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    A atualidade deO Capital*

    Jacob Gorender**

    Resumo:

    Este artigo, derivado de uma conferncia realizada em 19/5/93, na PUC-SP, visademonstrar a existncia de uma estreita relao entre as formulaes tericascontidas em O Capital,de Karl Marx, e as caractersticas centrais da fase atual do

    capitalismo.

    A minha conferncia hoje o incio de um ciclo. Ningum aquideve esperar que eu oferea um painel completo de uma obra comoO Capital em uma nica noite. Hoje, pretendo apresentar um quadrogeral dessa obra de Karl Marx, referir-me sua atualidade e chamara ateno para algumas questes que dizem respeito exatamenteao seu carter geral. Os aspectos mais particulares, as muitascontribuies especiais dessa obra ficaro a cargo dosconferencistas seguintes.

    Falarmos na atualidade de O Capital no parecer, porventura,uma arrogncia depois dos desmoronamentos dos regimes do LesteEuropeu que se diziam baseados na teoria marxista, tanto em Marx,quanto em seus principais seguidores, particularmente em Lenin(da ter se criado o termo marxismo-leninismo)? Ou depois dosucedido nesses pases e do fato de que, em todos eles ou na grandemaioria, se faz um esforo enorme para a implantao do capitalismo?Como ento afirmar que a obra de Marx tem atualidade? No serela uma obra ultrapassada, que os fatos desmentiram e, com isso,merece a ateno apenas dos eruditos como um captulo encerradona histria das idias? Ser isso?

    Obviamente, a ofensiva do neoliberalismo, tanto prtica como

    terica e ideologicamente, desde os fins dos anos 70, quer fazercom que acreditemos na falncia do marxismo. E o que sucedeunesses ltimos anos, com o esfacelamento dos regimes dirigidospelos partidos comunistas do Leste Europeu e a dissoluo daprpria Unio Sovitica, parece confirmar o prognstico doneoliberalismo. Quero frisar, aqui, que me refiro precisamente ao

    * Textobaseado naconferncia Aatualidade deO Capital: umaabordagempluridisciplinar,realizada naPUC-SP, em19/5/93,promovidapelosDepartamen-tos de Prticado ServioSocial e dePoltica,Programa deEstudos Ps-Graduados emCinciasSociais eGrupo deEstudos de OCapital, todosdestauniversidade.

    ** Historiador,autor de

    Escravismocolonial, Aburguesiabrasileira,Combate nastrevas eMarcino eLiberatore.

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    neoliberalismo e no ao liberalismo do sculo XVIII. Embora umprovenha do outro, eles pertencem a pocas muito diferentes etm sinais diferentes.

    O liberalismo, seja dos iluministas franceses, dos naturalistas,de economistas como Adam Smith e Ricardo, era uma ideologiarealmente anti-operria, mas progressista para a poca.Revolucionria mesmo, porque se dirigia contra o feudalismo eem certos aspectos at mesmo contra o colonialismo.

    O neoliberalismo de hoje uma ideologia das grandes empresasmultinacionais, dos monoplios que, em nmero de algumascentenas, dominam o sistema capitalista mundial. E esseneoliberalismo se voltou com todos os canhes contra o marxismo

    e tambm alvejou o keynesianismo. Mas, este ltimo foi um alvo,digamos, lateral, situado no prprio campo das idias burguesas.

    Como ento O Capital e a obra marxista mantm sua atualidade?No mesmo ano de 1989, quando ruiu o Muro de Berlim, surgiu umartigo que logo a mdia internacional se encarregou de divulgar comgrande alarde, um artigo que anunciava o fim da Histria, de autoriado politlogo norte-americano Francis Fukuyama. Depois desse artigo,Fukuyama compendiou sua obra num livro que j foi traduzido aquino Brasil. Para o autor, o fim da Histria se d com a proclamao devitria final do liberalismo, da democracia liberal apoiada no sistemacapitalista, no mercado capitalista.

    Contudo, pouco depois, j no comeo dos anos 90, iniciava-senos Estados Unidos e, logo em seguida, tambm na Alemanha, noJapo e em outros pases do sistema capitalista, uma recesso,que, no sendo muito profunda, se revela, entretanto, demorada,j se prolongando po r do is anos . Ei s porque se fa la em es tagnaoe at mesmo em crise sistmica, o que se ouve de economistasque nada tm de marxistas.

    Junto a isso, vrios fenmenos chamam a ateno, justamentefenmenos que colocam em foco a obra de Marx. Em primeiro lugar,o renitente e crescente desemprego, que um fenmeno tanto depases adiantados quanto atrasados. universal, pode-se dizer.

    Percebe-se que a produo cresce, mas cresce tambm o

    desemprego, o que est ligado a uma revoluo tecnolgica e aofato de que a classe operria, os trabalhadores intelectuais e manuais,desempregados por essa revoluo, no tm tido a capacidade deresistir ofensiva do capital comeada j nos anos 70.

    Agora, entretanto, desponta um movimento grevista de certaspropores em vrios pases da Europa e, recentemente, com

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    particular vigor, na Alemanha. Por outro lado, vantagens que eramatribudas ao capitalismo japons, como o emprego vitalcio (quena verdade s existia nas grandes empresas, atingindo 1/3 dosempregados), tambm esto sendo, de certo modo, abolidas ouparcialmente anuladas.

    Percebe-se uma concorrncia cada vez mais aguda. Avana oprocesso de concentrao e centralizao do capital. Quase todosos dias, na imprensa econmica, h notcias de empresas que sefundiram, empresas que foram compradas por outras ouincorporadas em conglomerados maiores.

    evidente o processo de internacionalizao de todos osaspectos do capitalismo, da produo, do comrcio e, sobretudo,

    das finanas; e a aplicao crescente da cincia tecnologia e aoprocesso produtivo. Tudo isso foi estudado em O Capital. Todosesse fenmenos podemos encontrar expostos com bases no shistricas, mas profundamente lgicas, em O Capital.

    Aquela lei, tantas vezes refutada, da acumulao de capital,que concentra num plo a riqueza e no outro a misria, est patente,evidente, no mundo de hoje. Muito mais patente aqui em nossopas do que em tantos outros, mas tambm nos pasesdesenvolvidos. Nestes ltimos, na trajetria do neoliberalismo dosanos 80 para c, a minoria rica se tornou mais rica e a pobrezaavanou. Aumentou a populao que est abaixo do chamadolimiar da pobreza, tanto nos Estados Unidos como na Comunidade

    Europia. O nmero de desempregados estruturais, isto ,constantes, consolidados, tambm subiu.

    O que significa isso? Que hoje, nos Estados Unidos, quem tememprego trabalha mais e obtm menos. Os salrios reais somenores. Pela primeira vez, a atual gerao vive pior do que aanterior. Isso publicamente reconhecido. Foi uma das teses maisabordadas pelo candidato Clinton na ltima campanha eleitoralpela presidncia daquele pas, o que lhe garantiu a vitria.

    A prpria realidade presente do capitalismo torna atual OCapital, faz com que, entre outras obras, seja esta uma das obrasprioritrias para a leitura de quem quer compreender o capitalismo.

    Evidentemente, o mundo em que Marx viveu e escreveu OCapital era muito diferente do mundo de hoje. Apenas o primeirolivro da obra foi publicado em vida. O segundo e o terceiro forameditados postumamente pelo seu grande amigo Engels.

    No sculo XIX, vivia-se ainda a primeira revoluo tecnolgicado capitalismo, aquela que corresponde Revoluo Industrial.

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    Marx morreu no limiar da segunda revoluo tecnolgica, queocorre no fim do sculo XIX. Ele estava ainda na poca da invenodas mquinas-ferramenta que so fundamentais na revoluoindustrial inglesa, da revoluo tecnolgica do fim do sculo XVIII,da mquina a vapor e das invenes tpicas mais importantes: alocomotiva, a estrada de ferro, o navio a vapor, o telefone, o telgrafocom fio e algumas outras invenes fundamentais da poca, bemcomo a penetrao de certa mecanizao e da qumica naagricultura, tornando-a uma atividade menos aleatria, maisprodutiva e assim por diante.

    Mas Marx no chegou a assistir a segunda revoluotecnolgica. No conheceu a generalizao da aplicao da

    eletricidade e o enorme avano da qumica industrial, no conheceuo automvel (uma inveno fundamental), no conheceu o avio,o telgrafo sem fio, o cinema, o rdio. Muito menos a atual revoluotecnolgica com o computador, a automao eletrnica, abiotecnologia, a telemtica, o raio laser, os novos materiais. Tudoisso que est provocando exatamente fenmenos que ele previu:desemprego, concentrao da produo, maior interna-cionalizao. Quer dizer, a internacionalizao da produo maiordo que nunca e a aplicao da cincia produo, a cincia comofora produtiva, o que foi perfeitamente previsto por ele.

    J em 1858, numa carta a Engels, Marx dizia: Creio que amisso histrica da burguesia criar o mercado mundial e, na base

    dele, a produo de carter mundial. Hoje, isso muito maisverdade do que naquela poca. Os modernos produtos, que estoem nossas casas, so objetos produzidos em massa: geladeira,TV, vdeo, gravador, aparelho de som, disco digital, forno demicroondas, microcomputador pessoal. Tudo isso contmcolaborao de inmeros pases. As invenes no foram feitasnum s pas. Em muitos casos, resultaram da colaborao deempresas dos Estados Unidos, Europa, Japo e de outros pases.Se um produto importado, as peas, a matria-prima, a elaboraoetc., no so s daquele pas, so de inmeros outros. Ento, temosuma produo de carter mundial como jamais tivemos. Temos,particularmente, o capital financeiro, como fenmeno mais

    caracterstico da globalizao.Um trilho de dlares circula pelo mundo diariamente. Passade um pas para outro, no conhece fronteira. Por meios eletrnicos,em segundos, passa de um lugar para outro, onde os lucros somaiores, onde lhe paguem juros superiores. No h governo quepossa controlar esse capital. Pode apenas atra-lo ou repeli-lo, mas

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    no pode control-lo. Eis, a, a confirmao do que Marx chamavafetichismo da mercadoria, que se condensa mais do que nuncanesse fetichismo do dinheiro.

    Apesar de todos os recursos de que os governos dispem, hoje,seja do ponto de vista da comunicao, que opera em tempo real,seja do ponto de vista da capacidade de intervir, a sociedade notem condies de controlar a circulao do capital e das mercadoriasporque, comandados pelo dinheiro, so produzidos e impelidos porforas que procedem do mercado. Essas foras escapam ao controle.Elas tm um contedo que a lngua portuguesa chamou de fetiche(fetiche uma palavra da lngua portuguesa e que depois seinternacionalizou). Quer dizer, um objeto inerte ao qual atribumos

    alma, atribumos animao e capacidade de nos dominar.Afinal, quem cria o dinheiro so os homens. Se no houvesse

    sociedade humana, no haveria dinheiro, no haveria capital. Capital uma relao social, no a mquina que o capital. A mquinapode no ser o capital se a sociedade no for capitalista, mas sendocapitalista ela relao social e quem a cria so os homens.

    Mas tudo isso toma o carter de um fetiche. uma coisa queanima e domina quem o criou. Por isso que estamos numarecesso difcil de sair. Dominssemos essas foras, claro queno precisaria haver tantos desempregados, e tantos pasesmarginalizados, no s dependentes, mas marginalizados.

    O Capital uma obra muito extensa e, sem dvida, difcil de ler. preciso atravessar o primeiro captulo, que um dos mais abstratos,para poder seguir adiante. Sem esse primeiro captulo, no secompreende toda a obra. Ele se refere exatamente ao que Marxchamava a clula do modo de produo da sociedade burguesa, domodo de produo capitalista, que a mercadoria.

    Curiosamente, a palavra capitalismo no aparece em O Capital,ela s seria criada depois. Marx fala em modo de produocapitalista, em sociedade burguesa, mas no usa o termocapitalismo. Todavia isso apenas uma questo terminolgica. Oobjetivo dele era estudar exatamente o capital e, juntamente comesse estudo, fazer a crtica da economia poltica existente em sua

    poca como ideologia burguesa, como uma teoria que tinhaaspectos cientficos nos quais ele prprio se baseou, mas que, noseu conjunto, justificava a sociedade burguesa. Marx demonstrouantes que qualquer outro que o salrio no paga o trabalho dooperrio, do assalariado, do empregado do capitalista. Ele paga afora de trabalho, isto , o salrio corresponde em tese, em

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    condies, digamos assim, de equilbrio que raramente existemna sociedade burguesa aos bens que o operrio necessita parareproduzir sua fora de trabalho e criar os seus filhos que sero osfuturos operrios.

    Todo modo de produo deve ser um modo de reproduo.Isso uma lei inelutvel da sociedade humana. Se o modo deproduo no fornece condies aos trabalhadores para que voltemao trabalho no dia seguinte, durante um certo perodo de vida til,seja esse trabalhador um escravo, um servo ou um assalariado,ento a sociedade humana no se sustenta e se extingue. necessrio que o trabalhador tenha, entre um perodo e outro detrabalho, um certo repouso, alimentao e os elementos essenciais

    de abrigo para si e tambm para sua famlia, a fim de que o processode produo seja contnuo, no se interrompa, siga de um dia paraoutro, indefinidamente. Ento, o que o salrio paga a fora detrabalho, aquilo a que se chamam os bens-salrio.

    Mas, como demonstrou Marx, apenas e unicamente otrabalho, como uso da fora de trabalho, cr iador de algo novodo ponto de vista produtivo. As mquinas, as coisas inertes nocr iam nada de novo. Dela se transfere uma parcela do valorque elas possuem, cr iadas que foram pelo trabalho, aos novosprodutos. Mas o trabalho, no tempo em que ele se exerce, sejade 8, 10, 12, 14, 15 horas conforme a poca, reproduz um valorigual fora de trabalho e um excedente que apropr iado pelo

    capi ta l ista. Este excedente Marx denominou de mais-val ia. Marxestudou a mais-val ia na sua forma geral . Os f is iocratas Turgote, sobretudo, Franois Quesnay viram a mais-val ia como a rendada terra, como uma forma part icular . Em Smith e Ricardo, amais-val ia sobretudo o lucro. Marx desprendeu a mais-val iade suas formas part iculares renda da terra, lucro industr ia l ,lucro comercia l e juro do capi ta l de emprstimo e pdeestud- la no seu carter de excedente geral do trabalhoexplorado pelo capi ta l . Esse o objet ivo do l ivro pr imeiro de OCapita l . O estudo de como o trabalho explorado nas fbr icas,onde os trabalhadores so empregados pelos capi ta l istas, comose d esse processo pelo qual a fora de trabalho se reproduz

    e, a lm disso, produz o excedente, que a mais-val ia.No livro segundo, Marx estuda o processo geral de reproduoe circulao do capital, ainda sem levar em conta as variaesespeciais do capital, como o capital industrial, comercial, bancrio,etc. o capital em geral, no seu processo de reproduo. Comoele se reproduz e circula, e como ele passa de uma forma outra.

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    Ele v, a, esse processo geral que inclui todo o circuito do capitalem ciclos sucessivos sob dois aspectos: o capital, como valor deuso e, para isso, ele divide o processo geral em dois departamentos,em duas sees fundamentais: o departamento de bens deproduo e o departamento de bens de consumo. Por outro lado,ele aborda o processo de reproduo do ponto de vista do valor docapital, ou seja, do seu contedo como cristalizao do trabalho,morto ou vivo. O capital constante, que o trabalho morto, e ocapital varivel, que a fora de trabalho, isto , o capital que cresce,que varia, enquanto o outro constante. Todo esse movimento estudado na sua extraordinria complexidade e, sem dvida, Marx,no livro segundo, oferece uma contribuio das mais importantes,

    seno a mais importante at hoje ao estudo da macroeconomia.Enquanto o livro primeiro se concentra na empresa, o livro segundose concentra na macroeconomia. s no livro terceiro que Marxvai estudar os capitais individuais em sua concorrncia uns comos outros, como essencial ao mercado capitalista. A que vaiaparecer a lei da taxa mdia de lucro. a tambm que Marx vaiintroduzir a categoria de preo de produo, isto , vai demonstrarque, no mercado capitalista, as mercadorias j no se apresentamconfrontadas como valores, mas como preos de produo, ou seja,o valor j est na mercadoria metamorfoseado em preo deproduo. Esse um dos pontos mais debatidos pelos adversriosde Marx.

    Marx parte da tese da troca de equivalentes, que umpressuposto do primeiro e do segundo livros. Porm, j no livroterceiro, afirma que as mercadorias, quando se trocam no mundoreal, s por acaso se trocam como equivalentes, porque j estometamorfoseadas e se apresentam umas diante das outras deacordo com seus preos de produo. Da porque Max Weber eBenedito Croce, e alguns crticos atuais, afirmarem que a lei dovalor apenas um instrumento heurstico, que no existe no mundoprtico, uma vez que o prprio Marx afirmou que no existe nomercado capitalista troca de equivalentes. Seria possvel nummercado de pequenos produtores, porm este, na realidade, nuncaexistiu. No mundo real, nunca houve esse mercado de pequenosprodutores, estvel e funcionando com regularidade, onde se

    praticasse de fato a troca de equivalentes. Ento, a lei do valor etodas as outras categorias de Marx nessa obra, seriam uma hiptesede carter heurstico ou um tipo ideal, de acordo com Max Weber.O que acontece que Marx parte dos fenmenos, ou seja, dasaparncias para a essncia. uma afirmao dele que se a essnciase apresentasse de maneira direta e imediata, ento no haveria

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    necessidade da cincia. As coisas j seriam evidentesempiricamente por si mesmas, bastaria descrev-las, no haverianecessidade de uma pesquisa analtica e sobretudo dialtica. Aessncia se esconde atrs de aparncias, de fenmenos, e otrabalho da cincia justamente ir alm dos fenmenos e, paraisso, no caso de uma cincia como a economia poltica, oinstrumento que se pode usar a abstrao, uma vez que no sepode trabalhar em laboratrio com economia, no se podereproduzir a sociedade em laboratrio e nem se pode fazer com asociedade experincias como em seres vivos, seno de maneiramuito limitada. De fato, os governos fazem experincias e ns,brasileiros, temos sido vtimas de tantas delas, desastrosas, mas

    isso muito limitado. Nunca como num laboratrio onde os fatoresso isolados e devidamente controlados. O instrumento de quedispe o economista fundamentalmente sua capacidade deabstrao e Marx levou muito longe esta capacidade de abstrao,de essncia em essncia, aprofundando-se em essncias cada vezmais escondidas. Ele tinha que chegar a um ponto de onde j nose podia ver diretamente a realidade.

    Parece haver uma contradio entre o mundo real e as essnciasdesvendadas por Marx. Mas no foi assim, porventura, tambmcom a astronomia? Porventura, durante milnios, os homens notiveram a certeza de que o sol girava em torno da terra? No eraisso o que dizia o sistema de Ptolomeu? No foi somente a partir de

    Coprnico que se passou a suspeitar e depois, com Galileu e Kepler,ter a certeza de que, ao contrrio, era a terra que girava em tornodo sol? Quer dizer, confiar nas aparncias enganoso, no c ien t f i co .

    Mas qual a prova de que as essncias que Marx desvendou soverdadeiras? A prova est nas concluses que se tiram a partir delas.Concluses a que me referi no incio da conferncia. O desempregocrescente, as crises cclicas, a acumulao da riqueza num plo e damisria no outro, a concentrao e a centralizao do capital, ainternacionalizao do processo produtivo, o fetichismo damercadoria e do capital. Tudo isso se extrai desse sistema decategorias e tudo isso vem sendo comprovado pela histria do

    capitalismo. Por isso, O Capital conserva plenamente a sua atualidade,suas categorias continuam a ser fecundos instrumentos de trabalho.

    Infelizmente, o socialismo de Estado que, apresentando-secomo inspirado em Marx, se estabeleceu na extinta Unio Sovitica,nos pases do Leste Europeu e nos outros pases socialistas queainda sobrevivem, foi o pior inimigo do marxismo como criao

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    terica, porque o esterilizou, impediu que durante 50 ou 60 anospudssemos avanar na trilha do pensamento marxista. Avanamosmuito pouco por causa dessa esterilidade, por causa dessasbarreiras que o socialismo de Estado, cristalizado no chamadomarxismo-leninismo emanado de Moscou, imps a tantos crebrosfiliados ao movimento comunista no mundo inteiro.

    Paradoxalmente, a extino do socialismo de Estado pode vira ser, e eu acredito que vir a ser, um impulso para uma nova ondade criatividade marxista, verdadeiramente marxista, na trilha de OCapital. Aqui, quero me referir a outros aspectos dessa obra notempo de que disponho e considerando o carter de confernciain t rodutr ia .

    O Capital no s uma obra de economia poltica. Alis, o seusubttulo Crtica da Economia Poltica, da economia polticaburguesa. Mas no s uma obra de economia poltica, uma obraem que Marx lana mo de todos os instrumentos possveis eacessveis das cincias sociais de sua poca. No h, nela, apenasraciocnios abstratos, frmulas, mas um constante vai-e-vem entre aabstrao e os fatos concretos, o mundo real, o mundo histrico emque os homens vivem. O Capital ao mesmo tempo uma obra dehistoriografia e sociologia, de antropologia, de demografia, depolitologia, de histria do direito e de tecnologia. Marx foi um dosmaiores historiadores de todos os tempos. Isaiah Berlin, conhecidopensador liberal ingls, d a Marx a paternidade da historiografia

    econmica, fundador da histria econmica, porque em O Capitalvamos encontrar, com freqncia, captulos ou sees de captulosque so verdadeiras monografias historiogrficas. Ali temos a histriado dinheiro, de como surgiu o dinheiro, a histria das fases do prpriocapital, da cooperao simples, da cooperativa, da manufatura e dafbrica mecanizada, o clebre captulo 24 do livro primeiro, que ahistria da acumulao primitiva, de como o capital nasceu do nocapital. Ou seja, de como o capital nasceu de processos nocapitalistas, incluindo a violncia do Estado e da classe exploradora,a expulso dos camponeses, o colonialismo, o trfico de escravos, osaque das colnias, a dvida pblica. Enfim, os numerosos processosque levaram concentrao do capital e formao de uma massa

    de homens que, despojados da terra e de qualquer meio de produo,foram coercitivamente obrigados a se tornar assalariados. Depois, oprprio hbito das relaes de produo capitalistas iria entranharnos assalariados o hbito de se deixar explorar.

    O Capital contm numerosas monografias historiogrficas, almde referncias esparsas, riqussimas. Encontramos nos chamados

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    Grundrisse, de 1859, os elementos fundamentais da economiapoltica, particularmente no captulo sobre as formas precedentesdo capitalismo, um captulo fundamentalmente historiogrfico. Masencontramos tudo isso tambm em O Capital. E, ao lado disso,temos estudos, no raro circunstanciados, sobre as condiessociais em que se processaram os fenmenos econmicos. Ahistria da Revoluo Industrial, da dizimao de geraes detrabalhadores pelas fbricas, o trabalho extenuante de mulheres ecrianas de dia e de noite, durante 15 a 17 horas por dia, pois nohavia limite proibitivo na legislao. Marx era um leitor atento detudo o que era produzido na poca pelos pesquisadores oficiais,pelos inspetores do trabalho que ele elogia como honestos, quando

    reproduzem as condies extremamente cruis da revoluoindustrial. Soma-se a isso estudos de demografia, de legislaodo trabalho, de legislao penal, de poltica. E ainda as razesexplicativas de tal ou qual posio deste ou daquele Estadoburgus, particularmente na Inglaterra, tomada como campoprivilegiado de observao e estudo, a histria da propriedade daterra, do seu desenvolvimento, a histria da tecnologia, assuntosobre o qual Marx demonstra possuir conhecimentos minuciosos.A ateno que ele dedica a essa questo extraordinria, no queteve grande ajuda de Engels, alm do auxlio em particular noestudo das finanas. Marx fez, tambm, observaes que sepoderiam chamar hoje de ecolgicas. Chamou a ateno para ocarter predador da agricultura capitalista, como ela esteriliza a

    terra com as vistas curtas para o lucro imediato, como o sistemade arrendamento contrrio preservao da fertilidade da terra.Fez estudos sobre a necessidade de aproveitamento do quechamamos de lixo, como o lixo pode ser reciclado e, ao invs deser jogado fora e empestear o Tmisa, o rio que corta Londres, serdevidamente trabalhado e devolvido aos homens como matriatil. Estudou a famlia, a famlia operria e a famlia burguesa, odireito de herana. E isto que rarissimamente se encontra emobras de economistas profissionais dos dias de hoje, da Escola deChicago ou de Harvard.

    O Capital de fato uma obra interdisciplinar. A economiapoltica a se apia num conjunto de cincias sociais que, naquela

    poca, estavam apenas dando seus primeiros passos e, s quaisMarx d uma contribuio vigorosa. Em particular, gostaria, antesde terminar esta parte, de me referir antropologia que Marxapresenta em O Capital. A antropologia de Marx a da relao dohomem com a natureza, do homem que trabalha a natureza. Estali a clebre comparao que ele faz entre o arquiteto e a abelha. A

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    abelha tambm elabora uma arquitetura, espantosamente funcionalnas colmias, mas o faz por mero instinto, e de maneira inaltervelatravs, talvez, dos milhes de anos de existncia dessa espcie.J o mais modesto arquiteto, quando constri uma casa, j a pensaantes de sua construo, tem o desenho dela numa planta, isto ,o homem a nica espcie que projeta o trabalho que realiza.Essa caracterstica a base antropolgica para Marx. A relao dohomem com a natureza se d atravs do trabalho projetado e, porisso, um trabalho que tem histria, que se desenvolve. Da odesenvolvimento das foras produtivas do homem e, emconseqncia, das suas relaes de produo. Da, tambm, amudana das formas sociais de agregao dos prprios homens.

    Esta a antropologia que Marx desenvolve em O Capital e que jno tem relao com a antropologia de Feuerbach, o qual via ohomem como gnero natural, como espcie biolgica.

    Gostaria, tambm, de fazer alguma observao sobre asvicissitudes de O Capital, decorrido j um sculo ou mais desde amorte de seu autor. Para a construo dessa obra, Marx partiu doprincpio da espontaneidade das leis econmicas do capitalismo.O mercado que ele tinha em vista era um mercado caracterizadopela anarquia. Anarquia no desordem, baguna, anarquiasignifica que no h uma regulamentao prvia do mercado, oque no quer dizer tambm que inexiste qualquer regulao. Marxconcebia a lei do valor como a lei reguladora do capitalismo, masuma regulao que, s por acaso e em momentos muito efmeros,chega a situaes de equilbrio.

    caracterstico do capitalismo a ocorrncia de situaes dedesequilbrio no interior das quais atuam foras que procuramequilibrar o sistema. H uma contradio permanente entre aquelasforas espontneas de mercado, que impelem ao desequilbrio pormltiplas razes, e a lei do valor, que procura espontaneamentepr alguma regulao no sistema e, por isso, o sistema funciona;de outra maneira, ele no funcionaria. O termo anarquia no podeser tomado no sentido de baguna, nem de desordem total. Aprpria lei do valor desequilibra o sistema e ao mesmo tempo,espontaneamente, o impele para o equilbrio que, como disse, sempre um momento raro e efmero. Mas, justamente porque no

    h regulao que o capitalismo cclico. Ele atravessa fases deanimao, de prosperidade e de auge e cai na crise e, depois, noseu prolongamento depressivo. isso que se chama hoje derecesso. O que Marx apresentou no apenas descritivamente, masexplicando tambm, os fatores que logicamente, de maneirainelutvel, conduziam trajetria cclica do capitalismo.

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    A escola neoclssica ou marginalista de Bohm-Bawerk, Mengere Walras, tambm se baseou na espontaneidade do mercado, maschegando a uma concluso contrria de Marx, a de que omercado, deixado livre por si mesmo, atinge as condiesotimizadoras de equilbrio. Segundo os marginalistas, seria ainterveno no mercado, feita por monoplios pblicos ou privados,ou a interveno despropositada do Estado, que levaria aodesequilbrio. O mercado, por si mesmo, seria capaz de se equilibrarem condies de utilizao tima dos fatores.

    Esta tese da escola neoclssica ou marginalista veio abaixo coma Grande Depresso de 29 a 33, a pior da histria do capitalismo,que abalou todo o sistema, gerando uma massa enorme de

    desempregados, queda violentssima da produo, destruioenorme de mercadorias e assim por diante. Uma crise que era maisdo que cclica. Na verdade, ela ocupou toda a dcada de 30 com aestagnao econmica. Dela o capitalismo s pde sair depois daSegunda Guerra Mundial. Aqui, gostaria de repetir uma observaodo socilogo ingls Antony Giddens, que recentemente esteve aquino Brasil. Ele afirma que se fala de modernidade com tudo o que oconceito implica de revolucionamento na vida social, de quebradas tradies, mas preciso tambm mencionar que amodernidade trouxe consigo os maiores massacres da histriahumana, que ela tambm se caracteriza por sua destrutividade. Sas guerras do sculo XX custaram mais de 100 milhes de vidas,

    algo que no tem comparao com as guerras do passado.Mas justamente esta crise, esta Grande Depresso dos anos 30veio trazer, na prtica e na teoria, uma certa reviravolta naconcepo burguesa do prprio mercado. O New deal do presidenteRoosevelt, nos Estados Unidos, e depois a teoria de Keynes sobre odinheiro, os juros e o emprego, se opuseram tese de que omercado espontaneamente tende ao equilbrio e defenderam, aocontrrio, a necessidade da interveno do Estado. Por conseguinte,a partir da escola de Keynes, a teoria econmica burguesa deixoude tecer loas ao automatismo do mercado como capaz de atingirestgios de equilbrio e passou a inventar dispositivosintervencionistas, que estimulassem a economia, que a fizessem

    andar e, dessa maneira, propiciassem emprego.Keynes compreendeu que o desemprego, sobretudo odesemprego de dezenas de milhes como o que ocorria na dcadade 30, era algo extremamente perigoso para a sociedade burguesa.O seu objetivo no tinha nada a ver com idias socializantes ou debenefcio aos trabalhadores. O que ele tinha em vista era a salvao

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    da sociedade burguesa e, por isso, ele confiou ao Estado a regulaodo mercado. Durante muito tempo, houve quem acreditasse napossibilidade aludida por Keynes, de um permanente equilbrioatravs dessa interveno. A social-democracia, sobretudo, tiroude Keynes sua inspirao terica. Na prtica econmica,abandonou Marx porque este nunca teve em vista a salvao dasociedade burguesa, mas o contrrio. Keynes foi, ento, aplicadona Sucia e, no ps-guerra, na Alemanha, na Inglaterra, na Franae em numerosos outros pases. Mas os recursos keynesianos,chamados anticclicos porque capazes de deter o ciclo, mostraram-se, digamos metaforicamente, intoxicantes do prprio sistemaburgus. Foi inevitvel que a poltica keynesiana conduzisse a umaestatizao cada vez maior, a uma ampliao do setor estatal daeconomia e, com isso, tambm aos efeitos inflacionrios. Da olimite do keynesianismo nos anos 70, quando foi declarado falidodiante de uma inflao crescente nos Estados Unidos e nos outrospases capitalistas; e a necessidade, ento, de reagir contra osmtodos keynesianos e de apelar para os mtodos decorrentes dateoria neoliberal. A partir de ento, o grande terico Friedman.Contra o keynesianismo, erige-se o monetarismo de Friedman e,junt o com ele, a teor ia neol iberal ex tr em is ta e ri go rosa de Haye k ea teoria poltica e sociolgica de Karl Popper. Podemos dizer que atrindade terica do neoliberalismo est nesses nomes Friedman,Hayek e Popper. Eles passam a ser os inspiradores dos neoliberais.No por acaso, a metade dos prmios Nobel de economia conferida

    at hoje agraciou o prprio Friedman e a seus discpulos da Escolade Chicago.

    Hoje, face recesso, h uma certa volta a Keynes. Isto seobserva na plataforma do candidato Clinton e em algumaspropostas que ele fez como presidente, mas ainda no aprovadaspelo Congresso americano, e nas prticas que o governo japonsest empregando para conseguir salvar a economia japonesa darecesso, que a acomete gravemente neste momento.

    A questo da regulao da economia pelo Estado foi imprevistapor Marx. No uma questo tratada em O Capital. Como j disse,Marx tem sempre como pressuposto a espontaneidade das leiseconmicas e a espontaneidade das tendncias reguladoras dosistema capitalista pela lei do valor. Ento, a teoria de Keynes ,sem dvida, uma teoria importante, uma contribuio notvel economia que os marxistas no podem de jeito algum desconhecer,como infelizmente desconheceram durante muito tempo,declarando-a uma teoria fantasiosa. Sem dvida, uma teoria

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    l imitada porm no fantasiosa. Deve ser considerada, como deveser considerado o papel do Estado na economia capitalista atual.

    O capitalismo no pode funcionar hoje sem o Estado, aindaquando os economistas afirmam o contrrio. Mesmo na prtica doneoliberalismo, a economia capitalista est impregnada deinterveno do Estado. Apenas a ttulo de exemplo, citemos osgovernos Reagan e Bush nos doze anos de domnio republicanonos Estados Unidos, quando o Estado interveio para salvar grandesmonoplios e bancos, que estavam beira da falncia. No governoBush, o Estado gastou mais de meio trilho de dlares para salvaro sistema de cadernetas de poupana, que tinha se atolado eminvestimentos especulativos, estava beira da falncia e somente

    com aquela soma, que maior do que a dvida externa da AmricaLatina, foi possvel salvar o sistema. Isto poltica keynesiana, comoo foi todo o armamentismo de Reagan, todos os gastos que ele fezduplicando e triplicando as despesas militares, praticando umkeynesianismo do tipo militarista. impossvel para ns fazeravanar a teoria marxista sem considerar esses fenmenos novosque, de fato, no tm registro em O Capital. A criatividade domarxismo indispensvel sob esse aspecto e tambm na questodo socialismo e do mercado.

    Uma obra j conhecida e traduzida aqui em portugus, do autoralemo Robert Kurz, que esteve duas vezes em nosso pas, d umanfase muito grande ao fetichismo da mercadoria e procura mostrar

    que o desmoronamento dos regimes comunistas do Leste no foiseno uma parte da crise terminal do capitalismo. Comeou como Terceiro Mundo, passou para o sistema dito socialista (o LesteEuropeu) e agora atinge finalmente o prprio sistema dos pasesdesenvolvidos. Creio que Kurz comete um erro lgico ao consideraros pases do Leste Europeu como integrantes do sistema capitalista.No me parece correto, nem do ponto de vista lgico, nem do pontode vista emprico. A meu ver, eles constituram uma fratura dosistema capitalista mundial, tanto assim que durante a sua vigncia,o capital internacional no tinha como ser ali aplicado e, sobretudo,veja-se a dificuldade hoje de instaurar o capitalismo sobre o terrenodo socialismo de Estado. No digo impossibilidade, mas a enormedificuldade que isso implica j demonstra que aqueles pases nofaziam parte do sistema capitalista mundial. At agora, em todosaqueles pases, o que existe de capital privado continua secundrio,marginal; o fundamental ainda est nas empresas do Estado.

    Quando se fala em privatizao dessas empresas, em muitoscasos, faz-se referncia s empresas que so geridas pelos coletivos

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    de trabalhadores, arrendadas a eles ou adquiridas por eles comoacionistas junto com os diretores e com alguma parte de acionistasprivados. As excees existem, mas so poucas. Ento, eu pensoque essa tese de Robert Kurz carece de fundamento histrico elgico, no explica porque o Leste desmoronou. Desmoronouexatamente porque no soube compatibilizar a construo dosocialismo com as categorias de mercado, porque essas nopodem ser abolidas assim que os trabalhadores tomam o poder. impossvel eliminar de imediato categorias como mercadoria,preo, salrio e lucro que permaneceram na Unio Sovitica,continuaram a ser usadas como categorias, porm violadas na sualgica e, por isso, chegou-se a um beco sem sada que resultou nocolapso e no desmoronamento.

    Mas se h de se construir o socialismo, no ser com ummercado capitalista, no ser com um mercado que se desenvolveespontaneamente. Mas qual mercado? A est um campo para acriatividade marxista, tendo em vista que o socialismo ainda virnuma segunda onda, suscitado pelas contradies e impassesinerentes ao capitalismo. No no prazo de hoje para amanh,catastrofista e terminal, como Kurz sugere. No compartilho a idiade que o capitalismo esteja beira de uma catstrofe, porque noh foras revolucionrias no mundo que o ponham abaixo. Ocapitalismo no vir abaixo s pela dinmica de sua economia,ele ter que ser derrubado por foras polticas revolucionrias, e

    essas inexistem com capacidade para faz-lo. Certamente, noser de um momento para outro que elas se formaro no mundo.Ento, sem este catastrofismo, entretanto, creio que o capitalismosuscitar uma nova onda de lutas pelo socialismo. Porm, terque ser um socialismo com propostas diferentes daquele que, semdvida, no deu certo. Em determinado sentido, um socialismoque se apresente compatvel com as categorias de mercado queno podem ser imediatamente abolidas, que persistiro talvez pormuitas dcadas ainda, ao contrrio do que Marx previa na Crticado programa de Gotha.

    Ainda havia em Marx uma idia utpica de que com a chegadados trabalhadores ao poder, o mercado desapareceria e, com ele,

    a lei do valor. Pela experincia concreta que conhecemos, noparece que isto seja possvel. Creio que o mercado desaparecer.A tecnologia levar a isso na medida em que ela vai reduzindocada vez mais a necessidade da contribuio do trabalho para acriao de uma certa quantidade de produtos. Ento, a necessidadeda diminuio da jornada de trabalho, que hoje os trabalhadores

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    no conseguem obter porque esto desfigurados e desagregadospela revoluo tecnolgica, com o tempo levar cada vez mais queda do valor agregado em cada processo produtivo, at um pontoem que este valor ser to prximo do zero que ser desprezvel.Nesse momento, ou perto dele, a lei do valor poder serdesconsiderada e, nesse caso, tambm o mercado desaparece.Isto foi previsto por Marx, est nos Grundrisse, mas um processomuito demorado. Embora acelerado agora pela revoluotecnolgica, mas, para chegar ao ponto de anular a lei do valor,ainda vai uma distncia enorme. Ento, nessas condies que osocialismo ter que enfrentar a realidade do mercado.

    Esta uma nova questo, no proposta por Marx, e tem que ser

    focalizada pela criatividade marxista de nosso tempo. O Capital,quero encerrar, atual, fortemente atual, uma obra imortal, umaescola de pensamento. Ali, o mtodo dialtico perpassa pgina porpgina, linha por linha. uma obra de economia, de sociologia, deantropologia, de demografia, particularmente no que se refere questo do exrcito industrial de reserva, dos desempregados comofuncionalmente necessrios ao capitalismo. Uma obra, enfim, queabarca todo o mbito das cincias sociais. Mas, se quisermos serfiis ao esprito dela, precisamos dar prosseguimento criatividadede que ela oferece to eminente exemplo.