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Governo do Estado da Bahia César Borges Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia Luiz Carreira Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia Cesar Vaz de Carvalho Júnior BAHIA ANÁLISE & DADOS é uma publi- cação trimestral da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SEI, autarquia vinculada à Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia da Ba- hia. Divulga a produção regular dos téc- nicos da SEI e de colaboradores externos. As opiniões emitidas nos textos assinados são de total responsabilidade dos autores. Conselho Editorial Cesar Vaz de Carvalho Júnior Paulo Hermida Gonzalez Edmundo Figueroa Ângela Franco Carlota Gottschall Conceição Cunha Renata Proserpio Coordenação Editorial Carlota Gottschall José Sérgio Gabrielli de Azevêdo Ubiratan Castro de Araújo Normalização Gerência de Documentação e Biblioteca GEBI Editoração Designers Associados Tiragem: 1.000 exemplares Av. Luiz Viana Filho, 435, 4ª Avenida CEP: 41.750-300 Salvador - Bahia Fone: (0** 71) 370-4823/370-4704 Fax: (0** 71) 371-1853 http://www.sei.ba.gov.br e-mail: [email protected] Bahia Análise e Dados, v.1 (1991- ) Salvador: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2000. Trimestral ISSN 0103 8117 CDD 338.91 CDU 338.984 CEPO: 0110

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Governo do Estado da BahiaCésar Borges

Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia

Luiz Carreira

Superintendência de EstudosEconômicos e Sociais da Bahia

Cesar Vaz de Carvalho Júnior

BAHIA ANÁLISE & DADOS é uma publi-cação trimestral da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SEI, autarquia vinculada à Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia da Ba-hia. Divulga a produção regular dos téc-nicos da SEI e de colaboradores externos. As opiniões emitidas nos textos assinados são de total responsabilidade dos autores.

Conselho EditorialCesar Vaz de Carvalho Júnior

Paulo Hermida GonzalezEdmundo Figueroa

Ângela FrancoCarlota GottschallConceição CunhaRenata Proserpio

Coordenação EditorialCarlota Gottschall

José Sérgio Gabrielli de AzevêdoUbiratan Castro de Araújo

NormalizaçãoGerência de Documentação

e Biblioteca GEBI

EditoraçãoDesigners Associados

Tiragem: 1.000 exemplares

Av. Luiz Viana Filho, 435, 4ª Avenida CEP: 41.750-300 Salvador - Bahia Fone: (0** 71) 370-4823/370-4704

Fax: (0** 71) 371-1853

http://www.sei.ba.gov.bre-mail: [email protected]

Bahia Análise e Dados, v.1 (1991- ) Salvador: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2000.

TrimestralISSN 0103 8117 CDD 338.91 CDU 338.984

CEPO: 0110

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SUMÁRIOApresentação

Introdução

A baía de Todos os Santos: um sistema geo-histórico resistente............................. 10

Ubiratan Castro de Araújo

“Eu vou para a Bahia”: a construção da regionalidade contemporânea.................. 24

Antônio Fernando Guerreiro de Freitas

............................................... 38

Mudanças urbanas em Salvador no final do século XX......................................... 53

Angela Gordilho Souza

Comunicação, mídia e cultura na Bahia contemporânea.........................................74

A evolução da indústria fonográfica e o caso da Bahia......................................... 90

Paulo Henrique de Almeida / Gustavo Casseb Pessoti

Terceiro setor: um novo espaço de sociabilidade pública?.................................... 109

Osvaldo Barreto

Fotografias da Bahia.................................................................................................... 120

O território do cacau no contexto da mundialização

Vitor de Athayde Couto

Antonio Albino Canelas Rubim

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APRESENTAÇÃO

ASuperintendência de Estudos Econômicos e Sociais da

Bahia - SEI, instituição vinculada à Secretaria de Planeja-

mento do Estado da Bahia, apresenta, nas 39a e 40a

edições da Bahia Análise e Dados, dois números especiais: Leitura

da Bahia I e II. Atendendo ao seu compromisso social de produzir e

divulgar informações sobre o Estado da Bahia, a SEI promove um

debate diversificado sobre os principais elementos que hoje

configuram a sociedade baiana e amplia aquele relativo a seu

passado, com a inclusão de estudos de cunho histórico. Emerge

destes textos um retrato polêmico da atualidade, com abordagens

temáticas que abrangem desde o perfil histórico que contribuiu para

dar forma ao mercado de trabalho na RMS, passando pela

conformação de uma territorialidade espacial, cultural e demográfica,

até o traçado dos caminhos que estabeleceram os marcos setoriais

que balizam a economia estadual neste final de século.

Os artigos publicados nesta edição — Leituras da Bahia I e II —

constituem-se, desse modo, não somente em instrumentos de

consulta e referência mais imediata, de efetiva importância para o

planejamento governamental, como também em fontes de reflexão,

que, esperamos, possam nutrir novos estudos com vistas a

responder sempre mais precisas e operantes às questões postas

pela nossa realidade em face aos desafios da atualidade global,

ágil, informatizada, perpassada por fluxos, imagens, mas ainda

comportando instâncias que exigem soluções locais e cotidianas.

Para a realização destes números especiais foram convidados

alguns dos principais pensadores da nossa sociedade. Cumpre-nos

expressar-lhes aqui o nosso agradecimento, sobretudo à historiadora

Kátia Mattoso, que nos autorizou a publicação do seu artigo

‘Sociedade Escravista e Mercado de Trabalho: Salvador, 1850 –

1868’. Cabe-nos também agradecer as instituições que nos

concederam direito de uso das fotos que ilustram as publicações.

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INTRODUÇÃO

O lhar a Bahia de frente, ler nas entrelinhasda história as suas configurações e identi-dades, este foi o propósito que reuniu os

autores deste número especial da revista BahiaAnálise e Dados - Leituras da Bahia I. Estava forade questão produzir mais uma coletânea de textospanorâmicos que reproduzissem uma história line-ar da Bahia, dos descobrimentos à Timbalada. Oque buscávamos todos, a partir de referências dis-ciplinares diferentes e de recortes temáticos varia-dos, era apreender a complexidade da formaçãohistórica regional deste estado chamado Bahia.

Desde a ocupação portuguesa inicial no séculoXVI, conformou-se um território reconhecido comobaiano e articularam-se os vários mercados locaispara a constituição de uma economia regional.Castro de Araújo apresenta, em A Baía de Todosos Santos, um sistema geo-histórico resistente,Salvador e seus recôncavos, articulados pela baíade Todos os Santos, como o núcleo dinâmico quecentralizou este grande território que se podia cir-cular na “viagem redonda”. O dinamismo destesistema foi assegurado pela navegação à vela,pelo engenho de açúcar e pela escravidão dosafricanos e dos seus descendentes. Depois de1850, este incorporou progressivamente a tecno-logia da navegação a vapor e dos caminhos deferro, sendo finalmente desarticulado a partir dosanos 50 do século vinte pelo advento das tecnolo-gias ligadas ao petróleo. A instalação da indústriade extração e, refino e, posteriormente, do com-plexo petroquímico no Recôncavo da baía, e a uti-lização intensiva do asfalto e do combustívelpermitiram um outro surto de “rodoviarismo” querevolucionou o sistema de transportes, quebrando

antigas centralidades e reconfigurando o espaçoregional baiano.

Guerreiro de Freitas, discute, em “Eu Vou para aBahia”: a construção da regionalidade contemporâ-nea, as microrregionalidades específicas que se de-senvolvem no interior dos randes limites do Estado.A dinâmica dessa diferenciação intra-regional foi as-segurada pelos meios de transporte e pelas políticaspraticadas em torno deles. Hidrovias, ferrovias e,principalmente, as rodovias do século XX, termina-ram por quebrar a centralidade do sistema da Baíade Todos os Santos, fazendo da Bahia um espaçoregional aberto, o que permitiu às microregiõesemergentes uma dupla dinâmica de integração, di-retamente nas redes nacionais e globais — ao mes-mo tempo, todas ainda “vêm à Bahia”.

Esta nova regionalidade aberta é analisadaatentamente por Athayde Couto no seu artigo OTerritório do Cacau no Contexto da Mundialização.Este território, entendido como sistema agráriocomplexo, que vai mais além da presença física docacaueiro como afirma o autor, foi inicialmenteconstituído como uma monocultura exportadora ecomo tal voltado para o mercado mundial, porématrelado pela cabotagem e pelo porto ao sistemada Baía de Todos os Santos. Ao longo deste sécu-lo, este complexo sistema agrário foi sacudido porvárias crises e a cada uma delas reagiu com um di-namismo próprio na busca por completar a sua ca-deia produtiva e por diversificar sua economiaregional, articulando-a diretamente aos mercadosnacionais e mundiais.

São Salvador da Bahia, antiga cabeça do Brasil,centro administrativo, núcleo de serviços e porto daeconomia regional de uma Bahia agro-exportado-

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ra, experimentou, a partir dos anos 30, espetacula-res mudanças que a fizeram saltar da condição deuma pacata cidade provinciana, que contava comum pouco mais de 200 mil habitantes, para a situa-ção, hoje, de uma região metropolitana com maisde 2 milhões e meio de habitantes. Gordilho deSouza mostra com detalhes as transformações im-postas a uma cidade que teve que dar suporte ur-bano ao desenvolvimento industrial — cujo pólodinâmico era o complexo petrolífero instalado noReconcavo da baía — pagando o alto preço tantodo déficit habitacional quanto das péssimas condi-ções de moradia para a grande maioria da popula-ção pobre, segregada nas áreas desprovidas oumal servidas de equipamentos e serviços urbanos.Os tempos da globalização, além de agravar osproblemas da cidade dormitório, trouxeram consigouma nova forma de exploração deste espaço urba-no, todo ele transformado em uma cidade — mer-cadoria a ser consumida por um público global.

A mesma dinâmica que fez do antigo centromais um pedaço deste espaço aberto, tornou-otambém lugar de produção de cultura capaz de im-primir uma nova face à Bahia, para si própria, parao Brasil e para o mundo. Canelas Rubim acompa-nha a transfiguração da provinciana e conservado-ra cidade Cidade do Salvador em um moderno cen-tro produtor de artes, de discursos e decomportamentos que, graças à comunicação e àmídia, terminaram por criar um espaço culturalredefinido como baiano, cujos limites transbordamlargamente o antigo espaço geográfico, fazendo dabaianidade um produto nacional e global. Hoje, aBahia é também jogar os búzios em Buenos Aires,ouvir o Olodum em Nova Iorque, ver a beleza do IlêAyiê em Paris. Oropa, França e Bahia, por que não,modernistas de São Paulo?

Dentre outros suportes que veiculam a exporta-ção de produtos culturais baianos, destaca-se aindustria indústria fonográfica que permite a difu-são do axé, do pagode, do samba-reggae, e do

rock trioeletrizado. Almeida e Pessoti mergulhamno estudo da indústria fonográfica e dos mercadosde música para fazer emergir as potencialidadesde Salvador como centro produtor, capaz de adap-tar-se a cenários futuros. Os suportes devem mu-dar, mas os produtores podem sobreviver nosnovos mercados de uma música cada vez mais in-tangível, volátil, ao mesmo tempo local e global,robotizada e customizada, baratíssima e de fácilmanipulação.

Esta mesma cidade do portal axé é também acidade em que a população pobre, empurrada paraos espaços urbanos mais precários e menos assisti-dos, articula-se nos espaços globais por intermédiode uma variedade de organizações não-governa-mentais, associações privadas que prestam servi-ços públicos. Barreto analisa a ação das ONGscomo um terceiro setor capaz de interpor-se entreo mercado e o Estado para lidar com as crescentesnecessidades das populações mais necessitadas.Para a mobilização dos recursos financeiros e hu-manos indispensáveis à consecução de tais objeti-vos, essas organizações constróem redes de apoioe solidariedade em escala mundial, o que lhes as-segura maior autonomia de ação e, ao mesmo tem-po, vincula-as à execução de linhas de ação socialque expressam prioridades definidas em espaçosdecisórios supra-nacionais. Esta é a globalizaçãodos pobres.

Esperamos que a imagem multifacetada deuma Bahia de ontem e de hoje possa contribuirpara uma reflexão que oxigene os corações e asmentes de todos quantos projetem e executem asações de construção do futuro. A voz do povo pelamúsica popular diz que:

O Olodom está hippieO Olodum está popO Olodum está reggaeO Olodum está rockO Olodum pirou de vez.

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E com a Bahia, o que teria acontecido? Desen-raizada, virtualizada e internacionalizada? Haveriaainda nexos entre a Bahia com H e o Axébahia? Namodorrenta, escravista e mercante cidade Cidadeda Bahia do século XVII, dizia o poeta Gregório deMattos — Triste Bahia, ó quão dessemelhante.

Hoje, na soleira do século XXI, não poderíamos di-zer também — Eletrizante Bahia, ó quão desseme-lhante!

Ubiratan Castro de Araújo

Doutor em História. Universidade de Paris - Sorbonne.Diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA

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10 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000

Eno começo tudo era Kirimurê, grandemar interior dos Tupinambá. “Uma gran-de bacia, que mede cerca de 12 léguas de

extensão sobre 6 em sua maior largura, com vastoancoradouro capaz de reunir abrigadamente todasas esquadras do mundo; variando a profundidadeentre duzentas até mil braças” (Aguiar, 1979, p.300).Igapebas e igaras1 flutuavam dentro da baía e nosrios afluentes em busca do pescado. Muitas delasse aventuravam na vizinha costa oceânica para onorte e para o sul, em antiga cabotagem.

No ano cristão de 1501, no primeiro dia de no-vembro, a primeira igaraçu2 cruzou a barra da baíapara rebatizá-la baía de Todos os Santos. Eram aotodo três os navios que compunham a expediçãodo português Gonçalo Coelho e do florentino AméricoVespúcio. Sua missão era fazer o reconhecimentodas terras ocidentais do Atlântico Sul, das quais setinha notícia através dos relatos da expedição doespanhol Hojeda e do português Cabral. Os nave-gadores descobriram as qualidades de Kirimurê eseus habitantes: bom porto, lugar de reabastecimen-to fácil, população hospitaleira. Aqui descansarampor 27 dias e, ao sair, ensinaram aos Tupinambá aescravidão, comprando-lhes dez prisioneiros de guer-ra que venderam na Europa (Bueno, 1998, p.47).

Um porto na rota das navegações oceânicas eum ponto de trocas integrado na rede de merca-dos que se encadeavam ao emergente capitalis-mo europeu – desde então caiu irreversivelmentesobre Kirimurê o vaticínio de tornar-se baía de To-dos os Santos.

Entre 1501 e 1549 as águas da baía tupinambáeram refúgio da navegação européia, mas as terrasainda eram dos nativos, como bem atestam as notí-cias da feitoria livre e cosmopolita de Diogo Álvares,o Caramuru, e sua esposa tupinambá, Paraguaçu, eseus índios e seus franceses e seu poucos portu-gueses, salvos de naufrágio ou aqui abandonadospor Martim Afonso. Ponto de troca de pau-brasil comos franceses e com os espanhóis, era de poucaserventia econômica para o império manuelino, aliásimpério indiano, império da pimenta. O excesso defrequentação destas águas por outros europeuspassou a exigir dos conquistadores portugueses aocupação exclusiva deste ponto geográfico estraté-gico para a carreira da Índia. A primeira tentativa deconquistar as terras para o uso exclusivo dos portu-gueses começou com a assinatura, em Évora, da car-ta de doação da Capitania da Bahia de Todos os San-tos3 a Francisco Pereira Coutinho, no dia 26 deagosto de 1534, e terminou em 1540, com o incêndiodos poucos engenhos de açúcar, levantados nas cer-canias da atual cidade do Salvador, pelos tupinambá,que assim reagiram às tentativas do donatário e seusprotegidos de escravizá-los (Araújo, 1992).

A conquista da baía

Convencido enfim de que a privatização do Bra-sil não atendia aos desígnios da conquista portu-guesa do Brasil, em dezembro de 1548 o rei D.João III publicou um regulamento pelo qual criavaum governo geral para o Brasil na Bahia de Todos

A baía de Todos os Santos:

um sistema geo-histórico resistente

Ubiratan Castro de Araújo *

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000 11

os Santos. Compreendera que era preciso uma in-tervenção organizada do Estado português paraassegurar o domínio sobre as terras do Brasil. Paratanto deveriam ser constituídas uma sociedade euma economia capazes de, ao mesmo tempo, inte-grar-se no império marítimo português e expandir-se para o interior das terras americanas. Os ele-mentos componentes desse sistema eram:

a) uma cidade fortaleza plantada na entrada dabaía, sede administrativa, posto militar e porto liga-do às rotas atlânticas portuguesas;

b) uma rede de engenhos fortificados implanta-dos em todo o recôncavo da baía, interligados porvia aquática à cidade;

c) um sistema de navegação interior capaz deinterligar cada engenho à cabeça do sistema;

d) a conexão com um sistema de rotas de navega-ção transcontinental, através de um porto bem situa-do na borda ocidental do Atlântico.

A chegada do governador Tomé de Souza, a 29de março de 1549, marcou o início da construção daCidade de São Salvador na Bahia de Todos os San-tos. O empreendimento foi planejado e cuidadosa-mente coordenado a partir de Lisboa. No ano anteri-or, tinha sido enviado à Bahia o capitão GramatãoTeles, que tomou conhecimento da desagregaçãoda Vila do Pereira e que negociou com Diogo Álva-res, o Caramuru, a adesão deste e de sua famíliamestiça à construção da cidade. Essa providênciagarantiu ao Governador Geral um desembarquesem resistência indígena, contando mesmo com acolaboração de tupinambás parentes e do círculo deinfluência de Caramuru e Paraguaçu.

Tomé de Souza, o Governador, trazia consigona Armada do Brasil cerca de mil homens, os recur-sos humanos e materiais necessários aos traba-lhos para a construção da urbis e para o funciona-mento da pólis. Salvador deveria nascer comocidade e como capital da América Portuguesa. De-sembarcados, com empregos, salários e funções jáespecificadas, era preciso levantar o núcleo urbanoinicial, e isso eles fizeram. Já em maio do mesmoano, o Mestre Luís Dias – arquiteto construtor dacidade – havia feito o arruamento da Praça Munici-pal e levantado as cercas de paus, os muros gros-sos de taipa e os baluartes com canhões para de-fender a nova cidade de ataques indígenas porterra e de ataques piratas por mar.

No entanto, a tarefa de Tomé de Souza não eraapenas a de construir uma cidade. Fazia-se neces-sário conquistar o entorno da baía. No Regimentode Tomé de Souza, 17/12 /1548, o rei ordena aconquista da terra que vai seis léguas pelo litoralnorte até Tatuapara, atual castelo de Garciad’Ávila, e cinco léguas pelo sertão, até a entrada doPeraçu, e dentro da baía a ilha de Taparica e outrastrês mais pequenas. As ordens são detalhadas:para os tupinambá mansos, o trabalho; para os re-beldes, o castigo,

(...) destruindo-lhes suas aldeias e povoações e matando e

cativando aquela parte deles que vos parecer que baste para

seu castigo e exemplo de todos, e daí por diante pedindo vos

paz lha concedais dando-lhe perdão, e isso será, porém, com

êles ficarem sujeição e vassalagem e com encargo de darem

em cada um ano alguns mantimentos para a gente da povoa-

ção e no tempo que vos pedirem paz trabalhareis por haver a

vosso poder alguns dos principais que foram no dito

alevantamento (em 1545, contra Francisco Pereira Coutinho)

e este mandareis por justiça enforcar nas aldeias donde eram

principais (Tapajós, 1966).

E assim, a partir da cidade recém-fundada, em-preendeu-se a conquista das terras do recôncavoda baía. Desencadeou-se uma guerra sem tréguascontra os Tupinambá, que os expulsou da sua terraou os escravizou para o serviço nos engenhos deaçúcar, que progressivamente iam se levantando.Essa guerra foi mais violenta depois da partida deTomé de Souza em 1553, com a vinda do seu su-cessor Duarte da Costa (1553-1558) e, depois dele,do terceiro Governador Geral Mem de Sá. Diziaeste, em seu Instrumento de Serviços, que tinhaachado a terra em guerra sem os homens ousaremfazer suas fazendas senão ao redor da cidade,pelo que viviam apertados e necessitados por nãoterem peças,4 e descontentes da terra. O jesuítaNóbrega concordava com o diagnóstico do gover-nador, ao afirmar que os colonos portugueses nãoousavam se espalhar pela terra para fazerem fa-zenda, mas viviam nas fortalezas, como fronteirosde mouros ou turcos sem povoar ou aproveitar se-não as praias (Pinho, 1941).

Nesse momento de apogeu do império manueli-no, a rede de feitorias implantadas estrategicamenteao longo da costa ocidental e oriental africanas, na

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12 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000

península arábica e na costa indiana, asseguravaaos portugueses o controle do fluxo das mercadori-as desse novo comércio. No entanto, não haviaperspectivas de uma territorialização desses domíni-os com desenvolvimento de colônias auto-sustenta-das. Na face arcaica do império manuelino, os portu-gueses mantinham também uma secular guerrasanta contra os mouros na costa marroquina. Confi-nados em fortalezas como Arzila e Marzagão, saíamem razias, interferiam nas guerras locais e aliavam-se a chefes locais dissidentes, sem,entretanto, conseguirem instalar-secontinuamente em território mouro.

(...) a prática do saque sistemático dos

campos limitou as possibilidades do es-

tabelecimento de zonas de “mouros de

pazes”, contrariando uma política defini-

da pelos reis portugueses. Assim, as

praças africanas acentuaram, com o

tempo, as suas características de insta-

lações militares com propósitos de con-

trolo do comércio marítimo da região,

agravando-se progressivamente o seu

alheamento face às regiões do interior

(Bethencourt, 1998, p.342).

Para Nóbrega, era preciso evitar que o portu-gueses se resignassem a implantar mais uma feito-ria forte, mais uma cidade sitiada. Era preciso, paraele, que os cristãos se estendessem terra a dentro,fizessem suas fazendas e criações, senhoreasseme despejassem todo o gentio e repartissem entre sios serviços dos índios que conseguissem conquis-tar e senhorear (Pinho, 1941).

E assim foi feito. Várias e cruentas foram asguerras de Mem de Sá: a guerra do Curupepa, aguerra de Jaguaripe, a guerra do Boca Torta, aguerra dos Ilhéus e a guerra do Peroaçu ou Para-guaçu. Ao final dos três primeiros governos gerais,as terras do recôncavo da baía já tinham sido apro-priadas pelos colonos e os seus antigos proprietári-os passaram a ser chamados de gentios. Muitosdestes foram expulsos para um raio superior de 40léguas do recôncavo, todas a tribos indígenas. Dosque foram subjugados, poucos sobreviveram aosprimeiros 20 anos de contato. “O balanço é real-mente chocante: as 40.000 almas que teriam sido

reunidas nas várias igrejas estabelecidas seriam,se muito, 3.500 no início da segunda metade doséculo XVI (Carvalho, 1998, p.50).”

E assim, a portuguesa baía de Todos os Santosvenceu a índia Kirimurê.

Paisagem de terras e águas

A Cidade do Salvador foi o centro urbano daBahia de Todos os Santos. Não é à toa que se con-

solidou na memória popular sua de-nominação como Cidade da Bahia.Nela se desenvolveram as ativida-des administrativas, eclesiásticas ede defesa, a construção e repara-ção de naus para a carreira da Ín-dia, a construção das embarcaçõespara a navegação dentro da baía eos serviços de apoio ao porto. Elafoi também o grande mercado des-te núcleo colonial. Foi o mercadoexportador e importador, foi o mer-cado de escravos, foi o mercadodos produtos de boca que alimenta-vam a cidade, as frotas e as popula-ções do próprio recôncavo da

Bahia. Em 1585, esse complexo urbano estava empleno funcionamento: o centro administrativo, os ar-mazéns, os fortes, as 62 igrejas, as 3 abadias, os 3estaleiros. A Bahia era a cidade do Rei, a corte doBrasil. Nela habitavam o bispo, o governador geral,o ouvidor geral e demais magistrados e funcionáriosreais. Bem abastecida de produtos alimentares, porela exportava-se o melhor açúcar de toda a costa doBrasil e as mais variadas e numerosas madeiras eplantas aromáticas.

A ocupação econômica do espaço constituídopela baía e seu entorno, desde a fundação da Ci-dade do Salvador, já delineava as teias deste com-plexo território da baía de Todos os Santos. Em1570, o cronista Pero de Magalhães Gandavo identi-ficou 18 engenhos em funcionamento. Segundo ele,

A principal onde residem os do governo da terra e a mais

da gente nobre, he a Cidade do Salvador. Outra está junto

da barra, a qual chamão Villa Velha, que foi a primeira

povoaçam que ouve nesta Capitania. (...) Quatro légoas

pela terra dentro está outra que se chama Paripe que tam-

O jesuíta Nóbregaconcordava com o

diagnóstico dogovernador, ao afirmar

que os colonosportugueses não

ousavam se espalharpela terra para fazerem

fazenda, mas viviamnas fortalezas, comofronteiros de mourosou turcos sem povoarou aproveitar senão

as praias.

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000 13

bém tem jurisdiçam sobre si como cada uma das outras.

Todas estas Povoações estam situadas ao longo de uma

bahia mui grande e fermosa, onde podem entrar seguramen-

te quaesquer náos por grandes que sejão; a qual he tres

légoas de largo, e navega-se quinze por ella dentro. Tem

dentro em si muitas ilhas de terras mui singulares. Divide-

se em muitas partes, e tem muitos braços e enseadas por

onde os moradores se servem em barcos para suas fazen-

das (Gandavo, 1980)

Em 1584, o jesuíta José deAnchieta indicava a existência de 40engenhos e o cronista Gabriel Soa-res de Souza atesta o funcionamen-to de 36 engenhos, a construção demais 4 e a existência de 8 casas decozer meles. Segundo Gabriel Soa-res, o transporte por via aquáticafuncionava muito bem. Podiam-secontar mais de 1.400 embarcaçõesem serviço dentro da baía.

E são tantas as embarcações na Bahia, por que se servem

todas as fazendas por mar; e não há pessoa que não tenha

seu barco, ou canoa pelo menos, e não há engenho que não

tenha 4 embarcações para cima; e ainda com elas não são

bem servidos (Souza, s.d., cap. XXXII).

Ao longo do século XVII os relatos de viajantesatestam a importância e o desenvolvimento da Bahiade Todos os Santos. Em 1610, Pyrard de Laval viuuma cidade bem edificada, exportadora de muitoaçúcar e muito bem abastecida em carnes e vege-tais do seu Recôncavo. Por isso transformou-se emalvo prioritário da cobiça da holandesa Companhiadas Indias Ocidentais. O cronista holandês GasparBarléu diz que, por volta de 1638,

“Também incitavam o Conde (Nassau) os diretores euro-

peus, apertando-o de contínuo para realizar a conquista da

Bahia, na qual levava a mira. Era ali, diziam eles, o principal

refúgio dos portugueses; era ali que se dava a máxima aten-

ção à resistência contra o invasor e à honra do rei da

Espanha; em nenhuma outra parte havia mais engenhos de

açúcar e presa mais rica; com aquela vitória poderia o Brasil

dentro em breve estar todo sujeito à Holanda, e nenhuma

outra cidade galardoaria mais dignamente os vencedores e

causaria mais danos certos ao adversário (Barléu, 1974).

Ao fim do século XVII , os relatos de Coréal(1685), Froger (1696) e William Dampier (1699) des-crevem uma cidade próspera, de comércio muitoabastado, intenso tráfico de escravos, bem abaste-cida pelo seu hinterland em gêneros alimentícios eem produtos de exportação. Dampier destaca o no-tável comércio:

(...) via-se na Bahia grande número de negociantes. Trinta

navios estavam fundeados no seu porto, guardados por duas

naus de guerra, exceptuando-se duas em-

barcações negreiras prontas para singrar

para Angola. Havia também uma grande

quantidade de barcos pequenos, de

cabotagem, constantemente a entrar e sair

do porto (UFBA, 1979).

No século XVIII, o núcleo daBahia de Todos os Santos, alémde exportadora dos açúcares edos produtos do Sertão, impõe-seentão como centro de escoamento

do ouro das Minas Gerais. Na História da AméricaPortuguesa, o cronista Sebastião da Rocha Pitadescreve a riqueza deste antigo núcleo colonial.

Na Cidade do Salvador, nos anos vinte dos setecentos, con-

tavam-se seis mil fogos e vinte e oito mil vizinhos capazes de

Sacramentos, qualificada nobreza e luzido povo. (...) a Se-

gunda cidade em importância do Império Português, só su-

perada por Lisboa.

O comércio que lhe resulta dos seus preciosos gêneros e da

frequência das embarcações dos portos do reino, das outras

conquistas, e das mesmas províncias do Brasil, trocando

umas por outras drogas, a faz uma feira de todas as merca-

dorias, um empório de todas as riquezas e o pudera ser de

todas as grandezas do mundo , se os interesses do Estado e

da monarquia lhe não impedira a navegação com as nações

estrangeiras (UFBA, 1979).

O seu Recôncavo é tão culto e povoado, que se lhe descre-

verá as fábricas e lhe numerármos os vizinhos, gastaríamos

muitas páginas e não, poucos algarismos; porém reduzindo

a sua narração e breves cláusulas e letras, diremos que

existem nele cento e cinquenta engenhos, uns de água, ou-

tros de cavalos, fazendo cada ano e um por outros, quinze e

dezesseis mil caixas de açúcar de muitas arrobas cada uma,

além de inumeráveis feixos e caras. (...) Há muitas casas de

cozer os meles para os açúcares batidos, outras para os re-

No século XVIII,o núcleo da

Bahia de Todos osSantos, além deexportadora dos

açúcares e dos produtosdo Sertão, impõe-seentão como centro

de escoamento do ourodas Minas Gerais.

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14 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000

duzir a águas ardentes. Descobrem-se dilatados campos

plantados de tabacos, vários sítios ocupados por mandio-

cas, outros cultos com pomares e jardins. De todo o gênero

de artífices há mestres e oficiais, de que aqueles moradores

se servem, sem os mandar buscar na cidade. O número das

pessoas que habitam o recôncavo, onde reside a maior par-

te da nobreza, os trabalhadores, os escravos que andam no

serviço dos engenhos, das canas das outras lavouras, e os

que servem nas casas, excede o cômputo de cem mil almas

de confissão, além dos que não são capazes de Sacramen-

tos (Pita, 1976).

No começo do século XIX, o viajante francêsTollenare emociona-se com a paisagem da baía deTodos os Santos.

A vista da Baía de Todos os Santos é uma das mais belas

que se pode contemplar; julgo-a superior à do Tejo; é tanto

ou mais ainda extensa, e todavia os planos se apresentam

muito mais distintos.

A costa do continente corria quase de N.E. para S.O; para pe-

netrar na baía urge dirigir-se inteiramente para o Norte. À direita

está o cabo de Santo Antonio, na extremidade do qual se eleva

uma forte e um farol. O cabo é formado pelo flanco de monta-

nhas escarpadas de umas 200 toesas de elevação, todo cober-

to de verdura e de casas de campo. À esquerda está a bela ilha

de Itaparica, com seis léguas de comprido e duas de largo, cujo

terreno montanhoso e arborizado se presta a todas as culturas;

contém vários povoados e numerosos estabelecimentos agrí-

colas. O canal que separa a ilha do cabo tem apenas duas lé-

guas; dalí o olhar abarca quase toda a extensão da baía, que

tem pelo menos vinte léguas em volta, e na qual despejam inú-

meros rios, de margens pontilhadas de povoados e algumas ci-

dades importantes (Tollenare, 1956).

Em 1838, quando a Bahia já não mais era partedo Império Português, tornando-se então uma dasprincipais províncias do Império do Brasil, o viajan-te francês Ferdinand Denis retrata com detalhesesse complexo socioeconômico em funcionamen-to. Vê primeiramente as terras produtivas do entor-no da baía:

Mas, sem contradita, o melhor terreno da comarca é o que

se designa pelo nome de Recôncavo; e assim se chama

uma porção de superfície de seis léguas de largura, que ro-

deia, em quase toda a sua extensão, a magnífica baía , de

que a província teve o nome, ela pode ter trinta léguas de cir-

cuito. É ali que se estabeleceram, desde há três séculos,

vastos engenhos de açúcar e fazem-se grandes culturas de

tabaco, que tornarão sempre esta região do Brasil a mais

opulenta do Império. Um solo negro, que os habitantes co-

nhecem pelo nome de massapê, e cuja fertilidade, tornada

proverbial, parece inexaurível, é o que principalmente se re-

serva à cultura da cana de açúcar (Denis, 1980).

Além das terras da Bahia, percebe também aimportância de suas águas como elemento centraldeste território.

Mas se o território se presta assim a todos os esforços da

agricultura, se raros são os gêneros coloniais que ali não

prosperam, também nenhuma região é mais própria para

sua exportação. A Baía de Todos os Santos é um grande

lago, cujas águas vão procurar junto das habitações os ricos

produtos que ali se obtêm; e se as ditas águas não banham

toda a extensão do Recôncavo, pequenos rios navegáveis

descem do interior e formam outros tantos canais naturais ,

que diariamente trazem um novo tributo de abundância ao

porto que os recebe (Denis, 1980).

Vários são os pequenos rios como o Vermelho,Sergipe, Jacaraí, Pirajá, Matuim, Pitanga, Paranami-rim, por onde circulam canoas e lanchas carregadasde cocos, cordoalhas de piaçava, tabaco e açúcar.Subindo o caminho das águas doces do rio Para-guaçu, o maior afluente dessa baía, constitui-se umterritório interiorano desta Baía de Todos os Santos.

Mas, entre Itaparica e a Ilha dos Frades, há um espaço cuja

extensão a vista não pode medir; é lá, na distância, que se

agrupam barcos mais numerosos, e onde parecem cortar as

águas mais vagarosamente ; quase todos vêm da populosa

cidade de Cachoeira e desceram o Paraguaçu. O Paragua-

çu é o mais considerável da Baía de Todos os Santos; é a

fonte perpétua de abundância; e, sem embargo de sua pou-

ca extensão, mais importante, comercialmente falando, do

que muitos rios da América. O Paraguaçu tem as suas nas-

centes na vizinhança da Serra da Chapada, limite da vila

central de Contas; recebe uma multidão de tributários pouco

consideráveis, e forma uma grande cascata quando é obri-

gado a transpor uma parte da Serra de Sincurá; recebe o

Uná, cujas águas são abundantes, forma uma segunda cas-

cata, e, depois de ter passado pelas cidades de Cachoeira e

Maragogipe, entra sossegadamente na baía, junto do meio

da costa ocidental, depois de banhar uma das mais abun-

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000 15

dantes regiões do Brasil, se não a mais bem cultivada

(Denis,1980).

Alguns anos depois da visita de FerdinandDenis, em 1842, o território ampliado da Baía deTodos os Santos recebeu importante alento com adescoberta do diamante na Serra do Sincurá. O de-senvolvimento das lavras diamantinas fará renome-ar toda essa área interior de Chapada Diamantina.

Qual um viajante estrangeiro, no século XX, ahistoriadora Katia Mattoso constróiuma descrição maravilhada destemar interior, que resume poetica-mente as várias descrições desteterritório da Baía:

A baía de Todos os Santos é um mar in-

terno para saveiros e canoeiros, canoas

e tábuas, jangadas e balcões de todo

tipo que raramente se aventuram a pas-

sar da perigosa barra que os separa do

oceano sem limites, “Mar Grande” das

poderosas e grandes embarcações. A

cada um sua tarefa: naus, fragatas, na-

vios e bergantins vindos de além das

Ilhas, podem desprezar a barra e trazer

da Europa, da África e da Ásia, suas “peças” de ébano, seus

produtos de luxo, mas são os marinheiros do Recôncavo

que garantem a subsistência diária e as trocas de todos os

dias. Marinheiros de um mar interno quase tão impetuoso

como o seu irmão, Oceano, marinheiros de rios mais calmos

que se afundam como dedos para o interior das terras,

amam os cais de sua cidade, as praias de sua baía. Pesca-

dores ou transportadores de bens, conhecem as inúmeras

riquezas de sua terra e sabem das traições de suas águas,

de seus céus. Vivem do ritmo próprio dessas terras internas

das quais conhecem a imensidão e as necessidades. São os

irmãos do roceiro que planta a mandioca de seu sustento, ou

o açúcar, o tabaco, o café e o algodão de seus fretes. Bahia

e seu Recôncavo, de águas e terras molhadas por nevoeiros

marinhos, são a boca atlântica de terras imensas que por ela

respiram (Matoso, 1978, p.61).

As saídas da baía

Esse sistema da baía, desde o século XVI nãose fechava em si mesmo. Era de sua vocação estar

aberto para o mercado mundial que se estabeleceua partir da expansão européia. Era na verdade, dolado ocidental do Atlântico, o porto seguro, o nú-cleo de apoio necessário à ligação das rotas maríti-mas portuguesas, ao tráfico para a África e,posteriormente, à carreira das Índias.

Para a preferência dada à Baía contribuíram, entre outros

factores, o seu estatuto de sede política e administrativa da

colónia, uma maior proximidade do reino do que os portos

mais ao sul e a facilidade de contactos com

a África Ocidental. É do francês Charles

Dellon, que viajou, em 1676, de Goa até a

América portuguesa, antes de chegar a Lis-

boa, a informação de que o porto brasileiro

da Baía era, de entre todos do Brasil, o que

apresentava melhores condições (Carva-

lho, 1998, p.154).

Na verdade, o porto da Baíaimpôs-se como escala na Carreirada Índia, apesar das proibiçõesformais aos capitães das naus deque fizessem escala no porto doBrasil. Apavorava o Conselho daFazenda a possibilidade de con-

trabandos e descaminhos das preciosas especiari-as orientais. Em 1635 esse conselho assim proibiaas escalas atlânticas às naus da Carreira da Índia:

E q para não tomar porto em Angola, Santa Elena, Brazil, e

Ilhas, convem trazerem as naos m.to mantim.nto e m. agoa

em boas vasilhas porq. Por falta das dittas cousas nace

tomarense os dittos Portos; quando não suçeder como

alguas vezes acontesse, por Cazos fortuitos, de desapare-

lho, ou de desastre, q acontesse à não, com q não, pode se-

guir a viagem sem conserto (Lapa, 1968, p. 9).

Exatamente por esses casos fortuitos os capi-tães desobedeciam a essas instruções e aqui ar-ribavam regularmente para aguada, para repa-ros, para reanimação da tripulação e para algumcomércio. Registraram-se então, durante os sé-culos XVI, XVII e XVIII, 254 escalas documenta-das de naus portuguesas no porto da Bahia. Por-to alternativo na Carreira da Índia, a Bahiaafirmou-se no entanto como o porto do Brasil, ca-beça de um sistema atlântico, que se afirma no

Esse sistema da baía,desde o século XVI

não se fechavaem si mesmo.

Era na verdade,do lado ocidental

do Atlântico, o portoseguro, o núcleo deapoio necessário àligação das rotas

marítimas portuguesas,ao tráfico para a África

e, posteriormente,à carreira das Índias.

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16 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000

século XVII com a reconquista de São Paulo deLuanda por Salvador Correia de Sá e sua gentebrasileira. O Atlântico Sul torna-se um mar portu-guês por onde flutuaram açúcares, escravos eoutras riquezas (Alencastro, 1998).

Para o desconhecido interior do Brasil o cami-nho estava também sendo aberto. Trazia Tomé deSouza em seu regimento a recomendação expres-sa de descobrir os sertões.

Porque haverei por muito meu serviço

descobrir-se o mais que puder ser pelo

sertão a dentro da terra da Bahia, vos en-

comendo que tanto que houver tempo e

disposição para se bem poder fazer,

ordeneis de mandar alguns bergantins

toldados e bem providos do necessário

pelos rios de Peraçu, de S. Francisco,

com línguas da terra e pessoas de confi-

ança, que vão por os ditos rios acima o

mais que puderem à parte do oeste, e de

como os puseram façam assentos autên-

ticos, e assim dos caminhos que fizerem e

de todo o que acharem do que nisto

fizerdes e o que suceder me escrevereis

miudamente (Tapajós, 1966).

Mais forte do que as ordens reais e do que a cobi-ça de aventureiros, a própria dinâmica de crescimen-to do núcleo colonial da Bahia impôs as primeiras di-retrizes da interiorização da conquista portuguesa.Um primeiro elemento decisivo para a entrada nos in-teriores foi a necessidade de abastecimento alimen-tar para o expressivo contingente populacional que seconcentrava naquele complexo assentamento colonial.Já em 1585, somente a população da cidade daBahia contava 3.000 portugueses, 8.000 índios cris-tãos e 4.000 escravos da Guiné. Acrescente-se aessa população urbana os contingentes de escravose livres empregados nos 40 engenhos e plantaçõesde cana e os tripulantes dos 1.400 barcos e canoas epoderemos estimar em quase o dobro essa popula-ção para o conjunto da Bahia de Todos os Santos.

Alimentar toda essa população estava acimadas possibilidades da prática portuguesa de esta-belecimento do rocio em volta das vilas levantadaspara a produção alimentar. As primeiras áreas derocio da recém-fundada cidade foram imediata-

mente inibidas pela concessão de sesmarias su-burbanas. Também o celeiro do recôncavo da baía,com a sua farinha de mandioca de cada dia, suasfrutas e seus peixes, não bastava. O desenvolvi-mento da pecuária extensiva na primeira grandesesmaria concedida a um pajem de Tomé de Sou-za, de nome Garcia D’Ávila, que ia do litoral ao nor-te da cidade até os sertões do atual estado doPiauí, respondeu a essa demanda local de proteína

animal e de força motriz para osengenhos e para os transportes,especialmente em terrenos comoo massapê do recôncavo da baía.Estava aberta a conexão com osertão, desse sistema da baía deTodos os Santos.

O território das águas

O espaço da baía, continuidadede terras e águas, tornou-se o terri-tório do núcleo colonial graças àutilização de uma tecnologia portu-guesa que se desenvolveu ao lon-go do processo de expansão marí-tima e que conjugava o que havia

de mais avançado na Europa renascentista(Nicolas,1998). Os seus elementos dinâmicos eram:

• o engenho de açúcar, que fizera um longo ca-minho experimental desde a ilha de Creta, passan-do pela Sicília e consolidando-se nas ilhas atlânti-cas portuguesas (Mauro, 1960);

• as técnicas de construção naval e a arte de na-vegação testadas nos descobrimentos atlânticos.

O engenho de açúcar, unidade agro-industrialmais complexa à sua época, encadeava outras ati-vidades ao seu dinamismo. A montante, além dofornecimento de animais de tiro e de corte, consu-mia mão-de-obra escrava indígena e africana, cons-tituindo uma atividade sertanista permanente de guer-ra justa ou de outros ardis para a destruição dealdeias do interior, e alimentando potentemente otráfico transatlântico de escravos secularmentepraticado pelos portugueses. O engenho era tam-bém um voraz consumidor de combustível vegetalfornecido pela derrubada das matas para além dorecôncavo da baía e nas áreas menos densamenteexploradas como o Recôncavo sul. A jusante, ali-

O desenvolvimento dapecuária extensiva na

primeira grande sesmariaconcedida a um pajem deTomé de Souza, de nomeGarcia D’Ávila, respondeu

à demanda local deproteína animal e de forçamotriz para os engenhos

e para os transportes.Estava aberta a conexão

com o sertão, dessesistema da baía deTodos os Santos.

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000 17

mentava todo um setor de construção e reparaçõesnavais que assegurava tanto o transporte internoquanto externo do produto final, o açúcar. No interi-or pois, desse sistema da baía, enraizou-se umprecoce complexo agroindustrial açucareiro, cujodinamismo assegurou a coesão desse núcleo colo-nial seiscentista (Schwartz,1988).

Poderoso em terra firme, o engenho do Recôn-cavo, unidade exportadora, precisava do espaço lí-quido da baía por onde flutuavam os “territórios am-bulantes” dos milhares deembarcações aqui construídas, in-corporando uma tecnologia deconstrução naval portuguesa. Noterritório da baía reuniram-se condi-ções favoráveis para o desenvolvi-mento de uma indústria naval queproduziu os grandes navios para aCarreira da Índia e os pequenos na-vios adaptados à navegação interiorda baía. Segundo Gabriel Soaresde Souza, aqui se encontravamcom facilidade o braço escravo, asmadeiras de qualidade e de fácil acesso, as ferra-gens que se podiam fabricar facilmente nos enge-nhos, a casca da embira para a calafetagem, as ma-deiras para os mastros, a resina do camaçari parasubstituir a cola (Mauro, 1960). O sucesso desse es-taleiro colonial, grande consumidor de braços e ma-deiras, logo despertou a oposição dos senhores deengenho, vorazes consumidores também de madei-ras e de braços escravos (Lapa,1968).

A utilização da força eólica na tração das em-barcações trazidas pelos navegadores portuguesesrevolucionou a tradição indígena. As jangadas e ca-noas cavadas nas cascas de sucupiras, sem ban-cos e sem velas, ganharam várias armações deaparelhos vélicos para se tornarem operacionaisno transporte de pequenas cargas e passageiros.Surgiram as pequenas canoas com velas de espi-cha, as velozes canoas de passageiros com umavela latina e as resistentes canoas de pesca que,quando armavam uma grande vela e mezena deproa lembravam as galeras do século XVII. À tec-nologia indígena e portuguesa veio somar-se a tec-nologia africana das canoas de navegação no RioCongo, principalmente no formato do casco e natécnica de sua construção (Selling, 1976).

Descendentes da velha caravela latina portu-guesa, desbravadora das costas d´África, surgiramna Bahia os vários tipos de saveiros: o valentesaveiro de vela de pena, bom para a pesca; osaveiro do Morro de São Paulo, bom de carga; opequeno saveiro de tráfego de Salvador, outrorautilíssimo no transporte de pequenas cargas e pas-sageiros entre os bairros da cidade. Surgiu atémesmo o pequeno saveiro do dique, construídopara o transporte no dique do Tororó. Descenden-

tes das caravelas redondas são osgrandes barcos e lanchas do Re-côncavo, embarcações capazesde transportar cargas importantes,inclusive as caixas do preciosoaçúcar nos tempos da colônia(Agostinho,1973).

Das antigas alivadoiras do Tejodescenderam as alvarengas, pe-quenas embarcações emprega-das no transbordo de mercadoriasentre os grandes navios e o anco-radouro. Povoavam ainda a baía

as compridas baleeiras, algumas de ascendênciabiscainha. Para o transporte e passeio, utilizava-sea galeota, pequena embarcação a vela e remos,ainda usada na Procissão do Senhor dosNavegantes. Foram surgindo posteriormente os ia-tes e as escunas que ainda hoje passeiam os turis-tas pela baía de Todos os Santos (Selling,1976).

Toda essa variedade de veleiros da Bahia docu-menta a adaptação das técnicas construtivas e dasartes náuticas portuguesas à navegação no mar in-terior deste território da baía. Assim, com as em-barcações apropriadas para cada uso, era possívelassegurar um transporte seguro, extremamente ba-rato e acima de tudo regular, posto que era possí-vel ir e voltar de Salvador ao Recôncavo, no mes-mo dia, aproveitando o vento terral e a viração.

Além do engenho e da navegação, os descobri-dores trouxeram consigo uma antiga experiênciade controle do tráfico de escravos africanos. Em1442, quando Antão Gonçalves desembarcou osprimeiros escravos em Lagos, no Algarve, e encan-tou o Infante D. Henrique com as possibilidadesdesse comércio, o tráfico de escravos africanospassou a ser um dos ramos mais lucrativos dogrande empreendimento das navegações. Desde

No território da baíareuniram-se condições

favoráveis para odesenvolvimento de

uma indústria naval queproduziu os grandes

navios para a Carreirada Índia e os pequenos

navios adaptados ànavegação interior

da baía.

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18 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000

então foi implantada, na Costa d´África Ocidental,uma rede de feitorias negreiras: em 1455, Arguim,na costa da atual Mauritânia; depois Cachéu, naGuiné; em 1466, Afonso V concedeu o monopóliodo tráfico da Guiné aos habitantes de Cabo Verde;São Jorge da Mina, em 1482; em 1486, Diogo Cãofundou a feitoria no antigo reino do Benin. No mes-mo ano, criou-se em Lagos, no Algarve, a Casados Escravos, com a finalidade de controlar e tribu-tar os escravos africanos entrados em Portugal.

No século XVI ampliou-se arede de feitorias com São Tomé eSão Paulo de Luanda e, no séculoXVII, depois das guerras holande-sas, completou-se essa rede com ocontrole por Pernambuco, Bahia eRio de Janeiro, do tráfico proveni-ente de Angola (Miller,1999). Intro-duzidos maciçamente na Bahia apartir da fundação da cidade, os es-cravos africanos passaram a seconstituir em mão-de-obra para to-dos os ofícios terrestres e maríti-mos e o seu comércio externo e in-terno, de tão lucrativo, terminou porfazer desta baía um dos centrosmais ativos de tráfico de escravosaté a abolição da escravidão em1888. O porto negreiro trazia tran-qüilidade aos plantadores de canae de senhores de engenho que estavam sempreabastecidos de mão de obra e prosperidade para apraça comercial de Salvador.

Mais uma vez a tecnologia de construção e apa-relhamento de veleiros transplantada pelos portu-gueses adaptou-se às necessidades do sistema dabaía de Todos os Santos, sendo responsável peloconstante aperfeiçoamento, até 1851, do navio ne-greiro, aquele navio que os viajantes percebiam alonga distância: alta mastreação e maior espaçovélico para aumentar a velocidade em alto mar e,portanto, as possibilidades de escape à persegui-ção da Royal Navy; casco bojudo, para aumentar oespaço para mais passageiros forçados; quilha ar-redondada, de modo a permitir o acesso às águasrasas da Costa d´África e dos ancoradouros no in-terior da baía de Todos os Santos. Ainda em 1846,os traficantes de escravos da Bahia vangloriavam-

se dos seus navios negreiros, finos veleiros quepermitiam aos navegadores experientes escaparde qualquer vigilância (Araújo, 1999). A interrupçãodessa navegação só veio a se efetivar a partir de1850, quando a Royal Navy destacou pela primeiravez as modernas fragatas a vapor para o combatedos veleiros baianos nos dois lados do Atlântico.

Engenho, navegação e escravidão constituíram abase técnica e econômica que permitiu a espacializaçãoduradoura de um conjunto de relações socioculturais que

conformaram a própria identidade daBahia como capitania colonial e pro-víncia imperial.

Tempos heróicos

A coesão desse sistema foi du-ramente testada até a primeirametade do século XVII durante asguerras holandesas. Já em 23 dedezembro de 1559 a cidade foi ata-cada por uma esquadra comanda-da por Hartman e Broer. Em 20 dejulho de 1604, por uma esquadracomandada por Paulus VanCaarden, que foi repelido pelas de-fesas da cidade e pôs-se a saque-ar aldeias e engenhos mais próxi-mos. Em 6 de maio de 1624,apareceu diante de Salvador uma

frota de 17 navios comandada pelo almirante JacobWillekens, às ordens da Westindische Compagnie e dosEstados Gerais das Províncias Unidas. A cidade foiocupada por uma força de 3.000 soldados, coman-dados pelo coronel Jean Van Dorth. Sitiados na ci-dade pelos portugueses mobilizados e acantona-dos no recôncavo, os holandeses foram finalmenteexpulsos em abril de 1625.

Em 1627, uma esquadra comandada por PietrHeyn, após assediar a cidade do Salvador, passoua atacar engenhos do recôncavo, sendo derrotadanas embocaduras dos rios Matoim e Pitanga. Em1638, o príncipe Maurício de Nassau, governadorde Pernambuco, comandou pessoalmente um ata-que à Cidade do Salvador. Apesar dos recursos porele mobilizados, 31 navios e 4 mil homens, sofreupesada derrota diante das portas da cidade. Em1640, para vingar-se da derrota sofrida, Nassau

Além do engenhoe da navegação,

os descobridorestrouxeram consigo

uma antiga experiênciade controle do tráfico.Os escravos africanos

passaram a se constituirem mão-de-obra para

todos os ofíciosterrestres e marítimos

e o seu comércio externoe interno, de tão lucrativo,terminou por fazer desta

baía um dos centros maisativos de tráfico de

escravos até a aboliçãoda escravidão em 1888.

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.10-23 Março 2000 19

despachou para a Bahia uma força de 20 navios e2.500 soldados, comandados por Lichthardt, queincendiou 28 engenhos no interior da baía de To-dos os Santos.

Em 1646, Nassau compreendeu que a força daBahia era exatamente a coesão do sistema da baíade Todos os Santos. Juntamente com Sigmund vonSchope estabeleceu um plano visando desarticularo sistema, instalando uma base na ilha de Itapari-ca, no interior da baía, de onde esperava cortar asligações entre a cidade e o recôncavo. Em feverei-ro de 1647, uma expedição holandesa formada por2.400 homens e 26 navios instalou-se em Itaparicae durante um ano enfrentou a guerrilha anfíbia dosbaianos. O resultado foi uma definitiva derrota ho-landesa, que perdeu dois terços dos seu contin-gente. Um ano depois, em 1648, Von Schoppe vol-tou à Bahia para uma operação de vingança,incendiando alguns engenhos, sem nenhuma chancede vitória (Araújo, 1992).

Já nos estertores dos tempos coloniais e emer-gência do Brasil Independente, a coesão do sistemada baía foi mais uma vez testado. A crescente dife-renciação de interesses entre a nobreza da terra, ossenhores de engenho do fundo da baía, e os gran-des comerciantes portugueses monopolistas da Ruada Praia, terminou rompendo a coesão do sistemae, por isso, veio a guerra. No conflito que durou defevereiro de 1822 a julho de 1823, os senhores dasvilas do Recôncavo dominaram a baía e, no seu in-terior, inviabilizaram a esquadra de João Félix, inca-paz de enfrentar as centenas de barcos dorecôncavo artilhados. Os portugueses e seu generalMadeira controlaram a Cidade de Salvador e seuporto, impedindo que qualquer embarcação alcan-çasse o Oceano. Era o bloqueio mútuo: nem abaste-cimento alimentar do interior para os portugueses,nem a exportação de açúcar para os independentes.

Apesar das vitórias terrestres dos independen-tes do Recôncavo, a guerra resolveu-se somentequando entrou em operação a pequena porém ati-va esquadra brasileira comandada por Crochrane.A esquadra portuguesa começou a sofrer perdasno mar aberto e o comandante Madeira percebeuentão que mais dia menos dia os brasileiros furari-am o bloqueio imposto à baía. Estava estrategica-mente derrotado. Esse foi o sinal para a retirada do1o de julho de 1823 (Araújo, 1992).

Ainda duas vezes a coesão desse sistema geo-histórico foi testada. Em 1824, por ocasião do le-vante do Batalhão dos Periquitos, o governo pro-vincial foi expulso de Salvador. Retirou-se para ofundo do Recôncavo e de lá sitiou os republicanos,derrotando-os em seguida. Em 1838, por ocasiãoda Revolução denominada Sabinada, os perus im-periais recolheram-se ao Recôncavo e sitiaram osraposas federalistas na Cidade do Salvador. Atéque os revolucionários esperaram o socorro de umaesquadra americana que jamais saiu dos EstadosUnidos... A reconquista da cidade foi inevitável.

Nos trilhos do vapor

Esse território colonial sofreu importantes aba-los em sua conformação interna em decorrência deimportantes mudanças sociais, econômicas e tec-nológicas ocorridas na segunda metade do séculoXIX. O antigo equilíbrio entre os engenhos do fun-do da baía e a cidade-porto de Salvador altera-seprogressivamente em favor de uma centralidade donúcleo urbano, que, portanto, não pode prescindirdo antigo espaço líquido como seu umbigo, a partirdo qual constrói solidamente o espaço regional daProvíncia e, depois, do Estado da Bahia.

O fim do tráfico africano, a partir de 1851, provo-cou mudança fundamental na cultura do fumo norecôncavo da baía. Atrelada como sempre à agro-indústria açucareira na condição de produtora deuma mercadoria-moeda no tráfico de escravos, es-pecializara-se na produção do fumo negro, de aro-ma e sabor fortes, acondicionado em rolos embebi-dos em melaço de cana, muito apreciado na Costad’África para pitar e mascar. Afastada então domercado africano, essa cultura foi objeto de intensi-vos investimentos de casas comerciais hambur-guesas e bremenenses, importadoras de fumo, quefinanciaram a substituição do antigo fumo de rolopelo fumo aromático para a produção de charutos,conforme o gosto de consumidores europeus. Es-tes mesmos investidores terminaram por instalarimportantes fábricas de charutos no fundo da baía,nas cidades de Cachoeira, São Felix, Muritiba eMaragogipe, que se transformaram, ao longo dasegunda metade do século XIX, na atividade agro-industrial mais importante da província(Borba,1978). Estava assim quebrada a

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centralidade da agroindústria açucareira nas terrasao redor da baía.

A abolição da escravidão ocorrida em 1888 jo-gou a última pá de cal sobre essa agroindústriaaçucareira colonial centrada no engenho de açúcar.O atestado de óbito dessa nobreza sacarina foipassado pelo escritor saudosista Xavier Marques:

No ano de 1900 já eram anacrônicos os tipos de senhor e

senhora-de-engenho com os principelhos desocupados e

pródigos e os séquitos de lacaios e

mucamas que lhe compunham a nu-

merosa famulagem. As fazendas despo-

voadas, os solares desabitados e sotur-

nos, os engenhos convertidos em

ninhos de morcegos e depósitos de fer-

ragem velha, abrolhadas de mato ras-

teiro e capim de Angola as terras que

foram luxuriantes partidos, tudo atesta-

va o fim de uma época.

Doze anos apenas, a contar da abolição

da escravatura e da imediata fundação

da República, foram bastantes para li-

qüidar os remanescentes da rica e po-

derosa classe. Mortos os grandes proprietários, o intenso

movimento abolicionista provou a incapacidade dos herdei-

ros para arcarem com a crise da lavoura e da indústria saca-

rina. Uma e outra soçobraram com a escravidão.

Os aspectos da vida eram profundamente estranhos aos

poucos, já envelhecidos, que conheceram um regímen por

eles julgado a forma definitiva e única legítima de coexistên-

cia social. Para estes já não havia glória em viver. Tudo era

tristeza, vergonha, decadência (Marques, 1982. p.111)

A diversificação das atividades produtivas noentorno da baía de Todos os Santos fez surgir “vári-os recôncavos” produtores de fumo e charutos, deartigos alimentares, de açúcar de usina para oabastecimento interno, de peixes e mariscos para omercado de Salvador. Agora, o velho sistema denavegação interna passou a assegurar sozinho acoesão deste território da baía, principalmente pelaincorporação da tecnologia da navegação a vapore pela implantação das estradas de ferro.

A introdução da navegação a vapor pela Com-panhia de Navegação Bahiana, além de atender aotransporte de mercadorias e passageiros para ocada vez mais rico litoral sul do estado, implantou

linhas no interior da baía que integraram o porto deSalvador aos portos da baía, e estes à malha decaminhos terrestres que interligavam todo um es-paço econômico regional baiano.

A Linha de Santo Amaro era quase exclusivamente de pas-

sageiros e servia a região do Agreste baiano (Alagoinhas,

Purificação, Inhambupe e Feira de Santana) pois Santo

Amaro desempenhava o papel de ponto de ligação entre o

litoral e o interior.

Na Linha Cachoeira-Maragogipe eram uti-

lizados principalmente vapores de carga,

pois a cidade de Cachoeira mantinha rela-

ções com todo o sertão do Oeste. De

Cahoeira saíam os caminhos para Feira,

Caetité, Lençóis, Barra do Rio de Contas e

era dali que partiam as tropas para Currali-

nho, Tapera, Jacobina, Monte Alto e Urubu.

A Linha Nazaré-Valença-Caravelas liga-

va à capital importantes cidades. A primei-

ra, Nazaré, era produtora de farinhas

(mandioca); Valença, a segunda, fazia fi-

gura de cidade industrial com sua manufa-

tura de tecidos, fundada em 1844.

Finalmente, a terceira, Caravelas, era conhecida como

grande produtora de farinha, de feijão e de algodão

(Mattoso, 1978. p. 74)

Esse mar interior continuou sendo o grande cír-culo a partir do qual se irradiaram todas as linhasde transporte ferroviário que foram sendo criadas eprolongadas da segunda metade do século XIX atéa primeira metade do século XX. A articulação en-tre o Vapor de Cachoeira, o navio de Nazaré dasFarinhas e as estradas de ferro de Nazaré e Cen-tral da Bahia, fizeram da baía de Todos os Santosum trajeto obrigatório nas rotas que ligavam Salva-dor aos sertões mais longínquos. Do porto de Sal-vador, os caminhos de ferro levavam a Juazeiro, oporto do São Francisco. Do porto da Cachoeira, ia-se a Minas Gerais. Do porto de Nazaré, chegava-se até Poções. Das pontas de trilho partiam as ca-valhadas em que os caixeiros-viajantes das grandescasas comerciais de Salvador levavam os mostruá-rios das novidades européias aos compradores docentro do Brasil. Da Westphalen Bach & Krohn ex-traímos o seguintes relato:

Importantes fábricas decharutos foram instaladas

no fundo da baía, nascidades de Cachoeira,São Felix, Muritiba eMaragogipe, que se

transformaram, ao longoda segunda metade do

século XIX, na atividadeagroindustrial mais

importante da província.

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Em 1895 fizemos a primeira viagem ao sertão, com animais

alugados, às zonas de Juazeiro, Jacobina e Morro do Cha-

péu. Praças estas ainda não ligadas por estradas de ferro, e

foi bem interessante, como os viajantes de casas congêne-

res procuravam desanimar nosso empregado, pintando as

dificuldades e perigos de tais viagens com as tintas mais ne-

gras. Tais desavisos ficaram, naturalmente, sem efeito. A

segunda viagem, para as Matas e a Chapada, em princípios

de 1896, já se fez com cavalhada própria, comprada na Fei-

ra de Santana. Seguiram outras a Jequié, Conquista, Forta-

leza e Teófilo Otoni, ao Norte de Minas, às Lavras, à

Chapada, a Caetité, Monte Alto e Condeúba, e ao São Fran-

cisco até Grão Mongol e Montes Claros, possuindo a casa

finalmente quatro cavalhadas com 80 animais.

(...)

Com a boa fama que a firma adquiria pelo seu sortimento

variado e suas fantasias (1912), vinham-nos fregueses do

centro de bem longe. Ficamos bem contentes, estendendo o

raio de vendas até os rios Paracatu, Parnaíba, Tocantins,

Araguaia e Xingu. Tivemos até fregueses que levavam sorti-

mentos completos Rio Preto acima até Mato Grosso, ven-

dendo as mercadorias em troco de borracha que conduziam

à capital do Pará uma vez por ano, voltando depois à Bahia

para igual viagem circulatória (Westphalen Bach & Krohn,

1928, p. 50 e 65).

A navegação do Rio São Francisco e afluentespermitiu que se fechasse um grande circuito de co-mércio regional, popularmente chamado de viagemredonda, definidor de um novo espaço econômicona Bahia Republicana. Em 1950 esta viagem re-donda era ainda operacional e deixa até hoje sau-dades ao empresário Norberto Odebrecht:

O porto está aqui (Salvador), você descarrega e leva para o

interior. Navio não pode ir para o interior, tem que ser cami-

nhão, tem que ser ferrovia. Você vê que as concepções do

século passado eram corretas: tinha um porto e tinha ferrovi-

as com destinos. Por exemplo, tinha uma ferrovia que che-

gava em Pirapora (saindo de Cachoeira) e outra que era de

Salvador a Juazeiro, e o resto o São Francisco completava

normalmente. Você fazia o circuito (Araújo, 1999, p.117).

Quase tudo passava pelas águas da Bahia, tan-to as pessoas e mercadorias da grande viagem re-donda, quanto aquelas das pequenas viagens dospróximos recôncavos. Segundo depoimento do jor-nalista João Falcão, ainda em 1940 vinha-se, de

trem, de Feira de Santana, pernoitava-se em Ca-choeira e embarcava-se no dia seguinte no Vaporde Cachoeira, para chegar finalmente em Salvador(Araújo, 1999).

A tradicional navegação a vela continuou cum-prindo o seu papel multicentenário de transporta-dor de pessoas e víveres, abastecendo a Cidadedo Salvador e animando o antigo Mercado Modeloe sua rampa. Assim, mesmo amputado de um dosseus elementos organizadores, o engenho de açú-car, o sistema da baía de Todos os Santos a tudoresistiu, adaptou-se às novas limitações, encolheu-se, empobreceu-se como um todo, mas manteve acoesão interna, a articulação entre a capital Salva-dor, o recôncavo da baía e os interiores da provín-cia, deixando de ser “o sistema” organizador daBahia, mas, ainda assim, resistindo como um terri-tório intermediário entre a capital e os interiores,secundário mas necessário.

Adeus baía

O tempo da tecnologia do petróleo, após 1945,não poupou o território da baía. A descoberta dopetróleo em terras dos seus recôncavos terminoupor despedaçar o que restava de solidariedade ede identidade nesta região ribeirinha da baía. A im-plantação, em larga escala, da extração e do refinodo petróleo e todo o dinamismo por eles geradodefiniram um recôncavo petrolífero, integrado noprocesso de desenvolvimento nacional, e excluíramos recôncavos inúteis, abandonados, arruinados,os recôncavos históricos.

Mais do que o impacto de uma nova atividadeindustrial, impôs-se uma nova organização da eco-nomia nacional centralizada no binômio petróleo eautomóvel. Assim, gasolina, asfalto, estradas, ca-minhões e automóveis terminaram por definir outraforma de organização territorial. A estrada de roda-gem contornou a baía de Todos os Santos, interli-gando a capital do Estado e as várias praças co-merciais do interior diretamente ao sistemarodoviário nacional. A Feira de Santana, antigo dis-trito do porto da Cachoeira, tomou lugar do municí-pio mãe, transformando-se no grande porto seco eno maior entroncamento rodoviário do Nordestebrasileiro. Conexão inútil, o Vapor de Cachoeiranão navegou mais no mar. Progressivamente a Ci-

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dade de Salvador virou as costas para a sua baía.Foi buscar as suas provisões de boca no CentroSul do Brasil através da Rio-Bahia. Encantada ago-ra com o Oceano Atlântico, expandiu-se febrilmen-te pela orla marítima, como se quisesse chegar atéSergipe, deixando atrás de si as belas praias de Ita-caranha e São Tomé de Paripe. Assim, velha, inútile vencida, como a índia Kyrimurê, a colonial portu-guesa Baía de Todos os Santos enfim feneceu. Lí-quido espaço vazio, virou histórica, virou turística, edizem até que será sucedida por uma Baía Azul.5

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Notas

1 Em língua tupi: Igapeba: jangada; Igara: canoa.

2 Igaraçú: grande canoa, navios portugueses

3 Manteremos a grafia tradicional Bahia toda vez que estiver-mos referindo a capitania, a província, o estado, a região. Oacidente geográfico e a rede de relações em torno dele cha-maremos de baía e sistema da baía.

4 Peças: escravos

5 Bahia Azul - nome do programa governamental de despolui-ção da Baía de Todos os Santos.

* Ubiratan Castro de Araújo é doutor em História pelaUniversidade de Paris IV – Sorbonne, professor adjunto doDepartamento de História da UFBA e diretor do Centro de

Estudos Afro-Orientais da UFBA.E-mail: [email protected]

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“Eu vou para a Bahia”:a construção da regionalidade

contemporâneaAntônio Fernando Guerreiro de Freitas *

Ahistoriografia da Bahia Contemporâneapouco tem tratado da formação regionaldeste Estado no decorrer do presente sé-

culo. Esse tema tem sido deixado, quase que ex-clusivamente, nas mãos dos geógrafos, os quais,inspirados nos primeiros trabalhos de Milton San-tos e pelas pesquisas realizadas no Laboratório deGeomorfologia da Universidade Federal da Bahia,estudaram alguns aspectos que tocam o problemaem questão. A nosso ver, um dos pontos que mere-ce uma discussão particular é o que trata dos meiosde transporte e comunicação, as políticas imagina-das e praticadas em torno dos mesmos e os efeitoscausados na construção de uma regionalidade baia-na no decorrer dos últimos 150 anos.

O desenho regional da velha Província, decal-cado nos antigos caminhos dos tropeiros, na nave-gação costeira e fluvial e num conjunto de estradasde ferro que, salvo a Bahia – São Francisco, poucorepercutiam para o desenvolvimento baiano, seria,a partir da segunda década do século XX, comple-tamente modificado pelo início da construção deestradas, chamadas depois de rodovias. Estas fica-ram com a responsabilidade de terem alterado todoo cenário regional, até então visualizado para aBahia. A partir dessas mudanças iniciais, que esta-beleceriam as bases para a crescente valorizaçãodo automóvel, principalmente entre os anos 30 e50, as diferentes regiões passariam a ter um outroformato, a estabelecer outros vínculos e priorida-des, constituindo não mais um espaço articulado,pensado e desenvolvido em torno da sua capital –

Salvador – mas um conjunto formado de verdadei-ros pedaços.

Entendendo-se região como “a categoria espacialque expressa uma especificidade, uma singularida-de, dentro de uma totalidade” (Amado, 1990, p.80),vamos tentar mostrar como cada uma delas, em fun-ção dos meios de transporte e comunicação disponí-veis, situou-se no todo do espaço baiano, integrou-see/ou desintegrou-se, mantendo uma originalidade de-corrente das várias combinações locais e das suasrelações com o exterior, sempre considerando quetodas as variáveis podem ser resultado tanto da dinâ-mica social mais recente, como de processos históri-cos passados, cujas transformações já foram regis-tradas em cada lugar (Santos, 1984, p.163). Nessaperspectiva, resgata-se a dinâmica das diferentes for-mações regionais, o conjunto de transformações queconduziram a perda ou ganho de espaço, produziramnovas articulações entre o específico e o geral, entreo regional e o nacional ou internacional, observando-se como “o espaço regional se alonga ou se encurta,adquire importância ou desaparece, de acordo com adimensão de seus elementos históricos” (Bruit, 1987,p.64). Entre as causas para a ocorrência de tais mu-danças, pode-se citar: a construção de uma rede deestradas de rodagem; a expansão ou a redução daárea cultivada; a concorrência exercida por novosmercados; o emprego de novas tecnologias, como airrigação e a construção de barragens e hidroelétri-cas, qualquer um podendo sustentar o aparecimentode uma outra regionalidade, permitindo o nascimentode uma nova identidade.

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.24-37 Março 2000 25

Nos dois processos – o da construção e o dadesarticulação/ reconstrução – fica evidente, porum lado, a intervenção direta do Estado e, por ou-tro, a participação de interesses privados, moldan-do, acelerando ou criando novos processos. Ambasas ações representariam as diversas manifesta-ções do relacionamento inter-regional, demonstran-do a visão da região enquanto espaço aberto. Nocaso baiano, fica evidente a importância dessas in-tervenções. O Estado da Bahia deu continuidadeà preocupação com os transpor-tes, questão tida como prioritáriadesde os tempos provinciais. Inici-almente, centrou-se em dar conti-nuidade à política de construçãode estradas de ferro, mas, logo de-pois, passaria a incentivar e subsi-diar a construção de estradas derodagem, o que, após 1930, setransformaria na única alternativaconsiderada para os transportes.Quanto aos particulares – com ou sem incentivo –foram construindo novas estradas, no sentido deescoar a produção, distribuir mercadorias ou valori-zar as suas propriedades.

Os fenômenos observados, apesar de perten-cerem a um mesmo processo histórico, tinham duasdimensões bem distintas. De um lado, os aconteci-mentos de significados marcadamente locais, comoforam os casos das estradas de ferro e da navega-ção a vapor, assumidas pelo Estado ou através deconcessão, refletiam-se no menor tempo gasto nacirculação de mercadorias e passageiros, na me-lhoria dos portos e da navegação costeira, assimcomo nas correntes migratórias, que deixavam oseco sertão em busca das terras úmidas e aindapor explorar do sul do Estado.

Entre os fatos locais, a destacar o papel rele-vante e pioneiro de comerciantes, fazendeiros, via-jantes e até caminhoneiros no desbravamento deterritórios pouco conhecidos. Como exemplo, po-deriam ser citados o Cel. Antônio Benta que, nasdécadas de 20 e 30 deste século XX, para trans-portar com segurança e rapidez diamantes e pe-dras preciosas, construiu estradas que ligaram omunicípio de Morro do Chapéu e redondezas coma estação ferroviária do França, localizada no ra-mal da Estrada de Ferro do São Francisco, entre os

municípios de Miguel Calmon e Mundo Novo;(1) comnegócios e interesses numa vasta área do nordes-te da Bahia, desde a cidade de Alagoinhas até asmargens do rio São Francisco, Ferreira Brito encar-regou-se da abertura de inúmeras estradas, nosanos 30 e 40, pelas quais gostaria de ver circulan-do, cada vez mais, os produtos agrícolas por eleproduzidos, as mercadorias que ele distribuía e,principalmente, os automóveis da GM, da qual eleera concessionário para a região;2 mais modesto

nos seus objetivos, mas não dei-xando de exercer seu pioneirismo,no mesmo período do anterior,Nelson Hayne conta da sua aven-tura como proprietário de cami-nhão para vencer a Serra do Tom-bador e estabelecer a ligação entrea estação da estrada de ferro deJacobina e a região de Irecê, deonde trazia cereais e manganês.3

Noutro sentido, fica também evi-dente a necessidade de relacionar esses aconteci-mentos com a própria história nacional, ou seja, ex-plicar as estreitas relações daquelas iniciativascom a sociedade nacional ou mesmo internacional,como viria a ser todo o processo de formação – doeconômico ao cultural – da região cacaueira daBahia. Estradas, portos, facilidades para a navega-ção estariam ligados a projetos maiores que visa-vam ampliar e diversificar as rotas comerciais, for-mar novos mercados consumidores, incorporar novasáreas produtoras de matérias-primas ou articularuma nova divisão social do trabalho. Ao promovermelhorias no sistema de transportes e comunica-ções, ao subvencionar o serviço de navegação oumesmo ao estabelecer leis que regulamentavamas formas de acesso às terras públicas ou que tra-tavam dos diferentes tributos, o Estado intervinha,ao fazer a ponte entre a sociedade nacional e a re-gional, atuando no sentido de ver reproduzido oconjunto das relações sociais.

Na Bahia em particular, a presença do Estadose mostrou decisiva, especialmente por suas múlti-plas fronteiras com os estados vizinhos. Tomando-se, como exemplo, o chamado sertão do rio SãoFrancisco veremos que diferentes áreas do mesmofazem limite com Minas Gerais, Goiás, Piauí, To-cantins, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, o que se

Ao promover melhoriasno sistema de transportese comunicações, o Estado

intervinha, ao fazer aponte entre a sociedade

nacional e a regional,atuando no sentido de ver

reproduzido o conjuntodas relações sociais.

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tornaria extremamente importante para o desenhocontemporâneo dessas subáreas, para a própriaformação de cada uma dessas regiões, deixando aimpressão clara de que os estados federados apa-recem “não como regiões, mas atravessados porregiões, o que explicaria sua diferenciação interna,a articulação de interesses de algumas de suasclasses sociais com os interesses de classes soci-ais de outras unidades” (Godoy, 1990, p. 41). Aesse respeito a série MENS. RELS. dos Governa-dores do Estado da Bahia é rica de registros sobrea preocupação dos governantes em fiscalizar econtrolar, firmando, em vários momentos, acordose convênios com essas finalidades.

Desde meados do século XIX, governantes, gran-des e pequenos comerciantes e produtores em ge-ral discutiam os problemas que afetavam o desen-volvimento do Estado. Dois dentre eles se destacavam:as secas e os transportes. Dessa maneira, desde aprovíncia, e nos primeiros anos da república, discu-tia-se e tentava-se fazer um diagnóstico visando à“abertura” da Bahia, ou seja, integrar outros espa-ços, ocupar o território, avançar para o interior como intuito de tornar real toda a potencialidade canta-da e anunciada por viajantes e cronistas.

A primeira meta, bem de acordo com a tendênciauniversal daquele momento, foi a construção de es-tradas de ferro. A construção das mesmas deviaobedecer à Lei n.º 644, de 26/6/1852, do GovernoImperial, a qual estabelecia as concessões, com ga-rantias de juros às companhias que se propusessema construir estradas de ferro em quaisquer pontosdo Império. A garantia de juros seria sempremantida, mesmo havendo alterações legais. Quantoàs prioridades, embora existisse uma preocupaçãoinicial na articulação estrada de ferro/navegação flu-vial, facilitando a comunicação entre as diferentesregiões do Império, o que de fato se observou foibem diferente. Como os empréstimos externos ga-rantiam as construções, o risco financeiro dirigiu aconstrução dos traçados, privilegiando regiões já po-voadas e relativamente desenvolvidas do ponto devista econômico (Mattoso e Levy, s.d., f.2).

Na Bahia, essa lógica não foi de todo seguida,apesar do exemplo da Estrada de Ferro de SantoAmaro, investimento realizado no momento emque o Recôncavo conhecia um processo crescentede perda de importância econômica. Por outro

lado, contrariando a tendência nacional, tivemos aconstrução da Estrada de Ferro Bahia – São Fran-cisco, seu prolongamento e ramal, a qual tinhacomo estações terminais as cidades do Salvador eJuazeiro, ou seja, ao ligar o litoral atlântico com oporto fluvial mais importante do rio São Francisco,atravessava parte considerável do semi-árido baia-no, áreas de baixa densidade demográfica e de ati-vidade econômica limitada pelas sucessivas secas.No final do século XIX, além da Estrada de FerroBahia-São Francisco (573 km), que demorou 41anos para ser concluída (1896), contava a Bahiacom as seguintes estradas de ferro: E. F. Centralda Bahia (316 km); E.F. de Santo Amaro (47 km); E.F. de Nazaré (79 km na época); E.F. Bahia-Minas(147 km em território baiano); Ramal do Timbó (83km em direção de Sergipe) e E.F. Centro-Oeste daBahia, cuja construção foi iniciada em 1896.

Quanto à navegação fluvial a vapor, o própriogoverno provincial tratou diretamente do problema.Em 1865, o Presidente da Província, Manoel Pintode Souza Dantas, mandou construir um vapor deferro, destinando o mesmo para a navegação no rioSão Francisco. Entre dezembro de 1873 e janeirode 1874, o vapor, batizado de Presidente Dantas,realizou a primeira viagem entre Juazeiro e Salga-do (MG). Após a primeira viagem, permaneceu pa-rado até 1879, quando passou a prestar serviçosespeciais ao próprio governo. Além do São Fran-cisco e afluentes, os rios do sul da Bahia tambémdespertavam algum interesse, especialmente o Je-quitinhonha, visando ao intercâmbio comercial comMinas Geraes, o Itaípe e o Almada para serviremàs fazendas de cacau.

A navegação marítima e fluvial no Recôncavoera feita, desde 1847, pela Companhia Bonfim,cujos barcos visitavam as cidades de Cachoeira,Santo Amaro, Nazaré e Valença. A partir de 1851,apareceu a Companhia Santa Cruz, que percorriatodo o litoral entre Maceió e Caravelas, no extremosul do Estado. Ambas atuavam de acordo com con-cessões do governo e tinham como principal interes-sado o negociante Comendador Antônio Pedroso deAlbuquerque. Essas empresas dariam origem, em1891, à Navegação Baiana, que continuaria a pres-tar os serviços de transporte no presente século

Quase meio século depois do início da execuçãode políticas voltadas para a promoção de melhorias

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nos transportes e comunicações e apesar dos avan-ços acima apontados, a situação não tinha mudadomuito, pois, em 1893, continuava a se dizer que, onosso ubérrimo sertão, que contém no seu seio ri-quezas que opulentariam nações, vê-se quasi se-gregado do resto do Estado pela falta absoluta demeios de comunicação, sem pontes, sem estradas,abandonado como filho espúrio... Habitado por po-pulação laboriosa, robusta e intelligente, vê-se hojeameaçado de completo despovoamento pelo exodode seus filhos, a emigrar em massa para o Estadode São Paulo. A falta de meios de transporte para oproduto do seu trabalho, de capital para arroteamen-to da terra e beneficiamento da lavoura, o receio fun-dado de uma nova secca, qual a de 1888 a 1890,em que milhares de nossos conterraneos morreramà fome, os levam sem fé e com o desespero nalma aabandonar o lar e o torrão natal.4

Não seria correto esperar que a simples chega-da de uma estrada resolvesse todos os problemas.A própria novidade promovia o surgimento de ou-tras questões, como o estímulo à emigração emmassa em diferentes áreas do sertão. Acostuma-dos a vencer longas distâncias em regime de mar-cha batida ou em lombo de algum animal, ossertanejos encontrariam, inicialmente nos vagõesdos trens ou no vapor e depois no pau de arara, asalternativas mais modernas e confortáveis paravencer os longos percursos. Para permanecer nasua terra, como bem lembrou o GovernadorRodrigues Lima, seria necessário que outras medi-das fossem tomadas, pois, para produzir era preci-so terra, mas a venda de terras públicas continuavasem ser regulamentada, além do fato de que, nosertão, a maioria das terras produtivas se encontra-va nas mãos de poucas famílias; era indispensáveltambém a disponibilidade de capitais para traba-lhar e beneficiar a lavoura, inclusive adotando-setecnologias capazes de prevenir as secas, e, semqualquer dúvida, a construção de estradas, meiospelos quais se estabeleceriam trocas essenciais àprópria reprodução das forças produtivas.

A Lei Estadual n.º 37, de 07/7/1893, surgiucomo mais uma tentativa de regulamentar a cons-trução de estradas de ferro em território baiano.Intitulada Plano de Viação Férrea, listava as estra-das que seriam contratadas pelo governo com au-xílio pecuniário direto do Estado. De um total de

seis roteiros previstos inicialmente, apenas dois – aE.F. Centro-Oeste da Bahia e a E.F. Ilhéus-Con-quista – foram concretizados, mesmo assim de for-ma incompleta, muitos anos depois e após múlti-plos desencontros. A citada lei indicava asseguintes vantagens: garantia de juros de até 7%pelo prazo máximo de 30 anos; auxílio por quilôme-tro construído; proibição de outras estradas, por 50anos, dentro de uma zona situada até 20 km decada lado; cessão gratuita de terrenos devolutos epedreiras neles contidas e necessárias às obras;isenção de todos os impostos estaduais para o ma-terial necessário à construção, conservação e trá-fego da estrada até a receita líquida atingir 7%,além de outras mais.

Três anos depois, a Lei Estadual n.º 156, de 17/8/1896, autorizava o governo a mandar fazer osestudos preliminares previstos no plano, podendomesmo levar a efeito a construção deste, indepen-dentemente da concorrência. Estabelecia aindaque, caso não se apresentassem concorrentes idô-neos, poderia o governo começar a executar o pla-no por administração, começando pelas estradasque julgasse mais urgentes, levando em conta cri-térios como: fertilidade dos solos, demanda, vias,portos, etc. Os interessados apareceram, sendoque vários chegaram a firmar os respectivos con-tratos.5 Como já foi indicado, quase nada se reali-zou. O exemplo da E.F. Ilhéus-Conquista é bememblemático da situação. Prevista para ligar o por-to de Ilhéus, escoadouro natural da região maisrica do Estado por todo o século XX, com a regiãopecuária de maior potencialidade na Bahia, a estra-da não passaria de Itabuna e alguns ramais,totalizando 128 Km.

As dificuldades financeiras do Estado, a ausên-cia de capitais disponíveis e que pudessem partici-par de investimentos de alto risco explicariam o fra-casso da iniciativa, bem evidenciada por LeopoldoJosé da Silva, o qual, vitorioso com a proposta deconstruir uma estrada de ferro ligando Feira deSantana a Barra do Rio Grande, pedia, em 1895, aoGovernador do Estado, prorrogação do prazo, poisnecessitava de tempo para estabelecer os acordosprévios com os capitalistas residentes na Europa.6

Apesar de uma situação ainda crítica no iníciodo presente século, não resta dúvida que a cons-trução de novos meios de transporte agitou uma

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Bahia acostumada a se ver exclusivamente atravésdo espelho representado por Salvador e seu Re-côncavo. Cidades e vilas nasceram e cresceram àsmargens dos trilhos ou na rota dos vapores; o Esta-do espacializava e criava condições para uma novaregionalidade, tudo sem abrir mão de ter e reco-nhecer Salvador como o núcleo central, lugar es-tratégico, principalmente em razão do seu porto,que a tornava passagem obrigatória de pessoas emercadorias. No entanto, como era de se esperar,as mudanças ocorridas não altera-ram significativamente o quadro,ou seja, apesar da redução das dis-tâncias e do tempo de viagem, amaior parte do interior permanecialonge, distante econômica e soci-almente do litoral.

Apreciemos a construção deduas dessas vias, possivelmente asmais importantes para toda a Bahia,em razão das distâncias percorri-das, das áreas abrangidas e da pró-pria articulação que tiveram entre si.

A primeira é a E. F. Bahia-SãoFrancisco, a qual, como já foi anteriormente dito, foiconstruída entre 1855 e 1896, dentro do projeto deestabelecer traçados no sentido leste-oeste parafacilitar a penetração do território. As articulaçõespolíticas do Império estabeleceram, numa mesmadata (19/12/1853), duas concessões com a mesmafinalidade. Tanto a The Recife and São FranciscoRailway Ltd. quanto a The Bahia and São Francis-co Railway Ltd. tinham o objetivo de unir um portomarítimo ao vale do São Francisco. Ambas visa-vam conectar o centro comercial de Juazeiro eatravés dele atingir toda a área de influência do rio.A de Recife nunca chegou a seu destino final, en-quanto a baiana consumiu muitos anos para alcan-çá-lo. Entre outras forças que sustentaram desde oinício aquela construção, estavam insuspeitos co-merciantes e interessados nos negócios do açúcar.Trinta e oito subscreveram um abaixo-assinado,em 06 de abril de 1854, dirigido aos membros daAssembléia Legislativa Provincial, onde diziam:

(...) não podendo ser indiferentes a tudo quanto tender ao

benefício da Província, considerando que a incorporação de

uma Companhia que se encarregue de construir huma linha

férrea do litoral desta Província a Villa de Joazeiro, ou a qual-

quer outro ponto da margem do rio S. Francisco sera de van-

tagem incalculável, e que por tanto são poucos todos os

favores que a Assemblea Legislativa Provincial possa con-

ceder a Companhia que se houver de encorporar, quando

por esta estarem nas forças da Província não possão com-

prometer o seo futuro...7

Por seu turno, o Conselho do Banco da Bahia, ou-tra fração representativa da elite local, recomendou a

compra de ações da companhia queviesse a ser formada com aquela fi-nalidade, desde que investir no setorde comunicações ferroviárias tinhase transformado em prioridade paraos diretores daquela casa bancária(Azevedo e Lins, 1969, p. 74-75,100).

A preocupação do banco, emparticular através da compra deações do empreendimento ferrovi-ário, assim como a indicação feitapelos proprietários de terra e co-merciantes do açúcar, os quais re-

comendavam a aprovação, por parte daAssembléia Legislativa Provincial, de uma garantiaadicional àquela oferecida pelo governo central,são evidências que a construção da E.F. Bahia -São Francisco era vista com simpatia. Constituía-se como uma verdadeira necessidade da Provín-cia, a qual, com a conclusão da estrada, integrariaparte do sertão e reforçaria a condição estratégicado porto de Salvador, do seu comércio e da classecomercial baiana como intermediária das relaçõeseconômicas entre o sertão da Bahia e de outrasprovíncias com outros centros do Império ou mes-mo do exterior.

Tanto o ponto final daquela estrada quanto oseu traçado foram objeto de longas controvérsias,ressaltando sempre o peso político de determina-das lideranças. O traçado em particular rendeu mui-tas discussões, pois a passagem dos trilhos eleva-ria imediatamente o valor das terras, boa partedelas ainda incultas. Importava também em prestí-gio para a vila ou cidade que recebesse uma esta-ção ferroviária, reforçando o poder dos chefes lo-cais. A escolha de Juazeiro visava associar aestrada de ferro com a navegação fluvial, muito

Apesar de uma situaçãoainda crítica no início do

presente século, nãoresta dúvida que a

construção de novosmeios de transporte

agitou uma Bahiaacostumada a se ver

exclusivamente atravésdo espelho representado

por Salvador e seuRecôncavo.

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embora tenha surgido argumento em defesa de al-guma localidade acima das Corredeiras do Sobra-dinho, local que sempre causava transtornos à na-vegação e que seria um empecilho ao trânsito debarcos maiores. Entre elas, foram lembradas SentoSé, Xique-Xique e Barra do Rio Grande.

A construção da estrada se deu em duas etapasdistintas. O primeiro trecho, entre Salvador e Ala-goinhas, se deu entre 1856 e 1863, percorrendouma distância de 123 km. Essa foi a denominadaestrada inglesa e que continuousob administração inglesa até1901. Em 1909, passou a fazerparte da Companhia Viação Geralda Bahia, que daria origem à Com-panhia Ferroviária Leste Brasileiro,federalizada após 1930. O Ramaldo Timbó fazia parte dessa estra-da, o qual, partindo de Alagoinhas,alcançaria Aracaju, em 1913. O se-gundo, entre Alagoinhas e Juazei-ro, com uma extensão total demais de 452 km, foi autorizado em1871. Os estudos foram contrata-dos no ano seguinte e a constru-ção iniciada em 1876, sob a res-ponsabilidade direta do Governo Imperial. Após aestação de Alagoinhas, foram sucessivamente inau-guradas Serrinha (1880), Santa Luz (1884), Quei-madas (1886), Itiúba e Senhor do Bonfim (1887), e,finalmente, Juazeiro em 1896. Em 1912, foi autori-zada a construção do ramal Senhor do Bonfim-Jacobina, o chamado trem da grota, numa exten-são de 118 km, através do qual seriam unidas,anos mais tarde, as duas estradas de ferro maisimportantes da Bahia: a do São Francisco e a Cen-tral da Bahia.

A construção da estrada promoveu, simultanea-mente, várias melhorias. Paralela à mesma corriauma linha de telégrafo, que servia a todo percurso.Açudes e reservatórios para água foram construí-dos nas localidades mais carentes ou mesmo auto-rizações foram dadas para melhorias de determi-nadas cidades.

A estrada tinha suas paradas estratégicas, aque-las que ajudavam a abrir, a redesenhar, a definirnovas formações regionais. A primeira foi Alagoi-nhas, que soube se aproveitar da sua proximidade

de Salvador, além de absorver parte importantedos passageiros e mercadorias de toda a área fron-teiriça com Sergipe, servindo, do mesmo modo,como entreposto estratégico em relação ao Estadovizinho. Serrinha e Queimadas foram estações queserviram a inúmeras localidades situadas nas duasmargens da estrada.8 Queimadas, inclusive, funci-onou como uma espécie de base ferroviária quan-do da Campanha de Canudos, parada obrigatóriadas tropas e equipamentos. Quanto a Senhor do

Bonfim, ocupava uma posição es-tratégica, tanto em relação à re-gião sob influência de Jacobinaquanto ao próprio sertão do SãoFrancisco. É interessante notarque esta última cidade se consti-tuiu historicamente, desde os tem-pos em que era conhecida comoVila Nova da Rainha, como pontode pouso e recuperação de ho-mens e animais em suas longasjornadas pelo interior.

Com a chegada a Juazeirocompletava-se a integração viáriadesejada desde muito tempo. Anavegação do São Francisco en-

contrava, finalmente, um porto fluvial que tinhauma linha férrea até o litoral, ou seja, a articulaçãoferro-fluvial deixava enfim de ser um simples plano,um sonho há muito embalado. O rio São Francisco,com uma extensão total de 3.161 km, dos quaiscerca de 1.700 km considerados navegáveis, des-de o período colonial e até a Segunda GrandeGuerra, foi considerado como uma alternativa viá-ria ao tráfego costeiro atlântico. Suas águas correminicialmente no sentido sul-norte e depois de oestepara leste, constituindo-se assim como uma alter-nativa natural para as relações entre o sul e o nortedo Brasil. Várias missões e estudos encarregaram-se de propor obras e medidas que viessem a dina-mizar a vida econômica no vale. A navegação eramais aconselhável no chamado médio São Fran-cisco (1.366 km) e no baixo (238 km), a partir dePiranhas, após as cataratas e corredeiras.

Para implantar a navegação era necessário co-nhecer tecnicamente o rio, as especificidades decada trecho, as facilidades e dificuldades nas qua-tro estações, como agir diante das secas ou das

Com a chegada aJuazeiro completava-se aintegração viária desejada

desde muito tempo.A navegação do São

Francisco encontrava,finalmente, um porto

fluvial que tinha uma linhaférrea até o litoral, ou

seja, a articulação ferro-fluvial deixava enfim de

ser um simples plano, umsonho há muito

embalado.

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cheias. Era urgente se saber mais sobre o rio eseus afluentes, já que o transporte de passageirose mercadorias continuava a depender de embarca-ções precárias, de porte limitado e freqüência in-certa. Tanto podia ser um paquete ou canoa, o cria-tivo ajoujo ou mesmo a barca, esta última parecidacom as lanchas de cabotagem marítima, tendo aofundo um camarote destinado ao transporte da fa-mília do proprietário, de pessoas importantes e dosgêneros destinados ao comércio nas vilas do vale(Magalhães, 1978). A tripulaçãoera de número variável e o saláriodependia do percurso e da impor-tância do viajante. As jornadas diá-rias eram fatigantes, o trabalho ár-duo e perigoso. Essas embarcações,que sobreviveram à introdução dosbarcos a vapor, adotariam posteri-ormente velas e motor, inovaçõestécnicas que lhes deram maior ra-pidez e segurança. A finalidade, entretanto, perma-neceu a mesma: servir como uma casa comercialambulante, comprando e vendendo de tudo, visi-tando vilas, cidades e fazendas.

Para ampliar a capacidade de transporte pelorio, fosse de carga ou de passageiros, era neces-sário viabilizar a navegação nos trechos considera-dos de risco, assim como providenciar a constru-ção de embarcações maiores e apropriadas aoserviço que se pretendia realizar. A Província en-carregou-se diretamente do problema, tanto abrin-do o canal de navegação na Cachoeira do Sobradi-nho, quanto providenciado as embarcações. O primeirovapor foi encomendado em 1865. Construído noRio de Janeiro, foi transportado desmontado atéJuazeiro, via Salvador, o que representou muitotempo e um elevado custo. Como já mencionado,chamou-se Presidente Dantas, e realizou apenasuma viagem entre fins de 1873 e início de 1874.Dessa maneira, só após muita reclamação e na úl-tima década do século passado, foram firmados oscontratos para navegação no baixo e médio SãoFrancisco. O Banco Viação do Brasil recebeu a pri-meira concessão para explorar a navegação a va-por no rio principal e nos seus afluentes. Os servi-ços oferecidos pela empresa, no entanto, não foramsatisfatórios, não atendendo às exigências da soci-edade regional, que cobrava um atendimento cons-

tante, de acordo com dias e horários anunciadoscom a devida antecedência.

Apesar dessas dificuldades, não resta dúvidaquanto à importância da navegação a vapor para aintegração e regionalização de uma vasta área doterritório brasileiro e, em particular, do baiano. Essetipo de navegação – simbolizada pelas famosasgaiolas – continuou a ser praticada durante a maiorparte do século XX, inicialmente através da políticade concessão e, depois, já nos anos 30, foi

estadualizada, situação em quepermaneceu até o fim, quando foiregistrado todo o desgaste do ma-terial flutuante, oficinas e equipa-mentos diversos.9 O resultado eco-nômico mais apreciável da hidroviafoi a realização da chamada via-gem redonda, que significava per-correr os mais de 1.000 km do rioSão Francisco e seus afluentes,

comprando e vendendo de tudo, dando sentidoeconômico à dita “economia do catado”, ou seja,uma economia não-especializada, mas que, mes-mo assim, não deixou de se prestar como meio deintegração regional ao Brasil e ao mundo.

No fim do século passado, bem antes portantodo aparecimento de uma circulação mais intensa, oEngenheiro Fiscal da empresa de navegação, CamerinoTeixeira de Freitas, teve a visão correta do que re-presentaria a navegação não só para a Bahia, mastambém para Minas Geraes, Pernambuco, Sergi-pe, Alagoas, Ceará, Piauí e Goiás, o que denuncia-va uma regionalidade que não respeitava as fron-teiras internas, ao passar sobre as mesmas. Emrelatório ao Governador Rodrigues Lima, chamava aatenção para a importância de articular ferrovia comhidrovia nas duas extremidades da navegação, elo-giava as oficinas da empresa e sua capacidade deconstruir embarcações e registrava que os arma-zéns da empresa viviam cheios de mercadorias, fal-tando barcos para o escoamento. Por fim, anotava aimportância para a Bahia de saber aproveitar as ar-térias fluviais, o que traria inúmeras vantagens nãosó para ela, mas para os estados vizinhos.10

A construção dessas duas vias de comunica-ção, assim como das demais, foram atos regionali-zadores que ajudaram a definir o processo de ocu-pação, o desenvolvimento das atividades agrícolas

Não resta dúvida quantoà importância da

navegação a vapor paraa integração e

regionalização de umavasta área do território

brasileiro e, em particular,do baiano.

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e o beneficiamento de matérias-primas, marcandouma Bahia ainda sob o controle da sua capital, Sal-vador. Até os anos XX deste século, não se negavaque “a situação de desequilíbrio entre o centro e olittoral, de geito a se não poder compensar o esfor-ço e o trabalho em larga somma despendidos... Apoucas leguas do littoral, é bem de calcular, para ocentro, o desanimo assoberba o homem porque, dealguma sorte, em alguns pontos, o interior é um de-serto,”11 mas poderia ser notada uma articulação regi-onal em torno do seu núcleo político-administrativo.

As estradas – mais de 1.200 km de vias férreas emais de 1.000 km de hidrovias – cumpriam o seupapel de integrar espaços, de promover uma regio-nalização. Apesar das reclamações contra o preçodos fretes e das tarifas em geral, da irregularidadedos barcos, da falta de trens ou de vagões aptospara o transporte de determinadas mercadorias,como os minérios, por exemplo, era inegável o papelinovador que as mesmas desempenhavam. É com-preensível a dificuldade de muitos em aprender aanexar aos custos o valor do transporte mais rápido,do mesmo modo que no transporte de gêneros ali-mentícios, originários do trabalho de pequenos pro-dutores agrícolas era inegável “a preferência (pelos)transportes rudimentares, em tropas, carros de boise na corcunda, pois do contrário os lavradores nãotirarão lucros na exportação, limitando sua produçãoao consumo local” (Anjos, 1917, p.31).

Não se pode esquecer que essas transforma-ções do interior baiano estavam também relaciona-das ao fim do trabalho escravo e à industrializaçãocrescente do sul e sudeste brasileiros, elementosde forte repercussão em todo o País. A Nação, atéentão acostumada a um conjunto de relações parti-culares, regionais, com o estrangeiro, começava aconstruir, a intensificar as relações internas, propri-amente nacionais, o que influirá no aparecimentode uma nova regionalidade nacional, decorrentedas novas relações sociais, de uma outra dimen-são no processo de produção de mercadorias oumesmo das novas funções reservadas ao Estado.Olhar o mapa da Bahia antes do advento do rodovia-rismo, concebido como política a partir de 1910,mostraria um quadro regional definido de acordocom a malha ferroviária e as navegações fluvial ecosteira. Tinha-se o Recôncavo açucareiro, o suldo cacau, uma ampla Chapada Diamantina, que ia

até as margens do São Francisco, o núcleo pecuá-rio construído em torno de Vitória da Conquista, osvários sertões – o nordeste, o de Canudos, o doSão Francisco, o da Serra Geral – e alguns poucosmicroespaços indefinidos e espremidos entre es-sas formações.

As estradas de ferro, a navegação fluvial e cos-teira ou, depois, as estradas de rodagem, se, porum lado, atendiam aos projetos de uma burguesiainstalada em Salvador, por outro, criaram os meiospara uma rápida circulação da mão-de-obra. Estalogo aprendeu a trocar as dificuldades cotidianasda sobrevida na pequena propriedade e de uma re-muneração quase nunca compensatória, pelos sa-lários e melhores condições de vida do sul industriali-zado. Os vapores das companhias de navegação(a imagem mais forte são os Itas do Norte), os va-gões de passageiros dos trens passaram a viajarsuperlotados, especialmente nas segundas e ter-ceiras classes. A força dessa corrente tornava-semais forte quando a seca chegava e demorava apartir. A comparação entre os censos demográficosdo Estado da Bahia de 1920 e 1940 mostra o ele-vado número de municípios que conheceram perdade população, cujos habitantes partiram, muitasvezes, com passagens fornecidas pelo próprio Es-tado, numa viagem que promovia o vazio demográficode algumas regiões, e assim descrita pelo dirigenteda empresa de navegação: “no movimento de 1932não temos incluído os transportes de 10.000 flage-lados autorizados pelo governo do Estado, comomedida de salvação pública, num gesto de admirá-vel patriotismo e humanidade”.12 As próprias fren-tes de trabalho, com o objetivo de construir estra-das, criadas pelo governo no decorrer dos sucessi-vos anos secos na década de 30, ajudaram napartida dos sertanejos, inclusive para outras regiõesbaianas, como bem exemplifica a construção da es-trada de rodagem Conquista-Bom Jesus da Lapa.

A crise dos dois sistemas viários se daria emmeados do século XX. O ferroviário é bem conheci-do da sociedade nacional. A construção de rodovi-as passou a ser praticamente a prioridade únicapara os transportes, a partir dos anos 30. É curiosaa resistência brasileira em fazer conviver, articularo antigo e o novo. O poder deste último é quasesempre avassalador, bastando conferir como mui-tas estradas de rodagem correram quase paralelas

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às ferrovias, como foi o caso da rodovia LomantoJunior em relação à E.F. do São Francisco. Assimaconteceu com as estradas de ferro, desprezadas,ignoradas, mesmo após a federalização do siste-ma, desconsiderando-se por inteiro a dimensão dopaís, os custos do transporte, etc. Emblemáticadessa situação foi a completa destruição da Esta-ção Ferroviária de Juazeiro, considerada a maisbela de todo o Nordeste brasileiro, para dar lugar àponte rodo-ferroviária sobre o rio São Francisco.

Quanto à hidrovia, em que peseo seu poder integrador e também oter sido assumida diretamente peloEstado da Bahia, após 1930, foi,pouco a pouco, ficando à margemdas prioridades viárias. A competi-ção com as estradas lhe foi des-vantajosa, apesar de oferecer cus-tos menores. Várias rotas foramabertas em todo seu trajeto, não sóafetando o sistema viário baiano,mas principalmente criando alter-nativas de acesso mais rápido emoderno aos estados vizinhos,como Minas Geraes, Goiás, Per-nambuco, etc. Dois exemplos evi-denciam o processo.

O primeiro mostra como a produção agrícola daregião de Irecê que, inicialmente (anos 20), era es-coada pelo porto de Xique-Xique, de onde seguiaaté Juazeiro, passou, com as estradas, a seguirpara Salvador, primeiro por Jacobina, e, depois, di-retamente para a capital, com a construção da Es-trada do Feijão. O segundo, mais significativo paraa Bahia como um todo, foi a perda de Juazeiro – adenominada Corte do Sertão – para Petrolina. Osque observam e conhecem as duas cidades hoje,certamente se surpreenderiam com um mapa urba-no do final do século XIX, onde a cidade baianasurge como um dos principais núcleos do interior,enquanto a pernambucana limita-se a umas pou-cas ruas, um cemitério, uma capela, e é identifica-da como uma simples vila.

Ainda sobre a empresa de navegação, observa-se que, apesar da aquisição de novas embarca-ções e dos investimentos na melhoria do canal denavegação, faltavam conhecimentos técnicos, re-cursos que atendessem à crescente demanda por

serviços mais ágeis e de melhor qualidade. Por ou-tro lado, também registre-se a concorrência comembarcações de empresas privadas e a organiza-ção de uma empresa pública mineira, além do des-vio para cumprir serviços de outra natureza: en-chentes, epidemias, secas, passagem da ColunaPrestes, Revolução de 1930, etc. A administraçãofoi exercida diretamente pelo Estado ou através deconcessionários/arrendatários, a maioria deles pro-prietários de terras e participantes do grande co-

mércio regional, como foram oscasos de Otacílio Nunes de Souza(1909-1912), Manoel Sabino dosSantos (1920-1925) e Geraldo Ro-cha (1925-1929).13 Como conse-qüência imediata, o rio começou aperder sua vocação histórica devia de comunicação para se trans-formar em fonte de energia, com aconstrução de sucessivas usinashidroelétricas, sempre mais poten-tes, cuja produção destinou-se aatender à expansão do parque in-dustrial brasileiro.

A partir da segunda décadadeste século, todo o sistema viárioconstruído – ferrovias e hidrovias

costeira e fluvial – passaria a ter a companhia dasestradas de rodagem, desde o primeiro momentoimpondo-se como a alternativa mais aconselhávelpara resolver o problema dos transportes na Bahia.O serviço de navegação e as estradas de ferro fo-ram, pouco a pouco, sendo obrigados a concorrercom as estradas de rodagem que começaram a serconstruídas em todos os lugares. A complementari-dade entre os diversos subsistemas pregada nodiscurso oficial ficou restrito às boas intenções.14

Inicialmente concebidas com o propósito de se-rem vias complementares, que uniriam as estradasde ferro entre si ou ligariam pontos do interior comalgum porto litorâneo ou fluvial, na prática foi bemdiferente. Desde 1910, o governo estadual adotoua estratégia de conceder uma série de vantagens aparticulares que se interessassem não só pelaconstrução, mas também pela exploração de linhasregulares de transporte por automóveis.15

A questão rodoviária não podia ser vista, entre-tanto, apenas como uma via de comunicação em

A partir da segundadécada deste século,todo o sistema viário

construído – ferrovias ehidrovias costeira e fluvial

– passaria a ter acompanhia das estradas

de rodagem, desde oprimeiro momento

impondo-se como aalternativa mais

aconselhável pararesolver o problema dos

transportes na Bahia.

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si. Ela estava intimamente associada ao desen-volvimento da indústria de veículos automotorese, por essa razão talvez, diante da constatação dairreversibilidade do processo, o verbo que maisapareceu no discurso oficial justificador foi “avas-salar”, como no relato dos representantes daBahia, no Segundo Congresso Pan-americano deEstradas de Rodagem, em 1929: “é de todo sabi-do, sem controvérsia, que as estradas de roda-gem representam na actualidade, não só meio defacil transporte pelo vehiculo automotor, que tudoavassala, mas também o elo de confraternizaçãoentre povos vizinhos”.16

Na febre de construir estradas, tanto regiõesmais ricas, como a cacaueira, quanto as mais po-bres e distantes, como o oeste do Estado, mereciamconsideração. Em 1935, o Diretor de Viação e ObrasPúblicas do Estado repetia o mesmo comentário demeados do século passado, quando se garantiaque o maior problema do Estado era a falta detransportes. Observava, não sem razão, que o suldo Estado “só tem uma ligação com a capital, amesma via de comunicação de oitenta e nove annosatraz, as viagens mensaes ou bi-mensaes da Bahiana,instituídas em 1847”.17 Essa constatação pode tercontribuído para a continuação do agressivo pro-grama de construção de estradas de rodagemimplementado pelo Instituto de Cacau da Bahia,logo após sua criação em 1931.18

No oeste do Estado, na fronteira com Goiás, jáno início da década de 20, o Coronel Abílio Wolney,utilizando-se das vantagens oferecidas pelas Leisde 1910, 1917 e 1920, recebeu autorização paraconstruir uma estrada ligando Barreiras à fronteiragoiana, onde ele já tinha obtido outras autorizaçõespara a construção de vias. As concessões – feitastanto a cidadãos quanto a empresas – foram detodo tipo: prazo de 30 anos para exploração; isen-ção de impostos estaduais e municipais; preferên-cia para aquisição de terras devolutas marginais àestrada, subvenção quilométrica e outras mais.19

Se os particulares tiraram proveito, as empresasseguiram no mesmo caminho. Esse foi o caso, porexemplo, da Sociedade Rodoviária de Bonfim Limi-tada, que, em 1927, assinou contrato com o gover-no do Estado para construir uma estrada de roda-gem entre Senhor do Bonfim e Uauá. A empresa,uma sociedade entre comerciantes de Salvador,

Bonfim, Jaguarari e Uauá, justificou o seu interessepor ser Bonfim,

(...) o centro intermediário de uma grande faixa – o balcão da

zona – o armazem natural onde se amontoam os productos

manufaturadoos importados da capital e allí vendidos em

grosso até para os centros de Piauhy e Goyáz, allí está a

segunda feira de gado do Estado, allí installam-se as agênci-

as de banco e escriptorios com grande raio de ação em

synthese. 20

A documentação das séries GOV. e AGRIC.contém, a partir de 1924, um conjunto de relatóriosque tornam evidente o fato de que quase toda aBahia foi tocada. Os auxiliares dos governadores einterventores estiveram sempre preocupados emregistrar o detalhe de cada quilômetro e metro deestrada em estudo, em projeto, em construção oujá concluído. As estradas eram apontadas como oproblema fundamental da Bahia. Dizia-se das “van-tagens de tal meio de comunicação que tanto o po-bre como o rico participam, num Estado tão exten-so como o nosso, sujeito às seccas, sem instrução,de lavoura acanhada e rotineira”.21 Alguns anos de-pois, no início da década de 40, era o próprioInterventor Landulpho Alves quem se encarregavade divulgar pela imprensa do Rio de Janeiro a revo-lução que se promovia na Bahia com a construçãode estradas de rodagem.22

Em nenhum momento, a exemplo do que acon-teceu no final do século XIX, voltou a discussão deum plano, de uma estratégia para a construção edesenvolvimento das vias de comunicação e dosmeios de transporte. O processo se deu mais oumenos solto, autônomo. Particulares, empresáriose o próprio Estado não obedeceram à cláusula quedefendia a integração, a alimentação da malha jáexistente. Os primeiros, como era de se esperar,colocaram os seus interesses em primeiro lugar:valorizar suas terras, incrementar as relações detroca, consolidar e preservar o poder local e assimpor diante. Nesse processo, a Bahia, como umtodo, vinha depois e, assim, nas regiões limítrofes– e são muitas – foram construídas redes de rela-ções – Bahia com Minas, Bahia com Goiás, Bahiacom Pernambuco ou Bahia com Sergipe – que aju-daram a configurar uma nova espacialidade, inde-pendente e autônoma de Salvador. Essas relações,

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perceptíveis no econômico e social, avançarampara o político e cultural. Nessas fronteiras, os bai-anos falam, vestem e comem muito mais parecidocom o vizinho mineiro, goiano, piauiense, pernam-bucano ou sergipano.

No final do século XIX, já era saliente o fato deque cada região ou mesmo cada atividade (agricul-tura, extrativismo e mineração) mantinha sua rela-ção particular com a capital, mas reduzido contatoentre elas, o que já colocava em dúvida a existên-cia de uma unidade política (Azevedo e Lins, 1969,p.190). A importância de Salvador decorria basica-mente do seu porto, historicamente importantepara o comércio de diferentes regiões do país e,especialmente, para uma classe mercantil ali abri-gada, a qual operava num universo amplo, alémdas fronteiras do próprio Estado. Os planos viários,a preocupação em construir ferrovias e hidrovias,visavam acelerar as trocas, diversificar os negócios.Assim compreendem-se as iniciativas realizadascom esses objetivos. Mesmo com recursos precários,empréstimos desviados de suas finalidades e im-postos não-recolhidos, a Bahia conseguiu, pelomenos até os anos 40, manter uma unidade apa-rente, exercer uma hegemonia, ter uma feição.

Enquanto, em 1927, o próprio governo tentavadividir o Estado em cinco zonas agrícolas com se-des em Salvador, Cachoeira, Nazaré, Livramento eBelmonte, com base exclusivamente na necessida-de de dinamizar a agricultura e ignorando outrasvariáveis formadoras da regionalidade, em 1935 asituação já se mostrava grave para um legisladorsensível. Nesta última oportunidade, o DeputadoNestor Duarte apresentou um projeto de lei que di-vidia o Estado em nove regiões administrativas, asaber: Centro-Litorânea, Nordestina, Centro-Oeste,Centro-Sul, Sudoeste, Sul, Médio São Francisco eAlto São Francisco. As denominações e critérios dedivisão são secundários. Na justificativa é que en-contramos a percepção clara do político sobre arealidade baiana, quando dizia:

(...) entre o Estado e o Município há uma categoria – a re-

gião. Melhor seria ainda que em cada séde dessas regiões,

o governo estabelecesse pontos de contacto com a sua Ca-

pital, separada como uma ilha do Estado, pois só o mar a

liga aos melhores centros de penetração do interior...A situa-

ção da capital da Bahia é singular no mapa do Brasil. Dos

cinco grandes Estados da Federação, a Bahia e o Pará são

os únicos que não têm capital central, convindo notar que

Belém está diretamente ligada ao interior. Esta situação pro-

íbe ao Estado fazer de sua capital o centro de irradiação e

convergência de sua vida e do seu desenvolvimento. A sua

capital não representa ainda, infelizmente, o papel

centrípeto e centrífugo a que se destinam as Capitais na ge-

ografia humana. É preciso refletir sobre esse problema e

considerá-lo presente entre as condições e elementos cau-

sadores de nosso atrazo.23

Embora para algumas regiões em particular, oEstado possa sempre parecer uma abstração, dian-te da ausência, por muito tempo, de outra repre-sentatividade além da polícia, do fisco e da justiça,ou possa ser visto com desconfiança, consideradocomo um usurário cobrador de impostos, sem for-necer contrapartidas proporcionais ao que arreca-da na região, como é o sentimento de boa parte dasociedade cacaueira, é inegável o papel particulardesempenhado pela política de transportes e co-municações para a formação contemporânea. En-quanto prevaleceu a prioridade para estradas deferro e hidrovias, podia-se identificar uma regionali-dade que mantinha Salvador como centro, comoum pólo. A ação espacializadora de então tinha osentido de integrar, dividir socialmente o trabalho,acelerar a circulação de mercadorias. Com a aber-tura das estradas de rodagem, ao lado da acelera-ção do processo industrial nacional surgirá uma novaespacialização, uma outra regionalidade, outrasformas de integração inter-regional, um novo papelreservado à sociedade local.

Como foi dito acima, com a construção de estra-das acompanhada do abandono das ferrovias edas hidrovias, especialmente em razão da não-complementaridade entre elas, mas de uma verda-deira competição, as regiões limítrofes da Bahia fo-ram configurando uma nova regionalidade. O Ex-tremo-sul para o Espírito Santo ou Minas Geraes, aSerra Geral e mesmo Conquista para este últimoEstado, o Oeste para Goiás e depois Brasília, amargem esquerda do São Francisco para o Piauí,do mesmo modo que aconteceria nas vizinhançasde Pernambuco e Sergipe. Para a região cacauei-ra, o Brasil era pouco, por isso buscaria diretamen-te o mundo. O simples observador, o viajante dehoje pelo interior baiano, encontrará os sinais dos

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fenômenos acontecidos ao visitar as cidades. Asfluviais, que quase desapareceram, a exemplo deXique-Xique, Barra do Rio Grande, Sento Sé, PilãoArcado, Remanso e tantas outras, para não falardas que estão submersas. As rodoviárias que nas-ceram, cresceram ou consolidaram suas posiçõescom a construção de estradas, como foram os ca-sos de Feira de Santana, Santo Antônio de Jesus,Barreiras, Teixeira de Freitas e Itabuna. E as ferro-viárias, ou que já foram, como se pode encontrarem muitas áreas do Estado, aexemplo de Nazaré, Iaçu, França,etc. Curioso destas últimas é o fatode que muitas delas tiveram atésuas estações destruídas – os ca-sos de Juazeiro e Jacobina – impe-dindo as novas gerações de visua-lizarem um passado, saberem oque já foram, como uma tentativadeliberada ou não de apagar es-ses registros da memória regional.

Para os baianos de hoje fica acuriosidade (ou a perplexidade) dese perguntarem para onde podemir de barco ou de trem. E se responderem que, ape-sar da extensa costa atlântica e de cursos fluviaisnavegáveis, o único transporte regular existente épara a Ilha de Itaparica, em frente à capital. O va-por Saldanha Marinho, um dos pioneiros da nave-gação no São Francisco, foi transformado, com onome de Vaporzinho, em bar e restaurante na cida-de de Juazeiro. De trem, do mesmo modo, não sevai além do subúrbio soteropolitano. Resta, então,uma atitude nostálgica, quase contemplativa, deobservar os registros deixados nas cidades e sítiosà beira mar, à beira rio ou à margem dos trilhos.

Os anos posteriores, ou seja, a partir dos anos50 do presente século, seriam os da Bahia feita empedaços. A sua elite comercial perderia o seu uni-verso de ação e, com ele, parte do seu poder; Sal-vador passaria a sentir, cada vez mais, dificuldadespara exercer uma hegemonia, para continuar a sero antigo centro político-administrativo. Os governantes,independentemente de partidos ou tendência, pas-savam por cima dessa realidade e, o que é pior,continuaram a não conhecer o seu objeto de inter-venção e de política. A memória de muitos municí-pios guarda o registro da única vez que foram

visitados por um governador, quase sempre comfins eleitorais. A Bahia negra e do dendê, cuja sín-tese maior é Salvador e seu Recôncavo, foi ficandodistante do interior. Os moradores de quase todasas áreas, de todos os sertões, passaram a não sesentir na Bahia, a dela não participar. Nos temposrecentes, apenas a música consegue fazer algumaaproximação num processo ainda indefinido, masque poderia ser provisoriamente encarado como umatentativa de carnavalizar a cultura (para onde vai a

Festa de São João?) ou de banali-zar o carnaval (o que farão da maiorfesta popular do Brasil?).

Todos esses eventos são com-preensíveis. O desenvolvimento re-gional passou a se dar como quede costas para o velho núcleo depoder. A população interiorana quenão migrou, criou e desenvolveulaços com os estados vizinhos,passando a viver sob a influênciadireta dos mesmos, construindouma nova regionalidade. Quantoaos chefes locais chegaram a culti-

var propostas separatistas – nas regiões cacaueirae sanfranciscana, por exemplo, com o desejo decriar os Estados de Santa Cruz e do São Francisco– visando a uma autonomia simples ou à anexaçãode parte do território baiano ao de algum Estado vi-zinho, como foi o caso do extremo-sul com relaçãoa Minas Geraes nos anos 50. No final, quase todoseles abdicariam de qualquer projeto estadual ounacional, ao contrário de um Franklin Lins de Albu-querque ou de um Horácio de Matos, contentando-se simplesmente com o domínio da paróquia, doreduto, coadjuvantes submissos e obedientes dian-te das lideranças maiores.

Os transportes e comunicações marcariam, de-cisivamente, o tempo desde os tropeiros, comoagentes de notícia e informações. A chegada e apartida dos mesmos marcavam os dias, as horasou mesmo os anos. No cotidiano das cidades e vi-las, o badalar dos sinos encarregava-se de marcarum tempo ainda mais lento: o meio-dia e as seis datarde de cada dia. Tropeiro e badalo começaramprimeiro a ter a companhia do apito do trem e desua inconfundível fumaça, do mesmo modo que nabeira-rio ou na beira-mar o dia do vapor era aguar-

O desenvolvimentoregional passou a se darcomo que de costas parao velho núcleo de poder.A população interioranaque não migrou, criou edesenvolveu laços com

os estados vizinhos,passando a viver sob a

influência direta dosmesmos, construindo

uma nova regionalidade.

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dado com ansiedade. Moças das cidades do SãoFrancisco encomendavam roupas especiais, defesta, para o dia da chegada a Juazeiro. Depois foia vez do pau de arara (levavam passageiros e tra-ziam bugigangas) e da buzina da marinete, anunci-ando a chegada da estrada e dando nova dinâmicaao ir e vir e às trocas em geral. As novidades eramsabidas mais rapidamente, os que migravam podi-am visitar os que ficavam mais facilmente. Muitoschegavam falando diferente, trajando modelos ecores que só eram vistos em O Cruzeiro, empu-nhando rádios portáteis, símbolo indiscutível deque tinham melhorado de vida, num verdadeiro cal-do do interior baiano com o sul industrializado.

Curioso, mas o rádio também ajudou Salvador aficar ou parecer mais distante. Com a massificaçãodaquele meio de comunicação, as equipes de fute-bol do Rio de Janeiro e de São Paulo passaram aser objeto de discussão e interesse, enquanto asde Salvador eram ignoradas ou delas pouco se sa-bia. Apenas os que precisavam ir à capital delas ti-nham alguma notícia. Enquanto as equipes cario-cas e paulistas, especialmente as primeiras, consti-tuíram verdadeiras torcidas por todo o interior, asda capital exerceram uma rivalidade restrita a estaúltima. Emblemático do fenômeno é o fato de que aúnica equipe campeã baiana de futebol localizadano interior chama-se Fluminense, é de Feira deSantana e também conhecida (um codinome é cla-ro) como Touros do Sertão.

Salvador também sentiria a mudança. A Esta-ção da Calçada, terminal importante da rede ferro-viária foi perdendo espaço para o Largo de SãoBento, ponto de chegada e partida das marinetesdo interior, antes da construção da primeira esta-ção rodoviária. Nas madrugadas e no cair da tarde,baianos de todos os interiores lá podiam ser encon-trados: embarcando ou desembarcando, levandoou recebendo encomendas ou pelo simples prazerde rever pessoas e receber notícias. A Petrobrásnos anos 50 e, depois, a industrialização da regiãometropolitana funcionaram como um reforço eco-nômico da posição da capital, mas de efeitos limita-dos no social, no político ou mesmo no cultural.Serviram para ressaltar uma Bahia heterogênea,diferenciada, singular em cada espaço ou região.

Tudo dito e comentado não passa de um olhar,uma versão diriam alguns, de quem, desde meni-

no, ouviu, entre curioso e surpreso, de todos osque se dirigiam para Salvador a afirmação natural econvicta: Eu vou para a Bahia.

Notas:

1 Sobre a ocupação desse espaço, conferir depoimento deJubilino Cunegundes ao autor (1984), parte de Memória Ser-taneja da Bahia, livro ainda inédito.

2 Depoimento de Ferreira Brito (1984).

3 Depoimento de Nelson Hayne (1985).

4 MENS. RELS. 1893, p. 4 - 5.

5 As séries GOV. e AGRIC. do Arquivo Público do Estado daBahia guardam vários exemplares desses contratos.

6 APEBa., Sec. Rep., GOV., maço 1974, Doc. 35 A, Ofícios re-cebidos. Vale registrar o expressivo número de propostas,na segunda metade do século XIX, que pretendiam ligar o li-toral com a margem direita do rio São Francisco, o quecorrespondia perfeitamente ao projeto de interiorização edescoberta dos sertões baianos.

7 APEBa., Sec. Col. Prov., A.L.P., maço 983, Abaixo-Assina-dos, 1850-1855, (manuscrito).

8 Antigos tropeiros do município de Jacobina registraram, emdepoimentos gravados, como ficou mais fácil transportarmercadorias e pessoas após a inauguração da estação deQueimadas, reduzindo em mais da metade a distância ante-riormente percorrida entre aquela primeira cidade e o litoral.

9 Para um acompanhamento mais detalhado da estrada deferro e da hidrovia, consultar Guerreiro de Freitas, 1992, es-pecialmente os capítulos 2, 3 e 4.

10 APEBa., Sec., Rep., AGRIC., caixa 55, maço 163, Doc. 511,Relatório Apresentado... (manuscrito).

11 Discurso do Governador J.J.Seabra na sessão solene deinauguração do Primeiro Congresso dos Municípios, em 15/3/1921. Diário Oficial do Estado, ano VI, 103, de 16/3/1921.

12 APEBa., Sec. Rep., AGRIC., caixa 63, maço 190, Doc. 775 –Relatório da Empresa Viação do São Francisco de 1931,1932 e 1933.

13 Os relatórios e tomadas de contas, tanto da EmpresaBahiana do São Francisco quanto da Viação Bahiana doSão Francisco, que se encontram no APEBa., são bemilustrativos e ricos de informações sobre a evolução do em-preendimento.

14 A documentação das séries AGRIC. e GOV. do APEBa. sãoextremamente ricas em informações sobre o avanço do ro-doviarismo, como política de transporte privilegiada.

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.24-37 Março 2000 37

15 Sobre a história da construção de estradas no Estado daBahia, recomendamos a leitura das Leis 828, de 17/8/1910,1.227, de 31/8/1917, 1.458, de 03/9/1920, 2.059, de 19/4/1928, além do Decreto 10.910, de 16/8/1938.

16 APEBa., Sec. Rep., AGRIC., caixa 60, maço 185 – Relató-rio apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Vital Henriques BatistaSoares, Governador do Estado da Bahia, pelos Engºs. Ci-vis Lauro de Andrade Sampaio e Osvaldo Augusto da Silva,Delegados do Estado da Bahia ao Segundo CongressoPan-americano de Estradas de Rodagem, Rio de Janeiro,1929.

17 APEBa., Sec., Rep., AGRIC.,, caixa 65, maço 193, Doc. 802– Relatório das ocorrências verificadas na Diretoria de Via-ção e Obras Públicas durante o ano de 1935, p.4.

18 A documentação consultada, principalmente as licenças eautorizações concedidas pelo Estado para a construção deestradas de rodagem e outras obras, entre 1924 e 1940, su-gere ser a mesma uma boa fonte para o estudo da históriadas empresas baianas contemporâneas.

19 Diário Oficial do Estado da Bahia de 03/10/1920, p.5.369.Decreto 2.306, de 30/9/1920.

20 APEBa., Sec., Rep., AGRIC., caixa 10, maço 25, Doc. 229 –Termo de Contrato...

21 APEBa., Sec., Rep., AGRIC., caixa 73, maço 210, Doc. 973-1 Relatório da Inspetoria de Viação, Indústria e Comércio1925 (ano 1924).

22 Nos maços 2871 e 2872 da série GOV. podem ser encontra-dos inúmeros recortes de jornais com tais notícias.

23 APEBa.. Sec., Rep., AGRIC., caixa 42, maço 122, Doc. 384– Projeto do Deputado Nestor Duarte, apresentado À As-sembléia Legislativa da Bahia, em 28/11/1935.

Fontes:

APEBa. – Arquivo Público do Estado da Bahia

AGRIC. - Secretaria da Agricultura, Indústria, Comércio, Viaçãoe Obras Públicas

COL. PROV. - Secção Colonial e Provincial do APEBa.

GOV. - Secretaria de Governo

MENS. RELS. – Mensagens e Relatórios dos Governadores eIntendentes do Estado da Bahia.

Sec. Rep. – Secção Republicana do APEBa.

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MAGALHÃES, E. F. As barcas e sua influência no desenvolvi-mento do São Francisco. Juazeiro: Tipografia e Papelaria Li-ceu, 1978.

MATTOSO, K, LEVY, B. L’empire brésilien et ses chemins de fer(1852 – 1889). fotocop. (inédito)

SANTOS, Milton. Pour une géographie nouvelle. Paris: Publisud,1984.

* Antônio Fernando Guerreiro de Freitas,Professor do Departamento de História

da Universidade Federal da Bahia.E-mail: [email protected]

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O território do cacauno contexto da mundialização

Vitor de Athayde Couto*

Como parte das comemorações do Descobrimento, aOrganização Internacional do Cacau reproduziu a primeira

viagem do cacau, há cerca de 500 anos, desde a suaAmérica Latina natal até a Europa, de onde ele se espalhoupara o resto do mundo. Das muitas viagens extraordinaria-

mente empreendidas ao longo dos séculos, nenhuma foitão colorida, extravagante e com tantos participantes

quanto a viagem do cacau e do chocolate. (ICCO)

Os sistemas agrários centrados na lavoura ca-caueira, seja ela monocultura ou atividade inte-grante de sistemas produtivos mais complexos, for-maram-se voltados para o mercado mundial. Re-manescentes do exclusivo colonial mercantilista,esses antigos sistemas agrário-exportadores jánasceram no contexto da internacionalização decapitais primitivos.

Neste artigo considera-se mundialização comouma etapa do processo de internacionalização docapital que balizou a formação do território baianodo cacau, aqui entendido como sistema agrário.1

Todavia, esse conceito, de inspiração agroecológi-ca e muito próximo do que se convencionou cha-mar Região Cacaueira, requer uma extensão paraalém da sua materialidade. Em outras palavras, umterritório socioeconômico não se demarca, desdeque não se revela por meio de sinais exclusivamen-te visíveis, como, por exemplo, a presença física docacaueiro. Território do cacau supõe espacializa-ção mais complexa.

Segundo o Fórum Nacional da Agricultura (FNA)– Grupo Temático do Cacau (1997), a forma comose deu a ocupação dessa região, a cultura agrícola

que lhe serviu de sustentáculo econômico, as etniasdos que aqui chegaram, a riqueza dos recursos na-turais e o favorecimento das condições edafoclimá-ticas, foram alguns dos ingredientes básicos quepermitiram a formação desse “território conhecidocomo Nação Grapiúna ou Civilização do Cacau”(p.89). Apesar dos permanentes conflitos, Baiardi(1998, p.7) observa, na Região Cacaueira, um ele-mento histórico de unificação: a reivindicação de suaidentidade. “Engana-se quem imaginar que a ca-cauicultura está morta, que é uma página virada nahistória da economia da Bahia. Ela continua viva,malgrado os percalços e as vicissitudes, resultadosde avaliações e práticas equivocadas do Estado edos agentes produtivos” (Ibid.).

Se, por um lado, o território do cacau não se de-fine satisfatoriamente pelos sucessivos projetos deregionalização elaborados ao longo dos anos,2 poroutro, essa mesma regionalização pode contribuirpara que se compreenda a crise-criadora e sua re-estruturação – objeto central deste artigo.

Diferentemente de uma crise de ciclo econômi-co convencional (causada por alterações cambiaisou de preços, por exemplo), a crise-criadora já trazconsigo os elementos internos e/ou externos dasua própria superação. Ela é objeto de uma análi-se-diagnóstico (causas da crise) e, ao mesmo tem-po, de uma reestruturação reveladora de diferentesestratégias dos agentes (saídas da crise). Identifi-car e compreender essas estratégias, sob condi-ções de incerteza, é o grande desafio para que sepercebam tendências.

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Especificamente, objetiva-se conhecer as prin-cipais causas e saídas da crise, em duas partes.Na primeira (item 1), as “crises do cacau” são trata-das enquanto fases do ciclo econômico. Retrai-seo agronegócio, em decorrência da queda dos pre-ços pagos ao produtor e da produtividade da lavou-ra, cuja principal repercussão é a diminuição imedia-ta da renda e do emprego na Região Cacaueira.São várias as razões que contribuem, todas elas,para a redução dos preços e da produtividade.

Na segunda parte (item 2), as “saídas da crise”constituem o principal objeto de análise. Mas aí jánão basta analisar apenas a produção vegetal deamêndoas nos limites da Região Cacaueira. Agora,a crise-criadora envolve toda a cadeia produtiva docacau (principalmente o segmento a jusante docomplexo agroindustrial, representado pelas indús-trias processadora e chocolateira), do ponto de vis-ta das estratégias dos agentes, diante da incerteza.Essas estratégias, que refletem uma nova dinâmi-ca econômica regional, extrapolam os limites tantoda Região Cacaueira quanto da cadeia produtiva ese ajustam melhor à noção de espaço de investi-mento em termos de eixo geoeconômico3 ou territó-rio do cacau no contexto da mundialização.

Finalmente, no item 3, analisa-se a reestrutura-ção da cadeia produtiva do cacau, procurandoidentificar fenômenos que sinalizem a inserção re-gional, tanto do ponto de vista da lavoura (item 3.1)quanto da indústria (item 3.2).

As crises do cacau

Consideram-se crises do cacau, mais particular-mente, as crises cíclicas que atingem a monocultu-ra agrícola, ou seja, a lavoura ou produção vegetalde cacau em amêndoas. Em termos espaciais, acrise da lavoura tem impacto imediato sobre o con-junto de atividades que se desenvolvem no interiorda região produtora.

A chamada Região Cacaueira da Bahia locali-za-se no Sudeste do Estado, entre o litoral e o me-ridiano 400, e os paralelos 130 S e 160 S (Araújo &Campos, 1998). O agronegócio do cacau, incluin-do-se aí parte da cadeia produtiva, concentra-se naregião econômica Litoral Sul, principalmente nosmunicípios de Ilhéus e Itabuna, que detêm 2,6 % e1,7 % de participação na economia baiana, ocu-

pando, respectivamente, a sexta e décima classifi-cação no conceito do PIB municipal, dados de1996. Por serem bastante representativos da eco-nomia regional, importa observar a dinâmica popu-lacional desses dois municípios entre 1991 e 1996,fase depressiva do ciclo de crise.4 Enquanto a taxade crescimento populacional de Itabuna permane-ce estável (0,03 %), o município de Ilhéus, que de-tém a terceira maior população do Estado, experi-menta uma das maiores taxas de crescimentopopulacional (3,80 %).

Essa dinâmica populacional está relacionadacom as estratégias de saída da crise, principalmen-te estratégias de diversificação das atividades eco-nômicas, analisadas mais adiante.

Antes, porém, importa fazer um pequeno históri-co dos ciclos do cacau, discutir as causas da criseatual, bem como situar a sua importância no con-texto da agropecuária do Estado.

• Histórico

Historicamente, a lavoura cacaueira sempre es-teve submetida a forte tensão e, há muito, se discu-tem os seus problemas, na tentativa de solucioná-los.As crises típicas de monoculturas sempre estive-ram presentes na cacauicultura brasileira, especial-mente baiana, com muito mais intensidade que nasdemais culturas de exportação.

As crises do cacau são fases depressivas dosciclos econômicos. Os ciclos curtos, que podem sertanto de natureza endógena quanto exógena, têmperiodicidade juglariana (de seis a dez anos), comvariações alternadas de expansão e contração daatividade predominante, cujas causas podem servárias. No caso dos ciclos do cacau, uma das expli-cações pode ser encontrada nas teorias da super-produção e subconsumo, cuja visibilidade se mani-festa no comportamento dos preços das suascommodities no mercado internacional. Outra expli-cação, de corte monetarista, está relacionada comas ações institucionais na área do câmbio, do fisco(particularmente o confisco cambial) e do crédito.Esses ciclos, que aconteceram em 1957, 1961,1971, 1987 e 1989, têm apresentado uma certa re-gularidade, conformando crises conjunturais.

As crises de ciclo longo, por sua vez, têm sidoainda mais regulares que as de ciclo curto, mani-

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festando-se a cada três décadas, em 1930, 1957 e1987. Do ponto de vista de uma leitura schumpete-riana do ciclo Kondratieff, essas crises são caracte-rizadas por impactos estruturais e as soluções vêmpor ondas tecnológicas, provocadas por inovaçõesmais ou menos radicais (ver nota 5).

A primeira grande crise do cacau ocorreu em1930, quando predominava o capital comercial li-gado diretamente ao mercado internacional. Nesseperíodo, houve uma queda brusca de preços dascommodities internacionais, entreelas, o cacau e seus derivados, de-corrente da depressão que atingiaa economia mundial como um todo.Para superar os baixos resultadosda lavoura, o governo criou o Insti-tuto de Cacau da Bahia (ICB), queinvestiu em inovações, sobretudonos transportes (construção e re-cuperação de rodovias), processa-mento, embalagem, armazenamento eembarque das amêndoas.

A segunda começou em 1957 eteve grande participação do Brasil,que era um dos primeiros produtores mundiais.Nessa época, houve um descuido muito grandecom a lavoura cacaueira por parte dos produtoresbrasileiros; eles viviam basicamente do extrativis-mo, sem investir na modernização da produção, oque acarretava baixos níveis de produtividade. Poroutro lado, os países africanos, que produziam ca-cau com base em sistemas de produção familiarapoiados por políticas públicas específicas, aumen-taram sua produção. No entanto, esse aumento nãofoi suficiente para abastecer o mercado mundial;como conseqüência, caíram os estoques mundiaisdo produto, aumentando o seu preço. O Brasil nãopôde aproveitar essa oportunidade comercial. A cri-se foi atacada via expansão do capital agroindustri-al a montante, pela implantação da CEPLAC e doseu “pacote tecnológico”, fatos que levaram à inte-gração produtiva da lavoura e a melhorias no pro-cesso produtivo das amêndoas. Em decorrênciadesses acontecimentos, construiu-se toda uma es-trutura técnica e de serviços, e fortaleceram-se ainfra-estrutura e a imagem do cacauicultor.

Foi entre 1970 e 1977 que a cacauicultura brasilei-ra experimentou seu auge, quando uma alta dos pre-

ços coincidiu com safras recordes, o que trouxe lu-cros elevados ao produtor, promovendo um surto deprosperidade em toda a região. No comércio e na in-dústria o ambiente era semelhante, tendo-se geradograndes lucros. Os donos e dirigentes das empre-sas, além de receberem honorários mensais, partici-pavam dos lucros das operações ao final de cadaano, o que lhes garantia um elevado padrão de vida.

O produtor médio não pensou em fazer econo-mia, tampouco em racionalizar a sua lavoura, pelo

contrário, esbanjou fortunas emgastos supérfluos. Em casos raros,investia-se na própria fazenda.Ainda assim, alguns limitavam-seà construção de luxuosas casas-sede, jardins, piscinas, deixandode lado os investimentos produti-vos, com vistas à modernização,aumento do rendimento físico oudiminuição de custos operacionais.

A última crise acontece em1987, uma década após a fase áu-rea do cacau baiano, exatamentequando se estrutura o complexo

agroindustrial do cacau, com a expansão da agro-indústria a jusante. Antes de eclodir a crise, verifi-ca-se uma forte queda no preço das amêndoas,decorrente da participação de novos países produ-tores, com aumentos da área plantada e do rendi-mento físico, o que provoca uma superprodução.Logo em seguida, chega à Bahia a doença “vas-soura-de-bruxa”, fazendo cair o rendimento físico doscacaueiros e a produtividade do trabalho.

Os baixos preços e a produtividade declinanteformam um novo perfil de produtor, que mal conse-gue cobrir seus custos com a receita da sua produ-ção. Como conseqüência, ele é levado a se desfa-zer de seu patrimônio e a reduzir os tratos culturaisnas fazendas, causando o desemprego de mais dametade da mão-de-obra que trabalha com o cacau.Ocorre também o fechamento de muitas empresas,e tem início a importação de cacau africano paraatender às necessidades da já consolidada indús-tria processadora e de chocolate.

Em virtude das dificuldades financeiras, algunscacauicultores vêm derrubando árvores nobres ecentenárias, como os jacarandás e os jequitibás,causando fortes pressões sobre o meio ambiente,

Foi entre 1970 e 1977que a cacauicultura

brasileira experimentouseu auge, quando

uma alta dos preçoscoincidiu com safras

recordes, o que trouxelucros elevados ao

produtor, promovendoum surto de

prosperidade emtoda a região.

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a fim de venderem a madeira para serrarias clan-destinas. Essa pressão sobre a Mata Atlântica, in-clusive ciliar, desestrutura o ecossistema da região,ameaçando as cabeceiras de rios e riachos, alémde fazer com que ocorram erosões, já que o relevoda região é bastante inclinado e facilita a lixiviaçãodo solo sem cobertura vegetal.

No entanto, essa crise tem provocado profun-das mudanças no complexo agroindustrial do ca-cau. Estão ocorrendo transformações na estruturade mercado e preços, que se refletem na produtivi-dade e na gestão de estoques internacionais.

Diante desse quadro, formaram-se duas corren-tes principais, uma que defende o fim da cultura docacau na Bahia e outra que insiste em sua manu-tenção. O Estado vem renegociando dívidas dosprodutores, investindo em pesquisa, financiando en-xertias e clonagens. Alguns produtores estão ado-tando inovações tecnológicas, diversificando a pro-dução, introduzindo novos produtos e processos,inclusive princípios da agroecologia, com a finalida-de de reduzir o uso de agroquímicos e, por exten-são, os custos operacionais. Observam-se tambéminovações organizacionais, com a introdução de no-vas formas de manejo e de processos técnicos,reestruturando a gestão das fazendas. Por outro lado,muitos produtores estão substituindo completa-mente suas lavouras de cacau por pastos, por ou-tras culturas, e até por atividades não-agrícolas.

Espera-se que toda essa movimentação resultena construção, ao longo dos próximos anos, deuma trajetória regional no sentido evolucionista,pois, até o momento, não existe consenso sequer arespeito das causas da crise que começa em 1987.

• Causas da crise

Gasparetto (1998, p.53) destaca a perda de po-pulação “em termos absolutos” como o principal in-dicador da crise “dramática” que vem sendo experi-mentada pela Região Cacaueira. “Para se ter umaidéia disso, basta apenas referir que, do Censo De-mográfico de 1991 à Contagem Populacional de1996, dos 41 municípios da Microrregião Ilhéus-Itabuna, 27 perderam população”. “Na medida emque se expõe frontalmente à competição”, uma re-gião-celeiro de analfabetos (baixíssima taxa de al-fabetização, inferior a 50% na área rural de todos

os municípios da microrregião) está despreparadapara o mundo globalizado – “a menos que sejam apobreza e a exclusão social e econômica as mar-cas desse novo mundo” (Id., p.55).

Baiardi (1998), referindo-se à crise da lavourado cacau, aponta para a importância do setor, mes-mo “perdendo peso na economia do Estado” – oque não tem desmotivado pesquisadores. “Poucasatividades econômicas têm um perfil e uma identi-dade marcadamente regionais como a cacauicultu-ra, a ponto de ter criado uma civilização” (p.5). Des-taca, no plano tecnológico, que especificidades dafisiologia do cacaueiro – que exige cobertura arbóreapara sombreamento – fizeram introduzir o primeirosistema agroflorestal no Brasil, criando uma rela-ção de dependência entre a cacauicultura e a MataAtlântica. A atual crise do sistema produtivo temsuas raízes na gestão ineficiente. “A vassoura-de-bruxa e as políticas de redução dos subsídios ape-nas apressaram a sua eclosão” (p.11).

Embora referindo-se aos baixos preços e a fato-res climáticos adversos nos últimos anos, Pinto ePires (1998, p.6) consideram o alastramento davassoura-de-bruxa como sendo a principal causa doarrefecimento da cacauicultura:

Como conseqüência, reduziram-se em milhares de unidades

os postos de trabalho e iniciou-se um intenso processo de

substituição de áreas da lavoura por pastagens principal-

mente, destruindo os remanescentes da Mata Atlântica, que

eram preservados com o objetivo de proteger o cacau da

exposição direta ao sol.

Araújo & Campos (1998, p.1) também se refe-rem a ciclos do cacau. Eles definem a crise combase na conjugação da redução de preços com aqueda de produção. Esse fenômeno:

(...) provocou impactos expressivos de ordem econômica,

social e política sobre a região produtora da Bahia, cuja eco-

nomia é alicerçada na monocultura do cacau. Além disso, a

partir de 1989 surgiu um fato novo: a cacauicultura baiana foi

duramente atingida pela doença conhecida por vassoura-

de-bruxa, causada pelo fungo Crinipellis perniciosa, que ata-

ca os tecidos de crescimento do cacaueiro, principalmente

os ramos e frutos. (...) As oscilações na produção e no nível

de preços do cacau, no Estado da Bahia, têm resultado em

variações constantes no valor da produção. Essa situação

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gerou ciclos com períodos de prosperidade e recessão para

a região produtora.

Ademais, a persistência da crise vem causandoo empobrecimento da região, que experimenta que-da significativa da renda regional. Com base na sé-rie 1975-95 e valores reais de dezembro 1995,analisando o comportamento do valor da produçãode cacau e dos fatores responsáveis por sua varia-ção, aqueles autores identificaram períodos de pros-peridade e declínio:

O período de 1975-77 corresponde a

uma época em que o valor da produção

de cacau recebido pelos produtores do

Estado da Bahia teve um crescimento

excepcional, variando de R$ 789,20 mi-

lhões em 1975 para R$ 2.116,35 milhões

em 1977. A partir deste ponto ocorreu

um declínio que se prolongou até 1982,

quando o valor da produção atingiu R$

779,95 milhões. Novamente o valor da

produção voltou a ascender até iniciar,

em 1986, uma queda contínua, atingindo

em 1995 o ponto mais baixo, com ape-

nas R$ 164,05 milhões (Id., p.4)

Dentre os efeitos preço, área e rendimento ana-lisados, os autores concluíram que o efeito preçofoi o mais prejudicial ao valor da produção.

Ao registrar, como “único programa existente”, ocombate à vassoura-de-bruxa, o FNA (1997, p.28)critica “ações de natureza exclusivamente agronô-mica” (p.35) e adverte para as recomendações con-centradas na ampliação do programa de recupera-ção da lavoura cacaueira, obrigando todos osprodutores às práticas agrícolas recomendadas paratodos os níveis da doença, conforme orientação daCeplac (Id., p.38) – o que recoloca a vassoura-de-bruxa como causa principal da crise.

Neste artigo, considera-se a crise da lavouracomo sendo o produto da convergência de um con-junto de fatores que repercutem simultaneamentesobre o rendimento físico, a produtividade do traba-lho, a renda, o emprego e a dinâmica populacional.Esses fatores são, tanto externos:

• preços baixos;• grandes estoques mundiais de amêndoas;

• substituição e/ou redução do cacau nos “cho-colates” e afins;

• entrada de novos concorrentes (Ásia-Oceania),com inovações tecnológicas e estratégias de redu-ção de custos;

• reestruturação da lavoura e indústria proces-sadora, principalmente na costa do Marfim (maiorprodutor mundial), quanto internos:

• gestão ineficiente, conservadora e clientelista;• desestruturação do ecossistema;

• clima adverso;• doenças do cacaueiro;• quedas do rendimento físico e

da produtividade do trabalho;• redução de preços e da pro-

dução;• baixo nível de escolaridade,

principalmente na área rural.A propósito do clientelismo, o

FNA (1997) é revelador. Repletode contradições, o documento re-flete bem a realidade regional queé, igualmente, contraditória – hajavista os diferentes interesses colo-cados em discussão. De um lado,

critica-se a postura conservadora dos agentes, e,de outro, propõem-se as mesmas intervenções his-tóricas e tradicionais. Por exemplo, lê-se, à página19, que “não se pode continuar oferecendo solu-ções fáceis que propiciam popularidade enganosa(subsídios, crédito barato, prazos longos, perdãode dívida), que o Estado não está mais disposto aatender”, enquanto, à página 69, propõe-se“refinanciar a dívida pública e privada dos produto-res”, com recursos do Fundo de Assistência ao Tra-balhador (FAT), normas do crédito rural e equiva-lência-produto.

Embora advirta que o problema do cacau “nãopode continuar sendo analisado do ponto de vistaespecífico da lavoura”, definindo prioridade equivo-cada e investimentos públicos em tecnologia, “semlevar em conta demandas do agribusiness comoum todo” (Id., p. 31), o documento critica as medi-das atualmente em curso, que não podem continu-ar sendo implementadas sem uma discussão am-pla por parte de todos os interessados, que sejasubstrato dos interesses mais representativos dolado da oferta (sic). Lado da oferta, leia-se, do lado

Considera-se a criseda lavoura como sendo

o produto daconvergência de

um conjunto de fatoresque repercutem

simultaneamente sobreo rendimento físico,

a produtividadedo trabalho, a renda,

o emprego e a dinâmicapopulacional.

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.38-52 Março 2000 43

da lavoura. O documento chega a propor a recom-moditização do cacau, ou seja, a “retomada da tra-dição do cacau como cultura de exportação” (Id.,p.97); e, finalmente, um fundo (Funcacau) é maisuma vez proposto com o objetivo de defender pre-ços da commodity, promover o desenvolvimentotecnológico (produtividade), o tratamento fitossani-tário da lavoura (leia-se lavoura cacaueira) e a pro-moção do “desenvolvimento da cacauicultura naci-onal” (Id., p.104). No limite, a quase totalidade daspropostas permanece atrelada ao ponto de vistaespecífico e exclusivo da monocultura.

• Os impactos da crise

Dados elaborados pela Superintendência de Es-tudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) situam ovalor bruto da produção agropecuária baiana em tor-no de R$ 4,6 bilhões, em 1999, observando-se umcrescimento de 11% em relação ao ano anterior:

Considerando-se apenas o valor da produção vegetal, o

crescimento se eleva para 12%, atingindo R$ 3,0 bilhões.

Esse bom resultado deve-se principalmente ao crescimento

da safra de grãos e à desvalorização cambial ocorrida no

começo do ano, que tornou mais remunerativos, em reais,

os preços de alguns produtos orientados à exportação,

notadamente a soja. (Todavia) o cacau ainda é o principal

produto agrícola do Estado, a despeito das crises dos últi-

mos anos (SEI, 1999, p.27).

Essa afirmação não resulta de uma observaçãopontual, mas de uma análise plurianual, comme ilfaut, pois não se costuma hierarquizar desempe-nhos de atividades agrícolas com base em uma úni-ca safra (ou ano civil, quando é o caso). No mínimo,utilizam-se médias trienais. Sob condições de ins-tabilidade (climática, ambiental e de preços), o maiorgrau de incerteza pode requerer médias qüinqüe-nais, por exemplo. Assim é que, no caso de umaobservação anual isolada, o cacau já começa a di-vidir a primeira posição com o café e a soja. Embo-ra já se percebam efeitos positivos provocados pe-las inovações tecnológicas e organizacionais intro-duzidas na cacauicultura baiana durante a décadade 90, ainda não se pode fazer projeções muito oti-mistas. Essa prudência se aplica a toda cultura pe-rene, cuja vida útil supera, em muito, a duração do

tempo reservado para a pesquisa de variedadesresistentes que precede inovações tecnológicasquase radicais5, com elevado grau de incerteza.

O IBGE/GCEA - Grupo de Coordenação de Es-tatísticas Agropecuárias estima,6 para a cacaui-cultura baiana, mais uma queda de produção(-32,24%), área colhida (-3,74%) e rendimento físi-co (-29,6%). Observe-se que a menor queda na áreacolhida pode significar um esforço dos agentes paranão abandonar a atividade. Em 1998 colhem-se234,9 mil toneladas de cacau em amêndoas; essaprodução cai para apenas 159,2 mil toneladas, em1999. Reduzem-se também a área colhida, de621,0 mil para 597,8 mil hectares, e o rendimentofísico, de 378 para apenas 266 kg/hectare.

Embora utilizando metodologia diferente (anoagrícola, em lugar de ano civil), a Organização Inter-nacional do Cacau (ICCO) divulga, para a cacauicul-tura brasileira, os seguintes resultados: no ano agrí-cola 1987/88 produziram-se 382,6 mil toneladas decacau em amêndoas, com uma participação de17,4% no total mundial. Em 1997/98, essa participa-ção cai para apenas 6,3%, de uma produção que seestabiliza em torno de 170,0 mil toneladas (ICCO,1999). Pelo menos para as duas safras vindouras, ocenário não é otimista. Na “Coluna do Cacau” (ATarde, 29/05/00, p.7) faz-se uma referência à “piorsafra de cacau”, que terminou em 30 de abril último,com um resultado final em torno de 1,65 milhão desacos, sequer alcançando 100 mil toneladas.

Traduzida em termos de desemprego, essa últi-ma queda, de 70 mil toneladas, pode estar signifi-cando a perda de quase 65 mil empregos diretos,somente na lavoura. Para essa estimativa, utiliza-ram-se aqui os coeficientes apresentados por Reiset al. (1999). Citando vários autores, eles conside-ram que um trabalhador rende 250 jornadas porano, e, na Bahia, para cada 2,4 hectares de cacau-eiros implantados, é gerado um emprego direto.Aqueles mesmos autores trabalham com a hipóte-se de que 1 hectare de cacaueiros rende, por ano,450 kg de amêndoas. Todavia, o impacto da “piorsafra” sobre o nível de emprego deve ser um poucomenor, porquanto mais de 30 mil hectares de ca-caueiros estão sendo enxertados com variedadestolerantes à vassoura-de-bruxa, gerando uma rela-ção trabalhador-hectare próxima das condições deprimeiro ano.7

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44 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.38-52 Março 2000

As saídas da crise

O ambiente de incerteza e o enfrentamento dacrise impõem a reestruturação produtiva, requereminovações. A crise revela-se criadora, multiplicam-se as estratégias dos agentes inovadores.

Como principal estratégia regional, diversificam-se as atividades econômicas. Dessa vez, a dinâmi-ca regional já não mais se vincula à cadeia produti-va do cacau, tampouco à Região Cacaueira. Ainserção regional no mercado glo-bal supõe uma nova configuraçãoespacial.

• A inserção regional

Segundo Uderman (2000, p.26),desencadeou-se, a partir de 1995,uma nova dinâmica econômica re-gional.8 Emerge um importante se-tor de produtos eletroeletrônicos,com possibilidades de gerar efeitos integradorespara frente e para trás do complexo, multiplicandoassim o seu potencial expansionista. “O Distrito In-dustrial de Ilhéus responde hoje por cerca de 10%do mercado de microcomputadores do país, apre-sentando grandes possibilidades de expansão”.

Analisando os dados de investimentos previs-tos, aquela autora utiliza como referência a divisãogeoeconômica que delimita áreas geográficas apartir dos grandes corredores de circulação da pro-dução. “Os chamados Eixos Econômicos, que nor-tearão a execução da política de desenvolvimentodo Governo do Estado da Bahia no próximo quadriê-nio, bem como a elaboração e execução de seusplanos e orçamentos” (Id., p.29).

Prosseguindo na sua análise dos investimentospara o Eixo Mata Atlântica, Uderman estima queeles representam 3,4 % dos investimentos industri-ais programados e 11,2 % dos empregos diretos aserem criados. Dos 19 projetos industriais previstospara o eixo, sete integram-se ao complexo eletroe-letrônico. Todavia, a maior parte dos empregos in-dustriais deverá ser gerada na indústria de calça-dos (Itabuna, Ilhéus e Ipiaú) e de confecções (Ilhéuse Itabuna).

Pela ordem de importância dos investimentosprevistos, seguem-se quatro projetos da indústria

de alimentos, “dois deles vinculados à cadeia debeneficiamento de cacau”. Ao contrário dos demaissegmentos, não se trata de empreendimentos dotipo new comers, mas de projetos de “ampliação deplantas industriais que já operam no município deIlhéus” (Id., p.49). A autora menciona ainda doisprojetos a serem executados em Belmonte e Itapebi,sendo, o maior deles, uma planta industrial para aprodução de vidros.

• O novo rural

Apesar de ser um fenômeno na-cional, o novo rural9 se intensificanos espaços onde as atividadesagrícolas tradicionais que experi-mentam crise e/ou reestruturaçãoliberam mão-de-obra. Mas essemovimento não é exclusivo de tra-balhadores rurais desocupados ouparcialmente ocupados. Alguns pro-

prietários inovadores, ao serem afetados pela que-da da renda agrícola, diversificam as suas atividadesrurais, tanto agrícolas quanto não-agrícolas. Neste úl-timo caso, tornam-se agricultores em tempo parcial e/ou pluriativos,10 atores do novo mundo rural.

Retomando a referência da Região Cacaueira,observa-se, ali, a emergência de novas atividadesagrícolas, desde quando operam estratégias de di-versificação. Muito se tem escrito a respeito da in-trodução de novas lavouras e criatórios (inclusiveaquelas atividades voltadas para nichos de merca-do), mas o que importa registrar no espaço desteartigo é a possibilidade de reestruturação do antigosistema agrário do cacau. É desejável que esse sis-tema evolua para a conformação de sistemas agroflo-restais diversificados e sustentáveis, para o que a re-gião reúne todas as condições, inclusive culturais,calcadas no tradicional modelo cacau-cabruca. Norelatório do FNA (1997), lê-se, à página 90:

O novo e o velho nas terras grapiúnas já haviam se encon-

trado muito antes das recentes formulações de modernidade

no sistema cacau-cabruca, apresentando-se, ainda hoje,

como uma alternativa viável, segura e moderna, servindo

como um modelo de desenvolvimento sustentável e correto

para o próximo milênio.

Como principalestratégia regional,diversificam-se as

atividades econômicas.Dessa vez, a dinâmicaregional já não mais se

vincula à cadeia produtivado cacau, tampouco à

Região Cacaueira.

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Não é por outra razão que a Região Cacaueirada Bahia constitui, ainda hoje, o espaço nacionalonde a Mata Atlântica possui os seus mais signifi-cativos remanescentes.

Quanto ao novo rural não-agrícola, Couto Filho(2000) inclui a Microrregião Ilhéus-Itabuna entreaquelas que compõem a grande região litorâneatradicional.11 “Nesta região, apesar de suas culturastradicionais estarem em crise, surgem outras alter-nativas econômicas, inclusive não-agrícolas, comoas atividades voltadas para o turis-mo” (Od., p.109). Nessa mesma di-reção, Ribeiro (1998, p.149) anali-sa os espaços dinâmicos da Bahiae destaca, além da importância docacau – “apesar da crise instaladadesde o final da década de 80” – adiversificação das atividades eco-nômicas de Ilhéus, particularmentea contribuição do turismo e do pólode informática. No espaço rural, di-versificam-se também os sistemas de produção,12

onde emergem atividades não-agrícolas, inclusiveo promissor turismo rural.

• A integração regional

A integração do Eixo Mata Atlântica é aqui con-siderada no sentido da sua inserção no mercadoglobal. Viu-se que os novos investimentos já reve-lam estratégias de diversificação das atividades eco-nômicas regionais. Essas atividades apresentamdiferentes possibilidades integradoras e tecnológi-cas (indústria eletroeletrônica), geradoras de em-prego (indústria de calçados/vestuário, turismo),agregadoras de valor (beneficiamento de cacau eoutras indústrias agroalimentares).

Dada a sua importância econômica, histórica ecultural, o sistema agrário centrado na monoculturado cacau (social e institucionalmente organizadaem torno do sindicalismo rural, conselhos e outrasinstituições) ainda representa um foco de resistên-cia às transformações requeridas pelos novos pa-drões de qualidade, organização e competitivida-de. Todavia, como esse sistema já não se encontramais exclusiva ou hegemonicamente conectado aomercado externo de amêndoas, a sua inserção nomercado global supõe a reestruturação de toda a

cadeia produtiva. Esta, por sua vez, opera no con-texto de transformação do conjunto da indústria dealimentos no Brasil, cujo elemento dinamizador é omercado interno – principal atrativo do atual fluxode investimentos externos diretos.

A maior parte da literatura disponível sobre acadeia produtiva do cacau ainda revela um certoespanto, por parte de alguns analistas, em relaçãoàs transformações recentemente observadas nosegmento a jusante do complexo, particularmente

nas indústrias processadora echocolateira.13 Já é tempo de serever essa mono cultura, essepensamento único regionalista nosentido agroecológico e etno-soci-oeconômico, para se começar apensar em termos sistêmicos. Nãose pode mais analisar a cadeiaprodutiva do cacau como se elanão fizesse parte da indústria dealimentos, a qual vem experimen-

tando grandes transformações no contexto damundialização com integração de mercados.

a) a indústria de alimentosA exemplo do que ocorre com os segmentos

mais dinâmicos da indústria de alimentos no Brasil,as indústrias processadora e chocolateira vêm ex-perimentando significativo processo de reestrutura-ção competitiva. Belik (1999, p.15), utilizando dadosda Associação Brasileira da Indústria da Alimenta-ção (ABIA), calculou em 40,3 % a evolução do fatu-ramento na indústria de chocolate, cacau e balaspara o período 1985-1995. Neste último ano, o seufaturamento teria alcançado 1,81 bilhão de dólares.Além de continuar evoluindo positivamente por todaa segunda metade dos anos 90, esse mercado (in-terno) tem despertado o interesse dos oligopólios in-ternacionais, tornando-se objeto de uma verdadeiramergemania.14 A face mais visível dessa reestrutu-ração revela-se no movimento de centralização econcentração de capitais com progressiva desnacio-nalização de empresas brasileiras.

Analisando-se os indicadores de movimentaçãode capital nacional e estrangeiro através de fusõese aquisições, “o setor de alimentos e bebidas ficaatrás apenas do setor financeiro. Isoladamente, tra-ta-se da maior indústria no Brasil em termos de

Dentre os espaçosdinâmicos da Bahiase destaca, além da

importância do cacaua diversificação das

atividades econômicasde Ilhéus, particularmentea contribuição do turismoe do pólo de informática.

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empregos formais. O efeito de encadeamento des-sa indústria também é bastante elevado” (Id., p.13).Ao lado da indústria têxtil, produtos de metal, ma-quinário e papel, a indústria de alimentos foi a queapresentou os maiores encadeamentos regressi-vos e progressivos da economia nos anos 80. Esseresultado surpreende uma vez que “a produção dealimentos não foi objeto de nenhuma política indus-trial por parte dos governos e nem participou ativa-mente do processo de substituição de importações”(Id.). O mesmo autor, analisando osindicadores de crescimento da in-dústria no Brasil (IBGE), observaum significativo aumento do valorda produção de alimentos e bebi-das. Em comparação com o acu-mulado da indústria que cresceu23,1 % entre 1981 e 1989, o setor de alimentosacumulou um crescimento de 25,1 % e o de bebi-das de 37,2 %. Mas, o grande deslanche dos seto-res de alimentos e bebidas ocorreu entre 1990 e1997, com um crescimento de 24,4 % e 36,3 %,respectivamente, contra apenas 8,1 % de toda aindústria. E observa:

Uma das razões da mergemania está na fragilidade tecnoló-

gica do aparato produtivo e nas boas perspectivas quanto ao

volume de demanda futuro. No caso da grande empresa, o

processo de reestruturação está levando a algo mais que a

simples entrada de recursos do exterior. Por um lado, há

uma profunda reorganização da produção e isso pode ser

observado com muita ênfase em segmentos como laticínios,

chocolate, conservas, massas e biscoitos. Por outro, há a

aproximação tecnológica do padrão produtivo brasileiro da-

quele verificado nos países do primeiro mundo (e, portanto,

de renda mais elevada). (Id., p.14).

Não só a aproximação do padrão produtivo,mas, também, dos hábitos de consumo (fast-food,packing, out-door, cusher, alimentos étnicos e die-téticos, segmentos saúde, esportes, religião, ter-ceira idade etc.) levaram os oligopólios diferencia-dos a empreender estratégias de diversificaçãodos produtos, com grandes investimentos em mar-keting, embalagens e logística. Se, de um lado, oconsumidor brasileiro beneficiou-se com a estabili-zação da economia e até mesmo da redução dospreços dos alimentos, o produtor rural e a indústria

de alimentos viram cair a sua rentabilidade. Em al-guns casos da produção agrícola essa queda foicompensada por uma maior produtividade e pelasubstituição de atividades.

Na indústria houve uma busca de maior produtividade e o

estreitamento de margens. Como era previsto, os segmen-

tos da indústria de alimentos que lograram manter os níveis

de faturamento nos últimos quatro anos foram justamente

aqueles nos quais o processo de diferenciação de produtos

avançou mais. Nestes segmentos podemos

incluir os derivados de trigo, biscoitos, mas-

sas, etc.; o segmento de chocolate, cacau e

balas; laticínios e conservas vegetais e su-

cos (Id., p12).

Para além das inovações tec-nológica e organizacional, observa-se tambémuma grande movimentação no domínio da proprie-dade dos ativos. A indústria de alimentos tem sidoobjeto de operações em bolsas de valores ou nomercado secundário de empresas, que se tornamalvo de ataques por grupos de especuladores quepossuem uma face de “investidores produtivos”.

b) na BahiaAcompanhando o mesmo rumo do mercado

mundial e nacional, a indústria baiana de alimentostem sido objeto de uma ampla reestruturação com-petitiva. Segundo Uderman,

o complexo agroalimentar tem incrementado e diversificado

a sua produção, que passou de 13,9% para 16,5% do VTI

estadual entre 1985 e 1997 (SEI, 1999).

Esse movimento embute uma expansão da pro-dução estadual de bens de consumo finais – noâmbito dos novos investimentos agroalimentares, aparticipação da produção de bens finais alcançacerca de 74,6% – ao tempo em que estimula umamodernização dos padrões produtivos setoriais, àmedida que se relaciona, principalmente, ao forta-lecimento da cadeia grãos-carnes e à implantaçãode unidades de produção de bebidas e alimentosvinculadas a grandes empresas, que seguem umpadrão elevado de qualidade dos produtosofertados e investem na implantação de métodosde organização dos processos produtivos. Desdo-

A indústria de alimentostem sido objeto de

operações em bolsas devalores ou no mercado

secundário de empresas.

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brando-se para a base de fornecimento agrícola,essa modernização setorial tende a transformar ascaracterísticas da agricultura de algumas áreas deprodução, a partir das exigências de um grandedemandante que muitas vezes estabelece esque-mas de quase-integração com os seus fornecedo-res (Uderman, 2000, p.20).

Analisando a previsão de investimentos paraos próximos anos, aquela autora identifica a exis-tência de 50 projetos, no valor de R$ 654,1 mi-lhões, “equivalentes a 6,1% do to-tal a ser aplicado no conjunto daindústria baiana”. Desses proje-tos, apenas dois situam-se ajusante da cadeia produtiva docacau; isso pode ser explicadopela estratégia de diversificação quevem sendo adotada pelas firmas(uma tendência mundial), poisnão foi identificado nenhum pro-duto ou complexo alimentício par-ticular que concentrasse um mai-or número de projetos. Segundodados da ABIA, todos os segmen-tos crescem, liderados pelos complexos laticíniose derivados de trigo, dadas as maiores dinâmicasdesses mercados, das estratégias de marketinge da internacionalização dos seus capitais.

A reestruturação da cadeia produtivado cacau

Nesta última parte, analisa-se a reestruturaçãoprodutiva da lavoura e do segmento a jusante dacadeia produtiva do cacau, no contexto da mundia-lização. Todavia, os limites deste artigo só permi-tem identificar algumas estratégias de integraçãodos agentes à nova realidade do mercado. No pla-no da concorrência externa, pode-se admitir queexiste uma preocupação em adotar estratégias deredução de custos da lavoura, redução do tempode produção das amêndoas e aumento da produti-vidade do trabalho. No plano interno, a principalestratégia opera no sentido da diferenciação dosprodutos no segmento a jusante da cadeia, ondeas firmas disputam maior participação no mercadonacional de derivados, chocolates e produtosachocolatados.

Conforme pôde ser observado, encontram-sena literatura várias formas de abordar-se a estrutu-ra da cadeia produtiva do cacau e do chocolate. Aforma predominante, que certamente decorre da con-vergência de interesses mais explícitos, é a análiseque identifica e separa, de um lado, a lavoura, deoutro, a indústria. Esta última subdivide-se em in-dústria processadora e indústria chocolateira.

Nagai et al. (1998), analisando a produção in-dustrial do chocolate cobertura, definem uma tipo-

logia onde pelo menos quatro seg-mentos constituem a cadeiaprodutiva do chocolate no Brasil:1) fazendas de cacau; 2) indústriaprocessadora de amêndoas; 3) in-dústria de chocolate cobertura; 4)indústria chocolateira. Aqueles mes-mos autores afirmam:

O segmento dominante da cadeia de pro-

dução é o da indústria chocolateira, da qual

a indústria de chocolate cobertura faz parte.

Isso se deve a diversos fatores estruturais,

a saber: trata-se do único segmento da ca-

deia em que os produtos fabricados não são commodities;

possuem alto valor agregado; e a estrutura de mercado é ca-

racterizada como oligopólio diferenciado. Todos esses fato-

res apontam a indústria chocolateira como o segmento mais

inovador da cadeia (Id., p.110).

Todavia, dada a sua dimensão, a crise impõeuma reestruturação competitiva que acaba envol-vendo todos os agentes da cadeia. Assim é que,nesta última parte do artigo, tentar-se-á identificaralgumas das principais mudanças (ou indícios dereestruturação), do ponto de vista da lavoura e daindústria.

• A lavoura

Com relação à lavoura cacaueira, não se podedesprezar o papel do Estado nem as transforma-ções que ocorrem nos demais países produtores.Apesar do cenário15 em que se baseia a propostado FNA (p.18), “revisão do papel do Estado e afir-mação do papel preponderante da sociedade”, asrelações de poder político local/regional ligado aoagronegócio do cacau nunca foram de se despre-

No plano interno,a principal estratégia

opera no sentidoda diferenciação dos

produtos no segmentoa jusante da cadeia,

onde as firmas disputammaior participação

no mercado nacionalde derivados, chocolates

e produtosachocolatados.

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zar. Note-se que, logo em seguida, à p.27, essamesma proposta justifica a ação do Estado, “evi-denciando o enorme papel que a Ceplac tem aindaa desempenhar, evidentemente fora do modeloconvencional que ela própria vinha utilizando atéagora”. Atribuir exclusivamente à Ceplac o fracassodo “modelo convencional” (Ibid.) é desconsiderarque, não só aquela unidade, mas todo o sistemainstitucional público e privado do agronegócio bra-sileiro no qual ela se insere, são um produto da ex-pansão internacional do modeloprodutivista ou “revolução verde”,sobretudo a partir do Pós-Guerra.Inclui-se aí o sistema de ensinonas escolas técnicas, agronômicase outras, responsáveis pela forma-ção da maioria dos técnicos queoperam no sistema. Apesar dasevidentes reações já esboçadasno mercado (agroecologias e segmentos de merca-do emergentes), esse processo ainda se mantém, li-derado pelos oligopólios internacionais ligados àquímica, mecânica e biologia industriais.16

Já no plano internacional, destacam-se dois fe-nômenos importantes. O primeiro refere-se à mun-dialização que opera, principalmente com a entra-da de novos concorrentes da Ásia-Oceania, aexpansão das plantações nos países produtorestradicionais, a formação de estoques excedentes deoutras commodities (frutas, leite/laticínios, nozes,bebidas etc.) que compõem os produtos achocola-tados e, no limite, a emergência e expansão de no-vas matérias-primas substitutas do cacau, no “cho-colate” – inclusive sintéticas. Esta última é objetode prolongadas discussões no seio da organizaçãodas regiões econômicas ou macroblocos. Um dospontos que precisam ser resolvidos reporta-se àquestão do direito de propriedade da marca choco-late (label). Esse direito, que não se limita ao exclusi-vo tecnológico, acaba envolvendo discussões etno-culturais e históricas. Objetivamente, o que está emdiscussão é o seguinte: será que produtos feitos apartir de matérias-primas que não o cacau podem re-ceber, no mercado mundial, a marca chocolate?

O segundo fenômeno tem a ver com a reestru-turação que também opera nos países produtores.Enquanto os emergentes da Ásia-Oceania perse-guem estratégias de redução de custos de produ-

ção de cacau em amêndoas, alguns países produtoresafricanos incrementam sua indústria processadora.Este é bem o caso da Costa do Marfim, primeiroprodutor mundial de amêndoas, que dobrou a suaprodução industrial de derivados em menos de dezanos, elevando sua participação de 4,5 % para 7,3% em relação à indústria processadora mundial.Enquanto esta experimentou um crescimento de15,5 %, entre 1990/91 e 1997/98, a indústria marfi-nense cresceu 88,1 % no mesmo período. Embora

um pouco abaixo, esse mesmo fe-nômeno pode ser observado naRepública dos Camarões (81,2 %)e Gana (71,8 %), antes, tradicio-nais exportadores exclusivamentede amêndoas não-processadas.17

Essa nova tendência reforça aimportância crescente do mercadointerno de amêndoas nos grandes

países produtores, principalmente no Brasil, queapresenta uma vantagem particular: a dinâmica doseu mercado interno de produtos de consumo final– chocolates e produtos achocolatados. Todos es-ses fenômenos, somados à crise da lavoura nacio-nal, configuram novos parâmetros de eficiênciaprodutiva que os cacauicultores baianos terão queobservar, se quiserem permanecer no mercado,particularmente os ganhos de produtividade, cus-tos decrescentes e controle de qualidade. A esterespeito, Mendes et al. (1999), ao analisarem a for-mação e diferenças dos preços pagos aos produto-res de cacau do Pará, Rondônia e Bahia, destacama falta de incentivo à melhoria da qualidade dasamêndoas. Embora já exista alguma normalizaçãoa respeito, na prática, não se paga nenhum prêmioquando são executadas, com rigor técnico, todasas fases do beneficiamento primário:

Muito embora os produtores saibam produzir um cacau tipo

exportação, sentem-se desestimulados a fazê-lo, pois como

não é prática da comercialização a diferenciação de preço,

optam por economizar nos custos e acabam produzindo ca-

cau de qualidade inferior” (Id., p.3).

Com a abertura dos mercados, as políticas ma-croeconômicas nacional e regional passam a dis-por, além do câmbio e da taxa de juros, de um ins-trumento estratégico que é a taxa de importação,

Será que produtosfeitos a partir de

matérias-primas quenão o cacau podemreceber, no mercado

mundial, a marcachocolate?

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pela indústria chocolateira, de amêndoas e produ-tos derivados. Ela será a baliza da reestruturaçãocompetitiva da cacauicultura nacional, juntamentecom os mecanismos de controle não-tarifário. OFNA reivindica a criação desses mecanismos, prin-cipalmente fitossanitários, para impedir a entradade doenças dos cacaueiros, como a monilia e abroca-do-fruto, que podem estar presentes nasamêndoas importadas de outros países.

No plano interno, adotam-se inovações tecnoló-gicas com vistas à convivência coma vassoura-de-bruxa e aos ganhosde produtividade. Adotam-se tam-bém inovações organizacionais. Aesse respeito, Baiardi (1998, p.8)reporta-se ao movimento de rees-truturação, no âmbito da produçãomaterial, enquanto “reengenhariaprodutiva, com a adoção de inova-ções tecnológicas que permitemmaior rendimento físico e convíviocom o flagelo que é a vassoura-de-bruxa”. Para su-peração do sistema agrário-exportador, impõe-se acooperação entre cacauicultores, com vistas à “im-plantação de unidades de processamento de amên-doa e de fabricação de inúmeros tipos de chocolatee de derivados, tanto para o mercado nacional comointernacional” (Id.,p.12). Com a consolidação da ca-deia produtiva do cacau, emergem novas estratégi-as de organização do trabalho e da produção decacau, a exemplo dos aristas, dos novos parceiros edos produtores familiares integrados em cooperati-vas de assentamento rural.18

• A indústria

Mendes et al. (1999) observam que está haven-do uma reestruturação a jusante da cadeia produti-va do cacau, particularmente na Bahia, com fortemovimento de desnacionalização das firmas com-pradoras de amêndoas. Além de ter proporcionadouma reconcentração de capitais, a entrada de no-vas firmas vem revelando uma estratégia de diver-sificação dos produtos comercializados (amêndoas,pasta, líquor, torta e pó), visando, cada uma, ampliara sua participação nesses mercados.

Apesar da crise, a indústria processadora brasi-leira ainda mantém a quarta colocação no mercado

mundial, superada apenas pela Holanda, EstadosUnidos e Alemanha. Essa indústria encontra-se for-temente concentrada na Bahia, onde apenas qua-tro empresas contribuem com 96% da produção dederivados de cacau.

Quanto à indústria chocolateira, trata-se de umadas mais concentradas do mundo, hoje dominadapor quatro ou cinco oligopólios que detêm a maiorparte do mercado. Essa mesma concentração se re-flete no Brasil, onde “três grandes chocolateiros

(Lacta, Garoto e Nestlé) detêm 4/5do mercado interno”, segundo oFNA (1997, p.75), ou “mais de 90%”, segundo Arena, apud Nagai(1998, p.97). A quinta parte restan-te do mercado é suprida por “tradi-cionais participantes de menor por-te (Quaker, Kibon, Neugebauer,Pan, Arisco/Visagis, Bretske, Par-malat/Yolat, Harald).” (FNA, 1997,p.75). A performance atual do se-

tor, com nítido potencial de expansão, tem atraídoexpressivos investimentos em território nacional eno Mercosul (Ferrero, Arcor, M.M.Mars, Cadbury,etc.). Considerando-se a demanda nacional, o setorabsorve, em conjunto, praticamente 90% da atualprodução brasileira de amêndoas de cacau.

Assim, o cacau tem reestruturadas as suas pró-prias origens. Ontem, sistema agrário-exportador,hoje, volta-se para o mercado interno. Com a novacara de complexo agroindustrial, realiza-se, na suapátria, enquanto mercadoria sob a forma de choco-lates e afins.

Entretanto, a fabricação de chocolates nem sem-pre obedece a critérios rigorosos de produção, noque diz respeito aos quantitativos de cacau no pro-cesso produtivo, diferentemente de outros paísesonde há intensa vigilância para defesa dos interes-ses dos consumidores. Na verdade, a ausência depadrões na produção de chocolates, que leva àsubstituição de insumos nobres (como a manteigade cacau) por outras gorduras vegetais muito maisbaratas, sem a informação adequada, redunda em:a) prejuízos para os consumidores que, sem signifi-cativa diferença de preço, terminam comprando“gato por lebre”; b) prejuízo para as indústrias quefabricam chocolates dentro de especificações ade-quadas, que têm de competir de forma desfavorá-

Apesar da crise,a indústria processadora

brasileira aindamantém a quarta

colocação nomercado mundial,superada apenas

pela Holanda, EstadosUnidos e Alemanha.

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vel com outras que não o fazem; e c) prejuízo paraa imagem do produto chocolate, em razão do usode outros produtos que terminam sendo responsá-veis por danos à saúde. Para que possa haver fis-calização adequada, preservando-se os interessesde produtores, industriais e de consumidores, hánecessidade da normalização de procedimentosde fabricação, mantendo-se a marca de origem dosprodutos chocolate e bombons e similares (FNA,1997, p.86). Essa face da reestruturação, que é aregulamentação, requer a ação firme do Estado.

Seguindo padrão adotado pela indústria mundial,a indústria chocolateira também modificou a suapolítica de compras, passando a adotar o métodojust in time e, assim, reduzindo drasticamente o ní-vel de estoques mantidos nas empresas. Com isso,elevaram-se para mais de cinco meses os estoquesmundiais de amêndoas nos países produtores.

Outro aspecto da mundialização é o crescimentodo comércio intrafirma e do papel da tecnologia. Ten-do aumentado o custo de P&D, as barreiras à entradamudaram. Os jogos da concorrência tornaram-se maiscomplexos e a melhor maneira para cada firma so-breviver é diversificar a sua atuação, inclusive asalianças com uma rede de parceiros. Isso pode serconfirmado para o caso da indústria de alimentos noBrasil, inclusive no segmento de chocolates e produ-tos achocolatados. Neste segmento, algumas firmasmultinacionais com sede nos Estados Unidos, Fran-ça, Suíça e Itália adquiriram, nos últimos anos, diver-sas empresas no Brasil, entre elas: Kibon, Sorvane,Lacta, Maguary, Neugebauer e Toddy.

Cresce o mercado, o Brasil galga o quinto lugarcomo produtor mundial de chocolate e ainda man-tém a quarta colocação como país processador deamêndoas de cacau. Assim, redireciona-se para omercado interno a dinâmica da cadeia produtiva docacau e do chocolate, a exemplo do que vem ocor-rendo com os principais segmentos da indústria dealimentos no Brasil.

Considerações finais

Recentes análises evidenciaram a integralizaçãoda cadeia produtiva do cacau e do chocolate no Bra-sil, desde a lavoura (produção de amêndoas) até aindústria do chocolate, na ponta do consumo final.

Neste artigo, confirma-se a dinâmica do merca-

do interno como principal atrativo da reestruturaçãoda cadeia produtiva do chocolate, parte integranteda indústria de alimentos. Esse processo de rees-truturação, que atinge todos os segmentos da ca-deia, reflete a adoção de inovações tecnológicas eorganizacionais. Paralelamente, ocorre um outroprocesso, de natureza financeira, que se confirmaatravés de importantes fusões, aquisições e incor-porações nos segmentos a jusante da cadeia, du-rante toda a década de 1990, sob a liderança decapitais internacionais.

A principal conseqüência dessas e outras re-centes transformações é que a Região Cacaueirada Bahia não pode mais ser pensada do ponto devista da monocultura, mas de um eixo dinâmico deinvestimentos que não são mais exclusivos ou do-minados pelos interesses da lavoura. Ao contrário,a dinâmica regional segue uma trajetória de diver-sificação, na qual se inclui a cadeia produtiva docacau e do chocolate como complexo agroindustri-al internacionalizado.

Eis aí o sentido da inserção regional no contextoda mundialização.

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Notas

1 Sistema agrário, no conceito de Mazoyer (1997), é um modode exploração do meio historicamente constituído e durável,um sistema (técnico) de forças produtivas, adaptado às con-dições bioclimáticas de um espaço dado, compatível com assituações e necessidades sociais do momento.

2 Sul da Bahia, Litoral Sul, Região Cacaueira, MicrorregiãoIlhéus-Itabuna, Costa do Descobrimento, são alguns exem-plos dessas sucessivas “demarcações”.

3 Eixo Mata Atlântica, cf. Uderman (2000).

4 Os dados são do IBGE, divulgados por Ribeiro (1998,p.155).

5 Considera-se inovação radical por oposição a inovaçãoincremental, porquanto, no caso particular da clonagem docacaueiro, já se empregam biotecnologias. Autores evolucio-nistas incluem essas técnicas ao lado de outras inovaçõesque viriam a constituir novo paradigma tecno-econômico.

6 Última estimativa divulgada: dezembro 1999.

7 No primeiro ano de cultivo considera-se o requerimento deapenas 1,6 ha por trabalhador empregado.

8 “Desde 1995, com a promulgação do Decreto 4316, o muni-cípio de Ilhéus, que concentra todos os investimentossetoriais programados para o eixo Mata Atlântica e 41,7% dovalor dos investimentos desse complexo na Bahia, vem for-talecendo a sua base de produção de eletroeletrônicos,constituindo-se num importante pólo de produção, inclusiveem nível nacional.”

9 Detalhes sobre o novo rural podem ser encontrados emGraziano da Silva (1997b).

10 Detalhes sobre pluriatividade podem ser encontrados emKageyama (1998).

11 As outras duas regiões são a moderna e a interiorana tra-dicional.

12 Sistemas, no conceito de Dufumier (1996).

13 Falências, aquisições, fechamento de fábricas até assus-tam, mas isso pode ser a prova de que está havendo rees-truturação competitiva nos moldes da expansão do capitalis-mo globalizado.

14 Processo bastante acirrado de fusões, aquisições e incorpo-rações, liderado por firmas multinacionais que pretendemdominar setores estratégicos do mercado. Mais detalhes po-dem ser encontrados em Belik (1994).

15 “Não há dúvida de que se descortina um cenário em que oEstado estará cada vez mais ausente do mercado” (FNA,1997, p.37).

16 A esse respeito, ver Romeiro (1991 e 1994) e Dufumier(1996 e 1997).

17 Dados básicos da Organização Internacional do Cacau, cál-culos do autor.

18 Detalhes sobre as novas formas de organização do trabalhona cacauicultura podem ser encontrados em CEPLAC(1997), COUTO et al. (1995, 1997b, 1997c, 1998), SILVAJUNIOR et al. (1996) e TREVIZAN et al. (1998a, 1998b).

*Vitor de Athayde Couto é Professor Titularda Faculdade de Ciências Econômicas

da Universidade Federal da Bahia.E-mail: [email protected]

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Mudanças urbanas em Salvadorno final do século XX

Angela Gordilho Souza *

Durante o século XX muito se discutiu sobrea questão urbana, relacionando-a sobretu-do ao problema da habitação. Privilegiou-

se a ótica do crescimento acelerado das cidades,atrelado ao processo de industrialização e metropoli-zação, fenômenos manifestados nos diversos paísesinseridos na economia de mercado mundial. Eviden-temente, o intenso crescimento dessas áreas urba-nas, com grandes levas de população migrando docampo para as cidades, contribuiu para ampliar rapi-damente o déficit de novas unidades habitacionais,crise instalada pela própria condição estrutural deinacessibilidade das populações de baixa renda àmoradia enquanto bem de consumo no mercado.1

Esse processo de urbanização intensiva, tendo ocor-rido em momentos, conjunturas e contextos diferenci-ados, resultou em formações urbanas distintas noque se refere à qualidade do ambiente construído e àdistribuição social dos investimentos no espaço.

Como já amplamente analisado, o Pós-Segun-da Guerra no mundo ocidental trouxe a instalaçãodo Estado do Bem-Estar, também produtor de bensde consumo coletivo e provedor da habitação soci-al, abrindo várias frentes de investimentos urbanose outros caminhos de acesso à moradia através daprodução de grandes conjuntos habitacionais fi-nanciados pelo poder público. Essas medidas con-tribuíram para ampliar o parque industrial e imobi-liário, além de criarem equipamentos coletivos einfra-estrutura urbana, suprindo, nos países de eco-nomia avançada, as demandas básicas materiaisde novas moradias para a maioria da população.2

Esse momento favoreceu a dinamização do mer-cado imobiliário, principalmente nas economias ca-pitalistas industriais atrasadas, como foi o caso doBrasil, ainda que os resultados tenham ficado dis-tantes do atendimento da demanda real de habita-ção.3 Para essas sociedades, o que vem prevale-cendo na produção de moradias nas grandescidades, desde as primeiras décadas deste séculoXX, tem sido as ações improvisadas, ou seja, aque-las ocorridas sem controle urbanístico, através deparcelamentos clandestinos, favelas, invasões co-letivas e outras formas aleatórias de ocupação doespaço, situações que se consolidaram nas últimasdécadas, com o processo intensivo de ampliação,verticalização e densificação dessas áreas.4 Nes-sas realidades, o problema avançou do déficitquantitativo de novas unidades para o déficit quali-tativo de infra-estrutura de áreas ocupadas, atin-gindo atualmente questões que também envolvemo que se designa como um déficit ampliado para ohabitar na cidade, compreendido no âmbito da in-serção urbana, direito à cidade e à qualidade doambiente construído, incluindo o acesso às benfei-torias urbanas e urbanísticas.5

Essas áreas de ocupação informal, onde habitagrande parte da população dessas cidades, con-centram também a localização da pobreza. Cres-cem à revelia dos parâmetros urbanísticos estabe-lecidos, com infra-estrutura e edificações precárias,deficiência de áreas verdes e abertas, carentes deacessibilidade segura, de equipamentos sociais ede conforto coletivo, elementos esses essenciais

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para atingir-se condições de habitabilidade digna.Na composição espacial urbana atual, configuramum ambiente construído intensamente segmenta-do, diferenciado e complexo, marcado por grandescontrastes, desigualdades e deficiências. Portanto,soma-se à situação de segregação social no espa-ço urbano um amplo processo de exclusão urba-nística, condições que contribuem para um isola-mento acentuado dessas áreas no que se refere àssuas possibilidades de inserção no cotidiano da ci-dade. Criaram-se, assim, maioresdificuldades frente às novas de-mandas que se colocam na dinâmi-ca social e aos potenciais de mu-danças qualitativas do meio urbanoem construção na nossa realidade.

Sobre essas questões desen-volve-se a análise a seguir, toman-do-se como ilustração a configuraçãoda Cidade do Salvador neste finalde século e as perspectivas sinali-zadas pelas intervenções urbanasem curso.

O habitar no meio urbanoem construção

Na contemporaneidade, os pro-cessos produtivos que envolvem atransformação do espaço urbano buscam novasrealizações para investimentos que vão além dasdemandas para produção fabril, centros de comér-cio e serviços, expansão habitacional e outras ativi-dades que exigem materializações próprias no es-paço construído. Ampliam-se, revelando-se naprivatização de serviços urbanos e na exploraçãode áreas públicas, capturando o próprio ambienteurbano como mercadoria. Esses movimentos seexpressam sobretudo nos projetos de renovaçãourbana que vêm ocorrendo desde os anos 80 nasgrandes cidades do mundo desenvolvido, valori-zando as atividades de entretenimento através domercado, na forma de atrações turísticas, parquestemáticos, museus abertos e revitalização de cen-tros históricos, incrementando assim a privatizaçãoe o acesso controlado de áreas de uso público, en-fim buscando as localizações, lugares e ambientesmais propícios a esse tipo de produção e consu-

mo.6 Representam investimentos atrelados à in-dústria do lazer, que propiciam intervenções na for-ma de projetos em pontos estratégicos, na maioriadas vezes buscando dinamizar o uso de áreas oci-osas, deixadas para trás pelo esgotamento de ou-tros momentos da própria economia urbana e,portanto, decadentes e desvalorizadas. Nesse mo-vimento, os processos de privatização do espaçoestendem-se além da produção imobiliária, paraatingir crescentemente o ambiente onde se vive, o

meio urbano.Essas mudanças ocorrem con-

dicionadas ao processo de requa-lificação social mais amplo e àsrelações de produção capitalistaque, na atualidade, delineiam ou-tras dinâmicas tais como: intensifi-cação da globalização da econo-mia, ampliação do capital financeiro,grandes avanços nas tecnologiase nas comunicações, incrementona produção de mercadorias não-materializadas, retraimento do Es-tado nas políticas sociais, fluxosmigratórios urbanos mais estáveisou, mesmo, índices decrescentesde crescimento populacional emalguns países, dentre outras mu-danças. Ampliam a absorção de

mão-de-obra nos serviços, enquanto, com a auto-mação, dispensam trabalho humano na produçãoindustrial, incrementando desemprego e terceiriza-ção. Enfim, constitui momentos de crises e redefini-ções de padrões produtivos, concomitantemente àemergência de questões de ordem política, ecoló-gica, estética, étnica, enfim, manifestações diversi-ficadas, com lógicas próprias e novas expressõesespaciais.7 Representam fatores que evidentementeinteragem na conformação das cidades, criandooutras demandas, superpondo novos usos ao es-paço preexistente, levando a uma maior complexi-dade em suas configurações.

Nesse sentido, entende-se que a cidade atual,cada vez mais espraiada no âmbito da região, alémde constituir-se no lugar privilegiado para a produ-ção de mercadorias, torna-se, em si, também umamercadoria especial. Neste final de século, as cida-des compõem ambientes construídos, com carac-

A cidade atual, além deconstituir-se no lugar

privilegiado para aprodução de mercadorias,torna-se, em si, também

uma mercadoria especial.Neste final de século, as

cidades compõemambientes construídos,

com característicasfísicas e densidades

históricas diferenciadas,acumulativas de valores

simbólicos e culturais quepassam a ser consumidos

também comomercadorias virtuais.

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terísticas físicas e densidades históricas diferencia-das, acumulativas de valores simbólicos e culturaisque passam a ser consumidos também como mer-cadorias virtuais. Essas condições representamcomponentes importantes na competição atual en-tre as cidades, no âmbito do intensivo processo deglobalização da acumulação capitalista, interferin-do na escolha de atividades e localizações maisprodutivas, relacionadas ao maior consumo dos lu-gares. Algumas entram nos circuitos econômicosmundiais com mais potencialidades que outras ecom diferentes vocações e intensidades.8

Essa dinâmica também vem se reproduzindomais recentemente nos chamados países de econo-mia periférica, como o Brasil. Traz, em sua gênese, amesma lógica de reestruturação do espaço urbano,no entanto com especificidades históricas, conjuntu-rais, culturais e geográficas que ao mesmo tempopotencializam e criam grandes atritos para sua reali-zação nesses lugares. Na configuração desses es-paços, sobrepõe-se aos problemas básicos de habi-tação e serviços coletivos não-resolvidos a busca denovas possibilidades na dinamização das economiaslocais, que, por sua vez, está pautada principalmentena qualidade do ambiente urbano. Assim, nas metró-poles brasileiras, observa-se que as intervenções re-centes encontram grandes obstáculos ao deparar-secom um espaço construído, não só intensamente se-gregado, mas degradado e excludente.

Tomando-se os projetos urbanos realizadosnesta última década como sinais desse novo pa-drão de economia urbana que, gradativamente,vem se ampliando, entende-se que na realidadebrasileira essa superposição de demandas tornamais complexa ainda as possibilidades de interven-ções na renovação do ambiente construído. Dife-rentemente da cidade industrial, a cidade do espe-táculo, consumida enquanto ambiente, não podeignorar a amplitude da pobreza, as carências físi-cas no espaço construído e as deficiências de con-forto urbano, sob pena de inviabilizá-la. Se aindaparece prematuro analisarem-se os reais impactos,interações socioeconômicas e demais desdobra-mentos que os investimentos dessa natureza vêmproduzindo nas grandes metrópoles brasileiras, noentanto suas manifestações já se esboçam, susci-tando outras dimensões de análise na relação ha-bitação e cidade.9

Nesse sentido, apesar do acervo considerável deestudos sobre habitação no Brasil, poucos sãoaqueles que tratam da configuração da cidade real,identificando suas diferentes espacialidades na com-posição urbana contemporânea, entendidas comoconteúdo social materializado no espaço construído.Representam aspectos indispensáveis para dimensi-onar e qualificar as questões referidas, ampliando aspossibilidades de análise e possíveis interferênciasnesse processo de urbanização socialmente tão de-sigual. São questões que exigem, além de uma com-preensão estrutural mais ampla, o entendimento dasdinâmicas urbanas relacionadas a cada cidade.

Com esse propósito, analisa-se a amplitude dasegregação e exclusão urbanística na Cidade doSalvador e os limites e perspectivas que se colo-cam para sua transformação. Atualmente, aí tam-bém se observam essas redefinições do padrãoprodutivo envolvendo a cidade, sinalizadas pelosinvestimentos vultosos, públicos e privados, relaci-onados a serviços turísticos, à infra-estrutura urba-na e à habitação, através dos grandes projetos re-centemente implantados, o que certamente trazimpactos importantes nas condições do habitar.

Os dados que servem de base para esta análiseforam obtidos mediante uma ampla pesquisa sobrea configuração do espaço nesta cidade, identifican-do-se os usos predominantes e sua tipologia habita-cional no que se refere às diferentes situações deocupação e a determinadas condições socioambi-entais.10 Para a temática aqui salientada, pontuam-se alguns dos resultados obtidos, tornando-se pos-sível estudos comparativos com outras cidadesbrasileiras para definição de políticas públicas volta-das para a melhoria do ambiente urbano onde se vi-verá no próximo milênio. Certamente são questõesque representam um desafio para intervenções físi-cas que objetivem a melhoria e inclusão dessasimensas áreas de pobreza visando a uma cidadeambientalmente desejável e socialmente justa, exi-gindo no campo da arquitetura e do urbanismo a re-visão de parâmetros técnicos e conceituais.

Segregação da pobreza e exclusão urbanísticana atualidade

Na reprodução do espaço sob a lógica capitalis-ta, a segregação espacial sempre existiu, desde os

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primórdios da metrópole industrial, separando es-pacialmente ricos e pobres, sendo as áreas maisnobres melhor servidas de infra-estrutura e outrosbenefícios coletivos e as demais, de certa forma,“largadas à própria sorte” e à ganância especulati-va. Portanto, a exclusão social se manifesta no pró-prio fenômeno da segregação espacial, uma vezque, separando as áreas de moradia na cidade porclasses sociais distintas, coloca “de fora” das me-lhores condições de habitabilidade as populaçõesmais pobres, resultando em aces-sos diferenciados às benfeitorias eao conforto urbano.

No âmbito urbanístico das cida-des brasileiras, como será verifica-do para o caso de Salvador, com aampla consolidação de ocupaçõesinformais ocorridas no decorrer des-te século, essas acabaram consti-tuindo-se na “solução da casa pró-pria” para a grande maioria deseus moradores. Representando osmenores custos possíveis na distribuição social daprodução, esse processo culminou por configurarimensos aglomerados precários, deficientes, den-sos, destituídos de conforto ambiental e coletivo,segregados e excluídos da cidade formal. Diantede sua amplitude na atualidade e dos significativosinvestimentos individuais e coletivos realizados, con-solidaram-se no espaço urbano, “resolvendo”, emgrande parte, o déficit de novas habitações surgidocom a urbanização acelerada ocorrida neste século,mas criando graves problemas relacionados à quali-dade do habitar na cidade. Portanto, na questão dodéficit habitacional enquanto demanda de novasunidades, indica-se uma avaliação mais cuidadosadas conquistas que representam as áreas de ocupa-ção informal, qualificando-as como moradia. Paraesse tipo de análise, a abrangência vai além da uni-dade edificada em si, compreendendo também asdeficiências ambientais e de infra-estrutura na locali-dade e, sobretudo, sua inserção no meio urbano.

Salvador representa uma referência urbana im-portante no Brasil, não só por sua dimensão popu-lacional, atualmente em torno de 2,5 milhões dehabitantes, tendo sido apontada no Censo de 1991como terceira maior capital do País (2.072.058 hab.),depois de São Paulo (9.626.894 hab.) e Rio de Ja-

neiro (5.473.909 hab.), mas, sobretudo, pelos seus450 anos de história. Constituindo-se numa das co-lonizações urbanas mais antigas da América Lati-na, salienta-se por sua densidade histórica e cultu-ral, o que lhe confere uma forte identidade noprocesso de transformação urbano contemporâneo.Como primeira capital do país, desde os temposcoloniais atraiu grandes investimentos. Essa posi-ção conferiu-lhe um grande e significativo acervoarquitetônico colonial, particularmente localizado na

sua área urbana central, constitu-indo-se em um dos mais importan-tes referenciais do patrimônio his-tórico no Brasil. Foi um dosprimeiros centros industriais brasi-leiros, ainda no século XIX, produ-zindo complementos para o setoragro-exportador. Na década de1950, passa a constituir a principalreferência nordestina no movimen-to de ampliação do processo de in-dustrialização moderno iniciado no

centro-sul, com a instalação da CHESF e PETRO-BRÁS na Bahia. Esse papel se fortalece nas déca-das de 1960/70, com a implantação do Centro In-dustrial de Aratu (CIA) e do Pólo Petroquímico deCamaçari (COPEC), consolidando a instituição dasua região metropolitana. Nos últimos anos, temsido objeto de intensivos investimentos no setor deserviços voltado para o turismo, ocupando o tercei-ro lugar, dentre as capitais, no fluxo nacional.11

Em relação às demais regiões metropolitanasdo país, a de Salvador, no último Censo, constituíaa sexta maior em população, abrigando 2.496.521habitantes, dos quais 83% residentes na capital(IBGE, 1991). Isso se reflete na amplitude do espa-ço construído contínuo que pouco ultrapassa o limi-te do município-sede, que por sua vez detém313,00 Km2 do total da região, com 2.213 Km2.Nessa fase de metropolização, o processo de co-nurbação apenas atinge alguns dos municípios vi-zinhos, sendo a maior parte dessa ocupação cons-tituída de áreas industriais, conforme indicação nomapa de 1991 para a Região Metropolitana de Sal-vador-RMS, anexo 1 (Bahia, 1994).

Ao longo desse processo, Salvador tem sidoobjeto de um intenso processo de urbanização e detransformações sociais e espaciais, o que lhe con-

Salvador tem sido objetode um intenso processo

de urbanização e detransformações sociais e

espaciais, o que lheconfere uma

superposição de padrõesdiferenciados de

ocupação e produção doespaço construído.

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fere uma superposição de padrões diferenciadosde ocupação e produção do espaço construído. Al-guns, remanescentes do passado, resultam deposse imobiliária dividida – os arrendamentos –seguidos por aqueles produzidos pelo capital imobi-liário. Outros foram originalmente produzidos porprocessos não-capitalistas, tendo nas “invasões” aalternativa habitacional para os grandes contingen-tes de população pobre imigrante do campo. Paraidentificá-los nessa justaposição, consideram-secomo principais indicadores os processos de pro-dução e apropriação privatizada na fragmentaçãodo solo e o atendimento às normas urbanísticas re-lativas aos parcelamentos para habitação.

Para composição dessas informações, foramverificadas enormes limitações na coleta de dadosem fontes oficiais. O censo restringe-se ao domicí-lio, com poucas informações sobre o lote em si. Emrelação à irregularidade urbanística, as informaçõesdependem das prefeituras locais que nem sempretêm esses dados sistematizados. Dessa forma,buscou-se montar uma metodologia própria, privi-legiando-se como informação básica a macrodistin-ção de uso e ocupação do solo e as característicasdos parcelamentos para habitação, distinguindo-seas subáreas homogêneas conforme indicadores pre-estabelecidos. Para isso, foram considerados os da-dos oficiais para os loteamentos aprovados pelomunicípio e, diante da escassez de informaçõessobre as demais ocupações, procedeu-se à pes-quisa direta em aerofotos e plantas cartográficas,empreendendo-se uma investigação de campo parachecagem e informações complementares. Essesdados foram espacialmente qualificados, possibili-tando mapear um esboço síntese das condições deocupação e de habitabilidade na cidade atual.

Na metodologia desta pesquisa para Salvador,considerou-se como início do período contemporâ-neo 1925, ano do primeiro registro de loteamentona prefeitura, momento em que se inicia a privati-zação ampliada do solo através da mercantilizaçãode lotes regulados por normas urbanísticas de acor-do com o Código de Posturas. O período de estudoencerra-se em 1991, ano do último censo, objeti-vando-se o cruzamento de dados atualizados depopulação e de renda. A cidade antiga, quando vi-goravam outros determinantes na ocupação urbanae habitacional, foi delimitada considerando-se o es-

paço construído até a década de 1920, ignorando-se os vazios intersticiais entre as áreas edificadas,bem como a diferenciação de uso do solo até essaépoca, detalhamento que foge aos propósitos des-te estudo.12

As formas de habitação do período contemporâ-neo foram classificadas segundo os diferentes ti-pos de subdivisão e apropriação do solo, identifi-cando-se uma tipologia básica composta de seismodalidades de parcelamento do solo, quais se-jam, por ordem cronológica de surgimento:

1. vilas habitacionais;2. loteamentos privados;3. ocupação coletiva por “invasão”;4. conjuntos habitacionais;5. loteamentos públicos; e,6. outros tipos de parcelamento informais, tais

como arrendamentos, aforamentos e loteamentosclandestinos.

Além dessas áreas de predominância habitacio-nal, estabeleceu-se a diferenciação dos seguintesusos na área do município: áreas com grandesconcentrações de equipamentos, seja serviço, co-mércio, indústria ou uso institucional; o macrossis-tema viário, identificando-se as avenidas de vale eprincipais vias de cumeada, rodovias e linha férrea;além dos vazios (parques, áreas verdes e livres).

Assim, determinou-se a legalidade urbanísticadessas ocupações habitacionais, identificando-seos parcelamentos formais – vilas, loteamentos pri-vados, conjuntos habitacionais, e loteamentos pú-blicos – e os informais, abrangendo as chamadas“invasões” e outros parcelamentos que não tiveramprojetos urbanísticos previamente aprovados pelomunicípio, conforme mapeamento apresentado noanexo 2.

Os dados obtidos indicam que, para 1991, dototal de ocupação predominantemente habitacionalno município (11.370 hectares), 91,6% (10.409hectares) corresponde à expansão ocorrida de1925/91. Portanto, do total, retirando-se 8,4% daocupação antiga e 3,6% das áreas para as quaisnão se obteve informação quanto à legalidade ur-banística, encontraram-se 32,4% para as ocupa-ções informais, sendo 14,3% para as “ïnvasões” e,para as formais, 55,6%. Apesar da predominânciaespacial da formalidade, com base nos altos índi-ces de densidades detectados para os parcela-

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mentos informais, mínimo em torno de 300 hab/ha,verificou-se, em termos populacionais, que perto de60% do total dos habitantes estariam morando nes-sas áreas, o que representa a maioria da popula-ção de Salvador.

A situação investigada configura-se mais graveainda ao ser analisada do ponto de vista de limitesde condições de habitabilidade. Tomando-se comoreferência os requisitos urbanísticos em vigor, clas-sificou-se a ocupação contemporânea consideran-do as seguintes características: registro municipal elegalidade fundiária; sistema viário adequado(acessibilidade, dimensionamento,pavimentação); infra-estrutura bá-sica coletiva (redes de energia, águae saneamento); lote mínimo esta-belecido pela legislação; existênciade áreas públicas abertas e deequipamentos coletivos; conserva-ção do ambiente construído e situa-ções topográficas de risco; enfim,atributos necessários para as ideali-zadas boas condições urbanísticas.

Para essa qualificação, confor-me verifica-se no mapeamento ane-xo 3 que limita as condições dehabitabilidade, subtraindo-se a ocu-pação antiga, 8,4%, e as grandesáreas loteadas e não-ocupadas,4,8%, o índice de exclusão urba-nística torna-se ainda maior. Parao padrão considerado “bom”, áreas que atendemao conjunto dos principais requisitos normativos,encontraram-se 33,6% da ocupação urbana; como“deficiente” dos referidos atributos urbanísticos re-queridos identificou-se um total de 53,2%, compos-to pelo somatório das categorias classificadascomo: “regular”, 22,5%; “precário”, 18,9%; e “insufi-ciente”, 11,8%, de acordo com os critérios estabe-lecidos. Associando-se esses dados à populaçãomoradora, habitantes por subdistrito censitário para1991, encontrou-se para o total de área considera-da “deficiente” o equivalente a 73,1%, ou seja, umaestimativa de 1.355.930 habitantes da ocupaçãocontemporânea.

Essas condições, associadas aos altos níveisde pobreza presentes na realidade brasileira, aca-bam por intensificar os processos de segregação e

exclusão na cidade, que adquirem outras dimen-sões socialmente mais graves, envolvendo o au-mento da violência, o afastamento dos padrões ins-titucionais estabelecidos, privação na geração deoportunidades, enfim, distanciamento da condiçãode cidadania, incluindo os direitos urbanísticos.

Distribuição de grandes equipamentose localização do trabalho

Um outro aspecto da problemática socioespaci-al na atualidade de Salvador que também foi reve-

lado por esta pesquisa, diz respei-to às principais localizações dasáreas de grandes equipamentos,sejam institucionais, industriais oude comércio e serviços, onde sãogeradas atividades produtivas, por-tanto associadas à possibilidadede trabalho e/ou emprego. Repre-sentam, consequentemente, algunsdos principais pólos de renda nacidade. No levantamento, ainda quetenham sido identificadas apenasas grandes nucleações, limitando-se pela sua área ocupada, a suadistribuição espacial revela que aexclusão urbanística também semanifesta profundamente sob estaperspectiva.

Antes da análise desses da-dos, é importante ressaltar alguns aspectos da in-formalidade do trabalho e sua relação com o espa-ço, uma vez que essa relação produtiva tem sidouma das características marcantes desde osprimórdios do capitalismo no Brasil, com a aboliçãoda escravatura. Evidentemente, esse tipo de ativi-dade econômica não mobiliza grandes espaçospara o seu funcionamento. São os vendedores am-bulantes, prestadores de serviços avulsos eterceirizados pelo setor formal, atividades desen-volvidas nos espaços domésticos ou em pequenasáreas inseridas em zonas com predominância deuso habitacional, muitas vezes também informal nasua própria origem e funcionamento. Localizam-se,na maioria dos casos, em áreas públicas abertasnas proximidades da zona central, de maior fluxode pedestres, ou em pequenas áreas de “equipa-

O total de ocupaçãopredominantemente

habitacional nomunicípio, 91,6%,

corresponde à expansãoocorrida de 1925/91,retirando-se 8,4% da

ocupação antiga e 3,6%das áreas para as quais

não se obteve informaçãoquanto à legalidade

urbanística, encontraram-se 32,4% para as

ocupações informais,sendo 14,3% para as“ïnvasões” e, para as

formais, 55,6%.

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mentos” inseridas fragmentadamente na cidade,portanto também “invisíveis” nessa escala de pes-quisa espacial.

Para que se tenha uma idéia de grandeza dessaquestão em Salvador, os indicadores mais recentesrevelam que aproximadamente metade da popula-ção ocupada faz parte do mercado informal e, se-gundo dados da Secretaria de Serviços Públicos(SESP), pelo menos 10 mil ambulantes estão ca-dastrados oficialmente junto ao órgão. Porém, aprojeção é que haja pelo menos100 mil ambulantes hoje em Salva-dor, desenvolvendo trabalhos im-provisados, sem qualquer controleoficial (A Tarde, 31/01/99).

Por outro lado, os crescentesíndices de desemprego divulgadospara as grandes metrópoles brasi-leiras têm representado, certamen-te, um fator de incentivo das ati-vidades produtivas informais,pulverizadas na cidade como umtodo. Dados do IBGE em março/1999, para as seis regiões metro-politanas do Brasil, indicam que a taxa de desem-prego foi de 8,15%. A taxa acumulada no primeirotrimestre foi de 7,79% – o resultado mais alto já re-gistrado pelo referido instituto para os primeirostrês meses do ano, desde que começou a medir onível de emprego, a partir de maio de 1982. Salva-dor continua a ser a capital com maior número de de-sempregados, que correspondem a 9,86% (A Tarde,27/04/1999). Em relação aos setores que mais de-sempregam, em Salvador e na sua Região Metropoli-tana, ainda conforme o IBGE, verifica-se ser o daconstrução civil, no qual se localiza o maior númerode desempregados, tendo sido registrado para essesetor, em dezembro/1998, uma taxa de 12,65%, se-guida pela indústria de transformação, com índicesde 9,84% (A Tarde, 30/01/1999).

Acrescentando-se à compreensão desses indi-cadores a ótica da distribuição das concentraçõesde grandes equipamentos na cidade, identificadosno mapeamento apresentado no anexo 4, fica evi-denciado que os investimentos nesse sentido têmprivilegiado sobretudo a área de ocupação formal,conforme os dados a seguir analisados.

Primeiramente, para uma análise da macroocu-

pação, considerou-se, separadamente, a área anti-ga – ambiente construído até a década de 1920 –da mancha de ocupação urbana contemporânea,aquela ocorrida de 1925 a 1991. No caso da áreaantiga, que equivale, aproximadamente, a 961 hec-tares, ainda que contenha uma concentração signi-ficativa de equipamentos diversos, funcionando emedificações antigas ou mais recentes, não foi feitoesse tipo de identificação, observando-se que, pelajustaposição de usos e pela intensa fragmentação

de localização, exigiria um estudominucioso, fora do alcance e obje-tivos desta pesquisa. Para a ocu-pação pós-década de 1920, cor-respondendo a um total de 12.434hectares, foram isoladas as áreasde grandes equipamentos, para asquais encontrou-se uma área emtorno de 2.025 hectares, ou seja,16,28% desse total.13 Observe-seque, para a macroanálise pretendi-da, foi ignorada a inserção de usosdiversos em pequenas áreas intersticiais na área de predominância ha-

bitacional desse período, que, por sua vez, como vis-to, representa perto de 10.409 hectares.

Conforme identificado no conjunto dessas áreasde equipamentos, algumas concentrações salien-tam-se na mancha urbana. A mais significativa lo-caliza-se na zona ao longo da Br-324, com predo-minância de indústrias; em seguida destaca-se azona que compreende a faixa de ocupação entre aAv. Paralela e a Orla Oceânica, com maior incidên-cia de uso de comércio, serviços e institucional; porúltimo, no entorno da ocupação antiga, particular-mente na zona do extremo sul da cidade, corres-pondendo aos bairros de Vitória, Barra, Ondina earredores imediatos, onde localizam-se equipamen-tos de natureza similar à zona anterior, com particu-lar incidência de atividades voltadas para o turismo.

É notória a ausência de grandes equipamentosurbanos nas zonas habitacionais oeste e norte da ci-dade, correspondendo ao Subúrbio e Miolo que,como visto, representam as áreas de moradia damaioria da população com predominância de ren-das mais baixas. Um olhar mais atento sobre asáreas edificadas com grandes equipamentos noperíodo pós 1980 até 1991, conforme o referido

É notória a ausência degrandes equipamentos

urbanos nas zonashabitacionais oeste e

norte da cidade,correspondendo ao

Subúrbio e Miolo que,como visto, representamas áreas de moradia damaioria da população

com predominância derendas mais baixas.

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mapeamento, revela que a maioria está localizadana região do Iguatemi, que veio a se constituir nonovo centro de comércio/serviços. Em seguida,com significativa incidência de novos equipamen-tos, identifica-se a faixa entre a Orla Oceânica e ar-redores da Av. Paralela. Nesta última década, pou-cos foram os equipamentos estabelecidos nas zo-nas correspondentes ao Subúrbio e ao longo daBR-324, o que aprofunda mais ainda a questão daexclusão das populações aí residentes em relaçãoao acesso aos grandes equipamentos coletivosdistribuídos na cidade.

Complementando-se essa questão, observa-seque, relativamente ao sistema viário básico deacesso a essas zonas de concentração de equipa-mentos, os eixos de circulação presentes na áreamais segregada da cidade também são maisescassos, ainda que aí, como visto, esteja concen-trada a maior parte da população com renda predo-minantemente baixa – portanto, dependente dotransporte coletivo, o que também agrava a dificul-dade de acesso aos equipamentos existentes namalha urbana.

Esses compreendem apenas alguns indicado-res que não esgotam a análise da exclusão urba-nística na atualidade, mas certamente criam umabase de análise para melhor compreenderem-se asintervenções recentemente ocorridas nesta cidade,de forma a também melhor sinalizar as mudançase permanências na perspectiva de um novo habitar.

Esboço das intervenções urbanas recentesna configuração espacial

A partir de meados desta década, a Cidade doSalvador tem sido objeto de intensivos investimen-tos públicos, através de intervenções urbanísticasde grande porte, seja em projetos de lazer, seja emequipamentos de apoio para comércio e serviços,saneamento, transporte de massa e programas dehabitação em áreas degradadas, que, em seu con-junto, sinalizam um outro quadro de economia ur-bana voltada para sua vocação de cidade terciáriae turística.

Inicialmente apontam-se a recuperação e a revi-talização de espaços culturais, a exemplo do Tea-tro Castro Alves (1992), da Concha Acústica (1993e 1999), da Biblioteca Central (1998) e dos mu-

seus, como o MAM e Geológico (1998), assinalan-do-se também a implantação de novos, como oTempostal (1997), equipamentos esses quase to-dos localizados na área central e imediações doCentro Histórico.

Nesse sentido, o projeto de maior impacto ocor-reu com a requalificação do Pelourinho, que tevesua primeira etapa concluída em 1993, quando fo-ram restaurados 102 imóveis antigos. Essas edifi-cações, onde moravam majoritariamente inquilinosde cortiços, foram desocupadas para novos usosde comércio e serviço voltados para o turismo, tor-nando-se um local de concentração de espetáculose outras atividades culturais.14 Até o momento, da-dos do Ministério da Cultura, que tem apoiado deci-sivamente essas iniciativas locais, dão conta de umtotal de 600 casas já restauradas e anunciam in-vestimentos em convênio com o BID para recupe-ração de mais três hectares do bairro através doProjeto Monumenta, com previsão de investimentosda ordem de US$10 milhões (A Tarde, 25/02/99).

Esses empreendimentos, coordenados pelo go-verno do Estado, logo foram seguidos pela recupe-ração de grandes espaços públicos abertos, im-plantação de novos parques e áreas de lazer,destacando-se: Jardim Zoológico (1993), Parquedo Abaeté (1994), Parque de Pituaçu (1994), Par-que do Costa Azul (1997), Dique do Tororó (1998),Parque de Esculturas do Unhão (1998), Jardim dosNamorados (1999), Praça da Sé (1999), Parque doAeroclube (1999).

Paralelamente a esses investimentos, localiza-dos basicamente na cidade antiga e na Orla Oceâni-ca, vieram as propostas para a modernização dostransportes, com o projeto para implantação do Me-trô, além de um abrangente projeto de saneamentoe esgotamento sanitário, o Bahia Azul, conjunta-mente a um amplo programa habitacional, o ViverMelhor, conforme ilustra-se com os dados a seguir.

A partir de 1996, a Prefeitura Municipal de Sal-vador retomou as iniciativas anteriores para a im-plantação de um transporte de massa. Como divul-gado, propõe-se a ampliação do sistema viárioestrutural existente, associado ao transporte coleti-vo. Compreende a implantação de um sistema inte-grado multimodal para o município (novo metrô desuperfície, ônibus e revitalização da linha ferroviáriaexistente); recuperação e ampliação do sistema viá-

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rio, e implantação de projetos integrados de enge-nharia de tráfego. Com financiamentos do governodo Estado, BNDES e BIRD, abrange investimentos,na primeira fase, no valor total de R$ 111 milhões(Bahia, 1998). Observa-se que esse projeto, implan-tado por etapas, e já em execução, irradia-se dazona central da cidade para atingir a periferia, aolongo dos principais eixos de circulação urbana, aBR-324 e Av. Paralela. Conforme o projeto divulga-do, o novo sistema de circulação também prevê aimplantação de novas vias nas zonas mais populo-sas, Miolo e Subúrbio, atualmente carentes de aces-sos e transporte fluídos.

Ainda que não-vinculado ao transporte de mas-sa, no entanto, no âmbito desse ciclo de moderni-zação urbana em curso, no qual os principaisacessos à cidade também representam elementosestruturantes, destaca-se a ampliação do aeropor-to e o novo sistema viário de acesso ao mesmo, in-tervenção esta em fase de finalização.

Em relação ao saneamento, o Programa BahiaAzul, que está sendo implantado pelo governo doEstado, desde 1996, através da Embasa, comoenunciado nas publicações oficiais, objetiva ampliarredes de abastecimento de água, redes de esgota-mento sanitário e sistemas de coleta e destinaçãofinal de lixo, com vistas à despoluição de rios epraias, recuperação de áreas degradadas, com im-plicações diretas na questão da saúde, qualidadedo ambiente e estímulo ao turismo. Abrangendo osdez municípios da RMS e entorno da Baía de To-dos os Santos, atinge praticamente toda a popula-ção aí residente, em torno de 2,5 milhões de pes-soas. A implantação está sendo viabilizada porfinanciamentos do BID, BIRD, OECF e BNDES, numtotal previsto de US$ 600 milhões (Bahia, 1997a).

Para a habitação, depois de um longo períodode recesso, a partir de 1995/96 o governo do Esta-do vem implantando um amplo programa de me-lhorias de áreas ocupadas degradadas, em Salva-dor e outros municípios da RMS, o Programa ViverMelhor. Apesar dos resultados ainda muito recen-tes, um breve esboço indica a dimensão do progra-ma. Financiado através do programa Habitar Brasile Pró-Moradia, com intermediação da Caixa Eco-nômica Federal (CEF), foi implantado pela URBIS,empresa pública responsável pelo programa. Con-forme dados da CEF, de 1997 a 1998, realizaram-

se 94 projetos em todo o Estado da Bahia, sendo amaioria, 65 em Salvador, cinco nos demais municí-pios da RMS e 24, no restante do Estado. Dessetotal, no município da capital, 53 projetos intervie-ram em áreas de ocupação informal deficiente,abrangendo 31.053 famílias; seis foram para a me-lhoria de infra-estrutura em conjuntos habitacionaisexistentes, envolvendo 4.282 famílias e seis cor-responderam a projetos de implantação de novosconjuntos, num total de 3.137 unidades. Os investi-mentos em Salvador foram da ordem de R$152.252.117,00, abrangendo 38.472 famílias. Por-tanto, a grande maioria dos projetos envolveu áre-as já ocupadas. Foram atingidas principalmente asáreas de “invasão” – algumas localizadas em glebasremanescentes de conjuntos habitacionais cons-truídos no passado pela própria URBIS, melhoran-do-se a infra-estrutura e substituindo-se algumashabitações relocadas na própria área, num total de5.089 novas unidades. Representam investimentosvultosos, com impactos significativos, comparadosa momentos anteriores, constituindo, em termos denovas unidades habitacionais, 22% do total produ-zido até 1986 para a RMS.15

Evidentemente, os dados analisados indicam umamudança de atuação da referida instituição. Historica-mente, desde sua criação, em 1965, atuou basica-mente na construção de novos conjuntos em grandesvazios da periferia urbana, seja em áreas limítrofes domunicípio ou mesmo próximo dos núcleos industriaismetropolitanos. A partir do programa Viver Melhor,passa a atuar mais intensivamente na melhoria habi-tacional de áreas degradadas já ocupadas, com pers-pectivas de manter as populações nos assentamen-tos de origem. Por outro lado, os dados colhidos paraa última década indicam que a proporção entre o nú-mero de novas unidades habitacionais implantadaspelo setor público e o número total de famílias envol-vidas em projetos de urbanização tem diminuído,passando, em 1989/1992, de uma relação de 40,4%,para, em 1993/1996, atingir 21,9%, até alcançar, en-tre 1997/1998, um percentual de 21,3%, ou seja,tendencialmente investe-se menos em novas unida-des e mais em urbanização.

Nesse processo, observa-se também a experi-mentação de novos parâmetros urbanísticos. Senos primeiros projetos recentes, ocorridos em áre-as remanescentes de conjuntos habitacionais, como

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na “invasão” Yolanda Pires-Ogunjá, percebe-se ummodelo físico de intervenção com remanejamentototal das unidades existentes, ainda que na próprialocalidade, tal atitude vem sendo revista nas últi-mas intervenções concluídas, ao manter-se umagrande parte das casas existentes, relocando-sealgumas na própria área, a exemplo do que foi rea-lizado para a localidade da Gamboa.

Ainda que, nesse programa, a atitude da inter-venção pública tenha mudado em relação à perma-nência da maioria das “invasões” em Salvador, ob-servam-se algumas limitações no sentido deatingir-se uma melhor qualidadedo habitar, tal qual conceituadonesta pesquisa. Em quase todosos projetos implantados, o padrãopredominante foi: novas unidades/equipamento comunitário local/me-lhorias de habitações precárias.Apenas em alguns casos perce-bem-se mudanças de atuação ur-banística, avançando-se timida-mente em novas tentativas, taiscomo: preservação das caracterís-ticas espaciais de uma “ocupação popular” (Gam-boa); valorização da estética e do lugar (Candeal);interação com novos agentes sociais, como ONGs,escritórios de projeto, através de concursos públi-cos, e parcerias (Novos Alagados, Caranguejo, Ca-murujipe e Candeal). Em relação à qualidade deespaços públicos e tratamento de áreas verdes,praticamente não foram imprimidos avanços quali-tativos – como plantio de árvores, cuidados com apaisagem natural, recomposição de áreas verdes efortalecimento de espaços abertos – seja para acomunidade local, seja para a população em geral.Quanto aos equipamentos comunitários implanta-dos, esses visam atender apenas às demandas es-pecíficas dessas localidades, como posto de saú-de, escola, creche, áreas de esporte. Não existempropostas para implantação de equipamentos comabrangência envolvendo o bairro e a cidade.

Para esse enfoque de análise, observa-se aindaque, em relação aos demais projetos urbanos re-centes, nem todos mantiveram as populações mo-radoras originais. Tal qual ocorreu no Pelourinho,algumas outras intervenções de revitalização deespaços culturais e de lazer, em áreas de localiza-

ção privilegiadas como Costa Azul, Abaeté eUnhão, as aglomerações habitacionais de baixarenda, do tipo “invasões”, que lá haviam, foram reti-radas, sendo os antigos moradores indenizados ourelocados para loteamentos públicos na periferia.

Ainda analisando-se as medidas públicas recen-tes que envolvem a questão urbana, observe-seque, nos últimos anos, as empresas públicas encar-regadas dos serviços de infra-estrutura ou já foramprivatizadas, a exemplo da COELBA (energia elétri-ca) e TELEBAHIA (telefonia), ou estão previstaspara privatização imediata, como a EMBASA

(água). Por outro lado, no âmbito dareforma administrativa promovidapelo governo do Estado, ocorreu aliquidação da URBIS, que teve suasfunções incorporadas à CONDER,a qual deixa de ter apenas atribui-ções na Região Metropolitana deSalvador, passando a atuar em todoo Estado. Foi aprovada também aprivatização das principais vias deacesso à cidade, BR-324 e Estradado Coco, com previsão de implanta-

ção de pedágios. São medidas que sinalizam o pro-cesso de ampliação da privatização do meio urbano,o que certamente trará desdobramentos ainda não-definidos para as condições da moradia e fluxosnesta cidade de composição social nitidamente desi-gual e extremamente pobre.

Enfim, esse conjunto de medidas e projetos sãoprenúncios de mudanças na dinâmica urbana, quese deparam com uma realidade complexa do ambi-ente construído e, certamente, representam con-tradições e conflitos frente às perspectivas que secolocam no redimensionamento das condições ur-banas na atualidade.

Indicadores de redimensionamentomacrorregional envolvendo Salvador

Em relação à macroexpansão urbana na déca-da de 1990 envolvendo a região de entorno de Sal-vador, outras intervenções recentes ocorridas forados limites do município trazem novos conteúdospara o entendimento da reestruturação espacial emcurso, devendo ser consideradas como referênciapara os objetivos desta análise.

Em quase todos osprojetos implantados, o

padrão predominante foi:novas unidades/equipa-mento comunitário local/melhorias de habitações

precárias. Apenas emalguns casos percebem-se mudanças de atuação

urbanística.

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Observe-se que a ocupação contínua tem se am-pliado significativamente na faixa da orla de Laurode Freitas e Camaçari, impulsionada pela implanta-ção de uma nova via litorânea, inicialmente com otrecho da Estrada do Coco, até Itacimirim, no final dadécada de 1970, ampliada com a construção da Li-nha Verde, BA-099, na década de 1990. Já nas dé-cadas de 1970/1980, inicia-se a ocupação mais ex-pressiva nessa direção, com a implantação deloteamentos balneários, o que foi consolidado com aefetivação de um grande empreen-dimento habitacional privado, Vilasdo Atlântico, objetivando sobretudoas demandas advindas da implan-tação do Pólo Petroquímico de Ca-maçari. Mais recentemente, vêmsendo implantados nessa faixaatlântica outros tipos de empreendi-mentos privados, voltados para oturismo, como os resorts da Praiado Forte, Guarajuba e Itacimirim.Em 1997, iniciou-se a construçãode um grande complexo turístico, oProjeto Sauípe. Localizado a beira-mar, a 90 quilômetros do centro deSalvador e a 70 quilômetros do ae-roporto, insinua-se como um dosmaiores complexos hoteleiro nopaís, com previsão final de 4.000leitos, parques e áreas de lazer,ocupando um total de 1.750 hectares. A sua primei-ra etapa, com 180 hectares, prevista para funciona-mento ainda no ano 2000, compreende um total de1.650 leitos – o correspondente a 60% da capacida-de dos hotéis 5 estrelas de toda a região Nordestedo Brasil. Abrange cinco hotéis de padrão internaci-onal, seis pousadas temáticas, uma vila de lazer eentretenimento, trilhas ecológicas, campo de golfe,centro eqüestre e diversos conjuntos de quadras deesportes.16

Ressalte-se que a modernização e ampliação doaeroporto internacional de Salvador, intervençãoiniciada em 1999, está também prevista para con-clusão nessa mesma época, bem como o início dopedágio da Estrada do Coco. Concomitantementea essas ações, efetivou-se o Plano de Ocupaçãopara a Costa dos Coqueiros, através da CONDER,definindo-se uma legislação urbanística e ambien-

tal específica para esse novo vetor de crescimento,iniciativa pública que reafirma essa nova dinâmicaregional de expansão urbana (Bahia, 1997b).

Tais ações representam iniciativas de grandeporte relacionadas à ampliação de serviços e turis-mo, com possíveis impactos na dinâmica urbanadessa macrorregião. Considerando-se, conjunta-mente, a implantação dessa nova infra-estruturaurbano-regional, as medidas de controle da ocupa-ção para essa zona de expansão urbana e a im-

plantação dos projetos recentesem Salvador, entende-se tratar-sede intervenções que evidenciam aintenção pública de “preparar” a ci-dade e sua macrorregião paraesse novo ciclo econômico relacio-nado à ampliação do terciário,agora envolvendo o ambiente e acultura como mercadoria.

Assim, Salvador e arredoresimediatos, em suas diversas rela-ções socioespaciais, têm se pro-nunciado fortemente como um dospólos turísticos do Brasil, o que jáesboça na expansão urbana umaampliação além das suas própriasfronteiras metropolitanas. Os in-vestimentos públicos e privados aírealizados na produção do espaçoconstruído, voltados para os servi-

ços turísticos, buscam as mais diversas fontes cul-turais e ambientais existentes no seu espaço regio-nal imediato. Diferentemente dos fluxos viáriosdirecionados aos pólos industriais e localizaçõeshabitacionais centro-periferia, essas novas inter-venções apontam um possível redirecionamento nadinâmica espacial urbana. Os investimentos para avalorização da “cidade antiga”, a seleção de áreasafastadas e isoladas da ocupação urbana contínuapara projetos de lazer à beira-mar, as medidas decontrole e privatização do ambiente e do uso dosolo na região, os investimentos em áreas ocupa-das degradadas, representam indicadores dessamudança, sinalizando outras interações na econo-mia urbana.

Esses novos circuitos terciários envolvendo oambiente urbano e natural, encontram, de fato, noacervo do patrimônio histórico e cultural de Salva-

As medidas de controleda ocupação para essa

zona de expansão urbanae a implantação dosprojetos recentes emSalvador, entende-se

tratar-se de intervençõesque evidenciam a

intenção pública de“preparar”

a cidade e suamacrorregião para essenovo ciclo econômico

relacionado à ampliaçãodo terciário, agora

envolvendo o ambientee a cultura como

mercadoria.

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dor e sua região imediata, uma abundante fontegeradora de riquezas. No entanto, essas relaçõesdemandam um meio ambiente atrativo, que dificil-mente pode conviver e prosperar com indicadoresde pobreza tão amplos e com a intensa segregaçãoe precariedade habitacional apontadas para Salva-dor, cidade que exclui uma grande parte da cidadee de sua população.

Mudanças e permanências na segregaçãoe exclusão do habitar

Considerando-se esse esboço urbanístico dohabitar na cidade atual, algumas mudanças e per-manências relacionadas à questão da segregaçãoe exclusão podem ser apontadas.

Primeiramente, observa-se que a implantaçãode conjuntos habitacionais e dos loteamentos pú-blicos na periferia, produzidos desde os anos 60,para atender ao déficit habitacional e absorver aspopulações desabrigadas ou transferidas de “inva-sões” e dos cortiços das áreas centrais mais valori-zadas, são ações, obviamente, que se somam paraintensificar a segregação espacial na cidade.

Diferentemente, as intervenções que foram rea-lizadas mais recentemente visando à melhoria deáreas ocupadas representam uma mudança de ati-tude do poder público em relação ao problema dahabitação em Salvador, contribuindo para tornar ascondições do habitar menos segregadora e exclu-dente. Embora, no passado recente, algumas ten-tativas de urbanização e legalização em áreas deocupação informal e degradadas tivessem ocorrido– Projeto Minha Casa (1987/89), Programa de Le-galização Fundiária (1987/96), Programa de Prote-ção de Encostas (1989/92) e projetos de mutirão eparceria (1993/96) – representaram ações setoriais,tendo resultado em atuação pública de poucaabrangência. No período 1997/1998, pela primeiravez, notificam-se investimentos sistemáticos e ma-ciços em projetos de urbanização e melhoria habi-tacional nas áreas mais deficientes da cidade, emsua grande maioria susceptíveis à legalização, pas-sando a manter, em quase todos os casos, as po-pulações originais.

Outra mudança a ser assinalada, com base nosdados levantados, refere-se ao fato que, gradati-vamente, o número de famílias envolvidas com pro-

jetos de urbanização de áreas ocupadas vem sesobrepondo ao número de novas unidades habita-cionais construídas pelo poder público, significandoque nos anos 90 se investiu mais nas áreas ocupa-das degradadas. Esse aspecto fortalece os argu-mentos anteriormente apresentados sobre a ne-cessidade de qualificação do déficit habitacional naatualidade, envolvendo prioritariamente a questãodo ambiente construído.

No entanto, se por um lado alguns projetos fo-ram inovadores no enfrentamento da questão ha-bitacional relativamente às melhorias físicas em áreasde ocupação informal, por outro ainda avançarampouco na relação habitação-cidade. Pontua-se quea urbanização de áreas degradadas envolvendoinfra-estrutura, remanejamento da ocupação emáreas de risco, implantação de equipamentos co-munitários locais e substituição e/ou melhorias dehabitações deficientes, enfim, melhorias físicas dasunidades habitacionais e da infra-estrutura na loca-lidade, certamente constituem ações públicas diri-gidas às carências mais imediatas de grande parteda população urbana de baixa renda. No entanto,ainda não atinge o âmago da questão que atual-mente se apresenta sobre o habitar no meio urba-no. Mesmo absorvendo-se as “invasões” e suas lo-calizações na cidade, melhorando-se as condiçõesmateriais e sanitárias, poucos foram os avançosquanto à legalização fundiária, tratamento de espa-ços públicos, questão ambiental e, principalmente,quanto às possibilidades de inserção real dessasáreas na “cidade formal”, através da definição deparâmetros urbanísticos próprios, da implantaçãode equipamentos de abrangência urbana, medidasessas indispensáveis para garantir condições dehabitabilidade e direitos urbanísticos para a coleti-vidade no ambiente urbano construído.

No que se refere ao problema de encostas e aoconforto de acessibilidade em áreas de decliveacentuado, esses projetos recentemente implanta-dos tampouco inovaram em tecnologias próprias aessa questão, tão peculiar na ocupação habitacio-nal de Salvador.

Os avanços mais significativos foram notificadosnas intervenções que envolveram ONGs e partici-pação comunitária, salientando-se Novos Alagadose Candeal. Primeiramente, porque partiram de ini-ciativas de projetos já discutidos com os morado-

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res, com uma certa margem de amadurecimentopara que se trabalhassem as demandas locais. Emseguida destaca-se o fato desses projetos incorpo-rarem novas diretrizes de âmbito social, ambientale urbano, que podendo reverter a condição de “fa-vela” e contendo, portanto, potenciais mais amplosque a mera urbanização, possibilitando a sua me-lhoria e incorporação ao cotidiano da cidade.

Mesmo considerando-se que alguns projetosrepresentem um certo avanço na conquista de umambiente menos excludente, ao confrontarem-seesses resultados ao quadro atual da ocupação ha-bitacional retratado por esta pesquisa e verifican-do-se a predominância significativa de populaçãohabitando em áreas informais e deficientes, os re-sultados se mostram tímidos diante da grandezada questão. Por outro lado, a fragilidade financeirado município para enfrentar problemas de tal en-vergadura indica que não basta a vontade políticalocal para realizações de mudanças efetivas, fa-zendo-se necessários recursos externos significati-vos, possíveis somente com apoio federal. Todavia,desde 1999 não há previsões imediatas da CEFpara novos financiamentos através do programaPró-Moradia e Habitar Brasil.

Portanto, diante dessa interrupção na esfera daação pública, as perspectivas de melhorias dascondições de habitabilidade na realidade atual re-presentam uma questão ainda sem contornos defi-nidos, mas com indicações de poucos desdobra-mentos para efetivação de uma política social dehabitação. Em acréscimo, verifica-se que os pro-blemas analisados ampliam-se para questões queenvolvem a privatização dos serviços urbanos, o queexige uma postura pública explícita e contínua paraque essas áreas de pobreza sejam incluídas entreaquelas atingidas pelos benefícios públicos e con-forto coletivo.

Perspectivas no final do século XX

Vista sob essa ótica, a problemática habitacio-nal na atualidade de Salvador indica que, nesseprocesso de ocupação desigual, deficiente e ambi-entalmente predatório, ganharam os lucros imedia-tos, mas, em relação à cidade em seu conjunto, to-dos perderam e, duplamente, aqueles para os quaisnada mais restou além de um pequeno alojamento

na periferia desassistida. A melhoria desses espa-ços ocupados representa atualmente um custo mui-to alto, tendo em vista que, consolidados, são prati-camente irreversíveis em sua morfologia básica e,portanto, contraditoriamente incompatíveis com osnovos padrões produtivos que se avizinham, tendoa própria cidade e seus ambientes como meio deprodução no processo de acumulação.

A análise dos novos projetos urbanos em fasede implantação já delineiam o incremento dessesprocessos produtivos emergentes, sobrepondo-seaos anteriores. Se caracterizam por fluxos diferen-ciados, tendo como principal mercadoria a cidade,sua história e a produção cultural própria da região,como potenciais para o consumo. Portanto, merca-dorias localizadas e não-materializadas, iniciativaseconômicas que demandam outras relações espa-ciais envolvendo a cidade e seu entorno, em suavia de entrada para a globalização.

Trazem, no conjunto, novos impactos, delinean-do outras relações e limites espaciais, que certa-mente envolvem a gestão e produção do espaçourbano e da habitação. Percebe-se a emergênciade um “redesenho” espacial, dinamizando suaspossibilidades turísticas, sobretudo nos limites dacidade antiga e na sua relação com o mar. Voltan-do-se novamente para a Baía de Todos os Santos,as intervenções agora atingem outras perspectivaseconômicas, além da cidade portuária, envolvendoinvestimentos de cunho cultural-ambiental. Diferen-temente da cidade industrial, as demandas da eco-nomia do turismo no espaço parecem criar outrasrelações de localização habitação-trabalho e habi-tação-cidade, que já começam a despontar em Sal-vador, haja vista os investimentos em curso. Enten-de-se que essa perspectiva que se delineia noespaço construído guarda em seu seio profundascontradições sociais.

A mercantilização dos ambientes e a privatiza-ção do meio urbano que já despontam no cenáriodas cidades brasileiras, ao emergirem, se deparamcom esse ambiente construído complexo, fragmen-tado e deficiente, de composição social nitidamentedesigual e extremamente pobre. Miséria, violência,ambiente precário e turismo não são ingredientesque se conjuguem em uma cidade que pretenda“vender” serviços e ambientes. No entanto, são con-dições que estão fortemente presentes nessa rea-

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lidade. Esse parece ser o grande desafio dos circuitoseconômicos que envolvem cidades como Salvador.Como será enfrentado esse enorme fosso criadopelas diferenciações sociais e espaciais no ambi-ente urbano?

Nesses tempos de globalização intensiva, as in-terações entre sociedade-espaço adquirem outrosconteúdos, a serem considerados na perspectiva deintervenção urbana. Alain Lipietz, ao tratar de rees-truturação produtiva e impacto intra-urbano, afirmaque, numa estratégia de desenvolvimento local, oconteúdo é mais importante do que a forma; naimplementação de novas estratégias produtivas,além da capacitação local, seja em termos de for-mação profissional, seja em meios de articulaçãoentre empresas, é sobretudo importante prover, noconjunto da aglomeração, uma qualidade de vidaambiental atrativa. Na sua compreensão, o sanea-mento e urbanização de bairros populares, o de-senvolvimento de espaços verdes ou implantaçãode parques e de atividades culturais, um bom siste-ma de transporte coletivo: tudo isso não é um luxosocial e ecologista, mas sim uma condição de de-senvolvimento econômico (Lipietz, 1996).

As análises aqui efetuadas apontam para essadireção. Entende-se que as políticas de melhoriasurbanas e habitacionais, atualmente, longe de re-presentarem a “produção de bens de consumo co-letivo” para melhores condições de “reprodução daforça de trabalho” ou respostas às “lutas urbanas”que se configuraram nas décadas de 1970 e 1980,aparecem como exigência da própria possibilidadede inserção econômica dos lugares no mercado ecircuitos globalizados. Mais do que políticas sociaisem si, representam novas demandas econômicasna renovação de padrões produtivos.

Dessa forma, as contradições e conflitos se am-pliam do direito à moradia enquanto unidade habita-cional, ao direito ao habitar, compreendido num sen-tido mais abrangente, que vai além das benfeitoriasmateriais. Traduz-se no reconhecimento e preserva-ção das identidades de vivências e de lugares, na li-berdade de representações espaciais e na melhorqualidade do ambiente natural e construído. Enfim,representam as novas necessidades para formas desustentação de vida cotidiana, adequadamente con-fortáveis e diferenciadas, requisitos estes que pare-cem ser propostos pela sociedade de nosso tempo.

Para isso, as ações públicas em habitação terãoque priorizar a melhoria de áreas ocupadas semperder de vista a necessidade de produção de no-vas habitações. Como analisado, essas demandasenglobam, além de infra-estrutura e melhoria daedificação, a criação de espaços públicos, a inser-ção de equipamentos urbanos, legislação própria eassessoramento técnico na construção do ambien-te coletivo. Envolvem recursos vultosos e subsídiospúblicos, dentro de um escopo de planejamentoque dimensione e priorize as intervenções, semdispensar a permanente participação dos morado-res, parcerias diversas e redefinições conceituais,se, de fato, a sociedade se propõe a enfrentar efeti-vamente a questão da qualidade do meio urbano.

Sobre um projeto político-territorial de conquistada cidadania relacionada a questões da legalidadeurbanística, evidentemente entende-se que seriautópica a expectativa de ampliar a vigência dasnormas e códigos estabelecidos para toda a cida-de, frente à situação atual. Em primeiro lugar, por-que o fato de que essas áreas foram edificadassem controle não necessariamente significa tratar-se de áreas fora de padrões urbanísticos desejá-veis. Por outro lado, as normas da legislação atualnão estão isentas de crítica sobre questões de con-forto, ambiente e garantia de qualidade de vida.

Como caminho para enfrentar-se a situaçãodesvendada aponta-se sobretudo a necessidade deimplementar-se uma política urbana específica econtínua, valorizando-se as características e parti-cularidades de cada cidade e localidade, para in-clusão dessas áreas num coletivo mais amplo.Nesse sentido, terão que ser criados meios de me-lhorias físicas e fortalecimento desses lugares nacidade, identificando-se potencialidades de trans-formação de áreas dormitórios em áreas de habitarno meio urbano, lugar onde se vive e se viverá nopróximo milênio.

No processo de reestruturação econômica quese vivencia no mundo atual, a gestão de cidadescomo Salvador, que detêm um grande potencialsociocultural, terá que ir além das medidas pontu-ais e intervenções em áreas turísticas. Ao seconstatar esse alto grau de diversidade e de não-regulação no uso e ocupação do solo, com impac-tos no ambiente natural e construído, fica evidentea necessidade de revisão das políticas de atua-

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ção, para que os conteúdos de fato se modifi-quem, adquirindo potencialidades de mudanças.Diante desses limites, responder aos desafios queagora são colocados supõe que não sejam ignora-das essas condições tão díspares. Por trás doscartões-postais há uma imensa cidade à deriva,silenciosa, segregada, excluída dos circuitos eparâmetros formais e, contudo, integrante dessamúltipla realidade.

Notas:

1 Os estudos pioneiros sobre essa questão já demonstramque o sistema rentista que predominava como forma deacesso a moradia, logo se esgota no atendimento a essademanda intensiva. Fazem surgir uma situação de congesti-onamento habitacional e precariedade física, com a forma-ção dos cortiços nos grandes centros urbanos, logosubstituídos por processos de privatização no acesso à mo-radia. Já no início do século o padrão suburbano de ocupa-ção será possibilitado pelo desenvolvimento tecnológico dosmeios de transporte e pela abertura de grandes loteamentosnas periferias das cidades. No entanto, como já amplamen-te demonstrado, o problema de habitação não representauma questão técnica; a insuficiência de renda é o grandeempecilho para aquisição dessa mercadoria especial.

2 Nesses países, verifica-se que as “habitações sociais” se,por um lado, provia moradia para as classes mais pobres,não alterava a condição de segregação da pobreza. Oconfinamento em grandes conjuntos nos arrabaldes, isolan-do esses moradores no meio urbano, acaba criando outrasformas de “guetificação”, intermediada pelo Estado e assisti-da pela previdência social. Essas situações contribuem paraa falência desse padrão de habitação, chegando-se inclusi-ve a situações extremas de implosão de conjuntos relativa-mente novos. Um exemplo clássico foi o complexoresidencial Pluitt-Igoe, construído em 1955 em St. Louis nosEstados Unidos e implodido 16 anos depois, em 1972 (Hall,1988). Por outro lado, o padrão “conjunto habitacional”, mes-mo difundido em profusão, não eliminou as habitações depopulações pobres localizadas nos centros urbanos.

3 Durante o período de vigência do BNH, 1964/86 a produ-ção correspondeu a um total de 4,5 milhões de unidades, oque representa em torno de 25% do parque imobiliário bra-sileiro produzido para o período. Deste total, somente 1,5milhão de unidades (33,3%) destinaram-se às camadaspopulares da população, tendo sido produzidas apenas250 mil unidades em programas alternativos, ou seja 1-3SM. (Azevedo, 1988)

4 Suzana Taschner (1997) com base em estudos existentessobre população moradora em favelas e áreas de pobrezanas grandes cidades brasileiras, indica, no início dos anosnoventa, os seguintes percentuais comparativos: em São

Paulo, 11,3%; no Rio de Janeiro, 17,5%; em Belo Horizonte,quase 20%; para as “invasões” em Salvador, próximo a 30%;em Brasília, as cidades-satélites abrigam cerca de 75% dapopulação do Distrito Federal.

5 Essa argumentação encontra-se desenvolvida na tese dedoutorado de minha autoria, Limites do habitar; segregaçãoe exclusão na configuração urbana contemporânea de Sal-vador e perspectivas no final do século XX, defendida naFAUUSP em out./99, em fase de preparação para publica-ção. Os dados de pesquisa apresentados neste artigo foramretirados do referido trabalho.

6 Com esses novos projetos de renovação urbana, manifes-ta-se nos países centrais o que se denominou gentrification– expulsão das populações pobres residentes em áreascentrais degradadas, substituídas por outras de renda maisalta. Essas intervenções, em pleno curso nas grandes cida-des, basicamente tem sido relacionadas à ampliação dossetores financeiro e turístico, associadas à dinamização deatividades imobiliárias. Geralmente incidindo em áreas depropriedade pública ou semipública – ruínas de fábricas,antigas docas etc –, esses projetos de urbanização têmcomo objetivo integrar atividades de recreação, cultura,compras, habitação para moradores de alta renda. Essemodelo se reproduz em cidades antigas, incentivando a vo-cação turística, tendo a “cidade-como-palco”, envolvendopesados investimentos públicos e privados que valorizamessas áreas “revitalizadas”. Ver nesse sentido Harvey(1989) e (Hall, 1988).

7 As tendências de arranjos espaciais da habitação nos paí-ses altamente industrializados delineiam a continuidade deuma ampla descentralização espacial em regiões urbanas,polinucleadas, praticamente ligando as áreas suburbanas decidades distintas, tendência que ocorre concomitante a umapolarização extrema entre ricos e pobres nas áreas centraisda metrópole (Gottdiener,1990). Concomitante, intensifica-se o fechamento de áreas residenciais de classes de rendaalta, os novos enclosures – condomínios privados de mora-dias exclusivas na periferia urbana imediata.(Hall,1988)

8 Essa compreensão tem como referência alguns autores quetratam das cidades contemporâneas no processo de globali-zação, entre eles David Harvey (1989), analisando os proje-tos de revitalização urbana e competição entre as cidades;Susan Fainstein (1990) que trabalha as perspectivas de re-estruturação urbana analisando as relações entre o global eautonomia local; Alan Lipietz (1996), que analisa divergênci-as das trajetórias nacionais na globalização; e Octávio Ianni(1996) relacionando a inserção de cidades na economia glo-bal às formações sócio-culturais específicas.

9 Henri Lefebvre, 1968, com o seu trabalho O direito à cidade,é um dos pioneiros na análise dessa relação habitação e ci-dade. No Brasil, esse enfoque foi abordado nos anos seten-ta, sobretudo pelos estudos para São Paulo, sobre o chama-do padrão periférico de autoconstrução, conforme Maricato(1979), Bonduki & Rolnik (1979). Para Salvador, os primeirosestudos que analisam habitação na dinâmica de crescimen-to urbano são os de Santos (1959) e Brandão (1963).

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10 Esse trabalho empírico, apresentado na tese já referida nanota 5, foi possíbilitado pela continuidade de pesquisas anteri-ores sobre habitação nessa cidade, condição indispensávelpara desenvolver-se a metodologia utilizada, baseada empesquisa de campo. Ver Gordilho-Souza, 1990, 1996 e 1998.

11 A perspectiva do turismo tem sido apontada como de vital im-portância para a trajetória econômica da Bahia, lugar espe-cialmente vocacionado para um mercado crescente a nívelmundial. No início dos anos noventa, o turismo representava3% do PIB baiano, com possibilidades de ampliação pelos in-vestimentos que já estavam em curso, prevendo-se que estetipo de atividade pode cumprir um papel importante em ter-mos de emprego e renda do estado, juntamente com outrosserviços como comércio e transportes. (Prosérpio, 1994)

12 Para isto, optou-se pela elaboração de mapas digitais, comsistematização informatizada, através do software AutoCADe EXCEL, identificando-se todas as formas de ocupação ha-bitacional em Salvador e para a mancha urbana como umtodo, até 1991, levantamento que permitiu a produção dedados quantitativos. Utilizou-se como base de informaçõesalém de dados secundários, pesquisa de campo, aerofotosda Conder/1992, cartográfia RMS/Sicar 1985. A área consi-derada antiga, tomando como marco temporal a década de1920, quando implantou-se os primeiros regulamentos urba-nísticos em Salvador, foi delimitada tomando-se como refe-rência o Mapa Topographico da Cidade de S. Salvador eseus Suburbios, elaborada por Carlos A. Weyll, 1851 e aplanta da cidade na década de 1920, do convênio UFBA-CEAB/PMS,1979. Esse mapeamento básico foi vetorizado,passando a constituir o referencial para a confecção dosdemais mapas temáticos.

13 Para confecção desse mapa digital utilizou-se a mesma me-todologia já referida para o levantamento da ocupação habi-tacional, com base em pesquisa de campo, aerofotos daConder/1980 e 1992, planta cartográfica RMS/Sicar, 1985 emapas antigos, para a década de 1920, conforme especifi-cados na nota 12.

14 Ver nesse sentido, o estudo realizado por Fernandes & Gomessobre as reformas do Pelourinho, apontando para o “abandonoradical” da proposta de melhorias habitacionais com manuten-ção da população, que caracterizou a ação das políticas anteri-ores de patrimônio, dando curso, assim, a uma nova dinâmicade consumo cultural na requalificação de espaços na cidade.

15 Para a RMS, comparando-se com a produção de habitaçãoda URBIS desde a sua criação, em meados da década de1960, até 1986, que resultou em 43.850 unidades, verifica-se que o total produzido nesses dois últimos anos, de 9.643unidades (8226 unid. em Salvador e 1417 unid. nos demaismunicípios), praticamente representa 22% do que havia sidoefetivado no passado, considerando-se todo o período degrande intensidade de atuação da referida empresa,viabilizada por financiamentos do BNH (Bahia, 1986).

16 Esse empreendimento está localizado na Fazenda Sauípe,do Grupo Odebrecht, que esteve à frente na implantação doempreendimento, com a participação do Governo do Estado

da Bahia. Os recursos investidos nessa primeira etapa, ten-do a Previ – Caixa da Previdência Social dos Funcionáriosdo Banco do Brasil, como principal investidor, são da ordemde R$ 200 milhões (Odebrecht Informa, 1998)

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* Angela Gordilho Souza é Arquiteta, professora daFAUFBA, pesquisadora do LabHabitar/ PPG-AU, Faculda-

de de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.E-mail: [email protected]

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Anexo 1

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Anexo 2 - Município do Salvador - Legalidade urbanística nas áreas de habitação, 1925/1991

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Anexo 3 - Município do Salvador - Limites das condições de habitabilidadenas áreas ocupadas, 1991

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Anexo 4 - Município do Salvador - Distribuição dos grandes equipamentos,pós década de 1920 até 1991

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74 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.74-89 Março 2000

Comunicação, mídia e culturana Bahia contemporânea

Antonio Albino Canelas Rubim *

Está por ser desvelada e desvendada a his-tória contemporânea da Bahia, especialmen-te a que compreende o período do pós-

guerra até o ano 2000. A restrita bibliografiaexistente volta-se para os aspectos econômicos.Os panoramas político e cultural apenas marginal-mente foram analisados. A comunicação e a mídia,dentre eles, encontram-se nesse mundo esqueci-do. Tentar resgatar sua história, seus enlaces coma sociedade e, em especial, com a cultura, torna-seum esforço desmedido, pois necessário se faz in-ventar praticamente toda essa história.

Antes de enfrentar o desafio, algumas premis-sas gerais emergem como necessárias. A impres-cindível conexão, na atualidade, entre a comunica-ção e sua modalidade midiática e a cultura deve,de imediato, ser afirmada. O surgimento, de modosubstantivo, da comunicação midiatizada no séculoXIX, e seu fabuloso desenvolvimento no século XXarticularam intimamente comunicação (midiática) ecultura. As mídias, em sua ecologia da comunica-ção, conformaram um circuito cultural de grandepotência e repercussão sociais. Tal circuito, quasesempre subsumido a uma lógica de indústria cultu-ral, transformou-se mesmo no circuito cultural do-minante nos países de capitalismo avançado, su-plantando outras dinâmicas de organização dacultura, tais como a escolar-universitária e a popu-lar. Mesmo não tendo adentrado o pequeno círculodo capitalismo avançado, o Brasil, pelo menos des-de os anos 70, está instalado, não sem tensões,nessa situação cultural. Em síntese, a mídia confor-

ma, de modo crescente, uma cultura de modalida-de peculiar, interditando a possibilidade de ser pen-sada sem referência à cultura, e essa cultura plas-mada pela mídia, em sua interação com ambientessocietários nacionais e internacionais, apresenta-se como a dominante no horizonte cultural interna-cional e, em especial, brasileiro.

Outro conexão essencial, inclusive para a con-fecção desse texto, deve ser enunciada: a igual-mente necessária articulação entre comunicação,em sua modalidade mídia, e formatação da socia-bilidade contemporânea. Se a comunicação midia-tizada emergiu no período tardio da modernidade,a potência de sua intervenção societária se fazsentir no contemporâneo, quando redefine modosde ser, estar e viver no mundo. A contemporaneida-de deve ser entendida como uma (singular) sociabili-dade estruturada e ambientada pela mídia.1 O nexoentre comunicação e sociedade, que sempre existiu,afirma-se como algo ainda mais imprescindível naespacialidade e temporalidade contemporâneas.

Se a comunicação sempre ocupou um lugar es-sencial para a conformação, convivencial e imagi-nária, do local, também não se deve esquecer seuimprescindível desempenho para configurar o nacio-nal, para construir as “comunidades imaginadas”que aparecem como substrato de sentido que tecea nação. Cabe aqui pensar na ativação do livro edas literaturas para construir as nações européiase o lugar do cinema na moldagem da nacionalidadenorte-americana. Além dessa atividade de consti-tuição do local e do nacional, hoje a comunicação,

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em especial em sua feição midiatizada, tornou-seum dos artefatos fundamentais para viabilizar a fa-bricação do global, uma das marcas essenciais dacontemporaneidade. Em verdade, o mundo contem-porâneo, em íntima conexão com a comunicação esua versão midiática, deve ser formulado como“glocalidade”, isto é, como conjunção, tensa, entrefluxos culturais locais e globais, possibilitado, den-tre outros procedimentos, pela comunicação midia-tizada.2

As três premissas elencadas acima permitemantever os contornos a serem perseguidos pelo iti-nerário deste texto. Busca-se compreender a co-municação e a mídia na Bahia contemporânea emseu imanente relacionamento com a cultura, a soci-edade e a atualidade.

Chegar à Bahia

A aproximação da Bahia contemporânea requerum marco de entrada. No ano em que comemora-mos os 50 anos de televisão no Brasil e 40 anos deTV na Bahia, pode ser sugestivo retornar ao passa-do nos instantes que circunstancializam a introdu-ção dessa mídia tão vital para a configuração sociale cultural do País na atualidade. Na Bahia, a marcadesses anos está expressa através das noções demodernidade e modernismo cultural, em seu senti-do (re)significado por Antonio Cândido, de movi-mento cultural não-redutível a sua dimensão mera-mente estética.3

A modernização e o modernismo cultural ope-ram naqueles anos sobre uma sociedade arraiga-damente tradicional. A ex-capital brasileira, deca-dente em um patamar socioeconômico, vive umaatmosfera de melancólica “boa terra”. A industriali-zação e a urbanização, traços imanentes do acele-rado processo de mutação em curso no século XXbrasileiro, em especial a partir da década de 30,não atingiam a Cidade da Bahia que, imune ao pro-gresso, mantinha sua “aura” de ex-capital com seu“malemolente” ritmo, natureza e hospitalidade baia-nos. À margem do progresso capitalista, a Cidadeda Bahia pode ser (re)conhecida como “boa terra”,como lugar preservado dos agitados e perigososefeitos da industrialização e urbanização avassala-doras que, ao construir e destruir “coisas belas”,como canta Caetano Veloso, produzem riqueza,

mas também incertezas, miséria, ritmo desumano,neuroses. Sem poder usufruir das dimensões posi-tivas do progresso, a cidade (en)canta a preserva-ção nostálgica de uma época passada de riquezas,longe da modernidade, tomada como nefasta.

Sua elite, imbuída de valores enraizados na tra-dição e instalada em uma cultura de academias,muitas vezes ornamental, como diria Carlos NelsonCoutinho,4 cultuava uma oratória rebuscada, umcomportamento preenchido por formalidades e umconhecimento carregado de um verniz de erudiçãoenciclopédica. A cultura das letras e das belas ar-tes reforçava a depressão do trabalho, consideradopelos “brancos” quase sempre como tarefa dos su-balternos, na sua imensa maioria excluídos do pre-dominante universo cultural, fortemente elitista, eimersa em uma cultura negra de origem africana,subterrânea naquela sociedade desigual. Nesse pa-radeiro e com esse movimento subterrâneo, aBahia suportou seus cem anos de solidão, essenciaispara a conformação da sua negritude e, em conse-qüência, da sua atualidade sociocultural, como ob-servou Antonio Risério.5

Nessa sociabilidade quase comunitária de umacidade de dimensões e população reduzidas (porvolta de 200 mil habitantes em 1940), marcada pelaconvivialidade cotidiana e severa de “brancos” e“pretos”, a comunicação interpessoal encontra es-paço de realização, apesar das fortes segregaçõesexistentes. As comunidades que dilaceram e for-matam a cidade mostram-se como lugares, por ex-celência, do fortalecimento da convivência e da co-municação entre pares que se (re)conhecem. Astradições comunitaristas, especialmente as popula-res, reforçam esse ambiente, no qual a comunica-ção presencial se realiza adequadamente. Não exis-tem complexidades e dimensões que reivindiquema necessidade de outras modalidades de comunica-ção. Um embrionário rádio convive com os jornais,de longos narizes de cera, de linguagem mais literá-ria que inscrita em uma formatação jornalística.

Essa sociedade arcaica, com consistentes tradi-ções e distinções, demonstra sua força pela resis-tência que opõe à modernização e ao modernismocultural, tanto no âmbito das elites “brancas” quan-to naquele dos segmentos populares. As tentativasde abertura para a modernidade são rechaçadas como vigor dos valores arraigados e o peso de uma cul-

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tura instalada. A reduzida bibliografia existente, porexemplo, aponta a difícil trajetória de implantaçãodo modernismo artístico na Bahia.6 Quase três dé-cadas de atraso tem esse percurso, comparando-se ao itinerário do modernismo no Brasil.

A agitação modernizante e modernista do pós-guerra e, especialmente, dos anos 50, se de ummodo expressa esse retardo moderno, de outromostra uma velocidade, uma desenvoltura e umaagitação que impressionam. O já chamado “renas-cimento baiano” não por acaso en-canta os olhares contemporâneose permite na escassez da biblio-grafia um verdadeiro oásis de estu-dos e pesquisas7. A diversidade eriqueza dos movimentos abarca-dos pela modernização e pelo mo-dernismo cultural justificam em ple-nitude essa plêiade de trabalhos.Um rápido retrospecto do eferves-cente momento se justifica, aindaque com o risco de apenas repetir-se o conhecimento já acumulado sobre aquele ins-tante marcante da sociedade e da cultura na Bahia.

Devem ser lembrados aqui movimentos como apresença de Anísio Teixeira, secretario de Educa-ção e Saúde do governo Octávio Mangabeira, comsua Escola Parque, com o apoio à pesquisa atra-vés de uma quase pioneira Fundação de Desenvol-vimento da Ciência, com sua política de incentivo àcultura; Thales de Azevedo, um dos fundadores dainvestigação social moderna na Bahia, e os pes-quisadores por ele trazidos de outros países paraestudar a Bahia; Walter da Silveira e seu Clube deCinema da Bahia, que atualizou cinematografica-mente a cidade e permitiu uma rica e internacionalcultura de cinema, essencial para o surgimento deuma cinematografia baiana na virada dos anos 50para os 60; os Cadernos da Bahia, revista literáriae de artes plásticas, que na passagem dos anos 40para os 50 moderniza a cultura na Bahia; o retornoao lar dos artistas plásticos Mário Cravo, CarlosBastos e Genaro de Carvalho, trazendo de suasexperiências no exterior um estoque de novidadesque, mescladas ao universo simbólico baiano, per-mitiram alavancar o modernismo cultural baiano emum contexto tão resistente; a confluência de umconjunto variado de estrangeiros desgarrados e cul-

tos, como Pierre Verger, Carybé, Lina Bo Bardi,que, encantados com a cultura local, confeccionamsuas obras e reflexões e fazem os baianos atentarpara uma riqueza que, muitas vezes, não pareciater a dignidade de ser reconhecida como cultura.

Mas se todas essas e outras iniciativas, infeliz-mente aqui não anotadas, emergem como vitaispara a inauguração do modernismo cultural na Bahia,a atitude da Universidade da Bahia, se não inaugu-radora, foi indubitavelmente a de maior peso insti-

tucional para a consolidação emesmo radicalização desse novoambiente cultural, reconfigurado pelomoderno, com já assinalamos emtrabalho anterior.8

A Universidade da Bahia, sob atutela do reitor Edgar Santos –considerado seu déspota esclare-cido9 – naqueles anos, tem vigoro-sa ressonância sobre a cultura esociedade baianas, colocando-sede modo majoritário em sintonia com

a corrente modernista baiana. O investimento daUniversidade nas artes aparece, sem mais, comoprimeiro aspecto a ser abordado. De modo singularno quadro universitário brasileiro, a Universidade daBahia naqueles anos 50 e 60 cria a primeira escolauniversitária de Dança no País, com uma opçãopela dança moderna, sob a orientação da polonesaYanka Rudzka; inaugura uma das primeiras esco-las de Teatro de nível universitário, dirigida por MartimGonçalves; promove e institucionaliza os Seminári-os (Livres) de Música. As três pupilas do senhor rei-tor, como se tornam conhecidas as escolas de arte,realizam uma grande agitação artística na cidade,com todo o apoio do reitor, expresso em verbas,convênios e contratação de inúmeros professores,muitos deles estrangeiros, todos eles aliados ao pro-cesso de renovação e criatividade culturais quedava o tom na atuação artística da Universidade.

O modernismo da Universidade não se circuns-creveu ao campo artístico. Inscrito em uma dimen-são alargada ele teve impacto profundo em outroscampos da cultura. A inauguração da Geociências,em associação estreita com a Petrobras, apontapara uma modernização no campo científico e tec-nológico. Em outra dimensão, a Universidade, porexemplo, moderniza a investigação e pensamento

A agitação modernizantee modernista do pós-

guerra e, especialmente,dos anos 50, se de ummodo expressa esse

retardo moderno, de outromostra uma velocidade,uma desenvoltura e uma

agitação queimpressionam.

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sociais. O Laboratório de Lingüística, dirigido peloprofessor Nelson Rossi, inova e, com seu Atlas dosFalares Baianos, realiza um primeiro experimentonessa área no Brasil. Milton Santos comanda o La-boratório de Geomorfologia e Urbanismo, que reali-za estudos inovadores sobre a cidade e seus arre-dores. George Agostinho, com o decisivo apoio doreitor, cria o Centro de Estudos Afro-Orientais(CEAO) que, atento aos países africanos, volta-serapidamente para a cultura afro-baiana e passa aestudá-la e colaborar de modo significativo com ela.Com isto, constrói-se uma ponte vital, ainda quecircunscrita, entre a Universidade e essa culturaquase subterrânea. Conexão que certamente teveum papel essencial para a confecção, o amadureci-mento e a posterior explosão das manifestaçõesafro-baianas.

Também os estudantes secundaristas e univer-sitários movimentam. Em 1956, Glauber Rocha,Fernando Peres, Paulo Gil Soares, Calasans Netoe outros estudantes do Colégio Central da Bahiainventam as Jogralescas e, um ano depois, publi-cam a revista Mapa. Em 1950, a revista culturalÂngulos é publicada pelo Centro Acadêmico RuyBarbosa da Faculdade de Direito, promovendo umaampla discussão de temas e teorias sociais. OCentro Popular de Cultura da UNE instala um dinâ-mico núcleo local, do qual fazem parte, dentre ou-tros, o cineasta Geraldo Sarno. O movimento estu-dantil mantém afinidades com esse movimentouniversitário e societário de modernismo cultural,ainda que também divergências, já que, muitas ve-zes, a impregnação cientificista, própria da esquer-da da época, entra em choque com o suposto cará-ter artificizante da atuação do reitorado.

Todo esse investimento da Universidade da Bahiae de seu reitor, um membro da elite baiana, nãopode deixar de ser considerado quando se refletesobre a consolidação do modernismo em uma pai-sagem cultural tão fortemente conservadora. Sema presença dessa prestigiada instituição, dificilmen-te o modernismo se implantaria de modo tão sólidoe, por vezes, tão radical, dado que a Universidadeda Bahia permitiu não só a introdução das aquisi-ções modernistas já efetivas no País – no eixo Riode Janeiro-São Paulo principalmente – mas a deum complexo conjunto de conhecimentos e produ-ções modernas e vanguardistas vindas diretamen-

te da Europa e dos Estados Unidos, fazendo comque a província da Bahia tomasse ares mais cos-mopolitas, acelerando e radicalizando o seu pró-prio modernismo cultural.

A (privilegiada) articulação nacional e internacio-nal aparece como um diferencial ainda mais im-portante, se considerarmos que a política culturalpredominante na esquerda e nos setores progres-sistas tornava-se cada vez mais influente nas uni-versidades e que essa política tendia a uma afirma-ção do nacional (popular) em detrimento do “cos-mopolitismo”. Em tempos de nacional-popular, aBahia teve a oportunidade ímpar de também teracesso ao internacional, muitas vezes antagoniza-do em outros ambientes político-culturais no Bra-sil.10 Esse aspecto certamente não pode ser me-nosprezado na análise das revisões propiciadas porbaianos na cultura brasileira nos anos 60. Bastalembrar o papel de Glauber Rocha no Cinema Novoe na sua revisão crítica com Terra em Transe(1967), e o de Caetano Veloso, Tomzé, Gilberto Gil,Capinam, Rogério Duarte com o Tropicalismo, quesintonizou singularmente a música e as artes plásti-cas brasileiras com os fluxos culturais contemporâ-neos, renovando de modo significativo os parâme-tros artísticos vigentes no País.

A dinâmica modernizante abarca o Recôncavobaiano. O petróleo e a Petrobras reanimam a eco-nomia e trazem para a Bahia a promessa extasian-te do progresso. Modernas classes e setores sociaisinstalam-se na região. Os serviços se ampliam.11 ACidade da Bahia se agita e se reinventa. Essa ondamodernizante, ainda que com forte tendência ao en-clave, ao colocar a cidade, paralisada no início doséculo XX, em movimento de ampliação espacial epopulacional, redefine as necessidades sociais decomunicação e as modalidades de interação vigen-tes na tessitura urbana. Reconfiguram-se os meiosde comunicar já existentes e nascem novas e mo-dernas mídias. O Jornal da Bahia, fundado em 1958por João Falcão, empresário proveniente do Parti-do Comunista Brasileiro, promove uma renovaçãodo jornalismo baiano. A equipe do jornal reúne ve-lhos jornalistas militantes comunistas e jovens inte-lectuais em uma experiência criativa e renovadora.O antigo Diário de Notícias, um dos jornais baianosdos Diários Associados, passa a publicar, em 1950,um suplemento cultural — o SDN — atento ao mo-

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dernismo e ao desenvolvimento da cultura local.Dirigido inicialmente por Lina Bo Bardi, o suple-mento posteriormente tem o comando de GlauberRocha. Com ele, toda uma geração de jovens inte-lectuais pode participar ativamente da criação e dodebate crítico do modernismo cultural baiano, bra-sileiro e internacional.

A antiga predominância da cultura das letras co-meça a ser impactada pela cultura da era da ima-gem, em um trânsito fundamental do antigo e dotradicional para uma dimensão simbólica instaladaculturalmente entre o moderno e o contemporâneo.O cinema era a principal atividade de lazer em Sal-vador, especialmente nos anos que antecederam achegada da televisão. Tanto que a concentraçãovarejista da segunda metade da década de 50 naCidade Alta encontra-se intimamente ligada à gran-de concentração de cinemas do local.12 Num circui-to mais restrito, o Clube de Cinema da Bahia deWalter da Silveira, os jovens tiveram acesso ao ci-nema internacional e nacional, bem como à sua crí-tica, elaborada por jovens autores internacionais enacionais. Mais que isso, eles inventaram de fazercinema na Bahia. A Escola Baiana de Cinema,como denominou o crítico e pesquisador AndréSetaro, posicionou a imagem como eixo culturalprimordial para a renovação da cultura baiana.13

A inauguração, em 1960, da primeira emissorade televisão da Bahia, a TV Itapoan, de proprieda-de dos Diários Associados, foi, sem dúvida, outropasso vital na constituição dessa nova cultura,marcantemente imagética. A televisão Itapoan foiprecedida de duas transmissões, em 8 e 9 de de-zembro de 1956, em que foram transmitidas umamissa na Igreja de Nossa Senhora da Conceiçãoda Praia e um show com os artistas da Rádio Socie-dade, respectivamente. Para as transmissões fo-ram colocados aparelhos receptores na Praça daSé, Viaduto, Ajuda e Adjacências. Uma “incalculá-vel multidão”14 se aglomerou para ver o grande es-petáculo, o primeiro passo para uma campanhadirecionada à população e, principalmente, a co-merciantes e possíveis acionistas, a fim de conven-cê-los dos prazeres e da viabilidade comercial datelevisão.

Finalmente, em 19 de novembro de 1960, a TVItapoan é inaugurada, num evento em que cerca de20 mil pessoas visitam as instalações da emissora.

Nesse dia, vai ao ar o seu primeiro programa ofici-al, do qual participam Dorival Caymmi, João Gilber-to, Gilvan Sales e Hebe Camargo, abrindo umcurto, mas significativo período de transmissão,que, por imposição do “ao vivo”, privilegia a culturalocal. Nessa primeira fase de funcionamento, atransmissão permanecia no ar de segunda a sába-do, das 19 às 21:55h, e, aos domingos, das 15:30às 22h. O impacto da televisão pode ser medidopor acontecimentos como o protesto, anos depois,de todos comerciantes de Salvador contra a trans-missão da telenovela “O Cara Suja” às 17h, tidacomo motivo do esvaziamento do comércio, antestão movimentado naquele horário.15

A presença dessa renovada ecologia das mídi-as revela as novas necessidades derivadas dasconformações (modernas) da sociedade baiana esoteropolitana, ainda que tal modernidade fossedesigual, circunscrita e muitas vezes fortemente in-justa, devido à característica de enclave e à intensaexclusão social e cultural prevalecente na socieda-de baiana.

Mas se as mídias apontavam para essa moder-nização societária, elas tinham seu funcionamentoinscrito, em razoável medida, na dinâmica da cultu-ra local. Esse dado parece essencial para entenderos circuitos culturais que então se configuravam naBahia. Os jornais estavam abertos e alguns delesmesmo tomados pelos jovens intelectuais que(re)criavam a Bahia, inexistindo qualquer fosso en-tre essas mídias e a cultura. Antes, cabe assinar ainteração dos jornais ou, pelo menos, de parte de-les, na dinâmica cultural baiana, seja através da di-vulgação dessa cultura, seja pelo debate crítico desuas obras e seus contextos. Publicações que, jun-tamente com as revistas culturais existentes, po-dem mesmo ser consideradas pontos vitais deaglutinação desse pensamento renovador e deseus jovens intelectuais. A incipiente profissionali-zação da cultura e do jornalismo permitia entãoessa acolhida, o papel social simultâneo de criadorcultural e jornalista; enfim, esse trânsito facilitadoentre jornalismo e cultura (local).

Também o rádio e a recém-inaugurada televisãomantinham essa relação com a cultura baiana eseus autores. A Rádio Sociedade da Bahia, emis-sora dos Diários Associados, possuía um amploelenco de “trabalhadores culturais” em seu quadro

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funcional para viabilizar seus programas de auditó-rio, suas radionovelas, seu jornalismo, etc. Pratica-mente todas as emissoras possuíam auditórios epessoal para viabilizar sua programação quaseexclusivamente constituída de produção local. Na(única) televisão acontecia algo similar. Alguns exem-plos podem demonstrar essa circunstância: Gilber-to Gil e outros músicos baianos apresentavam-seem programas na TV Itapoan, como o famoso “Es-cada para o Sucesso”; um programa de teleteatro,com pessoal da Escola de Teatro eYoná Magalhães, vivendo, no perío-do, na Cidade da Bahia, tambémera exibido no primeiro canal de te-levisão do Estado. A produção egeração local de programas televi-sivos, em uma época heróica dahistória da televisão no País,16 per-mitiam essa interação com a cultu-ra e os criadores baianos, tão vitalpara a dinâmica cultural local.

Desse modo, constituía-se umpeculiar complexo cultural na Bahia. Havia uma cul-tura academizante e oratória da tradicional elitebaiana que, ainda forte, era posta em cheque pelarebeldia dos modernos e pelo seu caráter de privilé-gio social. Uma cultura popular marcada por duastradições – uma, “nordestina”, do sertão, e outra,de matriz africana – muitas vezes sem conexões eintercâmbios que pudessem viabilizar uma culturapopular mais larga e consolidada junto à popula-ção. Essas culturas populares mantinham relaçõesmuito distintas com as outras dinâmicas culturaisexistentes. Enquanto a cultura do sertão erareivindicada pelos setores desenvolvimentistas deesquerda como o estoque popular na construçãode uma cultura nacional-popular, aquela de raiz ne-gra, potente, mas subterrânea, era desconsideradainclusive por esses jovens intelectuais, quando nãodifamada/diminuída/subestimada por preconceitossociais e culturais dominantes, que pretendiam re-duzi-la a gueto. Um filme como Barravento (1961),concluído por Glauber Rocha, expressa liricamentee de modo ambíguo esses preconceitos contra a cul-tura negra,17 tomada como ópio do povo, mas mos-trado no filme com encantamento (visual). Uma cul-tura moderna muito recente, limitada a algunssegmentos sociais – setores médios – mas agitada

e em desenvolvimento. Uma incipiente cultura midi-atizada, ainda destituída de uma lógica produtivaespecífica e, portanto, aberta à permeação da cul-tura moderna.

Dentre os autores dessa cultura moderna po-dem ser destacados os jovens criadores culturaisde uma geração singular, que reunia nomes comoGlauber Rocha, Geraldo Sarno, Othon Bastos, LuizCarlos Maciel (gaúcho radicado na Bahia), Caeta-no Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Tomzé, Gal Cos-

ta, Maria Bethânia, Raul Seixas,João Ubaldo Ribeiro, SôniaCoutinho, Florisvaldo Matos, Ru-bem Valentin, Mário Cravo,Calasans Neto, Muniz Sodré,Carlos Nelson Coutinho, DiógenesRebouças, dentre outros. Uma ge-ração que tinha o privilégio de tercomo interlocutores na construçãodo modernismo cultural baiano fi-guras como Lina Bo Bardi, PierreVerger, Carybé, Jorge Amado,

Walter da Silveira, George Agostinho, Martin Gon-çalves, Yanka Rudzka, Ernst Widmer, WalterSmetak, Hans Joachim Koellreutter e tantos outros.Esse traço de abertura e possibilidade de interaçãoentre a cultura moderna e as mídias apresenta-secomo essencial para entender a circunstância cul-tural baiana de então. O apoio dado por OdoricoTavares, diretor do poderoso grupo dos Diários As-sociados, ao modernismo cultural na Bahia surgecomo sintomático dessa convergência potencial.

Sair da Bahia

O desenvolvimento desse sistema socioculturalserá obstruído em um primeiro momento pelo gol-pe militar de 1964. O impacto brutal e imobilizadordo golpe sobre o movimento cultural baiano deveser aqui afirmado, inclusive por comparação aoque ocorre no eixo Rio de Janeiro–São Paulo. A re-pressão imposta pelos militares praticamente abor-ta o movimento baiano, enquanto, naqueles esta-dos, paradoxalmente, permite uma rica floraçãocultural “tardia”, porque obriga os intelectuais à re-sistência, verificando-se o desenvolvimento de ma-nifestações político-culturais, inspiradas ainda noideário nacional-popular e derivadas, por conse-

A produção e geraçãolocal de programas televi-

sivos, em uma épocaheróica da história da

televisão no País,permitiam essa interaçãocom a cultura e os criado-res baianos, tão vital paraa dinâmica cultural local.

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guinte, do contexto sociopolítico anterior a 1964. Ogolpe não consegue interditar o movimento culturaldaqueles estados centrais, apesar de atualizar seuengajamento, deslocando-o das reformas de basepara uma resistência à ditadura militar.18 Na Bahia,não. O golpe desestrutura e inibe o ambiente e omovimento. Uma parcela considerável desses jo-vens intelectuais e agitadores culturais, sem alter-nativa, sai da Bahia e se estabelece no Rio de Ja-neiro e São Paulo, destinos, aliás, quase naturaisdaqueles que produzem culturanaquelas décadas, mesmo em cir-cunstâncias normais, devido aoslimites do campo cultural restrito.

Ao êxodo de parte significativadesses criadores, deve ser soma-da a saída de Edgar Santos da rei-toria da Universidade da Bahia, em1961. Tais acontecimentos depri-mem sobremodo a dinâmica baia-na, colocando o Estado em uma si-tuação muito difícil culturalmente.Afora as múltiplas manifestações acontecidas noTeatro Vila Velha no imediato pós-golpe, muito pou-co restou da antiga agitação cultural na Bahia.

Para isso também contribui a modernização daCidade da Bahia. A inauguração das chamadas“avenidas de vale”, transformando a configuraçãoespacial e visual, de vias adequadas ao ritmo dosautomóveis e da cidade que se move, produz a di-laceração e a paulatina desativação do seu centro,território vital do encontro entre cultura e boêmia,tão marcante e produtivo na época,19 não só para acapital baiana, mas igualmente para movimentosculturais ambientados em outros lugares em umperíodo histórico aproximado. O exemplo de Parisparece notável na sua formidável convergência en-tre vida cultural e boêmia em meados do séculoXX20 Esse território vital do centro da Cidade daBahia sofre o impacto simultâneo do deslocamentode órgãos públicos estaduais para o recém-cons-truído Centro Administrativo, na avenida Paralela;da criação de novos pólos comerciais, como oShopping Iguatemi, e do distanciamento das ativi-dades de lazer, especialmente das noturnas, paraa orla de Salvador, rompendo a tessitura espacial esimbólica entre as atividades culturais (cinemas,teatros, galerias, livrarias, unidades e auditórios da

Universidade, etc.), ainda realizadas no centro, e odivertimento e lazer, agora situados na orla marítimada cidade.

A reforma universitária de 1969, patrocinadapela ditadura militar, também contribuiu para a de-pressão do papel cultural da Universidade, quepassa a se chamar Federal da Bahia. A ênfase mo-dernizante e cientificista inscrita na reforma reduzos espaços institucionais e o investimento da entida-de no campo cultural, em especial nas áreas de ar-

tes, letras e humanidades. As esco-las de Dança, Teatro e Música, porexemplo, perdem autonomia epassam a compor a Escola de Mú-sica e Artes Cênicas. Desativam-se diversos centros de estudos,muitos deles destinados ao estudode línguas e culturas estrangeiras.Esse verniz cientificista, entretan-to, não produz uma efetiva culturatécnica, também necessária aocontexto baiano, em interação

com a industrialização que acontecia no Estado,com a implantação do Centro Industrial de Aratu edo Pólo Petroquímico de Camaçari, ambos limita-dos pela persistência do caráter de enclave dessesempreendimentos.

Ao lado desses fatores de depressão do circuitocultural baiano, um outro, situado em um patamarnitidamente comunicacional, não pode ser esqueci-do: o acelerado desenvolvimento da comunicaçãomidiatizada no Brasil, incentivada inclusive por polí-ticas de comunicações implementadas pelos milita-res.21 Essa expansão das comunicações permitiu amodernização das telecomunicações no País, a im-plantação de um sistema de aparatos sociotec-nológicos de comunicação midiatizada, tendo àfrente a televisão, e a emergência de uma culturamidiática, orientada por uma lógica de produção deindústria cultural, na qual, grosso modo, se conce-be a cultura como integralmente mercadoria. Isto é,como mercadoria desde sua produção e não só nomomento de seu consumo. Essa cultura da mídiatorna-se o circuito cultural dominante no País porvolta dos anos 70.

A história dos festivais de música acontecidosna década de 60 e início dos anos 70 pode ser to-mada como exemplar dessa mutação, como môna-

A ênfase modernizante ecientificista inscrita nareforma universitária

reduz os espaçosinstitucionais e o

investimento da entidadeno campo cultural, emespecial nas áreas de

artes, letras ehumanidades.

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da para a qual convergem as linhas de força maisrelevantes na configuração de um movimento so-cietário. Nascidos no ambiente do movimento estu-dantil e jovem, portanto, em um circuito culturalescolar-universitário, os festivais passam para a te-levisão. Na extinta TV Excelsior e, depois, na Record,os festivais aparecem ainda como produtos híbri-dos derivados e disputados por uma lógica produti-va televisiva, com padrões de indústria cultural ain-da em formatação, e por uma lógica político-cultural,inspirada no movimento estudantil e de contesta-ção vigente na época. Esse hibridismo marca osfestivais em sua fase mais viva, na qual as disputasmusicais rapidamente transformam-se em disputaspolíticas, como aconteceu em embates memorá-veis entre os partidários de Caetano Veloso (e suamúsica É proibido proibir, um dos lemas famososdas manifestações estudantis na França) e de Ge-raldo Vandré (com a sua musica, quase hino, Pranão dizer que não falei das flores).22 O final da traje-tória dos festivais, em direção a um produção sub-sumida a uma lógica produtiva de indústria cultural,acontece com os festivais internacionais da cançãoda Rede Globo. Estava assim concluído o percursodos festivais, de modo análogo ao movimento dacultura brasileira naqueles anos: do predomíniocultural do circuito universitário-estudantil para opredomínio de outro circuito, estruturado pelamídia e sua cultura, no qual ambas estão subordi-nadas a uma lógica de indústria cultural.

A implantação de um procedimento de produ-ção cultural inscrito e próprio da mídia, governadapelo predominância da lógica do lucro sobre umalógica essencialmente cultural, tem impactos mar-cantes na dinâmica cultural baiana e das outras re-giões periféricas brasileiras. A principal delas: im-plicou a concentração da produção da culturamidiatizada, no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, esua centralização por algumas indústrias de produ-ção e difusão da comunicação e da cultura, com aRede Globo de Televisão em lugar de destaque.Como conseqüência imediata, as emissoras locais eregionais passaram a funcionar quase como merasrepetidoras de uma cultura midiatizada nacional e in-ternacional. Destituídas de sua atividade de produçãoe redefinidas como meros canais de intermediação, anova situação midiática torna dispensável e “obsole-to” o pessoal empregado pelo(s) canais de comunica-

ção. A demissão de um números significativo de pro-dutores culturais ligados às emissoras de televisão (ede rádio) tornou-se inevitável.

Na Bahia, desfaz-se o momento mágico. A Es-cola Baiana de Cinema naufraga. As iniciativas ino-vadoras nas áreas de dança e música definham emmeio à falta de recursos. De um modo geral, quemainda ficou na Bahia e persiste em fazer culturatem que enfrentar a dura repressão da polícia,atenta a cada possível foco de insurreição contra onovo regime. Como no caso do teatro: na ocasiãoda estréia de As Senhoritas – que havia sido proibi-da em todo o País e foi montada pelo diretorAlvinho Guimarães – o Teatro Castro Alves foi inva-dido por policiais e os atores foram espancados ehumilhados. Proibiram-se então, a todos os gruposbaianos, ensaiar nas dependências do TCA, e hou-ve um corte geral de verba para o teatro.23 A Bahiaque figurava como estrela da cultura nacional e atémesmo internacional era, cada vez mais, uma lem-brança distante.

O funcionamento da cultura midiatizada orienta-da por essa dinâmica mercantil própria de mídiassubmetidas à lógica de indústria cultural, não sóconcentra e centraliza a produção cultural, masconfigura um tipo de cultura com padrões e mode-los característicos, razoavelmente distintos daque-les prevalecentes no circuito escolar-universitário.Essa conformação de uma específica cultura dasmídias, a concentração no Rio e em São Paulo e acentralização da produção em empresas cada vezmais formatadas como oligopólios quebram a anti-ga interação possível entre culturas locais e regio-nais e as mídias, em especial a televisão, instala-das nos lugares periféricos ao eixo Rio de Janeiro eSão Paulo. A dinâmica que permitia o trânsito emesmo a confecção da cultura nas mídias rompe-se, as culturas locais e regionais não mais têm (ovital) acesso a esses meios de comunicação. O im-pacto da instalação e predomínio, no País, de umacultura midiatizada, estruturada em uma lógica deindústria cultural, atinge profundamente as culturasregionais e, em particular, o movimento culturalbaiano, somando-se aos fatores de depressão aci-ma indicados. O colapso desse movimento culturalbaiano no novo e hostil contexto político e socialparece inevitável: a dinâmica da cultura pareciasair da Bahia e ser incorporada por uma lógica de

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indústria cultural, estranha e exterior à sociedadebaiana.

A televisão, nessa nova ecologia da comunica-ção no País e na Bahia, passa a ocupar um lugarde ponta, redefine essa ecologia comunicacional e,mais que isso, promove uma reorganização da cul-tura, colocando o circuito cultural midiático em situ-ação de destaque e mesmo de predomínio, consi-derando todo o campo cultural no País e na Bahia.

O vazio cultural dos anos 70, simultâneo a esseprocesso de reorganização do pa-norama cultural pelo prevalênciada mídia televisiva e da culturamidiática, também marcou o País,submetido à censura e à ditaduramilitar. Mas o vácuo baiano certa-mente se expressou com mais pro-fundidade. Além de ter se iniciadoimediatamente após o golpe de1964, portanto, com antecedênciafrente ao período dito de vazio cul-tural nacional, conheceu um êxodode talentos, refugiados por motivospolíticos e econômicos em um pri-meiro momento no eixo Rio-SãoPaulo; por fim, não conseguiu acompanhar essanova dinâmica, subsumida a uma lógica de indús-tria cultural, e estruturar em terras baianas uma cul-

tura midiatizada. Aliás, isso teria sido quase impos-sível, não só pela retração anterior do movimentocultural baiano, como também e principalmentepelo caráter concentrador e centralizador que as-sumiu a construção da indústria da comunicação eda cultura midiatizadas no Brasil, com o incentivodeliberado dos governos militares.

A fragilidade da mídia na Bahia deve ser acres-centada a esse conjunto de condições que inviabili-zavam a constituição, no Estado e naquele período,

de uma cultura midiatizada, organi-zada em padrões de indústria cul-tural. O incipiente desenvolvimen-to da mídia baiana derivava de suainscrição em uma sociedade comforte desigualdade e exclusão so-ciais, vinda de uma recente parali-sia econômica, com uma tênue in-dustrialização e uma populaçãomajoritariamente rural, e uma mo-dernização circunscrita espacial-mente, em um Estado que com-portava ainda muitas dimensõesarcaicas. Imersa nessas circuns-tâncias limitadoras, coube à Bahia

desenrolar, em papel subordinado, a comunicaçãoe a cultura midiáticas. A vagarosa inauguração deoutros canais de televisão no Estado, parece um

A televisão passa aocupar um lugar de ponta,

redefine essa ecologiacomunicacional e, maisque isso, promove uma

reorganização da cultura,colocando o circuitocultural midiático emsituação de destaque

e mesmo de predomínio,considerando todo o

campo cultural no Paíse na Bahia.

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bom indicador dessas limitações.A letargia somente aparece como ameaçada

com a instalação da TV Aratu em 1969, que incor-pora o Estado ao processo de formação e expan-são acelerada do império da Rede Globo, e com ainauguração, no mesmo ano, do jornal Tribuna daBahia. Esse diário, chefiado pelo jornalista Quintinode Carvalho, promove uma significativa renovaçãodo jornalismo baiano, com novos padrões de textose coberturas, com uma apresentação gráfica inova-dora e com sua produção em off-set, estimulandouma modernização dos outros jornais baianos.

A obrigatoriedade do diploma para o exercícioda profissão de jornalista, inscrito na Lei 5.250, de9 de fevereiro de 1967, e a formação universitáriade profissionais de jornalismo realizada pelo Cursode Comunicação da Universidade Federal da Bahiaincentivaram a profissionalização dos trabalhado-res envolvidos com a comunicação midiática. A exi-gência do diploma e o aporte de uma formação es-pecializada, somada à paulatina profissionalizaçãosimultaneamente acontecida no campo cultural,produzem, como ocorre em outros ambientes socie-tários, uma distinção mais demarcada entre jorna-listas, intelectuais encarregados da difusão cultu-ral, e os intelectuais propriamente criadores dacultura, rompendo, para o mal e para o bem, asimbiose característica da fase heróica e amadorís-tica do jornalismo baiano. Nela, a seleção de “jor-nalistas” se fazia com base em critérios diversifica-dos e gerais, que contemplavam desde umaproximidade com o domínio da (boa) escrita, em umjornalismo de acentuado pendor literário, até a pro-ximidade dos laços de parentesco, de amizade oude afinidade política existentes. Com as profissio-nalizações distinguem-se intelectuais criadores e in-telectuais divulgadores, para usar uma terminolo-gia de Antonio Gramsci,24 e institui-se um novofuncionamento para o sistema cultural, agora maiscomplexo e com papéis sociais mais nítidos.

(Re)Inventar a Bahia

Quando a dinâmica cultural baiana parecia obs-truída por esse conjunto de fatores, encontrando-se paralisada e em aparente descompasso com amodernização (conservadora e excludente) que acon-tecia no País, no Estado e na cidade, e a consolida-

ção de uma cultura midiática nacional, dada a sin-gularidade brasileira no panorama internacional,acenavam como processos inevitáveis para confor-mar a história da cultura e da comunicação naBahia, um subterrâneo movimento eclode em umespaço e tempo destinado às inversões: o carna-val. A presença do bloco Ilê Aiyê, formado somentepor negros, no carnaval de 1975, provoca agressi-vas reações da elite “branca”, inclusive através dealgumas de suas mídias, como é o caso do jornal ATarde.25 Mas aquele que parecia ser apenas umbloco (maldito) nesse momento extraordinário detolerância e festa chamado carnaval, em verdadesignificou a ponta (afiada) de uma imenso iceberg,que, rompendo barreiras sociais e os guetos ondeestava aprisionado, iria emergir nos anos seguin-tes, em especial na década de 80, e se espraiar portoda a sociedade e cultura baianas.

O alicerce desse quase invisível universo cultu-ral de descendência africana deriva da persistênciade um enorme continente de comunidades, socio-culturais e religiosas, que tecem uma formidávelteia de convivências e, por conseguinte, uma tenta-cular rede de comunicação e cultura, cuja capilari-dade permeia toda a Cidade da Bahia e regiõesfronteiriças. A permanência vigorosa dessa tessituracomunicacional e cultural, em um ambiente socie-tário perpassado de modo cada vez mais intensopor redes de comunicação e cultura midiáticas, ex-põe uma das singularidades da Cidade da Bahia,ainda que essa persistência possa também ser atri-buída à imensa exclusão social existente no Estadoe na cidade. Tal exclusão impõe e reforça um modode vida “comunitário”, marcado por relações sociaisprimárias e pessoalizadas, porque cria obstáculosà integração em plenitude da maioria da populaçãoà sociedade, com tudo que isso implica, para o male para o bem, em termos de individuação, intera-ções impessoais e formais, ressignificação de rela-ções sociais e redefinição de modos de vida.

Independentemente da discussão acerca dosfundamentos da manutenção dessa poderosa teiade convivências, impõe-se a singularidade da Cida-de da Bahia. Nela, é constituída uma contempora-neidade produzida pela forte mestiçagem de traçostradicionais e modernos; pela coexistência de mo-dalidades e teias de comunicação convivenciais etelevivenciais, com a vivência à distância possibili-

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tada pelas mídias; enfim, pela presença de umacultura local – entranhada em um essencial territó-rio simbólico – e de uma cultura globalizante,marcada por fluxos e estoques simbólicos desterri-torializados. Tais conjunções incorporam e desen-volvem estoques, fluxos e composições que produ-zem a síntese cultural única chamada Bahia.

A envergadura e consistência dessa teia, sub-terrânea e muitas vezes invisível, forjada por umalonga história de resistência, mas também de me-nosprezo, perseguição e desprezo, pode ser di-mensionada pontualmente pela disseminação alcan-çada por determinadas músicas que tomam acidade, prescindindo das redes midiáticas e mes-mo do suporte disco, como aconteceu, para tomardois exemplos em épocas bem distintas, com acanção Faraó, em 1986, e, mais recentemente, comAgachadinho, em 2000. Nesses casos, o suportedisco e as redes midiáticas foram acionados a re-boque e na seqüência do sucesso alcançado e cons-truído através das teias de cultura e comunicaçãocosturadas pela sociabilidade convivencial e mes-mo comunitária que (também) dá forma e singulari-za a Cidade da Bahia.

Mas essa enraizada capilaridade comunicacio-nal e cultural não age apenas em dimensão pontual.Sua ação mais relevante acontece em plano ma-crossocietário. A (re)invenção da sociedade baianae a (re)significação que produzem uma quase iden-tidade da cultura baiana como cultura afro-baianaou afro-mestiça, certamente surgem como seu maiorfeito. A identidade cultural da Bahia contemporânea,marcadamente afro, deriva da afirmação e emer-gência do movimento negro em suas diversificadasmanifestações, devendo muito à persistência da teiatentacular de comunicação e cultura que dá vida, fazinteragir e configura esse recente registro identitárioe (re)inventa a Bahia.

Por certo esse movimento encontra-se trans-passado por feixes midiatizados intensos, mas estálonge de ser um mero produto ou mesmo um pro-duto principalmente forjado pela mídia. Uma expli-cação assim, simplista, unilateral e conspiratória,não pode apreender a complexidade imanente aessa configuração de cultura e identidade, em umaépoca histórica de identidades múltiplas possí-veis.26 Mas, em situação inversa, não se pode des-conhecer nesse movimento a presença dos feixes

culturais midiáticos e da própria mídia, enquantoaparato sociotecnológico, que interage e tambémconforma esse novo momento cultural baiano. Dapotente interação cultural entre essas manifesta-ções comunitárias e convivenciais e a mídia, emverdade, nasce o atual e imaginado “Estado” cha-mado Bahia, através de complexo processo.

Como desconhecer que, dentre os dados cultu-rais estimuladores da emersão da negritude, nãose encontram apenas aqueles provenientes das“raízes africanas”, instaladas ou não na Bahia, masigualmente manifestações de uma cultura negra quese impõe de modo cada vez mais notório ao siste-ma midiático, especialmente internacional. Foi, afi-nal, através do sistema midiático que os negros,extasiados com a moda black power, a filosofiablack is beautiful e o ritmo soul de James Brown,deixaram de alisar os cabelos para “ficar comobrancos” e passaram a usá-los soltos ou com bo-nés e chapeuzões; vestia-se também calça de cin-tura alta e boca larga, camisa látex e pisante (sapa-to) colorido. Como diz o dançarino Jorge Watusi: “Aconsciência veio como moda”27.

Assim, um passo importante na direção daconsciência negra foi dado através do sistema mi-diático, seja nas inspirações lembradas para osurgimento de blocos negros ou afoxés, como o Fi-lhos de Gandhi, ou na febre das discotecas, queaportou na Bahia via o seriado de TV semanal quemostrava as coreografias do conjunto americanoJackson Five.28

Nessa perspectiva, os diferenciados dados quecompõem a cultura midiática, internacional e nacio-nal, não podem ser considerados em bloco, comosimplesmente estranhos ou mesmo só “alienan-tes”. Alguns desses componentes, mesmo minori-tários e até incidentais, podem ser apreendidos ereintroduzidos em teias de sentido surpreendentes,que passam a animar manifestações de vigorosoconteúdo local. As interações entre os fluxos cultu-rais globais e locais podem ser entendidas entãoem toda a sua complexidade e contradições possí-veis, pois possibilitam desde uma imposição devalores hegemônicos exteriores até uma simbioseque, ao realizar a complementaridade entre dadosculturais, permite o reforço de culturais alternativas.Essa constatação não pode, no entanto, obscure-cer a correlação de forças desigual presente nessa

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troca e o caráter majoritariamente impositivo dacultura midiática, associada intrinsecamente à cul-tura dominante.

Necessário se faz, inclusive, verificar como es-ses fluxos culturais não seguem uma ordem estritade trânsito na mídia, como, por exemplo, figurar namídia local, passando para a regional e seguindopara a nacional até chegar a um status internacio-nal. O caso do Olodum e Paul Simon, que grava-ram juntos a canção The obvious child, é ilustrativo:o Olodum saiu do local, expôs-se diretamente numasituação internacional, para, somente então, ga-nhar prestígio e legitimidade nacionais.

Outra essencial mutação acontecida em termoscomunicacionais e culturais na Bahia diz respeito àreversão da tendência concentradora e centraliza-dora da lógica de indústria cultural no País. A po-tência da conjunção acontecida pode ser mais umavez demonstrada pela instalação e desenvolvimen-to em terras baianas de uma produção musical po-derosa, organizada em moldes de indústria da cul-tura e da comunicação. A “popização”29 da “músicabaiana” com sua transformação em “axé music”, fe-nômeno posteriormente também ocorrido – emprocesso diferente, mas de resultado semelhante –com o pagode, distancia a música de seu universocultural original, possibilita que ela, em sua novaembalagem, possa transitar com sucesso e atingirpúblicos maciços no Brasil e fora do País. Assim,da fusão do samba-reggae (já, em si, uma união dosamba duro do Ilê Aiyê com a forte influência jamai-cana) com o chamado “frevo baiano”, tocado emcima dos trios elétricos na época, surge a axémusic,30 um estilo musical que utiliza instrumentosharmônicos, porém é altamente percussivo e temcomo padrão uma banda com muitos integrantes,mas capaz de fazer turnês e tocar em palcos ou tri-os – bem diferente das baterias de bloco afro, quetornavam cada um desses atos, senão impossí-veis, uma odisséia.

Enquanto, no Brasil, consuma-se um processode concentração e centralização ao instalar-se alógica de indústria cultural, assistimos hoje, naBahia, o desenvolvimento de uma indústria da mú-sica, que entra em contradição e mesmo reverte,ainda que localizadamente, aquele movimento con-centrador e centralizador. A possibilidade de reali-zação de uma lógica de indústria cultural no País,

fora do eixo Rio-São Paulo, aparece, para o mal oupara o bem, como algo novo e de grande significa-do para a compreensão da constelação comunica-cional e cultural brasileira na atualidade. Fato, in-clusive, constantemente exaltado pelos músicosbaianos, que festejam não “precisar mais sair daBahia para fazer sucesso”.

A consolidação dessa indústria da música, alémde sua “popização” também requer que se rompa oaprisionamento desse tipo de música no espaço-tempo do carnaval. A Bahia passa a exportar nãosó música, fabricada em moldes de indústria cultu-ral, mas também outro produto essencial: o carna-val (baiano) fora de época (e de lugar). Novamenteaqui temos uma exigência de elaborar análises maiscomplexas, pois aparece como íntima a relação en-tre agências de produção das televivências, comoas mídias, e difusão de novas convivências, comose configuram os carnavais fora de época e de lu-gar,31 com seus dispositivos tecnológicos inventa-dos na Bahia, como acontece com o “trio elétrico”.Em vez de uma oposição simples e binária, do tipotelevivência contra convivência, retida, por exem-plo, na idéia de uma “multidão solitária”,32 ampliam-se as possibilidades de interação, ainda que não sedesconheça a desigualdade das forças presentesno jogo. Assim, televivências e convivências, paraalém de um mero confronto, também ele presente,podem engendrar outras possibilidades hibridiza-das, tais como: televivências difundindo e incenti-vando assimilações de modos de convivência (porexemplo, a carnaval baiano, essa gigantesca festade convivência e comunhão) e convivências estimu-lando televivências, porque ávidas de dados simbóli-cos assemelhados para serem compartilhados àdistância, constituindo potenciais “comunidadesimaginadas” à distância – como aconteceu quandoa Rede Bandeirantes cobriu o carnaval baiano 2000.

Os fluxos culturais locais permitem então umdesenvolvimento da indústria da cultura e da comu-nicação na Bahia; afinal ela encontra um enormeestoque de possibilidades e de novos produtospara serem explorados em mercados inclusive glo-balizados e locais. Não por acaso, as mídias baia-nas, em especial a televisão, têm investido em pro-gramações, dentro e, principalmente, até fora datela, impregnadas por essa cultura afro-baiana. Aprodução desses eventos representa um mercado

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significativo e outra vez associam a mídia a essemovimento de “africanização” cultural da Bahia.

A atuação da Televisão Itapoan e de algumasrádios baianas nos primórdios desse movimentodeve ser lembrada aqui. Dois casos são exempla-res: o primeiro ocorreu em 1984, quando a rádioItapoan FM, líder desse concorrido espectro da ra-diodifusão (ver tabela da atual audiência das rádiosde Salvador), abriu espaço para uma banda de car-naval – Chiclete com Banana – e inseriu na suaprogramação diária o galope “OMistério das Estrelas”. A músicaatravessou o São João em primeirolugar na preferência dos ouvintes,e, finalmente, a mídia local desco-briu a pólvora do sucesso: tocar,durante todo o ano, o tipo de músi-ca que as pessoas gostavam deouvir no carnaval.

O outro episódio ocorreu doisanos depois, quando a ItaparicaFM, buscando derrubar a sua con-corrente, a Itapoan FM, incluiu emsua programação a música Eu sounegão, de Gerônimo – até aí uma canção de impro-viso num show do cantor – que virou fenômeno demídia e o primeiro grande sucesso musical com le-vada afro, abrindo caminho para o futuro sucessodo Olodum e de muitos outros blocos afro.(33)

Essa “invasão” de fluxos culturais locais provo-cou um novo tipo de comportamento na mídia baia-na, colocando a música baiana em até 75% daprogramação (no caso das rádios) ou, como na TVItapoan, divulgando a imagem de cantores e gru-pos, em programas vespertinos com bons índicesde audiência. Hoje é a TV Bahia que ocupa o papelde destaque nessa interação e mesmo na constitui-

ção das políticas culturais vigentes no Estado e nacidade.

Mas não se trata só de vender produtos específi-cos, com certa cor diferencial, como a chamada“música baiana”. O movimento parece ser maisamplo. Trata-se de consolidar e difundir uma novaidentidade da Bahia: em lugar da antiga “boa terra”,marcada por um ritmo lento, preguiçoso,“malemolente”, tem-se agora um ritmo aceleradodos corpos em frenéticas danças e uma

“ritmicidade” vigorosa dos tamboresque constróem a terra da felicida-de e fazem da alegria “um estadochamado Bahia”. Uma terra boa edesejada, porque animada, eressignificada como lugar de todasas festas para todos os que aquiestão ou especialmente chegam,mesmo que em dimensão apenassimbólica. Salvador deixa de seraquela pacata “Cidade da Bahia”para tornar-se Salvador, a capitaldo Axé e do carnaval.

Essa nova Bahia, imaginadaafro-mestiça, constrói a nova identidade dos baia-nos. Não parece casual a identificação recorrenteentre música baiana e música de influência negra,nem a contínua recorrência aos signos afro para daridentidade às coisas baianas. A mídia não está imu-ne a esse processo. Muito pelo contrário, ela agetambém como importante e interessada agênciadessa fabricação da identidade baiana atual. Inte-ressada porque, como já afirmado nesse texto, elaobtém lucros em empreendimentos marcados poressa coloração cultural e porque, em uma circuns-tância de globalização, o local pode dar possibilida-de identitária, pode ser diferencial relevante de ins-

Os fluxos culturaislocais permitem umdesenvolvimento da

indústria da cultura e dacomunicação na Bahia;afinal ela encontra um

enorme estoque depossibilidades e de novos

produtos para seremexplorados em mercados

inclusive globalizadose locais.

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crição na sociedade e no mercado competitivos.Para fugir à situação de mera repetidora da Globo, aTV Bahia (depois a Rede Bahia) desenvolveu e recor-reu a um admirável marketing (cultural) que, apesarda poderosa (simbologia da) Globo, viabiliza umaimagem própria, fortemente identifica com a Bahiareinventada.

Aliás, a Rede Bahia apresenta-se, por tudo,como o exemplo mais acabado da articulação entremídia e cultura no Estado. O poder, o alcance, aconcentração, a centralização e a competência téc-nica, sem dúvida, tornam-na parte do processo queimplantou e consolidou a comunicação e culturamidiáticas no Brasil pós-1964. A abrangência e do-mínio regional desse conglomerado de comunica-ção reproduz na Bahia o que acontece nacional-mente de modo radical. Sua integração com a RedeGlobo parece notável. Com apenas 7% de progra-mação local, ela pode(ria) ser vista apenas comouma mera retransmissora da Globo.

Mas a TV Bahia não só está integrada plena-mente no sistema, mas apresenta um dos maioresíndices de audiência da Rede Globo nas diversasregiões brasileiras e consegue, simultaneamente,produzir uma imagem institucional e social forte-mente associada à (re)inventada Bahia. Tal apro-priação simbólica, além de propiciar lucros atravésde um conjunto diversificado de eventos e empre-endimentos, diretamente midiáticos ou indireta-mente associados à comunicação e cultura midiati-zadas, permite um confortável distanciamento emsua identificação com a Globo e constrói toda umarelação privilegiada com a cultura afro-baiana, emespecial com aquela parcela mais beneficiada esubordinada a uma lógica mercantil-industrial, ecom suas estrelas mais reluzentes, segmento emer-gente na estruturação social baiana.

Essa integração, subordinada a uma dinâmicanacional e global, que, entretanto, possibilita e podeassegurar a reinvenção do local como diferencialsignificativo, parece ser mesmo um dispositivoconstitutivo da contemporaneidade. Sua expressãona (Rede) Bahia parece condensar, para o mal epara o bem, esses traços tensos do contemporâ-neo. Nele, o global e o local, mediados por um nacio-nal redefinido, interagem e intercambiam intensa-mente, em uma correlação de forças mutável, naqual os fabulosos conglomerados midiáticos de co-

municação e cultura, em uma época de galopantesmegafusões, buscam se apropriar das energias cri-ativas de extração local e modelá-las em mercado-rias para públicos gigantescos e segmentados; es-tas, pelo contrário, buscam reconstruir pertençassimbólicas em um mundo perpassado por continua-dos fluxos simbólicos globalizantes e por umamultiplicidade de fontes identitárias, que pre(tendem)(a) fragilizar o local. Aos resultantes possíveis e vi-toriosos deste confronto, desta complementaridadee desta convergência podemos chamar de contem-poraneidade, inclusive baiana.

Notas:

1 Ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas. A contemporaneidadecomo Idade Mídia. Trabalho apresentado no V Congressoda Associação Latino-americana de Investigadores da Co-municação – ALAIC. Santiago do Chile, 26 - 29 de abril de2000.

2 Para uma discussão acerca da glocalidade, ler:CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração dashibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996. Vertambém: CANCLINI, Néstor Gárcia. Cultura y comunicación:entre lo global e lo local. La Plata: Universidad Nacional de laPlata, 1997 e FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cul-tura. Globalização, pós-modernismo e identidade. São Pau-lo: Studio Nobel, 1997.

3 CÂNDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945.In:___. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Edi-tora Nacional, 1967, p.127-160.

4 COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre a questão culturalno Brasil. In: Escrita/Ensaio. São Paulo, (1): 6-15, 1977.

5 RISÉRIO, Antonio. Uma teoria da cultura baiana. In: ___.Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva/Cope-ne, 1993, p.155-183.

6 Como é possível constatar em LUDWIG, Selma Costa. Mu-danças na vida cultural de Salvador 1950-1970. Salvador:Curso de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFBA,1982. 159p. (dissertação de mestrado) ou em Gomes, JoãoCarlos Teixeira. Presença do Modernismo na Bahia. In: ___.Camões contestador e outros ensaios. Salvador: FundaçãoCultural do Estado da Bahia, 1979.

7 Dentre os estudos já realizados sobre os anos 50 e 60 po-dem ser destacados: CARVALHO, Maria do Socorro Silva.Imagens de um tempo em movimento – cinema e cultura nosanos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA, 1999; RUBIM,Lindinalva Silva Oliveira. Para quem não foi à Bahia. In: ___.O feminino no Cinema de Glauber Rocha. Rio de Janeiro:Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da

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UFRJ, 1999. 327p. (tese de doutorado); RISÉRIO, Antônio.Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M.Bardi, 1995; RUBIM, Antonio Albino Canelas (org.). A ousa-dia da criação. Salvador: Edições Feito à Facom. 1999 eSANTOS, Milton. O centro da cidade do Salvador. Salvador:Livraria Progresso Editora, 1960, dentre outros.

8 RUBIM, Antonio Albino Canelas (org.). ob. cit. p.78

9 Ver: RISÉRIO, Antônio. ob. cit.

10 Sobre a política cultural da esquerda naqueles anos, consul-tar: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e in-telectuais no Brasil. Salvador: Edufba, 1985.

11 Ver, por exemplo, OLIVEIRA, Francisco de. O elo perdido.São Paulo: Brasiliense, 1987.

12 SANTOS, Milton. ob. cit. p.82-83.

13 SETARO, André. Breve introdução ao cinema baiano. In:Textos de Cultura e Comunicação. Salvador: (12):1, abril de1986.

14 Jornal Estado da Bahia 10 de dezembro de 1956 p.3 ApudCARVALHO, Maria do Socorro Silva. ob. cit. p.120.

15 MACEDO, Janay. História da televisão na Bahia. (textomimeo). p.18.

16 Sobre o período ver: SODRÉ, Muniz. Televisão no Brasil. In:___. O monopólio da fala. Petrópolis: Vozes, 1977. p.84-114e ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo:Brasiliense, 1988.

17 RUBIM, Lindinalva Silva Oliveira. ob. cit. p.199-125.

18 Sobre esSe período consultar SCHWARZ, Roberto. Culturae política, 1964-1969. In: ___. Pai de família e outros estu-dos. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978, p.61-92. Para uma vi-são político-cultural da década de 60, ler MACIEL, LuizCarlos. Anos 60. Porto Alegre: L&PM, 1987 e HOLLANDA,Heloisa B. de e GONÇALVES, Marcos. Cultura e participa-ção nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982.

19 RISÉRIO, Antônio. ob. cit. p.75.

20 LOTTMAN, Herbert R. A Rive Gauche. Rio de Janeiro:Guanabara, 1987.

21 RUBIM, Antonio Albino Canelas. Democracia, cultura e co-municação. In: Cadernos do Ceas. Salvador, (100): 56-62,novembro/dezembro de 1985.

22 Sobre os festivais, consultar: VILARINO, Ramon Casas. AMPB em movimento. Música, festivais e censura. São Paulo:Olho d’água, 1999.

23 FRANCO, Aninha. O teatro baiano através da imprensa –século XX. Salvador: FCJA; COFIC; FCEBA, 1994. p. 167.

24 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cul-tura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

25 UZEL, Marcos. Expressão negra Olodum e um olhar. Salva-dor: Faculdade de Comunicação da UFBA, 1991. 176p.(Monografia de conclusão de curso). p.44-45.

26 Ver, dentre outros, acerca das identidades múltiplas possí-veis na contemporaneidade: HALL, Stuart. Identidades cul-turais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editores,1997.

27 Jorge Watusi apud UZEL, Marcos. ob. cit. p.43.

28 UZEL, Marcos. ob. cit. p.42.

29 O termo está proposto por ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila.Balançando o Brasil: a emergência do axé music e do pago-de nos anos 90. Belo Horizonte, Mestrado em ComunicaçãoSocial da UFMG, 2000 (dissertação de mestrado).

30 Para conhecer essa genealogia detalhadamente, consultarGUERREIRO, Goli. A trama dos tambores – A música Afro-pop de Salvador. Coleção Todos os Cantos. São Paulo: Edi-tora 34, 2000.

31 Para um estudo do fenômeno: DUARTE, José CarlosSilveira. De mídia e festa: a micareta. Salvador, Programa dePós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâne-as da UFBA, 1995 (dissertação de mestrado).

32 RIESMAN, David. A multidão solitária. São Paulo, Perspecti-va, 1995.

33 Os dois episódios estão relatados em UZEL, Marcos. ob. cit.p. 64-66.

Referências Bibliográficas:

ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Balançando o Brasil: a emergên-cia do axé music e do pagode nos anos 90. Belo Horizonte:UFMG, 2000. Dissertação (Mestrado em Comunicação So-cial).

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.74-89 Março 2000 89

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* Antonio Albino Canelas Rubim é professor do Departa-mento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduaçãoem Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade

de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.Pesquisador do CNPq.E-mail: [email protected]

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90 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000

A evolução da indústria fonográficae o caso da Bahia

Paulo Henrique de Almeida *

Gustavo Casseb Pessoti **

Desde os anos 1970, com a saturação dosmercados norte-americano e europeu, asgrandes empresas da indústria da música

começaram a dirigir seus interesses para o merca-do internacional. Em meados da década de 1980 –como lembra Robert Burnett – importantes grava-doras como CBS, WEA, EMI e PolyGram, já “pro-clamavam em seus relatórios anuais que suas divi-sões internacionais respondiam por mais da metadede suas vendas”. Este movimento de internaciona-lização não se traduziu apenas em incremento daexportação da música produzida nos países de-senvolvidos e principalmente nos Estados Unidos.As grandes gravadoras foram obrigadas a descen-tralizar sua produção e a investir em artistas, estú-dios, fábricas e redes de distribuição de mercadosemergentes da Ásia, América Latina, África e Euro-pa do Leste. Para crescer, elas tiveram que se cur-var à cultura e aos gostos musicais de cada país.1

Nos anos 1990, esta internacionalização da in-dústria fonográfica produziu um novo fenômeno: odesenvolvimento do crossover. Ele surpreendeu asgrandes gravadoras mundiais, que costumavamoperar com base na hegemonia quase absoluta damúsica anglo-saxônica. A globalização tambémpermitiu que a música produzida fora dos EstadosUnidos e da Grã-Bretanha conquistasse nichosem mercados externos. Os grandes ícones ameri-canos e britânicos perderam algum terreno, en-quanto artistas e gêneros asiáticos, africanos, ca-ribenhos e latino-americanos ganharam projeçãointernacional.2

É no bojo deste movimento de amplitude globalque se insere o surgimento e o sucesso da novamúsica baiana dos anos 1980 e 1990.

A indústria fonográfica mundiale o mercado brasileiro

Em primeiro lugar, o que é a indústria do disco? Aresposta a esta questão pode ser obtida com um rá-pido exame da cadeia de valor do ramo. A música éo ponto de partida da indústria fonográfica. De saí-da, há o(s) compositor(es) que escreve(m) a canção(música e letra) e a entrega(m) para um intermediá-rio, que é o editor. A partir de um contrato com ocompositor, o editor passa a ter direitos de exclusivi-dade sobre a canção. Em seguida, o editor – o “em-presário” do compositor – entra em contato com umprodutor para que o autor ou outros artistas possamgravar a composição. O produtor faz todos os arran-jos necessários para a gravação. Nesse momento,entra em cena a gravadora que manufatura os CDsou cassetes matrizes gravados pelos artistas em es-túdio especializado. As matrizes servem à prensa-gem dos discos que são embalados, juntamentecom seus encartes (letras etc.) e distribuídos. Osdistribuidores colocam o produto final nos revende-dores (lojas de departamento, lojas especializadas eoutros). Paralelamente, desenvolve-se a promoçãodo disco, envolvendo lançamentos na mídia, propa-ganda, execução em rádio e TV, shows ao vivo eoutras formas de projeção do artista e, principalmen-te, do seu produto. A figura 1 mostra o esquema de

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000 91

todas as etapas que envolvem a produção, distribui-ção e promoção de um disco.3

Essa indústria do disco é uma fração da indús-tria mundial do entretenimento. O entretenimentomovimenta um valor da ordem de US$ 500 bilhõesanualmente, sob a forma de entradas de cinema,CDs, fitas de vídeo, jogos de computador, progra-mas de televisão, livros, revistas, parques temáti-cos e muitos outros bens e serviços. Sete empre-sas gigantescas dominam o ramo: Time Warner,americana, recentemente absorvida pela AmericaOn-line (AOL), com um faturamento de US$ 26,8 bi-

lhões em 1998; Disney, também americana, comUS$ 23 bilhões; News Corporation, australiana, comUS$ 21,7 bilhões, controladora da 20th Century Fox;Viacom-CBS, americana, com US$ 18,9 bilhões,proprietária da Blockbuster e da Paramount; SonyCorp. of America, japonesa, com US$ 14,5 bilhões,controladora da Columbia TriStar; Bertelsmann, ale-mã, faturando US$ 12,8 bilhões e Seagram, famosaprodutora de bebidas canadense, proprietária daUniversal Studios e da PolyGram, com um fatura-mento total de cerca de US$ 15 bilhões.4

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92 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000

Subconjunto da indústria de entretenimento, aindústria fonográfica vende cerca de US$ 40 bi-lhões por ano no mercado mundial e é controladapor quatro grandes companhias gravadoras:Warner Music/EMI Group (selos Virgin e Capitol),com cerca de 27% do mercado internacional dediscos; Universal Music Group (PolyGram), com21%; Sony Music (Columbia, Epic), com 17%, eBertelsmann Music Group (BMG, Arista, RCA),com 11% (ver tabela 1). Estas empresas transnacio-nais estão integradas vertical e hori-zontalmente, comandam a tecnolo-gia no ramo e mantêm amplas redesde marketing, estúdios de gravaçãoe, principalmente, canais de distribui-ção e centros de venda, com o queexercem seu domínio planetário. 5

O mercado de discos não se li-mita, entretanto, às megacompa-nhias. Em segundo plano, existemgravadoras de médio porte, queocupam pequenas parcelas domercado através de acordos firma-dos com as grandes transnacio-nais ou com estúdios independen-tes para a produção, prensagem edistribuição de discos. Há ainda osselos alternativos, que operam apartir de redes independentes, com produção e dis-tribuição em escala local. Estes selos têm limitadocapital para investimento, ofertam produtos maisbaratos e trabalham com contratos de curta dura-ção. Em geral, dedicam-se a artistas de menor pro-jeção ou a gêneros musicais de menor interessepara as grandes companhias. Empresas médias ede pequeno porte respondem por cerca de umquarto das vendas mundiais (tabela 1).6

A distribuição geográfica da produção e do con-sumo mundial de CDs, fitas-cassete e LPs, podeser analisada a partir das tabelas 2 e 3. A Américado Norte, vale dizer os Estados Unidos, continuamsendo o principal mercado, concentrando cerca de35% do faturamento global. Mas este primeiro lu-gar vem sendo disputado palmo a palmo com omercado europeu, que já responde por praticamen-te a mesma proporção de vendas. A Europa contacom três grandes mercados nacionais: Reino Uni-

do, Alemanha e França, que juntosrepresentam pouco mais de 20%das vendas internacionais, e aindacom vários mercados emergentes,inclusive entre os países do Leste.O terceiro maior mercado conti-nental é o asiático, com forte con-centração no Japão, que sozinhoabsorve quase 17% dos produtosda indústria fonográfica mundial.

Na década de 1990, mercadosda América Latina – e particular-mente o brasileiro – estiveram entreos mais dinâmicos do planeta. A ta-bela 4 compara a extraordinária ex-pansão do mercado brasileiro –134,5% entre 1991 e 1998 – com ocrescimento verificado nos dez

mais importantes mercados nacionais. É certo quehouve expansão significativa de vários mercados,fundamentalmente em razão, como se verá adiante,

Subconjunto da indústriade entretenimento, aindústria fonográfica

vende cerca de US$ 40bilhões por ano no

mercado mundial e écontrolada por quatrograndes companhiasgravadoras: Warner

Music/EMI Group (selosVirgin e Capitol),

Universal Music Group(PolyGram), Sony Music

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000 93

da difusão do CD, mas nenhum caso se compara aobrasileiro. O Brasil aparece, assim, até 1998, como osexto maior mercado nacional do planeta, com ven-das de 105 milhões de unidades (mercado legal eem todos os formatos) e um faturamento de US$1,055 bilhão de dólares (ver tabelas 3 e 4). As ra-zões para este boom serão discutidas a seguir.

tores: (a) o salto tecnológico assegurado pela difu-são do som estéreo em dois novos suportes, o LPde vinil e a fita-cassete; (b) a reorganização da eco-nomia da música no Brasil, sob a liderança de gra-vadoras estrangeiras e de grandes grupos da mídianacional; (c) o incentivo fiscal criado pelo Estadobrasileiro para a gravação da música nacional; (d)a expansão da economia e da renda per capitacom o “milagre econômico” dos anos 1967-73 e,last but not least, (e) o surgimento de importantesmovimentos musicais e gêneros populares, espe-cialmente, da chamada Música Popular Brasileira,a MPB.

O Long Playing estéreo de 331/3 rotações porminuto em polyvinylchloride (PVC) se torna o su-porte dominante no mercado mundial no início dosanos 1960. No Brasil, ele atinge seu auge nosanos 1970, substituindo tanto as antigas “bola-chas” de 78 e 45 rpm, quanto os compactos sim-ples e duplos, que haviam dominado o mercadonas duas décadas anteriores. A fita-cassete, porsua vez, é criada pela Philips no início dos anos1960, conquista o lugar de formato padrão de gra-vação em fita no final dessa década e, dez anosmais tarde, desafia a dominação do LP no merca-

do internacional.O LP e a fita-casse-

te revolucionam o con-sumo de música porduas razões. Primeiro,porque se tornam osvetores de um som dequalidade superior – osom estereofônico – eisso sobretudo a partirdas gravações com ru-ído reduzido pelo siste-ma Dolby. Em segundolugar, o LP e o cassetepermitem modificar oconteúdo e o valor dopróprio produto do qual

são vetores. No período anterior, dos discos de 78e 45 rpm e dos compactos, a indústria vendia “mú-sicas” gravadas de certos gêneros, um subprodutoda atividade de músicos e cantores. A partir do LP,a indústria passa a vender o produto dos artistas,isto é, compositores conhecidos relacionados a

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O LP, o cassete e a indústria de discosbrasileira nos anos 1960-80

O primeiro grande momento da indústria brasi-leira de discos ocorreu entre as décadas de 1960 e1970. Ele foi resultado da combinação de cinco fa-

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movimentos culturais determinados. Isso permitemaior estabilidade da demanda, pois assegura oestabelecimento de uma certa fidelização do con-sumidor. Assim, a expansão do mercado para LPse fitas e, portanto, de toca-discos e gravadores por-táteis, não se faz num vácuo cultural. Ao contrário,as gravadoras e o conjunto do ramo se expandemcom base no aprofundamento da relação entre opúblico e uma nova forma de produzir música, ago-ra em ritmo e escala industrial: elenco fixo de com-positores/intérpretes, lançamentos anuais de dis-cos (álbuns com 10 a 12 faixas), marketing de“movimentos” (Jovem Guarda, Tropicalismo, MPB,“Som Livre” e outros).7

Nesse mesmo período, reorganiza-se a economiada música no Brasil. Há, primeiramente, a entradaem cena de novas empresas, entre as quais a Philips,que incorpora a Companhia Brasileira de Discos, aCBS, e mais tarde, nos anos 1970, a Som Livre(Globo) e a WEA, entre outras, que modernizam osestúdios e a promoção, impondo novas bases deconcorrência para as gravadoras mais tradicionais,como a Odeon e a RCA. Neste processo, a inova-ção fundamental é o início da articulação da indús-tria da música com a TV, através de programasmusicais e principalmente dos “festivais da canção”.A concentração do capital no segmento de grava-ção é paralela ao desenvolvimento desses novosveículos de marketing, num movimento que levariaas gravadoras, as editoras de revistas (Abril, Glo-bo) e as redes de TV (Record, Globo) a implantarno Brasil dos anos 1960-70 o star system que iriacaracterizar a indústria mundial da música no finaldo século XX.

O desenvolvimento da indústria brasileira de dis-cos a partir dos anos 1960-70 deve ser explicadoainda pela implantação de uma política federal deincentivo à gravação da música nacional. Em 1965,as gravadoras reorganizaram a Associação Brasi-leira de Produtores de Discos (ABPD) que haviasido criada em 1958, transformando-a num lobby in-fluente. Nos anos seguintes, conseguem obter duasvitórias importantes: (a) a Lei de Incentivos Fiscaisde 1967, que permite aplicar o ICM devido pelosdiscos estrangeiros na gravação de discos nacio-nais; (b) a nova Lei de Direitos Autorais de 1973, quefacilita a produção e venda de discos, possibilitan-do, por exemplo, a não-numeração de discos gra-

vados. Como lembra De Eugênio, essas mudançasinstitucionais levaram a [...] uma profunda mudan-ça na estrutura de mercado: em 1959, de cada 10títulos comprados, 7 eram estrangeiros. Em 1969,essa relação se inverte, nas mesmas proporções.Havia um nítido processo de ‘substituição das im-portações’ em curso; o mercado brasileiro passoua consumir canções compostas, interpretadas eproduzidas [...] no próprio país.8

A Bahia participa desse primeiro grande períododa indústria brasileira de discos basicamente atra-vés da projeção nacional dos compositores e intér-pretes associados ao Tropicalismo. Mas, enquantoatividade econômica, a indústria fonográfica aindanão existe no Estado; ela está concentrada no Riode Janeiro, onde gravam os artistas baianos. A ati-vidade de produção e gravação de discos só se de-senvolveria na Bahia a partir de meados da décadade 1980, no bojo de uma outra explosão musical.

A Revolução do CD e o segundo boom daindústria fonográfica brasileira

O segundo período de expansão da indústriabrasileira de discos tem três fatores em comum como boom dos anos 1960-70. Primeiramente, o inter-valo entre o final dos anos 1980 e o término dosanos 1990 é também caracterizado pela inovaçãotecnológica, neste caso pela difusão do compactdisc. Em segundo lugar, o período é marcado poralguns anos de intenso crescimento do consumo –o início e o auge do Plano Real. Finalmente, o CDrepete num outro sentido a história do LP, pois tam-bém se transforma no suporte de gêneros musicaisque não existiam ou que não tinham presença sig-nificativa na fase anterior.

O Brasil, que ocupava a 14ª posição no rankingmundial de vendas de discos até fins da década de1980, passa à sexta posição no final dos anos 1990,só atrás dos Estados Unidos, Japão, Alemanha,Reino Unido e França. Entre 1981 e 1991, as ven-das em todos os formatos no mercado brasileiropraticamente estagnam, em torno de 44 milhões deunidades por ano. Mas entre 1991 e 1997, elascrescem quase 160%, atingindo 117 milhões de uni-dades. É claro que parte desse crescimento estárelacionado ao boom de consumo provocado peloPlano Real: em valores reais, as vendas crescem

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exatamente entre 1993 e 1996. Parcela significati-va dele, contudo, deve ser explicada pela inovaçãodo CD (para acompanhar a evolução do mercadonacional, ver tabelas 3, 4 e 5).

O compact disc surge no mercado mundial noinício dos anos 1980 e se afirma como principal veí-culo da música gravada em 1988, expulsando o LPdas lojas especializadas e das residências dosconsumidores. O motivo básico para a vitória do CDé a sua extraordinária superioridade em termos dequalidade de som, durabilidade, transporte e arma-zenagem. Por estes motivos ele não somente setornou o suporte de novos artistas e gêneros, mastambém serviu para relançamentos de repertórios

antigos, que haviamsido gravados nas dé-cadas anteriores comoLPs, fitas ou mesmodiscos de 78 ou 45rpm. Essas caracterís-ticas do CD a deman-da por música grava-da, multiplicando aquantidade de unida-des vendidas e atrain-do o interesse de em-presas de outrosramos para o mercadofonográfico. São os ca-

sos, por exemplo, de firmas comerciais que inova-ram na distribuição com o incremento das vendaspor catálogo (clubes de disco) e das lojas de depar-tamento e supermercados que passaram a tergrande interesse na venda de CDs.9

No mercado externo, a esmagadora vitória docompact disc pode ser verificada a partir dos dadosapresentados na tabela 6, que mostra o fim do LP e odeclínio da fita-cassete ao longo da última década nomais importante mercado mundial, os Estados Uni-dos. Do ponto de vista do mercado interno, o avançodo CD – concentrado no período do Real – é revela-do pelo rápido aumento das vendas de CD players esystems. Cerca de 20 milhões de aparelhos de som

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4991 29,26 2,24 8,068 2,47

5991 72,17 3,31 8,6211 9,03

6991 58,49 1,33 3,0541 7,82

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8991 03,501 0,01- 7,5501 7,51-

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2,7027852

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4,5944,1156

1,2665,4648

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9,8777,4399

1,3571,5199

0,7480,61411

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1,10,6

7,51,53

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edadinU$SU

2,6448,5433

2,2444,2743

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4,6633,6113

5,9338,5192

4,5434,6792

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5,8519,9141

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edadinU$SU

2,676,491

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6,433,022

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6,634,611

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1,64,511

2,93,271

1,61,811

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2,111,132

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5,02,21

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com CD players e rádio-gravadores foram vendidosno Brasil entre 1994 e 1997. “A popularização dosaparelhos de som foi tão rápida” – destaca Célia G.Franco – “que num curto espaço de tempo, em 1995e 1996, foram vendidos 10,7 milhões de sistemas desom, número superior à população de Portugal”. Aexplosão na venda destes aparelhos de som foiacompanhada de perto pelo já citado aumento nasvendas de CDs, que substituíram os discos de vinil(ver sobre esse ponto a tabela 7).10

Como no primeiro grande mo-mento da indústria fonográfica bra-sileira (os anos 1960 e 1970), asegunda expansão do ramo só podeser realmente entendida quando seleva em conta o aparecimento denovos gêneros musicais.

É difícil apontar qual foi o gêne-ro que melhor caracterizou o mer-cado fonográfico brasileiro entre ofim dos anos 1980 e o final da dé-cada de 1990. Nos anos 1950, foi,sem dúvida, a Bossa Nova, do Riode Janeiro. Nos anos 1960 e 1970,a MPB em todas as suas variantesacabou por dominar o mercado a partir do eixo Rio-São Paulo. Na década de 1980, o campeão de ven-das foi o pop-rock nacional (Lulu Santos, LegiãoUrbana etc.).11 Mas nos anos 1990, pelo menosquatro grandes gêneros musicais foram simultanea-mente aceitos pelos consumidores de música noBrasil. Os discos de gênero Sertanejo, Forró, Pago-

de e Axé, foram comprados maciçamente, na escalade dezenas de milhões de unidades por ano. No fi-nal da década, eles respondiam por cerca de 75%das vendas de CDs no País.12

Assim, a década de 1990 não se caracterizouapenas por um crescimento das vendas, mas tam-bém por um reforço do conteúdo nacional da pro-dução fonográfica brasileira, de modo análogo aoque ocorreu nos anos 1960 e 1970 em razão daMPB. Diferentemente desse período, contudo, foi

um conteúdo menos comprometi-do com letras e músicas apuradase mais fixado em ritmos alegres edançantes que marcou os anos1990. Note-se ainda que um novoestilo romântico e a música religio-sa também fizeram-se presentes.Vale lembrar pelo menos três gran-des casos de sucesso. Em 1998, oconjunto de pagode Só Pra Con-trariar alcançou um patamar atéentão inédito para a indústria doBrasil: mais de 3 milhões de exem-plares de um disco vendidos, su-perando em muito os trabalhos de

bandas estrangeiras como Oásis, U-2 e RollingStones, que juntas venderam 500 mil cópias nomesmo período. No Axé, os nomes mais expressi-vos foram É o Tchan, que até 1998 já havia vendidomais de 6 milhões de cópias e, ainda, a Banda Eva,com 2 milhões de unidades, Netinho, com 1,5 milhão,Cheiro de Amor, com 1 milhão e o Terra Samba, com400 mil unidades vendidas, de seus respectivos lan-çamentos. Dos 22 milhões de CDs vendidos em 1997pela gravadora PolyGram, 32% foram de conjuntosde Axé. Outros sucessos surpreendentes de vendas,foram os “padres cantores”. Só Marcelo Rossi ven-deu mais de 3,2 milhões de CDs até meados de1999.13

A estrutura atual do mercado fonográficono Brasil

No Brasil, assim como ocorre no plano interna-cional, a indústria de discos é dominada por umpequeno número de empresas. As seis maioresgravadoras são a Som Livre, PolyGram, Sony, BMG,EMI (que se fundiu com a Warner em 2000) e a

Nos anos 1990, pelomenos quatro grandes

gêneros musicais foramsimultaneamente aceitospelos consumidores de

música no Brasil. Osdiscos de gênero

Sertanejo, Forró, Pagodee Axé, foram compradosmaciçamente. No final dadécada, eles respondiam

por cerca de 75% dasvendas de CDs no País.

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8891 292.1

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WEA. Estas grandes firmas respondem por cercade 90% do total de vendas de discos no País. Os10% restantes do mercado são ocupados por grava-doras pequenas, que na maioria dos casos não che-gam a atingir a marca de algumas poucas dezenasde milhares de discos vendidos por ano. Uma daspoucas exceções a esta regra é a Somzoom do Ce-ará, especializada em forró, empresária da bandaMastruz com Leite e proprietária de rádio em SãoPaulo (maior mercado do gênero), que vendeu cer-ca de 2 milhões de CDs em 1999.14

A estrutura da indústria fonográfica do Brasil dofinal dos anos 1990 reproduz desse modo a estru-tura que se desenvolve internacionalmente, a partirdo modelo americano:

O mercado fonográfico brasileiro – confirma Daniela Caride

– seguiu passos quase idênticos ao dos Estados Unidos, há

30 anos, quando as fusões e aquisições eliminaram as pe-

quenas empresas. No fim da década de 60, os Estados Uni-

dos contavam com seis megagravadoras, 10 médias e umas

50 pequenas. As gravadoras de médio porte foram incorpo-

radas às gigantes, enquanto as pequenas tornaram-se pro-

dutoras de discos. Lançavam artistas novos que, quando

vendiam bem, migravam para as grandes.15

O que ocorre no Brasil é um quadro semelhan-te. Como a distribuição é controlada pelas grandesempresas, selos e pequenas gravadoras disputamo mercado com as firmas que comercializam seuspróprios produtos. Se quer permanecer no merca-do de discos, a maioria das pequenas empresas éobrigada a contratar a produção, gravação em es-túdio, masterização de CDs e principalmente servi-ços de distribuição de firmas maiores. Paradoxal-mente, como nos Estados Unidos, são as pequenase médias gravadoras que assumem os riscos delançar novos talentos; mas estes, uma vez bem-su-cedidos, firmam contrato com as grandes.16

Todas as seis maiores gravadoras brasileirasescolheram o Rio de Janeiro como sede principalpara a realização dos trabalhos de criação musical.O restante, que envolve a produção, fabricação emarketing, está dividido entre o Rio e São Paulo.As grandes gravadoras terceirizam a produção mu-sical porque esta não é a atividade mais rentável; oque garante os lucros é a distribuição, que se faznecessariamente acompanhar de pesados investi-

mentos em promoção. Uma gravadora como a BMG,por exemplo, terceira em vendas no Brasil em 1996(com cerca de R$ 120 milhões), destina cerca de15% de seu faturamento líquido para a divulgaçãode seus discos, principalmente via rádio e TV. “Asemissoras de rádio são, hoje, o meio mais eficientepara vender discos. A veiculação de música nas tri-lhas sonoras de novela, por sua vez, é o segundomelhor canal de divulgação”.17

A pirataria e a crise do CD

A grande questão que se coloca para a indústriafonográfica do Brasil, neste final de século, não émais a competição com a música estrangeira. Ogrande desafio é encontrar soluções para um pro-blema que se agravou imensamente nos anos 1990,afetando a indústria de discos em escala mundial –a pirataria.

No âmbito da indústria fonográfica, o termo “pirata-ria musical” se refere à duplicação desautorizada e dis-tribuição ilegal do som gravado que, segundo a Associ-ação Americana da Indústria Fonográfica (RIAA), temocorrido principalmente de quatro maneiras:• discos piratas – duplicações não-autorizadas de

música a partir de discos legítimos gravados;• cópias musicais (bootleg recordings) – grava-

ções não-autorizadas de programas musicaisde rádio ou TV, ou ainda de show ao vivo;

• discos falsificados – gravações não-autorizadasde música pré-gravada; envolve também a du-plicação ilegal de trabalho de arte original, eti-queta, embalagem e, até mesmo, da marcaregistrada;

• pirataria on-line – baixa (download) não-autori-zada de música gravada de sites da Internet.18

A pirataria musical começou a crescer em mea-dos dos anos 1960. No começo dos anos 1970, elajá movimentava cerca de US$ 200 milhões apenasnos Estados Unidos, com a venda de fitas-cassetee discos produzidos ilegalmente. Isso significava quejá nessa época mais de 10% das vendas de discosnos EUA eram de produtos pirateados.19

A pirataria cresceu enormemente com o CD eos formatos digitais como o MP3. A questão é quea democratização do uso da Internet e a rápida evo-lução tecnológica que a indústria fonográfica co-nheceu nas últimas décadas simplificaram e bara-

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tearam a reprodução doméstica do som. Atualmente,qualquer pessoa munida de um microcomputadorcom acesso à Internet pode, em poucos minutos,baixar músicas e montar seu próprio CD. Esta mes-ma pessoa precisa de um investimento inferior a US$400 para copiar este CD inúmeras vezes. De fato,desde o final da década de 1990 foram introduzidosno mercado internacional equipamentos capazes dereproduzir o conteúdo de um CD em outro CD tantasvezes quanto desejado. Concretamente, são o CD-R(gravador de CDs permanentes) e oCD-RW (gravador de CDsregraváveis).

Esta tecnologia democrática ede escala doméstica se combina àprodução industrial de discos falsi-ficados para abalar a indústria fo-nográfica mundial. Segundo as es-timativas da RIAA, a indústriafonográfica mundial tem deixadode faturar cerca de US$ 5 bilhõespor ano em razão da pirataria, o que corresponde acerca de 12% das suas vendas totais. O que é maispreocupante: estas estimativas dizem respeitoapenas aos produtos físicos, pois até meados de2000 a RIAA não dispunha de dados confiáveis so-bre as perdas da indústria fonográfica com a pirata-ria on-line.20

Toda vez que um CD pirata é vendido no merca-do há uma perda econômica generalizada, queatinge absolutamente todos os envolvidos com onegócio legal da música. Primeiro, perdem os com-positores, artistas, músicos e produtores, porquedeixam de receber taxas e direitos autorais a quetêm direito. Ainda de acordo com a RIAA, 95% dosartistas dependem desses recursos para viver. Emsegundo, perdem os distribuidores e lojistas, poisseus preços não podem competir com os fixadospor vendedores ilegais que não pagam impostos.Isso significa desaquecimento de vendas e menosempregos. Em terceiro, perdem as gravadoras.Cerca de 90% de todos os lançamentos realizadospor essas empresas não chegam a pagar os custosde produção, pois não fazem sucesso. Assim, asgravadoras dependem basicamente dos 10% res-tantes para cobrir seus custos totais e desenvolvernovos projetos. Ocorre que são exatamente os dis-cos incluídos nestes 10% os mais pirateados. Fi-

nalmente, perdem o Estado, que deixa de arreca-dar, e o consumidor, que adquire um produto depéssima qualidade, ainda que a preço vil.

O mercado de música latina tem crescido duasvezes mais rápido do que o mercado de músicaglobal, graças ao sucesso de artistas como GloriaEstefan, Ricky Martin, Alexandre Pires (Só PraContrariar) ou Herbert Vianna (Paralamas). Isso fazda música latina um mercado mais que atrativopara os piratas e explica o fato de que 50% dos

produtos ilegais confiscados pelaRIAA em 1998 tenham sido dessacategoria, que inclui a nova músicabrasileira.21

No Brasil, a pirataria foi a maiorresponsável pelo rápido declíniodo mercado legal de fitas-cassetegravadas, que deixaram de ser umproduto rentável para as gravado-ras. Hoje, praticamente 100% dasfitas-cassete nacionais são produ-

tos piratas. As estatísticas recentes apontam paraum futuro similar para o CD de música brasileira. Atabela 8 revela que o Brasil é um dos principais re-dutos do consumo e da produção pirata. Há dezanos o País nem aparecia entre os dez primeirosno ranking mundial da pirataria; hoje, ocupa a segun-da posição, só atrás da Rússia, o grande paraíso daeconomia subterrânea no final do século XX.

Como se viu, os números da indústria fonográfi-ca brasileira são impressionantes e fizeram do Bra-sil o sexto maior mercado do planeta em termos de

O Brasil é um dosprincipais redutos do

consumo e da produçãopirata. Hoje ocupa a

segunda posição, só atrásda Rússia, o grandeparaíso da economia

subterrânea no final doséculo XX.

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faturamento até 1998. Os piratas acompanharamde perto a expansão do mercado nacional: estima-se em menos de 3 milhões o número de CDs falsifi-cados ou pirateados em 1995; em 1998, o País jáabsorvia um volume de cerca de 30 milhões de dis-cos ofertados ilegalmente.

Enquanto a indústria fonográfica nacional teve um fatura-

mento [em 1998] de US$ 1,055 bilhão e vendeu 105,3 mi-

lhões de CDs, a pirataria arrecadou US$ 500 milhões. A esti-

mativa é de que 30 milhões de CDs falsificados foram

comercializados e o governo deixou de arrecadar com isso

aproximadamente R$ 132 milhões em impostos. Hoje, em

cada dez discos vendidos, quatro são falsificados. Compara-

tivamente, o crescimento da pirataria no Brasil torna-se ain-

da mais alarmante. Em 1995, o mercado negro comercializou

2,4 milhões de CDs falsificados. Um ano depois, este núme-

ro subiu para 3,1 milhões. Em 1997, o aumento foi de 400 mil

unidades. No ano passado, atingiu a marca de 30 milhões.22

Em 1999, os CDs mais pirateados nacionalmen-te foram de artistas da Música Axé, particularmenteÉ o Tchan e Banda Eva, assim como os de músicaSertaneja, especialmente do cantor Leonardo.

Cerca de 90% dos CDs falsificados que sãovendidos no Brasil são fabricados na Ásia e contra-bandeados através do Paraguai através das fron-teiras do Paraná e Mato Grosso. Ironicamente ecomo acontece com boa parte do contrabandopara o Brasil, a produção pirata asiática, que estáconcentrada na China (principalmente em Hong-Kong e Macau), Taiwan e Malásia, entra pelos por-tos de Santos e de Paranaguá, seguindo para seutour paraguaio sob a proteção dos acordos que ga-rantem livre trânsito em solo brasileiro ao produtoimportado pelo país vizinho. É grande também aparticipação de CDs falsificados oriundos daRússia e mesmo dos Estados Unidos (Flórida), Ca-nadá e Espanha.23

A revolução do MP3 – fim ou recomeçoda indústria fonográfica?

O outro grande inimigo declarado da indústriafonográfica do final do século é o MP3. O chamadoformato MP3 revolucionou o mundo da música aopermitir a compactação de arquivos digitais de som,reduzindo seu tamanho em mais de dez vezes sem

que eles perdessem a qualidade. Difundido pelaInternet, desbancou rapidamente o principal con-corrente, o RealAudio, por permitir a transmissãode música mais rapidamente e com melhor qualida-de sonora. Com o MP3 tornou-se possível transfor-mar faixas de CDs em arquivos digitais, armazená-las em microcomputadores e compartilhá-las na rede,ou fazer a operação inversa, gravando CDs – per-sonalizados – a partir dos arquivos digitais.24

A invenção desse novo formato (1987) foi com-pletada com três outras, mais recentes. Primeira-mente, os gravadores portáteis e baratos de CDs,citados na seção anterior. Em segundo lugar, ossoftwares como o Napster, que permitem o com-partilhamento de arquivos MP3 entre internautas,realizando a busca e o download dos mesmos emservidores com bancos de dados de música. Emterceiro, os aparelhos do tipo Rio, que copiam, ar-mazenam e reproduzem músicas capturadas naInternet, denominados pela indústria fonográfica de“walkmans de piratas”.

O MP3 e a difusão dessas invenções comple-mentares abalaram a indústria fonográfica mundialem dois sentidos.

De um lado, o novo formato de arquivo de somcriou possibilidades até então não imaginadas deacesso gratuito à música, vale dizer, alavancou enor-memente as possibilidades de pirataria num mo-mento em que a indústria de discos, que dependeinteiramente do pagamento de direitos autorais, jásofria com o ataque dos falsificadores de fitas eCDs. O MP3 tornou-se o formato preferido dos pi-ratas da Internet, que copiam músicas de CDs e asdistribuem de graça na rede, a partir de sites ile-gais, de chats (salas virtuais de bate-papo) ou decorreio eletrônico.

De outro, e o que talvez seja muito mais impor-tante, o MP3 abriu caminho para a total “desmate-rialização” da música; com ele, a música retorna aoque havia sido até o final do século XIX – um produ-to absolutamente intangível. Ora, isso significa dizerque toda a cadeia de valor da indústria fonográficaatual pode desaparecer, pois com o MP3, a Internete os equipamentos do tipo Rio, tornam-se inúteisas fábricas e gravadoras de CDs, as atuais entida-des arrecadadoras de direito autoral, empresas depesquisas de mercado, distribuidoras e lojas dediscos etc.

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100 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000

A música digital on-line veio para ficar. Já exis-tem mais de 20 companhias da indústria eletrônicadesenvolvendo e/ou lançando novos modelos desistemas portáteis de gravação e reprodução. Al-gumas previsões apontam para um mercado mun-dial de mais de 30 milhões de gravadores de MP3ou formatos similares até 2003. Ciente destes fa-tos, a indústria fonográfica tem procurado reagir —seu objetivo já não é simplesmente combater a pi-rataria na rede, mas sobretudo formalizar e contro-lar o novo mercado de música on-line. A chave paraseu sucesso na luta pela garantia dos direitos auto-rais talvez esteja na imposição de formatos como oMP4 (MPEG-4) ou o WMP (Windows Media Player),que oferecem tecnologias para proteger os direitosautorais; para ouvir música, o internauta precisa li-cenciá-la por meio de pagamento ou assinatura. Pa-ralelamente, a indústria tem criado ou estimuladosites legais que oferecem músicas não pirateadas.25

Uma vez resolvido o problema que é a necessi-dade de um padrão que permita o pagamento deartistas e gravadoras, a venda de música on-linedeve se expandir ainda mais aceleradamente, por-que a eliminação da maior parte dos elos da cadeiade valor da indústria fonográfica – a “desintermedi-ação” da música – implica uma brutal redução decustos e preços. Maria Ercília, editora de Internetda Folha de São Paulo, assinala:

(...) segundo dados da empresa de análise de mercado

Forrester Research, dos US$ 15 que um CD custa nos EUA,

cerca de US$ 2,50 são de despesas com publicidade; US$ 1

para fabricação do CD; US$ 3,50 para distribuição; US$ 6

vão para direitos autorais e lucros da gravadora – destes

US$ 6, US$ 2 vão para o artista, que geralmente os divide

com produtores, empresários etc.; e US$ 2 vão para o lucro

da loja. Se a música fosse distribuída digitalmente, boa parte

destes custos desapareceria.

A esperança da indústria fonográfica é que o con-sumidor não se incomode em desembolsar US$ 0,5ou menos para copiar uma faixa de música com me-lhor qualidade, mais rapidamente e dentro da lei.26

Mas é claro que a Internet não eliminará o CDno curto ou médio prazos. A maior parte dos consu-midores de música ainda não está conectada àrede e parcela bem mais significativa ignora o MP3e outros formatos. O MP3 rouba apenas 1% do atual

faturamento de cerca de US$ 38 bilhões da indús-tria fonográfica mundial. Quando falamos hoje devenda de música on-line referimo-nos principal-mente à venda de CDs pelo comércio eletrônico.Assim, a Forrester Research estima que o mercadoon-line vai movimentar, em 2004, cerca de US$ 7,5bilhões, mas desse total apenas US$ 1 bilhãocorresponderá ao comércio de faixas por meio dedownload, isto é, com transferências de arquivos viarede. O comércio on-line de CD é que continuarárespondendo pelo grosso das vendas via Internet.27

O comércio eletrônico de CDs tampouco deveeliminar a venda em loja. Contudo, em associaçãocom o MP3, deve reduzir de modo considerável aparticipação do varejo tradicional na distribuição.Além disso, as lojas de discos deverão se moderni-zar para sobreviver e isso muito provavelmente sig-nificará trabalhar sem estoques, com produção deCDs personalizados em tempo real.

O acesso rápido [ou download instantâneo] – como afirma

Luís Antonio Giron – permite, por exemplo, que empresas

coreanas e japonesas lancem serviços de quiosques e escuta

eletrônica. São ‘jukeboxes’ sem estoque material, que ven-

dem música ligadas a uma base de dados. Assim, o consumi-

dor, com um simples download, pode montar seu próprio CD,

DVD ou minidisc, bastando optar pelas faixas disponibilizadas

pelas empresas, ligadas via Internet. Em resumo, o lojista não

precisa de estoques, empregados nem de loja.28

É importante lembrar, finalmente, que a difusãoda música em arquivos digitais abre, em teoria,imensas possibilidades para a exportação “desin-termediada” de artistas e gêneros ignorados pelagrande indústria fonográfica. Em tese, é muito maisbarato ofertar a produção musical independente narede do que produzir e distribuir um disco. Ora, seisso é verdade na escala micro, também pode serverdadeiro na escala regional. No futuro, o uso daInternet como canal pode ajudar a reduzir a depen-dência em relação às grandes gravadoras multina-cionais, o que é relevante para a indústria da músi-ca de regiões que não dispõem de fortes estruturasde distribuição tradicional. A Internet ampliaria aspossibilidades de exportação das empresas locaise, provavelmente, garantiria para o complexo regi-onal da música uma fração mais substancial doslucros obtidos com a venda de seu produto. 29

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000 101

A indústria fonográfica da Bahia

A indústria de discos na Bahia só surgiu na se-gunda metade da década de 1980. Até 1983, oque existia no Estado eram estúdios de gravaçãode mensagens de propaganda para rádio e televi-são (jingles etc.). A WR Produções, do empresáriobaiano Wesley de Oliveira Rangel, foi uma das pio-neiras nesse ramo de atividade. Começou em1975, fazendo publicidade. A partir de 1978, pas-sou a trabalhar com trilhas ejingles, iniciando assim suas ativi-dades com música. Mas o negó-cio, como estúdio de gravaçãomusical, só engrenou em 1983,quando Rangel montou uma ban-da de música chamada Codizeres.Em seguida, no ano de 1985, surgia na Bahia aprimeira empresa de gravação de som musical.Seu sucesso inicial se deu com a gravação deuma nova banda, a Acordes Verdes, liderada pelocantor Luís Caldas. Assim, o surgimento da indús-tria fonográfica baiana se confunde com o apare-cimento da Música Axé e com a demanda criadapor este gênero musical.30

A atividade fonográfica demorou algum tempopara tomar impulso na Bahia. Paradoxalmente,isso também teve a ver com seus laços com a Axémusic. De início, o Axé não foi bem visto pelasgrandes multinacionais da gravação. Isso ocorreuapesar de sua inquestionável força de mercado jáno final dos anos 1980, quando a banda Reflexusatingiu a marca de 900 mil cópias no mercado bra-sileiro, e nomes como Luís Caldas, Sarajane eOlodum, passaram a vender sempre acima de 100mil. Como as grandes gravadoras de música, alémdas emissoras de rádio e TV, concentravam-se noeixo Rio-São Paulo, a indústria via com desconfian-ça a possibilidade dos baianos lançarem selos pró-prios para vender sua música.

Dois passos foram essenciais para suplantaressas barreiras. Primeiro, a aceitação de DanielaMercury pelo público brasileiro, com um milhão decópias vendidas do seu segundo disco, O Canto daCidade, centrado no samba reggae. Em segundolugar, mas não com menor importância, a multipli-cação dos carnavais fora de época e principalmen-te em outros estados. Esse segundo fator permitiu

mais que a exportação dos serviços de bandas eartistas baianos com seus trios elétricos; foi o pró-prio Axé que se transformou em mercadoria deexportação, marcando presença em mais de 60 car-navais extemporâneos, inclusive em São Paulo,Rio de Janeiro, Minas e Brasília.

Mas é preciso deixar bem claro que quando sefala de indústria fonográfica na Bahia, entenda-seindústria de produção musical. No Estado, não exis-tem fábricas de CDs ou sedes de gravadoras multi-

nacionais. O que existe é um mer-cado de estúdios de gravação.Nas palavras de Rangel, “o queexiste na Bahia é um mercado pro-dutor de matéria prima acabadaem nível de produção, onde umagravadora como a PolyGram, BMG

ou Warner, contrata o artista e a produção de seudisco”. Esta é a atividade fonográfica baiana: pro-duzir discos em estúdios ou shows ao vivo.

Todas a etapas da produção musical de um dis-co podem ser feitas na Bahia: criação e escolha dorepertório, seleção de músicos e arranjadores pro-fissionais, definição da forma que tomará a músicagravada, gravação e mixagem do CD. A maioriados estúdios profissionais gravam e mixam aindaem mesas de 24 canais. Mas já existem algunspoucos que operam com mesas de 48 e mesmomaior número. A aparelhagem disponível nestesestúdios baianos é a mesma que já existe em SãoPaulo, Tóquio ou Nova Iorque, e as técnicas degravação são as mesmas encontradas em qual-quer lugar do mundo. O diferencial fica por contada qualidade da equipe técnica que trabalha naBahia e do “astral” de gravar na Boa Terra. O AraKetu, por exemplo, tem exigido da sua gravadora, aSony Music, que a produção do disco seja toda fei-ta estúdio baiano.

As principais produtoras fonográficas da Bahiaestão ligadas às grandes bandas de Axé. São elas:a Mazana, que produz os discos do Chiclete comBanana; a Pracatun, empresa de Carlinhos Brown,que produz seus discos e os da Banda Timbalada;Página do Mar, de Daniela Mercury; MEG, de Neti-nho; Bicho da Cara Preta, que produz É o Tchan eCompanhia do Pagode. Como quase todas a pro-dutoras são também estúdios de gravação, pode-se dizer que na Bahia existem aproximadamente

Quando se falade indústria fonográfica

na Bahia, entenda-seindústria de

produção musical.

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102 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000

15 estúdios profissionais. Com um outro tipo de per-fil, há ainda os pequenos estúdios de pré-grava-ção, com investimentos que não ultrapassam R$300 mil, entre os quais se destacam Verde, RPA eZero. Além destes, existem cerca de duas cente-nas de pequenos estúdios, os chamados de “fundode garagem”, freqüentemente limitados a atividadede ensaios. O maior estúdio profissional indepen-dente da Bahia é o WR Produções, com padrão in-ternacional e investimentos de cerca de US$ 1milhão. A WR é responsável pela maior parte daprodução final dos grandes nomes do Axé baiano,entre eles, Ara Ketu, Chiclete com Banana eDaniela Mercury. A empresa afirma responder ain-da por cerca de 70% do total da produção fonográ-fica da Bahia, todos os gêneros somados.

O significado econômicoda indústria baiana de discos

O estúdio de gravação é o primo pobre das gra-vadoras na indústria fonográfica. Ele demanda in-vestimentos consideráveis, pois necessita de estru-tura física, equipamentos adequados (a maioriaimportados) e uma mão-de-obra qualificada em to-dos os seus departamentos. No entanto, suas úni-cas receitas são: (a) o contrato direto com os artis-tas para gravar, e (b) o aluguel das instalaçõespara quem quer gravar um disco com sua própriaequipe de produção.

Em teoria, um bom disco, com um pessoal bementrosado, pode ser gravado em até dez horas. Naprática, porém, tendo em vista as exigências domercado, um disco de qualidade competitiva de-manda de 120 a 400 horas de estúdio. Para a mé-dia dos artistas mais consagrados da músicabaiana, o total por álbum é de 200 a 300 horas.Seus discos requerem mais apuro e a qualidade dosom depende da qualidade da gravação; para quevendam bem é necessário que toquem nas gran-des rádios nacionais, que exigem excelência paraa execução da música. Mas quem tem menos re-cursos grava em menos tempo. Um estúdio quegrava e mixa em 48 ou mais canais cobra, em mé-dia, na Bahia, R$ 120 por hora de gravação. Estú-dios de 24 canais cobram cerca de R$ 100; osmenores e os de pré-gravação, em média, R$ 60.

Desse modo, o custo de produção de um disco

na Bahia é muito variável: vai de R$ 20 mil a R$200 mil. Para os grandes do Axé, o custo de umdisco flutua entre R$ 150 e R$ 200 mil, haja vistaque neste caso se demanda maior número de ho-ras de estúdio (ou de trabalho externo quando setrata de gravações de shows ao vivo), gravação emmais canais, maior número de músicos, técnicos eoutros profissionais de maior qualidade etc. Um dis-co de artista em posição secundária no mercadofica em torno de R$ 40 a R$ 80 mil. Um artista inde-pendente gasta de R$ 10 a R$ 30 mil. Em geral,artistas de menor expressão, sem muito reconheci-mento ou que fazem música bem menos sofistica-da, preferem realizar a produção de seus discosatravés de sistema MIDI, em computador. Com estemeio, que dispensa músicos acompanhantes e ba-rateia a mixagem, cada faixa de um disco sai porcerca de mil reais.

O mercado fonográfico baiano produz de quatroa cinco discos por mês, o que soma algo em tornode 50 CDs por ano. Destes 50, dez ultrapassam as100 mil cópias vendidas e pelo menos um tem che-gado a 1 milhão. A média dos grandes artistas daBahia fica entre 200 a 500 mil cópias por lança-mento. Pode-se estimar as vendas anuais de dis-cos produzidos na Bahia em 5 milhões de unidades(para a vendagem acumulada dos principais artis-tas e bandas baianos, ver tabela 9).

O impacto da venda desses discos sobre a eco-nomia baiana é sobretudo indireto, uma vez queapenas 10% do valor dos CDs vendidos por artistasbaianos retorna ao Estado. Com efeito, esse é o per-centual que as grandes gravadoras, situadas noeixo Rio-São Paulo, pagam em média às produtorasdos principais artistas e bandas da Bahia. Para umavenda anual de 5 milhões de unidades a R$ 20 (pre-ço médio no varejo), ter-se-ia um valor máximo totalde apenas R$ 10 milhões de reais por ano direta-mente injetados na economia baiana pela indústriafonográfica. Mesmo esse número pode estar supe-restimado, uma vez que a produtora do disco muitasvezes não é baiana. Nesses casos, o retorno é bemmenor, pois se limita aos direitos autorais pagos aosmúsicos, intérpretes e compositores baianos.

O impacto real da indústria da música da Bahiasobre a economia baiana está relacionado ao su-cesso dos seus artistas. Em primeiro lugar, o círculovirtuoso que se estabelece entre a música Axé e o

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000 103

Carnaval na Bahia, na medida em que se alimentammutuamente. Em segundo, a multiplicação destefeedback positivo com a exportação do carnaval daBahia: franquias de blocos, serviços de trio elétrico,contratação de artistas baianos para carnavais forade época etc. Em terceiro, a realização de shows naBahia e fora do Estado, cerca de 400 por ano, comcachês que podem chegar a R$ 25 mil para os gran-des nomes do Axé. Em pesquisa realizada em 1996,a Secretaria da Cultura e do Turismo do Estado daBahia estimou em R$ 85milhões por ano o merca-do estadual de shows mu-sicais; a maior partedestes shows são realiza-dos com artistas e músi-cos baianos (ver tabela10). Em quarto, a vendade discos no próprio mer-cado baiano. Uma bandade sucesso vende, apenasem Salvador, cerca de 50mil cópias por disco lança-do, o que representa umfaturamento no varejo daordem de R$ 1 milhão. Amesma pesquisa da SCTestima o consumo de dis-cos e fitas na Bahia empouco menos de R$ 230milhões; parcela mais quesignificativa desta deman-da é dirigida para o produ-

to musical baiano (ver ain-da a tabela 10).

Uma avaliação do sig-nificado econômico da in-dústria da música naBahia estaria incompletase não levasse em contao volume de emprego cri-ado por esta atividade.Empresários do setor esti-mam este volume em 5mil postos de trabalho cri-ados diretamente, aí inclu-ídos todos os segmentosda economia da música:

indústria, prestação de serviços e comércio. Estenúmero aparenta estar subestimado. De fato, aPesquisa de Emprego e Desemprego (PED),amostra 1996-2000, que considera apenas a RMS,aponta para a existência de cerca de 8,5 mil pesso-as trabalhando em somente cinco das ocupaçõestipicamente vinculadas à música: cantores, compo-sitores, músicos, operadores de equipamentos desom, artesãos e operários da indústria de instru-mentos musicais. Se forem considerados os postos

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104 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000

de trabalho em outros segmentos, inclusive no co-mércio de discos, instrumentos e equipamentos, onúmero de pessoas que vive da música no Estadoda Bahia deve ser certamente bem maior.

Crise do Axé ou crise do CD?

Depois de atingir a marca de 117 milhões de uni-dades vendidas e de 1,23 bilhão de dólares de fatu-ramento em 1997, o mercado fonográfico brasileirodeclinou ligeiramente em 1998 (105 milhões de có-pias e US$ 1,06 bilhão). Mas ele desabou em 1999,quando foram vendidos apenas 80 milhões de dis-cos e se obteve um faturamento de US$ 429 mi-lhões, vale dizer, uma queda de 60% em relação aonível de vendas do ano anterior (ver tabela 5).

A queda das vendas entre 1998 e 1999 tem sidoexplicada por três razões fundamentais.

Houve, em primeiro lugar, a crise do Real queresultou na desvalorização da moeda brasileira enuma quase recessão econômica. Com menos re-cursos, os consumidores nacionais gastaram me-nos com produtos supérfluos, inclusive CDs. Adesvalorização, ao mesmo tempo, fez cair o valorem dólares das vendas realizadas no País. Estadupla queda – do número de unidades vendidas edo valor destas – repercutiu muito mal no exterior.O Brasil caiu da sexta para a décima primeira posi-ção no ranking dos maiores mercados nacionais eas gravadoras multinacionais, que até então esta-vam vendo o País como o mais promissor merca-do do planeta, desviaramsua atenção para outrasalternativas.31

Ocorreu, simultanea-mente, um aumento da pi-rataria. No ranking dosmercados mais visadospelos piratas, o Brasilmanteve a segunda posi-ção, empatado com a Chi-na e só perdendo para aRússia. Como sempre, apirataria visou quem maisfez sucesso, inclusive al-guns dos grandes nomesdo Axé, como É o Tchan eBanda Eva.32

Houve ainda – e aqui começa a polêmica – umcerto desgaste dos gêneros musicais que vinhamfazendo grande sucesso, como o Pagode e o Axé(ver tabela 11). Há quem diga que este desgastenão existe. O que estaria ocorrendo seria apenas acombinação de uma série de fatores negativos me-ramente conjunturais: redução do número de dis-cos produzidos ao vivo (que vendem mais), mu-dança na carreira de certos artistas (e.g. IveteSangalo), desatenção da indústria para certos pro-jetos específicos. Outros gêneros – como o serta-nejo – continuariam muito bem, o Axé e o Pagodetenderiam a se renovar com o aparecimento de no-vos talentos e o problema número um da indústriacontinuaria sendo a pirataria, isto é, o contrabandode CDs falsificados e a ameaça do MP3.33

Talvez todas as explicações sejam válidas. To-davia, é preciso destacar que a recessão econômi-ca e o desgaste de certos gêneros são passagei-ros, enquanto que a atividade pirata não tem umfim previsível. É possível salvar o CD ou ele terá omesmo destino da fita-cassete gravada, que foi eli-minada do mercado legal pela falsificação industriale pela difusão do gravador de dois decks?

O Estado e a indústria têm combatido a piratariaatravés da repressão ao comércio ilegal, do incre-mento da fiscalização nas alfândegas fronteiriças,portos e aeroportos, e do desmantelamento dasfontes de produção ou distribuição que alimentamo mercado. A quantidade de CDs e de equipamen-tos duplicadores apreendidos tem crescido ano após

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BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador - BA SEI v.9 n.4 p.90-108 Março 2000 105

ano. A indústria, além disso, tem se utilizado de tá-ticas como a redução do preço dos CDs, o lança-mento mais freqüente de novos produtos e a subs-tituição mais rápida das músicas “carro-chefe” nasFMs, buscando confundir os falsificadores.34

Mas nada disso tem reduzido o volume das ven-das piratas. Um CD falsificado custa cerca US$2,50 no Paraguai (R$ 4,50); os principais compra-dores são os sacoleiros que os revendem no co-mércio ambulante das principais cidades brasileiras.No varejo legal, o CD brasileiro é barato se compa-rado com o produto similar de outros países. Masquando se leva em conta o poder de compra dapopulação brasileira, o quadro se altera completa-mente, pois em termos de potencial de consumoreal, o usuário de CDs brasileiro está bem atrás noranking planetário (ver tabela 12). O que esperardo futuro, se o preço dos equipamentos de duplica-ção de CDs continua caindo e as músicas para ascópias podem ser encontradas cada vez mais facil-mente na Internet?

Uma hipótese a arriscar é que o que se assistehoje no Brasil não é simplesmente uma crise doAxé e do Pagode, mas o início do fim de um ciclo, aera do CD. No futuro, do mesmo modo que ocorreucom a “fita K7”, o CD tenderia a ser 100% produzi-do no mercado negro. A indústria fonográfica luta-ria para sobreviver optando por novos suportes enovos vetores para a música: arquivos digitais, sitese portais de venda direta, rádios virtuais. Mas serámesmo possível controlar a pirataria na Internet?

Conclusão: garantir o futuro da indústriabaiana de música

Como se procurou mostrar neste artigo, a indús-tria fonográfica da Bahia é uma indústria de produ-ção musical, que gera receitas quando um artistaou uma gravadora (quase sempre situada fora doEstado) contrata os serviços de gravação da matrizde um disco. Na Bahia, não existem nem fábricasde CDs, que iniciam a cadeia produtiva do ramo,nem as gravadoras/distribuidoras que são o penúl-timo elo desta, situadas logo a montante do comér-cio de discos. Isso significa dizer que a indústriafonográfica baiana (produtoras, estúdios etc.), bemcomo a indústria estadual da música em geral, de-pende fundamentalmente da existência de gênerose artistas de sucesso. É necessário que gravado-ras e selos de gravação nacionais e internacionaistenham interesse em comprar e revender o produtomusical baiano. Uma vez que nem o Axé, nem oPagode, nem os artistas destes gêneros são eter-nos, é preciso incentivar o surgimento e desenvol-vimento de novos artistas e/ou novos gêneros eestilos de música. A Bahia tem uma imensa tradi-ção na invenção de novos produtos a partir da ma-téria-prima local, nacional e global: do Tropicalismode Caetano e Gil ao Rock de Raul Seixas e MarceloNova, do Fricote de Luís Caldas ao Samba Reggaede Daniela Mercury, do Axé Pop do Ara Ketu, IveteSangalo e Netinho, ao Samba do Recôncavo trans-formado em Pagode do Harmonia do Samba e doTerra Samba. Outros sons, compositores, intérpre-tes e músicos certamente surgirão.

Existem hoje na Bahia basicamente três açõesde incentivo ao aparecimento de novos talentos,todas implementadas pelo governo do Estado, atra-vés da Secretaria de Cultura e Turismo, em parce-ria com o setor privado. A primeira é o conhecidoprograma FAZCULTURA, que concede abatimentono ICMS para empresas situadas na Bahia que sus-tentem financeiramente projetos culturais aprova-dos pela SCT. De 1997 a meados de 1999, 34% detodos os recursos deste programa foram destina-dos à música. A segunda ação é o projeto Sons daBahia, uma iniciativa da SCT para desenvolver umselo de gravação local, que incentiva gêneros e ar-tistas diferentes daqueles que têm atualmente ahegemonia. O Sons da Bahia já lançou cerca de 20

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ailártsuA 59,7 01,31 057.12 0661

anitnegrA 94,8 71,41 018.8 226

ocixéM 21,6 14,9 040.5 635

AUE 22,8 05,31 649.33 5152

lisarB 57,5 26,8 082.3 183

yrtsudnIcihpargonohPehTfonoitaredeFlanoitanretnI-IPFI:etnoF.9991edorbmezeded22,tsimonocEehT/emaxEe

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CDs. A terceira iniciativa é o projeto Emergentes daMadrugada, uma parceria da WR Produções comSCT, que também se propõe a apoiar o lançamentode alternativas ao Pagode e ao Axé, inclusive pop erock genuinamente baianos. O Emergentes já pro-duziu cerca de 25 CDs, lançando novos talentos eum repertório bastante eclético.35

A música baiana precisa de mais ações dessetipo, bem como da implantação de outros projetosque tenham maior repercussão na mídia nacional.Por que não reciclar, por exemplo, o modelo dosfestivais, que vem sendo reafirmado em Salvadordesde a realização do Percpan?

O principal problema enfrenta-do pela indústria fonográfica daBahia é a ausência de selos inde-pendentes fortes no Estado. É oselo que garante o contrato do ar-tista e a distribuição de seu disco.Não é provável a participação docapital externo nesta área – asmultinacionais instaladas no Rio eSão Paulo não têm interesse nofortalecimento de selos baianos. É verdade queexistem pelo menos cinco selos fonográficos pe-quenos na Bahia (NE, Discos, Canto da Cidade,WR e Sons da Bahia), mas estes empreendimen-tos são para projetos secundários das produtorasbaianas. O custo para manter um selo funcionandoé muito alto e o mercado baiano não tem escalasuficiente para permitir um projeto de maior fôlego,capaz de se firmar como uma alternativa de distri-buição aos selos das grandes gravadoras instala-das no País.

Ora, a transição do CD para a música on-linerevoluciona, como se viu aqui, a distribuição doproduto da indústria fonográfica. Modernizar estaindústria na Bahia significa prepará-la para a ex-portação pela rede. A Bahia não precisa de fábri-cas de CDs. Já existem no Brasil sete prensadoresde discos que operam com capacidade ociosa, pro-duzindo um artigo de valor declinante (CD+,Sonopress-Rimo, Videolar, Sony Music, Microservi-ce, Novodisc e TracyDisc)36. O que a música baia-na precisa é de um, dois, três ou mais PORTAISpara a divulgação e venda de sua música digitaliza-da, compactada e personalizada. Para a constru-ção deste espaço virtual, a música baiana necessi-

ta de financiamento, mas antes de mais nada decapital humano, de mais compositores e músicos, etambém de profissionais e técnicos especializadosna produção da nova música on-line.

Além disso, a indústria da música baiana pre-cisa se engajar na batalha nacional pela moder-nização da legislação de direitos autorais e pelaintrodução de uma legislação setorial que impeçaos abusos de poder econômico. Não existe futurona pirataria. Mas também não existe futuro no“jabá” on-line. Quem garantirá o acesso de novostalentos aos canais de promoção e distribuição

virtuais?Mas o ponto de partida é com-

preender que na medida em quese liberta do CD e de outros supor-tes materiais, a música tende a seralgo intangível, volátil, ao mesmotempo local e global, robotizada ecustomizada, baratíssima e de fá-cil manipulação. Ou como aindadiria Luís Antônio Giron, “a músicavirou um objeto bem estranho”.

Adiantar-se na produção, no marketing e na logísti-ca deste novo objeto é o grande desafio.

NOTAS:

1 BURNETT, Robert. The Global Jukebox – the internationalmusic industry. Nova Iorque: Routledge, 1996.

2 Sobre o crossover ver, por exemplo, DWYER, Paula,DAWSON, Margaret e ROBERTS, Margaret, A Revolução dogosto na aldeia global, Gazeta Mercantil (Business Week), 26/27/28 de janeiro de 1996, Caderno Fim de Semana, p. 1-2.

3 Uma análise detalhada da cadeia de valor na indústria fono-gráfica pode ser encontrada em FINK, Michael, Inside themusic industry – creativity, process and business. NovaIorque: Schirmer Books, 1996.

4 Ver “Wheel of Fortune – a survey of technology andentertainment”, The Economist, 21/11/1998. Este estudo foipublicado pela Gazeta Mercantil, numa série de três artigos,a partir de 18/12/98. Ver ainda “Grandes irmãos – quatro oucinco grupos dominarão todas as mídias concebíveis”, Lafis,Carta Capital, 16/02/2000, p. 68-71.

5 É possível que a BMG e a Sony venham a se fundir embreve. Como existem planos para uma atuação comum daBMG e da Universal na Internet, a indústria fonográficamundial tende a se reorganizar em duas megaempresas(EMI/Warner e BMG/Universal/Sony). Ver Luís AntônioGIRON, “Um mercado que quer se livrar do CD”, Gazeta

A Bahia não precisa defábricas de CDs. O que amúsica baiana precisa éde um, dois, três ou mais

PORTAIS para adivulgação e venda de

sua música digitalizada,compactada epersonalizada.

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Mercantil, Caderno Cultura, 28/29/30 de janeiro de 2000,p. 11.

6 Sobre as gravadoras independentes, consultar tambémBURNETT, op. cit..

7 Ver Marcos Napolitano DE EUGÊNIO, A indústria fonográfi-ca no Brasil e a MPB (1960/1980), ABPHE, III Congresso deHistória Econômica, IV Conferência Internacional de Históriadas Empresas, Universidade Federal do Paraná, 29/08 a 01/09/99.

8 DE EUGÊNIO, Marcos N. Op. cit., p. 4.

9 Ver FRANCO, Célia Gouveia, “O Barulho das Gravações”,Gazeta Mercantil, Rio de Janeiro, 10/09/97.

10 Idem, ibidem.

11 É claro que outros gêneros fizeram sucesso comercial entre osanos 1960 e 1970. Entre os mais importantes estavam a músi-ca romântica de Roberto Carlos e de outros herdeiros da Jo-vem Guarda, a música “brega” descendente direta do bolero,o “sambão”, derivado do tradicional samba de morro, além deoutros. Mas é a MPB em sentido estrito – Chico Buarque, Mil-ton Nascimento, Elis Regina, Ivan Lins e Gonzaguinha etc. –que ocupa o eixo da cena cultural no período.

12 FILIPPI, Marcos. “Consumo Triplicou em 30 Anos”, Jornal daTarde, São Paulo, 20/08/98, Caderno Variedades, p. 12.

13 Idem, ibidem. Ver ainda, Emerson GASPERIN, “Artistas na-cionais lideram vendas de discos”, Gazeta Mercantil, 07/08/09 de agosto de 1998, p. C-8.

14 JANARY Jr., “Rei do forró prepara a tomada de São Paulo”,Gazeta Mercantil, 04/04/2000, p. A-12.

15 CARIDE, Daniela. “O Mercado fonográfico perto de US$ 1bilhão”, Gazeta Mercantil, 10/10/97, Caderno Marketing &Publicidade, p. 8.

16 Idem, ibidem.

17 Idem, ibidem.

18 Ver site da RIAA – www.riaa.com.

19 Idem.

20 Idem, disponível em www.riaa.com/stats/stats/htm.

21 Ver ainda o site da RIAA – www.riaa.com. Ver tambémAlberto KOMATSU et al, “Pirataria abala mercado da músicalatina”, Gazeta Mercantil Latino-Americana, 14 a 20 de de-zembro de 1998, p. 6.

22 FILIPPI, Marcos. “Pirataria de CDs põe o Brasil na lista negra”,Jornal da Tarde, São Paulo, 26/07/99, Caderno Variedades, p. 2.

23 Idem, ibidem. Ver ainda Alberto KOMATSU et alii, “Brasil eMéxico são os mais prejudicados”, Gazeta Mercantil Latino-Americana, 14 a 20 de dezembro de 1998, p. 7, e DanielaCRISTOVÃO, “Cresce a pirataria de CDs no país”, GazetaMercantil, 17/11/98, p. A-11.

24 Ver “Ouça suas músicas favoritas no computador”, Folha deSão Paulo, Caderno Informática, 26/04/2000, p. 6.

25 Sobre a evolução recente da música on-line, ver, por exem-plo, Renata DEOS, “MP4 não garante fim da pirataria naWeb”, O Estado de São Paulo, 18/02/99, Caderno Internet,p. 10; “Internet ameaça as gravadoras”, Gazeta MercantilLatino-Americana, 28 a 4 de julho de 1999, p. 12; RaquelCARDOSO, “Microsoft entra na batalha contra o MP3”, Ga-zeta Mercantil, 26/27/28 de maio de 2000, p. C-3.

26 ERCILIA, Maria. “Indústria da música está quase pronta paraa Internet”, Folha de São Paulo, Ilustrada, 20/01/99, p. 6.

27 Ver Raquel CARDOSO, “Microsoft...”, loc. cit.

28 GIRON, Luís Antônio. “Um Mercado que quer se livrar doCD”, Gazeta Mercantil, Caderno Fim de Semana, 28/29/30de janeiro de 2000, p. 11.

29 Vale a pena notar que isso não ocorre na exportação de CDsvia Internet. Neste caso, a existência de um objeto materialtem obrigado as empresas a construírem redes nacionais einternacionais de distribuição para entregar o produto emtempo menor que a concorrência. Ver OCDE, The Economicand social impact of electronic commerce: preliminary fidingsand research agenda, OCDE, feb. 1999.

30 As informações desta seção foram em boa parte obtidas apartir de entrevista realizada com o empresário WesleyRangel, em 26/10/99.

31 Ver GIRON, Luís Antônio, “Um Mercado...”, loc. cit..

32 Luís PEREZ, “Mercado do disco cai com populares”, Folhade São Paulo, Ilustrada, 10/04/2000, p. 1.

33 Ver declarações do presidente da ABPD, Marcelo Castello,no artigo citado acima.

34 Ver, por exemplo, Marília CORDEIRO, “Pirataria de CD fa-turou US$ 400 mi”, Gazeta Mercantil, Regional Nordeste,26/10/98, p. 3, e Daniela CHRISTOVÃO, “Cresce a pirata-ria de CDs no País”, Gazeta Mercantil, 17/11/98, p.A-11.

35 Entrevista com Dr. Cláudio Taboada, Secretário doFAZCULTURA, em 17/04/2000.

36 Sidrônio HENRIQUE, “CD+ investe R$ 5 milhões para do-brar produção”, Gazeta Mercantil, 24/25/26 de abril de 1999,Caderno Fim de Semana, p. 11.

* Paulo Henrique de Almeida é doutor em Economia pelaUniversidade de Paris X - Nanterre e professor adjunto da

Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA.E-mail: [email protected]

** Gustavo Casseb Pessoti é graduando desta mesmaFaculdade.

Os autores agradecem as contribuições do empresáriobaiano Wesley Rangel, da WR Produções, e do Secretáriodo Fazcultura, da SCT, Dr. Cláudio Taboada, sem as quais

este artigo não seria possível.

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Terceiro setor:um novo espaço

de sociabilidade pública?Osvaldo Barreto*

As Organizações Não-Governamentais (ONGs)vêm assumindo espaços cada vez maisimportantes no mundo contemporâneo. Mais

recentemente a mídia passa a tratar o conjuntodessas organizações sob a denominação genéricade terceiro setor. Como já amplamente conhecido ediscutido, o surgimento do Terceiro Setor teria ori-gem, de um lado, na incapacidade do mercado, ouseja da empresa – que tem como objetivo funda-mental o lucro – de incorporar uma agenda que digarespeito a questões sociais e ambientais, e, de ou-tro, no gigantismo e ineficiência do Estado, que teriaesgotado a sua possibilidade de atender e lidar comas crescentes necessidades sociais das populaçõesmais necessitadas. É interessante notar que, inicial-mente, o Terceiro Setor identifica-se por um nomeque contém uma negação, sua agenda de trabalhoé definida a partir da negação da capacidade de ou-tros entes sociais de lidarem com essa agenda.

Na realidade, a existência de organizações não-governamentais não é um fenômeno organizacio-nal novo, ele acompanha o processo de desenvol-vimento do sistema capitalista e a consolidação doEstado/Nação. Na Bahia tem-se o exemplo notávelda Santa Casa da Misericórdia, que, no ano de1999, juntamente com a Cidade de Salvador, tam-bém completou os seus 450 anos. Essa organiza-ção, apesar de quatro vezes centenária, continuaem atividade, mantendo o Hospital Santa Isabel,cemitérios e algumas ações sociais.

Esse tipo de organização, conhecida como ir-mandade, teve presença marcante na vida da Ci-

dade de Salvador do século XVII ao século XIX.Como exemplos, podemos citar a Irmandade deNossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo,fundada em 1685, e a Irmandade da Ordem Tercei-ra de São Domingos, fundada em 1723. As irman-dades constituíam-se como associações corporati-vas, sendo mantidas principalmente por meio dejóias e anuidades pagas por seus associados, deesmolas, loterias, rendas de propriedades e lega-dos em testamento. Os recursos arrecadados eramutilizados para atender às necessidades dos irmãose à caridade pública; para a construção, reforma emanutenção de suas igrejas, asilos, hospitais e ce-mitérios, e para o pagamento dos salários decapelães, sacristãos e funcionários (Reis, 1991).

Outro exemplo marcante encontrado na Bahia é odo Liceu de Artes e Ofícios, criado em 1872, voltadopara a formação de jovens aprendizes. Essa organi-zação é referenciada, nos dias de hoje, como umadas mais importantes ONGs da Bahia e até do Brasil.

Um aspecto que merece ser destacado é quetanto as irmandades como o Liceu tinham comoobjetivo principal o desenvolvimento de atividadesque, em sua maioria, modernamente viriam a seconstituir em atribuição precípua do Estado. Ativi-dades similares às desenvolvidas pelas irmanda-des e pelo Liceu são, hoje, incluídas como pontosfundamentais da agenda das ONGs.

Com esses exemplos, não pretendo, em hipóte-se alguma, afirmar que a dinâmica social que gerouas irmandades e o Liceu seja a mesmo que gerou,quase trezentos anos depois, no último quartel do

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século XX, a explosão das ONGs, e que, segundodeterminada visão, teria levado ao surgimento deum novo setor, o terceiro. Entretanto, acredito queem pelo menos um elemento se pode buscar o eloentre os dois fenômenos organizacionais. Trata-sedo Estado, que, com sua ausência, no tempo e nocaso das irmandades e do Liceu, ou com suapretensa incapacidade e gigantismo, no caso dasONGs, não atendeu – ou deixou de atender – àsnecessidades sociais da população.

Tem sido difícil, talvez seja até impossível, che-gar-se a um conceito ou a uma tipologia mais con-sensual do que seja ONG ou Terceiro Setor. Com aexplosão de criação de organizações que ocorrenas décadas de 1980 e 1990, ficou difícil separar ojoio do trigo. Denominam-se ONGs não só institui-ções que, efetivamente, se dedicam a questões so-ciais, de direitos humanos, ecológicas, como tam-bém aquelas que articulam poderosíssimos interesseseconômicos, como as fundações mantenedoras deinstituições de ensino superior privado no Brasil ouaté empresas, a exemplo da Golden Cross, pode-roso grupo de seguro privado, que foi considerado,por muitos anos, como sem fins lucrativos – e, pas-mem, com todos os direitos e benefícios fiscais pre-vistos na legislação para tais casos. Talvez pelacomplexidade ou, quem sabe, pela necessidade dese manter a indiferenciação, todas foram engloba-das numa única categoria, terceiro setor. Essa de-nominação, a exemplo de ONG, também peca pelageneralidade. Neste artigo será utilizado com maiorfreqüência o termo ONG, designando um conjuntode organizações privadas, sem fins lucrativos, quetêm por objetivo a defesa de interesses comuns dasociedade e a atuação voltada para o atendimentodas necessidades e demandas sociais de gruposexcluídos da sociedade.

O presente texto pretende se debruçar sobre ofenômeno do surgimento das ONGs no últimosquartel do século XX, dando ênfase a questõescomo: ambiente econômico, político e social quegerou a disseminação dessas associações; consti-tuição das ONGs enquanto âmbito de criação deuma nova sociabilidade, que ultrapassaria os limi-tes dos Estados nacionais e se constituiria no em-brião de uma nova sociedade civil internacional;recursos financeiros mobilizados pelas ONGs e suaorigem e significação em relação aos recursos mo-

bilizados e aplicados pelo Estado. Nesse sentido, opresente artigo foi estruturado em três seções: aprimeira aborda o surgimento e disseminação dasONGs na Europa e suas repercussões no mundo;uma segunda seção trata do surgimento das ONGsno Brasil e, finalmente, na terceira seção, são feitasalgumas conclusões a respeito do tema abordado.

Histórico: as ONGs na Europa

As organizações não-governamentais, as queviriam a se constituir no embrião para a explosãode criação de ONGs a partir da década de 1970,têm sua origem na II Guerra Mundial, quando asigrejas resolveram mobilizar esforços para apoiarsetores da população européia que se encontra-vam em estado de carência, em conseqüência doconflito. A denominação ONG “aparece pela pri-meira vez no Estatuto de criação da ONU em 1945.Recomendava-se, no texto, a consulta a essas ins-tituições que teriam, supostamente, competênciatécnica em temas específicos, de cunho universal”(Corral, 1998).

O processo de recuperação dos países da Eu-ropa Ocidental ocorreu em período relativamentecurto. O modelo então adotado por esses países foimarcado por uma forte presença dos Estados Nacio-nais, que passaram a exercer importantes papéisde coordenação e de resolução de conflitos entre omundo do capital e o mundo do trabalho e tambémaprofundaram a intervenção no sentido de genera-lizar a oferta de serviços sociais como educação,saúde, previdência, habitação, transporte, dentreoutros. A oferta desses serviços vai se constituirem elemento essencial no processo de reproduçãoda massa trabalhadora da Europa Ocidental. Essemodelo, que ficou conhecido como o modelo deregulação keynesiano, é adotado, com variações eênfases diferenciadas, pelo conjunto dos paísescapitalistas. Evidentemente, nos países pobres, oupaíses do Sul, para usar um jargão caro às ONGs,as questões sociais foram incorporadas às agen-das governamentais apenas de forma residual.

Completado o processo de recuperação euro-péia, essas ONGs, em vez de se dissolverem, pas-saram a voltar suas atenções e a dirigir os seusesforços de captação de recursos financeiros paraincentivar e apoiar ações das igrejas de países do

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Sul, voltadas para o atendimento de grupos caren-tes. Se, de um lado, essa atitude reflete preocupa-ções de solidariedade, por outro, não se pode deixarde considerar a tendência dessas organizações acriarem motivações que justifiquem a sua perpetua-ção e a permanência de suas próprias burocracias.

Ao adotar esse modelo, o capitalismo experi-menta um processo de expansão econômica semprecedentes na sua história: os 25 anos que se se-guiram ao final da II Guerra Mundial ficaram conhe-cidos como os anos de ouro docapitalismo. Mas parece que, con-firmando o adágio popular de quetudo que é bom dura pouco, aseconomias capitalistas entram emcrise a partir do início da décadade 1970 e, junto com elas, o mode-lo de intervenção keynesiano.

O discurso e a ideologia liberal,que tinham perdido prestígio des-de a grande crise vivida pela eco-nomia capitalista mundial na déca-da de 1930, voltam com força,criticando o papel da intervençãoestatal, responsabilizando-a pelos problemas vivi-dos pelo sistema, e propondo a sua volta a um pa-tamar mínimo de intervenção. Em síntese, o discur-so liberal afirmava, e afirma, a falência da intervençãoestatal e a sua ineficiência vis-à-vis a intervenção dosetor privado. O discurso liberal de negação e de des-qualificação do Estado ganha força nas décadas de1970 e 1980 e se revigora no início da década de1990 com a desestruturação do Estado Soviético edos países socialistas do Leste Europeu.

Coincidentemente ou não, é nesse contexto decrítica e de desqualificação da ação estatal queressurgem e se disseminam as organizações não-governamentais, que, aliás, vão buscar como prin-cipal razão para a sua existência argumentos simi-lares aos utilizados pelo discurso liberal, referindo ogigantismo e a incapacidade do Estado, que, as-sim, já não poderia atender às crescentes deman-das sociais nem interferir em questões que extrapo-lassem os limites de cada nação, como, por exemplo,as questões ambiental e dos direitos humanos.

É evidente que o surgimento desse importantefenômeno político-organizacional não pode ser vis-to, de forma simplista, como apenas mais um pro-

duto da onda liberal que tem dominado o mundonos últimos 25 anos, mas como um fenômeno mui-to mais complexo e com variadas facetas.

Um primeiro aspecto a ser considerado é que asONGs, ao se dedicarem principalmente a problemaslocais, fragmentam a sua atuação em atividades es-pecíficas: gênero, raça, direitos humanos, ecologia,saúde, educação etc., reforçando uma ação políticatambém fragmentada e que perde a perspectiva deum projeto de sociedade mais articulado.

A ação das ONGs tem se de-senvolvido fora do âmbito das or-ganizações que compõem o modelopolítico e de participação tradicio-nal, como partidos, sindicatos, as-sociações de categorias profissio-nais. É comum entre dirigentes emilitantes de ONGs o discurso ne-gativo em relação às formas tradi-cionais de participação e de militânciapolítica. Registre-se que parte sig-nificativa dos dirigentes e militan-tes que atuam nas ONGs tem suaorigem nos partidos políticos de

esquerda e em movimentos sociais ligados às tra-dições políticas mais progressistas. O pressupostodesses dirigentes é de que nessas organizaçõesteriam oportunidade de uma ação mais concreta,mais direta, com resultados mais palpáveis no cur-to prazo. Um lema caro às ONGs é: “pensar global,agir local”. Esse fato talvez reflita e reforce um doseixos sobre o qual está centrada a hegemonia libe-ral: ao desqualificar a ação do Estado o discurso li-beral também desqualifica a política, cujo âmbito,no mundo contemporâneo, foi sendo tecido com oobjetivo de controle da esfera pública estatal.

Uma segunda questão a ser considerada é seessa nova forma de organização estaria criandouma também nova sociabilidade, uma nova socie-dade civil ou uma nova esfera pública, de caráterprivado, podendo vir a substituir a esfera pública-estatal. Ainda que, certamente, não se possam darrespostas conclusivas a todos esses questiona-mentos, promover a sua discussão poderá contri-buir para o aprofundamento do tema.

O fenômeno político-organizacional que gerouas ONGs e que alcançou, em menor ou maior grau,todos os países do mundo, deve ser visto como es-

O fenômeno político-organizacional que gerouas ONGs e que alcançou,em menor ou maior grau,

todos os países domundo, deve ser visto

como estrutural e,seguramente, reflete

importantes mudanças naforma de organização da

sociedade civilcontemporânea.

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trutural e, seguramente, reflete importantes mu-danças na forma de organização da sociedade civilcontemporânea. Essas organizações passam a terpresença destacada no âmbito de cada país, comotambém começam a interferir em questões interna-cionais relativas à ecologia, à dívida externa de pa-íses do sul, aos fluxos de capital especulativo, àação de organismos multilaterais (FMI, BIRD, BID,OMC) e ao comércio internacional. No que concernea esse último ponto, ainda permanece na memóriade todos a grande manifestação recentemente or-ganizada por ONGs em Seattle (Estados Unidos),que praticamente inviabilizou a reunião da Organi-zação Mundial de Comércio. Motivou-a a criação decondições mais favoráveis aos países menos de-senvolvidos nas relações comerciais internacionais.Ações desse tipo reforçam a idéia de que se estariacriando uma nova sociedade civil de âmbito inter-nacional, o que, como visto, refletiria a incapacida-de dos Estados Nacionais de lidarem com proble-mas – e terem influência sobre os mesmos – quecrescentemente extrapolam as suas fronteiras, le-vando a, no limite, criar-se um governo global.

Ainda com relação ao engajamento das ONGsnas conferências internacionais do sistema ONU,podem-se identificar, segundo Corral (obra citada),dois modos de participação:

(...) o tradicional, que se traduz no lobby, e o novo modelo

que reflete inovação na forma de atuação da sociedade civil

na construção de uma democracia global (...) No modelo tra-

dicional do lobby, as Organizações da Sociedade Civil

(OSCs)1 vão estender ao nível internacional sua atuação,

consolidada no nível doméstico, de influenciar, alterar e

reorientar a formulação de políticas. Nesse contexto, as con-

ferências da ONU são vistas como eventos em que os go-

vernos articulam seus objetivos políticos, portanto, um

espaço privilegiado para influenciar a política doméstica (...)

outra forma de participação alternativa à do lobby vem sendo

desenvolvida dentro do marco da governabilidade da socie-

dade civil global (...) Neste segundo modelo se parte da pre-

missa de que os Estados-Nação fracassaram na tentativa de

representar os cidadãos e dar respostas a uma série de

questões globais que vão da proteção ambiental, aos direi-

tos humanos, à dimensão mais ampla das questões de gê-

nero, à problemática dos assentamentos urbanos, aos

vários problemas decorrentes da pobreza, ao desemprego,

ao crescimento do crime internacional organizado, principal-

mente o tráfico de drogas. (...) A comunidade internacional

de OSCs percebe a si mesma e é percebida por muitos go-

vernos como parte do embrião da estrutura institucional que

vai definir uma forma de governabilidade global. De fato, isso

já vem acontecendo na medida em que as OSCs consegui-

ram, no decorrer desta década, emplacar novas temáticas e

formas de abordagem na Agenda Internacional.

Uma terceira questão a ser discutida diz respeitoà legitimação ou à fonte de poder das ONGs que,como instâncias organizativas da sociedade, teriamexistência autônoma ou consentida. As organiza-ções da sociedade civil como partidos políticos, sin-dicatos, associações patronais e de categorias pro-fissionais, e igrejas, têm sua existência justificada edefendida pelos interesses de um conjunto de cida-dãos, em nome e no interesse dos quais essas orga-nizações dizem atuar; portanto, a referência de po-der dessas entidades é a sua base de associados,de filiados, de militantes, de eleitores. As ONGs, aocontrário das organizações acima referidas, são, emsua grande maioria, criadas por pequenos gruposde pessoas, buscando sua legitimidade nos projetosque implementam, nas bandeiras que defendem enos públicos beneficiários de sua ação. Creio queessas organizações necessitem de um maior con-sentimento para garantir sua existência, uma vezque dependem de espaços na mídia e da boa vonta-de dos governos e dos organismos internacionaispara terem plena existência pública.

Um quarto aspecto relevante é o crescente pro-cesso de regulação a que têm sido submetidas asONGs. O sistema ONU, devido à profusão e aosmais variados tipos de ONGs que batem às suasportas, classificou-as em duas categorias (Corral,obra citada): Organizações Não-Governamentais deInteresse Público (PINGOS) e Organizações Não-Governamentais de Interesse Comercial (BINGOS).Os governos nacionais também têm se ocupadocom essa questão, e, muitos países, inclusive oBrasil, como veremos adiante, passam a regular oprocesso de criação e funcionamentos dessas en-tidades. Tal processo reflete, em certa medida, apreocupação do Estado com o crescimento da im-portância das ONGs, sobretudo pelo crescente aces-so dessas organizações a fundo público. O que tal-vez justifique a necessidade de um maior controledo setor público sobre a utilização desses recursos.

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De outra parte, não se pode deixar de conside-rar que as próprias ONGs, movidas pela necessi-dade de acesso a esses recursos públicos,demandem uma regulamentação.

Precisamos que o Congresso brasileiro legisle, definindo di-

reitos e deveres das organizações não-governamentais, dis-

tinguindo umas organizações das outras, permitindo, assim,

que apareçam todas com a sua cara específica, sem subter-

fúgios que dão margens a clientelismo e malversação do di-

nheiro público (Grzybowski, 1995).

Um quinto aspecto a ser consi-derado é o de que essas organiza-ções dependem cada vez mais derecursos financeiros de origem go-vernamental. Esse fato parece con-traditório com a visão que se tentadisseminar de que as ONGs estari-am substituindo o Estado. Na reali-dade, o que tem havido é não sóum forte entrelaçamento dessasorganizações com os Estados Nacionais e organi-zações multilaterais (ONU, BIRD, BID), como tam-bém uma estreita dependência. Não é sem motivoque o Presidente-sociólogo Fernando HenriqueCardoso, no início de seu primeiro governo, referiu-se às ONGs como organizações neogovernamen-tais. Os recursos oriundos do fundo público têmsido fundamentais tanto para o desenvolvimento deprojetos patrocinados por essas organizações, comotambém para a reprodução institucional das ONGs.Isso, de um lado, representa uma enorme contradi-ção com o discurso das ONGs em relação ao Esta-do e, de outro, evidencia um limite da ação públicadessas entidades; a necessidade de captação derecursos cada vez mais volumosos para atender acrescente demanda social. Destaque-se que o pú-blico-alvo das ações sociais das ONGs é o quemais tem sofrido as conseqüências da desestrutu-ração econômica e social causada pelo implanta-ção do modelo neoliberal em países do Sul, o quetem redundado na elevação dos índices de desem-prego e no crescimento da marginalidade social.Ocorre que, no mundo contemporâneo, a origemprincipal e fundamental de recursos para o financia-mento de programas sociais tem como fonte funda-mental o fundo público, não os donativos privados.

O que parece ser corroborado pelas própriasONGs.

As organizações participantes da ABONG têm um compro-

misso com tudo o que é público: bem público, espaço públi-

co, gestão pública. Aí existe um terreno fecundo de relações

com o Estado, particularmente com o Executivo. Como já te-

mos provado, principalmente no nível dos governos munici-

pais, podemos contribuir com conhecimento, método, capa-

cidade organizativa para implementar políticas e projetos

concretos que tenham o bem público no

centro. Temos agilidade suficiente para che-

gar nas pontas, lá onde mais se necessita

dos recursos e serviços públicos (Grzybowski,

obra citada)

Mesmo na Europa, onde existeuma forte tradição de caridade, asAgências de Cooperação Internaci-onal (ONGs de solidariedade) de-pendem crescentemente de recur-sos governamentais. Os casos a

seguir relatados (Poelhekke,1996) a respeito da si-tuação de algumas das principais agências euro-péias que se relacionam com o Brasil, confirmamclaramente o que aqui dizemos.

Na Inglaterra, onde a tradição caritativa é umadas mais fortes da Europa, a CHRISTIAN AID, comorçamento que somou US$ 204,1 milhões entre osanos de 1992 e 1995, teve como fontes financiado-ras: governo e Comunidade Econômica Européia,37,3%; arrecadação junto ao público, 55,6%; igre-jas, 2,0%; outras fontes, 5,1%.

Na Suiça, em 1992, dos US$ 340 milhões destina-dos às ONGs de solidariedade, 200 milhões foramprovenientes de donativos particulares para seremaplicados em países do sul, enquanto 140 milhões,ou seja, 41,2 %, teve origem governamental.

Na Alemanha, em 1994, a EZE, uma de suasprincipais agências de solidariedade, de um orça-mento total de US$ 132,9 milhões, teve como prin-cipal fonte o governo, US$ 112,1 milhões (84,3%).

O total de recursos doados pelos governos epelo público através das agências de solidariedadepode significar muito para quem doa, porém é pou-co para quem necessita desse dinheiro. Esses re-cursos são destinados, em grande parte, a paísesda África, Ásia e América Latina, que nas mesmas

Os recursos oriundosdo fundo público têm

sido fundamentaistanto para o

desenvolvimento deprojetos patrocinados

por essas organizações,como também para

a reprodução institucionaldas ONGs.

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três últimas décadas, período em que se verificou aproliferação de ONGs, foram submetidos ao pro-cesso de ajuste de corte neoliberal, que só fizeramacentuar os já graves problemas econômicos e so-ciais, produzindo de forma incessante novos po-bres, que são, afinal de contas, o público-alvo damaioria das agências e das ONGs espalhadas poresses países.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

(PNUD) estima que existem nos países do Sul pelo menos

50 mil ONGs com atividades para e com os pobres, que são

apoiadas por umas 2.500 agências de solidariedade e finan-

ciamento nos países do Norte. Essas agências transferem

anualmente cerca de US$ 5,5 bilhões de doações particula-

res e US$ 2,2 bilhões de recursos governamentais. Estima-

se que, de uma forma ou outra, atingem-se com esses

recursos uns 250 milhões de pessoas no Sul (Poelhekke,

obra citada).

Pode-se ter uma idéia de como os recursos finan-ceiros são transferidos, por meio dos dados (Tabela1) agregados referentes a sete agências ecumênicas(DanChurchAid, Christian Aid, HEKS, Pão Para oMundo, EZE, Solidaridad e ICCO); estas agências“representam 0,3% das 2.500 agências européias definanciamento”, e “transferiram para o Sul, em 1994,US$ 430 milhões do total de US$ 7,7 bilhões (estima-dos) enviados às ONGs” (Poelhekke, obra citada).

Os dados permitem visualizar-se a forma pelaqual os recursos das agências são distribuídos en-tre os continentes. A África e a Ásia, juntos, absor-veram cerca de 65% dos recursos, enquanto paraa América Latina foram destinados em torno de20%, com uma tendência declinante em termos departicipação no total de recursos. Esse declíniodeve ser decorrente do aumento da ajuda das

agências aos países do Leste europeu, que atra-vessam um forte processo de desestruturação des-de o início da década de 1990, com a desestrutu-ração dos antigos Estados socialistas.

Apesar do reconhecimento da importância dosrecursos para o público beneficiário e de US$ 7,5bilhões constituir um respeitável volume de recur-sos, considerando-se as 50 mil ONGs e os 250 mi-lhões de pessoas beneficiárias das ações dessasnos vários continentes, esses recursos, em termosper capita, perdem significação; na verdade, repre-sentariam uma média de US$ 150.000,00 porONG/ano e de US$ 30,00 por pessoa/ano, o que,convenhamos, é pouco dinheiro dentro de qualquerpadrão, mesmo sem considerar os recursos que fi-cam nas atividade meio e na manutenção do corpotécnico e burocrático dessas organizações.

Note-se que o Brasil contou com uma média de5% dos recursos passados para os países do Sul,o que significou algo em torno de US$ 20,0 milhõesao ano.

As ONGs no Brasil

No Brasil, a maioria das ONGs foi criada nas dé-cadas de 1980 e 1990. Dados extraídos de publica-ção da Associação Brasileira de ONGs (ABONG,1998), indicam que, das 114 organizações a ela filia-das, 62 (54%) foram criadas na década de 1980; 37(33%), na década de 1990 e apenas 15 (13%), an-tes de 1980. No que se refere às fundações empre-sariais, dados coletados na página do Grupo Insti-tucional de Fundações Empresariais (GIFE) indicamque, das 45 instituições filiadas, 8 (18%) foram cria-das na década de 1980; 22 (49%), na década de1990 e 15 (33%), em anos anteriores a 1980. Res-salte-se que entre as fundações criadas antes de

1980, sete foram cri-adas no exterior, ins-talando filiais no Bra-sil; portanto, estão li-gadas a outrasdinâmicas. Apesardas associadas daABONG e do GIFE,principalmente as daABONG, se consti-tuírem em um pe-

-1alebaT ,diAnaitsirhC,diAhcruhCnaDsaicnêgAadsoriecnaniFsosruceRsodoãçanitseD5991/3991-OCCIedadiradiloS,EZE,odnuMoaraPoãP,SKEH

etnenitnoC 4991 $SU 4991 % 3991 $SU

acirfÁ 9,071 8,93 2,161 7,93 3,751 5,93

aisÁ 3,401 3,42 5,101 0,52 2,501 4,62

anitaL.A 4,68 1,02 5,98 1,22 1,98 4,22

aporuE 8,76 8,51 5,35 2,31 7,64 7,11

latoT 4,924 0,001 7,504 0,001 3,893 0,001

LISARB 3,12 0,5 8,81 6,4 2,22 6,5

31ºnGNOBAsonredaC:etnoF

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queno conjunto dos milhares de organizações quecompõem o universo das ONGs existentes no Bra-sil, os dados acima confirmam que as ONGs brasi-leiras foram criadas nas duas últimas décadas. Ob-serve-se que, no caso das fundações empresari-ais, quase metade foi criada na década de 1990,indicando ser a filantropia empresarial um movi-mento recente entre as empresas brasileiras.

A mesma publicação mostra que as organiza-ções criadas antes da década de 1980 têm comoobjetivo a luta política mais geral, voltando-se prin-cipalmente para o apoio e fortalecimento de movi-mentos que visam à defesa da democracia, dos di-reitos humanos, da melhoria da qualidade de vidada população. De outro lado, as ONGs criadas pos-teriormente voltam-se, em sua grande maioria, paraáreas específicas, confirmando a tendência geral deatuação fragmentada dessas organizações.

Em termos de localização espacial, das 114ONGs filiadas a ABONG, 70 (61%) estão localiza-das em apenas três estados: São Paulo, Rio de Ja-neiro e Pernambuco. Em relação às fundações em-presariais a concentração também é bastante alta:cinco estados, São Paulo, Rio Grande do Sul, Riode Janeiro, Bahia e Minas Gerais, concentram 34(76%) das 45 fundações, institutos e empresas fili-adas ao GIFE.

O quadro delineado na primeira parte deste arti-go pode, em grande medida, ser generalizado paraas ONGs brasileiras; entretanto, devem-se consi-derar algumas especificidades da sociedade brasi-leira, que interferem no funcionamento dessasentidades: a magnitude dos problemas econômico-sociais – são cerca de 50 milhões de brasileiros vi-vendo abaixo da linha de pobreza, o que só faz am-pliar a demanda por serviços das ONGs – as carac-terísticas de autoritarismo e excludência do Estadobrasileiro, as dificuldades de acesso à mídia e a utili-zação privatista e clientelista dos recursos financei-ros governamentais são algumas delas.

Nas décadas em que se verificou o boom de cri-ação das ONGs, verificou-se também um processode deterioração do quadro econômico e social doPaís. Esse período foi caracterizado por baixas ta-xas médias de crescimento do PIB, pelo descontro-le da inflação, pela elevação das taxas de desem-prego e, mais recentemente, por um processo deestabilização econômica que, com a promessa de

melhorar a qualidade de vida das massas popula-res, jogou milhões de brasileiros no desemprego,na miséria e na desesperança, liquidou as finançaspúblicas, degradou os serviços públicos e a infra-estrutura do país, o meio ambiente, a vida nas cida-des. Ou seja, o agravamento do quadro econômi-co, social e ambiental só fez aumentar a demandapor serviços sociais, por mais empregos, por habi-tação, por alimentação, por terra, pela preservaçãodo meio ambiente, por melhores salários. Referiu-seacima o enorme contingente de brasileiros vivendode forma miserável: essa massa de marginalizadosé negado tudo, principalmente o direito de cidada-nia. Se para o conjunto da população brasileira osserviços públicos já são precários, para os margi-nalizados o Estado e seus serviços são uma ficção.Como uma parcela significativa das ONGs dedica-se à oferta de serviços sociais, elas defrontam-secom uma demanda sempre crescente, o que termi-na por sobrecarregá-las.

A maioria das principais ONGs brasileiras, comojá visto, foi criada por militantes políticos oriundosde partidos de esquerda ou de movimentos sociaisligados à tradição progressista. Esse fato talvez seconstitua num elemento dificultador do diálogo des-sas organizações com a elite política e governa-mental, hegemonicamente conservadora, que sem-pre dominou e domina a cena política brasileira.Uma das características mais marcantes dessa eli-te, de espectro de centro-direita, é a ojeriza portudo que é popular ou por todos aqueles, pessoasou instituições, que defendam, minimamente, es-paços e direitos para esses setores. Evidentemen-te essa afirmação não autoriza a conclusão de queas ONGs são uma efetiva ameaça aos privilégiosdessa elite, mas há de reconhecer-se que grandeparte dessas instituições se coloca numa posiçãocrítica relativamente às mazelas da sociedade bra-sileira e mantém vínculos com os setores mais pro-gressistas da sociedade, o que, por si só, já seconstitui em motivo suficiente para os vetos dosgrupos dominantes.

Para se ter uma idéia da forma como as ONGs eos movimentos sociais têm sido tratados no Brasilvejamos o que ocorreu, no início do governo doPresidente-sociólogo Fernando Henrique Cardoso,em 1995: ao instituir-se o Programa ComunidadeSolidária, coordenado pela primeira-dama, Ruth Car-

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doso, a primeira providência foi a desarticulação doantigo Conselho Consultivo do Programa de Segu-rança Alimentar constituído no Governo ItamarFranco e do qual faziam parte representantes deorganizações da sociedade civil, inclusive deONGs. Na constituição do Conselho do ProgramaComunidade Solidária, em vez de se manter o cri-tério de representação de organizações da socie-dade civil, optou-se pela composição a partir da in-dicação de personalidades, ou seja, fez-se umaopção deliberada pela fragmenta-ção, pelo enfraquecimento da or-ganização da sociedade civil. Essefato foi denunciado em documentoque ficou conhecido como Cartade Vitória, em alusão à reunião deONGs realizada na capital do Es-tado do Espírito Santo. Logica-mente esse fato, em aparênciasem significado, era parte de umabem-cuidada estratégia de desarticulação de qual-quer movimento da sociedade civil que pudesseameaçar os desígnios do príncipe e seu projetoantipopular, como logo depois ficou comprovadocom o brutal e truculento tratamento dispensadoaos petroleiros e seus sindicatos em decorrênciada deflagração de movimento grevista.

O fato é que as ONGs brasileiras não têm en-contrado um ambiente favorável para o seu relacio-namento com os vários níveis de governo e de ins-tâncias governamentais. Além dos aspectos acimaenfocados, deve-se considerar o fato do Estadobrasileiro ser um Estado forte, bem articulado ecom uma imensa capilaridade territorial. Os progra-mas concebidos e implementados pelo GovernoFederal, tendo por objetivo atender às demandasdos setores mais carentes da população, têm sidoexecutados a partir de núcleos constituídos no ní-vel estadual e pela incorporação dos governos mu-nicipais, que ficam responsáveis pela implementa-ção das ações. Esse mecanismo de execução, doqual têm sido excluídas as ONGs, de um lado ofe-rece instrumentos ao poder político local no sentidodo fortalecimento dos vínculos clientelísticos com apopulação, e, de outro, cria uma grande dependên-cia desse poder político relativamente às esferasestadual e federal. No Nordeste brasileiro, os Pro-gramas de Apoio a Pequenos Produtores Rurais,

que ganharam denominações diferenciadas nos di-versos Estados, se constituem em exemplos notá-veis dessa prática governamental. Mais recente-mente, o Programa Comunidade Solidária temseguido os mesmos passos dos programas acimareferidos. No primeiro caso, tem sido comum o en-volvimento de associações de pequenos produto-res rurais no processo de construção de pequenasobras. Observe-se, entretanto, que essas associa-ções, em sua grande maioria, são criadas e domi-

nadas por políticos locais, com oobjetivo de facilitar o relaciona-mento com o programa. Conse-qüentemente, a aplicação dos re-cursos é também dominada poresses políticos. No caso do Comu-nidade Solidária, o modelo é basi-camente o mesmo, sendo que umpouco atenuado no sentido da in-corporação de ONGs em algumas

ações. O fato é que a elite política conservadorabrasileira, tendo nos recursos públicos o principalinstrumento para sua reprodução, dificilmente abri-rá mão do controle da aplicação desses recursos,principalmente em favor de instituições que este-jam ou possam estar fora de seu controle. Creioque aí reside a grande dificuldade de relaciona-mento com o Estado, que tem sido a tônica do pro-cesso de desenvolvimento e expansão das ONGsno Brasil.

A postura do Estado brasileiro com relação àsONGs tem se constituído num sério obstáculo aoprocesso de legitimação das mesmas na socieda-de brasileira. Mas o Estado não está sozinho nessaforma de relacionamento ambíguo, sendo acompa-nhado pela mídia. Esta, se de um lado tem dadogrande cobertura à ação das ONGs, por outro, nãoperde oportunidade de fazer críticas a deslizes co-metidos por uma ou outra entidade, passando aimpressão de que a falha noticiada pode ser gene-ralizável para o conjunto dessas organizações. Nosúltimos anos, o espaço nos meios de comunicaçãotem sido mais ocupado pelas fundações e institutosempresariais, cujas ações e virtudes são sempreamplamente divulgadas. As ONGs perdem espaçopara aquelas instituições. Destaque-se que um dosprincipais canais de legitimação das ONGs, que ca-recem, como já visto acima, de base social concre-

A postura do Estadobrasileiro com relação

às ONGs tem seconstituído num

sério obstáculo aoprocesso de legitimação

das mesmas nasociedade brasileira.

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ta, é a sua exposição pública, sendo-lhes, portanto,fundamental a exposição midiática.

As dificuldades de acesso das ONGs às fontesde recursos financeiros tem se constituído num dosgraves problemas enfrentados por essas organiza-ções. Algumas das principais fontes de financia-mento das ONGs vêm sendo as agências de soli-dariedade européias, que, entretanto, nos últimosanos têm reduzido as suas transferências para oBrasil. Esse fato tem sido, em parte, justificado peladisseminação da idéia de que o Brasil é um paísrico, se comparado com outros países da África, daÁsia e da própria América Latina. Por outro lado, ospaíses do Leste europeu, que passam por intensoprocesso de desestruturação econômica e social,têm-se constituído na nova fonte de atenção dasagências de solidariedade e de destinação de seusfundos financeiros. Outro fator que não deve ser des-prezado é que as famílias doadoras de recursos àsagências de solidariedade têm reduzido as suascontribuições, com impacto negativo na captaçãoglobal dessas agências. O fato é que ONGs locais,repassadoras de fundos das agências de solidarie-dade européias, têm sofrido constantes restriçõesorçamentárias com o continuado corte de recursos.Em 1995, pesquisa realizada pela OXFAM (agên-cia inglesa) e pelo Instituto de Estudos da Religião(ISER) registrou que as principais agências euro-péias e norte- americanas enviaram US$ 74 mi-lhões para o Brasil. Considerando-se os fatoresacima referidos, a difusão de um certo grau de de-senvolvimento do Brasil e a concorrência de outrasregiões (Leste Europeu e África), é de esperar-seque essas transferências já tenham sido reduzidas.

Um levantamento realizado pela ABONG com184 entidades a ela filiadas, mostra que, para o anode 1998, eram 67 as entidades (36,4%) com umaprevisão orçamentária de até R$ 100 mil. Na faixade R$ 101 mil a R$ 600 mil, estavam situadas 83(45,1%); ou seja, 81,5% das ONGs filiadas tinhamprevisão orçamentária abaixo de RS$ 600 mil. Comprevisão orçamentária de mais de RS$ um milhão,existiam apenas 13 (7,1%) entidades. Registre-seque a principal fonte orçamentária dessas organi-zações encontra-se nas transferências realizadaspelas agências externas de solidariedade.

No que tange às fundações empresariais, segun-do levantamento realizado pelo autor no site do GIFE,observa-se que as entidades filiadas contam, no seuconjunto, com uma previsão orçamentária de cercade US$ 172,0 milhões, sendo que apenas duas fun-dações, Banco do Brasil e BRADESCO, mobilizamUS$ 82,3 milhões, o que representa cerca de 48%dos recursos previstos para o conjunto das institui-ções filiadas. Considerando-se que entre as insti-tuições filiadas ao GIFE encontram-se diversas dasmaiores empresas brasileiras e que apenas doisdesses grupos concentram 48% dos recursos pre-vistos, são irrisórios os recursos destinados paraações de caridade por essas empresas. Deve-seressaltar que os recursos mobilizados pelas funda-ções e institutos empresarias são também utiliza-dos para outros fins que não a caridade e a solidarie-dade, de que são exemplo o patrocínio de peças deteatro, de filmes, os prêmios.

No que diz respeito à destinação de recursospúblicos para o financiamento das atividades deONGs, não foi possível o acesso a dados confiá-veis que permitissem uma avaliação mais precisa.Entretanto, há um certo consenso em torno da idéiade que as ONGs que mais recebem recursos defonte governamental são as que desenvolvem ativi-dades com crianças (deficientes, em estado de ris-co, órfãs, creches), na área de saúde (DST/AIDS),na área de emprego e renda (capacitação, escolascomunitárias) e na área ambiental.

Conclusão

Apesar de não se pretender assumir uma posi-ção fechada sobre o tema em debate — os objeti-vos deste artigo são antes de tudo especulativos —

àsadailiFsedaditnEedatsiverPatieceR-IIalebaT)$R(8991GNOBA

saxiaF aicnêuqerF %

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000.001a000.15eD.2 03 3,61

000.003a000.101eD.3 85 5,13

000.006a000.103eD.4 52 6,31

000.000.1a000.106eD.5 61 7,8

000.000.1edsiaM.6 31 1,7

RN/SN.7 5 7,2

ESAB 481 0,001

.8991,GNOBAàsadaicossasedaditnesadortsadaC,lifrepmU:sGNO:etnoF

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podem-se arriscar algumas conclusões ou síntesesdos temas aqui abordados:1. o fenômeno político-organizacional denominan-

do ONGs ou Terceiro Setor se insere em umadinâmica mais estrutural, em que novos entessociais interagem com a sociedade civil na bus-ca de uma nova sociabilidade;

2. a ação das ONGs, em sua grande maioria,carateriza-se pela fragmentação, destinando-sea atender necessidades específicas de gruposcarentes;

3. as ONGs com atuação global têm adotado umaagenda voltada sobretudo para as relações de-siguais entre os países do Hemisfério Norte e osdo Hemisfério Sul (as grandes manifestaçõesrealizadas na cidade de Seattle nos EEUU, po-dem ser o prenúncio de uma nova forma demobilização de uma sociedade civil global);

4. tendem fortemente a serem reduzidas as trans-ferências oriundas das agências internacionaisde solidariedade para o Brasil;

5. as ONGs, para ampliar suas ações, não podemprescindir do acesso ao fundo público (a ques-tão seria saber em que grau esse acesso podeafetar a autonomia dessas organizações);

6. as características de autoritarismo e excludên-cia do Estado e da sociedade brasileira têm difi-cultado o relacionamento dos governos com asONGs;

7. apesar do estardalhaço feito pela mídia com rela-ção às virtudes da solidariedade empresarial, osrecursos destinados pelas empresas às açõescaritativas ainda são insignificantes em face da-queles aplicados pelo Estado e da dimensão dosproblemas sociais enfrentados pela sociedadebrasileira.

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1 OSCs, denominação utilizada com o mesmosentido de ONGs.

* Osvaldo Barreto é professor adjunto da Escola deAdministração da UFBA.

[email protected]