gomes leal - fim de um mundo - satiras modernas

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    Digitized by the Internet Archivein 2010 with funding from

    University of Toronto

    http://www.archive.org/details/fimdeummundosatyOOIeal

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    Fim de umMimdoa^ 7// iAS MODERNAS

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    D'esta c.ii o tiraram-se 4 exemplares em papel especial

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    GOMES LEAL

    Fim de um MundoSATYRAS MODERNAS

    PORTOLIVRARIA CHARDRONDE LELLO & IRMO, EDITORES

    1899Todos os direitos reservados.

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    Propriedade dos Editores

    Porto Imprensa Moderna

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    AO DR. CAMPOS SALLESPresidente i Republica dos Eslados Inidos de. Brazil

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    CARTA

    DR. CAMPOS SALLES

    Illustradissimo Senhor

    1 ermina o sculo no meio de um apocalypse so-cial ; no meio de farrapos de declamaes ; farrapos lu-sentes de theorias ; farrapos trgicos de esfomeados. .

    Como, nos finaes do melodrama romano, os rhe-toricos declamam, emquanto os belfurinheiros batem porta, e a gentalha se esbofeteia. Quebrani-se os vidrosdos palcios, e applaudem-se os polemistas, os tenores,e os arlequins dos circos. Que importam porm as vi-draas dos palcios, fiammej antes das lmpadas elctri-cas, ou dos candelabros? . . . a alguma cousa de maisalto, mais inviolvel, mais espiritual, que se atirampedras. O direito, a moral, as religies, as instituies,os costumes, as conscincias, como pardieiros velhose escavacados, por onde passou a labareda de um

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    CARTA AODR. CAMPOS SALLES

    incndio, ou o solavanco de um cataclismo, mostram,por toda a parte, os buracos ... Os financeiros conti-nuam a cegar-nos os olhos com os seus botes deouro ; a pompear os seus theatraes peitilhos de jaspe,decorativos ; mas a civilisao hodierna christ repre-senta a tnica de Christo em frangalhos.Ha desenove sculos que dura a civilisao chris-t : e ella caminha, pavorosamente, a passos agiganta-dos, para um enlaivecimentomaiorqueoenlaivecimentoromano. Acaso a dynastia dos banqueiros contempor-neos mais honesta que a dynastia dos Csares, oudos Augustos?... No . A lama de Panam, de Dreyfs,de Hooley, valem bem os mysterios da casa de ourode Nero; as libertinagens de Jlia e de seu pae; osenxurdeiros de Heliogabalo ; e as torpezas bestiaes doimperador Cludio, o senil idiota. Vanderbilt, o millio-nario yankee, gastando no fecho de uma porta unscertos milhares de dollars, to desequilibrado comoCalgula, construindo pai*a o seu corcel Itacus acaprichosa mangedoura de marfim. A demncia desor-denada do fausto ridculo a mesma. A besta huma-na, que descubriu de Maistre, continua a ter as mes-mas orelhas de jumento, e a mesma cauda de pavo.Em que se differenam as demencias ornamentaesdos banqueiros contemporneos das demencias dosantigos Csares 1 ... Em no se permittirem acaso oluxo do Circo, e dos martyres s feras ? . . . Issomesmo elles teem :o circo a Bolsa, os martyres soos povos, elles so as feras.

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    CARTA AO DR. CAMPOS SAI.LES

    Por que pois, de preferencia, uma campanha con-tra os banqueiros hebraicos, os Reinach, ou os Rots-child?... Todo o financeiro, seja qual fr a sua origem, de temperamento judaico. Todo o argentario des-cendente do patriarcha Jacob e da donairosa Rachel.Christo, tendo pregado aos seus discpulos, n'essa ar-rendada Jerusalm das parbolas e dos cnticos, queandassem sem sandlias e sem bordo, foi to escutadopelos seus pontfices, que usam thiaras de ouro. quecaricaturam soes, (como sacerdotes da Assyria,) comoDigenes, vivendo dentro de uma barrica, foi escutadopelos companheiros de Alcibades, que pompevam ci-garras douradas nos cabellos, ou pelos velhos andrgi-nos que faziam a sua corte corinthia Lais. O magne-tismo da Corrupo to satanicamente mortal como avertigem de um homem que se debrua n'uma cisterna.Ambas teem lama, e ambas attrahem para a lama. Am-bas teem gneses e procisses de soes, por cima: masvasa e pedregulhos em baixo.

    Todo o mundo contemporneo caminha hoje, s ce-gas, s tontas, como um morcego doido de sol, para umabysmo : que a bancarrota moral. A bancarrotafinanceira dos estados dessorados e moribundos, se-gundo a phrase cyprestal de lord Chamberlain, ape-nas uma consequncia da primeira. Quem dissoluto,perdulrio, amigo dos metaes, dos deboxes, dos pe-lotiqueiros, dos ribaldos e palhaos, no pode seruma conscincia alada. As civilisaes decadentes ter-minam sempre pelo amor do metal e da bestialidade

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    CARTA AO DR. CAMPOS SALLES

    humana. A Vnus Pandemia, da Elida, estava sentadasobre um bode com chavelhos de ouro. As patrciasromanas profanavam-se aos Lucullos e aos gladiado-res: a decadncia actual mostra pendor para os ban-queiros, os cavallarios, e os alquiles ... A fallenciamaterial attesta quasi sempre uma derrocada, um des-equilbrio moral. Pelo contrario, os estados simples at-testam um rebanho espiritual de almas simples. Sosempre um aggregado singelo e bom de pastores, la-vradores, ceifeiros : homens tostados da serra ou domar: tranquillos amigos da famlia, das paisagens, dasimplicidade: do lume bom e alegre da lareira. Eu noquero dizer, Senhor, que os parasos musicaes e vellu-dosos da Civilisao no adormentem e amolleam asalmas artsticas, com os seus tymbales mgicos, tofatidicos como os da deosa Cyble:quero dizer ape-nas que as Civilisaes teem sido como as sereias daslendas marinhas dos mares do Sul : todas acabam sem-pre n'uma cauda de monstro. No quero dizer tambmque s as naes, financeiramente arruinadas, accusamirremediavelmente um enlaivecimento moral. Querodizer apenas que um mo symptoma : e que, se asndoas violceas das gangrenas desapparecem comcompressas camphoradas, esta fcies mortal is, esteaspecto cadavrico dos estados, um aspecto de moagouro: abrem sempre o appetite aos polticos da cova.No quero dizer tambm que os estados mais prspe-ros sejam os mais indemnes da vasta corruptella mo-ral que lavra, peor>do que a lepra de que se lastimava

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    CAPTA AO DR. f.AMPOS SALLES

    Job, na sua montureira de Hus. A ser assim, a GrBretanha, com as suas arcas abarrotadas de librassterlinas, e barras de ouro resplandecente das ndias,seria, decerto, um espelho de virtudes campesinas epastoraes. No : so pelo contrario, a maior parte des-ses estados bandoleiros e dinheirosos, que do peresexemplos ao mundo, alliando a rapinagem dos primiti-vos aventureiros piratas com a hypocrisia emolliente eoleosa dos que se dizem ovelheiros de Jesus. A cor-rupo d'esses estados agcha-se e enrodilha-se na pe-numbra: fica acocorada na sombra e nos latibulos da es-curido: at que venham, acaso, clarearas arestas d'essapenumbra, a estola urea da Justia, o facho da Ver-dade, ou a tocha escarlate de Judas. Esta decomposi-o no suppra exteriormente : no se distingue superfcie: por que a mascaram bem por fora, comoos tmulos caiados do Evangelho; mas, como ella estfermentando no fundo, os gazes no tardaro a decom-pr-se: e a obra da dissoluo, irreparvel e irreme-divel, se far a seu tempo. Soaro, ento, para essesestados metallicos e egostas os responsrios dos mor-tos, n'essa hora sonora e melodramtica, em que aHistoria manda armar o catafalco dos imprios nasala dos seus agpes.

    Estamos n'uma hora funrea da sociedade mo-derna: cheira a cadveres, ainda que, das bandasglidas do Neva, soem palavras idyllicas de paz. Che-gou como que um momento de desencanto aos espritosmenos idealistas, ao verem que os estados teem menos

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    CARTA AO DR. CAMPOS SAI.t.KS

    moral de que os reclusos das gals. A grande massacheia de farrapos, andrajos, tribulaes, desespe-ros, soluos e dores, comprehende vagamente que burlada pela moral dos Cdigos. Quando ella ocomprehender, nitidamente, como um theorema geo-mtrico, o que succeder ? . . . preciso contar comessa desdenhada ral que soffre, com essa anonyma es-cumalha das crucificaes e das tavolagens . . . Quempoder refrear essa onda lavosa, revolta, faminta,esguedelhada e barbara, que querer escavacar osidolos de quem temeu os raios ; que a mandarampara os desterros, as gals, as epidemias, os treme-daes, as insolaes ; ante quem ella chorou derastos, a quem se enlaivou, a quem se prosti-tuiu, a quem beijocou os ps?... Sim, por que oque foi essa moral ? . . . Uma teia de aranha que es-trangulava os mosquitos, e deixava passar os abu-tres. Penitenciarias para os moedeiros falsos, os va-dios e ribaldeiros, os farroupilhas tunantes, os ban-doleiros de viella : palmas, fanfarras regimentaes,estatuas e hossanahs, para os sublimes larpios queregressam como heroes . . Enforquem-me esse lividobandalho, que assassinou e esquartejou essa velhaoctogenria : enramem de louros a fronte d'aquellecatholico generalssimo, que passou espada qua-renta mil habitantes . . . Condemnem a trinta an-nos de gals aquelle pallido pandilha, que fal-sificou uns recibos de administrao : collquemno Pantheon o corpo sagrado de Bismarck, o di-

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    CAUTA AO DR. CAMPOS SALLES

    vino, que falsificou um telegramma de Napoleo III,e pilhou duas provncias inteiras ao gaulez inimi-go . . . Moral humana, como s preclara, equitativa,feiticeira, e pontifical ... Formae vossa imagemheroes, patriarchas, e idolos ; de ouro ou pedrasfinas, de marfim ou do purpurino prphyro ; queesses idolos, como so fallaciosos como vs, ho-de cair perante a critica da raso pura. O Absurdovos far ruir por terra, por que o Absurdo uma ci-dadella na areia. Tnica de Christo, foram os legion-rios romanos que te jogaram aos dados ; mas os quete ho feito em farrapos, foram os teus espirituaespontfices, que vendem indulgncias a ouro; foramos teus estados christianissimos que fazem papel demaus ladres; foram os teus piedosos reis, que so ho-micidas ; foram os teus chancelleres de ferro, que se fi-zeram falsarios. Sociedade formalista e falsa ; beata edengosa; mundana e amiga de latisperennes, parecesviva ainda, mas j ests violcea e podre: porm,como foste um monstro curioso e clebre, compromet-ti-me a fazer a tua autopsia.A sociedade, Senhor, assistir muito breve a umconflicto de raas esfomeadas. Vo comear as rapinasbarbaras dos belfurinheiros no mundo negro. A Euro-pa, como presentindo um cataclysmo, trata de mudar asua moblia pressa, como um inquilino assombradoque mora cerca de um vulco. Ella quer alliar a religiocom as suas pilhagens e crpulas, como um salteadorbeato, ou um crapuloso cheio dos livores das orgias,

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    CARTA AO DR. CAMPOS SALLES

    que se persigna luz fumacenta das alfurjas e das taber-nas. Mas eis que muito breve os diplomatas levantaroas mascaras :e apparecero os milhafres, os leopardos,os chacaes. Eis todo um mundo velho que se descon-junta e esfrangalha: eis todo um mundo novo que serevolve n'um ventre de abominaes, suores malditos,e dores ... O que cumpre fazer, deante da guella es-cancarada da Esphinge ensanguentada, que devora asraas que no adivinham os seus pallidos enigmas ?. .Tratar de dar soluo latssima s ameaadoras questesque pendem dos seus lbios trgicos. E esses enigmasso : a questo das religies, a questo econmica,a questo da terra, a questo do suffragio, a ques-to das raas, a questo da educao. Como resol-ver a questo das religies ? Pela tolerncia de to-das. Como resolver a questo econmica ? Forman-do de toda a sociedade uma federao de trabalha-dores todos com um salrio consoante as suas necessi-dades pessoaes, ou de famlia. Como resolver a questoda partilha da Terra ?No a dividindo nunca. Fazendoa federao internacional de todos os que aram o solo, ede cada lavrador um rendeiro da communidade. Todo ohomem deve ter noes de agricultura, ainda que se desti-ne a outro mister : todo o homem deve estar apto, ataos cincoenta annos, a saber defender a terra e a saberlavral-a: a ser soldado e a ser lavrador. A idea de p-tria estreita perante a da federao humana.Comoresolver a questo do suffragio ? Tornando o alpha-beto obrigatrio como a vacina, e considerando eleitor

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    CARTA AO DB. CAMPOS PAL.ES

    todo o que souber lr, e, portanto, formar critrio.Como solver a questo das raas ? Proclamando agrande hegemonia humana ; a intima solidariedade dosestados fracos contra as iniquidades dos fortes ; fun-dando um tribunal internacional, presidido, no porjuristas argutos, ou por diplomatas subtis; mas pormoralistas e intellectuaes da craveira de Spencer, Laf-fite, Virchow, Lefvre, ou do saudoso e amoravelMichelet. Como, finalmente, resolver a questo funda-mental do Ensino ? Tornando obrigatrio a todo ohomem as noes sobre a terra ; a sciencia da lavouradepois as sciencias industriaes; mas mais que tudo,acima de tudo, como base transcendente e espiritual detudo, a educao do sentimento e do corao.

    esta base sincera, immaterial e amoravel,que escasseou sempre a este mundo dessorado, emque ns nos arrastamos, pallidos Europeos, carcomi-dos de tdio, torturados de egosmo, suarentos dedesejos, macilentados de orgias ... na educao davreana que est a base e o cimento de todo o muti-lo novo a que anceiam as almas. Mas o que lhes;umpre ensinar? No muitas sciencias profundas eomplexas, que enchendo o crebro s de formulas ele theorias, deixam, as mais das vezes, o corao em->edrado e vasio. Cumpre ensinar-lhcs o amor do tra-)alho ; o despreso das riquezas ; o amor da vida sim-)les ; a bondade inoculada desde o bero ; o horror daaentira sentimental e convencional ; e o desdm de to-os os apparatos ornamentaes e triviaes, que nem ele-am a alma, nem dilatam o corao.

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    CARTA AO DR. CAMPOS SAL1.ES

    Far isto esta gerao hypnotisada pelo Bezerrode Ouro, n'este sculo que agora se abre, j que o nofez, hora alta em que escrevo, no sculo que vae fin-dar ? . . . No fcil asseveral-o : por que muitas heca-tombes de povos immolados entulharo o solo da His-toria, antes que caiam, como a S. Paulo, na jornadade Damasco, as escamas dos olhos d'estes homens derapacidade e violncia, d'estes esfomeados do Ouro.Por muito tempo ainda, como diz a Escriptura, o covoltar ao seu prprio vmito, e o suino lavado a re-volver-se e a fossar no seu enxurdeiro.

    Os espritos altos, preclaros e immateriaes, eno-jados e descontentes d'estas torpezas, emigram paraas solides : para os retiros contemplativos do Silen-cio e da Abstraco : cheios de desprezos pelos appa-ratos theatraes, tal e qual como os antigos Jeronymosfugiam para as Thebaidas, no tempo dos imperado-res Juliano, Gallrio, ou dos trinta tyrannos. Assimteem feito hoje Spencer, Ibsen, Tolstoi. Os mais hu-mildes, como ns, evitam a mgica representao.E ento o mundo, abandonado por estes espiri-tuaes cavalleiros do Cysne, fica entregue unicamenteaos milhafres, que so os guerreiros ; aos corvos queso os polticos; aos morcegos que so os jesutas; aosabutres que so os argentados ; e s corujas, aos noi-tibs, e aos mochos, que so os diplomatas que caamna escurido dos povos. So estes que fabricam osSdans to trgicos como chus . .

    Senhor, com esta epistola que vos endereo,

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    CARTA AO DR. CAMPOS SALLES

    que eu quiz iniciar a serie que tenho dirigido a v-rios chefes europeos : e a vs que eu offrto esta obra,como penhor do alto apreo que me mereceis. Eu res-peito os homens que, a lanos de talento, de sabedoria,de caracter, constrem o seu destino, como os povosjovens que sabem fazer a sua historia. Desprezo, pelocontrario, tanto os povos como os homens, que meensurdecem com a gloria dos seus poentos papyros eavoengos, sem nada fazerem de preclaro, de sublime,nem de til como elles.

    Estes povos so como os cicerones de Pompeia :apontam somente ao estrangeiro as ruas, os palcios,e as estatuas dos mortos. Vs sois um homem, que,com o vosso talento, e o vosso mrito prprio, cons-trustes o vosso destino : e sois chefe de um povo joven,que, com as suas robustas mos, est edificando a suaHistoria. Acceitae, pois, esta obra, grito de um espiritoque protesta em Babylonia, no meio de um diluvio delama, n'estes tempos afflictivos e calamitosos que cor-rem, em que os que clamam verdades e acsam, comoZola, so desvirtuados, polluidos, e ealumniados. Accei-tae-a, Senhor, como um preito da minha admiraoe com um voto fervoroso para que o povo joven, so-bre que superintendeis, seja isempto dos vicios, dasmculas, e das abominaes que apressam, cada vezmais, a ruinaria d'esta sociedade contempornea . .e da velha baslica, que se esfarellam.

    Lisboa, 23 de Janeiro de 1899.2 Gomes Leal.

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    PRIMEIRA PARTE

    PROCESSO DA CORRUPO

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    Dstico

    (jomo um cirurgio que retalha a escalpelloum ventre esculptural, lcteo, gentil, e bello,como quem fura um odre. .assim mundo tambm peito immoral e amado,corpo todo de azul e de lama estrellado,eu te hei de retalhar nos teus milhes deitado,carcassa linda e podre . .

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    Mentiras sentimentaes

    (A MAX NORDAU)

    O Sec'lo vae findar na orgia e na demncia.Reina o luxo e o cancan. Caem bancos aos pares. Faamos tua autopsia, louca decadncia No me enganas a mim, com teu bom tom, e esgaresde cocotte gentil de phrases passionaes,que repete, em sales, geitos de lupanaresTeus brados de amor ptrio, e os farrapos banaesd'essa tua elegante e pompadour rhetorica,so lixo. . . entulho. . . p. . . caruncho. . . nada mais

    A Honra que floriu, n'uma era prehistorica, a arte de illudir o Cdigo Penal. Faz, comtudo, certo ar n'uma tragedia histrica

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    FIM DE UM MUNDO

    Matrimonio exprime hoje uma fara legala operao subtil, commereial, econmica,que, eliminando o Amor, triplica o Capital.

    (iloria, cisterna v, que o co torna euphnica: um vo cr de rosa a aljndar rapinagem, pi*ocisso de imbecis atraz de philarmonica Liberdade s ainda uma lyrica imagem . . Equival's a cada um poder morrer de fome,no enxurdeiro, a um bom sol, sob uma carroagem

    Amor da Ptria, vasta e escarlate bandeiratornas heroes rufies, saxnios, e piratasque cubicam coraes de uma ilha estrangeira

    Fraternidade, invento alegre de acrobataslembras-me sempre a mim patbulos, calvrios,pelourinhos, pols, monstros canhes, chibatas.

    igualdade, brazo d'entes humanitrios,como te entendem bem, l, na africana gente,senhor' s de roa vis. . . na Europa os millionarios

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    GOMES LEAL

    Caridade, tu vaes trapeira indigente,lanar uma migalha ao cachorro esfomeado. Fazes bem, no se darana e no quebra a correnteDesint'i'esse maro comediante enluvado,gabando o teu civismo a cidados ingratos,seus trastes pes ao sol, por um juro atrazado . . .

    Justia, desleal balana, com dous pratos,ambos de ouro de lei, porm com pezos falsos, tens dentro de um Jesus, e no outro Pilatos.Religio, freio s de ignorantes descalosem teu nome o Europeo rouba as hordas selvagens. Cruz erguida em ties, tribunaes, cadafalsos -Civilisao ah que ridentes miragensdesenrola, ante ns, a palavra cantante,que mascara bordeis, sangueiras, tavolagens . .

    Amor, volata azul, sonata extasiante,que se volve mais tarde em cutello ou barao,reduzes a mulher a martyr ou baechante . .

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    FIM DE UM MUNDO

    Altrusmo, expresso sonora com que engraotem um contra porm. . . ser o anzol traioeiro,que ao senhor d a uva e ao escravo o bagao.

    Humanidade, som de flautim feiticeiro,que tanto tangem Nero e Judas de Karioth,como o rei, o histrio, o dentista, o coveiro . .

    Paz, viso cr de rosa e que enternece o ztecorresponde a ter dez milhes de combatentes,bales com melinitc, e mil nos de alto lote.

    Moral, cdigo vo feito por impotentes,convencional conforme as zonas ou os mundos,que s cumpre o mortal quando j no tem dentes .

    Probidade, calo que occulta actos immundos,quer dizer o horror s palhas da enxovia. .o politico anzol com que se pescam fundos

    Sentimento, tenor cheio de melodia.Canta rias passionaes. . . e tem sempre a lembranade enviar aos jornaes retrato e biographia.

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    GOMES LEAL

    Famlia lembra o pae, lembra a esposa, a creanoa,causa terna emoo. . . sobretudo quando haum tio excepcional que nos lega uma herana.

    Dedicao repelle uma suspeita m., comtudo, um cartaz com grossas letras pretas,que mascara ambio d'ouro, emprego, ou crachat.

    Esmoll, flor que o hig-life hoje planta em gazetas,e expe como lees, em feira, vozearia,com rufos de tambor e toques de trombetas.

    Virtude, moa ideal que morreu de anemia,fica bem na orao de um tribuno violento,e l-se em folhetins dos jornaes. dia a dia . .

    Castidade, frieza ou mo temperamento. no homem o horror de fenecer depressa, na mulher um ardil de arranjar casamento.Oitro, mola real d'esta cmica pea,vertigem que persegue o mortal desde o bero, t que esverdeia emfim n'uma soberba a . .

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    FIM DE UM MUNDO

    Luxo, aroma subtil e doido no ar disperso,nevrose do setim, a esmeralda, o velludo, mais que a Syph'lis e o Ouro apodrece o universo.Luxuria d'olhar verde, uivo choroso e agudo,cheia de andrajos s a rameira. . . a galdria. . mas, rojando setins, causas espasmo mudo . .Alcoolismo, cevado a grunhir na matria,com teu vidrado olhar sobre o tonel bojudo,envenenas, vampiro os bairros da Misria.

    E/oismo, expresso que a chave de tudo,cancro que mina e re assim como o alcoolismo,alpha e omega emfim d'este immoral entrudo.

    Eis tua autopsia mundo actual, teu cynismo . .Tudo mentira em ti. Por isso has de rolar,cadver falso e vil, aos hervaaes do abysmo.

    Se a Conscincia acusa a hora ha de chegar.

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    Carta a uma gentil canalha '

    (autopsia DE UMA PRIJCEZA)

    Hrinceza de alto nome de nome brazonado,

    o teu brio e pudor arrojaste ao enxurdeiro. .No foi por negra fome,(o espectro descarnado)ou a anci de Dinheiro . .foi o amor do deboxe, e a attraco do atoleiro

    1 liste typo de mulher o de uma clebre prineeza parisiense,verdadeira desequilibrada, fim de sculo, cujas photogrraphias, emdiversas posturas, se encontram em todas as montras dos boule-vards.

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    KIM DE UM MUNDO

    Tu tinhas um sollar de larga escadaria,aonde a turba dos fidalgos ia,de camlias no frac, em romaria,teus ps mignons beijar. .

    Tinhas jias, setins, pedras da cr de estrellas, mas a tudo prefriste o vicio das viellase a lama do trottoir

    Tu tinhas, por esposo, um princepe de raa,cem palcios, chateaux, mattas de caa,e o mimo loiro e a graade seis louros bebs. . e deixaste o teu lar e os braos dos teus filhos,

    pelos doidos cancans e os sujos estribilhosdas canes dos cafs

    Com teu pandilha amante, um lyrico cigano,corres a Europa toda, todo o anno,

    guitarra e ao piano,danando onde se ri . .

    Elle tange rabeca o musical Cabinda.E tu, flor real . . . loura canalha linda .danas na brasseric.

  • 5/31/2018 Gomes Leal - Fim de Um Mundo - Satiras Modernas

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    12. GOMES LEAL

    Pois bem:filha de um sec'lo absurdo e extravaganterepara bem, bacchante,de seios leves, nus. . que a Ral, em ti v, decada princeza,

    a danar o cancan toda a feudal nobrezada lana e mais da Cruz

    ]\Ias que dirs, mulher, se do Destino a forafizer que um filho teu te veja, vil combora

    semi-nua, a bailar. .vestida de maillot, torcida em mil posturas,e ouvindo as troas vis, as galhofas impuras

    de um doido boulevard? . .

    PosL ScriptamMulher, riem de ti S eu choro a cegueira

    dos teus gozos fallazesAntes fosses a ch e humilde costureira,que tardinha, ao sol pr, suave, na trapeira,

    v florir os lilazes . .

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    Carta a um monstro lindo

    JTOPSIA 1)K UMA MUNDANA)

    iVlonstro de oiro e setim, de dentes lampejantes,olhar verde e sereno . .

    como as flor's tropicaes de aromas excitantes,que matam, attrahindo, os insectos brilhantes,

    teu aroma veneno.

    Deitada n'um diva//, toda gaze e escumilha,com lorgnon, p de arroz. .

    voluptuosa a fumar a area cigarrilha,quem poder cuidar que esse olhar de ao brilha

    como um gume de algoz . .

  • 5/31/2018 Gomes Leal - Fim de Um Mundo - Satiras Modernas

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    H GOMKS LKA.L

    Quem poder cuidar que entre aromas to gratos,o oiro e a malachte. .os teus lbios sensuaes, vermelhos como cactos,occultam a traio, quaes pomos putrefactos

    do lago de Asphaltte?. .

    Cavalgando o Sulto que tem jarretes bravos,ou trincando bombons. .

    ou perlando o sorrir dos teus lbios, dous cravos,pensas s em cuspir em coraes escravos,

    e amontoar eoupons.

    Se sorris, teu sorrir lembra o olor venenosoda tropical flora.Se choras, s egual ao crocodilo unctuoso,

    que atrahe junto aos juncaes o viajeiro piedoso.e em seguida o devora

    Se certo que tu tens, sob um vo transparenteglndulas mames . .

    e usas pr-lhe, por chie, uma gaze prudente,prosaico achas porm que sirvam vulgarmente

    a funees maternaes . .

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    FIM DE UM MUNDO 15

    A ancestral Amazona amputava um dos peitos,guerreando os heroes. .

    se eu no vira esses teus, to lcteos, nus, perfeitos,cuidaria, mulher, que para hericos feitos

    amputaras os dois.

    A.s creanas p'ra ti so bebs de capella,de graciosa figura. .

    abellos em anneis, olhos azues, umbella,:jue deviam ter dentro inda a mais loura e bella,coto ou serradura.Teu esposo escolheste-o entre os partidos vrios,

    por que o Ouro tem brilho. Festejas porm mais teus lyricos canrios . .E mais que elles, que Deos, teus ces, teus trintanarios amas teu espartilho.io vs na Arte o ideal de anceios tressuados . .

    mas um chie mundano.3, nos saros que ds, garganteando trinados,azes aos rouxinoes pardias nos teclados

    do passional piano.

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    16 GOMES LEAL

    No te abala do Christo o idealismo extranho,nem seu supplicio cru,nem Magda que o ungiu n'um perfumado banho. Fita^-lo para vr, trespassado n'um lenho,

    um Revoltado nu.

    Tens amantes aos cem : mas com arte secretade elegncia e mysterio.

    No os tens por paixo, porque s fria e correctamas sim por que no hig-life e a roda mais selecta mui chie o adultrio . .No lanas teus leaes amantes da esplanada,

    como a amante real. .da alta torre de Nesle, lua ensanguentada,porque no tens castello, e faz-te frio a espada

    do Cdigo Penal.

    Mas matas lentamente o triste a quem fascinao amor das tranas bellas . .

    Mais vil do que Macbeth, a lady assassina,no te turba a paixo : mas a anci feminina

    das rendas de Bruxellas.

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    FIM DE UM MUNDO 11

    Jamais um dia afiou teu peito lcteo e frioaffecto por ningum.Teu canto musical de melodioso amaviolembra um poo entre flor's : pois quanto mais vasio

    mais sonoro eco tem.

    Monstro moderno. . . s o fructo repugnantede um sculo gafado

    Em vez de corao, tens, n'um sachei galante :um mixto cl esse p diablico e elegante

    da lama do Chiado.

    Post Scriptiim

    O sol tombando doira os templos e as bandeiras,os vitraes e as rosceas . .

    Enojado de ti, olho as verdes ladeiras.E apraz-mc ver beijar-se as pombas prasenteiras.

    nas floridas accias . .

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    A Traio

    (autopsia de um rei)

    Senhor

    se acaso um rude e enrgico plebeopode ser um juiz, e um rei tornar-se ro,se acaso o assassinado noute n'uma esquinapode gritar traio, contra quem o assassina,se acaso um rude velho excommungou Paris,e Juvenal cuspiu na imperial meretriz,e a Historia toda escarra em Judas, o traidor,eu serei o juiz e vs o ro, Senhor Sim, manchars na lama, rei, os teus brazes,e ters por juiz a Plebe e os coraes

    1 Esta carta, dirigida ao inonarelia ento reinante, D. Luiz 1,valeu o encarceramento ao seu auetor.

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    KIM DE UM MUNDO 19

    dos guerreiros fieis, bruscos, encanecidos,que choraro de raiva os louros prostitudos,se deres os pendes furados das metralhas,-que j viram o fumo e os soes de cem batalhas,a aura da Liberdade e o sopro das desgraas,a voz das sedies nas ruas e nas praas,se deres os pendes . . . gloriosos tanta vez . . para os calcar os ps do marinheiro inglez Vender-nos-has, rei Mas ficars um muro,no qual escrever o dedo do futuro,o dedo vingador, brbaro, antigo, austero,que marcou a Kain e ensanguentou a Nero,que escreveu sobre a testa ao velho Tamerloesta legenda atroz assassino c ladro esse dedo cruel que pz a Alexandre VIo dstico feroz onde se l incesto,que marcou Carlos IX, o algoz dos huguenotes,e que em ti marcar Judas Iscariotes. Ah pde haver um rei to picaro e pandilhaque venda o seu paiz, e me que venda a filha . .Podem acaso haver entes to latrinarios,que atirem para as mos de um ou de mais sicriosuris seios virginaes . . . e a honra de um paiz . . . *O' pallida mulher, loura meretriz,

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    20 GOMES LEAL

    dize se acaso emfim no debochado leito,onde vaes salsujar teu corpo alvo e perfeito,podes erguer as mos, podes orar ao ceo,pela infame mulher, a me que te vendeu ? . .Dize se a urna d'ouro e de crystal partida,atirada ao bordel, mulher prostituda,pde ainda conter, em lagrimas perlada,e delicada flor, virgnea, avelludada,virginal como o amor n'um joven corao . .a flor que nos condoe, a santa flor perdo ? . .

    Homens do nosso tempo, herdeiros de uma heranafatal . . . nossa deusa a fria da Vingana.Temos o brbaro dio J enrgico, revel,que ao mesmo tempo doce e ao mesmo tempo fel ;dio eterno, feroz, que mais e mais se atia,mas que tambm Amor e que tambm Justia. o dio contra o torpe e a vasa do monturo. o dio contra a me que, noute, pelo escuro,vae a filha vender ao lupanar occulto . . dio a ti mulher, que expes teu seio ao insulto

    1 Este dio, puramente philosophioo, refere-se a ludo iniquo.

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    KIM DE UM MUNDO 21

    de uns beijos d'aluguel, por uns velludos mais . o dio contra o filho, o dio contra os pesdobrados, imbecis, cheios de um mal secreto,de um vergonhoso mal que vae do av ao neto,que se vo hospedar ambos no mesmo hotel,e se encontram noute ao jogo e no bordel .E' o dio contra ti, pallido libertino,que apalpas entre as mos um seio feminino,e o atiras para o leito inda peor que a cova . .E' o dio contra ti, fraca gerao nova.que amas somente rir, e no tens convices,nem ideal, nem f, nem nervos, nem tendes,no sabes venerar, no sabes ter respeito,rugir, nem arrancar as lagrimas do peito,nem rir como Voltaire, amar como Romeu,soffrer como Jesus nem odiar como eu.E' o dio emfim a vs, vendilhes estultos,que vossa prpria Me vendestes aos insultosdo vil marujo inglez, e lh'a arrojaes nos braos,como uma meretriz, bria de mil abraos,que os seios, sem pudor, entrega marinhagem.E' o dio contra ti, rei, cuja coragemsomente egualar a tua gafaria,commettendo a baixeza, a insnia, a villania,

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    22 GOMES LEAL

    de arrojar hyena, ladra, a John Buli,nossos rudes irmos da Africa do Sul.E' o dio contra ti, rgio salafrriose fizer's esse acto iniquo e extraordinrio. .porque ainda que ha muito existe a vil traio,monarchas sem pudor e mes sem corao,parece sempre horrendo, extraordinrio, novo,que a me venda uma filha e o rei que vendaum povoTalvez creias, rei, que a extranha apologiaque fiz do dio accusa uma alma baixa e fria . .Talvez creias tambm que quem assim tem felno pde amar ningum. Enganas-te . . . O revel,o homem que em seu peito altivo e rebelladosentiu dentro de si dio intimo e sagrado,o dio contra o erro, a lama, a podrido,e arrancou do seu peito uns roncos de leoque no alto, vendo o Azul, aos ais do miservel,impassvel, sereno, augusto, inabalvel,e em baixo, c na terra, em thronos assentados,toda a horda dos reis, sorrindo ensanguentados;vendo reger na terra o Despotismo eterno,todo de bronze o ceu, todo de treva o Inferno,em cima escurido em baixo infmia e nouteno poude reprimir da clera o aoute,

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    FIM DE LM MUNDO 23

    e arremessando ao Azul o grito da sua irabradou: Justia Me tu que no s mentira,tu que tens sido sempre a virgem rude e forte,meu nico luar, meu iman, e meu norte,meu idolo, meu mal, meu rude anjo custodio, depois de ti, Me no ha seno o dio.Ora este dio tremendo, dio eterno, Senhor, filho da Justia e uma face do Amor.E' este dio que faz que, cheios de utopias,vamos, ao acaso, errar nas virgens serranias.atraz dos ideaes selvagens, desgrenhados . . .e que como uns atheos, ou como uns rebellados,nos apontem as mos s tmidas mulheres,como uns homens reveis, ou como extranhos seres..sem Amor, sem Mulher, sem Ptria, sem Altar,que vo de monte em monte, e vo de mar em mar. .Este dio virginal das conscincias brancas uma fora, rei Vai mais que as alavancas,vai mais do que os canhes, no s dos teus vassallos,mas de mil esquadres de brbaros cavallos,que o mundo possa pr em p de guerra, um dia . . .Vai mais que a dynamite e mais que a artilheria,ruindo as povoaes das praas aterradas ...Vai mais que todo o bronze e o ao das espadas,

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    24 GOMES LEAL

    mais do que os canhes Krup, feitos correctamente,com sciencia, com arte, estudo, sabiamente,balstica, e o demais que o homem desencante,para matar em regra a Abel seu semelhante . .Esse dio todo um drama, ou barbara epopeia. S o que muito ama o que muito odeiaEu, por mim, nutro um dio indmito, selvagem,que como um diamante e o raio da coragem,um dio colossal, demolidor, que arrasa,e de que hei-de fazer um quente ferro em braza,para marcar na testa a ti e a teus irmos . . . Quero fallar dos reis, fallo dos cortezosFallo da corja vil dos entes latrinarios,que ladram contra a luz, marquezes, e sicrios,que so grandes do reino, aios, ou estribeiros, dandys, altos bares, duques, e alcoviteiros.Fallo das cortezs hierticas e bellas,que ullulam de luxuria assim como as cadellasno da plebe servil, mineira, que trabalha, pois que no s irmo, rei, d'esta escumalha . .

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    FIM DE UM MUNDO 25

    II

    Oh mineiro oh mineiro . . . ai, quando, sob a terra,iesces, longe da luz, as espiraes da dr,esquecendo as canes nataes da tua serra,spancastes de ti as illuses do amor . . .piando, tornado o peito um tumulo vasio,iesceste para sempre tenebrosa mina,>nde no vem gemer a fresca voz do rio.lem vulto de mulher branqueia na neblina . .luando fechaste a alma anci dos desejos,orno um faminto lobo uivando n'um pinhal,u como um cenobita esconde o rosto aos beijosas lyricas vises, pelo sabbat do Mal . .uando, nas solides dos trpicos ardentes,ojaste ao rido cho a fronte e os membros nus,lembrou-te a palmeira e o estrondo das torrentes,ao fundo, o Azul callado, a herva, o mar, a luz .uando no gelo emfim das solides extranhas,o deserto polar da escurido do inferno,ara sempre fugiste aos lyrios das montanhas,grande Natureza e ao grande Amor eterno . .

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    26 GOMES I.EAL

    dize, sabias j, lgubre mineiro que o pallido metal que ias desenterrar,vergado, semi-n, talvez um anno inteiro,gastam os reis somente, um dia, n'um jantar ? . .Dize, sabias j que a Providencia avaraconcede a um a luz, a outro a treva exangue,a um a taa d'ouro, a outro a esponja amara,e a noite rida e m em que se sua sangue ?. .Dize, sabias j que existem sobre o soloinfames cortezos, lacaios resplendentes,meretrizes ducaes a quem se inunda o collocom Champagne, com Rhum, e vinhos eloquentes?Dize, sabias j, na escurido das minas,agachado, aos clares das lividas lanternas,que existem cortezs, duquezas libertinas,excedendo os ladres e as fmeas das tabernas?...Dize se, como o Fausto, em sua escura cella,tu viste o pranto, o escarneo, e a loura meretriz,sabias que se atira ouro pela janella,e, que, infmia ha reis que vendem seu paiz ? . .O' infmia infmia sculo maldito, em que se vende tudo, a Me, a Ptria, o Amor . . veneno subtil, srdido, e corruptor,que Satanaz cuspiu no poo do infinito . .O' encanto infernal das vastas Capites,

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    FIM DE LM MUNDO

    delicia dos ladres, dos vicios, da ral,em que se afunda a alma, enxerga-se a gal,e afia-se o sorriso, e afiam-se os punhaes . .Levantae para o ceo as vossas mos honestas,como um protesto herico, enrgico, sublime,Cavalleiros do Bem, que vindes das florestasda Ida. . . e juraes guerra Podi*ido e ao Crime.Correi sobre este charco a toda a rdea solta,vs, justos campees, puros como os arminhos . . e agitae pelo ar a espada da Revolta

    - e afiae os punhaes nas pedras dos caminhos

    III

    Soou hora, rei. A aurora vem raiando.J se ouvem os clarins guerreiros d'esse bandoque rue o despotismo, esse colosso rhdio . . .So da ral tambm. Tambm seu nome dio.Chegam para tomar-te, 6 rei, tremendas contas,se arrojar's a mo ptria aos risos, s affrontas, vaia e aos pontaps do brio marinheiro,do marujo saxo, do John Buli caixeiro . . .

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    28 GOMES LEA,

    Mas que te importa a ti a Plebe, e a Sedio,se acaso jantas bem, fazes a digesto,os charutos so bons, generoso o vinho ?. .Se vela no teu pulso o Magalhes Coutinho,o ceu calmo e azul, e para o exilio cedo ?. .Se guarda o teu remanso o general Macedo,e tens fofos divans, onde usas digerir?. .Se, depois do caf, rels e Shakespeare,(que os poetas, rei, os trgicos at, do hig-life e bom tom lr depois do caf . . .)se tens salas da sesta, ureas salas chinezas,boas pelles de tigre, hierticas marquezas. .e um busto de mulher, branca lamparina,debuxa no lenol a forma esbelta e fina,e com a trana loura aroma o travesseiro?. .Se no tens confessor, carrasco, nem barbeiro, *e fazes o que apraz tua phantasia ?. .Se no ls os jornaes, nem tens dyspepsia,ningum te arremessou bombas de dynamite,o tero no te de, 2 e tens bom appetite,

    1 Alluso ao rei francez Luiz X.2 O ntcro no te de allusivo ao caracter flcido

    narcha.

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    FIM DE UM MUNDO 29

    o que te importa a ti que a Plebe vocifere,ao vento da Revolta e pea de comer,que o velho Jehovah troveje l em cima,ou que a Plebe ameace, e ore Magalhes Lima ? . .

    Para bem do seu povo um rei, segundo o estylo,deve dormir a sesta . . . e bem fazer o chylo.Que importa que um paiz falto de capitesempenhe as possesses todas coloniaes?. .Que falta fez Ceylo, que perda Bombaim ? Por isso no faltou canella nem marfim . .Nem devem coisas taes causar srios abalos O que importa que um rei sustente bons cavallos,que tenha boa adega . . . e beba bom Madeira,tenha cem alases que escarvem na cocheira,cavallarios cem, archeiros, batedores,camaristas, rufies, alcaites, amores. .mas acima de tudo, o essencial, ordeiro,no um bom ministro um bom cosinheiro.Depois de bem jantar, gordo rei folio,entre uma aia gentil e o obeso capello,tu preferes da aia a esbelta companhia . .Depois fumas um breva, e ls uma elegia

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    30 GOMES I.EA.L

    sombra de uma accia, ou de uma laranjeira. .Correm nuvens no azul . . . Uma pluma ligeirad'uma rolla caiu n'um lago crystallino. .Tu suspiras ento. Faz-te bem ao intestinoum vago de scismar, e um pouco de lyrismo . . .Mas tu no scismars, oh no no fundo ab}fsmoda Misria, esse plebeu espectro que ameaana amarga convulso que invade a nossa raano ensanguentado x do problema socialna fome em S. Miguel, na guerra do Transwall;nos mineii'os sem luz, que em sua solidopara enganar a fome, engolem o carvona Grcia que ergue as mos para as naes ingratasna Irlanda sem po, que come s batatas,e freme na paixo da rude Liga Agraria. . Nem penses nunca, emfim, em cousa extraordinria.Proudhon ou .Tehovah, Jesus ou em Satan.Continua a viver, assim como o Deus Pan,sob o clemente azul, sombra da boscagem . .Yae ouvir Brghi-Mamo, noite, de carruagem.e, se acaso por lei inflexvel, brutal,a bancarrota venha, 6 rei de Portugal,e ameacem teus bens um dia de ir a pique vende ao saxo Angola, ou vende Moambique

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    FIM DE UM MUNDO 31

    Eu sei que quem te adula e a regia mo te beijaregouga que o nosso dio hostil nasce da inveja.Bem sei que os cortezos, os srdidos frascarios,te clamam que os plebeus, entes atrabilirios,estes homens, como eu, de fel e descontentes,so monstros com mortaes venenos de serpentes,que pretendem ruir Famlia, Throno e Altar . .Sei que te ululam mais que andamos a aguai 1nas pedras do caminho a revoltosa Espada . .que um pamphletario uma bexiga inchadade clera, de fel, de inveja, e dynamite,que um dia explosir, assim que o fogo a excite,fazendo rebentar o mundo em estilhaos . . .Mas eu juro-te a ti e mais aos teus devassos:que no ha dio herico e santo em coraes,como aquellc que lavra em mim s corrupesd'esta fara fatal da nossa velha edadeque sinto a grande nusea e a barbara anciedadede assistir ao final do drama monstruoso ;;jue no sou, como os teus, um lazarento goso,pue v lamber teus ps, nem oscular teu mantopae tenho visto a Plebe e tenho visto o prantoJo sangue, que ella escorre em bagas pelas ruas}ue vejo mes sem po, magras creanas nuas,

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    32 (OMES LEAL

    tiritando, ao relento, noute, pelo frio,e homens, sem leito e lar, que vo deitar-se ao rioque vejo o mundo, em lucta atroz e ensanguentada,sem ter f no Direito, alevantando a Espadaabaterem-se os reis, levantarem-se os fracos ;o Czar todo em sangue, em meio dos cossacosas escravas naes no fogo que se atiaaquecendo o punhal em nome da Justia,e levantando aos cus as rebelladas mosos homens de Justia, os peitos rectos, sos,rolando pela lama s patas dos cavallos ;o mundo em convulses, e a Europa entre os abalosd'uma guerra eminente, o mal extraordinrioda fome contra o Luxo, o dio do proletrioque vejo at ao cabo em sangue j as lanas ;a Justia sem f vender suas balanas a suspeita reinar no pnico geral ; cada vez mais feroz a guerra ao Capital ;o recto homem de bem, sem ptria nem lareira,morrer n'uma enxovia ou d'uma ruella beiraIilanqui, esse feroz e grande rebellado,toda a vida a rugir, preso como um forado Raspail, que salvou do chlera Paris,como uma besta fera em hmidos covis,

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    KIM DE UM MUNDO 33

    grelho, acabar doente, o seu viver sombrioemfim que vendo, em cima, o ceo mudo e vasio,a Virtude sem po, a Corte um atoleiro,Jesus, desfeito em p, hirto no seu madeiro,olhando sem cessar as chagas dos joelhostristes os coraes, todos os ideaes velhos,e o despotismo em p somente nutro esperanaem duas cousas s no dio e na Vingana..Vh nada existe mais sinistro que a traio.Vede Bazaine, o biltre e o infame Napoleo,urrando pelo mundo, ambos acorrentadosao despreso geral, e ambos excommungadoslo mundo, como atheus da excommunho papal .Subiam uma serra, iam descer um vai,juer fosse ao alvorecer, ou fosse no sol pr,?e encontravam no atalho um rude lavradorurvado sob a enxada, ou vindo das searas,ias linhas varonis d'essas trigueiras caras,iam logo o despreso enrgico e infinito,prior do que a Kain, e ao Lcifer maldito . . .3 que existe uma cousa acima da grandeza,as tiaras papaes, do Sceptro, da Realeza,as minas do Czar, e a excommunho da Egreja,ue faz tremer o ignavo e faz calar a Inveja . . .

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    34 GOMES LEAL

    um ente que arrosta os mais pesados fardosque traz em sangue os ps dos retorcidos cardosdos montes glaciaes das solides eternasque como os Ermites viveu j nas cavernas,nos antros, nos covis, na escurido das minasque tem visto as paixes e os blocos das runas,as neves, os vulces, os dspotas, as ferasque j viu desfilar toda a viso das Eras,toda a fermentao irregular das Raas ;os crimes das naes, as sedies das praasmas sempre perseguida e sempre guerreando,escrevendo um pamphleto, ou o sabre manejando,como Spartaco arranca os pulsos da cadeia,severa, estende a face a quem a esbofeteia,e um dia morre emfim, sem que ningum a escude,mas morre protestando e chama-se a Virtude.

    IV

    O Judas quando ao hebreu, ao agitador sagrado,te assomaste e lhe deste o beijo da traio,sabias que esse beijo irnico e enlutadodevia dar ao Christo o calyx da Paixo ? . .

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    FIM DE UM MUNDO 35

    Sabias que esse beijo eterno e monstruosopregava-o para sempre em cima d'um madeiro,d'onde havia escorrer um sangue religiosoque um dia turbaria o torvo mundo inteiro ? . .Sabias que esse beijo era a unio de sangueque casaria a Sombra, e a Perdio Luz,e havia de pregar, junto com o Christo exangue,o mundo amargo e escravo em cima d'uma cruz?Sabias que ias ser, com um terror profundo,uma semente m d'uma arvore fatal,que esse beijo seria a perdio de um mundo,e davas n'este sec'lo o osculo do Mal ? . .No sabias talvez Mas hoje, mundo, anceiasinda nas convulses d'esse osculo feroz. Um veneno infernal gira nas nossas veias-Crendo beijar Jesus, beijaste-nos a ns . . traio traio Depois de tantos annosque o teu bafo empanou a terra meretriz,ella no pode emfim dos Cezares tyrannostotalmente apagar o osculo infeliz . . rei, quando de noute, luz suave e morna,da lmpada nocturna e d'alva porcelana . .o Amor sobre o teu leito os seus jasmins entorna,junto ao rgio perfil da branca Italiana . .

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    :5C GOMES LEAI.

    quando, ao p do seu corpo, em estos de paixo,osculas d'essa fronte a pallida esculptura,no te arreceias vr-lhe a modelada mocrer apagar mortal virus de mordedura ? . .No te arreceias ver na filha do guerreiro,aventureiro e audaz como o Cid hespanhol,que em cem aces tingiu a espada no estrangeiro,rugindo pela ptria, ao italiano solno te arreceias vr no mrmore da tezum sorrir de desdm que te clame traidor que te descerre o inferno e a livida hediondez,-- e te aponte a aza negra em que voou o Amor? .

    Mas que te importa, rei. N'um sculo venal,em que tudo se prostra chispa do Metal,esposa, ptria, me, filhas, e conscincia,teu acto no mais que um acto de coherencia.Tu s um digno rei de chus cortezos . .Ha tal que venderia a me e seus irmos,

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    FIM DE UM MUNDO 37

    a mui casquilha esposa e aperaltadas filhas,no, como o antigo hebreu, por pratos de lentilhas,mas por algum erachat, farfia, ou bagatella . .Ha tal que se vendera at pela baixellado servio real . . . como um que, sem abalo,o seu reino cedeu em troca de um cavallo. Deshonra, s ascosa, e j encheste a taa . .No s na ral, nos bairros da Desgraa,que maculas, mulher, teus seios sem pudorMarquezas d'alta estirpe ao Ouro estonteadordesfloram, sem rebuo, os seios com brilhantes . .Condessinhas gentis occultam os amantes,emquanto o esposo bate... e outras mais corajosas,arrastando no solo as caudas setinosas,distinctas no bom tom, e talhes dos vestidos,namoram officiaes, aos olhos dos maridos . . .A bella flor da Carne, a flor aventureira,valsa... em quanto o Talento expira na trapeira.Dos teus bailes reaes no picaresco entrudo,passam de brao dado a Pustulla e o Velludo.Em quanto o Crime dana, o FWunculo namora . .A republica agita as multides c foraMartens Ferro ensina ao seu real pupillo,no, decerto, onde esto as origens do Nilo;

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    mas se o ouro faltar . . . essa sublime mola . . a quem ha de vender Moambique ou Angola . .Quem d mais . . . Quem d mais . . . o grito do leilo.Vamos, mandem chamar j o tabellioque as escripturas lavre, em clausulas idneas,em que almoedmos tudo, e acabem-se as colnias . .Vendam-se d'uma vez todas as possesses assim que clamaes, lvidos burles lyrios das gals, sicrios, salteadores,que deshonraes a Me d'esses navegadoresque foram descobrir isto que expes venda . .Mas vs no trilhareis esta bandalha senda,sem que esses planos vis ruam em estilhaos . .e eu hei-de-vos marcar, Escribas, com os traosindelveis, cruis, rubros de ferro quente,que vos ha de laivar assim como a serpenteda Biblia, que marcou Israel foragida . .Sentireis muito tempo o estigma da feridaque vos ha de entalhar o gume dos meus versos.Farei d'elles a cruz, aonde vs, perversos,longe do mundo, parte, em serro solitrio,como esses dous ladres do morro do Calvrio,cravados ficareis, ao rir da populaa,at que em sanie e ps a carne se desfaa,

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    HM DE UM MUNDO

    qual gafeira mortal de cheiro nauseabundo,que obrigue a pr a mo sobre o nariz ao mundo,como se Deus mandasse uma infeco geral . . que ento morrereis no asco universalA morte j ento no achar estorvos.Sobre vs traaro grandes circos os corvos,e vossos membros nus, expostos aos desdns,de pasto serviro aos lobos mais aos ces . .Assim mergulhareis da noute pelo escuro:ascosamente vis na Historia e no monturo.

    VI

    Me Ptria Me Ptria acaso to mesquinhoo homem, ou subiu to alto nas espheras,que despreza o paiz florido do seu ninho,e o solo virginal das suas primaveras ' ...Acaso elle pairou j tanto nos espaos,e abraou o ideal das vagas utopias,que j despreza o cho dos seus primeiros passos,onde ouviu o riacho, e a voz das correntias ? . .

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    Acaso elle se alou, n'um vo to ardente,acima da misria e das paixes da terra,que no sente emoo, ao ouvir longiquamente,as volatas nataes, frescas canes da serra ? . .Ah tanto se embrenhou na noute do desgosto,nos ruidos da orgia, ou nos confins da Ida,que no sente saudade, hora do sol posto,do seu ptrio pombal, ou da serrana aldeia ? . .Da Humanidade o amor tanto o combustaria,tanto votou sua alma a todo o mundo inteiro,que pode ouvir, sem dor, os gritos da agoniada sua ptria Me calcada do Estrangeiro?.Velho guerreiro ... tu, que, cheio d'enthusiasmo,despiste a frrea espada, voz das sedies,que no tens d'este tempo o fnebre sarcasmo,e te bateste ao sol, quaes livres coraestu que sentes cantar, herica, na bainha,a espada com que j talhaste mil mortalhas,quando o canho retra e a guerra se avisinha,e a tens laivado em sangue, ao vento das batalhase tu guerreiro imberbe, enthusiasta soldado,que soes tambm, rugir qual juvenil leo,no deixes da Me Ptria o peito salsujadosob a planta bestial do marujo saxo . . .

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    FIM DE UM MUNDO 41

    guerreiros novis se o sol do pensamentoe da gloria vos beija a fronte alvoroada . .no deixeis que o saxo, um nico momento,vos cuspa o seu desdm na virginal espadaNo deixeis que a Me Ptria ande prostituda,como, n'uma ruella, a lassa meretriz . . .Ha duas cousas ss, sublimes n'esta vida : Ah, uma o nosso amor outra o santo paiz

    VII

    Pelo vento do Norte eterno que suspiravem notas marciaes das cordas d'uma Lyra. d'um poeta extranho, enrgico, polaco,que protestou vingana ao sabre do cossaco,e pregou a revolta e o dio ao Imperador.Sosinho elle luctou, sombrio luctador,pela escrava nao prostrada e supprimida,que levantava as mos curva indefinida,embalde supplicando a hora da Vingana.Mas a deusa cravou a ponta da sua lana

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    inerte sobre o cho ainda ensanguentado,e ainda no tirou o seu olhar paradodos crimes infernaes, dos grandes morticnios,que as escravas naes, segundo vaticnios,arrostaro assim como a infeliz Juda,at que o vento sopre e o turbilho da Idavarra para o lameiro as legies dos reis . . ento que do co, Vingana, descereis,e h-de-vos vr montar no fnebre cavallo . .Ento que ser o formidando abalo,e que as mos erguero os grandes innocentes. ento que tu, rei, e mais os teus parentes,fugidos, atravez das nossas maldies,como o errante Judeu das velhas tradies,no achareis um deus, no achareis um lar. .Mas, antes que a hora chegue, eu quero protestar,bem alto erguer a voz contra esta fellonia,tradio de teus pes, da tua dynastia,que tem cavado o abysmo em que o paiz se lana. Casa d'execrao, casa de Bragana Joo iv, teu maior, chefe e rei da naoera um daque imbecil, inhabil, ura poliro,

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    FIM DE UM MUNDO

    jjue andou sempre a esconder-se s armas dohespanhol,deixando o pavo s bater-se luz do sol,|4 que foi empurrado pugna, e a combater,pelo ardor d'um vassallo e a mo d'uma mulher.jAffonso vi, o filho, excntrico e demente,brio, desfigurado, esqulido, impotente,commandava briges e motins nas ruellas,em cata das vills, burguezas, ou donzellas, e, apoz um vil processo impudico e famoso,como outro no se viu to charro e to ascoso . . .morreu atraioado, e preso pelo irmo . .Seu suecessor, o biltre, auetor d'esta traio,depois de salsujar de seu irmo o leito,de roubar-lhe a combra, e o throno sem respeito,vendeu-nos Inglaterra, em um pacto infamante . .Succedeu-lhe Joo v, o frasearia tunanteesse bode real d'egrejas e conventos,que despende milhes em ptreos monumentos,e sulto d'um liarem, que tem mais de mil freiras.Jos i vem, c s cortes estrangeiras,d o exemplo de um rei imbelle e sem vontade,d'um espectro real, mmia de nullidade,movido pela mo extraordinria emfimd'um ministro genial que o faz seu manequim.

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    FIM DE UM MUNDO

    So estes os teus pes. So estes teus avs.Agora tu, tambm, trilha esta mesma senda.Manda-nos retalhar, manda-nos pr venda,acutilar, prender, por teus pretorianos.Faze-te um rei fatal, ordena a esses tyrannosque se estribem no throno, e entre as espadas nuas.Manda-me fusilar a Plebe n'essas ruas,e em cima rapinar-lhe as magras algibeiras.Convoca em teu auxilio esquadras estrangeiras,manda pr em leilo e almoeda as colnias.Bebe Porto, Xerez por causa das insomnias.Faze prender a Historia e perseguir a Imprensa.Que ningum erga a voz, na rua, sem licena IPede auxilio aos quartis, faze-te um sulto vivo.Ordena ao teu carrasco o brao executivo }ue seja mais cruel, que seja mais feroz.Faze-te egual tambm aos teus grandes avs.Ensaia-te a rugir como soem lees.'\aze Te Dcums a Deus, senhor dos batalhes,j^ede ao Espirito Santo, a pomba, que te incube.

    Encarcera a Justia e mete-a no Aljube.

    Quanto a mim, o auctor de carta to comprida,nanda-me degredado, rei, por toda a vida.

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    Na tua mo real mantns amplos poderes.Tens o Exercito, a Lei, aquillo que quizeres,a Grandeza, o Governo, a Armada, o Parlamento,O Hig-life, a Marinha, a Egreja, o Sentimento,toda a lista geral de bispos e de reis,a Biblia, as Tradies, Politica, os Quartis,e o general Macedo o teu anjo custodio. Eu s tenho uma penna e a fora do meu dio. '

    1 Guiados pela mais escrupulosa Verdade, que todo o sinceropensador inspira, devemos dizer que esta satyra foi inspirada nosboatos pblicos de connivencia do rei com o gabinete de S. Ja-mes, e com o governo portuguez que fizera o contracto da vendada colnia de Loureno Marques Gr P>retanha. A vinda do prn-cipe de Galles a Lisboa, pouco tempo antes do contracto, deu vulloa taes boatos. A vida perdulria e as dissipaes do monarcha por-tuguez dram-lbe consistncia. Seria o rei cmplice?. . . A Histo-ria e documentos secretos talvez o possam aclarar um dia. A sa-tyra foi o co indignado d'esses clamores. Um mrito ella tevesublevou o espirito publico, e evitou o escandaloso feito. Este xitode pundonor desperto, basta para a sua justificao. Comprehen-demos que as colnias tenbam a liberdade de se emanciparem,e que lhes concedam a sua autonomia. No comprehendemos queas almodem e vendam como rebanhos de carneiros inconscien-tes. A Hespanha, tendo recusado dar a autonomia aos cidadcos daHavana, e vendendo as Filippinas depois ao Estrangeiro, deshon-rou-se. Sobretudo, o que se pretendeu salientar na satyra foi o di-reito moral: que a nenhum homem assiste o direito de ve'ioutro homem.

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    O Hereje

    (cauta a ima rainha) *

    Senhora

    .... eu nunca inculto as testas coroadas,para agradar da plebe s massas rebelladas,ou incitar ao dio a ira popular. .

    No, nunca insultarei uma mulher e um lar,o nome de uma esposa, o nome de uma me.para o arrojar ao charco, ao estigma, ao desdm, vaza da ruella e ao esgoto das paixes . . .

    Tambm os plebeos teem sublimes coraes.Tambm conhece a Plebe as santas regalias,que tem uma mulher s doces sympathias,

    1 Esta carta, dirigida a D. Maria Pia de Saboya, foi escriptano crcere.

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    GOMES LEAL

    por ser filha de heroes, boa, justa, ou prudente. .Tambm a Plebe sabe, a rude Plebe senteter respeito, como eu, esposa, creancinha, e ao diadema da Me maior que o da Rainha.Nunca vos insultei. No. Nunca houve um poeta,nunca houve uma alma forte, enrgica, repletadas cousas ideaes, fortes, gloriosas,que aspiram para o Sol pae da planta e das rosasno, nunca houve um poeta, ou que o merea ser,que arrastasse no enxurro uma digna mulher . . .Eu fustiguei, Senhora, um crime negregado,e marquei-o no hombro assim como um forado,que laivam, com um ferro, exposto em pelourinho. .Fez-se em torno de mim, Senhora, um burburinhode palmas, saudaes, de gritos, de ameaas,como nas sedies que estrugem pelas praas,e fazem desmanchar o somno dos monarchas. .Menearam a fronte os velhos patriarchas,rgulos da opinio, nobres, e senadores,e estes biltres, Senhora, estes calumniadores, com falsos coraes assim como os cabellos,mostraram pelo throno os seus gothicos zelos,e regougaram, vis, nas alfurjas e orgias,que se havia empestado o globo de heresias

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    FIM DE UM MUNDO 49

    Eu, Senhora, bem sei que n'este tempo egostavende a balana a Lei e a penna o jornalista.Eu bem sei que a misso torpe das camarilhas dobrar o joelho e bem vender as filhas.Bem sei que altos bares sentem dever beijar-vosna frente a rgia mo, e atraz calumniar-vos.Portanto, a sua voz no tem authoridade.Mas eu fallo em teu nome, lcida Verdade 'em teu herico nome, intrpido, selvagem, tu que fugiste ao mundo e lgubre carnagem, mentira, violncia, s luctas, ao destroo, tu, que a musa pag lanou dentro de um poo.Sim eu fallo em teu nome. Alcunham de heresiaa immaculada Ida, a mystica Utopia,que rebenta qual flor de um craneo visionrio . . .Chamam hereje ao ente altivo ou extraordinrio,que cheio do ideal das frreas cousas bellas,tem uma alma que faz viagens nas estrellas,e ao descer do seu monte, ao mundo sem respeito,vara de lado a lado o olho do Preconceito.Todas as cousas vis que os homens sentem baixo,e vo rosnando ss, qual rasteiro riacho,todas as cousas ss, leaes, ou verdadeiras,toda a flor ideal que cresce nas ladeiras

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    das montanhas azues extacticas e virgens,nas allucinaes do Sonho e das vertigens,todas essas vises e flores arriscadas,que abalam todo o ceo das cousas consagradas,e os idolos de pau das religies extranhas, .

    | que em vez de corao teem teias d'aranhas, todas as cousas vs, ranosas, bolorentas,que o hereje chama- vis e o mundo chama bentas,toda a Verdade e o Mal que os mais sabem calarelle dil-as bem alto Plebe, ao Throno, ao Altar.Todos os ideaes, pois, que aos sbios so precisosmas que vo, d'uma vez, aluir os Prejuzos,que vo esboroar os idolos desfeitos em lixo, entulho, em p, ruir os Preconceitosplebeos, civis, moraes, mysticos, religiosos,elle ao mundo os aponta ignbeis, carunchosos.Logo que se ergue ao ar a ponta da batina, algum manto real, toda a cousa divina,beijada com ardor dos lbios, consagrada,e se arroja esse trapo publica risada,faz-se logo, em redor, um pnico,' e almas friasclamam a cousas taes: nefastas heresias

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    FIM DE UM MUNDO 51

    por isso que eu sou, Senhora, perseguido. por isso que sou dos vossos combatido,e por isso que vo, excepcional successocontra mira apontar a arma de um processo.Por isso, emfim, ao rei, os aulicos da orgiasupplicam para mim as palhas da enxovia,e calvos sensuaes, postios monarchistas,risveis charlates, espcie de dentistas,chus como trues, pulhas como arlequins,dos quaes conheo a vida e os desprezveis fins,fazendo interjeies e artigos empalhados,reclamam para mim o exlio dos forados. Mas ento eu direi as cousas mais tremendas.Eu ento trilharei as ignoradas sendas,e os carreiros por onde inda ningum trilhou.So uns trilhos reveis, uns trilhos que eu sei s,como os fundos de Goya ou o Zurbaran, funreo,com um luar sanguento, em penumbra mysterio .Senhora, vs viveis n'um sculo fatalO nosso sculo um sculo originalcheio d'agitaes, de gritos convulsivos,de apostrophes cruis, de risos afflictivos,de clera, exploses, agrilhoar de pulsos,de blasphemias do dio, ancis, e ais convulsos.

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    52 GOMES LEAL

    Vs no o conheceis Vossos rgios ouvidosno tem chegado a ouvir sequer esses rudosda tormenta que vae nas nuvens engrossandoe, a pouco e pouco, o monte e o valle amortalhando.Os biltres malandrins que chamam cortezos,que vivem junto a vs beijando as rgias mos,fallando em salsifrs, em saros, em caadas,oh no vos contam nunca as lendas negregadasque tornam duro aos reis o manto sobre os hombros,e todo o globo afunda em pnicos e assombros. .Estes casos fataes deviam, sim, contal-os,a vs que sois os reis, os prfidos vassallos,por que estes que so rudes e hericos zelos e que burlar os reis o mesmo que perdel-osOuvi, Senhora, ouvi. Um tempo bem extranho este em que viveis. Como Jesus, o lenhoque elle leva, a suar, com custo, ao seu calvrio,j todo escorre em sangue em cima do sudrio . .Sentem-se resoar nos thronos os machados.Rollam, na rua, os reis, na lama apunhalados.E n'estas ancis vs, destroos, desatinos, s vezes teem raso, horror os assassinos.Sim, a Rssia, direis, terra monstruosa.Mas a Itlia tambm. . . a Mater Dolorosa,

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    FIM DE UM MUNDO 53

    vosso anilado ceu, pallida Estrangeira,a Itlia. . . onde floresce a flor da laranjeira,v luzir, atravez seus myrthos e rosaes,o olho do assassino e a lngua dos punhaes. . que este sculo um sculo que anceia,que destroe e que nega, emquanto o Sol semeia. que este tempo emfim. . . vago, obscuro, disforme.cheio de negaes. . . ah tressuado, dormeum trabalhado, mu, horrendo pesadello. .Ningum vol-o pintou. Eu vou vos descrevel-o. N'outro tempo, Senhora. em tempos fabulososantigos animaes, dos bicos judiciosos,deixavam deslisar as lcidas verdades,que escutavam a plebe, os reis, as divindades. .O apologo moral fazia mais effeitoque o brbaro latim. Calava pelo peito.E escutavam os reis a voz dos infelizes,na voz dos animaes, da arvore, das raizes. .

    Assim tudo direi, sem que este mundo estultome arroje a accusao de que a Rainha insulto.Tambm, Senhora, vou seguir a mesma senda.D'este sculo extranho ouvi pois a legenda :

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    O H E R E J ELEGENDA DA NEGAO

    Ora isto succedeu, em eras j passadas,n'uma cidade velha e grande, beira-mar. .com ricas cathedraes de pedra rendilhadas,palcios, templos, ces, e forcas levantadas,em que o vento fazia os mortos balouar.

    A Cidade era enorme, infame, deshumana,terrvel como a Morte e o luto de um destroo.E, ante a espada da Lei, desptica e tyranna,sentia-se ali mal a Conscincia Humana, como no fundo frio e fnebre d'um poo.

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    FIM DE UM MUNDO 55

    Do palcio real em frente s gelosiasa Forca erguia ao ar seus braos nunca enxutos.E, altas horas, mui tarde, em quanto, nas folias,\se danava no pao, aos uivos das urgias,torcia a Forca, ao vento, os seus malditos fructos.

    Mas, ao lado da Forca, antithese frisantedesafiando os Cus, os Tempos, o Porvir. .na grande cathedral hiertica e brilhante,um diabo de pedra, irnico e gigante,olhava as Geraes, continuamente a rir.

    Passavam-lhe, por baixo, as vis aventureirasdas torpes capites, aonde o Vicio medra . .enterros, procisses com musicas guerreiras,ruidosos batalhes com trmulas bandeiras. E sempre em cima ria o Satanaz de pedra.Mas o medo papal e o rgio despotismofaziam aterrar e desmaiar a cr.E a Forca e mais a Cruz, caladas como o abysmo,lanavam sobre a alma um negro magnetismo,e estendiam na Plebe as azas do terror.

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    5G GOMES LEAL

    Desfillavam, noute, em lgubres theorias,funestas procisses, s luzes dos archotes.Eram autos de f, e ao vento das orgias,juntavam-se s canes e aos psalmos d'agonias,os rugidos de morte e os silvos dos chicotes.

    Perpassavam, em baixo, os cantos das violas,assassinos, ladres, aonde o Vicio medra . .mendigos, estendendo os braos s esmollas,enteri-os, procisses, e padres com estollas. E sempre, em cima, ria o Satanaz de pedra.Mas, apenas o sol morria nas collinas,a Cidade era igual a uma cidade morta.Recresciam os ais e as maldies das minas,e viam-se, atravs das nvoas e as neblinas,magros homens fataes errar de porta em porta.

    Dobrados e servis s ameaas cruasdo negro Cadafalso e excommunho papal,os povos, com terror das mil espadas nuasdo Palcio arrastando as barbas pelas ruasprostravam-se ante a Forca, o Pao, a Cathedral.

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    FIM DE UM MUNDO 57

    Ora, houve um homem s, na trgica Cidade,que mais alto clamou n'aquella humilhaoque a lanterna accendeu na amarga escuridadee luz d'ella pregou a Nova Humanidade,Novo Cu, Nova Terra, e Nova Religio.

    Na fnebre Cidade, os povos aterradostomaram-lhe um pavor secreto e repentino. Olhavam-o, ao passar, nas ruas, assombrados. Paravam, para o vr, os aldees crestados. Vinham, porta, as mes, fiando o linho fino.Como o nocturno Fausto, amava os pergaminhosdo estudo, a estreita cella, o campo, as cousas mansas.Sorria s cathedraes hierticas e aos ninhos,parando, ao pr do sol, nas curvas dos caminhos,para affagar, calado, as frontes das creanas.

    Demandava o silencio, a sombra, o cemitrio,os atalhos lua, e a serra culminante.Mas, ao verem passar seu vulto magro e srio,tremiam aldees do frio do mysterio,como, em Florena, as mes quando passava o Dante.

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    58 ( 40MES LEAL

    Pelas noutes sem luz que o cu est desoladocomo a larga extenso do clido deserto,grave, srio, quieto, extactico, calado,a fronte sobre as mos, e a lmpada a seu lado,ficava o Hereje a lr, sobre o seu livro aberto.

    Mas, deixando, uma noute, a cella e os pergaminhos,s, calado, a scismar, nas serras denegridas,atravs dos tojaes, dos cardos, dos espinhos,chegou o Hereje a um trilho entre quatro caminhos,onde erravam, sem tecto, lua, os homicidas.

    Todos eram fataes, rebeldes infelizes,varridos dos tufes da sorte e dos labus . .errando sempre a monte, entre hervas e raizes,fugidos das prises de todos os paizes,sem conhecerem Lar, Famlia, Tecto, ou Deus.

    E, ento, o Hereje viu esses que a Sociedadepara sempre do seio avaro repelliu.E, sentindo, no peito, o dardo da piedade,atravs dos tojaes, da lua claridade,de rastos se estendeu. Ora eis o que elle viu :

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    II

    OS ASSASSINOS

    Viu quatro homens viris de rostos bronzeados,marcados pelo dio e o arado das Paixes . .4'esses homens que ho visto os reinos devastados,os degredos, prises, os povos degollados,outros reis, outros cus, outras religies.

    Esses homens de certo haviam j choradoas lagrimas de sangue amargas do Rancor.E haviam j sentido o peito trespassado,-como a espada que rasga o peito d'um soldadopor algum monstruoso ou interdicto amor.

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    PRIMEIRO ASSASSINO

    O primeiro assassino, erguendo o seu punhal,com lagrimas na voz, da lua claridade . . .rugiu: - meus irmos, filhos como eu, do malse eu sou o vosso heroe, vosso emulo, rival,fratricida e ladro devo-o Sociedade.J amei o Direito, e a Forma triumphante,

    Familia, Tecto, Lar, e as tmidas creanas.E ah tambm, ah 1 tambm, nas nuvens do Levante,cr d'ouro das vises. . . vi o perfil distantede uma mulher fiel e de compridas tranas . .

    Tambm, outr'ora, amei meu tecto de nascena,meu largo poo entrada, os meus curvados Paes . .Tambm, antes que o Crime, em mim, fosse doena,amei Familia, Lar, amei a Esposa e a Crena,meu verde parreiral, e meus seres nataes

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    FIM DE UM MUNDO 61

    Mas, o mundo infernal, duro, luciferino,que nos nega o trabalho, os jbilos, o poescoltado da Fome e as garras do Destino,fez que, como Kain, o bblico assassino,n'um atalho sem luz matasse meu irmo.

    Desde ento. . . embrenhei minha alma no desgostoinnarravel e mau de todos os viventes . .Varri d'alma o Direito e o jubilo do rosto:e comecei a errar, nas sombras do sol posto,nos trilhos dos ladres, ao estrondo das torrentes.

    SEGUNDO ASSASSINO

    Eu amei muito o Christo, os templos, os altares, o segundo gritou amei as Cathedraes,amei o Ceu, o Eterno, e os bblicos logares,em que o Christo passou, sombra dos palmares,fallando s multides, nas tardes orientaes.

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    62 GOMES LEAL

    Eu amei as regies das santas caravanasem que o Christo pregou as grandes cousas ternas E cheguei a chorar. . . s cousas sobrehumanas,que elle vinha dizer, meigo, s Samaritanas,nas grandes solides, boca das cisternas.

    Mas, um padre uma vez, -- cultos que eu amavaa esposa seduziu-me e profanou-me o lar.E, ento, minha alma em ira, e das paixes escrava,na egreja penetrou, quando elle officiava,e o seu sangue jorrou sobre os degraus do altar.

    Desde ento. . . a minha alma, amarguradamente,perdeu o amor ao ceu e aos cultos mais egrgios.Meu respeito fez-se dio eterno e de repente.E mais, e mais, e mais, irremissivelmente,acostumeiyninha alma aos grandes sacrilgios. >

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    FIM DE UM MUNDO 63

    TERCEIRO ASSASSINO

    Para que hei de contar a minha infame historia o terceiro gemeu Ella no tem rival.Eu tive um nome antigo e nimbado de gloria.Mas hoje um nome vil . . . varrido da memoria,como o indigno p que varre o vendaval . .

    Meu pae era um senhor, que havia seduzidouma mulher da plebe, a santa flor materna Eu, filho natural, vivia submergidoua opulncia ducal, no fausto, no ruido,nos delrios carnaes, no jogo, na taberna.

    Mas eis que o Acaso fez constar-me que morriai velha me fome e exhausta de canasso . .Domo um leo rugi e, n'esse mesmo dia,lo histrico solar a larga escadariai velhinha, a chorar, subiu pelo meu brao.

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    < Porm quando Elle viu do seu Remorso o espelho,pela escada arrojou a velha alma do povo.Ah que mais vos direi . . . Por muito tempo o Velho,muito tempo arquejou debaixo do joelhocom que eu o estrangulei . . . robusto, ardente, e novo

    Desde ento, afundei minha alma em penas mestas,e senti, cada vez, as noutes mais compridas . .Ah perseguido andei, por antros, por florestas,e as estradas crusei, pelas luas funestas,onde vagais, como eu, sem tecto, homicidas . . .

    QUARTO ASSASSINO

    Eu amei, e inda amo as grandes Utopias, disse o quarto assassino Amei as grandes massas.A favor do Direito, alu as dynastias,e da espada arranquei, n'outros infaustos dias,contra o russo Czar, nas sedies das praas.

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    FIM DE UM MUNDO 65

    Fui sempre o mais audaz nas santas barricadas,e o que primeiro lucta a Plebe arremessei.E, a favor de milhes d'almas escravisadas,sob os frreos grilhes das minas bronzeadas,em o sangue real o meu punhal manchei.

    Depois do regicdio, em toda a parte, errante,vaguei como os atheus e os grandes empestados . ,fugido, como andou por toda a parte o Dante, longe da excommunho do Existente ovante, longe das Capites, longe dos povoados . .Mas um dia vir e. aqui, o regicida

    fez luzir o punhal da noute aos mil clares . . . que matemos a Fome e a Sede n'esta vida que durmamos, sem ser na relva humedecida e vinguemos, no mundo, irmos, as illuses . .

    O Hereje viu ento ; nas mattas dos carvalhos,e atravez dos tojaes, os magros assassinos,ao calado luar, nas curvas dos atalhos,aastar-se, cada um aos seus fataes trabalhos, lucta, ao sangue, morte, ao incertoaos seus destinos.

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    E, ento o Hereje ergueu-se, e disse: velhos mundo?que gyraes, sem cessar, sobre as nossas desgraas . .tenho visto as paixes, gritos, beijos immundos,a Raiva, o Desespero, os prantos infecundos, mas hoje vi-te dio e indignao das RaasEstes homens sem lar, exti*anhos, desgrenhados,que eu vi lanar na terra a sua excommunho . . .ho de matar os reis na lama apunhalados,e os nomes que traro sobre os punhaes gravadossero Fome, Vingana, Incndio, Negao. *E o Hereje poz-se a errar^ depois, pelas ladeiras,atravez dos tojaes, com sacudidos passos. .e, da Cidade j nas lgubres barreiras,viu sobre os torrees, zimbrios, e bandeiras,a Forca erguendo ao ar os seus cruentos braos.

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    III

    A FORCA

    A Forca estava ali na vil passividade,balouando, na nvoa, os fructos do terror . .de cima contemplando a lobrega cidade,eallada como os ceos, velha como a Maldade,terrvel como Deus grande e exterminador.

    Ento, no azul nocturno, immovel, e callado,o pensador gemeu, com gestos de vingana: Maldito o lenhador maldito o seu machado que te arrancou um dia ao teu bom cho amado. Antes tu fosses, Forca, um bero de creana

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    Malditos para sempre esses que te esfolharamas flores virginaes no verde cho natal. .Malditos os gavies que em cima te pousaram Malditos os milhes de reis que te arvoraram Antes tu fosses, Forca, um leito nupcial Maldito o que quebrou teus dentes de raizesno tempo em que caa em tua rama o orvalho . .Maldito o que te trouxe aos soes d'outros paizes,para seres o horror dos orphos e infelizes Antes tu fosses, Forca, a meza do trabalho Maldita para sempre . . . Ortr'ora nas ramadaslavava-te o luar, 6 arvore assassina . . .Mas hoje expes o morto, ao frio das noitadas,ao abutre . . . e aos batalhes d'aguias esfomeadas Antes tu fosses,. Forca, a roda da officina< Maldita para sempre infame e sem respeito,que s na onda da Vida o trgico recife . . .que s como a meretriz que admitte no seu leitoo ladro, o assassino, e o martyr do Direito Antes tu fosses, Forca, as taboas d'um esquife

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    FIM DE DM MUNDO 69

    Mas a arvore cruel, antiga, monstruosa,que regada com sangue os braos levantou e, n'uma grande voz extranha, mysteriosa.mixto de excommunho e magua dolorosa,pela nvoa gelada, ao Hereje assim fallou

    certo eu sou espectro antigo e solitrio,que fao afugentar as ondas de andorinhas . . .Mas j o tempo vem, o tempo extraordinrio,em que os reis pendero tambm do meu calvrio,e as guias roero os corpos das Rainhas . .

    - Meus braos tenho entregue Plebe sem gloria.e ao assassino, ao ladro, accommodado em leitos.Mas o tempo vae vir excepcional na Historia,em que unirei ao peito a pallidez marmreados corpos semi-ns, fidalgos, e perfeitos . . .

    No sero os da Plebe, escravos e animaes,que ho de regar-me ento as trgicas raizes Os abutres tero os seus festins reaes.E hade-se ouvir fiivar, na solido dos ces,o vento a balouar brancas Imperatrizes.

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    Calcinada do sol, mordida da poeira,jamais descanafei, como bacchante nua.Meus braos mancharo a flor da larangeira,mitras, sceptros, anneis . . . Serei como a rameiraque noute, no seu leito, admitte toda a rua

    No matarei ento os homens do Direito,santos craneos sonhando as glorias das naes . .que teem despido espada e s balas o seu peitoMas os reinos, um dia, ao erguer-se do seu leito,vero morrer seus reis, no meio dos ladres

    Muito corpo real, com vinte primaveras,lcteo, bello, gentil, balanarei lua . . .E o Christo, ao vr-me l, de cima das espheras,julgar inda olhar, nos crculos das feras,um monstro devorando alguma Santa nua.

    Ah ... os tempos viro de ira e clera accesa,que ha de soprar no globo o dspota Jehovah . . ,Mas um dia, afinal, j cheia de tristeza,velhice, tdio, clr, na santa Naturet,emfim acabarei. Ea insnia acabar. >

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    IV

    O DIABO DE PEDRA

    Mal a Forca parou rindo para as estrellas,Satanaz gargalhou, com cynicas risadas< Tambm eu sei scismar em altas cousas bellasquando a cidade fecha os olhos das janellas,e que o luar azula as pedras das caladas . . .

    Aqui na boa unio dos Santos mais notveis na velha Cathedral, eu scismo nos mysterios . .E emquanto os Ermites, com barbas venerveis,e os Prophetas vo lendo, em livros detestveis,eu contemplo as prizes, bordeis, e cemitrios . . .

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    Ha muito que presinto o teu cavallo escuro, Nada . . . vir rondar por estas noutes frias . . .Bem vejo a tua mo pesar sobre o Futuro.E, nos brdios dos reis, escrever sobre o muro.a sentena fatal que diz apoplexias Bemdito sejas tu, Nada . .. Bemdito sejas,

    largo caixo dos reis, dos Borgias, dos Tiberios . .tu, que sabes pr cobro ao Champagne e s cervejas,tu, que fazes ruir as torres das egrejas,e teu corcel pastar na herva dos imprios . .

    Vamos, Egreja Egreja ... ergue-te sem tardana.S. Jeronymo corre ao tribunal moderno.A Morte quer pr fim mystica papana. Pede a S. Paulo a espada, e a S. Miguel a lana. Traze comtigo o Borgia, a Inquisio, o Inferno . .Tua gloria passou, piscatria falua . . .

    Corpo gentil dos reis . . . Senhora dos desdns . .em breve vr-te-has, sem dentes, magra, nua,mais descomposta e ao lo, do que em judaica rua,a velhota de Achab, roda pelos ces . .

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    FIM DE UM MCNDO 73

    As taboas dos caixes rangem, tardiamente.Vo enterrar os reis, senhor's de garra adunca Christo j no convm a um ideal coherente.A estrella clerical expira, fscamente,qual bao lampeo no cho de uma espelunca . .

    Um dia, ho de contar, abbadessas bonitasdas borgas monacaes a pia corrupo . .e achincalhar at, (Ijngoas ms e precitas) Santo Ignacio que deu a ronha Jesutas, S. Domingos que assou quasi o orbe ehristokAinda ha pouco ouvi na verde Natursa,

    uma hertica voz solemne, firme, e fria,gritar: Vae Razo sem medo e com firmeza,deitar o Padre e o Filho em cima de uma meza,abril-os . . . e estudar-lhe em cima anatomia.

    Christo . . . teus padres vo na terra, mansamente,roubar a filha, a me, a honra aos infelizes . .Vejo-os sempre a minar o mundo surdamente,como vo, sob o cho, pitar, nocturnamente,o corao do morto as pontas das razes . .

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    GOMES LEAL

    Beatos que passaes as contas dos rosrios,os templos vo cair nas brumas infinitas . .Acabareis tambm, Santos Solitrios Virgens Doutos da Lei Martyres dos calvrios

    Victimas da Illuso . . . Apstolos Ermitas < Sim, Santos morrereis, vs que errastes nos brejos,da Canicula ao sol inhospito e implacvel . .que andastes a fugir s tentaes dos beijos,clamando, tanta vez, na raiva dos desejos,pela Carne gentil, macia, e miservel . .

    Acabareis tambm, Santos dos altares,que fostes, atravez das plantas assassinas . .das florestas, dos soes, das solides polares,cheios de tentaes mais brancas que os luares, uivar, chorar, fugir das formas femininasAcabareis tambm, Virgens. . . niveos arminhos . . .

    e por fim todos vs, Ascetas das cavernas . . .que haveis chorado sangue em pedras de caminhos,que haveis sentido a sede e os dentes dos espinhos,a clera do Sol e a lama das cisternas . .

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    FIM DE UM MUNDO 75

    / As Eras cumpriro as inflexveis sinas,e tudo acabar Cultos, Symbolos, e Ritos.Acabaro tambm as frmulas divinas,e no Ceu essa casa histrica e em runaso Eterno, o senhor Dcos . . emfim por escritos.

    E eu morrerei ento. . . junto s virgens e s freiras. .ao p dos coraes onde a Virtude medra . .E no mais hei de ouvir as musicas guerreiras,enterros, procisses, com trmulas bandeiras. No ficar a Egreja a pedra sobre a pedra . .

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    V

    NIHI

    Elle assim gargalhou. Mas eis que, ao fim, distante,em seguida, o homem viu, como nos pezadelos . .desfillar uma turba enorme, semelhante horda extraordinria, horrvel, ululante,que geme nas prises dos immutaveis gelos.

    E, ento, o Hereje viu, sob os seus ps, o abjrsmotenebroso e cruel dos trgicos mineiros . .e as entranhas da terra aonde o despotismopara sempre afundou na treva e no mutismoos frreos coraes dos homens justiceiros.

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    FIM DE DM MUNDO 77

    Todos eram viris rostos indecifrveis,como os que o Dante viu nas solides eternas : magros, de longas cs, immundos, miserveis,chagados, semi-ns, terrveis, formidveis,arrastando, grilhes, s luzes das lanternas.

    Muitos d'elles, no mundo, haviam esmagado,na lucta do Direito, o forte corao.E, ao chegarem ao Hereje, extactico e atterrado,n'um funreo clamor, cortando o ar gelado,assim rompeu a extranha e torva procisso:

    OS PRESOS DAS MINAS

    Ns somos os que teem, mil vezes, justiceiros,apertado na mo as armas assassinas. .clamando contra o rei dos lobos carniceiros,e, com prantos de sangue, aberto mil carreiros,no negro e rido cho das regelladas minas . .

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    Ns somos os heroes vencidos, rebellados,a quem o Czar votou a sua excommunho . .Somos o bando hostil dos indisciplinados,que andamos a escrever nos reinos flagelladosas letras de protesto e gelo, Negao.Nas ftidas prises, nas solides dos gelos,

    vagamos semi-ns, s luzes dos archotes.Contemplmos, ao longe, arder nossos castellos,e das filhas, das mes, os brancos corpos bellosrolarem, sobre o sangue, aos silvos dos chicotes

    ' Ns somos a quem teem, desde remotas eras,desflorado a mulher, assassinado as mes . .Somos os que no teem soes, luas, primaveras,aquelles a quem teem caado como as feras,aoutado sem d, como se faz aos ces . .

    Temos visto as prises, as villas saqueadas,o incndio, o aoute, o algoz, os ferros assassinose deante de ns, varados das espadas,morrerem, estendendo as suas mos rosadas,sobre os peitos das mes, os filhos pequeninos.

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    FIM DE UM MUNDO

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    80 GOMES LEAL

    N'esse dia estaro cheios de sangue os rios,e os Justos lavaro as suas mos nas vaus. .Ir a Negao i*einar nos cus sombrios,e, nos thronos dos reis desertos e vasios,havemos de assentar a Morte nos degraos.N'esse dia far-se-ho cruentos sacrifcios,

    e ho de esconder-se os reis, ouvindo o nosso berro A Vingana erguer seu throno nos flagcios. A Ira ensopar a esponja dos supplicios. E o dio reinar com seu sceptro de ferro.

    Calou-se a grande turba. E o Hereje viu no escuromergulharem de novo os vultos macilentos.E o Hereje disse noute : Espectros do Futuro escravos d'um destino avaro, egosta, e duro,dizei-me se existis ou sois meus pensamentos ? . .E, . pressa, se embrenhou na frigida neblina,com um passo convulso, intrpido, febril.Mas, tomado d'um impeto e clera divina,como um signal de morte, estrago, e de ruina,gravou, no rgio pao, esta palavra Nihil.

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    FIM DE UM MUNDO 81

    No outro dia, velha e devassa Cidade,narrou tudo que vira e ouvira singular.E jurou pela Terra, o Espao, a Eternidade,que ia soprar no mundo um vento de maldade,e em breve acabaria a Egreja, o Throno, e o Altar.Quando taes cousas disse . . . um lgubre clamorse levantou em torno, assim como um tufo.Depois fez-se um vasio, e um pnico, em redor,e o velho Bispo, em p entre o geral terrormagro, hirto, as mos no ar, Ianou-lhe a excommunho.

    Maldito, desde ento, caado como as feras,vagou de terra em terra, ao sol, fome, ao frio. No lhe luziram mais os soes e as primaveras. Desceu, cada vez mais, as infernaes espheras. Ululou, como um co famlico e com cio.Bronzeado dos soes, minado de desgosto,correu o globo i