fridman vertigens pós-modernas

14
62 LUIS CARLOS FRIDMAN A reinvenção contínua de instituições, a especialização. flexível de produção e a concentração de poder sem centra-. lização erige um novo sistema de dominação. O isolamen- to, a destruição de laços e o custo pessoal da inserção nessa institucionalidade mutante compõem a fragmentação dos indivíduos na era da especialização flexível. Em sentido mais geral, no refinado marxismo de Richard Sennett, a fragmen- tação da narrativa pós-moderna é a experiência do tempo na moderna economia política. Assim, a corrosão do cará- ter dos indivíduos é um dos desafios mais contundentes à reflexividade contemporânea. --------co neXães-------- ,\ :;1'\ VERTIGENS roS-MODERNAS - A SUBnrrnnDADECONTEMWORÂNEA FR\DMAN.í ~ ~. ~ ~.~.~cli.~':~ '2..000. J>I>. (03 -~q : .. Este capítulo tratará das oscilações e vertigens que afetam a intimidade de homens e mulheres contemporâneos em virtude da velocidade das mudanças ocorridas nas últimas décadas. O esclarecimento das causas sociais da ansiedade atualmente vivenciada não deriva de uma fonte exclusiva, podendo ser buscado na investigação da cultura, do traba- lho, da globalização ou da constituição da ordem pós-mo- derna. No nosso tempo, a insegurança, o medo e a fragili- dade dos laços contraídos pelos indivíduos entre si atestam as dificuldades de construção da identidadeem um mundo marcado pela pluralidade e por alterações significativas na institucionalidade. ,I Se a modernidade trouxe para cada pessoa a tarefa in- -,,' !J' transferível de autoconstituição - em contraste com as socie- I, ! dades tradicionais em que as identidades eram atribuídas -, a pós-modernidade tornou essa empreitada assoberbada pois, como percebe Richard Sennett, as instituições vivem se desfazendo e sendo continuamente reprojetadas. No sen- so comum, as conseqüências pessoais desse processo são reduzidas a uma metáfora pobre das transformações tecno- lógicas e da instantaneidade da comunicação eletrônica. Compara-se, por exemplo, a memória ou a inteligência com o funcionamento do computador. Uma das traduções des-

Upload: alexander-martins-vianna

Post on 18-Jun-2015

785 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

62 LUIS CARLOS FRIDMAN

A reinvenção contínua de instituições, a especialização.flexível de produção e a concentração de poder sem centra-.lização erige um novo sistema de dominação. O isolamen-to, a destruição de laços e o custo pessoal da inserção nessainstitucionalidade mutante compõem a fragmentação dosindivíduos na era da especialização flexível. Em sentido maisgeral, no refinado marxismo de Richard Sennett, a fragmen-tação da narrativa pós-moderna é a experiência do tempona moderna economia política. Assim, a corrosão do cará-ter dos indivíduos é um dos desafios mais contundentes àreflexividade contemporânea.

--------co neXães--------

,\

:;1'\VERTIGENS roS-MODERNAS - A

SUBnrrnnDADECONTEMWORÂNEAFR\DMAN.í ~ ~. ~~.~.~cli.~':~'2..000. J>I>. (03 -~q

:..

Este capítulo tratará das oscilações e vertigens que afetama intimidade de homens e mulheres contemporâneos emvirtude da velocidade das mudanças ocorridas nas últimasdécadas. O esclarecimento das causas sociais da ansiedadeatualmente vivenciada não deriva de uma fonte exclusiva,podendo ser buscado na investigação da cultura, do traba-lho, da globalização ou da constituição da ordem pós-mo-derna. No nosso tempo, a insegurança, o medo e a fragili-dade dos laços contraídos pelos indivíduos entre si atestamas dificuldades de construção da identidadeem um mundomarcado pela pluralidade e por alterações significativas nainstitucionalidade.

,I Se a modernidade trouxe para cada pessoa a tarefa in--,,' !J' transferível de autoconstituição - em contraste com as socie-

I, ! dades tradicionais em que as identidades eram atribuídas -,a pós-modernidade tornou essa empreitada assoberbadapois, como percebe Richard Sennett, as instituições vivemse desfazendo e sendo continuamente reprojetadas. No sen-so comum, as conseqüências pessoais desse processo sãoreduzidas a uma metáfora pobre das transformações tecno-lógicas e da instantaneidade da comunicação eletrônica.Compara-se, por exemplo, a memória ou a inteligência como funcionamento do computador. Uma das traduções des-

Page 2: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

64 LUIS CARLOS FRIDMAN

sa idéia na interpretação da sociedade contemporânea é quea informação disseminada fortalece inevitavelmente a de-mocracia e contribui para um mundo melhor ao tornar osindivíduos mais astutos e mais críticos.

Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia de 1999, aoestudar as motivações dos agentes econômicos, concluiu queo mundo está cheio de rational 10015. E acrescentou: "Comcerteza o mundo inclui Hamlets, Macbeths, Lears e Otelos.Os tipos friamente racionais podem habitar nossos livros,mas o mundo é mais rico" (Sen, 1992: 111). A ênfase exclu-siva nas imensas possibilidades abertas pelo acesso aos es-toques mundiais de informação tende a considerar que essetipo de experiência deixa para trás as vidinhas ta I como fo-ram vividas até agora, como se cada indivíduo, devidamentepotencializado em seus recursos, estivesse em inequívoca epositiva expansão. Parafraseando Sen, o mundo pode estarpovoado de connected [ools.

"Eu e meu computador" é um roteiro que minimiza aimportância do conjunto de processos sociais que ambien-tam e atordoam as vivências subjetivas na atualidade. Tam-bém permite caricaturas: os poderes da "placa-mãe" quetemos à disposição em nosso cantinho nos conecta com omundo através da mãe das mães, a Internet. O pai pode serBill Gates, simbolizando a riqueza infinita da nova econo-mia, que estende seus códigos e linguagens para nos lan-çarmos no mundo e rompermos a simbiose regressiva como local. Como demonstrou Karl Marx, o desenvolvimentodas forças produtivas força os limites da organização eco-

. nômica estabelecida, mas não altera o conjunto das relaçõessociais, que depende da intervenção humana. O determi-nismo tecnológico - que estipula o novo estágio da vidasocial pelos avanços de seres humanos associados a cabos,bases e ligas de metal que recebem e transmitem sinais -não é suficiente para esclarecer a distribuição dos afetos, os

I

I~·I

'!)

t

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 65

valores, os projetos, os desejos, as volúpias e as renúnciasdos indivíduos contemporâneos. Há incompletude, preca-riedade e terror em tanta mudança auspiciosa.

Em sentido menos apologético do alcance das alteraçõesem curso, surge o diagnóstico da fragmentação da subjeti-vidade contemporânea. No individualismo pós-moderno detodas as conexões do ser, os "certificados de existência" sediluem, A vida torna-se errática pela multiplicidade e pelafluidez, o eu se despedaça nas redes de comunicação, osindivíduos sentem-se investidos de solicitações bizarras natarefa de inventarem a si próprios, a plasticidade e o pasticheincorporam-se às maneiras de viver, estilos se confundemcom as ofertas mais recentes do universo das mercadorias,a unidade se desfaz no descarte sucessivo de intensidadesmomentâneas e os estados de ansiedade se acumulam. A.autenticidade e o senso de uma interioridade auto-susten-tável partem-se em vivências desagrega das ou, para quemnão agüenta esse tranco, em insegurança e angústia. A iden-tidade, sob a marca da transitoriedade, nunca se completa.O "medo ambiente", expressão já presente no debate socio-lógico, condensa as indagações se o cenário da vida socialcontemporânea oferece suportes sólidos para a construçãoda identidade.

As interpretações dessa experiência partem da consta-tação da fragmentação mas salientam mecanismos sociaisdiferenciados para a ocorrência do fenômeno. No campodo marxismo, Fredric Jameson realça a vivência esquizo-frênica do "eterno presente" pela preponderância da mídiana cultura pós-moderna e Richard Sennett caracteriza o"eujamais acabado" pela experiência do tempo na modernaeconomia política. Na sociologia francesa, Alain Touraineexplora a tensão entre os processos de racionalização e desubjetivação enquantofios condu tores da mcdernidade,delineando as possibilidades de os indivíduos se tornarem

Page 3: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

66 LUIS CARLOS FRIDMAN

sujeitos ou meros consumidores. Anthony Giddens inves-tiga a insegurança ontológica perante os riscos globais ebusca verificar as conseqüências da expansão do conheci-mento no "projeto reflexivo do eu" e na "democratização.das emoções". Zygmunt Bauman, o criativo sociólogo-filó-sofo da pós-modernidade, trata da angústia dos indivíduostransformados em "colecionadores de experiências e sen-sações", ou seja, impelidos à busca permanente de novos_êxtases no consumo. As concepções desses autores resul-tam em considerações sobre a ação política.

Krishan Kumar (1997: 64) observa o declínio dos parti-dos políticos nacionais baseados em interesses de classe e osurgimento de movimentos e "redes" sociais baseados emregião, raça, sexo ou política de assunto único (como, porexemplo, o movimento antinuclear). O declínio dos sindi-catos de categorias inteiras e de negociações salariais cen-tralizadas acompanha o esfacelamento de benefícioscoletivistas da Previdência social e o fornecimento privadode benefícios sociais. De outro lado, novas formas de açãopolítica focam a estruturação familiar e os estilos de vida.

Quando as demandas da intimidade - que transbordamdo leito dos interesses materiais - tornam-se fonte de lutapelo alargamento das liberdades públicas, os propósitosusuais do projeto de uma sociedade de homens livres tor-nam-se passíveis de reformulação. As pontes erguidas paraa política pela inquietação permanente dos estilos de vida epela busca de auto-realização envolvem o reconhecimentoe a institucionalização de liberdades que não têm um pontode chegada. A boa sociedade, a sociedade justa, talvez nãose iguale à vida serena. A invenção da autonomia e da eman-cipação, incluídas as forças da subjetividade que politizamou tras dimensões da existência, não oferece as garantias dasegurança e da paz de um mundo para sempre ordeiro.

Para o tempo presente de globalização econômica e cul-

VERTIGENS Pós-MODERNAS 67

tural, a fragilidade de laços está tanto na ampliação da mar-gem de escolhas como no refúgio em guerras santas contraa dissipação de referências. A identidade fluida transitaentre os limites do cosmopolitismo mais avançado e dosfundamentalismos mais autoritários. No plano mais con-creto da ação coletiva, não é exagero dizer que a fragmenta-ção do sujeito reverbera nos movimentos sociais. Mas, poroutro lado, descartar múltiplas iniciativas de contestaçãosimplesmente como um equívoco desfocado do núcleo dasdisputas de riqueza e poder é certamente uma precipita-ção. Tornou-se mais difícil divisar o sujeito histórico queconcentra, assimila e realiza todas as tarefas históricas darevolução das formas de viver. Impõe-se, portanto, a tenta-tiva de esclarecimento das flutuações da identidade con-temporânea e suas conseqüências políticas.

PROCESSO DE RACIONALIZAÇÃO E PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO

Para Alain Touraine, o objeto atual da sociologia é a ten-são entre a Razão e o Sujeito, que também assume a formado conflito entre o sujeito e os sistemas, ou da oposição en-tre a liberdade e o poder. A subjetivação diz respeito aoprocesso de reconhecimento e de identidade dos indivídu-os que, no limite, pode transformá-Ios em atores habilita-dos à contestação e à luta pela emancipação. Nessa visão,racionalização e subjetivação são partes complementares econtraditórias da modernidade.

A noção de sujeito para Touraine não se confunde coma de indivíduo ou de agente racional. A subjetivação, se-gundo Touraine, é a "penetração do Sujeito no indivíduo e,portanto, a transformação - parcial - do indivíduo em Su-jeito" (Touraine, 1994: 222). O sujeito é confluência e adiçãode conteúdos a partir da busca de realização do desejo emais do que a busca de contornos individuais ou persegui-

Page 4: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

68 LUIS CARLOS FRIDMAN

ção de objetivos; é a liberdade e a emoção antes não-imagi-nadas ampliando as possibilidades da vida.

O sujeito ambienta-se na criação, na produção de si e naatuação em direção à liberdade, enquanto o indivíduo emsi mesmo ou o agente racional não têm necessariamente essehorizonte. A constituição do sujeito assim concebida não seiguala aos padrões do individualismo, pois é vontade doindivíduo ser produtor e não somente consumidor da suaexperiência individual e do seu meio ambiente social(Touraine, 1994: 245). Por isso Touraine acentua que asubjetivação carrega a exigência ou o apelo da liberdadeem contraste com a imposição de uma racionalidade que,em nome da eficiência, da técnica, da ciência e do saciamentodas necessidades deu origem às mutilações atuais.

O indivíduo, visto como si mesmo, consome a socie-.dade em vez de produzi-Ia. No jogo de forças que imperana modernidade avançada, a tensão entre racionalizaçãoe subjetivação traduz-se também pela oposição entre o in-divíduo consumidor e o indivíduo produtor. O indivíduoconsumidor responde ou assimila as demandas suscita-das pelos centros de poder no processo de racionalização,

.ao passo que o sujeito cria a própria vida, ultrapassa asbarreiras do consumo e multiplica desejos não-programa-

"dos. Em vista disso, Touraine considera que "o sujeito é avontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecidocomo ator", estabelecendo um novo horizonte de deman-das sociais que não se limitam à maximização do interesse,ou à racionalidade instrumental. Na acentuação das pos-sibilidades do desejo, Touraine critica a definição do atorcomo indivíduo movido por móveis utilitários. A trans-formação do si-mesmo em sujeito implica o curso da li-berdade, da livre produção de si e da dimensão ética, quese opõem à lógica da dominação social.

O sujeito é sempre um ou mais indivíduos, e indivíduos

1·(

i

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 69

f!em sempre são sujeitos. O processo de subjetivação envol-ve a fervura das inquietações que podem gerar novas di-mensões para a existência humana, assim como a liberdadede ser e desejar que não se resume às liberdades políticas.No rompimento muitas vezes silencioso de limites estabe-lecidos nascem demandas e partilham-se desconfortos quepodem virar política.

Touraine ressalta a dissociação profunda entre sistemae atores, entre o mundo técnico e econômico e o mundo dasubjetividade. Em outros termos, trata-se da separação en-tre a E-9.!rentecivilizatória da racionalização e a busca daliberdade e da auto-realização do indivíduo que produz asi mesmo e o mundo de que participa. Na tensão entre osprocessos de racionalização e de subjetivação, Tourainesugere que a conciliação possível se dá através de movi-mentos sociais de defesa pessoal e cultural do sujeito con-tra o poder. Esses movimentos expressam novas deman-das, como a livre escolha de um estilo e de uma história devida pessoais ll\l_enão são constituídos pelo consumo e pelopoder.

A tensão entre racionalização e subjetivação impulsio-na, segundo Touraine, a modernidade: "o drama da nossamodernidade é que ela se desenvolveu lutando contra ametade dela mesma". Suas idéias alimentam a discussãoda possibilidade de se viver de outro modo, a partir de fe-nômenos e condições que emergem na vida social contem-porânea. A sua teoria do sujeito é uma crítica à projeçãodos "amanhãs radiosos" (Touraine, 1994: 341) como reali-zação de leis da história, com suas necessidades e regulari-dades. A passagem do indivíduo em si mesmo para o sujei-to abarca a auto-realização, a invenção da liberdade e odescentramento da emancipação. Mas, assim formulada demodo abstrato, não será a idéia de sujeito mais um "ama-nhã radioso"?

Page 5: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

70 LUIS CARLOS FIUOMAN

Alain Touraine vê nos novos movimentos sociais o res-ga te ampliado e emancipado r da libido e do desejo do pro-cesso de subjetivação. Porém, não detalha nem caracteriza,no âmbito da institucionalidade atualmente existente e daativação incessante das inflexões do simbólico, quais são asflutuações da subjetividade na produção da ordem. Locali-zar a oposição entre o desejo e a repressão na sociedadecontemporânea, buscando ultrapassar esquemas de inter-pretação referidos ao passado, fornece algumas boas pistase uma montanha de indagações. Propõe uma síntese da lon-ga luta entre a subjetivação e a racionalização pela compo-sição entre o apelo universalista da razão e a defesa dasidentidades. No caso de Touraine, a concepção da demo-cracia aprofundada pela radicalização do processo desubjetivação carrega mais entusiasmo do que explicação.

o ETERNO PRESENTE E A FRAGMENTAÇÃO to EU

Para Fredric [ameson, marxista americano provenienteda crítica literária nas universidades de Yale e Duke, pós-modernismo e "capitalismo da mídia" são sinônimos. Atransformação de objetos de todo tipo em mercadorias (se-jam estrelas de cinema, automóveis, sentimentos ou expe-riência política) enseja vidas dedicadas ao consumo e dese-jos suscitados e inculcados pelos meios de comunicação demassa.

O pós-modernismo é a cultura de um padrão de desen-volvimento do capitalismo em que os signos associados àsmercadorias esmaecem a lembrança do seu valor de uso. Aonipresença da mídia constitui de maneira indispensável oambiente em que se processa a atual expansão do sistema eé a principal fonte de narração das fábulas que associamestilos de vida a brinquedos, seguros de saúde, televisores,computadores, refrigerantes etc. Com o desenvolvimento

~ftI-j

I,

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 71

r

dos meios técnicos que favorecem a comunicação instantâ-nea, a maioria dos indivíduos toma contato com o mundoatravés das telas de televisão ou dos computadores, o quedetermina formas de cognição que deixam para trás a cul-tura literária anteriormente predominante. O que se vê é a"estetização da realidade" que promove a colonização doinconsciente e da natureza pelo mercado, traço fundamen-tal do pós-modernismo.

Linguagens estéticas cada vez mais sofisticadas estãopresentes na publicidade. Um filmete de anúncio de sabãoem pó é realizado por quem conhece a narrativa cinemato-gráfica, a composição de imagens e sons, dramaturgia e li-teratura. Cineastas, escritores, músicos, figurinistas, ilumi-nadores, decoradores, designers e técnicos são aqueles queproduzem as fábulas que vendem produtos. Os avanços daslinguagens artísticas são rapidamente assimilados pelamídia e o destino dessas conquistas da sensibilidade é a cir-culação das mercadorias. Nunca a cultura esteve tão asso-ciada aos negócios, mas as conseqüências desse processoultrapassam a reprodução do capital, pois essa "economiaculturalizada" favorece uma "estrutura de sentimento", ouseja, emoções, práticas sociais e hábitos mentais que povo-am a subjetividade contemporânea. Essa ordem de fenô-menos é decisiva, pois coloca a cultura (nesse caso, defini-da como cultura pós-moderna) como fator primordial paraa reprodução da economia. Um passo além do que colocouMarx em O capital, as mercadorias não "falam" apenas dotrabalho enquanto equivalente universal de todas elas edo tempo de trabalho necessário para produzi-Ias: "falam"de sexo, corpos bonitos, sorrisos radiantes, estar à vontadeno mundo, ser charrnoso, cativante, "elaborado", desemba-raçado e tudo mais.

Para [ameson, o pós-modernismo é uma revolução cul-tural no âmbito do próprio modo de produção e habilita os

Page 6: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

72 LUIS CARLOS FRlDMAN

seres humanos a viverem nessa confusão entre a imagem ea realidade. Ele evoca as descobertas de Max Weber acercadas mentalidades que tiveram afinidades eJetivas com odesenvolvimento inicial do capitalismo, que foram objetodas teses centrais de A ética protestante e o espírito do ca-pitalismo. Enquanto a acumulação primitiva de capital foirealizada por gente que retardava o prazer continuamenteporque buscava sinais de salvação diante dos desígnios in-sondáveis de Deus - as doutrinas da predestinação quemoldaram o comportamento mundano dos indivíduos pelaética protestante -, a pós-modernidade não suporta o adia-mento.

A dimensão trágica da subjetividade na ética protestan-te pela incerteza permanente da salvação que era buscadana fixidez da construção de vidas laboriosas, frugais, auste-ras e severas deu lugar à mutabilidade permanente, condi-ção para funcionar no mundo da pós-modernidade. Trata-se de outra vivência da dimensão temporal. No capitalismocontemporâneo, banhado e movido a consumo, o convite acontínuos prazeres concentrados na oferta permanente denovas mercadorias cria esse "povo novo", habilitado a fun-cionar no novo dinamismo do modo de produção. O eternopresente, o tempo das narrativas da mídia, é contado pelorelógio dos gozos que se gastam em cada aceno das merca-dorias, .nessa versão de uma salvação terrena que não temum fim último nem dá coerência a trajetos de vida. Segun-do [arneson, o "povo novo" da pós-modernidade se am-bienta no "fluxo total ou ininterrupto de imagens" (Jameson,1996: 94), colonizado em seus hábitos, fantasias e aspira-ções: vive em uma cultura do eterno presente, que substituia experiência pelo espetáculo. A drenagem da libido parafora da experiência vivida, o fogo cruzado das linguagensreferidas ao instante e as mercadorias como centro do espe-táculo favorecem, segundo Jameson, uma estrutura de sen-

VERTIGENS PÓS-MODERNAS

I;

timentos que aprofunda a alienação na fragmentação dosujeito.

As narrativas da televisão e dos videoclipes destacam-se na influência sobre a cognição e as formas de percepçãoem condições pós-modernas. Nelas, por rotação incessan-te dos elementos, tudo é desalojado no momento seguin-te. Essa linguagem midiática composta de puros presen-tes assemelha-se à vivência dos esquizofrênicos. Na ela-boração desse fenômeno, Jameson remete aos estudos deIacques Lacan acerca da ruptura na cadeia dos significan-tes, onde a incapacidade de unificar passado, presente e-f~turo na frase remete à obstrução da associação entrepassado, presente e futuro na vida psíquica. Ou ainda,como analisa Featherstone:

';ti

A fragmentação subseqüente do tempo em uma série depresentes, mediante uma incapacidade de encadear signose imagms em seqüências narrativas, conduz a uma ênfaseesuuizojrênica nas experiências ardentes, imediatas, isola-das e sobrecarregadas de afetividade da preeencíolidadedo mundo - de "intensidades" (Feathcrstone, 1995: 172).

Estendendo a interpretação para as narrativas predomi-nantes na cultura do capitalismo tardio, [ameson consideraque o "eterno presente" do mundo das imagens favorecemaneiras de ser que desvanecem o estilo, enquanto sentidodoúnico e da pincelada individual distinta. Se o referentevivido desapareceu, substituído pela linguagem fragmen-tada de uma cultura eminentemente visual, a singularida-de se constitui e se parte no emaranhado de emanaçõesmidiáticas que suspendem trajetos historicamente encade-ados. Soçobra, portanto, a historicidade entendida comouma "percepção do presente como história ... e nos permiteaquela distância da imediaticidade que pode ser caracteri-zada finalmente como uma perspectiva histórica" (larneson,

73

Page 7: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

74 LUIS CARLOS FRIDMAN

1996: 290). Em uma etiologia breve, [ameson sugere que adiluição do ego burguês e de suas psicopatologias corres-pondentes como a histeria e a neurose fez surgir um novotipo de ansiedade pautada pela auto destruição, pelas dro-gas e pela esquizofrenia.

Mas uma questão permanece como desafio a essa inter-pretação: o que pode o sujeito fragmentado? Apenas pade-cer? A ação deve ser vista apenas no universo da indistinçãoentre a imagem e a realidade, flutuando no éter da desinte-gração e do sofrimento vão? Esse tratamento do problemadeixa ao sujeito as alternativas da imobilidade ou da totalredenção. Apesar de não repetir as distorções do determi-nismo mecanicista, [ameson concebe indivíduos ativos naescolha das mercadorias e na assimilação de novas deman-das, mas suas criações ou aspirações são escravas da má-quina de desejos capitalista. No plano político, supõe umaerrância ativa no mundo dos discursos (que não merece serdesqualificada: a contribuição de [arneson tem uma impor-tância definitiva) que se expressa, por exemplo, no comba-te à política da diferença e na adoção de um pós-modernis-mo que se autocritica.

Mas a avaliação das possibilidades de ação do sujeitoatingido em variadas dimensões de sua existência pelareificação parece retroceder no tempo. E nisso há semelhan-ças com o estruturalismo althusseriano dos anos 60, critica-do pelo historiador inglês E. P. Thompson quando este sali-entava que, na caracterização do sujeito como "suporte dasestruturas", "os projetos, empreendimentos e instituiçõeshumanos e até mesmo a própria cultura humana parecemsituar-seJora dos homens, situar-se contra os homens, comocoisas objetivas, como o "Outro" que, por sua vez, movi-menta os homens como coisas" (Thornpson, 1981: 170; grifosdo autor). Thompson reagia à idéia de que os homens pou-co podem ou nada podem diante das estruturas institucio-

..

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 75

nais. Em rápida atualização: estará a subjetividade pós-moderna enredada na fragmentação das narrativas de modosemelhante ao que encaminhava ao "terminal comum danão-liberdade", segundo a enérgica objeção de Thompsonà armadilha althusseriana de sermos marionetes de forçasque não controlamos nem compreendemos? O fértil mar-xismo de [ameson deixa sem resposta boa parte dessa ques-tão, apesar de sugerir acertadamente que a crítica da políti-ca da diferença caminha junto com a crítica de um ambien-te cultural que produz a fragmentação. Que não se duvideda colonização do inconsciente no capitalismo tardio, masque também não se minimizem o campo de iniciativas e aspossibilidades de ação de homens e mulheres contemporâ-neos na politização do cotidiano.

CONHECIMENTO E MEDO

O conhecimento humano aplicado à natureza e à socie-dade produziu façanhas, mas também se revelou trágico. Aconsciência disseminada do risco artificial, a sensação deque o andamento das coisas está fora de controle ou quenenhuma instituição pode neutralizar as ameaças artifi-ciais geraram transformações na intimidade contemporâ-nea. Nesse terreno movediço cresce, segundo AnthonyGiddens, a insegurança ontoíégica definida como a vivênciade vertigens emocionais quando as pessoas perdem a cer-teza da continuidade da sua auto-identidade e da constân-cia dos ambientes de ação social e material circundantes(Giddens, 1990: 95).

Os riscos e perigos provenientes da reflexividade insti-tucional põem em risco a espécie humana e o planeta. Adesorientação perante autoridades múltiplas de especialis-tas e peritos gera inseguranças adicionais nos indivíduos.A dissolução da tradição e os efeitos das grandes forças que

Page 8: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

76 LUIS Ci\RLOS FRIDMAN

tornaram o mundo fora de controle buliram com as basespsíquicas anteriormente orientadas segundo referências emque os homens não tinham que se inventar a cada momen-to ou não se deparavam com ameaças de catástrofes alémdaquelas ocasionadas pela natureza.

Novas ansiedades são despertadas na ambiência domedo e da mudança, com suas possibilidades inéditas deinvenção de formas de vida. Por conseguinte, a restauraçãoda confiança passou a ser um elemento fundamental namanutenção da ordem social e agora se realiza entre os in-divíduos e sistemas abstratos (ou sistemas peritos). Estesmuniciam a sociedade de verdades permanentementeretificadas pela indagação racional e pela informação reno-vada. Restituem aos grandes contingentes humanos refe-rências necessárias no atordoamento, pois, no limite, indi-víduos que, por sensibilidade e inquietação inconsoláveis,incorporam em sua vivência cotidiana a consciência dessesriscos podem se tornar dementes, apesar de rigorosamenteracionais.

Giddens considera que a reflexividade e a racionaliza-ção não ocasionam necessariamente relações servis entre osatores sociais e as agências ou estruturas, como pensavaWeber. A capacidade de intervenção atribuída ao sujeitoreflexivo, que assimila informação e conhecimento atuali-zado, é muito maior do que aquela reservada ao arder addictou ao herói solitário weberiano no império burocrático. Adisseminação da reflexividade é vista como um processoduplo que traz a democratização da perícia e do medo, comprofundas repercussões sobre a subjetividade contemporâ-nea. De um lado, a insegurança ontológica e a confiançanos sistemas peritos. De outro, uma "transformação da in-timidade" (título de um dos livros de Anthony Giddens)que acolhe, de maneira intrínseca, linhas de força globali-zantes e eventos localizados na vida cotidiana. Isso se ex-

,VERTrGENS Pós-MODERNAS 77

prime, além do vale de lágrimas da vida em família, em, tendências à mudança nos laços entre pais e filhos, na sexua-lidade e nas relações de amizade pautadas pelos padrõesda autonomia e da solidariedade. Os indivíduos passam ase interessar pelo bom entendimento de sua constituiçãoemocional e pela comunicação dos afetos dirigida ao outro.

O "projeto reflexivo de construção do eu", em que a iden-tidade se erige através do auto-exame, permite a "abertu-ra" do eu para o outro superando as relações locais. A novaafetividade, baseada nos "relacionamentos", desenvolve-seatravés da "mutualidade da auto-revelação" e da busca daauto-satisfação pela apropriação positiva de circunstânciasnas quais as influências globalizadas invadem o cotidiano.Essa subjetividade, marcada pela disposição de autonomiaemocional, politiza variadas dimensões da vida social. As-sim, a "cidadania reflexiva em um mundo globalizador"(Giddens, 1995: 18) solicita mais do que um sistema parti-dário-eleitoral e, além da política emancipatória que quersuplantar as privações materiais e as desigualdades de po-der e de riqueza, expande uma "política da vida", cujo foconão se restringe mais às "oportunidades de vida" e avançasobre a diversidade dos estilos de vida.

Nas condições dos sistemas poliárquicos dos estados-nação modernos, Giddens concebe um "realismo utópico"(que ele traduziu ideologicamente em entrevistas como"centro radical"), que abre campo para a constituição deprojetos para o futuro que perseguem a emancipação nasnovas vias oferecidas por essas condições. Estabelece a co-nexão "política da emancipação + política da vida", em quea política emancipatória refere-se a "engajamentos radicaisvoltados para a liberação das desigualdades e da servidão(envolvendo 'modelos da sociedade boa')" (Giddens, 1991:155) e a política da vida como "engajamentos radicais queprocuram incrementar as possibilidades de uma vida real i-

Page 9: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

78 LUIS CARLOS FRIDMAN

zada e satisfatória para todos e para a qual não existem 'ou-tros' (envolvendo decisivamente uma 'ética do pessoal' e apolítica referida a estilos de vida)" (Giddens, 1991: 155 e156). No espaço infinitamente aberto da modernidade avan-çada, juntam-se considerações "realistas" da medida dadesigualdade com antecipações "utópicas", que repõem aquestão aristotélica, ética, "que vida quero viver?" (Giddens,1993: 292), revisitada por Amartya Sen em "Comportamen-to econômico e sentimentos morais" (1992).

A política da vida visa à auto-realização, compreenden-do que iniciativas relativas à identidade tornam-se tambémuma força política subversiva. Em Marx, a auto-realizaçãoera um objetivo a ser alcançado no futuro, quando os ho-mens estivessem desembaraçados dos constrangimentosmateriais provenientes do regime de propriedade privadados meios de produção, que fixava os indivíduos a umaesfera exclusiva de atividade. Na projeção de Marx, cadaum poderia expandir livremente as suas potencialidades seassim o desejasse. Giddens acredita que essa sucessão serompeu porque a ética do pessoal, referida à política da vidae de igual importância aos ideais de justiça e igualdade,antecipou a busca de auto-realização. Com isso, as possibi-lidades de subversão estenderam-se a outras esferas doLebenswelt, o mundo da vida, na expressão que percorre aobra de [ürgen Habermas.

Para Giddens, estes são tempos que favorecem a emer-gência de uma consciência planetária em oposição à idéiade fragmentação cultural, de dissolução do sujeito em ummundo de signos, sem centro, que é o diagnóstico dos auto-res que seguem na caracterização da "hiper-realidade" cria-da pelo predomínio da mídia na cultura contemporânea.Ele acredita que a modernidade avançada impele à uni ver-salização, apesar das motivações plurais (e muitas vezescontraditórias) que regem essa multiplicação de demandas.

l.VERTIGENS Pós-MODERNAS 79

o panorama institucional favorece o ativismo, em contras-te com a interpretação da apatia e da passividade das mas-

. sas. Giddens sustenta que, mesmo assolados pela heurísticado medo, os homens podem mais nessa era de incertezas.Sua noção de confiança ativa inclui a valorização da auto-nomia da ação reflexiva, a destradicionalização e a desna-turalização de aspirações, escolhas, costumes e da afetivi-dade, bem como relacionamentos pessoais baseados em uma"democracia das emoções". Daí resulta uma políticagerativa, aquela em que indivíduos e grupos fazem as coí-sas acontecerem em vez de esperar que lhes aconteçam.Conclusivamente:

Os indivíduos que têm um bO/11entendimento da sua pró-pria constituição emocional, e que são capazes de se COI1Hl-!licar de maneira eficiente com os outros em uma base pes-soal, provavelmente estão mais vem prepamdos para astarefas e responsabilidades mais amplas da cidadania(Giddens, 1996: 25).

Além desse ponto de vista, a confiança ativa afasta osterrores da insegurança ontológica e permite que o sujeitoreflexivo fique de pé nessa era de incertezas. Mas como li-dar com as freqüentes inadequações à reflexividade? Ape-nas como a medalha de lata olímpica daqueles que não sedão conta de que as coisas estão fora de controle e não cons-tituem para si "projetos reflexivos" assimilando as novasliberdades e iniciativas? Certamente, as idéias de Giddensarrefecem impulsos dramáticos que associam o desmante-lamento dos contextos tradicionais de confiança à nostalgiada perda de uma razão unificadora que tudo pode, inclusi-ve mudar o mundo a nosso favor. Mas a reflexividade indi-vidual, por si só, não é o atributo que resolve os dilemas daidentidade, a não ser que seja tomada como fator de evolu-ção ao qual todos, cedo ou tarde, se renderão. O projeto

Page 10: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

80 LUIS CARLOS FRIDMAN

reflexivo do eu não adentra incólume na modernidade avan-çada. Indivíduos reflexivos não fazem necessariamente es-colhas adequadas, ainda que habilitados a um exercício decidadania mais consistente, porque o auto-exame e o bomentendimento da constituição emocional assim o permitem.O abandono, o isolamento e o medo se reativam atravésdas narrativas midiáticas, da especialização flexível ou deuma cultura em que os desejos têm vida breve por substi-tuição permanente. Na sociedade altamente energética dareflexividade, indivíduos inteligentes que não esperam ascoisas virem de cima podem se perder pelo caminho. Quanta"gente boa" faz barbaridades, mesmo tendo incorporadoalgumas ou muitas das conquistas da política da vida? Ou,ainda, quanta insegurança ontológica ainda fica de fora dosbenefícios da reflexividade quando homens e mulheres con-temporâneos sentem que não conseguem ir adiante?

CONSUMO, LIBERDADE E INSEGURANÇA

Para Zygmunt Bauman, os indivíduos contemporâneosquerem a liberdade, a felicidade e os prazeres permitidospelo cartão de crédito. Para ele, "os homens e as mulherespós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilida-des de segurança por um quinhão de felicidade" (Bauman,1998: 10) e a identidade está sempre um passo além daque-les que a perseguem.

Inspirado em o. mal-estar na civilização, de SigmundFreud, Bauman reflete sobre as diferenças entre a subjetivi-dade moderna e a subjetividade pós-moderna. Para Freud,a dádiva da civilização era a segurança pela proteção con-tra os perigos da natureza, do próprio corpo e das outras

, pessoas. Mas a convivência societária implicava repressão,renúncia, regulação ou supressão do prazer de cada indiví-duo: o sacrifício da sexualidade e da agressividade estava

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 81

I'..~l'

na raiz do mal-estar, aliás inescapável para a convivênciasegundo regras necessárias. "Repressão cria cultura" -, essaexpr~ssão=chave do freudismo culminava um diagnósticosobre a subjetividade moderna. Para Bauman, na vida con-temporânea o princípio do prazer reina soberano e, com ele,a aspiração da liberdade individual, Nessa inversão das te-ses de Freud, os ganhos e as perdas mudaram de lugar.

Na modernídade, a construção da identidade como ta-refa de integral responsabilidade do indivíduo passou atranscorrer em cenários que ainda eram meios regulares eestáveis quando "profissões, ocupações e habilidadescorrelatas não envelheciam mais depressa do que os seustitulares" (Baurnan, 1998: 31). O eu podia delinear-se comdurabilidade naquele ambiente de permanente mudança,amparado e habilitado pela capacidade de juízo e interven-ção racionais para a consecução e robustecimento dos pro-jetos de vida .

A dinâmica social contemporânea não oferece os mes-mos suportes. A mobilidade das finanças e do capital fazdesaparecer empregos ou abala economias em questão dedias e a permanência dos vínculos não está mais garantidano território ou na localidade. A globalização, a reorgani-zação produtiva através da especialização flexível e o des-mantelamento das redes de assistência pública contribuí-ram decisivamente para o decréscimo da responsabilidadeda comunidade sobre o destino de seus integrantes. O de-sencaixe se aprofunda, assim como a condição do "eu flu-tuante e à deriva" (Bauman, 1998: 32). Essa ordem não seiguala àquela erigida na modernidade; Bauman preferechamá-Ia de pós-moderna.

Na sociedade atual, a identidade se constitui em umambiente que aciona o desejo e estimula prazeres cambiá-veis, em vez da repressão que acompanhou e delimitou ainterioridade dos indivíduos na modernidade. As pessoas

Page 11: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

82 LUIS CARLOS FRIDMAN

se vêem permanentemente solicitadas a fazer escolhas nouniverso das novidades ininterruptas do consumo. E esco-lher mercadorias, quando o mercado avança na "coloniza-ção" do inconsciente, não significa responder às pressõesda necessidade, mas passear por um universo de signos queinduz ao esquecimento e do que foi desfrutado até há pou-co. Há mais liberdade na busca do prazer associada ao con-sumo, mas o terreno continua ameaçadoramente movedi-ço, porque a satisfação depende da reposição de quinqui-lharias, aquisições e animações:

As sensações agradáveis que buscam são, em regrn geral,de curta duração, em muitos casos instantâneas - nascemde repente para logo sumir, poucos desejos sobrevivendoli satisfação, sempre novos desejos ou objetos de desejo fa-zendo-se necessários par« manter os agentes motivados liação (Bauman, 2000: 82).

o consumo dirigido a sensações não experimentadasanteriormente - supondo-se que sejam mais intensas do queaquelas já conhecidas - resulta em uma "acumulação" quenunca é satisfatória. Essa liberdade é ativada na venda dealimentos, cosméticos, carros, óculos, pacotes de férias, apa-relhos de ginástica ou ainda, como destaca Fredric ]ameson,na adoção de estilos de vida associados às mercadorias. Paratal, é necessário esquecer para transitar sem embaraços noeterno presente. Segundo Bauman, essa é a identidade flui-da de indivíduos convocados a serem "colecionadores deexperiências e sensações".

A identidade não se completa, depende do que está porvir. O desmantelamento e reconstrução pós-modernos agre-ga incerteza permanente e irredutível à experiência de ho-mens e mulheres contemporâneos. A máxima "não deixarque nada grude em você", que Richard Sennett lembra emA corrosão do caráter, encontra-se nos amores, nos valores,

~~

j\~(

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 83

nas preferências estéticas, na participação política, no de-sempenho profissional e no sexo. A plasticidade do eu épassaporte para a viagem no universo do consumo, comseus "êxtases" de experiências e sensações que nunca sãoos últimos. "Consumidores aptos" têm identidades fluidas,pois "o eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazera identidade deter-se - mas evitar que se fixe" (Bauman,1998: 114).

A liberdade pós-moderna se faz, então, da urgência dosprazeres, em nítida discrepância com o adiamento, a renún-cia ou a supressão dos instintos abordadas por Freud. Esseprocesso de autocriação através de começos permanentesestabelece sinais de expressão que são abandonados logoem seguida. A identidade é, pois, segundo Bauman, um eut:~nsitório sempre à cata de possibilidades inéditas, o que éo mesmo que apontar para uma personalidade pastiche quese compõe de nacos ou de um brico/age que traz o emblemade uma unidade sempre perseguida e nunca alcançada. Oscolecionadores de experiências e sensações gozam enquan-to podem em infinitas parcelas, habituados à ausência damemória no eterno presente.

Quando as ofertas de prazer parecem significar maiorliberdade de escolha ou ampliação da expressividade pes-soal, a "fixidez" da segurança é sentida como amesquinha-mento da vida. Mas o avanço sobre o ineditismo e a varie-dade dos estilos de vida não apaga a incerteza e a diluiçãode laços. O esfriamento das relações humanas, da ernotivi-dade e dos fluxos e refluxos da intimidade está em todaparte. Para as indefinições do eu há inclusive o amparo daliteratura de auto-ajuda, que racionaliza a positividadeda fragmentação. Esse lixo da reflexividade pretende for-necer mandamentos para restaurar a personalidade, enfren-tar a competição no trabalho, alcançar o sucesso financeiroe profissional, "enlouquecer" parceiros na cama ou tornear

Page 12: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

84 LUIS CARLOS FRIDMAN

o corpo afastando a flacidez como índice de fracasso ou dé-ficit erótico. A utilização massiva desses comprimidos deProzac em forma de papel impresso busca combater a an-gústia na construção da identidade em um mundo de soli-dariedade declinante e de danificação profunda dos víncu-los entre as pessoas.

No extremo oposto do capital volátil e sem fronteiras,da revolução tecnológica que parece ininterrupta, da co-municação instantânea e das possibilidades abertas poressas novas condições está uma grande parcela da popu-lação mundial que não desfruta desses ganhos: os excluí-dos globais. Estes são os inadaptados, os "consumidoresfalhos", aqueles cujos meios não estão à altura de seusdesejos. Surge uma nova estratificação social segundo ca-pacidades de movimento no tempo e no espaço, definidapela "extraterritorialidade da nova elite e a territorialidadeforçada do resto" (Bauman, 1999: 31). Em conseqüênciada nova hierarquia, a segurança dos afortunados que rea-lizam seus desejos na esfera do consumo está ameaça dapela ampliação da massa dos destituídos no processo deglobalização. Essa ordem fabrica incerteza, cuja fonte estána ação sem obstáculos ou constrangimentos das forçaslivres do mercado:

... a economia política da incerteza é o conjunto de "regraspara pôr fim a todas as regras" imposto pelos poderes fi-nanceiros, capitalista e comercial extraterritoriais sobre asautoridades políticas locais (Bauman, 2000: 175).

As investidas principais das forças do capital e das fi-nanças visam à desregulamentação e à privatização das ins-tituíções com o intuito de erodir resistências ou formas de_controle à movimentação global. Opera-se um profundoreordenamento da vida social em que as administrações

I

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 85

locais e do estado-nação são insuficientes e impotentes paraconter as decisões e a ação de forças globais. Seguindo su-gestões de Manuel Castells, Bauman reafirma que, enquan-to o capital flui livremente, a política permanece irremedia-velmente local. Em sentido mais geral, a globalização retirao poder da política.

O desmonte das redes de solidariedade social, pela féneoliberal na desregulamentação e na privatização, trans-forma os pobres e desabilitados em refugo humano. Boaparte daqueles que Marx chamou de exército industrial dereserva dificilmente conseguirá um emprego na economiaformal. São contingentes que vagueiam pelo mundo forçan-do as fronteiras dos países ricos, explodindo em violêncianas grandes metrópoles ou "atrapalhando" os planos dedesenvolvimento das grandes agências mundiais quandofiguram como vetores incômodos na composição dos "ín-dices de estabilidade" que medem expectativas de investi-mento. Esses "consumidores falhos" não estão sendo rea-bilitados para o mundo do trabalho porque a sociedade nãoprecisa deles, e assim se tornam o espectro que ronda osincluídos. Uma das tarefas ideológicas mais perversas eperturbadoras dessa economia política é fazer desaparecero refugo humano do campo de visão da sociedade porqueseu destino é o definhamento ou a morte. Para Bauman, aprincipal demanda política dessas grandes massas é o di-reito de viver.

Essa ordem que privatizou os meios de garantir e asse-gurar a liberdade individual é a mesma que produz a po-breza em massa, a superfluidade social e o "medo ambien-te", expressão cunhada por Marcus Doei e David Clarkeem Street wars, politics and the city. O exercício da convi-vência social na nova estratificação é marcado pelo aumen-to das prisões e dos muros das casas, condomínios fecha-dos, portões eletrônicos, pequenos exércitos particulares,

Page 13: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

86 LUIS CARLOS FRIDMAN

carros blindados, circuitos de televisão que monitoram re-sidências, ruas e bairros - enfim, todo o aparato que "tran-qüiliza" a vida dos consumidores. Para Bauman, a grandevencedora da privatização da segurança é a insegurançageneralizada. Primeira conseqüência para a política:

... pessoas que se sentem inseguras, preocupadas com o quelhes reserva o futuro e temendo pela própria incolumidadenão podem realmente assumir os riscos que a ação coletivaexige (Bauman, 2000: 13).

A apatia prevalece, pois o consumidor demanda cadavez mais proteção enquanto aceita cada vez menos a neces-sidade de participar do governo do Estado (Bauman, 2000:159). Essa proteção, privatizada, é uma clausura que acen-tua as fronteiras sociais e esquadrinha o espaço público emparques temáticos de compras, divertimento, moradia, con-vivência segundo os signos dos estilos de vida e somente"lá fora" escuta-se o barulho das sirenes. No mundo de to-das as escolhas, o medo também faz muitos aferrarem-seao sonho de uma comunidade ultraprotetora, cuja defesatribal não raro descamba para a violência. Nessas condi-ções, o comprometimento com causas comuns ou o engaja-mento solidário torna-se muito mais difícil. Como, então,transformar a insegurança em política ou, dito de outramaneira, como traduzir os problemas pessoais da contem-poraneidade em temas públicos?

O esclarecimento do problema remete às divergênciasentre Giddens e Bauman. Apesar de suas análises apresen-tarem vários pontos em comum, as diferenças ficam bemclaras quando se trata da habilitação dos indivíduos para apolítica. Para Giddens, duas das conseqüências da reflexi-vida de são o auto-exame e a "abertura para o outro", queincrementam a "democratização das emoções". Assim, se-

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 87

res humanos mais conscientes da sua constituição emocio-nal e mais bem preparados para a comunicação com o ou-tro podem exercer com maior efetividade a "cidadania re-flexiva em um mundo globalizador" - aquela cidadaniacompatível com a compressão do tempo e do espaço damodernidade radicalizada. Os ativismos políticos protago-nizados por pessoas que não esperam as coisas virem decima podem estender-se da busca de auto-realização ao es-tabelecimento de políticas gerativas de combate à pobrezae de mudança das condições que produzem e ampliam orefugo humano. Porém, a análise sistêmica de Giddens, aten-ta às tendências e ao cosmopolitismo globais, lança poucaluz sobre a nova estratificação social e não se detém nosdanos da consolidação do projeto neoliberal. Prefereenfatizar que as potências da reflexividade trazem as voca-ções do ativismo e poderão, mais cedo ou mais tarde, atin-gir a política e sacudir a apatia e a regressão.

Para Bauman, ao contrário, a apatia política contaminao conjunto da sociedade, pois o projeto neoliberal da priva-tização da segurança isola e amedronta. Em outras pala-vras, o aumento da liberdade individual pode vir acompa-nhado da impotência coletiva. Como o refugo humano nãosabe como vai viver nem se há uma vida a ser vivida, asprojeções políticas de Bauman baseiam-se no projeto da ren-da mínima e de um internacionalismo que promove o diá-logo entre os estilos de vida. Enquanto Giddens supõe queagentes reflexivos abrem caminho para uma sociedade me-lhor através da política emancipatória e da política da vida,Bauman considera que a primeira tarefa institucional dapolítica pós-moderna é a reconstituição de uma rede de so-lidariedade social para quem tem a existência ameaçada.Para Bauman, o projeto de renda mínima é o ponto de par-tida para a refundação da república; fornece as bases para omovimento contradefensivo da sociedade diante da frag-

Page 14: FRIDMAN Vertigens Pós-Modernas

88 LUIS CARLOS FRlDMAN

mentação da vida coletiva baseada na regra de pôr fim atedas as regras. Além disso, cria as condições para areinstitucionalização e a regeneração da segurança co 111 osoutros, que vai em sentido oposto à segurança apesar dosoutros. A segurança e a liberdade somente estarão garanti-das quando os espectros se tornarem seres humanos inclu-ídos na organização e na dinâmica das instituições contem-porâneas. A sociedade cosmopolita global, ou a solidarie-dade até agora promovida sob essa rubrica, não fez sentir asua presença na África infestada pela Aids ou nas lutasfratricidas em nações miseráveis. A cidadania reflexiva emum mundo globalizador, postulada por Ciddens, não ofe-rece respostas suficientes para as dores e incertezas que seabatem sobre o refugo humano. A possibilidade de umaordem de coisas alternativa, para Bauman, apóia-se inicial-mente na tentativa de desfazer o enfraquecimento das rela-ções humanas frente às forças descontrola das, erráticas efragmentadoras do processo de globalização. O internado-nalismo sugerido por Bauman diz respeito à criação de ins-tituições republicanas internacionais em proporção à mar-gem de movimento e atuação das grandes forças da globa-lização. Não se caracterizaria pela busca da homogeneida-de, de uma linguagem comum, de significados comparti-lhados ou de um consenso racional. Diante dos múltiplosestilos de vida, Bauman sugere uma comunicação entre gru-pos e culturas que podem se influenciar mutuamente, rom-pendo o paroquialismo e garantindo a polivalência cultural.

A projeção da liberdade sem risco e desembaraçada daangústia da escolha contém uma aspiração totalizante quenão condiz com as circunstâncias que cercam a vida de ho-mens e mulheres da atualidade. Por isso, para Baurnan, apossibilidade de uma "comunicação não-distorcida" (comsua perfeição pelo consenso e exclusão do desacordo), pro-jetada por Haberrnas, é um "sonho. de morte que cura radi-

,

VERTIGENS PÓS-MODERNAS 89

calmente os males da vida de liberdade" (Bauman, 1998:249). A crítica mais insistente de Bauman dirige-se à inten-ção da "pureza social", na busca de uma ordem na qual to-das as coisas teriam seu lugar certo e de uma "paz" que lhecorresponderia. O seu exame da ordem pós-moderna traz aidéia de que a fluidez do sujeito errante no universo am-pliado dos desejos não se presta à imobilização (como emum sonho de morte) e que, portanto, o antídoto para a inse-gurança está no aprofundamento da liberdade. Bauman bus-ca salientar a plenitude da responsabilidade moral na cria-ção das instituições e da autotransformação do sujeito, oque é o mesmo que dizer que o percurso da invenção daliberdade não neutraliza a ansiedade da escolha nem sedelineia como projeto totalizador que "limpa" a vida sociale finalmente unifica a humanidade. Segundo suas pala-vras, "".nenhuma escolha deixaria o escolhedor livre daresponsabilidade pelas suas conseqüências - e, assim, terescolhido não significa ter determinado a matéria de es-colha de uma vez por todas, nem o direito de botar suaconsciência para descansar" (Bauman, 1998: 249). O ques-tionamento da política na pós-modernidade está indisso-ciado da crítica do sujeito serenado - a grande contribui-ção de Zygmunt Bauman. Tal idéia rede fine as aspiraçõesde segurança quando a multiplicação do desejo se enraízanas maneiras de viver.