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Princ Princí ípios de pios de Quimioterapia Quimioterapia V V

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Princípios de Farmacologia Antimicrobiana e Antineoplásica

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Heidi Harbison, Harris S. Rose, Donald M. Coen e David E. Golan

Introdução Caso Mecanismos de Atuação em Alvos Seletivos

Alvos Exclusivos de Fármacos Inibição Seletiva de Alvos Semelhantes Alvos Comuns

Patógenos, Biologia da Célula Cancerosa e Classes de FármacosBactérias Fungos e Parasitas Vírus Células Cancerosas

Carcinogênese e Proliferação Celular Quimioterapia Modelo de Matança Celular Logarítmica

Mecanismos de Resistência a Fármaco Causas Genéticas da Resistência a Fármaco

Redução da Concentração Intracelular de Fármacos Alteração do Alvo

Insensibilidade à Apoptose Causas Não-Genéticas de Falha do Tratamento

Métodos de Tratamento Quimioterapia de Combinação Quimioterapia Profilática

Inibidores do Metabolismo do Folato: Exemplos de Alvos Seletivos e Interações Sinérgicas de Fármacos Metabolismo do Folato Inibidores do Metabolismo do Folato

Alvos Exclusivos de Fármacos: Antimicrobianos Inibidores da Diidropteroato Sintase

Inibição Seletiva de Alvos Semelhantes: Antimicrobianos Inibidores da Diidrofolato Redutase

Alvos Comuns: Antineoplásicos Inibidores da Diidrofolato Redutase

Sinergismo dos Inibidores da DHFR e Sulfonamidas Conclusão e Perspectivas Futuras Leituras Sugeridas

INTRODUÇÃO

Embora as doenças infecciosas e os cânceres tenham etiologias subjacentes diferentes, os princípios gerais de tratamento são, entretanto, semelhantes dentro de uma perspectiva farmacológi-ca. Ambos os grupos de doenças estão entre as afecções mais fatais que afligem os seres humanos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estimou que, no ano de 2002, as doenças infecciosas responderam por 10,9 milhões do número total de 57 milhões de mortes no mundo inteiro, enquanto as neoplasias malignas foram responsáveis por 7,1 milhões de mortes. Entre as doenças infecciosas, as causas mais comuns de mortalidade mundial incluíram as infecções das vias respiratórias inferiores (3,9 milhões), o HIV/AIDS (2,8 milhões), as doenças diarréi-cas (1,8 milhão), a tuberculose (1,6 milhão) e a malária (1,3 milhão). Nos países desenvolvidos, embora a mortalidade rela-cionada com doenças infecciosas esteja aumentando, o câncer (juntamente com a cardiopatia e o acidente vascular cerebral) constitui uma causa mais significativa de morte. Nos Estados Unidos, os cânceres mais fatais incluem, no momento atual, o câncer de pulmão (162.000 mortes em 2006, segundo estima-tivas), o câncer de cólon (55.000), o câncer de mama (41.000),

o câncer de pâncreas (32.000) e o câncer de próstata (27.000). Ambos os padrões de doenças infecciosas e neoplásicas pro-vavelmente deverão mudar à medida que forem desenvolvidos tratamentos cada vez mais efetivos. O fio condutor comum nessas estratégias farmacológicas é o estabelecimento de dife-renças seletivas entre os micróbios ou as células cancerosas e as células normais do hospedeiro. Como tanto os micróbios quanto as células cancerosas têm a capacidade de desenvol-ver resistência à terapia farmacológica, o desenvolvimento de novos tratamentos também constitui um processo em contínua evolução.

Embora os agentes antimicrobianos e antineoplásicos cons-tituam o foco deste capítulo, existem muitas outras estratégias importantes e efetivas para combater os micróbios e o câncer. Entre essas estratégias, destacam-se medidas de saúde pública, vacinações e procedimentos de triagem. Os programas de saú-de pública e de vacinação têm, em sua maioria, o objetivo de evitar as infecções, mais do que tratar infecções já instaladas. Por exemplo, a varíola foi mundialmente erradicada em 1977 através de programas de vacinação agressivos, embora, recente-mente, tenha surgido uma preocupação quanto ao uso potencial desse vírus como agente de bioterrorismo. Existem campanhas semelhantes para a erradicação da poliomielite. A triagem para

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o câncer, através de mamografias regulares, colonoscopia e outros testes, é amplamente utilizada para detectar a presença de câncer em seu estágio inicial e mais acessível ao tratamento. A detecção precoce através do uso disseminado do teste citoló-gico de Papanicolaou (esfregaço de Papanicolaou) fez com que a taxa de mortalidade do câncer cervical diminuísse em mais de dois terços nos Estados Unidos. O câncer cervical deixou de ser a principal causa de morte por câncer em mulheres, passando a ocupar o décimo quinto lugar. Espera-se que a vacinação dis-seminada contra o papilomavírus humano, o agente etiológico mais comum do câncer cervical, irá reduzir ainda mais a taxa de mortalidade desse tipo de câncer. As estratégias efetivas contra doenças, incluindo a terapia farmacológica, também dependem de fatores socioeconômicos. Nos países afluentes, o uso disse-minado dos agentes antimicrobianos e a melhora das condições sanitárias e da nutrição reduziram acentuadamente a mortali-dade das doenças infecciosas. Entretanto, esse progresso não foi observado nos países em desenvolvimento, onde doenças infecciosas passíveis de tratamento, como a pneumonia, o HIV/AIDS, a doença diarréica, a tuberculose e a malária, continuam sendo as causas predominantes de mortalidade.

Apesar da importância das medidas de saúde pública, das vacinações e dos procedimentos de triagem, a terapia farmaco-lógica continua sendo um importante instrumento no tratamen-to das doenças microbianas e do câncer. O desenvolvimento inevitável de resistência às intervenções farmacológicas sugere que é necessário conhecer os princípios gerais e os mecanismos da farmacologia dos agentes antimicrobianos e antineoplásicos para prescrever efetivamente os fármacos disponíveis e conti-nuar a desenvolver novos fármacos.

nn Caso

O país é a Alemanha, e estamos no ano de 1935. Hildegard, filha do Dr. Gerhard Domagk, estava quase morrendo de infecção estreptocócica em conseqüência de uma picada com alfinete. Não estava respondendo a nenhum tratamento. Desesperado, o pai de Hildegard administra prontosil, um corante vermelho que estava experimentando em seu laboratório. Milagrosamente, a filha teve uma recuperação completa.

Essa história começou, na realidade, três anos antes, quando o Dr. Domagk observou que o prontosil protegia camundongos e coelhos contra doses letais de estafilococos e estreptococos. Fez essa descoberta através da triagem de milhares de corantes (que, na realidade, são simplesmente substâncias químicas que se ligam a proteínas) para atividade antibacteriana. Entretanto, quando sua filha adoeceu, Domagk ainda não tinha certeza se a eficácia anti-bacteriana do prontosil observada nos camundongos também seria observada contra as infecções em seres humanos. Manteve os testes pessoais do fármaco em segredo até o momento em que

dados de outros médicos indicaram o sucesso da droga na cura de outros pacientes com infecções. Em 1939, Gerhard Domagk recebeu o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina pela sua des-coberta do efeito terapêutico do prontosil.

QUESTÕESn 1. Qual é o mecanismo responsável pela ação antibacteriana

do prontosil?n 2. Por que o prontosil mata bactérias, mas não células huma-

nas?n 3. Qual a causa que levou ao declínio da utilidade de drogas

como o prontosil nos últimos 70 anos?n 4. Por que os fármacos pertencentes à mesma classe do pron-

tosil são atualmente utilizados em associação com outros agentes antibacterianos?

MECANISMOS DE ATUAÇÃO EM ALVOS SELETIVOS

O objetivo da terapia farmacológica antimicrobiana e antineo-plásica é a toxicidade seletiva, i.é, a inibição de vias ou de alvos que são críticos para a sobrevida e a replicação de pató-genos ou de células cancerosas em concentrações do fármaco abaixo daquelas necessárias para afetar as vias do hospedeiro. A seletividade pode ser obtida ao atacar: (1) alvos exclusivos do patógeno ou da célula cancerosa que não estão presentes no hospedeiro; (2) alvos presentes no patógeno ou na célula cancerosa que são semelhantes, mas não idênticos, aos do hos-pedeiro; e (3) alvos no patógeno ou na célula cancerosa que são compartilhados com o hospedeiro, mas que variam quanto à sua importância entre o patógeno e o hospedeiro, conferindo, assim, uma seletividade (Quadro 31.1). Essas diferenças sele-tivas em termos de alvos podem ser tão grandes quanto uma proteína exclusiva do patógeno ou tão sutis quanto a diferença no ciclo celular e nas taxas de crescimento entre algumas célu-las cancero sas e as células normais. Em princípio, os fármacos possuem menor toxicidade para o hospedeiro quando seus alvos consistem em diferenças exclusivas, enquanto exibem toxici-dade maior quando seus alvos consistem em vias comuns. Por esse motivo, muitos agentes antineoplásicos são mais tóxicos para o hospedeiro do que muitos agentes antimicrobianos.

A relação entre a dose tóxica e a dose terapêutica de um fármaco é denominada índice terapêutico ou janela terapêuti-ca (ver Cap. 2). Por conseguinte, o índice terapêutico fornece uma indicação do grau de seletividade do fármaco na produção dos efeitos desejados. Um fármaco altamente seletivo, como a penicilina, pode ser freqüentemente prescrito com segurança, devido à grande diferença entre suas concentrações terapêuticas e tóxicas. A margem de segurança de um fármaco menos seleti-

QUADRO 31.1 Mecanismos de Seleção de Alvos dos Agentes Quimioterápicos

TIPO DE ALVO MECANISMO EXEMPLO

Exclusivo O fármaco tem como alvo uma via genética ou bioquímica que é exclusiva do patógeno

Inibidor da síntese da parede celular bacteriana

Seletivo O fármaco tem como alvo uma isoforma de determinada proteína que é exclusiva do patógeno

Inibidor da diidrofolato redutase (DHFR)

Comum O fármaco tem como alvo uma necessidade metabólica específica do patógeno

5-Fluoruracila

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vo, como o agente antineoplásico metotrexato, é muito menor, em virtude de seu baixo índice terapêutico. Com a aquisição de mais conhecimentos acerca da biologia dos patógenos e das células cancerosas, é possível planejar fármacos dirigidos con-tra alvos mais seletivos. Por exemplo, o mesilato de imatinibe é um agente antineoplásico altamente específico, cujo alvo é o produto de um novo rearranjo gênico encontrado nas células da leucemia mielógena crônica, mas não nas células normais (ver Cap. 1). Entretanto, é importante reconhecer que muitos alvos potenciais conhecidos permanecem inexplorados, devido a efeitos adversos inesperados, propriedades farmacocinéticas desfavoráveis ou custo proibitivo associados a fármacos expe-rimentais que foram desenvolvidos contra esses alvos.

ALVOS EXCLUSIVOS DE FÁRMACOSOs alvos exclusivos de fármacos incluem vias metabólicas, enzi-mas, genes que sofreram mutação e produtos gênicos que estão presentes no patógeno ou na célula cancerosa, porém ausentes no hospedeiro. Um alvo comum dos agentes antibacterianos é a parede celular de peptidoglicano bacteriana (ver Cap. 33). Esta estrutura é bioquimicamente exclusiva e essencial para a sobrevida das bactérias em crescimento. A penicilina e outros antibióticos �-lactâmicos inibem as enzimas transpeptidases que catalisam a etapa final de ligação cruzada na síntese de peptidoglicanos. Na ausência desses peptidoglicanos, a síntese da parede celular bacteriana encontra-se comprometida, com conseqüente lise da célula. Em virtude de sua especificidade exclusiva para as transpeptidases bacterianas, as penicilinas exibem toxicidade mínima para o hospedeiro — com efeito, a hipersensibilidade alérgica, que constitui a principal reação adversa, não tem relação com o mecanismo de ação do fár-maco.

Os fungos carecem de paredes celulares e estão apenas enve-lopados por uma dupla camada lipídica semelhante àquela das células humanas, tornando a seletividade dos alvos mais pro-blemática. O ergosterol, um componente esterol presente na membrana dos fungos, mas não na membrana do hospedeiro, constitui um dos poucos alvos exclusivos dos fármacos anti-fúngicos (ver Cap. 34). Dispõe-se, no momento atual, de duas classes de fármacos cujo alvo é o ergosterol: uma dessas clas-ses (azólicos) bloqueia a biossíntese de ergosterol nas células fúngicas, enquanto a outra (polienos) quela o ergosterol nas membranas dos fungos. Ambos os tipos de fármacos alteram a permeabilidade da membrana e provocam a morte da célula fúngica. Alguns desses fármacos podem afetar o metabolismo do colesterol nas células humanas, bem como o do ergosterol nas células fúngicas; esses fármacos apresentam baixo índice terapêutico, e seu uso está associado a efeitos adversos signi-ficativos. Por exemplo, a anfotericina, um polieno utilizado no tratamento das infecções fúngicas sistêmicas, costuma causar febre, tremores e toxicidade renal. Por conseguinte, até mesmo com um alvo exclusivo, a seletividade pode representar um notável desafio.

INIBIÇÃO SELETIVA DE ALVOS SEMELHANTESMuitos organismos exibem vias metabólicas semelhantes àquelas dos seres humanos, mas, como resultado da divergên-cia evolutiva, possuem isoformas singulares de enzimas ou receptores. Os fármacos podem apresentar especificidades quantitativamente diferentes de ligação com base nessas dife-renças bioquímicas. Como esses alvos são diferentes, porém não exclusivos, as janelas terapêuticas resultantes são habitual-

mente menores do que aquelas observadas com alvos exclusi-vos. Exemplos dessa estratégia incluem os inibidores da enzima diidrofolato redutase (DHFR) e os inibidores da síntese de pro-teínas bacterianas. A DHFR é uma enzima crucial na síntese das subunidades de purinas e pirimidinas formadoras do DNA em muitos organismos (ver adiante). Todos os seres humanos, bactérias e protozoários utilizam a DHFR em sua síntese de DNA, porém as isoformas da DHFR são genética e estrutural-mente distintas, de modo que podem servir de alvo para dife-rentes fármacos. O agente antineoplásico metotrexato inibe poderosamente as isoformas da DHFR nas células humanas, bem como nas células de bactérias e protozoários, de modo que a baixa seletividade desse fármaco provoca uma elevada toxicidade nas células do hospedeiro. A base da seletividade do metotrexato no tratamento do câncer não reside numa dife-rença na isoforma da enzima entre as células cancerosas e as células normais, porém na capacidade do fármaco de induzir a apoptose nas células cancerosas, mas não na maioria das células normais. Em contrapartida, o trimetoprim inibe sele-tivamente a DHFR bacteriana, enquanto a pirimetamina inibe seletivamente a DHFR do parasita responsável pela malária. Por conseguinte, embora todas essas isoformas de DHFR se liguem ao mesmo substrato e catalisem a mesma reação, é pos-sível explorar diferenças bioquímicas existentes na estrutura da DHFR para produzir uma inibição seletiva. A determinação da seqüência de aminoácidos e da estrutura tridimensional das isoformas da DHFR de espécies diferentes pode proporcionar uma base molecular para o planejamento racional de inibidores mais potentes e mais seletivos no futuro (Boxe 31.1).

À semelhança da síntese de proteínas nos seres humanos, a síntese de proteínas nas bactérias é um processo em múlti-plas etapas, que envolve a ligação do mRNA ao ribossomo, a decodificação do mRNA, a síntese de ligações peptídicas, a translocação da cadeia polipeptídica e a liberação do polipep-

BOXE 31.1 O Futuro dos Inibidores da Diidrofolato Redutase

Apesar da eficiência dos inibidores da DHFR disponíveis, existe muito interesse no desenvolvimento de novos compostos. A resistência a fármaco representa um problema e, para muitas espécies, não se dispõe de nenhum inibidor seletivo. Progressos recentes permitiram aos pesquisadores estabelecer a seqüência de aminoácidos e a estrutura tridimensional das DHFR de vários organismos diferentes, incluindo complexos da enzima com pequenas moléculas de inibidores. Esses estudos proporcionaram uma base molecular para compreender tanto a catálise quanto a inibição enzimática (p. ex., a razão pela qual alguns inibidores, como o trimetoprim, inibem efetivamente as DHFR bacterianas, mas não as dos mamíferos). É importante assinalar que esses estudos também sugerem como se deve planejar um novo fármaco que tenha a capacidade de exercer uma inibição ainda mais potente ou seletiva. Por conseguinte, em lugar de utilizar métodos de “triagem aleatória” (que têm sido bem-sucedidos, porém ineficientes, no desenvolvimento de muitos inibidores enzimáticos atuais), poderá ser possível, em breve, aplicar essa poderosa tecnologia no planejamento eficiente de fármacos mais seletivos. O “planejamento racional de fármacos” encontra-se, no momento atual, em seu estágio inicial, porém essa tecnologia é muito promissora para o futuro.

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tídio do ribossomo. O mecanismo de síntese de proteínas das bactérias difere do mecanismo observado nos seres humanos, visto que são utilizados ribossomos de tamanhos diferentes e diferentes RNA ribossomais e proteínas. Várias classes de fár-macos, incluindo os macrolídios e os aminoglicosídios, inibem a síntese de proteínas bacterianas (ver Cap. 32). Os antibióticos macrolídios como a eritromicina ligam-se à subunidade ribos-somal 50S das bactérias e bloqueiam a etapa de translocação dos peptídios, impedindo o aparecimento da proteína a partir do ribossomo. Os antibióticos aminoglicosídios, como a estrep-tomicina e a gentamicina, ligam-se à subunidade ribossomal bacteriana 30S e comprometem a decodificação do mRNA.

Os inibidores da síntese de proteínas bacterianas incluem uma ampla variedade de fármacos individuais com diversos mecanismos, e tanto a seletividade quanto as toxicidades que limitam as doses desses fármacos são, com freqüência, especí-ficas da classe e/ou do fármaco. Por exemplo, os macrolídios raramente produzem efeitos adversos graves, enquanto alguns dos aminoglicosídios possuem ototoxicidade e nefrotoxicidade que limitam a sua dosagem. Alguns efeitos adversos parecem resultar da ligação do fármaco aos ribossomos mitocondriais humanos, além dos ribossomos bacterianos. Por conseguinte, a inibição seletiva de alvos semelhantes, exemplificada pelos inibidores da DHFR e pelos inibidores da síntese protéica, pode resultar em efeitos caracterizados por índices terapêuticos que variam desde valores baixos a altos, dependendo do fármaco em particular ou da classe de fármacos considerados.

ALVOS COMUNSQuando o hospedeiro e o patógeno ou o câncer compartilham vias bioquímicas e fisiológicas comuns, é possível encontrar uma base para a seletividade se o patógeno ou o câncer neces-sitar de uma atividade metabólica ou se for afetado pela sua inibição em maior grau do que o hospedeiro. Essas diferen-ças relativamente mínimas são exploradas, com freqüência, na farmacologia do câncer, explicando assim os índices terapêu-ticos estreitos de muitos desses fármacos. As células tumorais originam-se de células normais que foram transformadas por mutações genéticas em células com crescimento desregulado. Essas células utilizam os mesmos mecanismos das células nor-mais para o seu crescimento e a sua replicação. Por conseguinte, a inibição seletiva do crescimento das células cancerosas repre-senta um grande desafio.

As descobertas recentes na biologia do câncer identificaram diversas proteínas com mutação ou hiperexpressão, cujos ini-bidores passaram a ser utilizados clinicamente (ver Cap. 38). Entretanto, a base para a seletividade da maioria dos agentes antineoplásicos atualmente utilizados não provém de diferenças bioquímicas, mas de variações no comportamento de cresci-mento das células cancerosas e da suscetibilidade aumentada dessas células cancerosas à indução da apoptose. O câncer, como doença de proliferação persistente, necessita de divi-são celular contínua. Por conseguinte, os fármacos dirigidos contra processos envolvidos na síntese do DNA, na mitose e na progressão do ciclo celular podem matar rapidamente e de modo preferencial as células cancerosas que estão ciclando, em comparação com as células normais correspondentes. (Muitas estratégias quimioterápicas têm maior sucesso contra os cânce-res de crescimento rápido do que contra aqueles de crescimento lento.) Os antimetabólitos, como a 5-fluoruracila (5-FU), ini-bem a síntese de DNA nas células em divisão (ver Cap. 37). A 5-FU inibe a timidilato sintase, a enzima responsável pela conversão do dUMP em dTMP, uma subunidade de pirimidina

formadora do DNA. Como análoga das pirimidinas, a 5-FU também é incorporada nos filamentos de RNA e de DNA em crescimento, interrompendo, assim, a síntese desses filamentos. Ao provocar lesão do DNA, a 5-FU induz a célula a ativar a sua via apoptótica, resultando em morte celular programada. A 5-FU é tóxica para todas as células humanas que efetuam a sín-tese de DNA e, portanto, é seletivamente tóxica para as células tumorais de ciclo rápido (efeito terapêutico), bem como para os tecidos do hospedeiro com alta renovação, como a medula óssea e a mucosa gastrintestinal (GI) (efeito adverso).

Esses exemplos ilustram a importância do estudo da biologia celular, da biologia molecular e da bioquímica dos micróbios e das células cancerosas para identificar alvos específicos para inibição seletiva. Clinicamente, o reconhecimento dos mecanis-mos dos fármacos e a base de sua seletividade podem ajudar a explicar as janelas terapêuticas estreitas ou largas que possuem impacto sobre a posologia dos fármacos e as estratégias de tratamento. É também importante compreender a seletividade dos fármacos quanto a seus alvos no combate da resistência aos fármacos. Assim, os princípios farmacológicos fundamen-tais das interações fármaco-receptor, os efeitos terapêuticos e adversos e a resistência a fármacos formam a base da sele-tividade dos alvos na terapia farmacológica antimicrobiana e antineoplásica.

PATÓGENOS, BIOLOGIA DA CÉLULA CANCEROSA E CLASSES DE FÁRMACOS

As intervenções farmacológicas têm, como alvo, diferenças específicas entre o hospedeiro e o patógeno microbiano ou a célula cancerosa. Essa seção examina algumas das característi-cas singulares que o processo de evolução conferiu aos micror-ganismos e as principais classes de fármacos dirigidas contra essas diferenças-alvo moleculares entre células do hospedeiro, patógenos e células cancerosas.

BACTÉRIASAs bactérias são organismos procarióticos que freqüentemente contêm alvos exclusivos para intervenção farmacológica. Alguns desses alvos já foram discutidos e estão ilustrados na Fig. 31.1. Os fármacos atualmente disponíveis interrompem a replicação e o reparo do DNA bacteriano (este capítulo e o Cap. 32), a transcrição e a tradução (Cap. 32) e a síntese da parede celular (Cap. 33).

Dependendo do papel do alvo do fármaco na fisiologia bacteriana, os agentes antibacterianos podem produzir efeitos bacteriostáticos ou bactericidas. Os fármacos que inibem o cres-cimento do patógeno sem causar a sua morte são denominados bacteriostáticos. Esses fármacos são dirigidos contra alvos de vias metabólicas necessárias para o crescimento das bactérias, mas não para a sua sobrevida. Os inibidores da síntese pro-téica (os aminoglicosídios constituem uma exceção) exercem, em sua maioria, um efeito bacteriostático. A eficiência clínica desses fármacos baseia-se na integridade do sistema imune do hospedeiro para eliminar as bactérias que não crescem (mas que permanecem viáveis). Em contrapartida, os fármacos bac-tericidas matam as bactérias. Por exemplo, os inibidores da síntese da parede celular (p. ex., penicilinas e cefalosporinas) provocam lise bacteriana quando as bactérias crescem em meios hipertônicos ou hipotônicos ou são expostas a esses ambientes. Por conseguinte, as infecções bacterianas no hospedeiro imu-

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nocompetente podem ser freqüentemente tratadas com agentes bacteriostáticos, enquanto o tratamento das infecções bacteria-nas no hospedeiro imunocomprometido freqüentemente exige o uso de fármacos bactericidas.

É também importante considerar os efeitos bacteriostáticos e bactericidas quando se utilizam antibióticos em combinação (ver Cap. 39). A associação de um fármaco bacteriostático com um fármaco bactericida pode resultar em efeitos antagonistas. Por exemplo, o agente bacteriostático tetraciclina inibe a síntese de proteínas e, portanto, retarda o crescimento e a divisão das células. A ação desse fármaco antagoniza os efeitos de um inibi-dor da síntese da parede celular, como a penicilina, que necessi-ta do crescimento bacteriano para ser efetivo. Em contrapartida, a associação de dois fármacos bactericidas pode ser sinérgica; isto é, o efeito da associação é maior do que a soma dos efeitos de cada fármaco isoladamente (com as mesmas doses de ambos os fármacos). Por exemplo, a associação de penicilina–amino-glicosídio pode ter um efeito sinérgico, visto que a inibição da síntese da parede celular bacteriana pela penicilina permite uma maior entrada do aminoglicosídio na célula.

FUNGOS E PARASITASOs eucariotas, que incluem os fungos (leveduras e bolores) e os parasitas (protozoários e helmintos), bem como todos os organismos multicelulares, são mais complexos do que os procariotas. As células desses organismos contêm um núcleo

e organelas delimitadas por membrana, bem como uma mem-brana plasmática. As células eucarióticas se reproduzem por divisão mitótica e não por divisão binária. Devido às seme-lhanças entre as células humanas, fúngicas e dos parasitas, pode ser mais difícil combater as infecções causadas por fun-gos e parasitas do que as infecções bacterianas. Entretanto, o ônus das doenças causadas por esses organismos é enorme. As infecções parasitárias provocadas por protozoários e helmintos (vermes) acometem mais de 3 bilhões de pessoas no mundo inteiro, particularmente nos países menos desenvolvidos, onde a morbidade e a mortalidade podem ser devastadoras. Tanto nas partes desenvolvidas quanto naquelas menos desenvolvidas do mundo, observa-se um número crescente de pacientes que apresentam imunocomprometimento em decorrência da AIDS, da quimioterapia do câncer, do transplante de órgãos e da idade avançada. Esses pacientes mostram-se particularmente susce-tíveis às infecções fúngicas e parasitárias, que estão se tornando mais proeminentes, exigindo uma maior atenção no futuro.

Os agentes antifúngicos disponíveis no momento atual podem ser divididos em três classes principais. Conforme já assinalado, os polienos (p. ex., anfotericina, nistatina) e os azólicos (p. ex., miconazol, fluconazol) são dirigidos seletiva-mente para o alvo ergosterol na membrana celular dos fungos. As pirimidinas, como a 5-fluorocitosina, inibem a síntese de DNA. Outra classe de antifúngicos diversos, em sua maioria ácidos, são utilizados apenas topicamente, devido à sua toxi-cidade sistêmica inaceitável. A exemplo dos agentes antibac-

Parede celular de peptidoglicano

Plasmídio

PABA

Pteridina

DHFTHF

PirimidinasPurinas

Proteína

mRNA

DNA

Ribossomo

Inibidores da síntese da parede celular

MonobactâmicosCarbapenêmicosEtambutolPirazinamidaIsoniazida

Inibidores da transcrição e da tradução

CloranfenicolLincosamidasEstreptograminasOxazolidinonas

FosfomicinaCiclosserinaVancomicinaPenicilinasCefalosporinas

RifampicinaAminoglicosídiosEspectinomicinaTetraciclinasMacrolídios

Inibidores da síntese e da integridade do DNA

SulfonamidasTrimetoprimQuinolonas

50S

30S

Fig. 31.1 Locais de ação das classes de agentes antibacterianos. As classes de fármacos antibacterianos podem ser divididas em três grupos gerais. Os fármacos do primeiro grupo inibem enzimas específicas envolvidas na síntese e na integridade do DNA: as sulfonamidas e o trimetoprim inibem a formação ou o uso de compostos de folato que são necessários para a síntese de nucleotídios; as quinolonas inibem a topoisomerase tipo II das bactérias. Os fármacos que têm como alvo os processos de transcrição e de tradução inibem os processos bacterianos que medeiam a síntese de RNA e de proteínas: a rifampicina inibe a RNA polimerase DNA-dependente bacteriana; os aminoglicosídios, a espectinomicina e as tetraciclinas inibem a subunidade ribossomal 30S das bactérias; os macrolídios, o cloranfenicol, as lincosamidas, as estreptograminas e as oxazolidinonas inibem a subunidade ribossomal 50S das bactérias. Um terceiro grupo de fármacos inibe etapas específicas na síntese da parede celular das bactérias: a fosfomicina e a ciclosserina inibem as etapas iniciais na síntese de monômeros de peptidoglicano; a vancomicina liga-se a intermediários do peptidoglicano, inibindo a sua polimerização; as penicilinas, as cefalosporinas, os monobactâmicos e os carbapenêmicos inibem a ligação cruzada do peptidoglicano; o etambutol, a pirazinamida e a isoniazida inibem processos necessários para a síntese da parede celular e da membrana externa do Mycobacterium tuberculosis. Existem diversos fármacos antibacterianos clinicamente úteis que não se enquadram em nenhum desses três grupos; um exemplo recente é a daptomicina. O desenvolvimento de resistência representa um problema para todos os agentes antibacterianos. Muitas bactérias transportam plasmídios (pequenos segmentos circulares de DNA) com genes que conferem resistência a determinado agente bacteriano ou classe de agentes. PABA, ácido para-aminobenzóico; DHF, diidrofolato; THF, tetraidrofolato.

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terianos, os fármacos antifúngicos podem ser fungistáticos ou fungicidas, e essa distinção é, em geral, determinada de modo empírico. Assim, por exemplo, os azólicos interferem no meta-bolismo do ergosterol fúngico mediado pelo citocromo P450. Muitos azólicos (p. ex., itraconazol e fluconazol) são fungis-táticos. Os agentes azólicos mais recentes (p. ex., voriconazol e ravuconazol) podem ter atividade fungicida contra algumas espécies de fungo. Quando comparados com os fármacos fun-gistáticos, os agentes fungicidas são mais eficazes e de ação mais rápida, permitindo esquemas de dosagem mais favoráveis. Os agentes antifúngicos são discutidos de modo mais porme-norizado no Cap. 34.

Os parasitas exibem ciclos de vida e vias metabólicas que se caracterizam pela sua complexidade e diversidade, de modo que o tratamento das infecções parasitárias recorre a uma ampla variedade de fármacos antiparasitários (ver Cap. 35). A malária é um exemplo de infecção causada por um parasita complexo que, apesar de ser teoricamente suscetível a numerosas classes de fármacos, está se tornando resistente a muitas terapias atu-almente disponíveis. A malária é transmitida quando a fêmea do mosquito Anopheles deposita esporozoítos de Plasmodium na corrente sangüínea humana. Os parasitas abandonam a cir-culação e desenvolvem-se em esquizontes teciduais no fígado. Os esquizontes teciduais sofrem ruptura, liberando merozoítos que novamente passam para a circulação, infectando os eri-trócitos. A seguir, os parasitas amadurecem em trofozoítos e, por fim, em esquizontes maduros. Os esquizontes maduros são liberados na corrente sangüínea quando os eritrócitos sofrem ruptura, causando a febre cíclica típica associada à malária. Os agentes antimaláricos atuam em diferentes estágios do ciclo de vida do protozoário; podem-se utilizar várias classes de fármacos, dependendo do padrão local de resistência. As aminoquinolinas (como o fármaco de primeira linha anterior, a cloroquina) inibem a polimerização do heme no interior do eritrócito; acredita-se que o heme não-polimerizado seja tóxi-co para os plasmódios intra-eritrocitários. Com o aumento da resistência à cloroquina, os alcalóides da cinchona (quinina e quinidina) e os quinolina-metanóis (mefloquina) passaram a ser utilizados como agentes de primeira linha, a despeito de seus baixos índices terapêuticos. Os inibidores da diidrofolato redutase, os inibidores da síntese protéica e outras classes de fármacos também são utilizados no tratamento da malária. A malária é apenas um exemplo que ilustra as complexidades do ciclo de vida dos parasitas e do uso de fármacos no tratamento das infecções parasitárias.

VÍRUSOs vírus são microrganismos não-celulares que tipicamente consistem em um cerne de ácido nucléico de RNA ou de DNA circundado por um capsídio proteináceo. Alguns vírus também possuem um envelope lipídico derivado da célula do hospedeiro que contém proteínas virais. Os vírus carecem da capacidade de sintetizar proteínas e devem recorrer aos mecanismos da célula hospedeira. Como a replicação viral depende dos processos de síntese normais da célula hospedeira, existem menos classes de agentes antivirais do que classes de agentes antibacterianos, e os fármacos antivirais são, em geral, mais tóxicos para o hos-pedeiro do que os antibacterianos. Entretanto, os vírus também codificam, em sua maioria, proteínas singulares que não são normalmente produzidas pelas células humanas. Muitas destas proteínas estão envolvidas no ciclo de vida do vírus, mediando a sua fixação e entrada na célula do hospedeiro, o desnudamen-to do capsídio viral, a replicação do genoma viral, a montagem

e a maturação das partículas virais e a liberação da progênie de vírus da célula hospedeira. Esses processos específicos dos vírus são freqüentemente utilizados como alvos pelos fármacos antivirais. Um diagrama esquemático do ciclo de vida geral dos vírus é apresentado para ilustrar os estágios da replicação viral que podem ser utilizados como alvos pelos agentes antivirais (Fig. 31.2). Como esses alvos estão presentes apenas durante a replicação viral ativa, os vírus que exibem latência não são bem controlados pelos agentes antivirais.

Uma proteína viral singular é a protease do HIV. Essa enzima cliva proteínas precursoras virais para gerar as proteínas estru-turais e as enzimas necessárias ao processo de maturação do vírus. Na ausência da protease do HIV, são produzidos apenas vírions (partículas virais individuais) imaturos e não-infeccio-sos. Os inibidores da protease do HIV imitam estruturalmente os substratos naturais da protease, porém contêm uma ligação que não pode ser clivada. Esses fármacos são inibidores com-petitivos no sítio ativo da enzima (ver Cap. 36). Em associação com outras classes de agentes anti-HIV, os inibidores da protea-se revolucionaram o tratamento de pacientes com HIV/AIDS.

Várias classes de fármacos têm, como alvos, proteínas que são exclusivas do vírus da influenza. O zanamivir e o oseltamivir são dirigidos contra uma neuraminidase viral que desempenha papel essencial na liberação dos vírions das célu-las hospedeiras. A amantadina e a rimantadina atuam sobre a proteína de membrana M2 (um canal de prótons) do vírus da influenza, inibindo o desnudamento viral. Embora esses fármacos antiinfluenza sejam inibidores altamente efetivos da neuraminidase e do canal de prótons virais, respectivamente, não revolucionaram o tratamento da influenza com a mesma extensão dos fármacos anti-HIV no caso do HIV. Como as infecções pelo vírus da influenza são, em sua maioria, iden-tificadas clinicamente quando o sistema imune já começou a erradicar o vírus, esses fármacos só exercem efeito limitado sobre os sintomas gripais. Esse exemplo ilustra o fato de que mesmo os inibidores seletivos com altos índices terapêuticos não são necessariamente fármacos muito efetivos na clínica.

Na atualidade, os agentes antivirais mais importantes são os inibidores da polimerase. A maioria dos vírus utiliza uma polimerase viral, uma RNA ou uma DNA polimerase, para a replicação de seu material genético. Os inibidores da polime-rase mostram-se especialmente efetivos contra os herpesvírus humanos, o HIV e o vírus da hepatite B. Dois tipos de ini-bidores da polimerase são os análogos de nucleosídios e os inibidores não-nucleosídios da transcriptase reversa (NNTR). Os análogos de nucleosídios (como a zidovudina e o aciclo-vir) tornam-se fosforilados e, portanto, ativados por cinases virais ou celulares (enzimas fosforilantes) quando passam a inibir competitivamente a polimerase viral e, em alguns casos, tornam-se incorporados no filamento de DNA em crescimen-to. A seletividade depende das afinidades relativas do análogo de nucleosídio pelas cinases e polimerases virais e celulares. Os inibidores não-nucleosídios da transcriptase reversa (como o efavirenz) inibem a transcriptase reversa viral, impedindo a replicação do DNA. As mutações nos genes da polimerase viral constituem um importante mecanismo de resistência aos inibidores da polimerase.

O Cap. 36 fornece uma discussão detalhada da farmacologia dos agentes antivirais.

CÉLULAS CANCEROSASO câncer é uma doença de proliferação celular em que células normais são transformadas por mutação genética em células

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com crescimento descontrolado. As células neoplásicas com-petem com as células normais pela obtenção de energia e nutrição, resultando em deterioração da função orgânica nor-mal. Os cânceres também comprimem os órgãos vitais através de seus efeitos expansivos. A carcinogênese, a quimioterapia e o modelo de matança celular logarítmica de regressão tumoral são discutidos adiante, fornecendo uma visão geral da farma-cologia do câncer. Os Caps. 37 e 38 devem ser estudados com esses princípios em mente, e o Cap. 39 fornece exemplos inte-grados das aplicações clínicas da quimioterapia antineoplásica de combinação.

Carcinogênese e Proliferação CelularA carcinogênese ocorre em três etapas principais — transfor-mação, proliferação e metástase. A transformação refere-se a uma mudança no fenótipo de uma célula com controle normal de seu crescimento em uma célula com crescimento descon-trolado. A lesão genética não-letal (mutação) pode ser herdada na li nhagem germinativa, pode surgir de modo espontâneo ou

pode ser causada por agentes ambientais, como substâncias químicas, radiação ou vírus. Se não houver reparo da lesão do DNA, os genes que sofreram mutação (p. ex., genes envolvi-dos na regulação do crescimento e no reparo do DNA) podem expressar produtos gênicos alterados que propiciam crescimen-to e proliferação anormais das células. As mutações podem ativar genes que promovem o crescimento, inativar genes que inibem o crescimento, alterar genes envolvidos na regulação da apoptose, conferir imortalização e inativar genes de reparo do DNA. A expressão de produtos gênicos alterados e/ou a perda de proteínas reguladoras podem causar instabilidade genética e crescimento descontrolado. Os cânceres são, em sua maioria, inicialmente clonais (i. é, geneticamente idênticos a uma única célula precursora), porém desenvolvem uma heterogeneidade à medida que novas mutações aumentam a variação genética entre as células-filhas. Quando ocorre seleção de uma progênie de células com maior capacidade de sobrevida, verifica-se um conseqüente aumento na proliferação celular, e o tumor progride para uma heterogeneidade cada vez maior. Por conseguinte, a carcinogênese, isto é, a progressão de uma célula normal

Fixação e entrada

Vírus

Receptor

Célula hospedeira

Desnudamento

Replicação do genoma

Síntese de RNA

Síntese de proteína

Saída e liberação

Montagem e maturação

Bloqueadores dos canais de íonsAmantadinaRimantadina

Inibidores da fusãoEnfuvirtida (T-20)

Inibidores da polimeraseAciclovir

ZidovudinaEfavirenz

Inibidores da proteaseSaquinavir

Ritonavir

Inibidores da neuraminidaseZanamivir

Oseltamivir

Ribossomo do hospedeiro

Fig. 31.2 Estágios do ciclo de vida dos vírus sobre os quais atuam as classes de fármacos antivirais. O ciclo de vida dos vírus começa com a fixação do vírus a um receptor da célula hospedeira, com sua entrada na célula. A seguir, o vírus sofre desnudamento, algumas vezes num compartimento endossômico. O ácido nucléico viral desnudado sofre replicação de seu genoma; os genes virais são transcritos (síntese de RNA); e o RNA codificado pelo vírus é traduzido em proteínas nos ribossomos da célula hospedeira. O genoma viral replicado e as proteínas virais são organizados em um vírion (partícula viral) que, em seguida, é liberado da célula hospedeira. O processo de montagem e/ou liberação dos vírions é acompanhado de maturação do vírus em um agente infeccioso capaz de repetir esse ciclo de vida em uma nova célula hospedeira. O agente anti-HIV enfuvirtida (T-20) bloqueia a entrada do HIV nas células hospedeiras. Os bloqueadores dos canais de íons, amantadina e rimantadina, inibem o desnudamento do vírus da influenza. Os inibidores da polimerase constituem uma grande classe de agentes antivirais que incluem o aciclovir, a zidovudina e o efavirenz; esses fármacos inibem a replicação do genoma viral ao interferir na DNA polimerase viral (aciclovir) e na transcriptase reversa (zidovudina e efavirenz). Os inibidores da protease, como os agentes anti-HIV saquinavir e ritonavir, inibem a maturação viral. Os inibidores da neuraminidase bloqueiam a liberação das partículas virais de influenza da célula hospedeira.

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para um tumor maligno, é um processo em múltiplas etapas, que exige o acúmulo de múltiplas alterações genéticas. Com a aquisição de maiores conhecimentos sobre a base molecular da carcinogênese, essas diferenças genéticas poderão ser utilizadas como alvos de terapia farmacológica seletiva.

O crescimento das células transformadas em um tumor requer a ocorrência de proliferação, isto é, aumento no número de células. As células humanas em divisão progridem através de um ciclo celular (ou ciclo mitótico) que consiste em fases distintas. Os dois eventos-chave no ciclo celular consistem na síntese de DNA durante a fase S e na divisão da célula-mãe em duas células-filhas durante a mitose ou fase M. A fase entre a divisão celular e a síntese de DNA é denominada lacuna 1 (G1), enquanto a fase entre a síntese de DNA e a mitose é denominada G2. Certas proteínas, denominadas ciclinas e cinases depen-dentes de ciclinas (CDK) governam a progressão pelas fases do ciclo celular; a ocorrência de mutações nos genes das ciclinas e/ou CDK pode resultar em transformação neoplásica.

Uma célula cancerosa em proliferação tem três destinos pos-síveis: a célula-filha pode tornar-se quiescente, entrando numa fase de repouso denominada G0; a célula pode entrar na fase G1 e proliferar; ou a célula pode morrer. A relação entre o número de células que estão em fase de proliferação e o número total de células no tumor é denominada fração de crescimen-to. A fração média de crescimento de um tumor é de cerca de 20%, visto que apenas uma em cada cinco células participa do ciclo celular em determinado momento. Os alvos da maio-ria dos agentes antineoplásicos são as células em divisão. Por conseguinte, as células tumorais que se encontram no estado quiescente (G0), como as células com ausência de nutrientes no centro de um grande tumor, não são facilmente destruídas pela quimioterapia. Os cânceres pequenos ou de rápido crescimento (i. é, cânceres com elevada fração de crescimento, como as leucemias) freqüentemente respondem de modo mais favorável à quimioterapia do que os grandes tumores volumosos. Infeliz-mente, as células dos tecidos normais que se caracterizam por uma elevada fração de crescimento, como a medula óssea e a mucosa gastrintestinal, também são destruídas pelos agentes antineoplásicos, resultando em toxicidades que limitam a dose prescrita.

As células tumorais não proliferam de modo isolado. As células cancerosas transformadas secretam uma variedade de mediadores químicos, que induzem um ambiente local espe-cializado. Esses mediadores químicos incluem fatores de cres-cimento como o fator de crescimento da epiderme (EGF) e foram desenvolvidos inibidores da sinalização de fatores de crescimento para uso clínico como agentes quimioterápicos para o câncer. Alguns tumores criam um estroma protetor de tecido conjuntivo fibroso; por exemplo, essa propriedade tor-na os nódulos do câncer de mama palpáveis. A maioria dos tumores sólidos também necessita da indução do crescimen-to de vasos sangüíneos (angiogênese) para o suprimento de nutrientes no centro do tumor; por esse motivo, os inibidores da angiogênese representam uma nova classe valiosa de agentes antineoplásicos.

As células cancerosas podem adquirir a capacidade de inva-dir os tecidos e metastatizar em todo o corpo. Para metastati-zar, as células tumorais devem sofrer mutações que propiciam a sua invasão nos tecidos e vasos, implantação em cavidades, dis-seminação pelos vasos linfáticos ou sangüíneos e crescimento em novo ambiente. Em geral, os tumores primários agressivos e de rápido crescimento têm mais tendência a metastatizar do que os tumores mais indolentes e de crescimento lento. No pro-cesso de adquirir mutações, as células tumorais também podem

desenvolver padrões diferenciais de expressão de receptores e sensibilidade a fármacos. Com freqüência, embora o tumor primário possa responder de modo satisfatório à quimioterapia, as células metastáticas mais diferenciadas respondem de modo precário. Por conseguinte, a disseminação metastática freqüen-temente representa um sinal de prognóstico sombrio.

QuimioterapiaNo momento em que um tumor sólido típico torna-se clinica-mente evidente, ele já contém pelo menos 109 células, adquiriu heterogeneidade e desenvolveu um estroma circundante. O tumor pode ou não ter metastatizado de seu local de origem (“local primário”) para um ou mais locais secundários. Esses fatores podem dificultar o tratamento farmacológico do câncer. Na atualidade, os agentes quimioterápicos interferem, em sua maioria, na proliferação celular e baseiam-se no ciclo celular rápido e/ou na promoção da apoptose para a sua seletividade relativa contra as células cancerosas (Fig. 31.3). Conforme assinalado anteriormente, os tumores são mais sensíveis à qui-mioterapia quando apresentam crescimento rápido, basicamente pelo fato de estarem progredindo através do ciclo celular. Por conseguinte, essas células metabolicamente ativas são susce-tíveis aos fármacos que interferem no crescimento e na divisão das células (hipótese da mitotoxicidade). Numerosos agen-tes antineoplásicos interferem no ciclo celular em determinada fase; esses fármacos são denominados ciclo-específicos. Ou tros agentes antineoplásicos atuam independentemente do ciclo celular e são denominados não-ciclo-específicos (Fig. 31.4). Os inibidores da síntese de DNA, como os antimetabólitos e os antagonistas da via do folato, são específicos da fase S. Os venenos dos microtúbulos, como os taxanos e os alcalóides da vinca, interferem na formação do fuso mitótico durante a fase M. Os agentes alquilantes que provocam lesão do DNA e de outras macromoléculas celulares atuam durante todas as fases do ciclo celular. Essas várias classes de fármacos podem ser administradas em combinação, utilizando fármacos ciclo-espe-cíficos dirigidos contra células mitoticamente ativas, e agentes não-ciclo-específicos para matar as células tumorais tanto no ciclo quanto fora do ciclo (ver Cap. 39).

Todavia, a hipótese da toxicidade da terapia antineoplá-sica não resolve alguns aspectos enigmáticos. Apesar de a quimioterapia para o câncer ser freqüentemente tóxica para a medula óssea, a mucosa gastrintestinal e os folículos pilosos, esses tecidos habitualmente se recuperam enquanto os cânceres (no tratamento bem-sucedido), com cinéticas de crescimento semelhantes, são erradicados. Na atualidade, já está bem esta-belecido que quase todos os agentes quimioterápicos também provocam apoptose das células cancerosas. A lesão do DNA é normalmente percebida por moléculas, como p53, que inter-rompem o ciclo celular para que haja tempo necessário para o reparo da lesão. Caso a lesão não seja reparada, uma cascata de eventos bioquímicos é deflagrada, resultando em apoptose (morte celular programada). Por conseguinte, uma célula can-cerosa com capacidade deficiente de reparo de seu DNA pode sofrer apoptose, enquanto uma célula normal tem a capaci-dade de reparar o seu DNA e de recuperar-se. Os cânceres que expressam a p53 de tipo selvagem, como a maioria das leu-cemias, linfomas e cânceres testiculares, são, com freqüência, altamente responsivos à quimioterapia. Em contrapartida, os cânceres que adquirem uma mutação em p53, incluindo mui-tos cânceres pancreáticos, de pulmão e de cólon, exibem com freqüência uma resposta mínima ou são até mesmo resistentes aos fármacos que provocam lesão do DNA.

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Modelo de Matança Celular LogarítmicaO modelo de matança celular logarítmica baseia-se em taxas experimentalmente observadas de crescimento e de regressão de tumores em resposta à quimioterapia. Tipicamente, o cresci-mento dos tumores é exponencial, e o tempo de duplicação (i. é, o tempo necessário para haver duplicação do número total de células cancerosas) depende do tipo de câncer. Por exem-plo, o câncer testicular freqüentemente apresenta um tempo de duplicação de menos de um mês, enquanto o câncer de cólon tende a duplicar a cada três meses. Nos tumores sólidos, o câncer pode crescer de modo exponencial até alcançar um tamanho passível de ser observado clinicamente. (Um tumor de 1 cm recém-detectado contém, tipicamente, cerca de 109 células.) De acordo com o modelo de matança celular logarít-mica, a matança celular causada pela quimioterapia do câncer é de primeira ordem; isto é, cada dose de quimioterapia mata uma fração constante de células. Se o tumor começar com 1012 células e houver matança de 99,99%, permanecerão 108 células malignas. A próxima dose de quimioterapia irá matar 99,99% das células remanescentes, e assim por diante. Ao contrário dos agentes antibacterianos, que freqüentemente podem ser utiliza-dos numa dose constante alta até a erradicação das bactérias, a maioria dos agentes antineoplásicos deve ser administrada de modo intermitente para reduzir os efeitos colaterais tóxicos. A administração intermitente permite uma recuperação parcial das células normais, mas também dá tempo para haver um

novo crescimento de células cancerosas e o desenvolvimento de resistência a fármacos. Conforme ilustrado na Fig. 31.5, são administrados “ciclos” intermitentes de quimioterapia até que todas as células cancerosas sejam destruídas ou até que o tumor desenvolva resistência. As células resistentes a fármacos continuam crescendo de modo exponencial, a despeito do trata-mento, levando finalmente à morte do hospedeiro. Qualquer melhora nas taxas de erradicação de populações de células malignas provavelmente requer o uso de doses mais altas de agentes quimioterápicos (que são limitadas pela ocorrência de toxicidade e resistência) ou a instituição da terapia no momento em que o tumor contém um menor número de células (impli-cando a sua detecção mais precoce). As terapias adjuvantes, como a cirurgia e a radioterapia, constituem outras modalidades importantes utilizadas para reduzir o número de células tumo-rais antes do início da quimioterapia. A cirurgia e a radioterapia também podem recrutar um maior número de células tumorais no ciclo celular e, assim, aumentar a suscetibilidade dessas células a agentes ciclo-específicos.

MECANISMOS DE RESISTÊNCIA A FÁRMACO

Uma vez apresentada essa introdução geral da farmacologia dos alvos de fármacos em bactérias, fungos, parasitas, vírus e câncer, serão discutidos os mecanismos de resistência a fár-

Microtúbulos

Agentes alquilantesAntibióticos antitumorais

Complexos de platina

Alcalóides da vincaTaxanos

N

NN

N

N

N

R R

DNA

mRNA

Inibidores da síntese e da integridade do DNAAntimetabólitos e inibidores

da via do folatoInibidores da topoisomerase

Agentes que causam lesão do DNA

Inibidores da função dos microtúbulos

Nucleotídios de purina

Precursores de purinas

Folato

Precursores de pirimidinas

Nucleotídios de pirimidina

Fig. 31.3 Classes de agentes antineoplásicos. Muitas células cancerosas dividem-se com mais freqüência do que as células normais, e as células cancerosas freqüentemente podem ser destruídas de modo preferencial, utilizando três processos críticos do crescimento e da divisão celulares como alvos. Os agentes que provocam lesão do DNA alteram sua estrutura e, conseqüentemente, promovem a apoptose da célula. Esses fármacos incluem os agentes alquilantes (que acoplam grupos alquila de modo covalente a sítios nucleofílicos no DNA), antibióticos antitumorais (que provocam lesão do DNA com radicais livres) e complexos de platina (que estabelecem ligações cruzadas no DNA). Os inibidores da síntese e integridade do DNA bloqueiam etapas intermediárias na síntese de DNA; esses agentes incluem antimetabólicos e inibidores da via do folato (que inibem o metabolismo das purinas e das pirimidinas) e inibidores da topoisomerase (que induzem lesão do DNA durante o enrolamento e desenrolamento). Os inibidores da função dos microtúbulos interferem no fuso mitótico, que é necessário para divisão da célula. Esse grupo de fármacos inclui os alcalóides da vinca, que inibem a polimerização dos microtúbulos, e os taxanos, que estabilizam os microtúbulos polimerizados. A figura não mostra outras classes de agentes antineoplásicos — como hormônios, anticorpos monoclonais específicos contra tumores, antagonistas dos receptores de fatores de crescimento, inibidores da transdução de sinais, inibidores dos proteassomos e inibidores da angiogênese.

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538 | Capítulo Trinta e Um

maco, que constituem um importante problema em toda farma-cologia antimicrobiana e antineoplásica. Embora a resistência às terapias farmacológicas atuais esteja surgindo de modo relativamente rápido, a taxa de introdução de novos fármacos (particularmente agentes antimicrobianos) é relativamente len-ta. Doenças anteriormente curáveis, como a gonorréia e a febre tifóide, estão se tornando mais difíceis de tratar, e antigas doen-ças fatais, como a tuberculose e a malária, estão se tornando cada vez mais resistentes no mundo inteiro. A OMS estima que, na China, 99% dos microrganismos isolados responsáveis pela gonorréia são resistentes a múltiplos fármacos. Nos Estados Unidos, 60% das infecções hospitalares por bactérias Gram-positivas são causadas por micróbios resistentes a fármacos. A tuberculose, a quarta causa principal de morte por doenças infecciosas no mundo inteiro, apresenta, no momento atual, uma taxa global de 2% de resistência a múltiplos fármacos (MDR, multidrug resistance), embora a taxa alcance 10 a 30% em alguns países da Ásia Central, como Uzbequistão e Tur-comenistão. Nos Estados Unidos, o recente aparecimento de tuberculose MDR é objeto de preocupação especial, devido à disseminação desse microrganismo pelo ar. A despeito dessas tendências assustadoras, foram desenvolvidas apenas três novas

classes de antibióticos nessas últimas três décadas: as oxa-zolidinonas, as estreptograminas e a daptomicina. Os numero-sos exemplos de microrganismos com resistência rapidamente emergente a fármaco sugerem que esse problema precisa ser solucionado imediatamente.

Como os patógenos e as células cancerosas são capazes de evoluir rapidamente em resposta a pressões adaptativas, a resistência a fármaco pode finalmente aparecer com o uso de qualquer agente antimicrobiano ou antineoplásico. Numa população de micróbios ou de células transformadas, as células que contêm mutações aleatórias que promovem competência irão sobreviver. Assim, o número elevado de células, a rápida taxa de crescimento e a taxa elevada de mutações promovem o desenvolvimento de uma população heterogênea de células que podem adquirir resistência através de escape mutacional. Como o uso de um fármaco seleciona inerentemente os microrganis-mos capazes de sobreviver na presença de altas concentrações desse fármaco, a resistência é uma conseqüência inerente da terapia farmacológica. Em muitos casos, o aparecimento de resistência a fármaco anula o tratamento efetivo.

CAUSAS GENÉTICAS DA RESISTÊNCIA A FÁRMACOA recente explosão da resistência a fármaco possui causas tanto genéticas quanto não-genéticas. Os mecanismos gené-

M

Inibidores da função dos microtúbulos

Antibióticos antitumorais

Inibidores da topoisomerase

Glicocorticóides

Antimetabólitos e inibidores da via do folato

Agentes alquilantesComplexos de platina(não-ciclo-específicos)

G1

S

G2

A

B C

D

Tempo

1012

1010

108

106

104

102

Câncer detectável Morte

Cura

Tratamento local

CirurgiaRadioterapia

Paliação

Resistência ou toxicidade

Cura

Câncer não-detectável

Núm

ero

de c

élul

as c

ance

rosa

s

Fig. 31.4 Especificidade de classes de agentes antineoplásicos quanto ao ciclo celular. O ciclo celular é dividido em quatro fases. A divisão celular em duas células-filhas idênticas ocorre durante a mitose (fase M). A seguir, as células passam para o período de intervalo 1 (G1), que se caracteriza por metabolismo ativo na ausência de síntese de DNA. As células replicam o seu DNA durante a fase de síntese (S). Após completar a fase S, a célula prepara-se para a mitose durante a fase de intervalo 2 (G2). Os agentes antineoplásicos exibem especificidade para diferentes fases do ciclo celular, dependendo do seu mecanismo de ação. Os inibidores da função dos microtúbulos afetam as células na fase M; os glicocorticóides inibem as células em G1; os antimetabólitos e os inibidores da via do folato inibem as células na fase S; os antibióticos antitumorais exercem esse efeito em G2; e os inibidores da topoisomerase, na fase S e em G2. Os agentes alquilantes e os complexos de platina afetam a função celular em todas as fases e, portanto, são não-ciclo-específicos. A especificidade diferencial das várias classes de fármacos quanto ao ciclo celular permite o seu uso em associação para atingir diferentes populações de células. Por exemplo, os fármacos ciclo-específicos podem ser administrados para atuar ativamente nas células neoplásicas em replicação, enquanto os agentes não-ciclo-específicos podem ser utilizados para atuar sobre células neoplásicas quiescentes (que não estão se replicando).

Fig. 31.5 Modelo de matança celular logarítmica do crescimento e regressão tumorais. De acordo com o modelo de matança celular logarítmica, os efeitos da quimioterapia antineoplásica podem ser considerados como um processo de primeira ordem. Isto é, uma determinada dose de fármaco mata uma fração constante de células tumorais, e o número de células destruídas irá depender do número total de células remanescentes. As quatro curvas (A−D) representam quatro possíveis desfechos da terapia antineoplásica. A curva A é a curva de crescimento do câncer não tratado. O câncer continua crescendo com o decorrer do tempo, levando finalmente à morte do paciente. A curva B representa o tratamento local curativo (cirurgia e/ou radioterapia) antes da disseminação metastática da neoplasia maligna. A curva C representa o tratamento local do tumor primário, seguido imediatamente de quimioterapia sistêmica administrada em ciclos (setas para baixo) para erradicar as células cancerosas metastáticas remanescentes. Observe que cada ciclo de quimioterapia reduz o número de células cancerosas por uma fração constante (aqui, em cerca de dois “logs”, ou aproximadamente 99%) e que ocorre algum crescimento do câncer na medida em que os tecidos normais têm tempo para se recuperar entre os ciclos de quimioterapia. A curva D representa o tratamento local seguido de quimioterapia sistêmica, que falha quando o tumor torna-se resistente aos fármacos utilizados ou quando surgem efeitos tóxicos dos fármacos que são intoleráveis para o paciente. Observe que, tipicamente, é necessária a presença de 109 a 1010 células cancerosas para que um tumor se torne detectável; por esse motivo, são necessários múltiplos ciclos de quimioterapia para erradicar o câncer, mesmo quando não há nenhum tumor remanescente detectável.

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ticos de resistência originam-se de mutações cromossômicas e da troca de material genético. Tipicamente, ocorrem mutações cromossômicas no(s) gene(s) que codifica(m) o alvo do fár-maco ou nos genes que codificam os sistemas de transporte ou de metabolismo do fármaco. Essas mutações podem ser então transferidas às células-filhas (transmissão vertical), criando microrganismos resistentes a fármaco. Alternativamente, as bactérias podem adquirir resistência ao receber material gené-tico de outras bactérias (transmissão horizontal). Por exem-plo, o Staphylococcus aureus resistente à meticilina (SARM) e o enterococo resistente à vancomicina (VER) são capazes de produzir infecções hospitalares muito temíveis, visto que essas bactérias possuem genes de resistência adquiridos. As bactérias adquirem o seu material genético através de três mecanismos principais: conjugação, transdução e transformação. Na conju-gação, ocorre transferência direta de DNA cromossômico ou de plasmídio entre bactérias. O DNA também pode ser transferido de uma célula para outra através de um vírus bacteriano ou bacteriófago, em um processo conhecido como transdução. Na transformação, as bactérias captam DNA desnudo do ambi-ente. Com mais freqüência, a resistência a fármaco é adquiri-da através da transferência de plasmídios, que consistem em filamentos de DNA extracromossômicos que contêm genes de resistência a fármaco.

A transferência de um plasmídio de DNA é particularmen-te importante no processo de resistência a fármaco, devido à ocorrência desse mecanismo numa alta taxa tanto dentro de uma mesma espécie bacteriana quanto entre diferentes espécies de bactérias, e devido à possível transferência dos genes de resistência a múltiplos fármacos. Os mecanismos específicos de resistência para cada tipo de microrganismo são discutidos em capítulos subseqüentes. O Quadro 31.2 fornece uma lista dos principais mecanismos de resistência genética a fármaco que pode ser produzida por mutação cromossômica ou troca genética.

Redução da Concentração Intracelular de FármacosOs fármacos devem alcançar seus alvos para serem efetivos. Quando um fármaco alcança o seu alvo em quantidade insufi-ciente, o crescimento dos patógenos ou das células tumorais e

o desenvolvimento das cepas resistentes não são impedidos. Os micróbios e as células tumorais desenvolveram vários mecanis-mos para inativar os fármacos antes que possam ligar-se a seus alvos. Muitas bactérias mostram-se resistentes às penicilinas e às cefalosporinas, devido à produção de uma enzima hidrolíti-ca, a �-lactamase, que cliva o anel �-lactâmico, inutilizando, assim, o sítio ativo do fármaco. Uma única molécula de �-lac-tamase tem a capacidade de hidrolisar 103 moléculas de penici-lina por segundo, reduzindo significativamente a concentração intracelular do fármaco ativo. Como outro exemplo, as células tumorais que hiperexpressam uma enzima desaminase podem inativar rapidamente análogos de purina ou de pirimidina (anti-metabólitos), tornando esses fármacos menos efetivos.

Os patógenos e as células cancerosas também podem adqui-rir mutações que impedem a captação do fármaco na célula ou o seu acesso à molécula-alvo. Por exemplo, as células cancerosas com mutação dos sistemas de transporte do folato tornam-se resistentes aos análogos do folato, como o metotrexato, que precisam de transporte ativo para penetrar nas células, a fim de inibir a DHFR.

Por fim, tanto as bactérias quanto as células tumorais podem adquirir a capacidade de provocar um efluxo ativo do fármaco da célula. Tipicamente, as bactérias dispõem de bombas na membrana para transportar moléculas lipofílicas ou anfipáticas (como os antibióticos) para dentro e para fora das células. A produção dessas proteínas de membrana ou suas variantes em excesso pode mediar o bombeamento ativo de um antibiótico terapêutico para fora da célula mais rapidamente do que a sua entrada na célula. Apesar da obtenção de níveis sangüíneos terapêuticos de antibiótico, esse mecanismo de efluxo ativo pode resultar em concentrações intrabacterianas do fármaco inefetivamente baixas. De forma semelhante, o aparecimento de cânceres resistentes a múltiplos fármacos (MDR) está fre-qüentemente associado à hiperexpressão de uma glicoproteína ligada a membrana na célula tumoral, a P-glicoproteína (p170 ou MDR1), que bombeia ativamente os agentes antineoplásicos para fora das células. Essas bombas de efluxo são particular-mente importantes em virtude de sua capacidade de bombear mais de um tipo de fármaco, permitindo assim que os patógenos ou os tumores se tornem resistentes a múltiplos fármacos de diferentes classes.

QUADRO 31.2 Mecanismos de Resistência Genética a Fármaco

MECANISMO EXEMPLO: AGENTE ANTIMICROBIANO EXEMPLO: AGENTE ANTINEOPLÁSICO

Redução da Concentração Intracelular do Fármaco

Inativação do fármaco Inativação dos antibióticos �-lactâmicos pela �-lactamase

Inativação dos antimetabólitos pela desaminase

Prevenção da captação do fármaco

Prevenção da entrada de aminoglicosídios por purinas alteradas

Diminuição da entrada do metotrexato através da expressão diminuída do transportador de folato reduzido

Promoção do efluxo do fármaco Efluxo de múltiplos fármacos pela bomba de efluxo de membrana MDR

Efluxo de múltiplos fármacos pela bomba de efluxo de membrana p170 (MDR1)

Alteração do Alvo do Fármaco Expressão de peptidoglicano alterado que não se liga à vancomicina

Expressão de DHFR mutante que não se liga ao metotrexato

Insensibilidade à Apoptose Não aplicável Perda da p53 ativa

Desvio da Necessidade Metabólica do Alvo

Inibição da timidilato sintase contornada por timidina exógena

Perda do crescimento dependente de receptores de estrogênio resultando em resistência ao tamoxifeno

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540 | Capítulo Trinta e Um

Alteração do AlvoAlém de destruir quimicamente os fármacos ou de bombeá-los para fora, as células também podem reprogramar ou camuflar os alvos dos fármacos. A alteração no alvo de um fármaco através de mutação do gene ou dos genes que o codificam repre-senta um mecanismo comum de desenvolvimento de resistência a fármaco. No enterococo resistente à vancomicina, os genes vanHAX codificam uma nova via enzimática que reprograma o peptidoglicano de superfície, de modo a terminar na seqüência D-Ala-D-Lactato em lugar da seqüência normal D-Ala-D-Ala. Essa substituição não afeta o processo de ligação cruzada do peptidoglicano na síntese da parede celular bacteriana, porém diminui em 1.000 vezes a afinidade de ligação da vancomicina pelo dipeptídio. Nas células cancerosas, a ocorrência de mudan-ças tanto quantitativas quanto qualitativas nos alvos enzimáti-cos dos agentes antineoplásicos — como DHFR, timidilato sintase e topoisomerase — pode reduzir a ligação do fármaco (potência) e, portanto, conferir resistência a fármaco.

Insensibilidade à ApoptoseA resistência a fármaco nas células cancerosas surge através de mutações cromossômicas que, em seguida, são transmiti-das às células-filhas, criando um tumor resistente. Embora os agentes antineoplásicos citotóxicos atuem numa variedade de alvos moleculares, a maioria, senão todos eles, acaba levando à morte da célula através da indução de sua apoptose. Em geral, as lesões moleculares induzidas por fármacos podem levar a uma parada do ciclo celular, ativação dos processos de re paro ou apoptose. As mutações em proteínas-chave associadas ao controle da apoptose (como p53 e Bcl-2) podem resultar em uma incapacidade de induzir a resposta apoptótica à lesão do DNA, podendo reduzir, assim, a sensibilidade das células tumorais aos agentes antineoplásicos. Conforme assinalado ante riormente, os tumores com p53 de tipo selvagem, como muitas leucemias, linfomas e cânceres testiculares, são, com freqüência, altamente responsivos à quimioterapia. Em contra-partida, muitos cânceres pancreáticos, pulmonares e de cólon exibem uma alta incidência de mutações de p53 e demonstram uma resposta mínima à quimioterapia.

Por conseguinte, as causas genéticas de resistência a fárma-cos incluem tanto mutações no DNA cromossômico quanto a aquisição externa de material genético. A resistência genética pode ser produzida por inativação dos fármacos, diminuição da captação do fármaco, aumento do efluxo dos fármacos, reprogramação da estrutura ou da via do alvo, reparo de lesões induzidas por fármacos e insensibilidade à apoptose. A resis-tência constitui, provavelmente, o principal fator de limitação no tratamento efetivo das infecções e dos cânceres. A terapia farmacológica representa um equilíbrio dinâmico, uma “corrida armamentista evolutiva”, entre o planejamento de novos fárma-cos e a evolução de alterações que levam ao desenvolvimento de resistência aos fármacos.

CAUSAS NÃO-GENÉTICAS DE FALHA DO TRATAMENTOO tratamento de uma infecção ou de um câncer pode fracassar por numerosas razões. Um dos mecanismos mais importantes de resistência aos fármacos consiste na prescrição excessiva de antibióticos que não estão indicados para a situação clínica específica. A prescrição excessiva representa um problema não apenas nos seres humanos, mas também no tratamento e na

profilaxia das infecções em animais. Esse uso disseminado pro-move o desenvolvimento de resistência a fármaco que é então transferida de uma bactéria para outra pelos mecanismos anteri-ormente descritos. Outros mecanismos de resistência envolvem barreiras farmacológicas e anatômicas aos fármacos, como a parede de um abscesso ou a barreira hematoencefálica. A pouca aderência do paciente ao tratamento também pode promover o desenvolvimento de resistência, assim como a disponibili-dade errática de fármacos observada em partes do mundo em desenvolvimento (e até mesmo em algumas comunidades dos países desenvolvidos). As viagens internacionais promovem uma comunidade mórbida global, assegurando que a tubercu-lose resistente a múltiplos fármacos encontrada na Rússia ou no Peru acabará surgindo em hospitais nos Estados Unidos. Por fim, os deslocamentos demográficos e outras tendências criaram grandes populações suscetíveis, como os pacientes imunocomprometidos com câncer, os pacientes com AIDS e a população idosa.

MÉTODOS DE TRATAMENTO

QUIMIOTERAPIA DE COMBINAÇÃOO desenvolvimento de resistência a fármaco depende de diver-sos fatores, como o número de células microbianas ou tumo-rais na população antes do tratamento, a taxa de replicação ou “tempo de geração” da população de células patogênicas e a taxa intrínseca de mutação na população. Quando com-parado ao tratamento com um único agente, o tratamento com uma associação de fármacos pode diminuir significativamente a probabilidade de desenvolvimento de resistência. Na atuali-dade, a quimioterapia de combinação constitui a abordagem padrão na terapia do HIV e na maioria dos esquemas antineo-plásicos. Existem diversos motivos importantes para a adminis-tração simultânea de múltiplos fármacos em um esquema de quimioterapia de combinação, cujos fundamentos racionais são discutidos de modo mais pormenorizado no Cap. 39. Em primeiro lugar, o uso de múltiplos fármacos com mecanismos diferentes de ação propicia o ataque de múltiplas etapas no crescimento das células microbianas ou cancerosas, levando à taxa máxima possível de matança celular. Em segundo lugar, o uso de combinações de fármacos dirigidos contra diferentes vias ou moléculas no patógeno ou na célula cancerosa dificulta o desenvolvimento de resistência da célula estranha à terapia. Mesmo se a probabilidade de desenvolvimento de uma mutação de resistência a determinado fármaco for relativamente alta, a emergência concomitante de mutações separadas contra vários fármacos diferentes é menos provável. Em terceiro lugar, a administração de doses mais baixas de fármacos que atuam de modo sinérgico na combinação pode reduzir os efeitos adversos associados a esses fármacos. Esse aspecto é particularmente importante na quimioterapia antimicrobiana, onde a atividade sinérgica das combinações de fármacos foi claramente demons-trada. Em quarto lugar, como numerosos agentes antineoplási-cos possuem diferentes efeitos adversos que limitam a sua dose, é freqüentemente possível administrar cada fármaco na sua dose máxima tolerada, obtendo, assim, um aumento na morte celular global. Por fim, o conceito de quimioterapia de combi-nação está sendo redefinido com o desenvolvimento de novos tratamentos. No futuro, a imunoterapia, a terapia hormonal e a bioterapia irão se tornar cada vez mais integradas nos esquemas de quimioterapia de combinação (ver Cap. 53).

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Princípios de Farmacologia Antimicrobiana e Antineoplásica | 541

QUIMIOTERAPIA PROFILÁTICANa maioria dos casos, os agentes antimicrobianos e antineo-plásicos são utilizados no tratamento da doença manifesta. Três classes de fármacos também podem ser utilizadas na prevenção de doenças (quimioprofilaxia) antes de uma pos-sível exposição ou depois de uma exposição conhecida. O benefício potencial da quimioprofilaxia deve ser sempre avaliado em relação ao risco de criar patógenos ou células cancerosas resistentes a fármaco e ao potencial de toxicidade atribuível ao agente quimioprofilático. Com freqüência, uti-liza-se a quimioprofilaxia antimicrobiana em pacientes de alto risco para prevenir infecções. Por exemplo, as pessoas que viajam para áreas infestadas com malária tomam agentes antimaláricos profiláticos, como a mefloquina (ver Cap. 35). A quimioprofilaxia também é utilizada em alguns tipos de cirurgia para prevenção de infecções da ferida. Os antibióticos costumam ser administrados de modo profilático durante pro-cedimentos cirúrgicos passíveis de liberar bactérias no local da ferida, como ressecção do cólon. Os antibióticos também são administrados de modo profilático antes de procedimentos odontológicos em pacientes com alto risco de endocardite, visto que esses procedimentos podem provocar bacteremia transitória. Em certas situações, os pacientes imunocom-prometidos recebem fármacos antibacterianos, antifúngicos, antivirais e/ou antiparasitários de modo profilático para pre-venção de infecções oportunistas. Por exemplo, o aciclovir pode proteger pacientes imunocomprometidos previamente infectados contra a doença causada pela reativação do her-pesvírus simples latente.

A quimioprofilaxia ou terapia preemptiva também pode ser utilizada em indivíduos sadios após exposição a determina-dos patógenos. A terapia profilática ministrada após exposição conhecida ou suspeita à gonorréia, sífilis, meningite bacteriana, HIV e outras infecções freqüentemente pode evitar a ocorrência de doença. O risco de soroconversão após uma única exposi-ção à picada de agulha com sangue infectado por HIV varia de 0,1 a 4,5%, dependendo do tipo de exposição. Embora se disponha de dados limitados acerca da redução do risco obtida com a profilaxia, os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) recomendam um tratamento com esquema de dois ou três agentes anti-retrovirais após exposição (p. ex., zidovudina (AZT) e lamivudina (3TC) ou AZT, 3TC e lopinavir/ritona-vir) durante 4 semanas. Foi também constatado que a zidovu-dina diminui a transmissão materna do HIV, constituindo uma quimioprofilaxia para o feto (ver Cap. 36).

INIBIDORES DO METABOLISMO DO FOLATO: EXEMPLOS DE ALVOS SELETIVOS E INTERAÇÕES SINÉRGICAS DE FÁRMACOS

O ácido fólico é uma vitamina que atua em diversas rea-ções enzimáticas envolvendo a transferência de unidades de um carbono. Essas reações são essenciais para a bios-síntese de precursores do DNA e do RNA, dos aminoácidos glicina, metionina e ácido glutâmico, o tRNA iniciador de formil-metionina e outros metabólitos essenciais. Em vista da importância do metabolismo do folato na bioquímica das células, não é surpreendente que a inibição da biossíntese de folato e a interferência no ciclo do folato tenham sido am plamente utilizadas no tratamento de infecções bacteria-nas, de infecções parasitárias e do câncer.

METABOLISMO DO FOLATOA estrutura do ácido fólico contém três componentes químicos (Fig. 31.6A): um sistema de anel de pteridina, o ácido para-aminobenzóico (PABA), e o aminoácido glutamato. (Devido à sua capacidade de absorver a luz UV, o PABA é o ingredi-

N

N

N

NH2N

OH

HN

HN

O

COOH

COOH

Glutamato

Metade da Pteridina

PABA

NH2

SNH2O

O

Sulfanilamida

NH2

SNHO

O

N N

Sulfadiazina

NH2

SNHO

O

N

O

Sulfametoxazol

N

N

N

NH2N

NH2

N

HN

O

COOH

COOH

N

N

NH2

H2N

Cl

N

NH2N

NH2

O

O

O

Metotrexato

Trimetoprim Pirimetamina

A Ácido fólico

B Análogos do PABA

C Análogos do folato

Fig. 31.6 Estruturas do ácido fólico, dos análogos do PABA (sulfonamidas) e dos análogos do folato (inibidores da diidrofolato redutase). A. O ácido fólico é formado pela condensação de pteridina, ácido para-aminobenzóico (PABA) e glutamato (ver Fig. 31.7). O folato é a forma desprotonada do ácido fólico. B. Os análogos do PABA (sulfonamidas) assemelham-se estruturalmente ao PABA. Esses fármacos inibem a diidropteroato sintase, a enzima que catalisa a formação do ácido diidropteróico a partir do PABA e da pteridina (ver Fig. 31.7). C. Os análogos do folato (inibidores da diidrofolato redutase) assemelham-se estruturalmente ao ácido fólico. Esses fármacos inibem a diidrofolato redutase, a enzima que converte o diidrofolato em tetraidrofolato.

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542 | Capítulo Trinta e Um

ente ativo de numerosos filtros solares de uso tópico.) Nos seres humanos, o folato é uma vitamina essencial, que deve ser suprida em sua forma intacta na dieta. Por outro lado, nos organismos inferiores, o folato é sintetizado a partir de precur-sores, como mostra a Fig. 31.7.

Tanto o folato da dieta quanto o folato sintetizado a partir de precursores entram no ciclo do folato (Fig. 31.7). Nesse ciclo, o diidrofolato é reduzido à tetraidrofolato pela diidro-folato redutase (DHFR). A seguir, o tetraidrofolato participa das numerosas interconversões metabólicas que envolvem a transferência de um carbono. Por exemplo, os congêneres do tetraidrofolato são doadores essenciais de átomos de carbono na síntese do monofosfato de inosina (IMP) (levando ao monofos-fato de adenosina [AMP] e monofosfato de guanosina [GMP]) e na conversão do monofosfato de desoxiuridina (dUMP) em monofosfato de desoxitimidina (ver Fig. 37.2). Em todas essas reações, os congêneres do tetraidrofolato doam um átomo de carbono e, no processo, são oxidados a diidrofolato. Para que ocorram ciclos adicionais de síntese de nucleotídios, o diidro-folato precisa ser reduzido à tetraidrofolato pela DHFR.

INIBIDORES DO METABOLISMO DO FOLATOOs antimetabólitos podem ser divididos em inibidores do metabolismo do folato, inibidores do metabolismo das purinas,

inibidores da ribonucleotídio redutase e análogos nucleotídicos que são incorporados no DNA. Neste capítulo, são apresentados os inibidores do metabolismo do folato para exemplificar a base dos alvos seletivos dos agentes antimicrobianos e anti-neoplásicos de acordo com a singularidade relativa do alvo do fármaco. (As outras classes de agentes antimetabólitos são discutidas no Cap. 37.) Conforme assinalado anteriormente, a seletividade pode assumir as seguintes formas: (1) uma via genética ou bioquímica que é exclusiva do patógeno ou da célula cancerosa; (2) uma estrutura (isoforma) de uma proteína que é exclusiva do patógeno ou da célula cancerosa; ou (3) uma necessidade metabólica peculiar do patógeno ou da célula can-cerosa. Quando relevante, a discussão que se segue dará ênfase à base da seletividade de cada agente terapêutico.

Os inibidores do metabolismo do folato incluem inibidores da diidropteroato sintase e inibidores da diidrofolato redutase. Em ambos os casos, os fármacos que se assemelham estrutu-ralmente ao substrato fisiológico da enzima atuam como ini-bidores enzimáticos.

Alvos Exclusivos de Fármacos: Antimicrobianos Inibidores da Diidropteroato SintaseAs bactérias são incapazes de obter o ácido fólico do meio ambiente e, portanto, precisam sintetizar vitamina de novo a partir do PABA, da pteridina e do glutamato (Fig. 31.7). Em contrapartida, as células de mamíferos utilizam receptores e carreadores de folato na membrana plasmática para adquirir a vitamina intacta. Essa diferença metabólica fundamental entre patógenos e células do hospedeiro faz com que a diidropteroato sintase seja um alvo ideal para terapia antibacteriana. As sul-fas, como o sulfametoxazol e a sulfadiazina, são análogos do PABA que inibem competitivamente a diidropteroato sintase, impedindo assim a síntese de ácido fólico nas bactérias. Por sua vez, a ausência de ácido fólico impede a síntese bacteriana de purinas, pirimidinas e alguns aminoácidos, resultando final-mente na interrupção do crescimento bacteriano. As sulfas são agentes bacteriostáticos, uma vez que impedem o crescimento bacteriano, mas não matam as bactérias. Existem duas classes estruturais de sulfas: as sulfonamidas e as sulfonas.

Sulfonamidas e SulfonasConforme demonstrado no caso de Hildegard Domagk, as sulfonamidas foram os primeiros agentes modernos a serem empregados no tratamento das infecções bacterianas (o pron-tosil é um precursor das sulfonamidas). A Fig. 31.6 mostra a semelhança estrutural entre o PABA e os análogos de sulfo-namidas, a sulfanilamida, a sulfadiazina e o sulfametoxazol. As sulfonamidas são fármacos altamente seletivos, visto que o crescimento das bactérias exige a atividade da enzima que é inibida pelas sulfonamidas, enquanto as células dos mamífe-ros não expressam essa enzima. Por conseguinte, as células dos mamíferos não são afetadas pelas sulfonamidas, e esses fármacos são relativamente desprovidos de efeitos adversos (exceto no caso especial dos recém-nascidos, conforme assi-nalado adiante).

Apesar da notável seletividade das sulfonamidas, o desen-volvimento de resistência a esses fármacos levou a uma redução de seu uso. Pode ocorrer desenvolvimento de resistência às sulfonamidas devido: (1) à superprodução do substrato endó-geno, o PABA, pelas bactérias expostas às sulfonamidas; (2) a uma mutação no sítio de ligação do PABA na diidropteroato sintase, resultando em diminuição da afinidade da enzima pelas

Pteridina + PABA

Ácido diidropteróico

Bactérias

Bactérias e seres humanos

Glutamato

Diidrofolato

Tetraidrofolato

MetioninaGlicina

fMet-tRNA

Proteínas

Purinas

DNARNA

Timidina

DNA

Diidrofolato redutase(DHFR)

Diidropteroato sintase

TrimetoprimMetotrexatoPirimetamina

Sulfonamidas

5-FluoruracilaFlucitosina

Fig. 31.7 Síntese e funções do folato. A síntese de folato começa com a formação do ácido diidropteróico a partir da pteridina e do ácido para-aminobenzóico (PABA). Essa reação é catalisada pela diidropteroato sintase. O glutamato e o ácido diidropteróico condensam-se para formar o diidrofolato (DHF). O DHF é reduzido a tetraidrofolato (THF) pela diidrofolato redutase. O THF e seus congêneres (não indicados) atuam como doadores de um carbono em numerosas reações necessárias para a formação do DNA, do RNA e das proteínas. Em cada uma dessas reações, o folato reduzido (THF) torna-se oxidado a DHF, e a seguir o THF deve ser regenerado através de redução pela DHFR. Os inibidores do metabolismo do folato atuam em três etapas na via do folato. As sulfonamidas inibem a diidropteroato sintase; o trimetoprim, o metotrexato e a pirimetamina inibem a DHFR; e a 5-fluoruracila (5-FU) e a flucitosina inibem a timidilato sintase (ver Fig. 37.4). Observe que as bactérias sintetizam folato de novo a partir da pteridina e do PABA, enquanto seres humanos necessitam de folato dietético.

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Princípios de Farmacologia Antimicrobiana e Antineoplásica | 543

sulfonamidas; ou (3) a uma diminuição da permeabilidade da membrana bacteriana às sulfonamidas. Alguns estreptococos resistentes produzem níveis de PABA que são 70 vezes maio-res do que o valor normal. A diminuição da permeabilidade da membrana às sulfonamidas pode ser obtida através de transfe-rência bacteriana de um plasmídio de resistência.

Devido à elevada incidência de resistência às sulfonami-das na população bacteriana, esses fármacos geralmente são administrados como agentes isolados. Com efeito, costumam ser administrados em associação com um agente sinérgico, como o trimetoprim ou a pirimetamina, conforme discutido adiante.

As sulfonamidas competem com a bilirrubina pelos sítios de ligação na albumina sérica e podem causar kernicterus nos recém-nascidos. O kernicterus, uma afecção caracterizada por acentuada elevação das concentrações da bilirrubina não-con-jugada (livre) no sangue de recém-nascidos, pode resultar em lesão cerebral grave. Por esse motivo, os recém-nascidos não devem ser tratados com sulfonamidas.

A dapsona, um membro da classe das sulfonas dos inibi-dores da diidropteroato sintase, é utilizada no tratamento da hanseníase e da pneumonia por Pneumocystis carinii. Como o mecanismo de ação da dapsona é igual ao das sulfonamidas, a dapsona e o trimetoprim ou a pirimetamina também podem ser utilizados como combinação sinérgica de fármacos (ver discussão adiante). Um efeito adverso relativamente comum da dapsona consiste no desenvolvimento de metemoglobine-mia após a sua administração em cerca de 5% dos pacientes. Tipicamente, os pacientes suscetíveis apresentam deficiência da enzima eritrocitária, a glicose-6-fosfato desidrogenase, que está envolvida na destoxificação de agentes oxidantes endógenos e exógenos (como a dapsona).

Inibição Seletiva de Alvos Semelhantes: Antimicrobianos Inibidores da Diidrofolato RedutaseA diidrofolato redutase (DHFR) é a enzima que reduz o diidro-folato (DHF) a tetraidrofolato (THF). Diversos fármacos, inclu-indo o trimetoprim, a pirimetamina e o metotrexato, são análogos do folato que inibem competitivamente a DHFR e que impedem a regeneração do THF a partir do DHF (Figs. 31.6 e 31.7). Através dessa ação, esses fármacos impedem a síntese de nucleotídios e purina, bem como a metilação do dUMP a dTMP (ver anteriormente). A inibição farmacológica da DHFR é utilizada tanto no tratamento de infecções quanto na quimioterapia do câncer.

Foram desenvolvidos muitos inibidores da DHFR. Como mostra o Quadro 31.3, o metotrexato é um inibidor potente (subnanomolar) da DHFR, apesar de exibir pouca seletividade entre as isoformas da enzima nos mamíferos, nas bactérias e nos protozoários. Em contrapartida, os inibidores com estruturas mais divergentes que a do folato, como o trimetoprim e a piri-metamina (ver Fig. 31.6), exibem considerável seletividade de inibição da DHFR entre as diversas isoformas da enzima. Por conseguinte, o trimetoprim é um agente antibacteriano potente e seletivo, enquanto a pirimetamina é um fármaco antimalárico potente e seletivo.

Por que o trimetoprim e a pirimetamina são, cada um, seletivos para determinada isoforma da DHFR, enquanto isso não ocorre com o metotrexato? As seqüências de ami-noácidos da DHFR de muitas espécies foram determinadas, e essas seqüências variam acentuadamente entre bactérias, protozoários e seres humanos. Em contrapartida, os substra-tos da DHFR, o diidrofolato e o NADPH, não se modifica-

ram com a evolução. Todavia, todas as diversas isoformas da enzima podem catalisar eficientemente a redução do DHF a THF. (Foram feitas observações semelhantes para muitas enzimas, incluindo enzimas glicolíticas.) Isso significa que existem muitas maneiras de codificar uma proteína contendo os sítios de ligação e a flexibilidade conformacional neces-sária para a catálise. Por conseguinte, a base da seletividade deve residir em diferenças na estrutura da enzima que são, grosso modo, irrelevantes para a ligação dos substratos natu-rais, mas que desempenham um papel importante na ligação dos análogos (fármacos). Correspondentemente, a semelhan-ça estrutural muito estreita entre o metotrexato (MTX) e o substrato normal diidrofolato (ver Fig. 31.6) pode explicar por que o MTX exibe pouca seletividade para isoformas da DHFR numa ampla variedade de espécies, enquanto as estru-turas mais divergentes do trimetoprim e da pirimetamina estão associadas a uma maior seletividade de ligação e inibição das isoformas. A melhor compreensão da base molecular da inibi-ção da DHFR poderá levar ao desenvolvimento de fármacos ainda mais seletivos (ver Boxe 31.1).

TrimetoprimO trimetoprim é um análogo do folato que inibe seletivamente a DHFR bacteriana (Fig. 31.6C; Quadro 31.3), impedindo, assim, a conversão do DHF em THF. A exemplo das sulfona-midas, o trimetoprim é bacteriostático. Como o trimetoprim é excretado de modo inalterado na urina, pode ser utilizado como único agente no tratamento das infecções não-complica-das do trato urinário. Entretanto, para a maioria das infecções, o trimetoprim é utilizado em associação com o sulfametoxazol. O fundamento racional dessa quimioterapia antibacteriana de combinação é descrito adiante.

PirimetaminaA pirimetamina é um análogo do folato que inibe seletivamente a DHFR dos parasitas (Fig. 31.6C; Quadro 31.3). Na atualidade, a pirimetamina é o único agente quimioterápico efetivo contra a toxoplasmose; para essa indicação, é tipicamente administrada em associação com sulfadiazina. A pirimetamina também tem sido utilizada no tratamento da malária, embora a ocorrência de resistência disseminada tenha limitado a sua eficiência nesses últimos anos. Uma discussão mais pormenorizada das aplica-ções terapêuticas da pirimetamina e da sulfadiazina pode ser encontrada no Cap. 35.

QUADRO 31.3 Valores de IC50 de Três Inibidores da Diidrofolato Redutase

ISOFORMA DA DHFR

INIBIDOR DA DHFR DHFR DEE. coli

DHFR DE PLASMÓDIO

DHFR DE MAMÍFEROS

Trimetoprim 7 1.800 350.000

Pirimetamina 2.500 0,5 1.800

Metotrexato 0,1 0,7 0,2

Todos os valores são expressos em unidades nM (10–9 M). O trimetoprim e a pirimetamina são inibidores seletivos das isoformas da DHFR de E. coli e Plasmodium sp., respectivamente. Em contrapartida, o metotrexato é um inibidor não-seletivo de todas as três isoformas da DHFR. DHFR, diidrofolato redutase. IC50, concentração necessária para 50% de inibição da enzima.

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544 | Capítulo Trinta e Um

Alvos Comuns: Antineoplásicos Inibidores da Diidrofolato RedutaseMetotrexatoConforme descrito anteriormente, o metotrexato (MTX) é um análogo do folato que inibe reversivelmente a DHFR. Nas células de mamíferos, a inibição da DHFR provoca um déficit crítico nos suprimentos intracelulares de tetraidrofolato, resul-tando na interrupção da síntese de novo de purina e de timidilato e, portanto, em parada na síntese de DNA e de RNA. Devido à interrupção na síntese de DNA, as células dos mamíferos trata-das com metotrexato são detidas na fase S do ciclo celular.

Acredita-se que a seletividade relativa do metotrexato para as células cancerosas, em comparação com as células normais, se deva ao fato de que as células cancerosas em rápido crescimen-to têm uma necessidade aumentada dos vários compostos que dependem de intermediários do folato, particularmente aqueles necessários (como purinas e timidilato) para a síntese de DNA. Além disso, as células malignas podem ser mais suscetíveis do que as células normais aos efeitos do MTX na indução da apoptose (ver discussão adiante). O uso do MTX em altas doses na quimioterapia do câncer foi ampliado pela aplicação do áci-do folínico como resgate. Nessa técnica, administra-se ácido folínico (N-5 formiltetraidrofolato, também denominado leuco-vorin) ao paciente várias horas após uma dose de metotrexato que, de outro modo, seria letal. O fundamento lógico dessa técnica é que as células malignas são destruídas seletivamente, enquanto as células normais são “resgatadas” pelo ácido folí-nico. A explicação molecular para a eficiência do resgate com ácido folínico ainda não está bem clara. Uma hipótese formu-lada sugere que as células normais (não-malignas) são capazes de concentrar o ácido folínico (e, portanto, de se proteger dos efeitos do MTX), enquanto as células malignas apresentam uma taxa reduzida de transporte do ácido folínico (e, portanto, são preferencialmente lesadas por altas doses de MTX). Outra hipótese aventada sugere que o MTX em altas doses induz a apoptose das células malignas, porém uma parada do ciclo celular nas células normais; em seguida, as células normais são capazes de utilizar o ácido folínico para continuar o seu crescimento e divisão, enquanto as células malignas já estão condicionadas a sofrer morte celular programada.

O MTX é utilizado no tratamento de numerosos tipos de tumores, incluindo carcinomas de mama, pulmão, cabeça e pescoço, leucemia linfoblástica aguda e coriocarcinoma. O MTX também pode ser utilizado no tratamento da psoríase, de certas doenças auto-imunes e do estágio inicial da gravidez ectópica. A toxicidade do metotrexato manifesta-se primaria-mente nas células do hospedeiro que sofrem rápida divisão, causando lesão da mucosa gastrintestinal e da medula óssea. Em geral, esses efeitos são reversíveis após a suspensão da terapia. O MTX é extremamente tóxico para o feto, visto que o ácido fólico é essencial para a diferenciação apropriada das células fetais e para o fechamento do tubo neural. Recentemen-te, o MTX foi objeto de estudos clínicos como agente indutor de aborto, isoladamente ou em associação com o análogo da prostaglandina, o misoprostol.

Sinergismo dos Inibidores da DHFR e SulfonamidasTanto o trimetoprim quanto a pirimetamina podem ser uti-lizados em associação com sulfonamidas para bloquear as etapas seqüenciais na via de biossíntese que leva ao tetraidro-folato (Fig. 31.7). Esse tipo de quimioterapia de combinação,

denominado bloqueio seqüencial, tem sido efetivo no trata-mento de infecções parasitárias (pirimetamina e sulfadiazina) e infecções bacterianas (trimetoprim e sulfametoxazol). Uma base racional para o uso de um inibidor da DHFR em asso-ciação com uma sulfa consiste na acentuada interação sinér-gica observada entre essas duas classes de fármacos (ver Cap. 39). A sulfonamida diminui a concentração intracelular de diidrofolato, o que aumenta a eficiência do inibidor da DHFR, que compete com o diidrofolato pela sua ligação à enzima. A combinação de sulfa/inibidor da DHFR também pode ser efetiva no tratamento de infecções por cepas de bactérias e parasitas que exibem resistência à monoterapia com inibidor da DHFR. Tipicamente, esse fenótipo de resistência a fármaco deve-se à expressão de uma DHFR estruturalmente alterada, que exibe menor afinidade pelo inibidor. O problema para as bactérias ou os parasitas é que a DHFR alterada também possui menor afinidade pelo ligante natural diidrofolato. Nes-sas cepas, o tratamento com sulfonamida pode diminuir a concentração intracelular de diidrofolato até o ponto em que a DHFR alterada não é mais capaz de suprir as necessidades metabólicas da célula.

Outra base racional importante para o uso de uma combina-ção como trimetoprim/sulfametoxazol é a de que a resistência ao trimetoprim ou ao sulfametoxazol como única medicação desenvolve-se com bastante rapidez, enquanto a resistência à combinação desses dois fármacos desenvolve-se muito mais lentamente. Como os dois fármacos atuam sobre enzimas dife-rentes, seria necessária a ocorrência simultânea de duas muta-ções diferentes para que as bactérias pudessem desenvolver resistência à combinação desses dois fármacos. Em comparação com a taxa de desenvolvimento de uma única mutação, a pro-babilidade de ocorrência simultânea de duas mutações é muito mais baixa (ver Cap. 39).

n Conclusão e Perspectivas FuturasMuitos dos princípios subjacentes ao tratamento farmacológi-co das doenças microbianas e do câncer são semelhantes. Os tratamentos farmacológicos da infecção e do câncer baseiam-se na inibição seletiva do patógeno ou da célula cancerosa para impedir o seu crescimento ou sobrevida, com ocorrência mínima de efeitos adversos passíveis de interferir na função da célula hospedeira. A inibição seletiva de um alvo singular, como a parede celular bacteriana, constitui a abordagem ideal. Com freqüência, devem-se utilizar terapias menos seletivas, cujos alvos consistem em moléculas ou vias semelhantes ou até mesmo idênticas entre o patógeno ou a célula cancerosa do hospedeiro. Até mesmo os fármacos altamente seletivos dirigidos contra um alvo totalmente exclusivo podem tor-nar-se inefetivos se o micróbio ou a célula cancerosa sofrer mutação, tornando-se resistente. Tanto os micróbios quanto as células cancerosas crescem rapidamente, com o potencial de desenvolver ou adquirir mutações que conferem resistência. Os médicos procuram evitar o desenvolvimento de resistência ao instituir o tratamento precocemente, utilizando doses máximas toleradas e administrando múltiplos fármacos em associação. Todavia, apesar dessas estratégias, a resistência tornou-se um grande obstáculo ao sucesso do tratamento. Com a aquisição de maiores conhecimentos sobre a biologia dos micróbios e as células cancerosas e a descoberta de alvos mais singula-res, espera-se que os tratamentos irão se tornar mais seletivos, menos tóxicos e com menos tendência a induzir o desenvolvi-mento de resistência a fármaco.

Page 18: golan_31_Princípios de Farmacologia Antimicrobiana

Princípios de Farmacologia Antimicrobiana e Antineoplásica | 545

n Leituras SugeridasAmerican Cancer Society Statistics. Available at http://www.cancer.

org/docroot/STT/stt_0.asp. (Fonte das estatísticas de câncer apre-sentadas neste capítulo.)

Antimicrobial Resistance Prevention Initiative: proceedings of an expert panel on resistance. Am J Med 2006;119(6 Suppl 1): S1–S76. (Série de sete artigos e discussão do estado atual e dos meca-nismos de resistência aos agentes antimicrobianos.)

Mandell GL, Bennett JE, Dolin R, eds. Principles and Practice of Infectious Diseases. 6th ed. Philadelphia: Churchill Livingstone Inc.; 2004. (Obra feita por especialistas no manejo clínico das moléstias infecciosas.)

Moscow J, Morrow CS, Cowan KH. Drug resistance and its clinical circumvention. In: Kufe DW, Bast RC Jr, Hait W, et al, eds. Holland-

Frei Cancer Medicine. 7th ed. Hamilton (Canada): BC Decker and American Association for Cancer Research; 2005. (Discussão dos mecanismos de resistência aos agentes antineoplásicos.)

Okeke IN, Laxminarayan R, Bhutta ZA, et al. Antimicrobial resistance in developing countries. Part I: recent trends and current status. Lancet Infect Dis 2005;5:481–493. (Documentação do aumento da resistência aos agentes antimicrobianos em países em desen-volvimento.)

Walsh CT. Antibiotics: Actions, Origins, Resistance. Washington, DC: ASM Press; 2003. (Revisão das bases estruturais e químicas da resistência à medicação.)

WHO Statistical Information System. Available at http://www.who.int/whosis/. (Fonte das estatísticas de saúde mundial apresentadas neste capítulo.)

Page 19: golan_31_Princípios de Farmacologia Antimicrobiana

546 | Capítulo Trinta e Um

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