goffman erving a representação do eu na vida cotidiana (editora vozes)

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  • 5/11/2018 GOFFMAN Erving A Representa o do eu na vida cotidiana (Editora Vozes) - slide...

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    Boaventura de Sousa Santos

    A construcao multicultural da igualdade e da diferenca

    Oficina do CES n." 135Janeiro de 1999

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    OFICINA DO CESPublicacao seriada doCentro de Estudos SociaisPraca D. DinisColegio de S. Jer6nimo, CoimbraCorrespondencia:Apartado 30873001-401 COIMBRA

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    Boaventura de Sousa SantosProfessor Catedratico da Faculdade de Economia da Universidade de CoimbraDirector do Centro de Estudos Sociais

    A CONSTRUCAo MULTICULTURALDA IGUALDADE E DA DIFERENCA *

    A desigualdade e a exclusao tern na modernidade um significadototalmente distinto do que tiveram nas sociedades do antigo regime. Pelaprimeira vez na historia. a igualdade, a liberdade e a cidadania saoreconhecidos como principios ernancipatorios da vida social. A desigualdade ea exclusao tern, pois, de ser justificadas como excepcoes ou incidentes de umprocesso societal que Ihes nao reconhece legitimidade, em principio. E,perante elas, a unica politica social legitima e a que define os meios paraminimizar uma e outra.

    No entanto, a partir do momento em que 0 paradigma da modernidadeconverge e se reduz ao desenvolvimento capitalista, as sociedade modernaspassaram a viver da contradicao entre os principios de ernancipacao, quecontinuaram a apontar para a igualdade e a inteqracao social e os principios darequlacao, que passaram a gerir os processos de desigualdade e de exclusaoproduzidos pelo proprio desenvolvimento capitalista.

    * Palestra proferida no VII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado no Instituto de Filosofiae Cienclas Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 4 a 6 de Setembro de 1995.

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    A desigualdade e a exclusao sao dois sistemas de pertencahierarquizada. No sistema de desigualdade, a pertenca ca-se pela inteqracaosubordinada enquanto que no sistema de exclusao a pertenca da-se pelaexclusao. A desigualdade implica um sistema hierarquico de inteqracao social.Quem esta em baixo esta dentro e a sua presenca 9 indispensavel. Aocontrario, a exclusao assenta num sistema igualmente hierarquico masdominado pelo principio da exclusao: pertence-se pela forma como se 9excluldo. Quem esta em baixo, esta fora. Estes dois sistemas dehierarquizacao social, assim formulados, sao tipos ideais, pois que, na pratica,os grupos sociais inserem-se simultaneamente nos dois sistemas, emcornbinacoes complexas.

    Como 9 no seculo XIX que se consuma a converqencia da modernidade edo capitalismo, 9 neste seculo que melhor se podem analisar os sistemas dedesigualdade e de exclusao.

    o grande teorizador da desigualdade na modernidade capitalista 9, semduvida, Marx. Segundo ele, a relacao capital/trabalho 9 0 grande principle dainteqracao social na sociedade capitalista, uma inteqracao que assenta nadesigualdade entre 0 capital e 0 trabalho, uma desigualdade classista baseadana exploracao. 0 sistema de desigualdade 9 melhor conhecido de todos nos,pelo que nao exige mais elaboracao neste momento.

    Se Marx 9 0 grande teorizador da desigualdade, Foucault 9 0 grandeteorizador da exclusao. Se a desigualdade 9 um fenorneno socio-econornico,a exclusao 9 sobretudo um fenorneno cultural e social, um fenorneno decivilizacao. Trata-se de um processo historico atraves do qual uma cultura, porvia de um discurso de verdade, cria 0 interdito e 0 rejeita. Estabelece um limitepara alem do qual so ha transqressao, um lugar que atira para outro lugar, a

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    heterotopia, todos os grupos sociais que sao atingidos pelo interdito social,sejam eles a loucura, 0 crime, a delinquencia ou a orientacao sexual. Atravesdas ciencias humanas, transformadas em disciplinas, cria-se um enormedispositivo de normalizacao que, como tal, e simultaneamente qualificador edesqualificador. A desqualificacao como louco e como criminoso consolida aexclusao e e a perigosidade pessoal que justifica a exclusao. A exclusao danormalidade e traduzida em regras juridicas que vincam, elas pr6prias, aexclusao. Na base da exclusao, esta uma pertenca que se afirma pela naopertenca, um modo especifico de dominar a dissidencia. Assenta numdiscurso de fronteiras e de limites que justificam grandes fracturas, grandesrejeicoes, Sendo culturais e civilizacionais, tais fracturas tern tarnbernconsequencias sociais e econ6micas ainda que se nao definamprimordialmente por elas. Aqui a inteqracao nao vai alern do controle deperigosidade.

    Como disse, estes dois sistemas de pertenca hierarquizada, assimformulados, sao dois tipos-ideais. Por exemplo, na modernidade capitalistasao importantes duas outras formas de hierarquizacao que sao, de algummodo, hibridas uma vez que contem elementos pr6prios da desigualdade e daexclusao: 0 racismo e 0 sexismo. Assentam ambos nos dispositivos deverdade que criam os excluldos foucaultianos, 0 eu e 0 outro, sirnetricos numapartilha que rejeita ou interdiz tudo 0 que cai no lado errado da partilha. Noentanto, em ambas as formas de hierarquizacao se pretende uma inteqracaosubordinada pelo trabalho. No caso do racismo, 0 principio de exclusaoassenta na hierarquia das racas e a inteqracao desigual ocorre, primeiro,at raves da exploracao colonial, e depois, atraves da imiqracao. No caso dosexismo, 0 principio da exclusao assenta na distincao entre 0 espaco publico eo espaco privado e 0 principio da inteqracao desigual, no papel da mulher na

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    reproducao da forca do trabalho no seio da familia e, mais tarde, tal como 0racismo, pela inteqracao em formas desvalorizadas de forc;:ado trabalho. Porum lado, a etnicizacao/racializacao da forca de trabalho. Por outro, asexizacao da forca de trabalho. 0 racismo e 0 sexismo sao, pois, dispositivosde hierarquizacao que combinam a desigualdade de Marx e a exclusao deFoucault.

    Enquanto 0 sistema da desigualdade assenta paradoxalmente noessencialismo da igualdade, sendo por isso que 0 contrato de trabalho e umcontrato entre partes livres e iguais, 0 sistema da exclusao assenta noessencialismo da diferenc;:a, seja ele a cientifizacao da normalidade e, portanto,do interdito, ou 0 determinismo biol6gico da desigualdade racial ou sexual.

    As praticas sociais, as ideologias e as atitudes combinam a desigualdadee a exclusao, a pertenc;:asubordinada e a rejeicao e 0 interdito. Um sistema dedesigualdade pode estar, no limite, acoplado a um sistema de exclusao. E 0caso do sistema das castas na India e a exclusao dos parias ou intocaveis.

    Quer a desigualdade, quer a exclusao permitem diferentes graus. 0 grauextremo de exclusao e 0 exterminio: 0 exterminio dos judeus e dos ciganos nonazismo, a limpeza etnica dos nossos dias. 0 grau extremo da desigualdade ea escravatura.

    A desigualdade entre 0 capital e 0 trabalho, a exclusao do interdito, 0racismo e 0 sexismo foram construidos socialmente enquanto principios dehierarquizacao social no ambito das sociedades nacionais metropolitanas e dealgum modo foi nesse espac;:o-tempo que foram acolhidos nas ciencias sociais.Mas desde 0 inicio da expansao capitalista estes principles de hierarquizacao ediscrirninacao tern um outro espac;:o-tempo: 0 sistema mundial onde tarnbemdesde sempre se misturaram os principios da desigualdade e da exclusao. Por

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    um lado, a desigualdade pelo trabalho escravo; por outro, a exclusao pelogenocidio dos paises indigenas.

    No sistema mundial cruzam-se igualmente os dois eixos: 0 eixo socio-econornico da desigualdade e 0 eixo cultural, civilizacional da exclusao. 0 eixoNorte/Sui e 0 eixo do imperialismo colonial e pes-colonial, socio-econornico,integrador da diferenca. 0 eixo Leste/Oeste e 0 eixo cultural, civilizacional dafronteira entre a civilizacao ocidental e as civilizacoes orientais: islarnica,hindu, chinesa e niponica. Se 0 imperialismo e a melhor traducao do eixoNorte/Sui, 0 orientalismo e a melhor traducao do eixo Leste/Oeste.

    II

    A requlacao social da modernidade capitalista se, por um lado, econstituida por processos que geram desigualdade e exclusao, por outro,estabelece mecanismos que permitem controlar ou manter dentro de certoslimites esses processos. Mecanismos que, pelo menos, impedem que se caiacom demasiada frequencia na desigualdade extrema ou na exclusao extrema.Estes mecanismos visam uma qestao controlada do sistema de desigualdade ede exclusao, e, nessa medida, apontam para a ernancipacao posslvel dentrodo capitalismo. No campo social, tiveram sempre que se defrontar com osmovimentos anti-capitalistas, socialistas, com as suas propostas de radicaligualdade e inclusao. Todos estes movimentos tenderam a centrar-se numaforma privilegiada de desigualdade ou de exclusao, deixando as outras actuarlivremente. Esta concentracao assentou quase sempre na ideia de que, entreas diferentes formas de desigualdade e de exclusao, haveria uma, principal, e,de tal modo que 0 ataque dirigido a ela acabaria por se repercutir nas demais.

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    Por exemplo, 0 marxismo concentrou-se na desigualdade c1assista e tevepouco a dizer sobre a exclusao foucaultiana, 0 racismo ou sexismo. Viu melhoro eixo Norte/Sui que 0 eixo Leste/Oeste.

    Passo agora a enunciar quais as caracteristicas principais de lutamoderna capitalista contra a desigualdade e a exclusao.

    o dispositive ideol6gico da luta contra a desigualdade e a exclusao e 0universalismo, uma forma de caracterizacao essencialista que,paradoxalmente, pode assumir duas formas na aparencia contradit6rias: 0universalismo anti-diferencialista que opera pela neqacao das diferencas e 0universalismo diferencialista que opera pela absolutizacao das diferencas.

    A neqacao das diferencas opera segundo a norma da homoqeneizacaoque impede a cornparacao pela destruicao dos termos de cornparacao. Aabsolutizacao das diferencas opera segundo a norma do relativismo que tornaincornparaveis as diferencas pela ausencia de criterios transculturais.

    Quer um, quer outro processo permitem a aplicacao de criteriosabstractos de normalizacao sempre baseados numa diferenca que tem podersocial para negar todas as demais ou para as declarar incornparaveis e,portanto, inassirnilaveis.

    Se 0 universalismo antidiferencialista opera pela descaracterizacao dasdiferencas e, por essa via, reproduz a hierarquizacao que elas comandam, 0universalismo diferencialista opera pela neqacao das hierarquias queorganizam a multiplicidade das diferencas. Se 0 primeiro universalismoinferioriza pelo excesso de semelhanca, 0 segundo inferioriza pelo excesso dediferenca.

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    o dispositive ideol6gico do universalismo antidiferencialista foi accionadopoliticamente pelo princlpio da cidadania e dos direitos humanos. 0universalismo diferencialista foi accionado sempre em caso de recurso e quasesempre perante os fracassos mais 6bvios do universalismo antidiferencialista.Por exemplo, a seqreqacao em guettos quando a assimilacao foi julgadaimpossivel ou condenavel.

    o universalismo antidiferencialista confrontou a desigualdade atraves daspoliticas socia is do Estado-Providencia e confrontou a exclusao a partir depoliticas de reinsercao social nomeadamente no caso dos criminosos e combase em politicas assimilacionistas, no caso dos povos indigenas, culturasrninoritarias, minorias etnicas. 0 assimilacionismo reproduz, no sec. xx,algumas das formas oriqinarias do universalismo antidiferencialista daexpansao europeia: nomeadamente as conversoes.

    Estas politicas representam 0 maximo de consciencia possivel damodernidade capitalista na luta contra a desigualdade e a exclusao.

    Os principios abstractos da cidadania e dos direitos, da reinsercao e doassimilacionismo tern no Estado a sua instituicao privilegiada. Ampliando 0argumento de Poulantzas que considerava ser a funcao geral do Estadoassegurar a coesao social numa sociedade dividida por classes, entendo que 0Estado capitalista moderno tem como funcao geral manter a coesao socialnuma sociedade atravessada pelos sistemas de desigualdade e de exclusao.

    No que respeita a desigualdade, a funcao consiste em manter adesigualdade dentro dos limites que nao inviabilizem a inteqracao subordinada.No que respeita a exclusao, a funcao consiste em distinguir, entre as diferentesformas de exclusao, aquelas que devem ser objecto de assimilacao ou, pelocontrario, objecto de seqreqacao, expulsao ou exterminio. 0 Estado tem de

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    tentar validar socialmente essa partilha atraves de criterios tais como 0 loucoou 0 criminoso perigoso e 0 nao perigoso; 0 bom e 0 mau imigrante; 0 povoindigena barbaro e 0 assimilavel: a etnia hlbridizavei e a que 0 nao e ; 0 desvioou orientacao sexual toleravel e 0 intoleravel. Enfim, criterios que distinguementre os civiltzaveis e os incivilizaveis: entre as exclusoes demonizadas e asapenas estigmatizadas; entre aquelas em relacao as quais e total a mixofobia eaquelas em que se admite hibridizacao a partir da cultura dominante; entre asque constituem inimigos absolutos ou apenas relativos. Ou seja, a exclusaocombate-se por via de uma sociologia e antropologia diferencialista irnaqinariaque opera por sucessivas especificacoes do mesmo universalismodiferencialista.

    III

    Este modelo de requlacao social que, por um lado, produz a desigualdadee a exclusao e, por outro, procura rnante-las dentro de limites funcionais, estahoje em crise. Antes de a analisar, ha que descrever com mais detalhe estemodelo. Deve, no entanto, ter-se em mente que este modele apenas vigorouplenamente numa pequena minoria dos Estados que compoern 0 sistemamundial. Apenas no Atlantico Norte e, sobretudo, na Europa, encontramostentativas serias de produzir uma gestao controlada das desigualdades e dasexclusoes, nomeadamente atraves da social-democracia e do Estado-Providencia que e a sua forma politica.

    Foram dois os mecanismos centrais da qestao capitalista da desigualdadee da exclusao por parte do Estado moderno: 0 Estado-Providencia que sedirigiu sobretudo a desigualdade e a politica cultural e educacional que se

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    dirigiu sobretudo a exclusao. Uma breve referencia a cada um deles.

    o Estado-Providencia e, em geral, as polfticas socia is sao compreensiveisa luz de dois factos. Por um lado, um processo de acumulacao capitalista quepassa a exigir a inteqracao pelo consumo dos trabalhadores e das classespopulares, ate entao apenas integrados pelo trabalho. A inteqracao pelotrabalho e pelo consumo passam a ser os dois lados da mesma moeda. Poroutro lado, a confrontacao no campo social com uma proposta alternativa,potencialmente muito mais igualitaria e muito menos excludente, 0 socialismo.

    A social-democracia assenta num pacto social em que os trabalhadores,organizados no movimento operario, renunciam as suas reivindicacoes maisradicais, as da eliminacao do capitalismo e da construcao do socialismo, e ospatroes renunciam a alguns dos seus lucros, aceitando ser tributados com 0fim de se promover uma distribuicao minima da riqueza e se conseguir algumaproteccao e sequranca social para as classes trabalhadoras. Este pacta foirealizado sob a eqide do Estado, 0 qual, para isso, assumiu a forma politica doEstado-Providencia. Dentro dos Iimites estabelecidos por este pacto, 0 conflitosocial foi benvindo e foi institucionalizado. A greve e a neqociacao colectivasao as duas faces do conflito social-democratico.

    Este modelo assenta em varies pressupostos basicos. Em primeiro lugar,e formulado a escala das sociedades nacionais. Os seus protagonistas e osinteresses que eles representam estao organizados a nivel nacional: sindicatosnacionais, burguesia nacional, Estado nacional. Ainda que 0 capitalismo,enquanto modo de producao, seja [a internacional, a producao da sociedadetem lugar privilegiadamente a nivel nacional. 0 espaco-tempo nacional temuma primazia total sobre os espacos-ternpos regionais, locais ou

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    supranacionais. Por sua vez, 0 Estado nacional tem uma primazia total narequlacao desse espaco-ternpo. 0 objecto-alvo da providencia estatal e apopulacao residente nacional, as famllias e os individuos e a maioria daspoliticas tem por objective garantir a reproducao estavel de farnllias estaveisbiparentais em que 0 homem ganha 0 salario familiar num emprego comsequranca,

    A inteqracao social da-se basicamente por via de uma politica de plenoemprego e de uma polltica fiscal redistributiva. Atraves delas, procura-se darefectiva realizacao aos direitos humanos da segunda qeracao. A cidadaniaassim aprofundada e conquistada e consolidada atraves de uma luta declasses institucionalizada prolongada pelas orqanizacoes de interessessectoriais corporativos e pelas relacoes continuadas que entre elas seestabelecem. Por ultimo, e importante salientar 0 pressuposto de que a socialdemocracia se constitui em alternativa social ao modelo socialista sovietico e atodos os outros modelos socialistas que tentaram a terceira via.

    A crise actual da social-democracia decorre, em larga medida, da crisedestes dois pressupostos. Em primeiro lugar, as transformacoes recentes nocapitalismo mundial alteraram substancialmente as condicoes nacionais deproducao da sociedade. Estas condicoes tornaram-se elas proprias cada vezmais transnacionais muitas vezes em articulacao com novas condicoes deambito sub-nacional, regionais ou locais. Em ambos os casos contribuirampara tirar centralidade ao espaco-tempo nacional. Eis algumas das principaistransforrnacoes:

    - a transnacionalizacao da economia protagonizada por empresasmultinacionais que convertem as economias nacionais em economias locais edificultam se nao mesmo inviabilizam os mecanismos de requlacao nacional,

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    sejam eles predominantemente estatais, sindicais ou patronais;

    - a descida vertiginosa na quantidade de trabalho vivo necessario aproducao das mercadorias, fazendo com que seja possfvel algum crescimentosem aumento de emprego;

    - 0 aumento do desemprego estrutural gerador de processos deexclusao social agravados pela crise do Estado-Providencia;

    - a enorme mobilidade e consequente deslocalizacao dos processosprodutivos tornadas possiveis pela revolucao tecnoloqica e imperativas pelapredorninancia crescente dos mercados financeiros sobre os mercadosprodutivos que tende a criar uma relacao salarial global, internamente muitodiferenciada mas globalmente precaria;

    - 0 aumento da seqrnentacao dos mercados de trabalho, de tal modoque nos segmentos degradados os trabalhadores empregados permanecem,apesar do salario, abaixo do nivel de pobreza, enquanto nos segmentosprotegidos a identlficacao como trabalhador desaparece dado 0 nfvel de vida ea autonomia de trabalho e 0 facto de os ciclos de trabalho e de formacao sesobreporem inteiramente;

    - a saturacao da procura de muitos dos bens de consumo de massa quecaracterizaram a civilizacao industrial, de par com a queda vertical da ofertapublica de bens colectivos, tais como a saude, 0 ensino e a habitacao.

    - a destruicao ecoloqica, que paradoxalmente alimenta as novasindustrias e services ecoloqicos ao mesmo tempo que degrada a qualidade devida dos cidadaos em geral;

    - 0 desenvolvimento de uma cultura de massas dominada pela ideologia

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    consumista e pelo credito ao consumo que aprisiona as familias a pratica ou,pelo menos, ao desejo da pratica do consume:

    - as alteracoes constantes nos processos produtivos que, para vastascamadas de trabalhadores, tornam 0 trabalho mais duro, penoso efragmentado e, por isso, insusceptrvel de ser motivo de auto-estima ou geradorde identidade operaria ou de lealdade empresarial;

    - 0 aumento consideravel dos riscos contra os quais os segurosadequados sao inacessiveis a grande maioria dos trabalhadores.

    Trata-se de transforrnacoes que desestruturam os protagonistas e osinteresses nacionais do pacto social-dernocratico. Na Europa, a crise domovimento sindical e evidente. E hoje reconhecido que, nos paises centrais,o movimento sindical emergiu da decada de oitenta no meio de tres crisesdistintas ainda que interligadas. A crise da capacidade de aqreqacao deinteresses em face da crescente desaqreqacao da c1asse operaria, dadescentralizacao da producao, da precarizacao da relacao salarial e daseqrnentacao dos mercados de trabalho; a crise da lealdade dos seusmilitantes em face da ernerqencia contradit6ria do individualismo e desentimentos de pertenca muito mais amp los que os sindicais que levou aodesinteresse pela accao sindical, a reducao drastica do numero de filiados e aoenfraquecimento da autoridade das liderancas sindicais; e, finalmente, a crisede representatividade resultante, afinal, dos processos que originaram as duasoutras crises.

    Quanto a burguesia nacional, e aceso 0 debate na sociologia sobre a suaconstituicao. Para muitos, a burguesia nacional e hoje 0 efeito local ou 0 efeito

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    das liqacoes locais da burguesia transnacional. Por fim, quanto ao Estadonacional, e hoje evidente a erosao dos seus poderes de requlacao social, aindaque tal erosao seja mais selectiva do que aquilo que se pensa. EnquantoEstado predador, repressive, 0 Estado nacional continua well and alive talvezagora mais do que nunca. Enquanto Estado-Providencia das empresastambern nao e evidente qualquer crise. A crise e sobretudo do Estado-Providencia para as classes populares. E-o sobretudo porque 0 Estado deixaclaramente de poder prosseguir politicas que simultaneamente assegurem 0crescimento econornico, precos estaveis e uma balanca de pagamentoscontrolada. Por outro lado, a crise da politica fiscal inviabiliza a expansao daprovidencia estatal e fa-lo precisamente nos momentos em que, devido a criseeconomica e ao aumento do desemprego, ela e mais necessaria.

    Esta transformacao do Estado nao ocorre apenas nas sociaisdemocracias. Ocorre tarnbern noutras sociedades em que por outras vias -corporativismo autoritario ou populismo - foram surgindo formas de requlacaosocial com uma maior ou menor incidencia de politicas de bem estarprotagonizadas pelo Estado.

    Esta transformacao tem duas caracteristicas que conjuntamente afectamo papel do Estado no controle da desigualdade classista. Como vimos, estadesigualdade assenta num principio de inteqracao pelo trabalho e a sua qestaocontrolada, sobretudo na versao social-dernocratica, consiste numa correccaoprotagonizada pelo Estado ao promover 0 pleno emprego e uma politica fiscalque marginalmente assegura alguma redistribuicao. Esta forma de requlacaoesta a ser posta em causa por qualquer das duas caracteristicas detransformacao do Estado. Por um lado, a oesnecionelizeceo do Estado, umcerto esvaziamento da capacidade de requlacao do Estado sobre a economiapolitica nacional. Dada a dominancia das condicoes transnacionais, por um

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    lado, e locais por outro, a funcao do Estado parece ser mais a de mediar entreelas do que, acima delas, impor condicoes nacionais. Mais do que 0 plenoemprego e a redistribuicao fiscal, 0 Estado tem de assegurar a competetividadee as condicoes que a tornam possivel, sejam elas inovacao tecnoioqica. agarantia da flexibilidade dos mercados de trabalho e a subordinacao geral dapolitica social a politica econornica. Acresce que muitas destas fungoes saoexercidas pelo Estado nao isoladamente, mas no ambito de associacoesregionais supraestatais, sejam elas a Uniao Europeia, 0 Acordo NorteAmericano de Cornercio Livre ou 0 Mercosul, ou as associacoes asiaticas,Esta desnacionalizacao para cima altera 0 padrao e as condicoes de eficaciada intervencao do Estado. Ele passa a ser 0 executor, sem grande iniciativa,de politicas de requlacao decididas transnacionalmente com ou sem a suaparticipacao. 0 papel do Estado e aqui crucial, nao como iniciador e sim comoexecutor de politicas.

    Mas esta desnacionalizacao do Estado nacional tarnbern ocorre pelopapel crescentemente mais forte atribuido as economias subnacionais, locais eregionais. As economias locais e regionais estao hoje a converter-se emnodules de uma rede global de trocas e de sistemas produtivos transnacionais.Os governos locais competem entre si para transformar as suas cidades oureqioes em agentes de competitividade muito para alern da economia nacional.Os parques cientificos, os centros de inovacao, os programas de formacaoprofissional, os mercados de trabalho regional, a cultura local, as novasinfraestruturas no dominic da telernatica, sistemas de transrnissao por cabo,transportes urbanos rapidos, redes electronicas, qualidade de vida urbana:tudo isto sao investimentos locais que colocam 0 espaco subnacional emelemento de redes transnacionais. Esta desnacicnalizacao do Estado nacionalpara baixo tarnbern provoca outra alteracao na intervencao do Estado. E que

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    aumenta 0 seu particularismo e a sua variedade em funcao das condicoeslocais ou regionais. Exige-se uma maior descentralizacao e uma maiorresponsabilizacao politica dos governos regionais e locais e, em geral, anecessidade de uma maior coordenacao entre espacos-tempo globais,nacionais, regionais e locais.

    A outra grande transformacao do Estado e a oesestetizeceo do Estadonacional. Consiste numa nova articulacao entre a requlacao estatal e naoestatal, entre 0 publico e 0 privado, uma nova divisao do trabalho regulat6rioentre 0 Estado, 0 mercado e a comunidade. Isto ocorre, tanto no dominio daspoliticas econ6micas, como sobretudo no dominio das politicas sociais, pelatransformacao da providencia estatal (sequranca social e saude, etc.) emprovidencia residual e minimalista a que se juntam, sob diferentes formas decomplementaridade, outras formas de providencia societal, de services sociaisproduzidos no mercado - a proteccao contratada no mercado - ou nochamado terceiro sector, privado mas nao lucrativo, a proteccao relacionalcornunitaria. Entre estas formas de requlacao da proteccao social criam-sevaries tipos de relacoes contratuais ou outras em que 0 Estado por vezes eapenas um primus inter pares. Uma forma de requlacao rnaisinterdependente, menos hierarquica e mais descentralizada, mas tarnbernmenos distributiva e mais precaria. Fala-se de princfpio de subsidiaridade,requlacao auto-regulada, governo privado, auto-qovernacao, autopoesis,emprego aut6nomo, novo sector informal, etc., etc.

    De tudo isto, 0 Estado Keynesiano, com a sua enfase na qestaocentralizada, no pleno emprego, na redistribuicao e na primazia da polfticasocial, parece estar a dar lugar a um Estado Schumpeteriano, menoscentralizado e menos monopolista, centrado na inovacao e na competitividade,dando primazia a politica econ6mica em detrimento da politica social.

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    Como disse, estas transforrnacoes ocorrem sob diferentes formas, quernas socia is democracias, quer nas sociedades, sobretudo de desenvolvimentointermedio ou semiperiferico onde 0 Estado assumiu no passado algumaresponsabilidade social. Nas sociedades perifericas. os imperativos do modeloneo-liberal sao de tal maneira fortes e tao desproporcionados em relacao asresistencias que Ihe podem ser feitas que, mais do que a transforrnacoes doEstado, assistimos ao virtual colapso do Estado, a situacao de falencia e deinviabilidade estatal, apenas adiada atraves de assistencia internacional ou dasajudas humanitarias.

    No caso especifico da social-democracia, ha ainda que referir que umoutro dos seus pressupostos politicos ruiu com a queda do muro de Berlim.Para a direita - cuja "consciencia economical! e hoje 0 neoliberalismo, talcomo no passado foi 0 0 proteccionismo - se ja nao ha 0 perigo do socialismonao e necessario partilhar lucros e ter um Estado que assegure tal partilha.

    As transformacoes do Estado acima referidas sao causa da crise dasocial democracia, mas, por outro lado, alimentam-se dela. A crise e muitocomplexa porque, entretanto, surgiram novos protagonistas e novos interesses(os novos movimentos sociais), alguns deles com capacidade para seorganizarem internacionalmente (par exemplo, 0 movimento ecologista). Poroutro lado, a crise e sempre mais drarnatica nos discursos do que na praticadado 0 travao produzido pelo sistema eleitoal e pela luta democratica. Ha, porenquanto, uma situacao de mercia que torna muito evidente a crise destemodelo sem que, no entanto, se vislumbre uma alternativa.

    Em meu entender, pelo menos na Europa, e preciso regressar as origense verificar que 0 modelo de requlacao social da modernidade nao assenta emdois pilares como hoje se ere - Estado e mercado - mas sim em tres pilares:

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    Estado, mercado e comunidade. A sociedade civil inclui tanto 0 mercado comoa comunidade. Portanto, quando se privatiza ou se desregulamenta umadeterminada area social, nao e obrigat6rio que ela passe a ser regulada pelomercado. Pode passar a ser regulada pela comunidade, 0 chamado terceirosector privado, mas nao sujeito a 16gica do lucro. E ao longo desta opcao quese vai dar a luta social pela reinvencao do Estado-Providencia nos pr6ximosanos. A esquerda e a direita VaGter aqui um campo privilegiado de confronto.

    Como referi acima, 0 modelo social dernocratico s6 foi realizado ate agoranum pequeno numero de paises desenvolvidos.

    Nos palses de desenvolvimento interrnedio como Portugal e Brasil, nuncahouve um pacto social democratico. E, pelo menos, em Portugal, nao temosum Estado-Providencia. Temos 0 que designo por um quasi-Estado-Providencia ou um lumpen-Estado-Providencia.

    Por isso, Portugal encontra-se numa situacao paradoxal: vivemos umacrise do Estado-Providencia sem nunca termos tido um Estado-Providencia.Nao sei se no Brasil sera diferente. As condicoes para a construcao tardia dopacto social dernocratico sao muito complexas e dificeis. 0 caso de Portugal emais complexo dado estar integrado na Uniao Europeia: sera um pais naperiferia da social-democracia ou sera um pais de social democraciaperiferica? A crise vira tao s6 do modele ou tarnbem da sua aplicacaoperiferica? A grande condicionante e 0 padrao de desigualdade social de quese parte. Se esse padrao for de acentuada desigualdade, parece estarinviabilizado qualquer processo social democratizante, tanto mais que este, ater lugar, sera certamente, nas condicoes vigentes, de muito baixa intensidade.

    A luz do que fica dito, parece evidente 0 fracasso da modernidadecapitalista na qestao controlada da desigualdade atraves da inteqracao pelo

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    trabalho assente na politica de pleno emprego e nas pollticas redistributivas doEstado-Providencia. Este fracasso e tanto mais evidente quanto as velhasdesigualdades se juntam outras novas, a que me referirei adiante.

    Do mesmo modo, parece ter fracassado a qestao controlada dosprocessos de exclusao. No Estado moderno domina a ideologia douniversalismo antidiferencialista e nalguns Estados, como, por exemplo, naFranca, ele foi levado ao extremo. A cidadania politica e concebida comojustificando a neqacao dos particularismos, das especificidades culturais, dasnecessidades e das aspiracoes vinculadas a micro-climas culturais, regionais,etnicos, raciais ou religiosos. A qestao da exclusao da-se, pois, por via daassimilacao prosseguida por uma ampla politica cultural orientada para ahomoqeneizacao e a homogeneidade. A homogeneidade comeca desde logona assimilacao linguistica, nao so porque a lingua nacional e , pelo menos, alingua veicular, como tarnbern porque a perda da memoria linguistica acarretaa perda da memoria cultural.

    Oesta politica, a peca central e a escola, 0 sistema educativo nacional,complementado pelas Forcas Armadas atraves do service militar obriqatorio. 0papel central do Estado na construcao deste universalismo antidiferencialistafaz com que a identidade nacional sobrepuje todas as demais identidades. 0Estado disp6e de recursos que tornam esta identidade mais atractiva,suplantando todas as que com ela poderiam competir. As leis de nacionalidadetornadas mais importantes com 0 crescimento dos fluxos rniqratorios,favorecem essa forma de tnteqracao por via da assirnilacao. Em vez do direitoa diferenca, a politica da homogeneidade cultural irnpos 0 direito a indiferenca.As especificidades ou diferencas na execucao das politicas foramdeterminadas exclusivamente por criterios territoriais ou socio-econornicos enunca de outra ordem.

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    Os camponeses, os povos indigenas e os imigrantes estrangeiros foramos grupos sociais mais directamente atingidos pela homoqeneizacao cultural,descaracterizadora das suas diferencas, Para alern deles, outros grupossociais discriminados por via de processos de exclusao, como os loucos, osdelinquentes, as mulheres, os homossexuais, foram objecto de varias politicastodas elas vinculadas ao universalismo antidiferencialista, neste caso sob aforma de normatividades nacionais e abstractas quase sempre traduzidas emlei. A gestao controlada da exclusao inclui, neste caso, diferentes formas desubstituicao da seqreqacao por reinteqracao ou reinsercao social atraves deprogramas de reeducacao, de devolucao a comunidade, de extensao dacidadania, no caso das mulheres, com acesso ao mercado de trabalho.

    Em nenhuma destas politicas se tratou de eliminar a exclusao, mas tao s6de fazer a sua gestao controlada. Tratou-se de diferenciar entre as diferencas,entre as diferentes formas de exclusao, permitindo que algumas delaspassassem por formas de inteqracao subordinada, enquanto outras foramconfirmadas no seu interdito. No caso das exclusoes que foram objecto dereinsercao/assimilacao, significou que os grupos socia is por elas atingidosforam socialmente transferidos do sistema de exclusao para 0 sistema dedesigualdade. Foi 0 caso dos imigrantes e das mulheres. A medida que osdireitos de cidadania foram sendo conferidos as mulheres e elas foramentrando no mercado de trabalho, foram passando do sistema de exclusaopara 0 da desigualdade. Foram integradas pelo trabalho, mas os seus salariescontinuaram ate ao presente a ser inferiores aos dos homens.

    Por outro lado, as politicas de assirnilacao nunca impediram acontinuacao das diferencas culturais religiosas ou outras. Apenas impuseramque elas se manifestassem no espaco privado das familias ou, quando muito,no espaco local do lazer, do folclore, da festa. Necessidades e aspiracoes

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    culturais e emocionais ou comunicativas especfficas, fossem elas religiosas,etnicas, de orientacao sexual, etc., puderam manifestar-se em espacoshfbridos entre 0 espaco privado e 0 espaco publico. Ou seja, 0 universalismoantidiferencialista permite que nas suas margens ou nos seus interstfcios opereo universalismo diferencialista.

    Por ultimo, no que respeita as polfticas de reeducacao e de reinsercaosocial ou de devolucao a comunidade, a qestao de exclusao assentou semprenum juizo de perigosidade, segundo criterios cognitivos e normativospretensamente universais. Os grupos que ficaram alern dos rnaxirnos deperigosidade aceitavel ou toleravel foram segregados, nao em guettos quepodiam arneacar a coesao da comunidade polftica nacional, mas antes eminstituicoes totais reguladas pelo exercfcio total da exclusao.

    As polfticas sociais do Estado-Providencia articularam muitas vezes 0sistema da desigualdade com 0 sistema da exclusao. Por exemplo, aprestacao da sequranca social as famflias pressup6s sempre a famfliabissexual, monoqarnica e legalmente casada, excluindo as famflias de casaismonosexuais, bfgamos ou simplesmente sem base em casamento.

    Pelos tres mecanismos acima identificados - transferencia do sistema deexclusao para 0 sistema de desigualdade, divisao do trabalho social deexclusao entre 0 espaco publico e 0 espaco privado; diferenciacao entrediferentes formas de exclusao segundo a perigosidade e a consequenteestiqrnatizacao e dernonizacao - 0 Estado moderno capitalista, longe deprocurar a eliminacao da exclusao, pois que assenta nela, propoe-se apenasgeri-Ia de modo a que ela se mantenha dentro de nfveis tensionais socialmenteaceitaveis.

    Mas esta polftica e ainda excludente a um nfvel mais profundo. E que 0

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    universalismo antidiferencialista que Ihe subjaz e muito menos universal eantidiferencialista do que a primeira vista pode parecer. E que, no Estadonacional moderno, 0 que passa por universalismo e, de facto, na sua genese,uma especificidade, um particularismo, a diferenca de um grupo social, declasse ou etnico, que consegue impor-se, muitas vezes pela violencia, a outrasdiferencas de outros grupos sociais e, com isso, universalizar-se. A identidadenacional assenta assim na identidade da etnia dominante. As politicasculturais e outras do Estado visam naturalizar essas diferencas enquantouniversalismo e consequentemente transmutar 0 acto de violencia impositivaem principio de legitimidade e de consenso social. A maioria dosnacionalismos e das identidades nacionais do Estado nacional foramconstruidos nessa base e, portanto, com base na supressao de identidadesrivais que nao tiveram recursos para ganhar na luta pelas identificacoesheqernonicas. Quanto mais vincado e este processo, mais distintamenteestamos perante um nacionalismo racializado ou, melhor, perante um racismonacionalizado. Em suma, no Estado moderno capitalista a luta contra aexclusao assenta na afirrnacao do dispositive da exclusao e pressupoe-o. Daantiga conversao as modernas assimiiacao, inteqracao e reinsercao, a reducaoda exciusao assenta na afirmacao da exclusao.

    Tal como acontece com as politicas de qestao controlada dadesigualdade, as polfticas de gestao controlada da exclusao atravessam hojeuma grande crise e as causas de uma e doutra sao, em parte, muitosemelhantes. Foi assim desde os prirnordios das ressocializacoes pelotrabalho nas prisoes de Arnsterdao no sec. XVII, foi assim nas politicas deimiqracao e tarnbem nas politicas da chamada condicao feminina. As politicasde imiqracao sao exemplares a este respeito. Foram sempre determinadas emfuncao da inteqracao pelo trabalho e, portanto, sempre vulneraveis as

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    variacoes do mercado de trabalho. Daqui resultou uma ambiguidade entre aspoliticas de emiqracao e as politicas de nacionalidade, e, portanto, decidadania. Mesmo quando se continuou a acolher os emigrantes, variavam asdisponibilidades para a reuniao de familia, para 0 acesso ao sistema escolarpor parte dos filhos, variaram, acima de tudo, os criterios e as exiqenciasconcretas para atribuicao da nacionalidade. Alias, mesmo descontando asformas extremas da limpeza etnica, as crises do emprego levaram, por vezes,a expulsao dos imigrantes, no melhor dos casos, sob a forma benigna deorganizar 0 seu regresso ao pais de origem. Em segundo lugar, muitas daspoliticas de qestao da exclusao, nomeadamente as da reeducacao, detratamento psiquiatrico e de reinsercao social foram sempre 0 parente pobredas politicas sociais do Estado-Providencia. A crise fiscal deste fez com queestas fossem as primeiras politicas a serem eliminadas.

    Mas a crise da qestao da exclusao tem outras causas que sao pr6priasdeste sistema de pertenca pela rejeicao. A polftica de homogeneidade culturalassentou em grandes instituicoes, nomeadamente a escola, que entretanto foiatingida por bloqueamentos financeiros e outros que levaram a que a oferta decapital escolar ficasse aquem do desenvolvimento exigfvel em face dacrescente rnassificacao da educacao. Por outro lado, em sociedades deconsumo dominadas pela cultura de massas e pela televisao, a escola deixoude ter 0 papel privilegiado que dantes tivera na socializacao das qeracoes maisjovens. Acresce que, devido a intensificacao dos fluxos migrat6rios, associedades nacionais tornaram-se crescentemente multinacionais emulticulturais, 0 que criou novas dificuldades a politica de homogeneidadecultural, tanto mais que muitos dos grupos sociais "diferentes", minorias etnicase outros, cornecararn a ter recursos organizativos suficientemente importantespara colocar na agenda politica as suas necessidades e aspiracoes

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    especfficas. Por ultimo, a qestao controlada da exclusao sempre assentou noprincipio da cidadania, como principio politico de inteqracao nacional. Aeficacia deste princlpio esta estritamente vinculada aos principios derepresentacao e de participacao que fundamentam os regimes dernocraticos.A crise hoje reconhecida destes principios acarreta a relativa irrelevancia dacidadania que, em qualquer caso, ja aponta, na sua versao liberal, para umainteqracao de baixa intensidade, formal e abstacta. 0 esvaziamento politico doconceito de cidadania e sobretudo evidente nos grupos sociais que ocupam osescaloes inferiores do sistema da desigualdade ou 0 lado da rejeicao, nosistema de exclusao. 0 lace nacional que cimenta a obriqacao politica verticaldo cidadao ao Estado e consequentemente fragilizado.

    IV

    A situacao presente e muito complexa em virtude das metamorfoses porque estao a passar, tanto 0 sistema de desigualdade, como 0 sistema deexclusao. Tais metamorfoses sao, em grande medida, produzidas oucondicionadas pela mtensificacao dos processos de qlobalizacao em curso,tanto no dominic da economia como no dominic da cultura.

    Comecei por dizer que, quer 0 sistema de desigualdade, quer 0 sistemade exclusao actuam na modernidade capitalista segundo dois espacos-temposdistintos: 0 nacional e 0 transnacional. E disse tarnbern que em relacao a esteultimo, se 0 eixo Norte/Sui foi construido predominantemente sob a eqide dosistema de desigualdade, 0 eixo Leste/Oeste foi-o predominantemente sob a

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    egide do sistema de exclusao. De facto, tanto 0 Leste como 0 Sui partilharamposicoes de inferioridade, tanto num sistema, como noutro. 0 sistema mundiale a economia mundo modernos foram integrando todas as reqioes do mundonuma so divisao de trabalho e nessa medida 0 sistema de pertenca pelainteqracao subordinada, ou seja, 0 sistema da desigualdade, dominou todo 0espaco nao europeu.

    Pode, no entanto, afirmar-se que a divisao das relacoes imperiais seorganizou desigualmente ao longo dos dois eixos. 0 eixo Norte/Sui envolveuvastas zonas do mundo onde a cultura ocidental se imp6s, quer pela destruicaoinicial de culturas rivais e pelo genocidio dos povos que as protagonizavam,quer pela ocupacao de territories menos densamente povoados. Amodernidade europeia foi al imposta ou adoptada pelos colonos e, mais tarde,pelas independencies proclamadas por eles e pelos seus descendentes.Neste eixo, 0 sistema de exclusao cornecou por dominar e pela forma maisextrema, a do exterminio, das culturas nao europeias.

    Depois do exterminio quase consumado, foi facil segregar em reservas ouassimilar os povos indigenas sobreviventes e iniciar um processo de inteqracaoe, portanto, um sistema de desigualdade, ele proprio tarnbern incluindo formasextremas de desigualdade, como foi a escravatura, uma instituicao socialhibrida, tal como a irniqracao hoje, subsidiaria dos dois sistemas de iniquidade.Isto significa, que no eixo Norte/Sui, 0 interdito cultural da exclusao teve talvezmenos peso que a inteqracac pelo trabalho escravo, colonial e pes-colonial.Depois do exterminio inicial, 0 racismo foi sobretudo de exploracao e, portanto,parte integrante do sistema de desigualdade.

    No eixo Leste/Oeste, ao contrario, a colonizacao europeia foi maisfraqrnentaria e a modernidade capitalista teve mais dificuldade para se impor

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    como paradigma cultural. Penetrou muitas vezes quando Ihe foi dada entradaselectiva, por elites locais modernizadoras, como foi 0 caso do Japao e daTurquia. 0 que significa que a inteqracao no sistema mundial do Lestecoexistiu sempre com uma forte componente de interdicao e de exclusaocultural. Este componente foi sucessivamente alimentado e teve no nossoseculo duas forrnulacoes principais. Por um lado, 0 comunismo sovietico, 0qual, apesar de pertencer plenamente a modernidade ocidental, que naocapitalista, alimentou 0 interdito da exclusao, nomeadamente por via dasreferencias rnlticas ao despotismo oriental. Por outro lado, 0 fundamentalismoislamico, ao qual, desde 1989, esta entregue quase exclusivamente adernonizacao e estiqrnatizacao do Leste .

    Tanto 0 eixo Norte/Sui como 0 eixo Leste/Oeste relevam do espaco-tempo transnacional e e nele que actuam os fen6menos de qlobaiizacao aindaque estes, como veremos, se repercutam tanto no espaco-ternpo nacionalcomo no espaco-ternpo local.

    Na forma que hoje assume, a globaliza9ao da economia assenta numanova divisao internacional do trabalho analisada, pela primeira vez, no inicio dadecada de oitenta, por Froebel, Heinrichs e Kreye e que se caracteriza pelaqlobalizacao da producao conduzida por empresas multinacionais cujaparticipacao no cornercio internacional cresce exponencialmente. A economiaglobal que daqui emerge, tem as seguintes caracterlsticas principais: autilizacao global de todos os factores de producao, incluindo a torca detrabalho; sistemas flexiveis de producao e baixos custos de transporte; umnovo paradigma tecnico-econornico que faz assentar os ganhos deprodutividade em incessantes revolucoes tecnol6gicas; a ernerqencia de blocoscomerciais regionais como a UE, NAFTA ou Mercosul; ascendencia crescentedos mercados e dos services financeiros internacionais; criacao de zonas de

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    processamento para a exportacao, de sistemas bancarios offshore e decidades globais.

    Esta nova economia-mundo duplica-se numa nova economia politica, 0modelo neo-liberal, imposto pelos paises centrais aos palses perifericos esemiperifericos do sistema mundial, fundamentalmente atraves das instituicoesfinanceiras dominadas pelos primeiros, e em que se destacam 0 FundoMonetario Internacional e 0 Banco Mundial. Nos termos desta nova economiapolitica, as economias nacionais devem ser abertas ao cornercio internacionale os precos dornesticos devem conformar-se aos precos de mercadointernacional; as politicas fiscais e rnonetarias devem ser orientadas para 0controle da inflacao e do defice publico e para a estabilidade da balanca depagamentos; os direitos de propriedade devem ser claramente protegidoscontra as nacionaiizacoes; as empresas nacionalizadas devem serprivatizadas; a leqislacao laboral deve ser flexibilizada e, em geral, a requlacaoestatal da economia e do bem estar social deve ser reduzida ao minimo.

    o impacto desta economia politica no sistema de desigualdade edevastador tanto a nivel do espaco tempo global como ao nivel do espacotempo nacional. A nivel muito geral, 0 impacto consiste na metamorfose dosistema de desigualdade em sistema de exclusao. Podemos mesmo afirmarque, neste dominic, a caracteristica central do nosso tempo reside no facto deo sistema de desigualdade se estar a transformar num duplo do sistema deexclusao. Como vimos, 0 sistema de desigualdade assenta num principio depertenca pela inteqracao hierarquizada. Na modernidade capitalista essainteqracao e feita fundamentalmente por via do trabalho. E a inteqracao pelotrabalho que fundamenta as politicas redistributivas atraves do qual se procuraminorar as desigualdades mais chocantes geradas por vulnerabilidades queocorrem quase sempre ligadas ao trabalho (doenca, acidente ou velhice). Ora,

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    no presente, estamos a assistir ao aumento do desemprego estrutural emvirtude de os aumentos de produtividade serem muito superiores ao aumentodo emprego, com a consequencia de 0 crescimento econ6mico ter lugar semcrescimento do emprego.

    A medida que se rarefaz 0 trabalho e mais ainda 0 trabalho segura, ainteqracao garantida por ele torna-se mais e mais precaria. E, nessa medida, 0trabalho passa a definir mais as situacoes de exclusao do que as situacoes dedesigualdades. Acresce que a informalizacao, a seqrnentacao e aprecarizacao ou flexibilizacao da relacao social faz com que 0 trabalho, longede ser uma garantia contra a vulnerabilidade social, torna-se ele pr6prio aexpressao dessa vulnerabilidade. A precaridade do emprego e do trabalhofazem com que os direitos do trabalho, os direitos econ6micos e sociais,decorrentes da relacao salarial e sede das politicas redistributivas do Estado-Providencia, se transformem numa miragem. 0 trabalho perde eficacia comomecanismo de inteqracao num sistema de desigualdade para passar a ser ummecanismo de reinsercao, num sistema de exclusao. Deixa de tervirtualidades para gerar redistribuicao e passa a ser uma forma precaria dereinsercao sempre a beira de deslizar para formas ainda mais gravosas deexclusao. De mecanismo de pertenca pela inteqracao passa a mecanismo depertenca pela exclusao.

    Esta transformacao do trabalho esta a ocorrer um pouco por toda a parteainda que em diferentes graus e com diferentes consequencias. A resolucaotecnol6gica esta a criar uma nova e rigida seqrnentacao dos mercados detrabalho a nivel mundial, entre uma pequena fraccao de empregos altamentequalificados e bem remunerados e com alguma sequranca, e a esmagadoramaioria dos empregos pouco qualificados, mal remunerados e sem qualquersequranca ou direitos. Neste pracesso, muitas qualificacoes, aptidoes e quase

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    todas as carreiras desaparecem e com elas sao lancados na inutilidade socialgrupos significativos de trabalhadores e os saberes de que eles saopossuidores. Incapazes de reentrar no mercado do emprego, saem de um jacruel sistema de desigualdade para entrarem no sistema de exclusao quicamais cruel. Alias, a qualificacao profissional em mercados de trabalhoglobalizados mas segmentados deixa de ser ela mesma garantia do nivel derendimento e fonte de sequranca. Tecnicos de computacao com as mesmasqualificacoes ganham na Asia menos de 1/3 do que ganham os seus similaresna Europa. E por isso que grandes empresas, como por exemplo, a Lufthansa,transferem para a Asia todo 0 seu service de contabilidade. A inutilidade socialde grandes camadas de trabalhadores e sem duvida a nova face da exclusao,um interdito que nao assenta numa partilha cultural ou civilizacional a maneirade Foucault, a qual se mede pela distancia e pela essencializacao do outre,mas antes um interdito que assenta numa partilha s6cio-econ6mica quasenatural que se mede pela proximidade e pela desessencializacao do outre, namedida em que pode acontecer a qualquer um.

    Esta metamorfose do sistema de desigualdade em sistema de exclusaoocorre tanto a nivel nacional como a nivel global. A nivel global, 0 eixoNorte/Sui tem vindo a agravar a sua iniquidade quaisquer que sejam osindicadores utilizados para medir as assimetrias. A Africa esta hoje maisintegrada na economia mundial do que em 1945, mas nessa altura eraautosuficiente em produtos alimentares enquanto hoje esta prostrada pelafome e pela rniseria e destruida pela guerra civil e interetnica. Ou seja, a Africade hoje pertence a economia mundial pelo modo como esta excluida.

    A nivel nacional, a exclusao e tanto mais seria quanto ate agora nao seinventou nenhum substituto para a inteqracao pelo trabalho. Perante ela, 0Estado-Providencia, em profunda crise, esta desarmado dado que a sua

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    actuacao pressup6e a existencia de uma relacao salarial segura e estavelmesmo quando se trata de produzir assistencialismo para os que estaodesprovidos temporaria ou permanentemente dela. Os sindicatos fortementevinculados ao Estado-Providencia sofrem 0 mesmo desarme, tanto mais queforam criados para organizar os trabalhadores e nao para organizarem osdesempregados. Esta rarefacao da proteccao institucional e outro sintoma decomo 0 trabalho esta a metamorfosear-se de um mecanisme de inteqracao emmecanisme de exclusao. E , tarnbern, por isso que se comecarn a detectar nomundo do trabalho formas de darwinismo social e de eugenismo tecnoloqicotipicas dos sistemas de exclusao. Ao velho racismo da superioridade da racaariana, junta-se 0 novo racismo da superioridade da raca tecnoloqica. Se everdade que esta estiqrnatizacao e dernonizacao da raca inferior,tecnologicamente atrasada, nao surge, como disse, assente em categoriasessencialistas, na medida em que 0 outro pode ser cada um de nos, a verdadee que a probabilidade de que tal ocorra nao esta igualmente distribuida entreas varias sociedades que comp6em 0 sistema mundial ou, no interior damesma sociedade, entre as diferentes classes, regi6es, grupos etarios ougrupos de capital escolar, cultural ou sirnbolico. Dessa desigualdade dasdistribuicoes, sedimentadas pelas praticas reiteradas da economia, emerge umnovo tipo de essencialismo, um racismo anti-racista e pro-tecnoloqico.

    Este essencialismo, em vez de criar a possibilidade de orqanizacaocolectiva, contra-heqernonica, como foi tipico dos movimentos de negros, dospovos indigenas ou feminista, traduz-se num individualismo extremo, oposto doindividualismo possessive, um individualismo de despossessao, uma formainabalavel de destituicao e de solidao. A erosao da proteccao institucional,sendo uma causa, e tarnbem um efeito do novo darwinismo social. Osindividuos sao convocados a serem responsaveis pelo seu destine, pela sua

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    sobrevivencia e pela sua sequranca, gestores individuais das suas traject6riassociais sem dependencies nem pianos predeterminados. No entanto, estaresponsabilizacao ocorre de par com a elirninacao das condicoes que apoderiam transformar em energia de realizacao pessoal. 0 indivlduo echamado a ser 0 senhor do seu destino quando tudo parece estar fora do seucontrole. A sua responsabilizacao e a sua alienacao: alienacao que, aocontrario da alienacao marxista, nao resulta da exploracao do trabalhoassalariado mas da ausencia dela. Esta responsabilidade individual pelatraject6ria social e uma culpa por um passado que verdadeiramente s6 existe aluz de um presente sobre 0 qual 0 individuo nao tem qualquer contrale. Asolidao que daqui resulta faz com que 0 interesse individual, qualquer que eleseja, nao pareca susceptivel de se poder congregar e organizar na sociedadecapitalista e de poder reivindicar segundo as vias polfticas e organizacionaispr6prias deste tipo de sociedade.

    As metamorfoses, por que estao a passar tanto 0 sistema dedesigualdade como 0 sistema de exclusao, sao mais complexas do que 0 queresulta da analise precedente. E que se 0 sistema de desigualdade estatransformar-se, em parte, num sistema de exclusao, este ultimo parece estar atransformar-se em sistema de desigualdade. Se, por um lado, se aprofundamas exclusoes, como e visivel na nova onda de racismo e de xenofobia queatravessa a Europa, por outro lado, alguns grupos ou categorias sociaispassam do sistema de exclusao para 0 sistema de desigualdade. Aetnicizacao da forca de trabalho como forma de a desvalorizar e um exemplodesta metamorfose. Ela ocorre mesmo no seio de blocos regionais como, porexemplo, no NAFTA. Outre exemplo e 0 dos povos indigenas que constituempor assim dizer 0 tipo ideal do sistema de exclusao que subjaz a modernidadecapitalista e que, por via de um fen6meno que referirei a seguir, - a

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    biodiversidade e a biotecnologia - estao a transitar, ate certo ponto, dosistema de exclusao para 0 sistema de desigualdade.

    A qlobalizacao da cultura, tal como a qlobalizacao da economia, e umprocesso muito desigual e contradit6rio. As metamorfoses que a qlobalizacacda cultura esta a operar nos sistemas de desigualdade e de exclusao saoparcialmente distintas das produzidas pela qlobalizacao da economia.Enquanto nesta, como vimos, domina a metamorfose do sistema dedesigualdade em sistema de exclusao, no caso da qlobalizacao da culturadomina a metamorfose do sistema de exclusao em sistema de desigualdade.A qlobalizacao dos mass media, da cultura de massas, da iconografia norteamericana e da ideologia do consumismo, neutralizam as culturas locais,descontextualizam-nas e assimilam-nas sempre que Ihes reconhecem algumvalor de troca no mercado global das industrias culturais.

    Esta descontextualizacao opera por duas formas aparentementecontradit6rias. Por um lado, pela desarticulacao descaracterizadora e comvista a seleccionar as caracteristicas que permitem interfaces produtivas com acultura hegem6nica, um processo que tem a sua versao extrema napublicidade. Por outro lado, pela acentuacao excess iva da sua integridade, istoe, pela sua vernaculizacao como valor acrescentado na sua inteqracao noscircuitos culturais globais, um processo que tem a sua versao extrema naindustria do turismo global. Por esta via, muitas das culturas nao norte-atlanticas que, sobretudo a partir do sec. XIX, foram objecto de racismo culturalque aprofundou 0 sistema de exclusao, sao hoje recuperadas, quer por via dadescaracterizacao, quer par via da vernaculizacao, enquanto suportes deglobaliza9ao das culturas hegem6nicas. Esta recuperacao implica umainteqracao subordinada, uma valorizacao que, tal como a da forca de trabalho,e parte integrante de um projecto imperial, neste caso de imperialismo cultural.

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    Nesta medida, podemos falar de uma metamorfose do sistema de exclusao emsistema de desigualdade.

    Esta metamorfose e bem visivel mas nao deve fazer-nos perder de vista 0que fica fora dela, ou seja, todas as culturas que nao sao valorlzaveis nomercado cultural global ou porque nao se deixam apropriar ou porque a suaapropriacao nao suscita interesse. Estas culturas outras sao votadas a umaforma tao radical de exclusao quanto 0 exterminio, sao apagadas da memoriacultural heqernonica. sao esquecidas ou ignoradas, ou, quando muito,subsistem pela caricatura que delas faz a cultura heqernonica. Ignoradas outrivializadas, nao tern sequer virtualidades para serem estigmatizadas oudemonizadas. Em qualquer caso, sao vitimas de epistemicfdio. Nas condicoesda qlobalizacao da cultura a hornoqeneizacao cultural opera tanto pelarecuperacao descontextualizadora como pela elirninacao cognitiva.

    As metamorfoses por que estao a passar os sistemas de desigualdade ede exclusao sob 0 impacto dos processos de globalizagao, tanto econ6mica,como cultural sao talvez ainda mais evidentes a luz de novos fenornenos depertenca subordinada em que se misturam cada vez mais intrincadamente apertenca pela inteqracao e a pertenca pela exclusao com repercussoessignificativas na cornposicao social dos grupos sociais neles envolvidos e naslutas socia is que eles protagonizam. A titulo de exemplo, referirei tres dessesfenomenos: a luta pela biodiversidade, 0 espaco electronico e as novasdesigualdades entre cidades.

    A biodiversidade e a blotecnotoqte

    Calcula-se que mais de 90% da diversidade bioloqica que subsiste no

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    planeta se encontra nas regi6es tropicais e subtropicais da Africa, da Asia e daAmerica do SuI. 0 papel singular que os povos indigenas desempenham nestedominio nao se limita a conservacao da diversidade bioloqica da terra, 0 que jaseria bastante. Para alern disso, os seus conhecimentos estao na base demuitos dos nossos alimentos e medicamentos. Calcula-se que 80% dapopulacao mundial continua a depender de conhecimentos indigenas parasatisfazer as suas necessidades rnedicas, Oas especies vegetais do mundo -35 000 das quais, pelo menos, tem valor medicinal - mais de dois tercos saooriginais dos paises perifericos e serniperifericos. Mais de 7 000 preparadosmedicinais utilizados pela medicina ocidental sao derivados de plantas. E facil,pois, concluir que, ao longo do ultimo seculo, sobretudo as comunidadesindigenas tern contribuido significativamente para a agricultura industrial, paraa industria farmaceutica e, por ultimo, para a industria biotecnoloqica.

    Esta ultima, e as novas biotecnologias em que se baseia, tern na ultimadecada produzido uma alteracao qualitativa neste dominio. Os avances namicroelectronica tornam possivel as empresas detectar muito maisrapidamente que antes a utilidade das plantas, pelo que a prospeccaobioloqica se tornou muito mais rentavel. Paralelamente, a separacao entrealimentos e medicamentos desaparece, dando origem a uma nova gama deprodutos designados por produtos nutraceuticos. Por outro lado, nos solos dosterritories indigenas encontram-se organismos bacterianos e fungos quecontribuem para a fabricacao de testosterona, antirnicoticos, antibioticos,antidepressivos, etc. Em resultado, as grandes empresas multinacionaisfarmaceuticas, alimentares e biotecnoloqicas tern vindo, sobretudo na ultimadecada, a apropriar-se das plantas e dos conhecimentos indigenas comnenhuma ou minima contrapartida para os povos autoctones, processandodepois essas substancias e patentando os processos e, portanto, os produtos

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    que a partir delas lancarn no mercado.

    As consequencias desta autentica pilhagem sao avassaladoras. Emprimeiro lugar, ja hoje as comunidades indigenas nao controlam 0 materialqenetico que necessitam para a sua sobrevivencia. Muito desse materialqenetico esta ja armazenado nos paises centrais sob 0 controle de cientistascentrais. Quase 70% de todas as sementes colectadas nos paises perifericose serniperifericos estao armazenadas nos paises centrais ou em centrosinternacionais de investiqacao agricola. Em segundo lugar, a proteccao dapropriedade industrial, intensificada depois do Uruguai Round, protege 0conhecimento produzido pelas empresas multinacionais, mas deixa semqualquer proteccao 0 conhecimento indigena a partir do qual e obtido 0conhecimento cientifico. As solicitacoes de patentes da biodiversidademultiplicam-se cada dia e, em breve, os camponeses dos paises do Sui teraode pagar patentes por produtos que originariamente foram seus.

    o imperialismo bioloqico e, sem duvida, uma das formas mais insidiosas emais recentes do sistema de desigualdade que funda 0 eixo Norte/SuI.Assenta numa luta desigual entre diferentes epistemologias, entre 0conhecimento cientifico, heqernonico das empresas multinacionais e 0conhecimento tradicional cooperative dos povos indigenas. A metamorfose,que por via dela se da entre 0 sistema de desigualdade e 0 sistema deexclusao, consiste, neste caso, na transformacao do sistema de exclusao emsistema de desigualdade. De facto, os povos indigenas representam a versaooriginal do sistema de exclusao da modernidade capitalista e, certamente, umadas versoes mais extremas, 0 genocidio. A revolucao biotecnoloqica e aengenharia genetica tern vindo a conferir aos recursos bioloqicos dos povosindigenas um valor estrateqico cada vez maior e um potencial de valorizacaocapitalista quase infinito. Por esta via, os territorios e os conhecimentos

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    indigenas vao sendo integrados no processo de acurnulacao capitalista aescala mundial e nessa medida transitam de um sistema de pertencasubordinada pela exclusao, para um sistema de pertenca subordinada pelainteqracao. Nao se trata, tanto da inteqracao pelo trabalho, como dainteqracao pelo conhecimento, cuja subordinacao reside em nao serreconhecido como tal e tao so como materia prima para 0 exercicio doconhecimento heqemonico, 0 conhecimento cientlfico.

    o espat;o e/ectr6nico

    o espaco electronico ou ciberspaco e 0 novo espaco-ternpo dacomunicacao e da informacao, tornado possivel pela revolucao tecnoloqica darnicroelectronica e da telematica, um espaco-ternpo virtual de ambito global eduracao instantanea. E 0 espaco-tempo do hipertexto, do correia electrcnico,da Internet, do video e da realidade virtual. Ao contrario da biodiversidade e dabiotecnologia, cuja novidade esta no modo como mobiliza recursos naturaismultimilenares e conhecimentos ancestrais, 0 ciberespaco e umahipernovidade, um futuro que se alimenta do futuro. Tarnbem em contrastecom a biodiversidade e a biotecnologia, cuja constituicao actual nao e pensavelfora dos sistemas de desigualdade e de exclusao, 0 ciberespaco apresenta-secomo um espaco anarquico, de livre acesso, descentralizado, nao hierarqulco,local mente controlado em que a igualdade e a identidade parecem coexistirsem atritos. Segundo alguns, este e 0 espaco-ternpo da cidade sem muralhas,da rede que articula horizontalmente os indivlduos e os grupos sociais, 0espaco do nomadismo infinito sem mudar de endereco, enfim, 0 espaco dacidade pos-moderna, a redopolls que sucede a metropole, a cidade moderna[Taylor e Saarimen].

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    Em face disto, pode perguntar-se porque considerar 0 espaco electr6nicocomo 0 avatar de uma nova metamorfose do sistema da desigualdade e dosistema da exclusao. A questao esta em saber se a red6polis e uma cidadesem muralhas ou uma cidade em que as muralhas assumem novas formas,uma questao para a qual nao ha neste momenta resposta definitiva. Eevidente que 0 espaco electr6nico e hoje um espaco aberto e anarquico eviajar na Internet parece ser possivel com grande acessibilidade e liberdade.Se e verdade que os sistemas de desigualdade e de exclusao pressupoem aexistencia de um poder centralizado, nao se vislumbra a existencia de tal poderno espaco electr6nico.

    Contudo, talvez isto nao seja tudo. Antes de mais, nao e indiferente quesejam os sectores econ6micos de ponta, a producao de services complexos, ede mercadorias organizacionais, os grandes utilizadores do espaco electr6nico.Tal como aconteceu noutras areas das telecomunicacoes, eles tern poder paraproduzir, num espaco aparentemente anarquico, estratificacoes segundo aenvergadura do utilizador. E, de facto, corneca ja a desenhar-se 0 sistema dedesigualdade e de exclusao que vira possivelmente a caracterizar 0 espacoelectr6nico.

    Em primeiro lugar, no que respeita ao acesso ao espaco electr6nico, e jaclaro que as autoestradas da informacao nao vao servir por igual todos ospaises, todas as cidades, todas as reqioes, todos os grupos sociais queconstituem a sociedade civil global. Tarnbern aqui, e tal como sucedeu com asociedade civil nacional, corneca a desenhar-se uma distincao entre asociedade civil intima, que sera abundantemente servida pelas autoestradas dainformacao, e uma sociedade civil estranha, que ficara fora delas. Estasociedade civil estranha sera constituida por uma subclasse tecnol6gica. Estasubclasse sera excluida do acesso e de tudo 0 que ele torna possivel.

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    Social mente essa subclasse e constituida por muitos dos grupos socia is quehoje ocupam posicoes subordinadas no sistema de desigualdade, quer a nivelnacional, quer a nivel transnacional (0 eixo Norte/Sui). A ernerqencia dociberespaco fara com que, para algumas das dimensoes da sua reproducaosocial, esses grupos socia is subordinados transitem do sistema dedesigualdade para 0 sistema de exclusao.

    Em segundo lugar, para alern do acesso ao espaco electr6nico, ha quequestionar 0 acesso dentro do espaco electr6nico. E tambern aqui hadiferenclacoes e estratificacoes iminentes. o caracter democratico datransrnissao de texto pode vir a coexistir com a transrnissao de voz e imagem,muito menos acessivel, mas muito mais lucrativa, onde eventualmente se viraoa concentrar os investimentos e os avances tecnol6gicos. Uma estrutura deinvestimentos prolongadamente desequilibrada redundara por certo em novasestratificacoes e desigualdades.

    o que e fascinante, neste momento, a respeito do espaco electr6nico, eque e um espaco contestado, um espaco onde os centros de poder ja secornecam a desenhar, mas onde ainda e muito grande a capacidade desubversao das margens. Nesta medida, 0 espaco electr6nico, tanto pode vir aoriginar um novo sistema de desigualdade e de exclusao, como pode vir aconstituir-se num espaco publico de oposicao bem ilustrado pelo frequenterecurso a Internet por parte do Exercito Zapatista de Libertacao Nacional dosChiapas, 0 mais recente dos quais foi 0 referendo sobre 0 futuro politico domovimento. E e mesmo bem possivel que as duas funcoes, de producao dedesigualdade e de exclusao, por um lado, e de subversao oposicional, poroutro, possam, durante algum tempo, coexistir.

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    As novas desigua/dades entre cidades

    A metamorfose entre sistema de desigualdade e de exclusao, que podeestar a ocorrer neste dominio, tem mais a ver com 0 espaco electronico do quea primeira vista pode parecer. Num estudo recente sobre 0 impacto urbano daqlobalizacao da economia, Saskia Sassen argumenta que a ernerqencia decidades globais e um dos tres lugares estrateqicos em que se apoia aqlobalizacao da economia, sendo os outros dois as zonas de processamentopara exportacao e as zonas da banca offshore. As cidades globais sao, entreoutras, Nova lorque, Toquio, Londres, Sao Paulo, Hong Kong, Toronto, Miami,Sydney.

    As cidades globais sao os lugares estrateqicos onde se concentram tantoos services complexos e especializados, como as telecornunicacoesnecessarias a qestao global da economia [Sassen, 19]. E tambern nelas quetendem a concentrar-se as sedes das grandes empresas multinacionais. Saocidades que acolhem as industrias de ponta, de instrumentos financeiros e deservices especializados e onde as empresas e os governos compram uns eoutros. Por esta via, as cidades globais constituem um novo sistema urbanoconstituido a escala global, nodules cruciais da coordenacao internacional dasempresas, dos mercados e dos proprios estados. Uma das caracteristicasdestas cidades e a concentracao nelas de grandes utilizacoes do espacoelectronlco. Assim, se, por um lado, 0 espaco electronico pode vir a conduzir aemerqencia das redopolis, por enquanto parece estar, acima de tudo, aconduzir a constituicao de meqametropoles, as cidades globais.

    Acontece, porern, que estas cidades sao em numero muito reduzido e,sendo assim, e legitimo perguntar pelo que acontece, num periodo deernerqencia de uma minoria de cidades globais, a grande maioria das cidades

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    que se nao globalizam. Segundo Sassen [52], a ernerqencia de cidadesglobais cria uma enorme seqrnentacao entre as cidades de um dado pals. Porum lado, os recursos e os investimentos tendem a concentrar-seexageradamente nas cidades globais, condenando as restantes cidades arnarqinalizacao e a dependencia funcional. Por outre lado, as cidades globaisintegram-se privilegiadamente no sistema urbano transnacional, 0 qual Ihesdefine as hierarquias relevantes e a loqica de desenvolvimento.Correspondentemente desintegram-se do seu hinterland e das demais cidadesque comp6em os sistemas urbanos nacionais. Por estas duas vias, as cidadesnao globalizadas transitam de uma posicao de inteqracao subordinada nosistema urbano nacional para uma posicao de exclusao no sistema urbanotransnacional.

    Qualquer destes fenomenos, e cada um a sua maneira, revela osprocessos de transite e de metamorfose reciproca entre os sistemas dedesigualdade e 0 sistema de exclusao. E a sua analise conjunta permite-nostirar algumas conclusoes sobre a situacao presente em cada um destessistemas e nas relacoes entre eles.

    A primeira conclusao e que os novos fenornenos dedesigualdade/exclusao tern uma forte vinculacao ao conhecimento e atecnologia. Sao cristalizacoes provisorias de lutas sociais, econornicas eculturais a volta de conhecimentos e de tecnologias rivais. Os conhecimentose as tecnologias que saem vencedoras dessas lutas tern um efeito devastadorsobre os demais e, consequentemente, sobre os grupos sociais que sodisp6em deles. 0 conhecimento e a tecnologia vencedores nao suportampartilhar 0 campo episternoloqico com os vencidos e e por isto que a estes naoe dada a possibilidade de uma inteqracao subordinada num sistema dedesigualdade. Ao contrario, transitam para 0 sistema de exclusao, sendo

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    excluidos pelo epistemicidio em suas multiplas versoes: exterrninio, expulsao,esquecimento ou sobrevivencia enquanto folclore ou atraccao turistica.

    Em segundo lugar, as transforrnacoes em curso ocorrem globalmente naono sentido de ocorrerem em todos os lugares do mundo, mas antes no sentidode, onde ocorrem - e ocorrem sempre localmente - ocorrerem por via deprocessos cujo ambito e global. Relacionada com esta, a terceira conclusao eque tais transforrnacoes nos sistemas de desigualdade e de exclusao saomenos estatocentricas do que as do periodo anterior. E porque 0 Estado temsido sempre 0 grande gestor das desigualdades e das exclusoes, 0 controle deumas e de outras e menos visivel se e que existe de todo. De algum modo,podemos dizer que esta fragilizada, se nao mesmo neutralizada, a ideia deqestao controlada. No dominic do sistema da desigualdade, os limites, mastarnbem as virtualidades, do Estado-Providencia sao agora, que a sua criseparece irreversivel, mais evidentes. E certo que a sequranca e a redestribuicaominima asseguradas pelo Estado-Providencia sao obtidas a custa dadependencia dos cidadaos convertidos em clientes de rnaquinas burocraticasmuito pesadas, uma dependencia descaracterizadora e, afinal, inferiorizadorana medida em que e indiferente as necessidades e as aspiracoes especificasdos diferentes grupos de cidadaos. Ao contrario, os promotores dodesmantelamento do Estado-Providencia conclamam os cidadaos aautonomia, a mdependencia e a responsabilizacao pessoal pela posicao quese ocupa no sistema da desigualdade, mas fazem-no descurando a sequrancae a estabilidade minimas que criam as condicoes que tornam possivel 0exercicio efectivo da responsabilizacao. As desigualdades agravam-se ealgumas de tal modo que a possibilidade de inteqracao deixa de existirtransmutando-se assim em exclusao.

    Por sua vez, 0 sistema de exclusao parece muito mais subordinado que

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    antes as exiqencias da acurnulacao capitalista, e de tal maneira que asespecificidades civilizacionais, culturais, etnicas ou religiosas sao accionadasna medida da sua conqruencia com as exiqencias da valorizacao das industriasculturais e outras afins. A hornoqeneizacao cultural, na medida em que etentada, quer por via da assirnilacao, quer por via do esquecimento dasdiferencas inaproprtaveis nao e levada a cabo pelo Estado, e antes surge comoproduto autornatico de processos de hibridizacao cultural em curso na aldeiaglobal. Enquanto as politicas culturais do Estado estavam ao service dosprojectos nacionais e, por vezes, nacionalistas da coesao da comunidadepolitica da nacao, a politica cultural de hoje, se de tal se pode falar, nao e maisque um sumario autornatico dos processos de globalizac;ao e de localizacaocultural que estao ocorrendo como parte dos processos de valorizacaoindustrial-cultural. Enquanto no periodo anterior a descaracterizacao culturalou etnica, mesmo que sempre combinada com seqreqacao, expulsao e, asvezes, exterminio, estava ao service de um projecto politico recaracterizador -a construcao ou a consolidacao da nacao - hoje em dia a descaracterlzacao,tal como a vemaculizacao e 0 esquecimento, nao parecem estar ao service deum projecto politico identificado. Em suma, a politica destas transforrnacoesparece ser a despolitizacao sob a forma da ideologia consumo ou doespectaculo mediatico.

    Uma quarta conclusao e que, quer 0 sistema da desigualdade, quer 0sistema da exclusao parecem ser hoje menos essencialistas. As escalas dahierarquizacao sao talvez hoje mais rigidas do que nunca, mas a distribuicaodos grupos sociais ou das reqioes no seu interior e menos estavel que antes ee por isso menos previsivel e menos controlavel preventivamente. Econsequentemente e mais dificil lutar centre ela. Funciona menos pel acateqorizacao essencialista do outro do que pela posicao que este ocupa numa

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    rede de relacoes que circunstancialmente reclamam, ora a sua inteqracaosubordinada, ora a sua exclusao. Esta des-essencializacao e sobretudo visivelno sistema de exclusao, 0 qual foi tradicionalmente 0 mais rigido.Parafraseando Ernst Gellner, podemos dizer que na modernidade capitalista, 0sistema de exclusao foi sempre a jaula de ferro, enquanto 0 sistema dedesigualdade foi a jaula de borracha. Hoje, ambos parecem ter a flexibilidadede jaula de borracha e, se alguma diferenca ha entre eles, vai no sentidoinverso daquela que os separou anteriormente. Ou seja, 0 sistema dedesigualdade esta hoje mais pr6ximo da jaula de ferro, enquanto 0 sistema deexclusao esta mais perto da jaula de borracha.

    v

    Perante isto, que fazer?

    Os sistemas de desigualdade e de exclusao nao sao 0 deus ex-machinada modernidade capitalista. A sua constituicao, a sua consolidacao e as suasmetamorfoses ocorrem num campo de relacoes socia is conflituais, ondeintervern grupos socia is constituidos em funcao da classe, do sexo, da raca, daetnia, da reliqiao, da reqiao, da cidade, da lingua, do capital escolar, cultural ousimb61ico, do grau de desvio face a criterios hegem6nicos de normalidade e delegalidade, etc. Cada um destes factores tem tido uma eficacia discriminadorana hierarquia da pertenca em qualquer dos sistemas. Nao e possivel emabstracto determinar 0 grau dessa eficacia, nao s6 porque ela varia segundo 0tempo hist6rico ou a sociedade, como porque os diferentes factores dediscrirninacao actuam quase sempre em conjuncao uns com os outros. Pode

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    dizer-se, no entanto, que no sistema da desigualdade 0 factor classe tem tidoum papel preponderante e continua a te-lo ainda que crescentemente a suaeficacia discriminadora dependa de outros factores nomeadamente da raca, daetnia e do sexo. Pelo contrario, no sistema de exclusao tern preponderadoestes e outros factores de discrirninacao cabendo a c1asse uma eficaciaapenas complementar, potenciadora ou atenuadora da discriminacaoconstitufda pelos outros factores.

    A qestao controlada das desigualdades e da exclusao nao foi, emnenhum momento, uma iniciativa ou uma concessao aut6noma do Estadocapitalista. Foi antes 0 produto de lutas sociais que impuseram ao Estadopoliticas redistributivas e formas menos extremas de exclusao. E, do mesmomodo, a crise actual desta qestao controlada, protagonizada pelo Estadonacional, que acima analisei, bem como as novas formas e metamorfoses dosistema de desigualdade e do sistema de exclusao sao produtos de lutassocia is, tal como 0 serao as possiveis evolucoes futuras da situacao em quenos encontramos.

    Enunciarei a seguir as principais dificuldades com que nos defrontamosperante a acrescida virulencia discriminat6ria dos sistemas de desigualdade ede exclusao, indicando algumas pistas para a sua superacao.

    A articu/a~ao entre politicas de igua/dade epoliticas de identidade

    A primeira dificuldade diz respeito a articulacao entre polfticas deigualdade e polfticas de identidade. A crise de qestao controlada dos sistemasde desigualdade e de exclusao na modernidade capitalista tem, pelo menos, 0rnerito de mostrar que 0 universalismo antidiferencialista que subjaz a tal

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    qestao, alern de nao ser qenulno, reduziu a um simplismo intoleravel ascomplexas relacoes entre igualdade e identidade, entre desigualdade ediferenca, Vimos acima que, quer as politicas redistributivas do Estado-Providencia, quer as politicas assirnilacionistas da hornoqeneizacao culturalpartiram de uma dada norma de sociabilidade e de um dado campo derepresentacoes culturais que transformaram em universais, subordinando auma e outras todas as normas e representacoes que com elas discrepassem.Tal suborndinacao, alern de falhar no seu objective iqualitario, teve um efeitodescaracterizador e desqualificador sobre todas as diferencas culturais,etnicas, raciais, sexuais sobre as quais se sustentava, pela neqacao, a mega-identidade nacional sancionada pelo Estado.

    Perante isto, ha que buscar uma nova articulacao entre politicas deigualdade e politicas de identidade. Antes de mais, ha que reconhecer quenem toda a diferenca e inferiorizadora. E, por isso, a politica de igualdade naotem de se reduzir a uma norma identitaria (mica. Pelo contrario, sempre queestamos perante diferencas nao inferiorizadoras, a politica de igualdade que asdesconhece ou descaracteriza, converte-se contraditoriamente numa politicade desigualdade. Uma politica de igualdade que nega as diferencas naoinferiorizadoras e , de facto, uma politica racista. Como vimos, 0 racismo, tantose afirma pela absolutizacao das diferencas como pela neqacao absoluta dasdiferencas. Sempre que estamos perante diferencas nao inferiorizadoras, umapolitica de igualdade genuina e a que permite a articulacao horizontal entreidentidades discrepantes e entre as diferencas em que elas assentam.

    Dai, 0 novo imperativo categ6rico que, em meu entender, deve presidir auma articulacao p6s-moderna e multicultural das politicas de igualdade e deidentidade: temos 0 direito a ser iguais sempre que a diferenca nos inferioriza;temos 0 direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza.

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    A realizacao deste imperativo tem de superar rnultiplos e diffceisobstaculos. Em primeiro lugar, 0 peso da norrnalizacao antidiferencialista e taogrande na modernidade capitalista que a afirmacao da diferenca redundaquase sempre em reconhecimento de desigualdade e, nesta medida, aarticulacao horizontal entre as diferencas tende a deslizar para uma articulacaovertical. Este deslize esta relacionad