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Pirilampos na Escuridão Flores e borboletas, pintura de Margit Koretzová (1933 –1944)

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Pirilampos na Escuridão

Flores e borboletas, pintura de Margit Koretzová (1933 –1944)

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Introdução

Friedl Dicker-Brandeis foi uma artista e professora que trabalhou com crianças. Bondosa, maternal e corajosa, inspirou centenas de crianças, mesmo quando a ameaça da morte pairava sobre elas no campo de concentração de Terezin. Friedl ajudou-as a conservar a esperança. Preparou-as para a vida normal que ela achava que retomariam depois da guerra, quando fossem todas libertadas.

Uma série de acontecimentos históricos conduziu à construção de Terezin e ao encarceramento de Friedl e das suas alunas. Em 1933, Adolf Hitler tornou-se Chanceler da Alemanha e instaurou uma ditadura. Baniu todos os partidos políticos, exceto o seu, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores da Alemanha. Os seus membros eram conhecidos como os nazis. Hitler criou campos de concentração, para onde enviava aqueles que se lhe opunham, bem como todos aqueles de quem não gostava. O povo que Hitler mais odiava eram os judeus. Culpava-os por todos os pro-blemas da Alemanha, embora os judeus não tivessem feito nada de errado.

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Hitler e o seu governo planearam livrar-se de todos os judeus da Europa. Chamaram a este plano “a solução final”. A fim de alcançarem os seus objetivos, decidiram obrigar os judeus a viverem em áreas restritas e concentradas da cidade, chamadas “guetos”. Os judeus não podiam ausentar-se dos guetos, que estavam rodeados de muros altos e de arame farpado. De lá, eram enviados para campos de concentração, e depois para campos de morte, onde eram assassinados.

Hitler planeou conquistar outros países e criar um império alemão. Quando as suas tropas invadiram a Checoslováquia e a Polónia em 1939, a Grã-Bretanha e a França declararam guerra à Alemanha, e a Segunda Guerra Mundial começou.

Friedl Dicker-Brandeis vivia em Praga, na Checoslováquia, quando os nazis chegaram ao poder. Embora em 1938 alguns amigos lhe tenham oferecido um visto para ela ir para a Palestina, Friedl recusou abandonar o marido e os amigos.

Com o tempo, os nazis foram restringindo cada vez mais os direitos dos judeus. Estes perderam os seus empregos, os seus negócios e as suas casas. As crianças só podiam frequentar escolas judias. Todos os judeus tinham de andar com uma estrela

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amarela, onde se podia ler Jude, que significa judeu em alemão. Friedl foi, infelizmente, uma das pessoas que acabaram por ser enviadas para um campo de concentração.

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1 – A chegada a Terezin

Mesmo que nos seja dado apenas um dia, devemos vivê-lo.Friedl Dicker-Brandeis

Friedl Dicker-Brandeis recebeu a temida ordem de partida em 1942. Tinha de deixar a sua casa e ir para um campo de concentração. Campo de concentração. Só a expressão aterrorizava todos os judeus. Que iria acontecer-lhes nos campos? Os nazis chamavam-lhe “realojamento” e diziam que iriam tratar bem os judeus e dar-lhes trabalho e comida. E se estivessem a mentir?

Era impensável desobedecer a uma ordem nazi. Soldados armados certificavam--se de que todos obedeciam. Friedl sabia como eram os nazis. Uma vez, em 1934, tinha sido presa e levada para um quartel nazi para ser interrogada sobre as suas atividades políticas. A experiência aterrorizou-a. Pintou mais tarde um quadro do seu

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interrogatório e nele desenhou o oficial que a interrogou como se fosse um animal feroz.

Em dezembro de 1942, Friedl, o marido, Pavel Brandeis, e todos os judeus da cidade de Hronov foram transportados para um campo a que os Checos chamavam Terezin (Theresienstadt em alemão). Em 1938, Friedl e Pavel já tinham abandonado o seu grande e confortável apartamento em Praga e tinham-se mudado para Hronov, por precaução. Viviam no piso térreo de uma casa, numa espécie de arrecadação. Em 1940 tiveram de mudar-se para um barracão ali próximo, e depois para um quarto frio no sótão de uma casa. Embora desconfortáveis, esses lugares eram o seu lar, recheados das coisas que ainda possuíam, lugares onde a família e os amigos podiam ir visitá-los, apesar da guerra.

Na semana anterior à partida de Friedl, a sua melhor amiga, Hilde Angelini--Kothny, uma alemã não-judia, veio ajudá-la. “Nem sei quantas vezes empacotámos, desempacotámos e reempacotámos tudo”, recordou Hilde mais tarde. Friedl ficava dilacerada por ter de fazer escolhas. De que precisaria mais? Os nazis só permitiam que cada judeu levasse 55 quilos de bagagem. Friedl já tinha trabalhado com crianças

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e sabia que haveria crianças em Terezin. Sabia que se sentiriam sós e aterrorizadas. Pensou na melhor forma de as ajudar. Por isso, em vez de empacotar coisas que a fariam sentir-se melhor e mais confortável, levou sobretudo material de artes plásticas: tinta, pincéis, papel e livros ─ não para si própria, mas para as crianças. Embora de pequena estatura, era de caráter decidido, e estabeleceu um plano. Lutaria através da arte.

Crianças suas alunas que também iam para Terezin foram perguntar-lhe que materiais deveriam levar com elas. Friedl disse-lhes.

Partiram às quatro da manhã do dia 16 de dezembro. Quando estava na hora de partir, Friedl perdeu a coragem e desatou a chorar. Mas não chorava por si. Pensava no que aconteceria a Hilde durante a guerra. Mas Hilde estava mais preocupada com Friedl. Ninguém sabia o que iria acontecer.

Friedl, Pavel e os outros judeus da sua cidade viajaram de comboio até à cidade de Hradec Králové, e daí até uma estação que ficava perto do campo de concentração. Cada pessoa tinha um número de transporte, que estava gravado em todos os artigos de viagem. A 17 de dezembro, Friedl, Pavel e os seus companheiros

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percorreram a pé os quase dois quilómetros que separavam a estação do campo de Terezin, carregados com a bagagem. Friedl tinha 44 anos quando viu a prisão pela primeira vez.

Em Terezin, a polícia checa usava os seus velhos uniformes, mas os bonés tinham gravados símbolos nazis ou suásticas. Também andavam armados. “Toca a marchar! Toca a marchar!” gritavam para os prisioneiros que chegavam aos milhares de cada vez, vigiados por oficiais alemães da SS. SS é a abreviatura da palavra alemã Schutzstaffel. As SS eram as brigadas especiais de Hitler. Estavam encarregadas de levar a cabo a solução final. Terezin era uma velha cidade-fortaleza, rodeada por muralhas e altas paredes de tijolo vermelho, o que facilitava a transformação da cidade num gueto/campo de concentração para judeus. Os nazis tinham ordenado aos residentes não-judeus que abandonassem a cidade e que procurassem novas casas. Também havia uma prisão chamada Pequena Fortaleza, que distava um quilómetro dali e se destinava a albergar aqueles que desobedecessem às ordens.

Friedl arrastou com dificuldade a bagagem pela rua pavimentada de neve. Dentro do campo, reinava uma enorme confusão. Milhares de pessoas enchiam as

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ruas. Os mais idosos, vestidos de andrajos, caminhavam penosamente, enquanto uma carroça cheia de caixões passava mesmo ao seu lado. Uma vedação de madeira encimada por arame farpado separava a população do gueto de uma passagem que se destinava ao uso exclusivo das SS. A passagem estabelecia a comunicação entre o quartel das SS e os seus alojamentos. Não queriam de todo misturar-se com os judeus.

Nos barracões de Magdeburg, Friedl e o marido faziam parte de uma fila interminável de pessoas que aguardavam a vez de se inscreverem. A polícia do campo retirava-lhes todos os objetos de valor ─ dinheiro, joias, até relógios de pulso. Também roubavam o que queriam da bagagem. Ainda bem que ninguém quis o material de Friedl. Bem iria precisar dele para conseguir lidar com o que quer que acontecesse.

Quando finalmente chegou a sua vez, Friedl apresentou a sua identificação e foi--lhe destinada uma tarefa. Os judeus encarregados de ajudar os nazis a dirigir o campo tentavam sempre dar aos recém-chegados trabalhos compatíveis com as suas aptidões. Friedl tinha sido pintora, designer, professora e terapeuta através da arte.

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Tinha ensinado e tomado conta de crianças. Foi incumbida de trabalhar com crianças, ficando a viver no L410, um lar para raparigas. Como todos os adultos tinham de trabalhar, as crianças precisavam de ficar ao cuidado de alguém que as supervisionasse. Friedl não pôde viver com o marido, Pavel. Este começou a trabalhar como carpinteiro e foi viver para um edifício exclusivamente habitado por homens.

Em Terezin, as famílias eram todas separadas. Helga Weissová-Hošková, que tinha 12 anos quando, vinda de Praga com os pais, chegou a Terezin, escreveu um diário. O diário inclui uma descrição da sua chegada ao campo, de mão dada com o pai. Eis o que escreveu:

Levaram-nos para dentro.

— Agora, os homens vão para a esquerda e as mulheres seguem sempre em frente!

— Então, não posso dar a mão ao meu pai?

— Despacha-te! Não ouviste o que te disse?

— Adeus, papá…

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E um mar de gente empurrou-me até ao pátio…

O que irá acontecer? Talvez nunca mais nos vejamos, papá.

Mas o pai de Helga foi enviado para o mesmo barracão, para o andar debaixo do dela, e voltaram a ver-se. Quando o mudaram de edifício, ela mandou-lhe desenhos às escondidas e ele mandou-lhe cartas em segredo.

Mais tarde, mudaram-na para o quarto 28 do L410. Passado algum tempo, as crianças podiam visitar os pais ao domingo, durante duas horas. Pouco depois, podiam vê-los todos os dias depois do trabalho. As regras estavam sempre a mudar.

Os pais achavam que era melhor para as crianças viverem juntas, em vez de conviverem com pessoas de idade que estavam doentes e a morrer. No entanto, no início, algumas raparigas como Helga e rapazes com menos de 12 anos ficavam com as mães. Os rapazes com idade igual e superior a catorze anos ficavam com os pais. O resto das crianças (cerca de metade das que viviam no campo) vivia em conjunto em edifícios grandes, que outrora tinham sido quartéis. Cada edifício estava dividido em quartos pequenos e atravancados, cada um com cerca de 20 ou 30 crianças.

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Tutores como Friedl supervisionavam as crianças. A estes locais davam o nome de lares.

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2 – L410, um lar para raparigas

Revelei ter mais coragem do que supunha.Friedl Dicker-Brandeis num postal a Hilde Kothny

As condições de vida em Terezin eram péssimas. No L410, beliches de três andares enchiam quartos frios e atravancados. Os quartos eram gelados no inverno e sufocantes no verão. Helga Polláková-Kinsky desenhou os beliches no seu diário e escreveu: Dormimos, vivemos e comemos em cima deles. Parecemos sardinhas em lata quando estamos deitadas. Cheiram mal, são abafados e têm pulgas e percevejos. As crianças tinham saudades dos pais e das suas casas. Apesar de as condições de vida serem difíceis durante a guerra, por causa do racionamento da comida, da gasolina, dos cobertores, da roupa ─ de tudo, em suma ─ tinham-se sentido seguras e confortáveis em casa. Queria voltar para junto da minha família, recorda Helga. Não estava habituada a viver numa comunidade de crianças.

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Ze’ev Shek, um jovem que ensinava hebraico e vivia na Casa Um do Lar 417 disse mais tarde que sabia que as crianças acordavam de noite com frequência e que ficavam a olhar para a escuridão vazia. Às vezes, ouvia os seus soluços abafados. Mas os professores e os encarregados não podiam ajudar todas as crianças ao mesmo tempo. Tinham o tempo totalmente ocupado com as que estavam doentes. Tinham de lhes dar comprimidos ou de acordar aquelas que podiam molhar a cama e levá-las às casas de banho.

Para impedirem os prisioneiros de fazerem amizades ou de se sentirem à vontade, os nazis mudavam-nos constantemente de lugar. Mas, onde quer que Friedl estivesse, tinha o condão de criar pequenos espaços próprios. Conseguiu criar um espaço habitável num dos corredores do L410, recorda Willi Groag, o responsável pelos tutores deste lar, que a conheceu bem. Os corredores tinham tetos muito altos. Friedl conseguiu arranjar um lugar ao qual se acedia por uma escada. Pavel vinha vê--la, às vezes. Fez alguma mobília para ela a partir de pedaços de madeira e de velharias. Mais tarde, ela fez um quarto num pequeno pátio das traseiras do L410, disse Willi.

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Lilly Edna Amit, que viveu no L410, lembra-se de que o quarto de Friedl tinha sido uma arrecadação. Eva Štichova-Beldová descreveu o quarto como sendo “confortável” e disse que Friedl o partilhava com Irena Krausová, que dava aulas de literatura. Dizia-se que um dos outros quartos de Friedl ficava no sótão do L410. Mas, mesmo que Friedl construísse um quarto só seu, convidava sempre as raparigas a juntarem-se a ela. O que elas adoravam.

Friedl tinha a capacidade de transformar lugares inóspitos em lugares gares confortáveis, porque, antes da guerra, tinha desenhado casas, apartamentos e lojas. Tinham concebido espaços para crianças, nomeadamente jardins de infância, em Viena e em Praga. Tudo dentro destes espaços era também desenhado por ela, desde cadeiras de criança fáceis de empilhar a porta-escovas de dentes. Friedl aprendeu tudo isto na Bauhaus, uma mundialmente famosa escola de artes e ofícios contemporâneos, que ficava na Alemanha. Os artistas da Bauhaus faziam estudos sobre a cor e experimentavam novos materiais. Fabricavam coisas de uso quotidiano que tornavam a vida mais bela e confortável. No L410, Friedl iria, mais do que nunca, precisar das suas aptidões.

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A Karel Está Doente e Lê em Voz Alta, colagem de artista desconhecida. Feita por uma das alunas de Friedl, mostra os beliches de três andares.

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3 – As escolas secretas

Friedl. Chamávamos-lhe Friedl. Esquecíamos tudo durante umas horas. Esquecíamos todas as preocupações que tínhamos.

Helga Polláková-Kinsky, As Vozes das Crianças (documentário em vídeo-cassete)

Em Terezin não eram permitidas escolas. Os nazis só deixavam que as crianças estudassem música e fizessem trabalhos manuais, como coser, bordar, pintar quadros decorativos e cartões de felicitações. Por isso, Friedl e os outros tutores ensinavam as crianças às escondidas. Durante as aulas, um aluno ficava a vigiar. Se os guardas do gueto ou um oficial das SS aparecessem, a “sentinela” dava logo sinal. Os alunos escondiam então rapidamente os desenhos, os cadernos e os lápis, e desatavam a cantar ou a limpar a sala. Kurt Jiři Kotouč, que viveu no L417, lembra--se de que as aulas eram dadas sobretudo nos sótãos, onde havia menos perigo de

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que as SS nos caísse em cima.Como não havia seletas, os tutores escreviam o que sabiam sobre as matérias,

baseando-se apenas na memória, e partilhavam os livros que tinham trazido. As crianças com catorze anos ou mais tinham de trabalhar todo o dia, por isso estudavam à noite ou de manhã cedo, bem como aos domingos.

Friedl ia de sala em sala, todas elas a abarrotar de crianças, à procura de quem quisesse ter aulas ─ incluindo as crianças que estavam doentes no hospital. Era baixinha e alegre. Muitas das crianças eram mais altas do que ela. Trazia papel, tintas e lápis. Quando os materiais se esgotavam, usava papel de embrulho, o reverso de cópias fotográficas de projetos, bem como impressos “emprestados” pelos escritórios da secção administrativa do campo. Segundo Lilly Edna Amit, tirar coisas aos alemães não era considerado roubo. Os presos chamavam-lhe “organização”.

Todas aguardavam com ansiedade pela sua vez de trabalharem com Friedl, especialmente as raparigas do Quarto 28. Era alegre, gentil e paciente, recorda Raja Englanderová-Žákníková. No Quarto 28 só havia uma mesa, lembra-se Helga

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Polláková-Kinsky, por isso as raparigas desenhavam em cima dos beliches. Ou aninha-

vam-se em qualquer lado e trabalhavam em cima dos joelhos, recorda Dita Polachová-Kraus. Às vezes, iam para o quarto de Friedl.

Friedl ajudava as crianças a escaparem mentalmente através da arte. Queria que saíssemos dali e fossemos para um mundo agradável, diz Helga.

No fim de cada aula, as alunas de Friedl assinavam sempre os nomes nos desenhos. Nas suas aulas, as crianças nunca usavam o número sob o qual tinham sido transportadas até ao campo. Ocasionalmente, adicionavam o número do quarto e a data. Friedl recolhia os desenhos e guardava-os numa caixa de cartão ou na mala dela, para os salvaguardar.

Ao fim do dia, analisava os desenhos na qualidade de terapeuta através da arte, e discutia-os com outros especialistas. Os desenhos revelavam os problemas das crianças. Friedl tentava entendê-los, a fim de ajudar as suas alunas. Sabia que as crianças tinham saudades de casa.

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Uma delas escreveu este poema:

Ah, lar, lar,

Porque me apartaram de ti?

Aqui os fracos morrem facilmente como

penas

E quando morrem, morrem para sempre.

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Colagem com poste de sinalização: Praga, feito por anónimo. Muitas alunas faziam desenhos de postes de sinalização que indicavam a direção de

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Praga. Este é diferente, porque mostra alguém vestido com um uniforme militar escuro, que impede a passagem das pessoas. No entanto, também podemos observar raios de sol que irrompem num céu ameaçador, o que sugere esperança.

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4 – Toda a gente tinha fome

Vivemos acorrentados como cães.Jiří Zappner, Vedem, publicação clandestina, 1942 –1944

Em Terezin, toda a gente tinha fome. Os idosos eram os que mais sofriam. Não recebiam comida suficiente e tinham de estender as tigelas de metal e pedir sopa. Helga Polláková-Kinsky escreveu no seu diário: Fui ver o meu tio aos barracões de Sudeten. Alguém deitou fora cascas de batata e dez pessoas precipitaram-se para as apanhar.

Alguns professores davam aulas em troca de comida. Friedl não. Penso que Friedl era a única que não aceitava uma migalha de pão que fosse em troca de aulas, recorda Erna Furman. Dava-se a nós com muita generosidade.

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Os chefes judeus que dirigiam o campo distribuíam comida melhor e mais abundante às crianças. Mesmo assim, não chegava, e o seu sabor era horrível. As rações diárias consistiam numa chávena de café pela manhã, numa tigela de sopa aguada ao meio-dia que, de vez em quando, trazia lá dentro um nabo, uma batata, ou um sonho salgado, sopa esta que se repetia à noite, talvez acompanhada por um bolo de leite com uvas passas. De três em três dias, as crianças recebiam uns gramas de pão escuro e bolorento, trazido nas mesmas carroças que transportavam os cadáveres. Aparavam as partes que tinham bolor e cortavam o resto às fatias, para o fazer durar.

As crianças tomavam conta das hortas que pertenciam às SS. Regavam as plantas, tiravam as lagartas das couves e, às vezes, conseguiam roubar um nabo ou um tomate. Se fossem apanhadas, eram duramente castigadas e enviadas para a Pequena Fortaleza.

Aos domingos, davam-lhes uma pequena porção de margarina e uma colher de chá de compota. As raparigas do L410 poupavam a margarina e a compota para ocasiões especiais como o Hanukkah. Faziam então um “bolo de pão” ou sandes.

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Comíamo-lo juntas e festejávamos a data, lembra-se Helga Polláková-Kinsky.Charlotte Verešová escreveu no seu diário: Comecei a pensar demais em

comida. Durante as aulas de Friedl, as crianças faziam com frequência desenhos de famílias reunidas em torno de uma mesa, cheia de pratos transbordantes de comida.

Com tanta gente junta, era quase impossível manter um nível de higiene satisfatório. Duas casas de banho para 100 crianças são manifestamente insuficientes, escreveu Helga. Rose Salomon partilhava uma latrina com 53 mulheres e fez uma descrição: Quando passei pela primeira vez naquele corredor comprido e escuro, vi os cinco buracos de cada lado e senti o cheiro do cloro e do desinfetante, quase desmaiei.

Paula Frahm escreveu: O pedacinho de sabão que recebíamos de vez em quando era conservado como se fosse o maior dos luxos. As crianças punham-se em fila no pátio para se lavarem à vez numa torneira de água fria. No inverno, um dos chefes dos jovens obrigou-os a lavarem-se com neve. No verão, as crianças tomavam duche apenas uma vez por mês.

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Havia percevejos, piolhos e pulgas por todo o lado. No dia 31 de julho de 1943, Helga escreveu no diário: Este é o segundo dia em que durmo no corredor por causa dos percevejos. Somos sete a dormir cá fora e já fomos todas mordidas… Hoje apanhei seis pulgas e três percevejos… Um rato dormiu no meu sapato.

Pulgas, percevejos e ratos espalhavam doenças. Epidemias de tifo, escarlatina, tuberculose e diarreia infeciosa alastravam por todo o campo. Quando as crianças ficavam doentes, eram mandadas para a enfermaria e para o hospital. Aí, médicos e enfermeiras judeus, também eles prisioneiros em Terezin, faziam o que podiam para tratar os doentes com os escassos remédios de que dispunham. Às vezes, estavam tantas crianças doentes que não era possível recebê-las a todas na enfermaria.

Helga Weissová-Hošková mudou-se para o L410, porque os pais achavam que seria melhor para ela viver com raparigas da sua idade. Escreveu no seu diário: Isto já não é um lar, é um hospital. O número de doentes aumenta de dia para dia. Os quartos estão cheios deles e o médico não sabe o que fazer.

Os alemães preocupavam-se com o facto de poderem contrair as doenças dos prisioneiros, por isso enviavam muitos ─ quer estivessem doentes quer não ─ para

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outros campos “no leste.” Ninguém sabia o que os aguardava. Circulavam rumores de que os nazis tinham construído um campo da morte na Polónia, a leste de Terezin, chamado Auschwitz-Birkenau. Toda a gente ficava aterrorizada com a hipótese de ir lá parar. A chamada acontecia muitas vezes a meio da noite. Os que eram chamados tinham de partir em 24 horas. Dirigiam-se à estação de comboios e os guardas do gueto metiam-nos à força em vagões de mercadorias.

Friedl escreveu à sua amiga, Hilda Kothny:

Se ao menos não tivéssemos de estar sempre com medo de que nos mandem para lá!

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Uma criança escreveu um poema:

Quantas deportações? Quantas?Três? Duas? Uma? Não sei.

Chegou a nossa vez, a mamã está a juntar as nossas coisas…

Desenho da execução de um preso judeu feito a lápis por Josef Novák

(25 de outubro, 1931-18 de maio de 1944).

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5 – Desenhando sonhos

Sinto-me como um pássaro preso numa gaiola, no meio de outros.Diário de Helga Polláková-Kinsky

Em setembro de 1943, as deportações para leste incluíram 285 crianças com menos de catorze anos de idade. Friedl deve ter-se sentido pesarosa quando ia dar aulas de desenho e via que faltavam algumas das suas adoradas alunas. Tanto ela como os outros tutores tentavam proteger as crianças. Mas pouco podiam fazer, para além de trabalhar com as que ficavam e tentar manter o moral elevado através das atividades que realizavam.

A 4 de setembro, um sábado, cinco raparigas do Quarto 28 do L410 foram deportadas. Uma delas era a melhor amiga de Helga Polláková-Kinsky, Zdenka. Tanto Helga como as raparigas que partilhavam o quarto juntavam comida e roupas nos seus tempos livres, para poderem dá-las às que iam partir.

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Foi muito difícil a despedida. Chorámos todas muito, relatou Helga no diário. Nessa noite teve pesadelos. O que iria acontecer a Zdenka? Ninguém que partia

para o leste voltava. Deportações, deportações, só a mera palavra aterroriza os judeus de Terezin, escreveu.

Algumas crianças exprimiam os seus medos em poemas que escreviam nos seus tempos livres. Um adolescente, Hanuš Hachenburg, escreveu Terezin:

Há três anoseu era uma criança,

uma criança que ansiava por outros mundos.Já não sou criança agora

pois aprendi a odiar.Sou um adulto,

já conheci o medo.

Havia crianças que não conseguiam exprimir os medos por palavras; por isso, usavam um código secreto ─ o código secreto dos desenhos, que Friedl conseguia

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decifrar. Sob a sua supervisão, desenhavam as coisas que mais temiam: as deportações. Para se consolarem, desenhavam os seus sonhos. Helga pintou um prado ao pôr do sol. No mundo do seu desenho não havia perigo, não havia ameaças de deportações. Enquanto desenhava, sentia-se segura e confortável. De manhã à noite, as crianças desenhavam sem cessar no tempo livre de que dispunham. Friedl encorajava-as a falarem das suas obras de arte. A troca de pontos de vista ajudava-as a acalmar e devolvia-lhes a esperança.

No fim do dia de trabalho, as crianças podiam visitar os pais e os parentes durante cerca de uma hora. Às vezes, havia visitas mais prolongadas aos sábados à tarde e aos domingos. Mas não havia visitas quando as SS confiscavam os passes e confinavam as crianças aos barracões. Isto acontecia depois de tentativas de fuga de prisioneiros, ou quando havia oficiais de alta patente de visita.

Helga, como muitos outros, passava a maior parte do tempo a ler. Os seus livros favoritos eram Les Misérables, de Vítor Hugo, uma edição inglesa de Pollyanna e The Gold Rush, uma história excitante sobre um rapaz americano que fugira de casa e fora em busca de ouro no Rio Yukon. A leitura, tal como o desenho, ajudava as

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crianças a esquecerem onde estavam e transportava-as até lugares onde não havia deportações. Os nazis encheram uma biblioteca comunitária de livros escritos em alemão, que tinham roubado das casas dos judeus. As pessoas ansiavam por qualquer tipo de leitura, recorda o Dr. Emil Utitz, o professor responsável pela biblioteca. Um grupo de adolescentes chegou mesmo a reunir uma pequena biblioteca juvenil com as receitas de uma exposição.

Algumas crianças chegaram a criar os seus próprios materiais de leitura. Kurt Jiř í Kotouč e alguns dos outros rapazes na Casa 1 do L417 publicou em segredo uma revista, Vedem (Na Liderança). Os rapazes de uma outra casa, Q609, escreveram uma revista chamada Kamarád (Amigo). Liam partes da revista em voz alta todas as sextas à noite, depois do trabalho, como forma de prepararem o Sabbath. As revistas continham as observações e os comentários dos rapazes sobre a sua vida no campo.

As SS não queriam que os presos soubessem o que se passava fora do campo de Terezin, e não queriam que ninguém do exterior soubesse o que se passava dentro do campo. Controlavam firmemente toda e qualquer comunicação com o mundo exterior. Censuravam o correio. Não havia rádio, jornais ou revistas. Mas, às

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escondidas, os presos conseguiram introduzir peças de rádio no campo. Os homens que trabalhavam na oficina de reparações elétricas arriscaram a vida ao construírem um recetor de rádio e ao transmitirem notícias sobre a guerra aos outros prisioneiros.

Os prisioneiros tinham cupões que lhes permitiam receber uma encomenda duas ou três vezes por ano. As encomendas continham habitualmente comida, roupas e medicamentos enviados por parentes e amigos não-judeus.

Friedl enviava os seus cupões a Hilda e pedia-lhe coisas que pudesse utilizar no seu trabalho com as crianças. Uma vez, pediu a Hilde que lhe enviasse um livro de que necessitava para um teatro de fantoches. Hilde recusou porque os nazis já tinham queimado livros desse mesmo autor. Sabia que as SS revistavam as encomendas. Se apanhassem o livro, podiam molestar Friedl. Friedl ficou furiosa connosco, recorda Hilde. Era típico dela ficar fascinada por uma ideia artística e querer pô-la em prática logo que possível, independentemente das circunstâncias.

6 – Pirilampos

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Terezin era um lugar único: numa noite tocava-se um concerto de piano no telhado e, no dia seguinte, era-se deportado para a morte.

Alfred Kantor, O Diário de Terezin (documentário em vídeo-cassete)

Quando Friedl preparou a bagagem para partir para Terezin, encheu a mala de lençóis tingidos. Tencionava usá-los como cenários e indumentárias de personagens das peças de teatro que as crianças poriam em cena. Sabia que as crianças adoram representar e pensou que seria uma ótima ideia fazer projetos em grupo. No início, era ilegal representar e dar concertos. Mas as SS afrouxaram aos poucos as regras. Havia muitos atores, maestros, músicos profissionais e professores universitários presos em Terezin. Todas as noites, os prisioneiros montavam um tipo qualquer de espetáculo: concertos, peças de teatro, declamações de poesia e conferências. Numa noite de novembro, por exemplo, chegou a haver onze tipos diferentes de oferta cultural.

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Friedl dava frequentemente conferências sobre o papel da arte no ensino das crianças. Enfatizava a importância de a arte permitir que as crianças se exprimissem livremente. Porque será que os adultos têm tanta pressa em fazer das crianças adultos como eles?, escreveu nas notas que fez sobre as suas conferências.

Em 1943, em Terezin, Friedl trabalhou com outros tutores para ajudar as crianças a encenarem um conto de fadas checo chamado Pirilampos. Tratava-se de um musical e envolvia canções e danças. Sob a direção de Friedl, as crianças conceberam e fizeram os seus próprios fatos. Usaram os lençóis tingidos e todos os materiais que conseguiram encontrar ou pedir emprestados: roupa interior, camisas, até mesmo mortalhas que eram usadas para embrulhar cadáveres. Os ensaios e as representações de Pirilampos ou de outro qualquer espetáculo tinham lugar em sótãos poeirentos, em caves mal iluminadas e em corredores. Tanto crianças como adultos compareciam entusiasmados. Durante uma ou duas horas, atores e espectadores esqueciam onde estavam. Era um mundo de sonho, recorda Ela Steinová-Weissberger.

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Outro espetáculo favorito foi a ópera para crianças Brundibár, composta por Hans Krása. Krása estava preso em Terezin e assistiu a todas as representações. O libreto fala de dois irmãos, um rapaz e uma rapariga que, juntamente com os seus amigos ─ um cão, um gato e um pardal ─ conseguem derrotar um tocador de realejo malvado chamado Brundibár. A canção final, “Brundibár Foi Derrotado, Ganhámos” tinha um significado especial para nós, lembra-se Ela, que fez de gato na peça. Brundibár a todos lembrava Hitler. Quando as crianças o derrotam no fim da ópera, os espectadores dão vivas e aplaudem. Friedl deve ter assistido a, pelo menos, uma das 55 representações de Brundibár. O vasto elenco incluía Dita Polachová-Kraus e muitas outras alunas que ela conhecia bem.

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Fotografia de uma representação de Brundibár em Terezin. Ela Steinová--Weissberger (30 de junho 1930), que fez de gato, está vestida de preto na primeira fila, mesmo ao lado do maestro, Rudolf Fraňek (23 de outubro 1921).

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Friedl e os colegas queriam que as crianças levassem uma vida tão normal quanto possível em Terezin, apesar das condições terríveis em que viviam. Uma vez, fez uma exposição dos trabalhos das crianças na cave do L417. As crianças sentiram--se orgulhosas de verem os seus desenhos pendurados nas paredes. Isso também lhes permitia ver e apreciar o trabalho dos outros.

Friedl fazia anos a 30 de julho. Em 1944, as alunas, sabendo que ela adorava flores, apanharam um ramo para lhe oferecerem quando estavam a trabalhar nos campos e nos jardins das SS. As raparigas esconderam as flores debaixo das blusas para os guardas não as verem quando entrassem no campo.

Erika Taussigová, de dez anos, ofereceu uma prenda feita por ela. Desenhou um coração com flores e escreveu: Para a Sra. Brandeis.

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Para a Sra. Brandeis, desenho a lápis feito em 1944 por Erika Taussigová (28 de outubro de 1934 – outubro de 1944).

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Raparigas a Dançar num Prado, desenho em pastel de Anita Spitzová (6 de janeiro de 1933 –4 de outubro de 1944). Num concurso organizado por Friedl, Anita Spitzová, que nunca tinha desenhado nada antes, ganhou o primeiro prémio com este trabalho.

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7 – Enganando o mundo

O Führer dá uma cidade aos judeus.Filme de propaganda, 1944

Os nazis não queriam que o mundo conhecesse a forma horrenda como estavam a tratar os judeus. Tentavam enganar as pessoas, fazendo-lhes crer que Terezin era um sítio maravilhoso para os judeus, um “paraíso”. Porém, apesar deste tipo de afirmações, algumas pessoas não acreditavam neles.

Em abril de 1944, a Cruz Vermelha Internacional exigiu o direito de visitar Terezin para poder aferir das circunstâncias de vida dos prisioneiros do campo. Os nazis trataram de o embelezar para a inspeção. Plantaram rosas na praça da cidade. Os edifícios por onde os visitantes passariam foram pintados de novo. Construíram-se novos edifícios, incluindo um coreto na praça, um parque infantil para as crianças, um campo de desportos, cafés e um centro comunitário. Para que Terezin não tivesse um

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aspeto tão sobrepovoado, 7.500 prisioneiros, incluindo muitas crianças órfãs, foram enviadas para Auschwitz-Birkenau. Friedl e os outros presos devem ter-se sentido horrorizados, mas tiveram de se manter em silêncio quando os convidados chegaram.

No dia da visita, 23 de junho, oficiais das SS escoltaram três representantes da Cruz Vermelha numa visita cuidadosamente planeada. Os visitantes nunca subiram um lanço de escadas para ver as condições reais do campo. A visita acabou no “centro comunitário”, onde as crianças representaram Brundibár e os adultos cantaram o Requiem de Verdi. Os representantes da Cruz Vermelha foram completamente enganados. Um deles, Maurice Rosne, um suíço, disse que o gueto era “uma cidade igual às outras” e que os prisioneiros eram bem tratados. Rossel escreveu um relatório a elogiar o “gueto-modelo” e os nazis que o administravam.

Depois do sucesso do seu embuste, os nazis decidiram fazer um filme de propaganda sobre Terezin. Chamaram-lhe Theresienstadt: uma cidade judaica. Mas os judeus deram-lhe um nome sarcástico: O Führer dá uma cidade aos judeus. Usando os cenários que tinham montado para a visita da Cruz Vermelha, os nazis tentaram “provar”, num filme de propaganda entusiástica, que tratavam bem os

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prisioneiros. Escolheram como figurantes os adultos e crianças com aspeto mais saudável e ordenaram aos doentes que se mantivessem bem longe das câmaras.

As filmagens tiveram lugar em agosto, sob a supervisão dos guardas das SS. Friedl recusou-se a participar no filme. Tanto ela como muitos outros presos opuseram-se ao esquema nazi e não participaram como figurantes. As cenas enganosas incluíam raparigas sorridentes a praticarem desporto ao ar livre, idosos a jogarem xadrez e a conversarem num jardim, crianças a andarem num cavalo de baloiço e jovens a comerem grossas fatias de pão com manteiga ─ tudo coisas que só aconteceram no dia das filmagens. A grande apoteose foi a representação de Brundibár num auditório a sério, com um público composto por crianças bem vestidas e bem sentadas.

A revelação das verdadeiras condições de vida em Terezin era um crime punível com a morte. As alunas de Friedl e outras crianças escondiam os seus desenhos, que mostravam as condições reais do quotidiano. Friedl armazenou esses desenhos no sótão.

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Havia outros artistas profissionais presos em Terezin, que trabalhavam no departamento gráfico, onde preparavam mapas, gráficos e cartazes. No seu precioso tempo livre, compunham quadros que denunciavam corajosamente a verdade sobre o campo. Esconderam os desenhos por detrás das paredes e nos painéis ocos das portas. Enterraram-nos numa caixa de alumínio num quintal. Um deles, František Strass, que outrora fora dono de uma cadeia de armazéns e era um amante da arte, comprou os desenhos em troca de pão e açúcar, e conseguiu passá-los a um negociante de arte de Praga, que os enviou para a Suíça. As SS descobriram. Os artistas foram presos e levados para o quartel-general das SS para serem interrogados.

Os artistas e as suas famílias, bem como Strass e a mulher, foram levados à força para a Pequena Fortaleza. Foram torturados e dois deles morreram. Três foram deportados para Auschwitz.

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O Doce Engano da Comissão e O Tio Sturmführer, aguarela de Alfred Kantor (7 de novembro de 1923), pintada em 1945. Alfred Kantor, um jovem artista de dezoito anos, preso inicialmente em Terezin e depois em Auschwitz, fez um livro com desenhos e legendas sobre as suas experiências de vida.

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8 – Contando ao mundo

Friedl foi deportada para Auschwitz mesmo antes de mim, e nunca mais voltou.Helga Polláková-Kinsky, Diário de Terezin (documentário)

No outono de 1944, a guerra estava a correr mal para os nazis. Aumentaram, então, de uma forma considerável, o número de deportações. A 28 de setembro, o marido de Friedl, Pavel, foi deportado para Auschwitz, juntamente com outros homens. Sobreviveu. Oito dias depois, a 6 de outubro, Friedl foi enviada para Auschwitz-Birkenau, com trinta das suas alunas. Todas morreram.

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Desenho a lápis de uma deportação feito por artista anónimo e publicado na revista Kamarád. Neste desenho, os guardas do gueto metem os presos em vagões de carga.

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A guerra terminou em maio de 1945, quando os alemães se renderam aos Aliados. Os soldados russos libertaram os presos que ainda estavam em Terezin. Raja Englanderová-Žákníková, uma adolescente que tinha estudado com Friedl, encontrou quinhentos desenhos das crianças em duas malas do sótão do L410. Deu as malas a Willi Groag, tutor-chefe do L410, que tinha de procurar casas na Checoslováquia e na Inglaterra, onde as crianças, na maioria órfãs, pudessem recuperar. Em agosto, levou as malas para Praga. Ficaram numa prateleira durante dez anos, altura em que o seu conteúdo foi descoberto e exposto. Hoje, os desenhos, colagens e pinturas são mostrados um pouco por todo o mundo. Estão em Israel, onde foram cuidadosamente catalogados e preservados.

Em maio de 1947, o governo checo erigiu um memorial a Terezin no local da Pequena Fortaleza, a prisão de Terezin. Os sobreviventes organizaram a Associação de Terezin e fundaram o Museu do Gueto no L417, o antigo lar dos rapazes.

Pessoas de todo o mundo vêm visitar Terezin. O campo é um memorial à coragem e força daqueles que não sobreviveram e daqueles que sobreviveram. No

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museu está em exposição uma coleção de desenhos das alunas de Friedl e um ou dois trabalhos desta.

O último desenho que Friedl fez foi uma aguarela muito delicada da face de uma jovem. Pintou-a para Will, numa aula de adultos, para mostrar como se desenhavam olhos. Os olhos azuis da rapariga estão bem abertos. Parece olhar em frente, para além de Terezin, em direção ao futuro. Um futuro que Friedl acreditava que as crianças poderiam ter.

Friedl viu o poder da arte como sustentáculo da esperança. Amoravelmente, ajudou as suas alunas a transcenderem as suas vidas horríveis e a encontrarem o prazer e a dignidade através da arte. O trabalho delas é um testemunho eterno da sua influência. Quem conheceu Friedl Dicker-Brandeis nunca a esqueceu.

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Susan Goldman RubinFireflies in the Dark

New York, Holiday House, 2000Tradução e adaptação

Um dia ultrapassaremos esta hora,Um dia haverá aconchego para nós,

A esperança de novo florirá,E a paz e o cuidado nos susterão.

O vaso das lágrimas quebraráE à morte diremos:

“Silencia-te!”

Ivo Leo Katz (11 de abril de 1932 – julho de 1944)

Das 15 000 crianças que passaram por Terezin, só 100 sobreviveram. Mas os seus escritos e obras de arte permanecem como um testemunho das suas vidas e almas.