universidades. Neste contexto aconte-ceu, na aldeia do Portal do Encantado, o Encontro de Formação de Lideranças Indígenas de Mato Grosso, entre os dias 16 e 18 de maio. Dos 2.500 Chiquitano, mais de cem participaram, além dos Bo-roro, Xavante, Karajá, Tapirapé, Kanela, Umutina, Kayabi, Apiaká e Munduruku, que vieram dar seu apoio à luta para a demarcação de suas terras.

O ritmo marcante do tambor, o som do pífano e a dança das bandeiras sagra-das, no meio da dança do povo, deram início ao histórico encontro. A cultura Chiquitana permeada pela religião

trazida pelos jesuítas desde 1692 per-manece forte mesmo após muito tempo sem mais a presença desses religiosos. Fazendo uso do seu direito, os anciões, dona Rosália e Lourenço, rezaram e fa-laram primeiro na língua nativa e depois em português. Lourenço afirmou: “Esta terra para nós é sagrada. Foi Deus quem nos deu. Ele deu terra para todos, não só para o branco. Deste Vale do Encantado saíram todos os Chiquitano e ocuparam todo este território”.

Outros fizeram uso da palavra. Se-gundo Síria Chiquitano: “Nós nascemos

índios e morremos índios. Nós não viramos índios como dizem os fazen-deiros. Quanto sofrimento! Bem falou o Dr. Roberto Vaz Curvo, nosso assessor, que a moda aqui na região era: ‘desce o pau na bugrada’”. Já Antônio Chiquitano avalia que: “Nós, aqui, temos que ser políticos desde a barriga da mãe para aprender a lutar e nos defender”, en-quanto Alessandra sugere: “Nós somos um povo muito grande, nós temos força, temos que assumir os nossos setores e não só questionar a Funai, os prefeitos, o governo”. A enfermeira Chiquitano

Luzenil considerou que: “Terra, saúde e educação tem que ir juntas. Vamos também juntar nossa sabedoria indígena com o saber da universidade”.

Todas as lideranças das outras etnias manifestaram cada qual do seu jeito seu apoio e solidariedade aos Chiquitano. Assim Falou Valeriano Xavante: “Eu sonhei que este bonito Vale do Encan-tado estava cheio de Chiquitano e todo índio de Mato Grosso estava cantando, dançando e gritando; Índio unido jamais será vencido”. Faustino Kayabi lembrou: “Nós lutamos muitos anos até conseguir demarcar nossas terras. Ainda nos falta o Batelão. Falo para vocês: ‘Não desa-nimem, se não é hoje é amanhã, mas o dia vai chegar’”. Já no final do Encontro, Lucimar Umutina disse que: “Índio sem terra não é nada, índio é da terra, terra é do índio. Vamos juntar forças para defender nossa terra”. Por último, dona Leonida Bororo concluiu: “Nós também lutamos e sofremos muito por causa da terra. Padre Rodolfo e Simão Bororo morreram e outros quatro foram balea-dos. Meus irmãos Chiquitano, é com muita fé e com muita luta que vocês vão conseguir a vossa terra”.

A contínua luta dos Chiquitano pela terra tradicional

Para garantir o Bem Viver O documento final do Encontro

demanda a demarcação das terras indígenas do povo Chiquitano, para que haja saúde para todos, o forta-lecimento da cultura e a preservação dos lugares sagrados, locais de pesca, caça, frutas e ervas medicinais, e o re-conhecimento dos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição Federal, convenções internacionais e legislação indigenista. Além disso, apresenta as seguintes reivindicações e encaminhamentos específicos:

1 – Portal do Encantado: além da demarcação, a segurança para o povo é importante, já que as intimidações e o preconceito são recorrentes. “Nós não vivemos em paz, sofremos ameaças e discriminação. Muitas vezes, nem po-demos nos identificar como indígenas. Recentemente, ocorreu um fato grave, quando uma liderança foi ameaçada

por telefone. Disseram que parasse de participar do movimento pela luta da terra porque ela estava falando demais e que, assim, iriam acabar com ela. Isso só porque queremos a demarcação da nossa terra”, afirmou uma liderança Chiquitana;

2 – Terra Indígena Baía Grande: necessidade de barrar o desmatamen-to que as fazendas fazem dentro do território e a implantação de um posto de saúde na aldeia Santa Aparecida;

3 – Terra Indígena Barbecho: a demarcação é fundamental porque a comunidade não consegue garantir a sobrevivência nos 25 hectares que ocupam atualmente e o desmatamento vem aumentando, especialmente junto à nascente; o gado está assoreando o córrego Nopertarch; há falta de água na aldeia e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não resol-

ve o problema do poço artesiano; 4 – Kawaiweté, Munduruku e Apia-

ká: articulação de uma organização independente dos indígenas do Mato Grosso; a preservação do Salto Sagrado do Rio dos Peixes e a não construção de hidrelétrica neste rio; e a demarca-ção da Terra Indígena Batelão;

5 – Rio Araguaia: demarcação das terras indígenas no Baixo Araguaia; fiscalização rigorosa em relação ao desmatamento e poluição dos rios; a realização de uma assembleia para avaliar os impactos ambientais das estradas planejadas – a MT 100, por exemplo, não tem o licenciamento am-biental e nem o aval das comunidades indígenas Tapirapé, Karajá e Kanela; contratação de profissionais da saúde comprometidos com a vida e o bem estar dos indígenas; e reforma dos postos de saúde. n

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Homenagem

Dom Tomás, presente!

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

s 23h30 do dia 2 de maio disse-nos adeus o incansável guerrilheiro das grandes causas da humanidade. Dom Tomás faleceu em decorrência de uma trombo embolia pulmonar após permanecer internado entre os dias 14 e 24 de abril, em Goiânia. Após

receber alta hospitalar no dia 24, foi novamente internado no dia seguinte. Profeta e conselheiro, estrategista e sonhador, Dom Tomás foi um homem de muitas causas.

Assim como a mensagem do Evangelho, nunca se deixou limitar pelas fronteiras. Ultrapassou todas elas para defender a vida. Nessa sua missão transfronteiriça assumiu as lutas dos povos indígenas como uma das suas prioridades. Por essa razão, percorreu todo o Brasil para apoiar as justas rei-vindicações dos povos originários em defesa de seus territórios tradicionais e de suas formas próprias de vida.

Depois de ter participado da fundação do Cimi e ter exercido a função de vice-presidente e presidente, tornou-se padrinho honorário da entidade. Sua partida nos deixa grande saudade provocada pelo sentimento de perda, mas nossa certeza na ressureição nos consola e nos torna conscientes de que seu compromisso com a causa dos indígenas, assim como com a causa de todos os povos, agora será eterno.

Caríssimo Dom Tomás, nosso irmão, amigo, patriarcaDom Erwin Kräutler,

Bispo da Prelazia do Xingu e Presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

ocê partiu para entrar na pá-tria definitiva. Deixa imensas saudades, incontáveis lem-

branças, agradáveis recordações. Choramos a sua morte mas, ao mesmo tempo, somos tão gratos a Deus por ter-nos concedido sua presença fraterna e solidária durante tanto tempo.

O que seria o Conselho Indige-nista Missionário, o Cimi, sem você? Você não deixou apenas marcas, você foi um dos fundadores do Cimi nos idos de 1972. Diante dos

desafios já daquele tempo sentiu a necessidade de criar um organismo na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que coordenasse todo o empenho em favor dos povos indígenas deste país. Quem fala no Cimi, lembra o Dom Tomás: intransigente defensor dos direitos e da dignidade dos povos indígenas. Mas sua doação generosa não se res-tringiu aos índios. Dedicou sua vida igualmente aos agricultores expulsos de suas terras, ameaçados em sua sobrevivência, aos sem-terra, sem-teto, sem-nada. Seu exemplo de vida doada a quem um sistema iníquo e injusto exclui e considera supérfluo e descartável nos incentiva e fortalece

na continuação desta nobre luta em favor dos prediletos de Deus.

Caro Dom Tomás, quero lhe agradecer também pessoalmente por sua fraterna amizade. Nunca esquecerei sua presença no Xingu e as viagens que fizemos, só nós dois, no seu aviãozinho para as aldeias do povo Kayapó.

Dom Tomás, que Deus o tenha na sua glória! Que receba agora o prêmio de contemplar por toda a eternidade o que Deus preparou para aqueles que o amam (cf. 1 Cor 2,9).

Do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, da 52ª Assembleia

Geral da CNBB, 4 de maio de 2014.

Eterno defensor dos povos indígenas

Roberto Liebgott, Cimi Regional Sul – equipe Porto Alegre

Breve biografiaDom Tomás Balduino nasceu em Posse, Goiás, no dia 31 de dezembro de 1922 e seu

nome de batismo é Paulo Balduino de Sousa Décio. Foi o último filho homem de uma família de onze filhos, três homens e oito mulheres. Ao se tornar religioso dominicano recebeu o nome de Frei Tomás, como era costume.

Até os cinco anos de idade viveu em Posse. Depois a família migrou para Formosa, onde seu pai se tornou promotor público, depois juiz e se aposentou como tal.

Fez o Seminário Menor – Escola Apostólica Dominicana – em Juiz de Fora (MG). Fez os estudos secundários no Colégio Diocesano, dirigido pelos irmãos maristas, em Uberaba. Cursou filosofia em São Paulo e Teologia em Saint Maximin, na França, onde também fez mestrado em Teologia.

Em 1950, lecionou filosofia em Uberaba. Em 1951 foi transferido para Juiz de Fora como vice-reitor da então Escola Apostólica Dominicana e lecionou filosofia, na Facul-dade de Filosofia da cidade.

Em 1957, foi nomeado superior da missão dos dominicanos da Prelazia de Concei-ção do Araguaia (PA), onde viveu de perto a realidade indígena e sertaneja. Na época a Pastoral da Prelazia acompanhava sete grupos indígenas. Para desenvolver um trabalho mais eficaz junto aos índios, fez mestrado em Antropologia e Linguística, na Universidade de Brasília. Estudou e aprendeu a língua dos índios Xicrin, do grupo Bacajá, e Kayapó.

Para melhor atender a enorme região da Prelazia, que abrangia todo o Vale do Araguaia paraense e parte do baixo Araguaia mato-grossense, fez o curso de piloto de aviação. Amigos solidários da Itália o presentearam com um teco-teco com o qual prestou inestimável serviço, sobretudo no apoio e articulação dos povos indígenas. Também ajudou a salvar pessoas perseguidas pela ditadura militar.

Dom Tomás foi personagem fundamental no processo de criação do Conselho Indi-genista Missionário (Cimi), em 1972, e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975. Nas duas instituições Dom Tomás sempre teve atuação destacada, tendo sido presidente do Cimi, de 1980 a 1984, e presidente da CPT, de 1999 a 2005.

Depois de deixar a Diocese desenvolveu uma extensa e longa pauta de conferências e palestras em Seminários, Simpósios e Congressos, tanto no Brasil quanto no exterior. Por sua atuação firme e corajosa recebeu diversas condecorações e homenagens Brasil afora.

Com informações da Comissão Pastoral da Terra – CPT

15 Maio – 2014

Sempre atento aos desejos e anseios das comunidades e dos mais pobres, Dom Tomás Balduíno foi um dos baluartes da luta dos povos indígenas, da transformação da política indigenista da Igreja e da luta dos pequenos agricultores pela terra

O Céu o acolheu em festaPastor da libertaçãoProfeta da justiça e da pazAtuante nas lutasIrmão dos pobresAmigo dos povos indígenas Homem de féDa teologia da libertaçãoDe uma Igreja renovada Uma humanidade justaUm mundo de irmãosPluriétnico e multiculturalHomem de um Deus generosoDe fé engajada na vida dos que sofremDa radicalidade proféticaCompanheiro e irmãoEm defesa dos oprimidosDo Reino da libertaçãoHomem de posicionamentos firmes, contundentesTestemunho de coragem e confiançaCompromisso social, político Junto aos empobrecidosCom os pequeninos desse mundoOs índios, sem terra, agricultores.Bispo do Cerrado, da AmazôniaDa terra e dos céusViveu o AmorO pleno AmorTornou-se eterno!

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16Maio – 2014

APOIADORES

Benedito PreziaPesquisador da História Indígena

o século XVII, a Serra do Ibiapaba, no interior cearense, era tida como um local estratégico no percurso terrestre entre o sertão nordestino e o Maranhão. O cami-nho por mar era muito arriscado devido às correntes marítimas, fazendo com que

a rota terrestre fosse mais segura. O clima ameno da serra era uma espécie de oásis no meio daquela região desértica, tornando-se parada obrigatória para os viajantes.

Ao contrário de outro grupo Tobajara que vivia próximo ao litoral pernambucano e que se tornara aliado dos colonizadores no século anterior, os indígenas da Ibiapaba estavam revoltados com a prática escravista dos lusitanos e passaram a atacar os portugueses. Desse modo, a serra tornou-se um baluarte da resistência Tobajara. Com a invasão ho-landesa, entre 1630 e 1654, o equilíbrio de forças

alterou-se, e os Tobajara resistentes fizeram uma aliança com os novos conquistadores. Assim, foi erguido naquele local o Forte de Schoonemborch, que por muito tempo impediu o trânsito dos por-tugueses para o Maranhão.

Quando os holandeses foram expulsos, os por-tugueses decidiram enfrentar esse reduto, batizado de Troia Vermelha. Mais uma vez os jesuítas foram chamados para, através da religião, recuperar o território perdido. Se, por um lado, a finalidade do governador era a reconquista militar, por outro lado, os missionários viam nesse pedido a possi-bilidade de retomada da missão e de conversão dos indígenas.

Em abril de 1662, no início da quaresma, o padre Pedro Pedroso ali chegou, levando consigo a experiência de catequese junto aos indígenas da Bahia. Foi bem recebido pelos líderes Tobajara, como Capiranha e Francisco Xubeba, além de Dom Simão Tagaibuna. Este deveria ter sido aliado dos portugueses, pois carregava um título de nobre-

za no seu nome. Se alguns ostentavam nomes cristãos, ainda conservavam práticas ancestrais, como a poligamia. Isso desagradou o missionário, que exigiu o abandono imediato das concubinas como penitência quaresmal. Mas tal ordem não foi cumprida.

Diante dessa recusa, o padre mostrou-se pouco conhecedor da cultura local e comunicou o fato ao governador da Bahia. Este determinou a ordem de prisão para quem insistisse na vida ou nas prá-ticas de poligamia. Caso resistissem, deveriam ser enforcados. Felizmente essa determinação não foi cumprida. No entanto, os três líderes foram leva-dos para a prisão da Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção, que se tornou depois vila de Fortaleza.

Algum tempo depois Tagaibuna conseguiu ser solto e voltou para a Serra de Ibiapaba, junto a seu povo. Ali chegando, apresentou-se ao padre, disse estar arrependido e prometeu seguir as normas cristãs. Talvez fosse uma estratégia de sobrevivência.

Na semana seguinte um comando militar, enviado pelo governador do Maranhão, apareceu para comprar âmbar, produto muito apreciado na Europa. Além deste produto, outras “negociações” aconteceram, sobretudo com as mulheres, sendo que muitas delas foram violentadas.

Acreditando que aquele seria o momento de se vingar do que sofrera na prisão, Simão Tagaibuna, juntamente com um grupo Kariri, articulou um ata-que. No dia de Páscoa, de madrugada, a missão foi tomada de surpresa, sendo presos os missionários e a tropa militar ali acampada.

A vida dos padres e dos militares foi poupada, mas com a condi-ção de abandona-

rem a serra. Como pólvora, a rebelião alastrou-se até a

costa cearense, onde recebeu o apoio dos Potiguara de Camucim e de outras comu-

nidades próximas à vila de Fortaleza. Até o capitão de índios, Francisco

Cariúba, aderiu ao motim, tendo sido depois exo-nerado.

O levante durou até 1664, quando foi feita uma negociação de paz, que incluía a anistia aos rebelados e a libertação dos dois líderes Tobajara, que continuavam presos.

A Troia Vermelha resistiu por mais nove anos. Somente em 1673 a missão foi retomada pelo frade Francisco de Sá, da ordem franciscana, e o caminho para o Mara-nhão foi reaberto. n

NOVA REBELIÃO TOBAJARA NA SERRA DO IBIAPABA

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