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www.ssoar.info Educação popular na América Latina no novo milênio: impactos do novo paradigma Gohn, Maria da Glória Veröffentlichungsversion / Published Version Zeitschriftenartikel / journal article Empfohlene Zitierung / Suggested Citation: Gohn, Maria da Glória: Educação popular na América Latina no novo milênio: impactos do novo paradigma. In: ETD - Educação Temática Digital 4 (2002), 1, pp. 53-77. URN: http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-104972 Nutzungsbedingungen: Dieser Text wird unter einer Free Digital Peer Publishing Licence zur Verfügung gestellt. Nähere Auskünfte zu den DiPP-Lizenzen finden Sie hier: http://www.dipp.nrw.de/lizenzen/dppl/service/dppl/ Terms of use: This document is made available under a Free Digital Peer Publishing Licence. For more Information see: http://www.dipp.nrw.de/lizenzen/dppl/service/dppl/

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www.ssoar.info

Educação popular na América Latina no novomilênio: impactos do novo paradigmaGohn, Maria da Glória

Veröffentlichungsversion / Published VersionZeitschriftenartikel / journal article

Empfohlene Zitierung / Suggested Citation:Gohn, Maria da Glória: Educação popular na América Latina no novo milênio: impactos do novo paradigma. In: ETD -Educação Temática Digital 4 (2002), 1, pp. 53-77. URN: http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-104972

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ARTIGO

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EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA NO NOVO MILÊNIO:IMPACTOS DO NOVO PARADIGMA

Maria da Glória Gohn

Resumo: O trabalho objetiva realizar um balanço da trajetória das ações, práticas e políticaspedagógicas da educação popular na América Latina, nas últimas décadas. Destacam-se asnovas tendências, seus fundamentos, as novas áreas temáticas, suas práticas e inovações.Destacam-se também suas inovações no campo da educação não-formal e as articulações coma educação formal. Analisa-se a contribuição e o papel do método de Paulo Freire nestatrajetória. As questões básicas abordadas são: o que mudou no novo paradigma? Como teminterferido, na área da educação popular, as mudanças na economia globalizada e a conjunturasociopolítica do país e suas políticas sociais de corte neoliberal? Como tem atuado, naeducação popular, o setor organizado da sociedade civil, portador de novas formas deassociativismo, expressas em Ongs do Terceiro Setor e em novíssimos movimentos sociais?Qual foi o papel do processo de conscientização, previsto na método freireano, nodesenvolvimento atual da educação popular na América Latina? Quais são as contribuições eperspectivas para a educação popular para o novo milênio?

Palavras-chave: Educação popular; Tendências; Fundamentos; Áreas temáticas; Práticas einovações

Abstract: This paper work to carry setting the trajectory of the actions, pratical andpedagogical politics of the popular education in Latin America, the last decades. The newtrands, its beddings, the new pratical thematic areas, its and innovations are distinguished. Itsinnovations in the field of the education non-formal of division and the joints with the formaleducation are also distinguished. The contribuition and the paper of the method Paulo Freire inthis trajetory is analysed. The boarded basic questions are: what it moved in the newparadigm? How it has intervened, in the area of the popular education, the changes in theglobalized economy and the sociopolitic conjuncture of the coutry and its social politics ofneoliberal cut? How it has acted, in the popular education, the organized sector of the civilsociety, carrying society of new forms of associativism, express in the ONGs of the ThirdSector and news social movements? Which was the paper of the process of awareness foreseenin the Paulo Freire’s method, in the current development of the popular education in LatinAmerica? Which are the perspective contributions for the popular education for the newmileniun?

Word-Key: Popular education; Trends; Beddings; Thematic areas ; Practical and innovations

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EDUCAÇÃO POPULAR:BALANÇOS , NOVAS PRÁTICAS,NOVOS TEMAS

Este trabalho surgiu da feliz oportunidadede representar o Instituto Paulo Freirenum evento nas Filipinas sobre educaçãopopular em Fevereiro de 2000. Conheceruma realidade cultural tão diversa,marcada por momentos de grandemobilização popular nas últimas décadas,e bastante influenciada pelas idéias dePaulo Freire a respeito da educação,possibilitou-me dirigir o olhar para arealidade latino-americana, em busca dealguns nexos comparativos. Como anda aquestão da educação popular nos paísesde nosso continente, e qual o paradigmateórico-prático que informa suas práticas,são as questões iniciais deste texto.

A década de 90 foi um tempo de revisõespara a educação popular (EP) na AméricaLatina. Revisão de teorias, conceitos,metodologias, estratégias de ação, perfilde atuação dos educadores, materialutilizado etc. Em suma: uma revisãoparadigmática. O Congresso Internacionalde Americanistas realizado em Julho de1988 na Holanda sobre “EducaçãoPopular na América Latina”, reuniurepresentantes de ONGs latino-americanas, centros de investigação eagências financeiras, e fez um balançodas experiências realizadas até então.Diagnosticou-se a necessidade demudanças mas também se destacou aimportância da EP como espaçoeducativo da sociedade civil, sua presençacomo instrumento de organização,formação e desenvolvimento daconsciência social junto a inúmerosmovimentos populares que lutaram pelatransformação de regimes políticosautoritários, liderados por militares oucaudilhos locais. As mudanças postuladasadvinham das críticas sobre a escassa

discussão teórica dos postulados dasações da EP, o não aprofundamento dasmudanças operadas, o localismo dasações e seu baixo impacto ao nívelnacional, assim como os efeitos dochamado “basismo” e a não avaliação dasexperiências.

Em 1990 realizou-se na Bolívia osegundo seminário do mesmo grupo parafazer uma avaliação crítica da trajetóriada EP e identificar os desafios a seremenfrentados. Na ocasião, Mejia (1991)realizou uma análise do panoramainternacional que se descortinava para osanos 90 e postulou: a necessidade de serepensar a educação popular face aosdesafios da nova conjuntura; anecessidade de desideologizar suas ações;apontou alguns vazios e carências quedeveriam ser superados; a tarefa de secolocar, como metas, novas perspectivas.Foi enfatizado também a necessidade dese ter um outro tipo de olhar e de atuaçãoem relação ao Estado e às políticaspúblicas considerando, principalmente, asmudanças no cenário político de váriospaíses da América Latina, de ditadurasmilitares para regimes democráticos.Algumas experiências concretas foramrelatadas e analisadas, como a realizadana Prefeitura do município de São Paulo(GADOTTI, 1991).

Em 1995, um outro seminário foirealizado sobre a EP , desta vez emSantiago do Chile. O tema estavaincorporado ao Programa deSistematização da Educação Popular naAmérica Latina. O novo encontro fez umbalanço das alterações em curso, fruto dasdiretrizes estabelecidas nos semináriosanteriores. Os principais temas tratadosforam: a qualidade do processo educativo,a relação pedagógica e a relação com oEstado. Foi definido como sendo um dosobjetivos centrais da educação popular “a

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geração de conhecimentos novos, quepossam servir ao grupo beneficiário e lhespermitam desenvolver mudanças em suaspráticas cotidianas” ( Dam e Martinic,1996). O encontro concluiu também que,em face ao surgimento de novos temaspara análise, alguns conceitos chaves daEP deveriam ser redefinidos, tais como:participação, a relação horizontal entreeducador /educando, a relaçãocomunicativa e pedagógica etc.

Analisando-se os três encontrosconcluímos que nos anos 90 houve umredirecionamento dos objetivos da EP quealterou o sentido de suas ações. Antes osobjetivos estavam centrados mais nocontexto geral, na política, na estrutura dasociedade. Depois, os objetivos voltaram-se mais para os indivíduos em si, para suacultura e representações. No novoparadigma - não há algo a ser criado, apartir da animação de um agente externo-o educador ou o facilitador - em termosde uma politização que desperte oeducando para suas condições concretasde vida, em termos da pobreza e suascausas, de interesses de classe explorada eoprimida, de direitos sociais básicos quelhes estão sendo negados pelas elites eoutros. No novo paradigma - há algo a serrepassado - de forma competente, comconteúdo, e que deve gerar uma reaçãonos indivíduos de forma que ele confronteo recebido com o que possui, de suaexperiência anterior e visão de mundo, eo reelabore. Isto significa que osindivíduos e os grupos têm de repensar ede reformular seus própriosconhecimentos e experiências.

Reitera-se um dos postulados básicos daeducação popular dos anos 60-80: aimportância da relação educador-educando no processo educativo.Entretanto, o novo destaque nessainteração estará nos processos de

reelaboração e reinterpretação que ocorrena relação - é a partir deles que surgemos novos conhecimentos. Destaca-se quese trata de um processo dialógicopermeado de confrontações, conflitos,tensões etc., e que isso deve ser vistocomo natural e não como fruto desupostos interesses antagônicos. Issoocorre porque há o encontro de diferentesculturas e linguagens distintas. Resultaque a aprendizagem não se resume a meraincorporação de conhecimentos mas simuma reinterpretação e recontextualização.Trata-se de um processo que envolvenegociações entre quem ensina e quemaprende. O professor deve ter consciênciada existência deste processo denegociação cultural e garantir que setransmitam as ferramentas necessáriaspara que a negociação cultural se realize.

Vários pesquisadores que realizaram oschamados “balanços” da educaçãopopular na América Latina afirmam que,no passado, a idéia central do métododialógico estava baseada em um plano noqual o conhecimento advinhabasicamente das experiências passadasdos educandos e em suas idéias, de formaquase automática, sem considerar asreelaborações. Eles advogam que diálogoagora deve ser visto como um jogo deforças, em conflito e em acomodação,confrontação e acordo. Por sua vez, arelação pedagógica deve ser vista comouma relação social que sustenta osprocessos comunicativos que ocorrem nodesenvolvimento de um projetoeducativo. Assim, a pedagogia estarábaseada no diálogo e na construçãocooperativa de conhecimentos. Istosignifica que a construção de valorespassa a ter prioridade, numa perspectivaética que busca gerar uma novaindividualidade, tendo como suposto queessa nova individualidade contribua paraque as pessoas se tornem mais preparadas

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para enfrentar a realidade em que vivem.“Através da linguagem e mediante osprocedimentos comunicativos os sujeitosconstróem o real e aprendem comdistintos ritmos e tempos” (DAM ;MARTINIC, 1996: 11).

Os analistas/revisores da EP destacaramque cada grupo, segundo ascaracterísticas dos atores sociais que ocompõe, assimila o conhecimentorecebido de uma forma diferente, segundosua visão de mundo, seus interesses declasse e suas especificidades culturais. Alinguagem e o discurso utilizado peloseducadores também são diferentes, eles –educadores - são mais valorizados que oseducandos; há, portanto, diferenças entrequem ensina e quem aprende gerandorelações de poder; a participação não éeqüitativa, não há uma horizontalidade,uma relação igualitária onde não existanenhuma relação de poder. Apesar dasdiferenças e distâncias, recomenda-se quea relação a ser construída deve se basearna cooperação e no diálogo. O diálogo éconfronto mas é acordo também. Deve-sedar espaço para a construção de novosvalores e de uma consciência ética.

Os balanços destacaram também queantes havia uma ênfase quase exclusivano processo do diálogo e se ignoravamoutras formas de relações que sedesenvolvem fora do nível argumentativo,como as emocionais e as afetivas. Asmulheres, sua sensibilidade, afetividadeetc. são bastante citadas como exemplosde participantes dos processos educativosque ficavam à margem, ou nãoencontravam meios suficientes para seexpressarem. A EP deve, nas novasorientações, gerar uma novaindividualidade nas pessoas de forma aprepará-las melhor para enfrentarem anova realidade do novo milênio.

O tema do impacto dos processoseducativos foi outra preocupaçãodominante nos balanços dos anos 90. Anecessidade de ampliar a esfera da EP donível micro, local, dos bairros, para níveismais amplos, macro sociais, dirigidas àsmudanças estruturais, passou a ser umadiretriz de trabalho. Consequentemente,colocou-se como uma necessidadeimperiosa a profissionalização da EP.Relações de trabalho formalizadas,pessoal qualificado, e investimentos naformação do educador popularcompletam o círculo das novasnecessidades. Algumas ONGs passaram adefender, explicitamente, uma formaçãocom ênfase não ideológica, centrada emtécnicas e metodologias, facilitadoraspara a obtenção - tanto de processos degeração de conhecimentos novos, comode processos de intercâmbios de idéias, desentimentos e geradores de relaçõesafetivas. Afirma-se que o papel atual doeducador não é de um facilitador, ousimples mediador/estimulador ouanimador junto ao grupo de educandos,mas sim de um professor, uma pessoa quetransmite conhecimentos (embora em umestilo diferente do professor tradicional).

O PAPEL DO ESTADO E ASLACUNAS NOS BALANÇOS DA EP

O Estado será o novo ator a entrar emcena na EP. As análises reconhecem quea EP sempre atuou sobre sua própria auto-referência; nas últimas décadas ela negouou esteve de costas para o Estado, criticouas políticas oficiais e as iniciativasimplementadas pelos governos militaresou ditatoriais civis na área daalfabetização de adultos. A EP ao buscarnovos caminhos, desenvolveu a inovaçãoe a criatividade; ela atuava à margem daspráticas sancionadas oficialmente, e comisso desenvolveu também um sistemaalternativo e paralelo, de educação para o

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país, enquanto método, metodologias epráticas. Entretanto, os especialistas daprópria EP argumentam que o Estadomudou na América Latina na últimasduas décadas. A transição política do finaldos anos 70 e dos 80 levou à regimesdemocráticos, o sufrágio universal foirestabelecido, novas leis constitucionaisforam elaboradas. Essas mudançasjustificam, para os analistas da EP, que sefaça uma revisão crítica das posturasnegativistas da EP em relação ao Estado,e que se analise melhor seu papel comomediador na sociedade, seu caráterpúblico, seu papel quanto a gestão dosserviços e equipamentos públicos. Adificuldade maior estaria emcompatibilizar lógicas e práticas distintas.A máquina estatal é lenta, burocratizada,trabalha com prazos curtos e cheios derestrições; o impacto das mudanças élongo e o processo das reformas éconflituoso e carregado de impasses. AsONGs – principais agentes nodesenvolvimento de programas e projetosde EP são, ao contrário do Estado, maisinformais, meio desorganizadas, comprazos mais longos de trabalhos;entretanto, elas são mais ágeis, menosburocratizadas pois são bastantedesregulamentadas, e mas mais eficientesem seus resultados imediatos.

O que os analistas da EP não tratam comprofundidade são as mudanças quepassaram a ocorrer nas práticas do Estadona América Latina, nos anos 90, comoresultado de mudanças na conjunturaeconômica globalizada, e as diretrizes daspolíticas neoliberais impostas pelos póloshegemônicos de poder econômicointernacional. Sabemos que as políticasneoliberais têm preconizado a desativaçãoda atuação direta do Estado em váriasáreas sociais preconizando que aoperacionalização desses serviços, suagestão propriamente dita, seja transferida

para organismos da iniciativa privada,especialmente via parcerias comentidades do chamado terceiro setor(organizações privadas sem finslucrativos composto de ONGs,organizações sociais, entidadesassistências e filantrópicas, algunsmovimentos sociais, algumas empresasdenominadas cidadãs, obras sociais etc.).

As entidades do terceiro setor, antesdenominadas simplesmente como ONGse articuladas às redes dos organismos dacooperação internacional, com histórico etradição de lutas em favor dos direitos dacidadania, passaram a ser, nos anos 90,cotejadas pelas políticas oficiais. Apossibilidade de acesso às escassas verbassurgiu, para o terceiro setor, via aspróprias políticas públicas, pois osempréstimos do Banco Mundial, e deoutros órgãos internacionais, aos paísesem desenvolvimento, postulam econtemplam, como condição deobrigatoriedade, que o governo do paísque recebe o recurso financeiro, destineum percentual do volume emprestadopara ações em obras sociais, a seremdesenvolvidas por entidades do terceirosetor. Postula-se, portanto, ofinanciamento às entidades privadasdesde que tenham o registro de umafundação ou organização sem finslucrativos, e que elas desenvolvamprogramas de geração de renda baseadasnos princípios da sustentabilidade, junto`a comunidades carentes sócio-economicamente, ou com grupos culturaisou étnicos; ou ainda junto à indivíduos egrupos em situação de risco.

Sabemos também que os governos daAmérica Latina incluíram, em suaspolíticas de reformas, principalmente naárea do trabalhista, alterações ouinovações que contemplam outras formasde contrato de trabalho, como o próprio

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trabalho voluntário, bastante usual noterceiro setor, e previsto, no Brasil, desdemarço de 1999, na chamada “Lei doTerceiro Setor”. Certamente que opassado de ineficácia e não aplicaçãointegral, ou aplicação ineficiente, ouainda os desvios, das verbas emprestadaspelas agências internacionais, para osgovernos locais administrarem eimplementarem diretamente os programassociais, teve um peso significativo paraessas mudanças fossem implementadas.

Resulta do cenário descrito que, de umlado, teve-se uma alteração no discurso deambas as partes: para os governos, de“inimigas críticas”, as ONGs passaram aser tratadas como aliadas (ainda que elesnão façam alianças com qualquer uma,pois há diferenças profundas entre elasquanto aos objetivos sociopolíticos de seuprojeto principal. As ONGs privilegiadastêm sido as do chamado novo terceirosetor). De outro lado, para as ONGs, osgovernos deixaram de ser o “inimigo” aser combatido e passaram a destacar eenfatizar seu papel público, como pólogerador, financiador e impulsionador/fomentador de iniciativas sociais, emprogramas que buscam patrocinar açõesde inclusão social dos excluídos de umaforma geral: pobres, desempregados ediscriminados por sexo, etnia, cor etc.Todos falam em nome da cidadania,menos de direitos, e mais de deveres.

As alterações nas relações Estado/ONGsnão foram apenas de ordem simbólica, noplano de novas representações sobre ooutro. As mudanças afetaram as práticas eos discursos. As ONGs passaram atrabalhar em programas de parceria, emprojetos sociais específicos, de curtaduração. Os cidadãos/ militantes dopassado, que atuavam junto amovimentos sociais assessorados pelasONGs do período, se transformaram em

clientes de políticas públicasadministradas pelas entidades do terceirosetor. No caso de cooperativas deprodução e geração de renda, muitos dosdireitos sociais clássicos já conquistadospelos trabalhadores tais como, pisosalarial da categoria, horário da jornadade trabalho, férias, FGTS, 13a salário etc.,passaram a ser simplesmente ignorados.Muitos dizem que o contexto é dedesemprego e que, portanto, osindivíduos já haviam perdido aquelesdireitos, ( lembrando que o seguro-desemprego praticamente inexiste naAmérica Latina).

Finalmente, um dos pontos maisimportantes para o entendimento da novarelação Estado e ONGs do terceiro setor:a transferência de fundos públicos doEstado para os programas de parceriacom a sociedade civil organizada. Essatransferência apresenta-se como parte deum programa de racionalização dosgastos, busca de maior eficiência, e umaresposta à urgência de cortes públicos(pensando na redução do tamanho daburocracia estatal). Mas, de fato, não estáhavendo aumento de verbas para a áreasocial e a transferência dos fundossomente modifica o caminho na qualestas despesas seguem para seremalocadas. Além disso, a transferência defundos do Estado para entidades doterceiro setor altera a relação cidadão-Estado. Na época que o Estado alocavadiretamente verbas para setores sociais,ou atendia a pressão organizada dedeterminados grupos ou movimentos, eleestava atendendo a SUJEITOSCOLETIVOS. À medida que a verba étransferida para ser gerenciada por umaentidade da sociedade civil, oatendimento ocorre aos usuários naqualidade de CIDADÃOSINDIVIDUAIS, clientes e consumidoresde serviços prestados pelas entidades do

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terceiro setor, que ocorrerá oatendimento. A mudança altera, portanto,a natureza e o caminho por onde asdemandas são formuladas e organizadas.Outras alterações decorrentes são:enquanto agências de consumidores, asdemandas passarão a se dirigir à justiçasocial- no caso de litígios, e não mais aosórgãos da administração estatal. Com issohá uma redução do poder de negociaçãodos usuários. Como resultado final se tem- não uma ampliação do espaço públicodos cidadãos, mas um retraimento -havendo uma perda das fronteiras entre opúblico e o privado que, no limite, poderáa levar a perdas de direitos sociais jáconquistados.

O NOVO PARADIGMAEDUCACIONAL E A EP

Além de espaços nas políticas públicas, aeducação popular ganha nos anos 90,espaços na sociedade em geral porque aeducação como um todo ganhanotoriedade; na nova conjuntura da era daglobalização a educação ganha destaque eimportância porque o elevado grau decompetitividade ampliou a demanda porconhecimentos e informação. A educaçãoganha também centralidade nos discursose políticas sociais porque eles enfatizamque competirá à ela ser um instrumentode democratização, num mercado deescolhas e oportunidades. À escola- assimcomo à cidade- é atribuído o espaço parao exercício da democracia, e conquista dedireitos, da mesma forma que a fábricafoi o espaço de luta e conquista dosdireitos sociais dos trabalhadores. Onúmero de anos de escolarizaçãoassociado a qualidade da educaçãorecebida é apresentado como fatordeterminante para o acesso ao mercado detrabalho, nível de renda a ser auferido etc.(GOHN, 2000 a).

No novo paradigma educacional, oprocesso de formação dos indivíduosdeve ter quatro objetivos estratégicos.Eles se constituem nos “pilares” desustentação para prepará-los para omundo moderno. Eles são: ser,conhecer, conviver e fazer.

O ser- tem a ver com a competênciaindividual. É o desenvolvimento da auto-estima, da auto-confiança, diz respeito àidentidade individual; se insere nouniverso da capacidade do indivíduo deconduzir sua vida, de propor, de fazerauto-crítica, de ter um ideal, deestabelecer metas etc.

O conhecer- É o desenvolvimento decompetências para saber o que conhecer.Inscreve-se no universo cognitivo, dashabilidades didáticas (e autodidatas) dosindivíduos. Tenho que saber o queconhecer para selecionar, tenho queconhecer o que conhecer. Lidar com oconhecimento requer conhecer algo antes,para saber o que devo selecionar( naInternet por exemplo).

O Conviver- Está na esfera interpessoal,na dimensão da sociabilidade dosindivíduos, no plano das relações que eledesenvolve com o outro, com as pessoasem geral, com a cidade, a nação etc. sãoas múltiplas redes tecidas ao longo davida. Muitas trajetórias individuais seexplicam pela rede de relações eamizades que os indivíduos constróem ecultivam ao longo de suas vidas.

O Fazer- Está no plano das competênciasprodutivas, diz respeito às habilidadesbásicas, específicas e de gestão. É umobjetivo importante para desenvolver acapacidade e o potencial de“empregabilidade” dos indivíduos.

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Sabe-se que a economia globalizada temnecessidade de profissionais com perfil dedesempenho diferente do tradicional,impondo a exigência de incorporação denovas habilidades e capacidades, eatribuí-se ao setor educacional realizareste “milagre”. Nos novos códigos aeducação deve contribuir para gerar umtrabalhador que tenha habilidades edomínio de conhecimentos tecnológicos,habilidades de gestão e que saiba sercriativo, desenvolvendo relacionamentosestratégicos (saudáveis e produtivos), ecom habilidade nos relacionamentosintergrupais, que saiba aprender aaprender. No mundo atual os indivíduostêm que ir além da aquisição/absorção deacervos de conhecimentos, eles precisamsaber relatar, interpretar e analisar -dados, fatos e situações. Precisam aindaler e decodificar linguagens gráficas(muitas delas baseadas na matemática).Precisam do inglês e da informática. Ouseja, precisa-se da educação básica(escolar/ formal- dada de uma outraforma) e da educação geral ( sobre omundo da vida, dada pela educação não-formal).

Competirá fundamentalmente à educaçãopopular realizar grande parte das novasfaces do processo educacional, de caráternão-formal, a ser realizada em espaços eatividades extra-escolares, em atividadesnão formais. Destacamos apenas quetudo isso não pode ser visto nos limites deuma lógica utilitarista, que contempla oser humano como uma máquinaprodutora, usuário/consumidor de bens,numa ótica mecânica e economicista.Essas habilidades devem ser vistas comoferramentas de apoio e não comofinalidades últimas.

No novo paradigma, os conteúdosuniversais que a Educação deve trabalharsão: conhecimentos, valores, atitudes e

habilidades nos indivíduos (o antigoparadigma educacional só enfatizava oconhecimento –já acumulado,simplesmente a ser absorvido -, e nãopreparava os indivíduos para a vida (dados pelos três outros conteúdos). Parater acesso ao conhecimento, é possível avia individual mas para os demais- opapel do professor é fundamental. Nodesenvolvimento de valores, habilidades eatitudes, o papel do educador éfundamental porque ele é o transmissor, évetor de conhecimentos

Os instrumentos para desenvolver aquelesconteúdos são via o aprendizado: daescrita, da leitura, do cálculo e daresolução de problemas. Enquanto os trêsprimeiros instrumentos se relacionamdiretamente com a escolaridade, aresolução de problemas se relaciona maiscom o mundo da vida, com acapacidade/habilidade dos indivíduosenquanto seres humanos. O novoparadigma educacional afirma que apessoa se torna ao longo de sua vidadepende das oportunidades que teve, edas escolhas que fez. Portanto, é precisoestar preparado para ver as oportunidadese fazer as escolhas. Conforme analiseadiante, estes postulados bebem emmatrizes do pensamento liberal queisolam os indivíduos e descontextualizamos cenários onde esses indivíduos selocalizam. Não há ordens depertencimentos.

Junto com as atividades da educação não-formal, área de atuação já clássica dasONGs, a educação formal, escolarpropriamente dita, também passa a serobjeto de atenção das políticas sociais dosanos 90, nas parcerias entre as ONGs eentidades públicas/estatais, para além dosprogramas de educação de adultos, ou ascampanhas de alfabetização do passado.Na atualidade a relação ampliou-se. As

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ONGs não apenas assessoram escolaspúblicas do ensino fundamental e básicoem geral, como acompanham e avaliamas políticas de reformas educativas emcurso. O campo da Educação popular seampliou, ela deixou de ser algoalternativo, marginal à política estatal; elaganhou centralidade nas políticas sociais.Mas sua natureza também se alterou, nãose trata mais da EP conscientizadora dopassado; suas práticas alteraram seu perfilpolítico: de contestação à ordem, busca daigualdade via pressões e movimentos paraobterem direitos sociais, passou-se a terpráticas mais legalistas, mais voltadaspara incluir, ainda que precária emarginalmente, os excluídos pelo sistemaeconômico mais geral

Em resumo, como diz Filmus (1999), “Eneste contexto y ante la incapacidad deotras políticas (trabajo, protección social,etc.) para incorporar a sectores de lapoblación marginados, el impulso a laeducación fue planteado como una de lasprincipales estrategias de integraciónsocial” (FILMUS, 1999,8).

Cumpre destacar que a interação da EPcom o Estado, ou com políticas públicas,não é nova, ela também ocorreu nos anos60 no Brasil; e a interação produziumudanças em ambas as partes. Nos anos90, a não politização dos temas sociais -recomendada pelas novas diretrizes daspolíticas educativas públicas estatais,reorientou as ênfases dos projetos sociais,dando-lhes perfis modelados pelosprojetos neoliberais.

Observa-se ainda que a revisãopreconizada nas práticas da EducaçãoPopular nos anos 90 seguem as diretrizeselaboradas na Conferência de Jomtien, naTailandia, cujo lema foi” Educação paratodos, todos pela educação”. Baseando-seem alterações reais que estavam

ocorrendo no mundo do trabalho, aquelaConferência postulou várias inovações;entretanto, muitas dessas inovaçõestambém eram fundamentadas empressupostos neoliberais. O documentofinal do encontro continha váriasassertivas do novo paradigma para aEducação, acima descrito. A Educaçãofoi analisada centrada não apenas nasescolas mas na sociedade também, eminstituições que atuam fora da escola,principalmente as ONGs - atuando emparceria com organismos públicos. Otrabalho voluntário também passou a serdestacado. Entretanto, a nova conferênciamundial de Educação realizada em Dakar,em abril de 2000, não deu continuidade avários pontos enfatizados no encontro deJomtien, entre eles a articulação com asONGs. Segundo Sérgio Haddad,presidente da ABONG e “único representantedas ONGs brasileiras a participar do encontrooficial, a convite da Unesco, a Declaraçãoresultante da Conferência Mundial deEducação também não trouxe novosconceitos sobre a educação para todos ousobre as necessidades básicas da área. ParaSérgio, comparada à Declaração resultanteda Conferência de Jomtien, Tailândia,realizada em 1990, o atual documento é “maisburocrático”, restringindo-se aos direitosbásicos vinculados à escolarização formal, ecom poucos compromissos de indicadoresassumidos pelos Estados paraimplementação até 2015.(..). A Conferênciaatual também foi marcada pela restrição àparticipação das organizações da sociedadecivil. Em Jomtien foram convidadas aparticipar aproximadamente 130 ONGs e, emDakar, apenas cerca de 60 tiveram acesso aoencontro oficial”(Doc. Bolhetim n. 87 daABONG, maio de 2000).

A restrição à participação das ONGs foium dos temas discutidos no FórumParalelo de ONGs, realizado nos dias 24 e25, também em Dakar, com a presença de

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aproximadamente 250 ONGs de todo omundo. Além de um abaixo-assinadoprotestando contra sua exclusão daConferência oficial, as entidadesdiscutiram o documento preliminaroficial, fazendo críticas e propostas a ele.

Resumidamente pode-se dizer que o novoparadigma educacional traz contribuiçõesvaliosas para entendermos a inserção dosindivíduos no novo mundo do trabalhomas ele é visto, analisado e se baseia, empremissas liberais, individualistas. Oproblema do trabalho/ emprego éanalisado segundo a posição dosindivíduos, sua qualificação, suasoportunidades e escolhas, como se todosfossem livres. O Estado e as eliteseconômicas, os lobbies etc. não têm lugarneste cenário. Ao contrário do quepreconizam alguns profetas doapocalipse, pode-se observar que otrabalho não está desaparecendo nasociedade atual, mas ele está mudando deperfil. O trabalho é hoje altamenteseletivo e excludente. O que desaparecesão os empregos, são os postos nomercado de trabalho. Cada vez maistemos menos gente trabalhando comcarteira assinada, direitos sociais etc., e osque têm estes direitos, estão trabalhandomuito mais. A maioria destes“afortunados”- porque têm emprego, estásendo mais explorada, trabalhando odobro de horas e fazendo sozinha oserviço que antes era executado porequipes. As reengenharias nos processosprodutivos realizaram este milagre quenão decorre apenas da substituição dohomem pela máquina, que também é umarealidade alarmante em vários setores, domoderno/avançado como oautomobilístico, aos tradicionais/atrasados como a agricultura. Mas existetambém uns poucos ganhando muitoporque acumularam acervos deconhecimentos em áreas hoje estratégicas,

aproveitaram oportunidades devido a altaqualificação que detém. Ao mesmotempo, vemos aumentar os índices dedesempregados e a massa dos sem-empregos, sem-carteiras, sem-trabalhonenhum.

Segundo Garretón, a atual abordagemdada à educação leva a uma visãodistorcida da educação e a umasimplificação da realidade onde“modernidade é igual a modernização;educação é igual a sistema escolar epreparação para o mercado de trabalho;desenvolvimento é igual a crescimentoeconômico, treinamento para aquisição deconhecimento; e justiça, a igualdadesocioeconômica e pluralismosociocultural” (GARRETÓN, 1999, 88).

Entretanto, há uma coisa boa no novoparadigma da Educação- ele traz um novopapel para a arte. A educação artística dosindivíduos ocupa um lugar tão importanteno novo paradigma quanto a matemáticaou outra disciplina básica, afirmamalguns analistas. Isto porque a arte educaenquanto arte e não para ser artista. Educapara a criatividade. Embora muitosneoliberais estejam interessados nacriatividade apenas como uma novaestratégia para gerar lucros, para elaborarnovos planos de marketing, ou aindacomo novas formas de fazer/ alternativo (sem carteira assinada, sem apoio depolíticas públicas, sem direitos sociaisregulamentados etc.), sabemos que a arte,em suas múltiplas dimensões, desenvolveo senso estético e ético também.Desenvolve o bom gosto, a sensibilidadepara a beleza das formas, apura osouvidos, o olhar; desenvolve os sentidosde uma forma geral, ajuda-nos a fazernossas próprias escolhas, estimula edesenvolve a criatividade nos indivíduosno sentido de realização dos homens emulheres e de suas condições como seres

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humanos. Ninguém nega que é precisosair da mesmice e ser criativo. E uma dasformas de se fazer isto, é desenvolvendoo senso artístico. Os gregos já haviamfeito a distinção entre “mímesis” (amesmice, a imitação) e a “poíesis” (apoesia, a criatividade).

Concluindo a primeira parte destetrabalho, de mapeamento das novasorientações da EP na América Latina, ede busca de compreensão das novasorientações para uma análise crítica, restadestacar que os analistas que têmparticipado dos seminários afirmam que aEP não pode perder o sentido de sua“missão”: gerar sujeitos críticos. Portantoé preciso discutir seus valores e criarsuportes metodológicos que combine ocognitivo e o afetivo; as aprendizagenssignificativas (de conteúdos), com asaprendizagens vinculadas à vida cotidiana(o saber popular). Para eles, a EP entrounum processo de redefinição profunda eimportante, que deverá adaptá-la às novastendências sociais, políticas epedagógicas. Para tal, é preciso dar todaênfase ao processo de formação doseducadores pois serão esses educadoresque terão de levar à prática as novasidéias e as transformações que estãoocorrendo na EP. Serão os educadoresque entrarão no processo pedagógico edevem gerar novas relações com oseducandos (tratados, agora, pelosrevisores da EP, como gruposbeneficiários). Eles precisam de formaçãoadequada, ferramentas que possam gerarum processo educativo transformador.Em síntese, para que ocorram asmudanças preconizadas à EP, éfundamental que se invista na formaçãodo educador.

PAULO FREIRE E O PROCESSO DECONSCIENTIZAÇÃO

Segundo Gadotti (1999), o método dePaulo Freire representa, na AméricaLatina ( e em outras partes do mundotambém), um dos mais importantesparadigmas da educação. Quando elesurgiu, significou uma alternativaemancipatória e progressista face aosprogramas extra-escolares predominantesna época, patrocinados por agênciasnorte-americanas e de outros países, comprogramas de extensão rural,desenvolvimento de comunidade etc.Esses programas estavam sendodesenvolvidos na América Latina desde otérmino da II Guerra Mundial. A obra dePaulo Freire e sua abordagem darealidade têm um caráter multidisciplinare contempla diversas dimensões, destaca-se a do educador-político. Freire postulauma educação libertadora econscientizadora, voltada para a geraçãode um processo de mudança naconsciência dos indivíduos, orientadapara a transformação de si próprios e domeio social onde vivem.

Inicialmente o método estava centradomais no tema da consciência, buscando odesenvolvimento de uma consciênciacrítica. Posteriormente, os temas daorganização e do trabalho foramganhando também relevância, no próprioprocesso de construção daquelaconsciência. Sabemos que o método foiaplicado originalmente em programas dealfabetização de jovens e adultos da árearural do nordeste, ampliou-se para todoterritório nacional - entre junho de 1963até o golpe militar de março de 1964; apartir dos anos 70 ele foi aplicado emvárias regiões do mundo em “trabalhos debase” em geral. A bibliografia a respeitoda origem e desenvolvimento do métodoé vasta e bastante conhecida, não é o caso

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e nem nosso objetivo neste textoconcentrarmos nestes pontos.Recordamos apenas que o métodoconsistia em três momentos básicos: ainvestigação temática (busca de palavrase temas chaves no universo vocabular doaluno(s) e da sociedade onde se vive); atematização (a codificação/decodificaçãodesses temas/palavras e seu significadosocial); e a problematização (busca desuperação das primeiras impressões poruma visão crítica).

Uma das maiores inovações do método deFreire, quando surgiu, e tambématualmente, é o fato dele ter como base odiálogo. Nos anos 60, quando o métodofoi elaborado, ele era moderno eavançado para sua época, pois ele davagrande ênfase aos processoscomunicativos. Este tema entrou para aagenda corrente contemporânea, entre acomunidade dos acadêmicos e dosplanejadores públicos, como“obrigatório”, apenas nos anos 80, dado oavanço dos meios de comunicações e opapel da mídia. Para Freire, “o diálogoconsiste em uma relação horizontal e nãovertical entre as pessoas implicadas”(videGadotti, 1999: 9). A reflexividade - tãoconclamada nas teorias dos anos 90, jáestava colocada no método de Freire àmedida que o oprimido só se libertaquando adquire a capacidade de refletirsobre as condições de sua própria vida, eque conquiste força autônoma pararealizar seu destino histórico. Apedagogia do diálogo redefiniu a relaçãopedagógica à medida que redefiniu arelação professor/aluno;educador/educando. O professor é vistopor Freire como alguém ao lado do aluno,um ser que também busca e tambémaprende; o aluno passa a ser sujeito dasações educativas e não mais objeto, eleganha dignidade no processo educativo.

“A criança, o jovem e o adulto sóaprendem quando têm um projeto devida onde o conhecimento é significativopara eles. Mas é o sujeito que aprendeatravés de sua própria açãotransformadora sobre o mundo. É ele queconstrói suas próprias categorias depensamento, organiza o seu mundo etransforma o mundo. [..] Todavia, oeducador também não fica unicamente nosaber do aluno. O professor tem o deverde ultrapassá-lo. É por isso que ele éprofessor e sua função não se confundecom a do aluno”, destacou Gadotti aoabordar o método de Freire. ( GADOTTI,1999: 8 e 10).

As experiências de Freire no Chile e naGuiné Bissau, ao final dos anos 60 e nosanos 70, foram decisivas para aredefinição de algumas de suasconcepções iniciais – que destacavammais as ações - cultural eproblematizadora - como geradoras daconsciência. Freire passou a enfatizartambém a importância da organização (aação organizada), e da consciência geradavia a experiência profissional, noprocesso produtivo de trabalho. Elechamou à atenção dos educadores - naprimeira fase do método, quando seprocura descobrir o universo vocabular dogrupo – para que se atente tanto para aspalavras carregadas de sentido existencial(cunho emocional) como para outrasexperiências típicas da vida cotidiana doseducandos, expressam por “formas defalar particulares, palavras ligadas àexperiência do grupo, especialmente àexperiência profissional”(FREIRE, 1980:42).

Portanto, para Paulo Freire, aconscientização não significa um atomecânico, instantâneo, de tomada deconsciência da realidade. Ela é umprocesso construído por momentos

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aonde se caminha do nível espontâneo eingênuo para uma tomada de consciênciaà medida que se aproxima da realidade.Freire alerta que essa tomada deconsciência ainda não é a conscientizaçãopropriamente dita, pois esta só surge pormeio da análise crítica e implica umcerto distanciamento dessa mesmarealidade; implica em ação reflexiva,implica práxis. A conscientização é,portanto, o desenvolvimento crítico datomada de consciência; é a consciênciaque se aprofunda via a imersão reflexivana realidade. “A conscientização nãopode existir fora da “práxis”, ou melhor,sem o ato ação-reflexão. (..) Por issomesmo, a conscientização é umcompromisso histórico. É tambémconsciência histórica: é inserção crítica nahistória, implica que os homens assumamo papel de sujeitos que fazem e refazem omundo. (...). A conscientização não estábaseada sobre a consciência, de um lado,e o mundo, de outro; por outra parte, nãopretende uma separação. Ao contrário,está baseada na relação consciência-mundo. (...) A conscientização supõe, porsua vez, o superar a falsa consciência,quer dizer, o estado de consciência semi-intransitivo ou transitivo ingênuo, e umamelhor inserção crítica da pessoasconscientizada numa realidadedesmitificada”. (FREIRE, 1980: 26 e 90).

Resulta que, na obra de Paulo Freire, aeducação, como ato educativo deconhecimento e como prática de liberdadeé, antes de mais nada, conscientização. Aeducação é pensada por Freire como umato político, ato de conhecimento e atocriador. Seu ponto de partida é a realidadedada, que precisa ser transformada. Paraque ela possa ser libertadora, é vista comoum processo longo; ela precisa construirnos educadores (as) uma consciênciahistórica, que demanda tempo. Oconhecimento, como afirma Gadotti, em

si mesmo, não é libertador, o será seestiver associado a um compromissopolítico em favor dos excluídos. Ele éuma ferramenta essencial para intervir nomundo. Para Freire, “A libertação é o fimda educação. A finalidade da educaçãoserá libertar-se da realidade opressiva. Aeducação visa à libertação, àtransformação radical da realidade, paramelhorá-la, para torná-la mais humana,para permitir que os homens e asmulheres sejam reconhecidos comosujeitos da sua história e não comoobjetos”. (GADOTTI, 1999: 9).Os novos postulados freireanos tiveramum papel fundamental na atividadeeducativa geradas pelas atividadespolítico-organizativas nos anos 70 e partedos anos 80. Foi um período em que, naAmérica Latina em geral, e no Brasil emparticular, a educação popular se tornousinônimo de movimento social popularpois a principal estratégia educativautilizada nos trabalhos com as camadaspopulares, a conscientização, situava emuma mesma linha de objetivos, a práticapolítica e os processos de aprendizagem.E essas duas ações se articulavam em umplano de ação política. Nos anos 70, esteplano teve um espaço privilegiado paraseu desenvolvimento, a saber: as açõesdas comunidades eclesiais de base cristãs.O trabalho educativo de formação delideranças gerou também inúmerasiniciativas populares que contribuírampara a organização das massas populares,especialmente urbanas, tais como:bibliotecas populares, rádioscomunitárias, centros culturais de bairros,grupos de teatros, inúmeros cursos deformação em centros populares eoperários, boletins e uma variada gama demídia alternativa, músicas e concursospopulares etc. A educação popular eravista como parte integrante do processoorganizativo das classes e camadaspopulares, desenvolvida pela Igreja, clero,

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facções políticas novas (que deramorigem ao PT-Partido dos Trabalhadores),e não somente uma tarefa dos partidos esindicatos. Em alguns casos havia tensãoe conflitos entre os programas de algunspartidos de esquerda-considerados comoradicais, e as novas organizaçõespopulares, mais afeitas às orientaçõescristãs-neomarxistas ou socialistas –libertárias ( vide GOHN, 1997 a).

Segundo Torres (1994), os objetivosprincipais do paradigma da educaçãopopular nos anos 70 era “desenvolver nasclasses mais desfavorecidas da sociedadealgumas capacidades que foramconsideradas necessárias para asobrevivência ou lhes ajudariam a viverde uma maneira produtiva- ou asobreviver – dentro da ordem socialexistente. [..] Isso incluí “alfabetização”que obviamente tem uma dimensão maispolítica no sentido da pedagogia de PauloFreire ( Freire, 1970); constitui umapreparação para uma ação política dapopulação através de um programa deconscientização.[...] Nesse sentido, queroafirmar que os movimentos de educaçãopopular fazem parte de uma subversãodiscreta (e freqüentemente aberta), quetem sido e – eu receio - continuará a serconfrontada na América Latina nãosomente com ideologias alternativas mastambém com força e repressão. [...] ofracasso evidente de muitos programas deeducação popular em alcançar sua metafinal de organização, participação econscientização dos despossuídos daAmérica Latina não pode ser inteiramenteatribuída às falhas endógenas desteconstructo- que na realidade são muitas,como seus promotores admitem. Muitasvezes era também o resultado deintervenções violentas “externas” porparte do Estado- o exemplo clássico é ofim dos experimentos com o métodoPaulo Freire no Brasil e a repressão aos

educadores populares após a queda deGoulart em 1964. ”(TORRES, 1994: 251-252 e 256).

É bom registrar que não apenasintervenções armadas estancam processosde mobilização, organização econscientização. Quem subvenciona equem controla os programas tem umpoder enorme, de mudar o curso dosacontecimentos. Torres também sabemuito bem disso ao afirmar: “Existemconjunturas onde a educação popular éessencialmente uma força contrahegemônica, uma ação culturallibertadora. Porém, num outro momentohistórico, a educação popular podeparticipar da construção de uma novahegemonia e exercer uma ação culturalrelacionada com a construção de um novopoder . Entretanto, Torres destaca que nasduas situações “os métodos pedagógicose as estratégias políticas em geral,permanecem os mesmos. A diferença,porém, está na aliança política quecontrola o Estado, o grau de radicalizaçãoda sociedade civil, e as relações dialéticasentre organizações não-governamentais,organizações de massas, o Estado e omovimento de educação popular”.(TORRES, 1994: 258).

A PERMANENTE ATUALIDADEDE PAULO FREIRE

Gadotti destaca que o que preocupavaPaulo Freire nos últimos anos era “oavanço de uma globalização capitalistaneoliberal. Ele atacava o pensamento e aprática neoliberal porque estas sãovisceralmente contrárias ao núcleo centraldo pensamento de Paulo Freire: autopia.”( Gadotti, 1998: 116). Gadottidestaca ainda que, enquanto o futuro foisempre “possibilidades” para Freire, paraos neoliberais ele é uma “fatalidade”;Freire atacou o mercado porque ele se

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baseia na lógica do controle, oposta àlógica da liberdade; acentuou que o atopedagógico é democrático por natureza eque a educação não pode se orientar pelosparadigmas das empresas, que dádestaque apenas à eficiência, à eficácia,sempre de olho na relação custo-benefício. Ele conclui que o paradigmaempresarial ignora o ser humano e o tratacomo simples agente econômico. Osneoliberais buscam retirar da pedagogiasua essência política, por isso ela é umapedagogia da exclusão, oposta àpedagogia da esperança elaborada porFreire. (FREIRE, 1992; GADOTTI,1998: 116-118; GENTILI, 1995).

Por tudo o que foi dito acima, o tema dacidadania ganha centralidade na obra deFreire nos anos 90. Ele contesta acidadania liberal, e a neoliberal, edefende uma cidadania como uso plenodos direitos e deveres pelos cidadãos,entendidos como “indivíduos no gozodos direitos civis e políticos de umEstado”(FREIRE, 1993).

A questão da qualidade, tão proclamadapelas reformas neoliberais, foi tratada porFreire segundo uma ótica totalmentedistinta. Para ele, a qualidade não seconfunde com quantidade de conteúdosapreendidos, mas ela se expressa nageração de novas relações que seestabelecem entre os atores queparticipam do ato educativo. Ele clamoupor uma nova qualidade, na educação ena vida das pessoas, para todos, a partirde um empenho também ético. Repudioua qualidade do neoliberalismo pelo fatodeste ser sinônimo de competitividade,oposta à solidariedade- tão necessáriapara uma nova qualidade de vida.

Outro tema da agenda dos anos 90 tratadopor Paulo Freire foi o da subjetividade.Ao aprender simultaneamente a ler e a

pensar criticamente, o método freireanodesenvolve o hábito de pensar a prática;os indivíduos aprendem a dizer o quepensam, o que desejam, o que sonham e oque aspiram, para si e para seus entes, suacomunidade, seu país etc. O processo deconscientização que está envolto nestanova realidade possibilita aos indivíduose grupos vislumbrarem um mundo comliberdade, justiça e igualdade. Essessujeitos percebem, via o confronto entre osonho e a realidade, que vivem umcotidiano que é o oposto do quevislumbram. A dura realidade dasdesigualdades apresenta-se como ocampo de ação a ser transformado pois seconscientiza que essas desigualdades sãoconstruídas cotidianamente nas relaçõessociais existentes, especialmente nasrelações que ocorrem no planoeconômico, no mundo da produçãopropriamente dita, e no mercadofinanceiro em geral. Outras desigualdadessão construídas ou reificadascotidianamente devido a valoresdiscriminatórios que os indivíduos egrupos carregam, quanto à raça, sexo,nacionalidade, idade, etnia etc. Essesindivíduos desenvolvem umasubjetividade política, oposta àsubjetividade econômica, lastreada nodesejo de acesso ao mundo do consumo,cotidianamente imposta pela mídia e portodos os planos que circundam a vida nasociedade capitalista.

Partindo do fato de que a desigualdadenão é um processo natural, Paulo Freireenfatiza que é preciso aguçar nossacapacidade de estranhamento, não secalar face as injustiças, desenvolver umanova ética e uma. nova racionalidadequanto aos valores a seremcultivados/preservados. A novaracionalidade a ser construída deveráestar “molhada de afetividade”(Gadotti,1998); de solidariedade. As ações

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cotidianas devem expressar esses novosvalores. Tudo isso está intimamenteconectado ao plano da subjetividade eseus contornos políticos, assinaladosacima.

Nos anos 90 Freire destaca ainda mais adimensão cultural nos processos detransformação social e o papel da culturano ato educacional. Além de reforçar seusargumentos em defesa de uma educaçãolibertadora que respeite a cultura e aexperiência anterior dos educando, Freirealerta para as múltiplas dimensões dacultura, principalmente a culturamidiática. Ele chama atenção ao fato deque ela poderá despertar-nos para algunstemas geradores que o próprio saberescolar ignora, ou valoriza pouco, como apobreza, a violência etc. Destaca tambémque a mídia trabalha e explora asensibilidade das pessoas e por issoconsegue atrair e monopolizar asatenções. Seus livros escritos nos anos 90– de estilo mais literário- revelam umpensador preocupado com o futuro dasociedade que vivemos dado ocrescimento da violência, da intolerânciae das desigualdades socioeconômicas. Eledestacará a importância da ética e de umacultura da diversidade. O tema daidentidade cultural ganha relevância naobra de Freire assim como o dainterculturalidade.

Nos anos 90 Paulo Freire tambémampliou o espaço para as questõesambientalistas em sua obra. Em À sombradesta mangueira ele desenvolve reflexõesno plano ecológico e cria o que Gadottidenominou “uma pedagogia para odesenvolvimento sustentável”, umaecopedagogia. Fala de uma cidadaniaambiental planetária sustentada por umaética integral de respeito a todos os sereshumanos. Suas idéias sobre aecopedagogia são a fonte de inspiração

para um programa do Instituto PauloFreire, de São Paulo, o “Carta da Terra”.É um projeto político educacional paracontribuir para a criação de melhorescondições e qualidade de vida, parteintegrante de um programa apoiado pelaONU e é abordado segundo os princípiosde uma cidadania planetária. O métodoPaulo Freire se faz presente: parte-se docontexto dos envolvidos no processo, deseu universo sociocultural, de sua leiturado mundo, e do seu nível de compreensãoda realidade que vive. O projeto prevê areeducação do olhar que cada um têm,ampliando-lhes a visão. A partir do quelhes falta conhecer são planificadas novassituações que provoquem a ampliação desuas experiências e de seus interessesmais imediatos. Espera-se tambémpromover a mudança de uma visãofocalista e ingênua para uma visão maiscrítica, e a mudança de uma posturapassiva para uma atitude ativa diante dosproblemas constatados. Aplicado nasescolas, o projeto destaca a importânciada organização curricular coletiva e prevêno estudo do tema gerador, além doconhecimento informativo, a formação deatitudes e valores ético-sociais. Caminha-se no sentido da problematização maisabrangente e os encontros se tornam“círculos de cultura”( vide: Projeto Cartada Terra, coord. Moacir Gadotti, 1999b)

Quanto à escola propriamente dita, nosanos 90 Paulo Freire destaca que ela devepreparar seus alunos (as) para seremcidadãos de uma sociedade planetária. Elaé uma organização local, e este deve ser oponto de partida do saber a ser gerado emseu interior. Mas ela tem que ser global,no sentido de ser internacional e de terum caráter intercultural, em seu ponto dechegada, no resultado de seu processo deformação. E ao percorrer este caminhoentre o local e o global, as diferenças detodas as naturezas devem ser explicitadas/

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conhecidas e, muitas vezes, vivenciadas.Segundo Gadotti, “As conseqüênciasdesse enfoque para o ensino são enormes.Trata-se de estabelecer metodologias quepermitam converter as contribuiçõesétnico-culturais em conteúdos educativos,portanto, fazer parte da propostaeducativa global de cada escola. [..] oprofessor precisa reeducar seu olhar paraa interculturalidade; precisa descobrirelementos culturais externos querevitalizem a sua própria cultura. Masisso não é o mais problemático hoje.Basta abrir os olhos para a realidade,escutar, ouvir. “(Gadotti, 1999: 16). Oseducadores freireanos têm buscadoarticular, nos anos 90, a cultura doeducando e suas experiências com osditos conhecimentos produzidoshistoricamente, contidos nos parâmetroscurriculares nacionais.

Paulo Freire soube acompanhar asmudanças nos processos tecnológicos eseus impactos no processo educacional,sem abrir mão de seus valores e premissasfundamentais. Os ambientes interativos,preconizados desde os tempos de suaatuação no nordeste do Brasil, nos anos50/60, passam a ser reforçados nos anos90 desde que sejam utilizados de formacrítica.

Um destaque relevante sobre a obra dePaulo Freire é a sua utilização junto aosmovimentos sociais em geral, e aospopulares em particular. Sintetizando estaquestão, que é longa e merece ser objetode análise em um livro específico, nosanos 90 observam-se: 1a - a continuidadedo uso do método Paulo Freire nosmovimentos populares urbanos quesobreviveram dos anos 80-especialmentena luta pela moradia; 2a - a continuidadedo uso do método na área da Educação,não apenas nos programas dealfabetização de adultos desenvolvidos

por entidades do terceiro setor e porprogramas oficiais nacionais, mastambém na área da educação não-formal(vide Gohn, 1999b), em trabalhos comcrianças e jovens adolescentes emsituação de risco. 3a - o uso do método emprogramas sobre o meio ambiente - nasescolas e junto às comunidades. A obrade Freire (1995) À sombra destamangueira têm sido uma referência sobrea ecologia. 4a - registre-se ainda a grandeimportância da utilização do método emprogramas junto a grupos de mulheres -sobre seus próprios problemas de saúde esexualidade; sobre sua seu lugar nafamília, relações com filhos e com seucompanheiro; sobre seu papel nasociedade, no sentido da igualdade degênero; além de programassocioeducativos contra todo tipo deviolência e discriminação; e a utilizaçãodos ensinamentos de Freire sobre gêneronas escolas, a partir de seu livroProfessora sim, tia não (1993b).

5a - Para finalizar este tópico, algumaslinhas sobre o campo onde, talvez, ométodo de Paulo Freire tenha sido o maisutilizado nos anos 90, e onde ele temproduzido excelentes resultados - emtermos de potencializar as ações doseducadores/educandos, assim comoimpactado a sociedade e as políticaspúblicas. Trata-se do uso/aplicação oureadaptação do método pelo MST-Movimento dos Trabalhadores RuraisSemTerra. Nos limites deste trabalho nãopodemos dedicar espaço para analisarmoseste movimento; já o fizemos em outrostextos ( Gohn, 1997 a, 1997b, 1999c e2000b), assim como outros autores (JoãoPedro Stédile e Bernardo MançanoFernandes –1997 e 1999; e RoselyCaldart - 1998 e 2000). Registramosapenas que o método tem sido utilizadotanto em trabalhos da educação escolar-principalmente na alfabetização e outros

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níveis da educação fundamental, emescolas do próprio MST, como nos cursose demais atividades de formação delideranças e de organização do trabalhonas cooperativas dos assentamentos;assim como na organização geral dosacampamentos - fase árdua de ‘espera’ naluta, até a obtenção do assentamentodefinitivo.

CONSIDERAÇÕES GERAIS PARAUMA AGENDA DE ANÁLISESFUTURAS

Em síntese, a educação popular naAmérica Latina, nos anos de resistênciaaos regimes militares e no período datransição à democracia, teve umanatureza essencialmente sociopolíticaporque ela era um instrumento demobilização e organização popular. “Sedescobre que o fator educativofundamental não é o processo pedagógicoem si, senão as ações de luta (as vezesmais espontâneas, outras vezes maisorganizadas) em que o povo intervémvitalmente na história. A educaçãopopular não é um momento prévio detomada de consciência, após o qual sepoderia passar para a ação consciente,senão que a educação popular é umprocesso permanente de teorização sobrea prática ligado indissoluvelmente aoprocesso organizativo das classespopulares.” ( Jara, 1994: 95). Este períodogerou, além de inúmeros movimentossociais populares na sociedade civil- quetiveram um papel decisivo para amudança do regime político vigente, umasérie de técnicas e metodologias detrabalho de campo, de natureza ativa eparticipativa. Destacam-se: o sociodrama,o teatro de comédias e pantomimas, jogosde papéis, dinâmicas grupais; produçãode audiovisuais, vídeos populares,cartazes, cartilhas, leituras coletivas detextos etc., num jeito novo e livre de

“fazer política” no cotidianoquestionando a ordem dominante.

Alguns pesquisadores latino-americanos,adeptos dos métodos participativos nosanos 70 e 80, reviram suas abordagensafirmando que nos anos 90 as práticaseducativas de conscientização durantemais de uma década “alimentou eprovocou mudanças na forma de fazer epensar a educação de adultos e, maisespecificamente, a educação de adultosdos setores populares [.. ] Taisnecessidades foram concebidas comodireitos dos cidadãos e deveres do Estado.[..] mas são poucos os países onde oEstado consegue responder a estasdemandas.[..] A conscientização emdécadas passadas, como na atualidade emalgumas experiências de educaçãopopular e investigação participativa, nãooferece alternativas sobre como satisfazertais expectativas e demandas”( M.Gajardo, 1994: 278 e 274). Segunda essaautora, a sobreideologização do discursopolítico-pedagógico impediu umaarticulação entre as demandas popularespor educação e outras reivindicaçõesbásicas. O fracasso de algumasexperiências de conscientização éatribuído aos vazios teóricos eimprecisões conceptuais existentes.Lamenta-se pela ausência de princípioseducativos que pudessem operar comoelementos de coesão social e a falta declareza quanto ao papel do Estado e dasociedade civil, e indaga-se sobre quaisseriam as reivindicações possíveis e odesenho de estratégias quepossibilitassem aos grupos demandatáriosapropriarem-se dos espaços que existemna sociedade. (Gajardo, 1994). Ou seja, arevisão da EP e a sua aproximação àspolíticas públicas neoliberais levaram aretomada de certas práticas onde seespera-se que o “desenho” ou uma “boaestratégia”, de uma proposta, programa

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ou projeto, resolvam problemas daeducação popular. No passado, essasestratégias deixaram lembranças de tristememória.Em relação ao Estado, os mesmosanalistas reconhecem sua importânciacomo elemento chave na definição eformulação dos serviços educativosoferecidos aos setores populares;destacam que a educação - enquanto umadas ênfases centrais nas políticas ediscursos oficiais nos anos 90, criou umcampo de negociação, de acordos econflitos, onde o resultado depende daforça dos diversos atores que participam.É interessante observar que estas análisessobre a “governabilidade” da educaçãocolocam-na, agora, menos como umdireito e mais como um serviço; fala-seem forças dos atores, mas não se fala daforça política desses atores para reverter oquadro de miséria e de exclusão socialque as políticas neoliberais geraram emtodo continente latino-americano. Paraque se fale de força política, deveriam serpriorizados também outros processos, taiscomo o da formação da consciênciacrítica e a organização daqueles setores.Mas, como demonstramos ao longo destetexto, todos estes conceitos estão sendoredefinidos, segundo óticas menoscoletivistas e mais individualistas.

O paradigma teórico que passou aalicerçar as novas orientações é umamistura de velho e novo. Do velho temoso retorno às teorias do interacionismosimbólico, a redescoberta do indivíduo eda psicologia social, renovada. Do novotemos as modernas teorias dacomunicação, da semiótica e lingüística.O interessante deste processo será aredefinição do sentido do processo deconscientização, antes centrado napolítica, com P maiúsculo, utilizandometodologias mais inquisitivas,questionadoras do status quo; para um

sentido da conscientização como processode negociação de atores sociais emposições diferentes: quem ensina, quemaprende. A horizontalidade da relação éposta em questão. As novas orientaçõesenfatizam um processo deconscientização de ordem maispsicológica - de um lado, ele estácentrado nos indivíduos, em sua cultura;de outro, ele trabalha o emocional,estimulando a expressão dos desejos easpirações. Trata-se, agora, de umprocesso focado numa mudança decomportamento e atitudes; deincorporação de novos valores e práticas.A metodologia de trabalho é maisproblematizadora no sentido da busca deformulação e soluções alternativassustentáveis; a interação é estimuladapara o pensar coletivo sobre “comofazer”, “como resolver” “como agir”,“como intervir a partir de um projeto, deuma idéia”. Não podemos deixar de ver ainfluência algumas das idéias neoliberaisnas novas diretrizes preconizadas à EP.

Sabemos que a conscientização não operanum vazio, não é um processo individual;ela ocorre por etapas, em processos deinteração do indivíduo em coletivosorganizados; ela é um ato político.Quando vista e trabalhada como umarelação individual, isolada, centradaapenas no educador/educando,descontextualizada de outras variáveistais como: os valores que informam essarelação, o ambiente onde ocorre, ocontexto do programa dentro de umcenário mais amplo, seus objetivos etc.,certamente resultará num processobastante ineficaz do ponto de vista aconscientização propriamente dita,orientada para a mudança sociopolítica deuma dada realidade social como um todo.Estamos entendendo a conscientizaçãocomo um processo transformador, quevislumbra, de um lado - mudanças

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estruturais que venham a promover osdireitos de uma cidadania plena, isto é, ajustiça social, a igualdade, a liberdade,fraternidade, solidariedade etc.; e deoutro lado - um processo que atua sobre aconsciência dos indivíduos propiciando-lhes compreender o universo de valores,símbolos e códigos que permeiam suarealidade imediata, decodificando-os deforma a poder estabelecer diferenças entreaqueles que contribuem para a liberdade eautonomia dos indivíduos, enquanto sereshumanos, e aqueles que os oprimem e osaprisionam. Neste segundo aspecto, osanalistas da EP têm razão ao destacaremque não se trata de um processo desimples absorção de conhecimentos ouinformações vindos de fora para dentro;trata-se de um processo de interação entreo que o indivíduo sabe (ou o que umgrupo sabe) – por herança cultural ouexperiência vivenciada - e o que elesreceberam como estímulo - na interaçãogerada no próprio processo educativo.

Talvez estejamos postulando uma volta àsutopias pois temos convicção que umponto é necessário: uma visão integradado processo de conscientização de formaque o processo tenha mão dupla emdireção - ao indivíduo e à estrutura dasociedade. Um processo que não tenhacomo objetivo ( implícito), a integração, oajuste, dos indivíduos, às diretrizesconstruídas pelos que dominam àquelasestruturas (via seus poderes: econômico,político ou cultural). Entretanto nãoestamos postulando nada de novo massim uma volta ao conceito deconscientização de Paulo Freire, em suaforma plena, isto é, como ele oreformulou nos anos 70/80. O próprioFreire nos alerta: “A conscientização estáevidentemente ligada à utopia, implicaem utopia. Quanto mais conscientizadosnos tornamos, mais capacitados estamospara ser anunciadores e denunciadores,

graças ao compromisso que assumimos(FREIRE, 1980: 28).

A mudança operada na metodologia detrabalho desenvolvida pela EP nos anos90 passou, na atuação em periferiascarentes das grandes cidades, de áreasproblemas para áreas temáticasespecíficas. Nos anos 70/80 a EP atuavasobre um leque enorme de demandasdado pelos problemas de:moradia/favelas, e loteamentosclandestinos; falta de creches e escolasfundamentais; carência de transportespúblicos e asfalto; ausência de postos desaúde e de profissionais para o seuatendimento; absoluta falta de segurança,postos policiais, ou locais próximos paraa retirada de documentos; não existênciade cemitérios; inexistência de varejões -postos de abastecimentos de gênerosalimentícios de primeira necessidade;além do não saneamento com esgotos etc.Nos anos 90, a atuação da EP concentrou-se em áreas temáticas específicas:produção cooperada, educação infantil,escolar, saúde da mulheres, proteção aomeio ambiente, cultura local, tradiçõesculturais, lazer e esporte para jovens eadolescentes, programas educativos paracrianças fora do horário escolar, apoioescolar etc. As novas ações sãodesenvolvidas com grupos sociaisespecíficos - mulheres, crianças, jovens,idosos, comunidades indígenas,desempregados, pessoas portadoras delimitações físicas ou com doenças derisco etc. Essa mudança alterou o sentidoda ação social coletiva. As açõesdeixaram de ser uma meta externa a seratingida - via a pressão sobre aqueles quecoordenam ou detêm o poder de decisão -nas áreas problemas, para metas quevisam operar mudanças nos própriosindivíduos - para que eles revejam suaspráticas e valores e se incorporem emcoletivos propositivos – nas áreas

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temáticas. Antes reivindicava-se e ficava-se na espera da resposta dos poderesconstituídos, ou na reação dos poderespúblicos face às pressões. As açõescoletivas eram ativas até um certo ponto(organização, mobilização e pressão).Depois elas se estancavam na espera.Construíam-se na heróica resistência deseus demandatários: os oprimidos.Algumas se perdiam - pelo desânimo edescrença dos demandatários - dado o nãoatendimento das demandas pelos poderespúblicos; outras mudavam de caráterporque seus componentes/participantesescolhiam outras vias de atuação, via ospartidos de esquerda ou ações conjuntascom os sindicatos; outras ainda setransformaram em práticasemancipatórias que ainda persistem, semperderem a radicalidade, maisorganizaram-se de outra forma,aproveitando todas as oportunidadespolíticas que foram surgindo nas brechase espaços da conjuntura do país.

De uma forma geral, apesar da politizaçãogeral que as ações propiciaram empassado recente, existiam muitosproblemas porque os indivíduos e grupos- sob à ação da EP, permaneciam muitodependentes de seus articuladores,coordenadores, e das redes queestruturavam os trabalhos. Poucos, defato, atingiam a autonomia no pensar e noagir, ainda que, no conjunto, o resultadotenha sido grande, em termos de ganhossociopolíticos, no sentido da conquistade espaços democráticos na sociedadecivil e política. De fato, não haviahorizontalidade entre os participantes -não o tipo de horizontalidade a quealudem os revisores da EP, centrada narelação professor/aluno,educador/educando. A nãohorizontalidade estava basicamente entreos que programavam as ações e os que asexecutavam na base. Entre os

articuladores- nacionais/estaduais oulocais, e os outros membros da redeassociativista. As hierarquias de podernem sempre eram formais, usualmenteeram informais. Mais todos as conheciame as vivenciavam.

Nos anos 90, em geral, predomina umestilo de atuação da EP em que as açõessão instrumentalizadas/suportadas/estimuladas – peloseducadores da EP (com seus projetos),pelas políticas públicas (com suasdiretrizes e programas), e pelosorganismos financiadores internacionais(que exigem percentuais ou cotas deaplicação dos empréstimos, em projetossociais etc.). Resulta que, independenteda questão ideológica, do projeto políticoque informa o trabalho da EP, (deorientação cristã, político-partidária,alguma seita religiosa, empresas que seautodenominam como cidadãs, ONGsapoiadas pela cooperação internacional,organizações clássicas de caráterfilantrópico, caritativo ou assistencialistaetc.), todos tiveram que reorientar suasatividades no sentido ativo/propositivo,pois aqueles (as) que não o fizeram ( ounão fazem), simplesmente deixam deexistir. A causa é uma só: acesso àsverbas, aos fundos de financiamento,públicos (os principais) e alguns privados.

No novo contexto, o método de PauloFreire continuou a ser uma referência poisele contêm muitos dos princípiosdelineados nas reformulações da EP: eledestaca a cultura e a dialogicidade do atoeducativo. Entretanto, sua utilização nosanos 90 ocorre - menos pela suadimensão política-participante - que deuespaço aos movimentos populares e aosmilitantes de facções político-partidárias,nos anos 70-80, para realizarem umtrabalho “de base”, gerador deconsciências críticas no sentido pleno da

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transformação social, contestador daordem social vigente; e mais pela suadimensão de “empowerment” (empoderamento) dos indivíduos e gruposde uma comunidade – gerando umprocesso de incentivo às potencialidadesdos próprios indivíduos para melhoraremsuas condições imediatas de vida,objetivando o “empoderamento” dacomunidade, isto é, a capacidade de gerarprocessos de desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentesexternos- os novos educadores – atoresfundamentais na organização e odesenvolvimento dos projetos. O novoprocesso ocorre, predominantemente, semarticulações políticas mais amplas,principalmente com partidos políticos ousindicatos.

O significado e o resultado do uso dadimensão do “empowerment” não têm umcaráter universal pois tanto poderá, defato, promover e impulsionar grupos ecomunidades - no sentido de seucrescimento, autonomia, melhora graduale progressiva de suas vidas (material ecomo seres humanos dotados de umavisão crítica da realidade social); comopoderá promover simplesmente a puraintegração dos excluídos, carentes edemandatários de bens elementares àsobrevivência, serviços públicos, atençãopessoal etc., em sistemas precários, quenão contribuí para organizá-los – porqueos atendem individualmente, numaciranda interminável de projetos de açõessociais assistenciais. Vários fatoresdeterminam a diferenciação dos doistipos de processos e seus resultados mas oprincipal deles é a natureza, o caráter e osentido do projeto social da (s)instituição (s) que promove (m) oprocesso de intervenção social. Estamosfalando dos mediadores, das ONGs e doterceiro setor de uma forma geral, dasentidades que organizam os projetos,

buscam os financiamentos, fazem asparcerias- com o governos, com outrasentidades e organizações do terceiro setorda sociedade civil, com os organismos dacooperação internacional, e com osmovimentos sociais. Esse último item éfundamental porque, dado os rumos queos movimentos tiveram nos anos 80,principalmente os de caráter popular, eseus desdobramentos nos anos 90 (algunsentrando em crise e desmobilizando-se,outros crescendo no rastro da crise porsaber aproveitar as oportunidadespolíticas do momento), aliar-se ou fazerparceria com um movimento social,popular ou não, já é um indicador danatureza do projeto da entidade. Um outroindicador é o tipo de movimento (ou maisprecisamente, qual movimento). Esseindicador pode ser captado segundo atrajetória histórica do movimento:origem, composição social, entidadesarticuladoras, redes sociais a quepertence, lutas que desenvolveu, projetosque elaborou, sucessos, perdas etc.

Portanto, o pensar, o refletir criticamentevia a aprendizagem gerada no processo daEP está deslocando-se de sentido,lentamente. Em geral não se tratam maisde processos de lutas - no sentido deembates político-ideológicos contra umadada ordem sócio-política. Trata-se,agora, da luta pela sobrevivência:aprender a gerar renda, aprender a seinserir numa economia desregulamentada,num mercado de trabalho sem direitossociais.

Neste cenário resulta que, com asmudanças da conjuntura política naeconomia globalizada, o perfil e o caráterda formação dos educadores (as)populares se alterou. Ser apenas“ativista”, ter um largo currículo demilitância ou de compromisso com certaslutas sociais, não é mais suficiente para

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qualificá-lo para o desempenho de suastarefas. O novo educador deve ter outrasqualificações além da militância. Parapoder conhecer seus educandos, suasculturas, linguagens, valores eexpectativas na vida ele deve conhecertambém a comunidade onde atua, sersensível aos seus problemas. Para isso eletem que dominar alguns conhecimentos.O educador tem que se formar e serinformado, não apenas na relaçãodialógica, mas em cursos de formaçãoespecífica combinados com cursos deformação geral (por isto os programas depós-graduação estão repletos deeducadores advindos das ONGs).

Quanto a Paulo Freire propriamente dito,dentre seus inúmeros legados, destacamosduas lições básicas: o da necessidade daluta contínua contra as injustiças e o daindignação diante da barbárie. Tratam-sede posturas éticas e práticas políticas, deatualidade fundamental face ao mundo depobreza que vivemos, diante de milharesde excluídos neste planeta chamadoTerra. Como tarefas, Freire deixou-nosvárias. Uma delas é desenvolver apedagogia da rebeldia, da indignação,libertadora, que a partir das váriasvivências dos indivíduos e grupos,contribua para o desenvolvimento derelações sociais e humanas mais fraternase solidárias. Termino- concordandoplenamente com Gadotti: “Não pode estarsuperada a pedagogia do oprimidoenquanto existirem oprimidos. Não podeestar superada a luta de classes enquantoexistirem privilégios declasse”(GADOTTI, 1999a: 19).

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Maria da Glória GohnProfessora Titular da

Faculdade de Educação da UNICAMP,coordenadora do GEMDEC

(Grupo de Estudos sobre MovimentosSociais, Educação e Cidadania),

pesquisadora I do CNPQ e.mail: [email protected]

Artigo aceito em: 13/12/2002