goldman levy strauss historia

10
Lévi-Strauss e os sentidos da História Marcio Goldman 1 Professor do Departamento de Antropologia – Museu Nacional RESUMO: Este texto explora alguns aspectos do pensamento de Claude Lévi- Strauss a respeito da história. Partindo de uma crítica às leituras reducionistas de sua obra, trata-se de demonstrar dois pontos. Em primeiro lugar, ainda que a reflexão sobre a história ocupe na obra do autor uma dimensão aparentemente secundária, é justamente a partir dela que se pode atingir dimensões importantes e marginalizadas do chamado estruturalismo. Em segundo lugar, trata-se de demonstrar que a reflexão levistraussiana foi capaz de desenvolver uma persperctiva verdadeiramente antropológica e não etnocêntrica acerca da história e da historicidade das sociedades humanas. PALAVRAS-CHAVE: Lévi-Strauss, História, teoria antropológica. Em um de seus ensaios sobre a história da biologia, Stephen Jay Gould (1991) 2 segue a pista de uma imagem oferecida com freqüência aos leitores de todo o mundo a fim de fazê-los visualizar um desses pequenos antepassados do cavalo contemporâneo. Ele revela, assim, que uma enorme quantidade de autores, na Europa, América, Ásia, e em toda parte, busca esclarecer que o animal em questão possuía, aproximadamente, o tamanho de um cão fox terrier. Intrigado

Upload: daniele-ferreira

Post on 17-Sep-2015

214 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

GOLDMAN Levy Strauss Historia

TRANSCRIPT

  • Lvi-Strauss e os sentidos da Histria

    Marcio Goldman1 Professor do Departamento de Antropologia Museu Nacional

    RESUMO: Este texto explora alguns aspectos do pensamento de Claude Lvi-Strauss a respeito da histria. Partindo de uma crtica s leituras reducionistas de sua obra, trata-se de demonstrar dois pontos. Em primeiro lugar, ainda que a reflexo sobre a histria ocupe na obra do autor uma dimenso aparentemente secundria, justamente a partir dela que se pode atingir dimenses importantes e marginalizadas do chamado estruturalismo. Em segundo lugar, trata-se de demonstrar que a reflexo levistraussiana foi capaz de desenvolver uma persperctiva verdadeiramente antropolgica e no etnocntrica acerca da histria e da historicidade das sociedades humanas.

    PALAVRAS-CHAVE: Lvi-Strauss, Histria, teoria antropolgica.

    Em um de seus ensaios sobre a histria da biologia, Stephen Jay Gould (1991) 2 segue a pista de uma imagem oferecida com freqncia aos leitores de todo o mundo a fim de faz-los visualizar um desses pequenos antepassados do cavalo contemporneo. Ele revela, assim, que uma enorme quantidade de autores, na Europa, Amrica, sia, e em toda parte, busca esclarecer que o animal em questo possua, aproximadamente, o tamanho de um co fox terrier. Intrigado

  • com a aparente inveno independente de uma imagem no final das contas nada bvia, Gould acaba por descobrir que todas as formulaes se originam de um nico texto, transmitido de autor para autor, de gerao para gerao, citado de segunda, terceira ou quarta mos, sem que ningum sentisse a menor necessidade de recorrer ao "original" seja o texto, seja o animal usado como signo. Para ser mais preciso, o que ocorria de fato que no importava a ningum saber quem era o criador da imagem, ou mesmo conhecer o que lhe servia de significante.

    Neste caso especfico, esse processo, que poderamos denominar de gerao e transmisso de uma vulgata, no parece to grave. Afinal, tudo indica que os animais comparados possuem efetivamente dimenses similares, e parece que nenhum dano real ao conhecimento tenha sido produzido por esse lugar-comum. Mais graves e, ao mesmo tempo, muito mais interessantes so os casos em que certas tores esto presentes. Assim, Dominique Merlli sugeriu que uma srie de mal-entendidos em torno da obra de Lucien Lvy-Bruhl devem-se justamente ao fato de que "todo mundo tendo lido Lvy-Bruhl, ningum tinha necessidade de l-lo, e a vulgata deformada mantinha-se a si mesma" (1989: 427).

    O que grave em casos desse tipo no tanto a suposta deturpao em si sempre questionvel , ou a "ofensa" a determinado autor nunca muito importante, afinal de contas. O grave que equvocos desse gnero tendem a reprimir possveis desenvolvimentos que uma compreenso mais, digamos, "emptica" poderia engendrar. Em outros termos, ao adquirir autoridade, a vulgata tende a no ser mais contestada, o que provoca a paralisia do pensamento. O fato de Lvy-Bruhl, por exemplo, ter permanecido durante meio sculo na penumbra do pensamento antropolgico no nem lamentvel em si mesmo, nem moralmente condenvel: empobrecedor por ter nos privado de alguns instrumentos importantes que poderiam ajudar o desenvolvimento de nossas prprias dmarches.

    A meno a Lvy-Bruhl pode parecer meio fora de lugar aqui. No apenas porque tudo indica que continua a no ser de muito bom tom invocar o "terico da mentalidade primitiva" em um encontro de antroplogos, mas tambm porque o autor que hoje aqui homenageamos parece a ele se opor sob todos os aspectos. No apenas os intelectuais ou tericos sobre os quais haveria muito a dizer mas, para retomar as palavras de Roger Bastide, como o claro se ope ao obscuro. Figura central da histria da antropologia nos ltimos cinquenta anos, poder-se-ia imaginar que Claude Lvi-Strauss estaria a salvo seno das leituras apressadas, ao menos daquelas de segunda ou terceira mos a salvo da vulgata, portanto.

    evidente que todos sabemos que isso no verdadeiro, ainda que cada um possa ter seu prprio Lvi-Strauss e discordar de outras leituras. Tomemos, por exemplo, um trecho de um artigo recentemente publicado por Joanna Overing escolhido no apenas porque espantosamente claro no que diz respeito s relaes do pensamento de Lvi-Strauss com a histria, mas tambm porque, de meu ponto de vista, sua autora faz parte do grupo dos melhores antroplogos em atividade hoje. Aps criticar a "verso particularmente interessante da defesa da a-historicidade" supostamente embutida na distino entre poder coercitivo e no-coercitivo de Pierre Clastres (Overing, 1995: 107), Overing se dirige ao que poderia ser considerado a fonte dessa verso:

    "A mais famosa de todas as formulaes da a-historicidade dos povos indgenas a de Lvi-Strauss () [que] estabelece sua famosa distino (muitas vezes entendida de modo equivocado) entre sociedades "quentes" e "frias". Ao estabelecer este contraste, o autor separa os povos dotados de histria dos que no a possuem. Ele argumenta que estes ltimos deliberadamente subordinam a histria ao sistema e

  • estrutura, e por causa desta subordinao as sociedades onde eles vivem podem ser chamadas de "frias" ( ). Essa atemporalidade, segundo ele, um princpio que visa aeliminao da histria (...)". (: 108)

    Logo voltaremos a esse texto. Antes, contudo, eu insistiria ainda na oposio entre Lvi-Strauss e Lvy-Bruhl. Pois esta oposio tambm aquela entre um autor indubitavelmente "maior" e um que pelo menos veio a se tornar "menor". claro que no estou empregando esses termos em seu sentido valorativo tradicional, mas naquele proposto por Gilles Deleuze. "Maior" e "menor" no so dados ou caractersticas "objetivas" de textos e autores; so operaes. No h, pois, nem diviso rgida, nem maniquesmo (menor = bom; maior = mau). Qualquer autor simultaneamente maior e menor. Ou antes: toda obra pode ser explorada no que tem de maior ou de menor (Deleuze & Bene, 1979: 97-101).

    Ora, penso que, entre outras virtudes, a reflexo sobre o lugar da histria no pensamento de Lvi-Strauss pode permitir, talvez, atingir certas dimenses usualmente tidas como secundrias ou "menores" na obra daquele que indubitavelmente um autor "maior". Pois o tema da histria, em seus mltiplos sentidos, permeia a obra de ponta a ponta, algumas vezes de modo explcito, outras de forma mais discreta. Entre os textos capitais esto, sem dvida, "Histria e etnologia", de 1949, "Raa e Histria" (1952), a "Aula inaugural" (1960), "As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econmico" (1960), as entrevistas com Georges Charbonnier (1961), os dois ltimos captulos de O pensamento selvagem (1962), o segundo "Histria e Etnologia" (publicado nos Annales em 1983), "Um outro olhar" (1983), Histria de Lince (1991), "Voltas ao passado" (1998) alm, claro, de trechos, mais longos ou mais curtos, em praticamente todos os livros do autor. importante tambm observar que justamente nesses textos que a nfase de Lvi-Strauss incide muito mais sobre a questo da diversidade sociocultural do que sobre a famosa "unidade do esprito humano".

    Assim como ocorre em relao a outros pontos, creio que no que diz respeito histria, Lvi-Strauss retomou e ampliou os efeitos que a experincia da antropologia social ou cultural pode ter sobre o tema, fazendo com que passassem a ser capazes de funcionar como uma crtica de alguns pressupostos muito arraigados na sociedade e no pensamento ocidentais. Pois tudo indica que, ao menos desde o Iluminismo, a histria exera um certo imperialismo entre ns, apoiado sobre a suposta certeza de que a nica forma de compreenso dos fatos humanos passa necessariamente pela recuperao do processo que fez com que chegassem a ser como so. Lembremos, de passagem, que Lvi-Strauss esboa uma hiptese para explicar esse fascnio pela histria:

    "E como acreditamos, ns prprios, apreender nosso devir pessoal como uma mudana contnua, parece-nos que o conhecimento histrico vem ao encontro da evidncia mais ntima". (1962: 292)

    claro que ao aproximar a crena na histria dessa "iluso" de uma "suposta continuidade do eu" (1962: 292), Lvi-Strauss j indica o partido que toma.

    Mas h mais aqui. Todos sabemos que a prpria antropologia se constituiu no final do sculo XIX em um ambiente marcado justamente por esse imperialismo da histria. Como ressaltou Richard Lewontin, o evolucionismo no bem uma "teoria", mas uma "ideologia", ou seja, "um modo de organizar o conhecimento do mundo (), uma viso de mundo, mais geral, que () permeou todas as disciplinas nos ltimos duzentos anos"(1985: 234, 238). A crtica a esse modelo que poderamos chamar "diacrnico" e que no exclusivo do evolucionismo social, permeando tambm as teorias da Escola Sociolgica Francesa e da antropologia

  • boasiana se manifestar a partir da dcada de 20, quando, quase simultaneamente, o funcionalismo britnico e o culturalismo norte-americano colocaro em questo o privilgio do eixo temporal, propondo sua substituio por um modelo sincrnico que deveria ressaltar descontinuidades e especificidades de ordem sobretudo espacial.

    Devemos ressaltar, tambm, que as crticas funcionalista e culturalista ao evolucionismo (e ao privilgio da histria, consequentemente) so sobretudo de ordem "metodolgica". Ou seja, esto exclusivamente preocupadas com a quase impossibilidade de obter dados histricos confiveis acerca das sociedades que, em geral, os antroplogos estudam. Ora, a crtica levistraussiana muito mais ambiciosa. Partindo, certamente, das dificuldades encontradas pelo conhecimento histrico em face das sociedades ditas primitivas, Lvi-Strauss no apenas dirige um ataque verdadeiramente epistemolgico ao evolucionismo social (em "Histria e Etnologia", "Raa e Histria" e outros textos) como elabora uma crtica mais profunda ao imperialismo da histria em geral crtica que se encontra sobretudo nos dois ltimos captulos de O pensamento selvagem.

    Com efeito, desde 1949, Lvi-Strauss chamava a ateno para o fato do debate entre mtodo histrico e mtodo sociolgico ter sido transposto para o interior da antropologia praticamente desde o momento em que esta disciplina se constitui como tal (1949: 15). E de no ser nada difcil opor, na histria do pensamento antropolgico, aqueles que ocupam uma posio "historicista" e aqueles que puderam chegar a ser considerados verdadeiros "inimigos da histria".

    Sob o pretexto de construir uma restrita defesa da antropologia contra as investidas da histria, Lvi-Strauss, na verdade, utiliza a experincia da antropologia para elaborar uma crtica generalizada do imperialismo da histria no pensamento ocidental. O primeiro passo explicitar a polissemia do termo. Como todos sabemos, mas tendemos por vezes a esquecer, por histria pode-se entender pelo menos trs coisas bem diferentes: a "histria dos homens", ou historicidade (aquela que eles fazem "sem saber"), a "histria dos historiadores" e a "histria dos filsofos", ou filosofia da histria (Lvi-Strauss, 1962: 286).

    Os problemas de Lvi-Strauss com a histria se resumiriam, aparentemente, ao terceiro sentido do termo, e contra a idia de que haveria algum sentido privilegiado na histria, e de que esta definiria a prpria humanidade dos homens, que o ltimo captulo de O pensamento selvagem foi escrito. No entanto, creio ser preciso ter em mente que muito difcil para a histria dos historiadores livrar-se completamente das tentaes da filosofia da histria. E extremamente significativo que algumas das pginas mais importantes de "Histria e dialtica" sejam consagradas justamente a demonstrar que o conhecimento histrico to esquemtico quanto outro qualquer; e que, mais do que isso, a antropologia por buscar adotar uma perspectiva estranha a qualquer sociedade particular e por voltar-se para o inconsciente tende a produzir um saber mais abrangente que o da histria.

    Apesar das aparncias, ento evidente que Lvi-Strauss sempre soube que o verdadeiro problema reside nas formas de se conceber a histria em seu primeiro sentido, ou seja, como histria dos homens e como historicidade. A vulgata tambm sempre o soube, e sob a capa das acusaes de inimigo da histria (filosofia ou cincia) subjaz sempre aquela, mais grave, de suposto desconhecimento da prpria historicidade. verdade que o autor sempre buscou refutar tais acusaes, mas mesmo essas refutaes no nos devem fazer esquecer o essencial: a novidade introduzida por Lvi-Strauss no que diz respeito s formas de se pensar a historicidade.

  • Em primeiro lugar, essa novidade deriva do fato de que a histria comea a ser pensada do ponto de vista da antropologia, ou seja, da diversidade. E ainda que Lvi-Strauss se atenha a algumas poucas, o fato que, ao menos de direito, podem existir tantas formas de historicidade quanto de parentesco ou de religio. A distino entre "histria fria" e "histria quente" desempenha, justamente, a funo de demonstrar este ponto.

    Introduzidos em 1961, nas entrevistas concedidas na Rdio Francesa a Georges Charbonnier, esses termos se prestaram a todo tipo de mal entendido como atesta o trecho de Joanna Overing citado no incio desta exposio. Desde O pensamento selvagem, Lvi-Strauss tratou de se explicar, explicao retomada em 1983, no segundo "Histria e Etnologia" e em "Um outro olhar", e resumida com perfeio em um artigo recente que busca responder s crticas de dois neo-sartreanos:

    "Imputar a mim a mesma concepo errnea implica um equvoco sobre o sentido e o alcance da distino que propus fazer entre "sociedades frias" e "sociedades quentes". Ela no postula, entre as sociedades, uma diferena de natureza, no as coloca em categorias separadas, mas se refere s atitudes subjetivas que as sociedades adotam frente histria, s maneiras variveis com que elas a concebem. Algumas acalentam o sonho de permanecer tais como imaginam ter sido criadas na origem dos tempos. claro que elas se enganam: tais sociedades no escapam mais da histria do que aquelas como a nossa a quem no repugna se saber histricas, encontrando na idia que tm da histria o motor de seu desenvolvimento". (Lvi-Strauss, 1998: 108)

    Comentando a questo em uma entrevista posterior, Lvi-Strauss atribui o mal-entendido ao fato de que "ningum se deu ao trabalho de refletir. Havia uma velha distino, povos com histria e povos sem histria, ento eles dizem que minha distino idntica a essa" (Viveiros de Castro, 1998: 119).

    Temos que reconhecer, contudo, que o carter objetivo ou subjetivo da oposio entre histria fria e quente no to simples assim. Em um texto publicado h trinta e cinco anos, Marc Gaboriau sublinhava, na obra de Lvi-Strauss, a existncia de dois modelos para pensar a sociedade e, mais especificamente, a questo da histria. O primeiro, que Gaboriau denomina "psicanaltico", mas que poderia chamar de "durkheimiano",

    "atribui sociedade uma espcie de reflexo objetiva que no coincide com a conscincia do indivduo (). A sociedade como um sujeito, reagindo a um exterior, corrigindo suas prprias deficincias. (Gaboriau, 1963: 153)

    O segundo modelo, que coexiste com o primeiro, trataria a sociedade como "mquina", os ajustes e reaes derivando de seu funcionamento objetivo, no de conscincias individuais ou coletivas.

    Em suma: bvio que Lvi-Strauss no aceita qualquer dicotomia aparentemente objetiva entre sociedades "com histria" e "sem histria"; por outro lado, as formas de se reagir temporalidade so ora encaradas como o simples efeito de um determinado tipo de estrutura social, ora como o resultado de uma espcie de vontade coletiva.

    Alguns anos antes da introduo da distino entre histria fria e quente, Lvi-Strauss j havia proposto uma outra dicotomia visando demarcar distintas formas de historicidade proposta que, talvez ainda mais do que a outra, tenha sofrido uma incompreenso fundamental e suponho que isso se deva ao fato de "Raa e

  • Histria" na qual a oposio entre histria estacionria e cumulativa apresentada e teve como destino a rubrica de texto "introdutrio". Lido por quase todos no momento de nossos primeiros estudos de antropologia, raramente revisitado quando nos tornamos capazes de uma reflexo mais sria; preferimos indic-lo a nossos alunos, o que fecha o crculo e relana a maldio.

    Como parte de nossas "introdues antropologia", "Raa e Histria" quase inteiramente reduzido quilo que no passa de seu prembulo: a crtica ao etnocentrismo e ao "falso evolucionismo" ou "evolucionismo social". Pouco se atenta, assim, para o fato de que esse texto talvez seja a nica proposta de aplicao, no campo das cincias sociais, de um modelo verdadeiramente evolucionista, quer dizer, no a transposio de um lamarckianismo ou de um darwinismo j fora de moda mesmo no domnio das cincias naturais, mas a evocao da possibilidade de um neo-darwinismo sociolgico. Ou seja, de uma reflexo inspirada pelas transformaes radicais que as descobertas de Mendel provocaram na teoria evolucionista, colocando em seu centro noes como as de acaso, probabilidade, mutao e encadeamento de transformaes justamente aquelas que Lvi-Strauss pretende recuperar para a antropologia.

    "Raa e Histria" procede por etapas. Em um primeiro momento, histria cumulativa e histria estacionria parecem simples substitutos da oposio com/sem histria. Em seguida, somos convidados a reconhecer, com exemplos extrados da Amrica pr-colombiana, que a cumulatividade no um privilgio ocidental. Finalmente, a essa relativizao "de fato", segue-se uma relativizao "de direito": a distino deriva sempre de uma espcie de iluso de tica, e se a histria da Amrica parece cumulativa, porque somos capazes de nela recortar e selecionar acontecimentos similares, em sentido e orientao, queles que privilegiamos em nosso prprio devir. Se, como diz Lvi-Strauss, "a histria no , pois, nunca a histria, mas a histria-para", pode-se dizer, com mais razo ainda, que a histria da Amrica cumulativa "para ns". Em outros termos, se a distino entre histria fria e quente de ordem "subjetiva", aquela entre histria estacionria e cumulativa o em um grau ainda mais elevado:

    "Todas as vezes que somos levados a qualificar uma cultura humana de inerte ou de estacionria, devemos, pois, nos perguntar se este imobilismo aparente no resulta da nossa ignorncia sobre os seus verdadeiros interesses, conscientes ou inconscientes, e se, tendo critrios diferentes dos nossos, esta cultura no , em relao a ns, vtima da mesma iluso". (Lvi-Strauss, 1952: 73)

    Observemos, contudo, que a mesma ambigidade existente no modelo histria fria e quente reaparece no que diz respeito ao par estacionria/cumulativa. Assim como o primeiro pode ser interpretado ou como parte do funcionamento de uma mquina social, ou derivando de algo como uma vontade coletiva, o segundo interpretado ora como efeito das perspectivas relativas de uma sociedade diante da outra (em uma espcie de relao de intersubjetividade social, portanto), ora como o resultado objetivo do fato de uma cultura se achar isolada ou, ao contrrio, de fazer parte de uma "coligao" cultural com outras sociedades:

    "Neste sentido, podemos dizer que a histria cumulativa a forma caracterstica de histria desses superorganismos sociais que os grupos de sociedade constituem, enquanto que a histria estacionria se que verdadeiramente existe seria a caracterstica desse gnero de vida inferior que o das sociedades solitrias". (Lvi-Strauss, 1952: 89)

    Antes de retomarmos o triplo sentido de "histria", propondo uma outra leitura de seu significado, afastemos, preliminarmente, a aparente contradio entre modelo

  • "psicanaltico" e "mecnico". No creio, de fato, que eles se oponham. Poderamos sustentar, talvez, que se trata de dois modos alternativos de descrio dos mesmos fenmenos, mas isso seria fraco demais, ainda que correto. Melhor dizer que termos como desejo ou vontade no remetem necessariamente para constantes enraizadas em uma suposta natureza humana ou social dada de antemo; que eles podem ser compreendidos como efeitos subjetivos de funcionamentos que se do sobre um plano de intersubjetividade primeira, e que se manifestam igualmente em nvel do sociolgico propriamente dito. A "vontade" de uma sociedade resistir histria o correlato nem causa, nem consequncia de uma maquinaria social que funciona dificultando o trabalho da histria.

    Acredito ser possvel, agora, tentar reunificar o campo semntico, apenas na aparncia disperso, dos trs sentidos de histria. Parece-me que ao recortar o campo desse modo, Lvi-Strauss est fazendo algo bem mais profundo do que simplesmente lembrar que a passagem do tempo inevitvel, que os historiadores tratam de mapear e organizar os fenmenos decorrentes desse fato, e que a filosofia da histria apenas uma duvidosa forma de auto-conscincia das sociedades ocidentais.

    Parece-me, com efeito, que o trip hierarquizado. As distintas historicidades peculiares a cada sociedade ou cultura constituem a forma particular atravs da qual elas reagem ao fato inelutvel de que esto no tempo ou no devir. Nesse sentido, tanto a "histria dos historiadores" quanto a "filosofia da histria" fazem parte constitutiva de nossa forma particular de historicidade, ou, ao menos, daquela dominante no Ocidente h muitos sculos. O que significa simplesmente dizer que da nossa forma de reagir temporalidade faz parte um certo tipo de reflexo sobre ela. Talvez aqui resida um dos sentidos da aproximao entre mito e histria, ou da hiptese de que a histria funciona, entre ns, como nosso mito. Muito mais que uma mera "relativizao" do saber cientfico, trata-se aqui de revelar que diferentes tipos de historicidade esto articulados com diferentes tipos de reflexo acerca delas, os quais, por sua vez, fazem parte do tipo de historicidade sobre o qual refletem.

    A histria, como forma de saber e/ou auto-conscincia, , ento, caracterstica dessas sociedades que "interiorizam resolutamente o movimento progressivo histrico, para dele fazer o motor de seu desenvolvimento" (Lvi-Strauss, 1962: 268). Poderamos, pois, dizer que fazemos parte de uma sociedade que , acima de tudo, "a favor da histria", ainda que aqui ou ali possa a ela reagir. Se isso for verdadeiro, no seria demais considerar que tambm existem sociedades "contra a histria", aquelas que buscam, "graas s instituies que se do, anular, de forma quase automtica, o efeito que os fatores histricos poderiam ter sobre seu equilbrio e sua continuidade" (ibidem).

    Ora, "contra a histria" uma expresso que deve, evidentemente, ser entendida no mesmo sentido em que Pierre Clastres fala de "sociedades contra o Estado". Ou seja: no como simples ausncia ou privao, mas como um princpio ativo o que afasta de imediato toda ameaa de etnocentrismo. Mais do que isso, creio que possvel imaginar que boa parte dos protestos contra os que, supostamente, recusam s outras sociedades as bnos da histria, deriva de uma espcie de etnocentrismo elevado segunda potncia. Pois, afinal, quem disse que para haver dignidade humana preciso que a histria, tal qual a conhecemos, esteja presente? E que no se imagine, tampouco, que a distino entre essas duas atitudes em face da histria caracterizariam dois grupos ou tipos de sociedades. Ainda que sempre em uma relao de subordinao, atitudes distintas esto simultaneamente presentes em qualquer sociedade humana.

  • Joanna Overing tem, pois, ao menos o mrito de ter intudo corretamente a aproximao entre Clastres e Lvi-Strauss. Porque no seria difcil mostrar que alm de estar apoiado sobre dados etnogrficos precisos aos quais ningum dava muita ateno, o modelo de Clastres deriva justamente de uma profunda reflexo sobre esses textos "menores" de Lvi-Strauss. Afinal, como demonstrou Franois Chtelet, qualquer que seja o sentido que se queira emprestar ao termo "histria", esta parte essencial dessas sociedades que, h muito tempo, escolheram o partido do Estado. E o prprio Lvi-Strauss o lembrava quando, na entrevista a Charbonnier, empregava uma belssima metfora e chamava a ateno para o fato de que as sociedades de "histria fria" funcionam como "relgios", ou seja, em equilbrio e sem grandes desigualdades sem poder coercitivo, diria Clastres. Aquelas que conhecem a "histria quente", ao contrrio, so como "mquinas a vapor", gerando uma enorme quantidade de energia e acelerando o tempo s custas das crescentes desigualdades entre os homens que todos conhecemos sobretudo hoje, quando o sonho saintsimoniano de Lvi-Strauss, de uma sociedade que deixaria o "governo dos homens" para dedicar-se "administrao das coisas", parece cada dia mais distante, substitudo por uma verdadeira e terrvel "administrao dos homens".

    Ainda que isso possa parecer um tanto paradoxal, creio que ao distinguir e separar a historicidade em si dos discursos que, sob o pretexto de reconhec-la plenamente, fazem o possvel para elimin-la, Lvi-Strauss abriu o caminho para uma reflexo histrica afastada das armadilhas de todos os evolucionismos e de todas as ideologias celebratrias. Livre das falsas totalidades e das filosofias da histria, a historicidade pode reaparecer na forma do acontecimento e do devir, e a histria pode retomar seus direitos como reflexo crtica.

    Eu arriscaria, pois, dizer que alguns dos desenvolvimentos contemporneos usualmente tidos como absolutamente estranhos ao pensamento de Lvi-Strauss encontraram nele o ponto de apoio a partir do qual puderam se lanar e principalmente na obra de Michel Foucault que penso aqui 3.

    Se fosse preciso atenuar um pouco a estranheza sugerida pela idia de que Lvi-Strauss poderia ser situado nas origens de alguns dos quase-historicismos contemporneos, eu citaria apenas o testemunho de um autor pouqussimo suspeito de complacncia para com vises anti-histricas ou mesmo para com o chamado "estruturalismo" essa figura de mdia que nunca ningum soube exatamente o que . justamente atravs de uma longussima citao, reunindo trechos extrados do ltimo captulo de O pensamento selvagem, que Paul Veyne (1978: 23-4) proclama com todas as letras o fato de que "tudo histrico", e de que, portanto, "a Histria", no singular e com maiscula, "no existe". E justamente a partir dessa demonstrao que seu livroComo se escreve a Histria busca revelar a viabilidade de um modelo inteiramente historicista para o exerccio da disciplina histrica. Em um momento em que todos os tipos de tolices em torno do "progresso" e da "modernidade" so repetidos at mesmo por alguns antroplogos, essa lio de Lvi-Strauss no deveria ser esquecida.

    difcil, para mim, achar as palavras adequadas para agradecer ao convite para participar desta homenagem absolutamente necessria. Eu gostaria, ento, de terminar com uma nota de admirao, palavra que deve ser entendida quase que em seu sentido etimolgico, o de uma aproximao que no exclui a distncia, bem como na acepo de espanto e assombro condio de todo trabalho intelectual. H anos foi a leitura da obra de Claude Lvi-Strauss que me convenceu que, no campo das Cincias Sociais, era a antropologia que poderia me abrir o tipo de reflexo que desejava. Reflexo crtica, capaz de abordar as questes mais abrangentes sem perder o contato com a experincia mais vivida. Um dos maiores valores dessa aventura intelectual foi justamente o de ter me modificado

  • profundamente, fazendo, assim, com que eu afastasse progressiva e parcialmente das idias de seu inspirador. O que, claro, no tem a menor importncia. Como diz Paul Veyne, a quem eu gostaria de citar mais uma vez para terminar,

    " mais importante ter idias do que conhecer a verdade; por isso que as grandes obras (), mesmo quando refutadas, se mantm significativas e clssicas (...). A verdade no o mais elevado dos valores do conhecimento". (Veyne, 1976: 42)

    Notas

    1 Professor do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro); pesquisador do CNPq; pesquisador do NuAP (Ncleo de Antropologia da Poltica Pronex 1997); autor de Razo e Diferena. Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lvy-Bruhl(Editora Grypho/Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1994).

    2 Agradeo a Peter Gow por ter me revelado a existncia desse texto. Agradeo tambm, de modo mais geral, a Tnia Stolze Lima por uma srie de sugestes acerca de pontos especficos do texto.

    3 Conta-se que provocado pelos irmos Campos que observavam que sua obra parecia se deter em um limiar situado aqum das transformaes mais contemporneas da poesia , Joo Cabral de Melo Neto teria dito que imaginava sua obra como um trampolim: a extremidade bem flexvel a fim de possibilitar os saltos, mas a base necessariamente muito firme.

    Bibliografia

    DELEUZE, G. & BENE, C. 1979 Superpositions, Paris, Minuit. [ Links ]

    GABORIAU, MARC [1963] 1968 "Antropologia estrutural e Histria", in Luiz da Costa Lima (org.), O estruturalismo de Lvi-Strauss, Petrpolis, Vozes, pp.140-56. [ Links ]

    GOULD, S. J. 1991 "The Case of the Creeping Fox Terrier Clone", in Bully For Brontosaurus. Reflections in Natural History,New York, London, W. W. Norton & Company, pp. 79-93. [ Links ]

    LVI-STRAUSS, C. [1949] 1958 "Introduction: Histoire et Ethnologie", in Anthropologie Structurale, Paris, Plon. [ Links ]

    [1952] 1978 "Raa e Histria", in Os Pensadores, vol. L, So Paulo, Abril Cultural. [ Links ]

    1960a [1973] "Le Champ de lAnthropologie", in Anthropologie Structurale Deux, Paris, Plon. [ Links ]

  • [1960b] 1973 "Les Discontinuits Culturelles et le Dveloppement conomique et Social", in Anthropologie Structurale Deux, Paris, Plon. [ Links ]

    [1962] 1976 O pensamento selvagem, So Paulo, CEN. [ Links ]

    1983a "Histoire et Ethnologie", Annales E.S.C., 38 (6): 1217-31. [ Links ]

    1983b "Un Autre Regard", LHomme 126-128: 9-10. [ Links ]

    1991 Histoire de Lynx, Paris, Plon. [ Links ]

    1998 "Voltas ao Passado", Mana, Estudos de Antropologia Social 4 (2): 107-17. [ Links ]

    LEWONTIN, R. C.& LEVINS, R. 1985 "Evoluo", in Orgnico/Inorgnico. Evoluo, Enciclopdia Einaudi , r6: 234-87, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda. [ Links ]

    MERLLI, D. 1989 "Prsentation. Le Cas Lvy-Bruhl", Revue Philosophique de la France et deltranger, 4: 419-48. [ Links ]

    OVERING, J. 1995 "O mito como histria: um problema de tempo, realidade e outras questes", Mana. Estudos de Antropologia Social, 1 (1): 107-40. [ Links ]

    VEYNE, P. [1976] 1989 O inventrio das diferenas, Lisboa, Gradiva. [ Links ]

    1978 Comment on crit lHistoire, Paris, Seuil. [ Links ]

    VIVEIROS DE CASTRO, E. 1998 "A antropologia de cabea para baixo. Entrevista com Claude Lvi-Strauss", Mana. Estudos de Antropologia Social, 4 (2): 119-26. [ Links ]

    ABSTRACT: This text explores various aspects of Claude Lvi-Strauss's thought concerning history. Starting out from a critique of reductionist readings of his work, the paper aims to demonstrate two points. Firstly that, even though the reflection on history occupies an apparently secondary dimension in the author's work, it is precisely this deliberation which allows us to touch on important and marginalized aspects of so-called structuralism. Secondly, the paper aims to show that Lvi-Strauss's reflections allowed the development of a truly anthropological, rather than ethnocentric, perspective on the history and historicity of human societies.

    KEY-WORDS: Lvi-Strauss, History, Anthropological Theory.