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MARINO LUS MICHILIN GODOY
O ESPIRITISMO EM PONTA GROSSA PR: PERSPECTIVAS DE UM ESPAO DO ALM E PARA UM ALM DO ESPAO
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Geografia, Curso de Ps-Graduao em Geografia, Setor de Cincias da Terra, Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Wolf-Dietrich Sahr
CURITIBA 2007
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Dedico este trabalho aos meus avs, pela guarda e carinho de todos estes dias e
aos meus pais, pela inspirao e amor a cada momento desta jornada.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao professor Wolf-Dietrich Sahr, pela ateno e disposio
concedidas ao longo deste estudo como orientador e aos professores Sylvio F. Gil
Filho, Srgio L. Gadine e Edson A. Silva pelas construtivas contribuies para a
pesquisa; aos integrantes do Centro Esprita Andr Luiz, da Escola de Guardas
Mirins Ten. Antnio Joo e do Instituto Educacional Duque de Caxias, pela acolhida
e auxlio na realizao deste trabalho, em especial ao Cel. Luiz Carlos de Carvalho e
sua esposa La Mrcia M. de Carvalho, Pedro Campos e ao senhor Barros.
Agradeo ainda a Gilson S. da Rocha, Paulo e Paulinho, pela pacincia e solicitude
em explicar os fundamentos da Doutrina Esprita. Tambm agradeo a todos
aqueles que, de algum modo ou de outro, participaram e auxiliaram nesta importante
etapa de aprendizagem.
Agradeo a 2 Unio Regional Esprita, na pessoa de Eulcia Martins de
Resende, pela cortesia e documentos disponibilizados.
Agradeo, sobretudo, aos meus avs e aos meus pais por todo o afeto que
me concederam e o entusiasmo que me despertaram. Aos meus queridos amigos,
Paula Mariele e Wanderley, pela dedicao de uma verdadeira amizade. E sou
agradecido de corao a minha bela adorada, Simone vila, que jamais me deixou
s nessa difcil senda.
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I heard about a man, walkin' on the water He had hope in his eyes He didn't wear a crown or have any money He didn't have any lies He had holes in his pockets He had holes in his hands He looked like an outlaw talkin' to his lover He was a spiritual man
(Toto)
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RESUMO
O Espiritismo um movimento social e religioso de destaque no espao brasileiro. Porm, poucos estudos, sobretudo por parte da Geografia, o evidenciam neste contexto. Portanto, o presente trabalho intenta avaliar a relevncia do Espiritismo como uma manifestao da vida urbana de Ponta Grossa - PR. O arcabouo terico-prtico da Doutrina Esprita sustenta-se em trs pilares de complexa conciliao, da religiosidade, da filosofia e de uma suposta cincia, deste modo, abrange uma percepo do mundo alm de uma simples religio e de uma interpretao meramente cientfica. Para tanto, consideram-se trs instncias de anlise principais com fins de se compreender o espao do fenmeno esprita, a entender: a Espacialidade Narrativa, a qual busca compreender as relaes estabelecidas entre o plano terreno e o espiritual, esta uma concepo geogrfica da prpria doutrina; a Espacialidade Prtica, evidenciando as prticas e relaes estabelecidas entre seus adeptos em diferentes lugares, esta uma concepo da geografia social; e a Espacialidade Institucional, que visa explicitar a geograficidade da organizao esprita e entender a lgica de sua estrutura e distribuio, esta parte da geografia poltica. A maioria das religies caracteriza-se por um forte simbolismo, que separa semioticamente os espaos narrativos da vida cotidiana dos adeptos, uma intensa ritualizao separando o espao sacralizado do espao profano e uma territorialidade contgua e hierrquica. Mostra-se, nesta pesquisa, que o Espiritismo tenta superar estas divises nas trs dimenses, procurando uma permanente interligao entre o espao do "Alm" e o espao mundano, promovendo uma integrao entre as trs dimenses.
Palavras chaves: Geografia da Religio, espao religioso, Espiritismo, Ponta Grossa PR.
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ABSTRACT
Spiritism is a social and religious movement in evidence in the Brazilian space. However, few studies highlight it in this context, mainly by the geography. Hence the present research aims to evaluate the importance of the Spiritism as a human manifestation of Ponta Grossas urban life in Paran. The theoretical and practical structure of the spiritualistic doctrine stands on three pillars of complex conciliation of the religiosity, philosophy and of a supposed science, this way, it covers a world perception more than a simple religion, and also more than a scientific interpretation. In order to do so, three main analysis instances are considered aiming to understand the space of the spiritualistic phenomenon, which are: The Narrative Spaciality is a geographical conception of the proper doctrine, in which searches to understand the established relations between the Earth plane and the spiritual one; the Practical Spaciality is a conception of the social geography, in which highlights the activities and established relations between its followers in different places; and the Institutional Spaciality as a part of the Political Geography, in which shows the geography of the spiritualistic organization and understand the logic of it structure and distribution. Most of the religious characterize themselves through a strong symbolism and intense ritualization separating the sacred space from the profane space and also presents a contiguous and hierarchic territoriality. This research shows the Spiritism attempts to get over these three divisions in the three dimensions, and seeks a constant interconnection between the space of the beyond and the mundane one, promoting an integration among the three dimensions.
Key words: Geography of the Religion, religious space, Spiritism, Ponta Grossa Paran.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 UNIDADES DO SISTEMA FEDERATIVO ESTADUAL................. 64
FIGURA 2 FLUXOGRAMA DAS COMISSES REGIONAIS DO CONSELHO FEDERATIVO NACIONAL........................................ 70
FIGURA 3 ESTRUTURA DO TRABALHO DE UNIFICAO DO MOVIMENTO ESPRITA DO BRASIL PELA FEB......................... 71
FIGURA 4 FACHADA DO INSTITUTO EDUCACIONAL DUQUE DE CAXIAS E DA ESCOLA DE GUARDAS MIRINS TENENTE ANTNIO JOO............................................................................
106
FIGURA 5 COMEMORAO DO ANIVERSRIO DA ESCOLA DE GUARDAS MIRINS EM 25 DE AGOSTO DE 2006....................... 106
FIGURA 6 AUDITRIO ANDR LUIZ............................................................. 115
FIGURA 7 SALA DE TRABALHOS MEDINICOS......................................... 117
FIGURA 8 REPRESENTAO DO MAPA DO PARAN COM AS REGIES DE DOMNIO DAS UNIES REGIONIAS ESPRITAS.....................................................................................
126
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 CENTRO DE ORIENTAO E EDUCAO MEDINICA: SESSES DE EXERCCIO PRTICO................................................ 114
QUADRO 2 INSTITUIES ESPRITAS DA U.R.E. 2 REGIO LOCALIZADAS EM PONTA GROSSA PR, ANO 2007.............................................. 128
QUADRO 3 DEPARTAMENTOS PERTENCENTES SOCIEDADE ESPRITA FRANCISCO DE ASSIS DE AMPARO AOS NECESSITADOS SEFAN...............................................................................................
129
QUADRO 4 SEGMENTOS INSTITUCIONAIS CRIADOS PELO INSTITUTO EDUCACIONAL DUQUE DE CAXIAS 1965-2007............................ 138
QUADRO 5 CENTROS DE ESTUDOS E ASSISTNCIA ESPIRITUAL DO IEDC.. 139
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LISTA DE APNDICES
APNDICE I LISTA DE ENTREVISTAS
APNDICE II FIGURA REPRESENTATIVA DO TERRENO EM LITGIO ENTRE A CASA DA AMIZADE E O IEDC 1967
APNDICE III ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NOS CENTROS DE ESTUDOS E ASSISTNCIA ESPIRITUAL
APNDICE IV PROGRAMA TERICO DO COEM
APNDICE V PROGRAMA TERICO-PRTICO DO COEM
APNDICE VI NCLEOS DE ATIVIDADES ESPRITAS NA CIDADE DE PONTA GROSSA
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SUMRIO
INTRODUO......................................................................................................... 12
1 ABORDAGENS TERICAS SOBRE A RELIGIO E UMA GEOGRAFIA DA RELIGIO...................................................................... 18 1.1 A RELIGIO COMO EXPRESSO SOCIAL.............................................. 18
1.1.1 Alguns elementos epistemolgicos para uma Geografia Cultural e da Religio................................................................................................ 25 1.1.2 As trs espacialidades da Geografia da Religio.................................. 29 1.2 AS PERCEPES DA CINCIA O ESTADO DA ARTE DAS PESQUISAS SOBRE A DOUTRINA ESPRITA......................................... 35
2 O ESPIRITISMO EM SUAS ESPACIALIDADES....................................... 42 2.1 A ESPACIALIDADE NARRATIVA A ESPIRITUALIDADE E AS LETRAS...................................................................................................... 42
2.2 A ESPACIALIDADE PRTICA A AO DOS VIVOS E O DILOGO COM OS MORTOS..................................................................................... 50
2.2.1 A Atuao Social-Caritativa. 51 2.2.2 A Atuao da Comunicao Medinica e Doutrinria....................... 53 2.2.3 A Atuao Teraputica......... 56 2.2.4 As Atividades no Lar............ 58 2.2.5 A Congruncia Entre as Espacialidades Narrativa e Prtica no Espiritismo............................ 59 2.3 A ESPACIALIDADE INSTITUCIONAL DOS ESPRITAS........................... 62 2.3.1 Os diferentes nveis do Movimento Esprita Brasileiro........................ 64 2.3.2 O nvel superior do Movimento Esprita Brasileiro............................... 65 2.3.3 Os nveis regional e local......................................................................... 69 2.3.4 Diferentes nveis de atuao do Movimento Esprita............................ 72
3 O ESPIRITISMO EM PONTA GROSSA HISTRIA E PERSPECTIVAS........................................................................................ 75
3.1 DOUTRINA ESPRITA JORNALISMO, ASSISTNCIA SOCIAL, EDUCAO E F....................................................................................... 76
3.2 A EVOLUO DO CENRIO ESPRITA EM PONTA GROSSA............... 82
4 AS ESPACIALIDADES DE UMA DOUTRINA O ESPIRITISMO EM PONTA GROSSA....................................................................................... 89 4.1 A ESPACIALIDADE NARRATIVA.............................................................. 91
4.1.1 As fontes biogrficas do Espiritismo na vida cotidiana o relato de Epaminondas Xavier de Barros .............................................................. 92 4.1.2 A iniciao no Espiritismo de Ponta Grossa......................................... 95 4.1.3 O incio das atividades assistenciais..................................................... 96 4.2 A ESPACIALIDADE PRTICA................................................................... 103
4.2.1 A atuao social-caritativa no Instituto Educacional Duque de Caxias e a Escola de Guardas Mirins Ten. Antnio Joo............... 1054.2.2 Outras atividades assistenciais.............................................................. 110
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4.2.3 As atividades doutrinrias e medinicas........................................... 1124.2.4 As atividades teraputicas ..................................................................... 1194.2.5 A congruncia entre as diferentes atuaes espritas......................... 1214.3 A ESPACIALIDADE INSTITUCIONAL ....................................................... 1244.3.1 A Unio Regional Esprita como agente coordenador e supervisor... 1264.3.2 A organizao interna do Instituto Educacional Duque de Caxias e as suas ramificaes............................................................................. 130
4.3.3 A insero do IEDC em diferentes campos de atuao em Ponta Grossa........................................................................................................ 1304.3.4 A organizao administrativa interna do IEDC...................................... 1314.3.5 As diferentes Unidades Departamentais do IEDC................................. 1334.3.6 A evoluo das Entidades de Assistncia e Promoo Humana e Social do IEDC.......................................................................................... 136 5 CONCLUSO............................................................................................. 147 REFERNCIAS....................................................................................................... 155 APNDICES............................................................................................................ 161
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INTRODUO
Na fronteira do mundo material, onde se insere a atividade humana, e do mundo imaginrio, abrindo seu simbolismo liberdade do esprito, ns encontramos aqui uma geografia interior, primitiva, onde a espacialidade original e a mobilidade profunda do homem desenham direes, traam caminhos para um outro mundo... (DARDEL, 1990, p. 8).
A religio, ao lado de outros modos de refletir e conhecer o mundo, como
filosofias, literaturas e msicas, proporciona a formao do ser humano nos mais
diversos sentidos. Por conseguinte, as religies fundamentam o sentir, o perceber, o
pensar e o agir de indivduos e grupos sociais e podem vir a representar uma
estrutura construtiva ou desestruturante na formao das sociedades.
Assim como a religio certamente faz parte do agir cultural do homem, ela
tambm est plenamente envolvida na construo e reconstruo dos seus
espaos. Obras-primas em muitos domnios se devem ao impulso da f religiosa: de
perfeitas formas esculpidas em pedra bruta s maravilhas da arte em pintura, de
magnficos acordes de devotadas msicas s escrituras sagradas, todos formando
construtivamente o espao (seja material ou imaterial). Por sculos, delineia-se no
somente uma esttica fundamentada religiosamente nas artes, mas tambm uma
histria evolutiva dos sistemas de conhecimento a influenciar as cincias e a filosofia
como catalisadores de foras sociais da modernidade. Movimentos que ainda
preservam, em muitos aspectos, as suas razes no sentimento religioso e deixam
rastros das suas racionalidades nos pensamentos ateus.
Hoje se observa uma crescente mobilidade de formao e transformao de
religies. Informaes do Instituto para Estudo da Religio Americana (PAOLOZZI,
2005, A-36) demonstram o aparecimento entre 3.000 a 4.000 novas religies por
ano, que seria da ordem de aproximadamente dez diferentes religies por dia.
Dentre estas, os clculos ainda aproximam de 2.000 o nmero de religies que
devem desaparecer anualmente. Ainda calcula-se entre 40.000 e 60.000 a
quantidade de religies espalhadas pelo mundo todo, sendo que a maioria das
novas religies se origina cindidas das grandes religies clssicas como o
Cristianismo, o Budismo e o Islamismo. Mais da metade do total se apresenta como
variaes do Cristianismo, calculando-se mais de 33.000 denominaes crists
diferentes.
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O fato da multiplicao de religies constata-se basicamente devido a duas
tendncias principais, intimamente ligadas a questes espaciais e, portanto,
geogrficas.
1. A urbanizao que se acentuou gigantescamente nos sculos XIX e XX
transforma os espaos de convivncia e suscita a transformao das
sociabilidades e comunidades tradicionais, como j havia assinalado as
clssicas pesquisas sobre a cidade de Georg SIMMEL (2006), no incio
do sculo XX, e as mais recentes pesquisas de Michel MAFFESOLI
(1987) sobre a socialidade ps-moderna no final deste sculo passado;
2. Junto dessa evoluo, observa-se uma ampliao da liberdade de
expresso (GIDDENS, 1991), o que tange tambm o meio religioso, no
qual se exprime uma proliferao de religies. Na atualidade, a
multiplicao dos sistemas de pensar ainda institucionalizada em
muitas constituies de Estados, inclusive a do Brasil, quando permite a
liberdade de expresso e de prtica religiosa.
Os dados que se dispe sobre as religies e os seus adeptos so
extremamente difceis de administrar em um campo to fluido na sua configurao,
de tal modo que no permite uma fixao em estatsticas e, por isso, est
condenado, antes de tudo, a ser aproximado apenas por estimativas (PAOLOZZI,
2005). Porm, nota-se nitidamente que a multiplicidade dos sistemas religiosos,
constitudos principalmente nos centros urbanos, est contribuindo para uma maior
individualizao da sociedade urbana atravs da suas caractersticas scio-
espaciais em diversas comunidades religiosas fundadas em reunies voluntaristas.
O processo de secularizao, iniciado no sculo XVIII, essencialmente na
Europa francesa, encetou uma crescente tendncia de mescla de elementos
religiosos e cientficos. Dentro do campo dos sistemas de crena e de filosofia, na
Frana do sculo XIX, apareceu uma forma especfica de expresso cultural,
comeando modestamente nos anos de 1860 nas grandes cidades francesas, mas
crescendo constantemente at que, no final do sculo, inseriu-se no Brasil: trata-se
da Doutrina Esprita ou Espiritismo, tambm reconhecido como Kardecismo
conforme o seu organizador Allan KARDEC.
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Allan KARDEC, nome breto1, o pseudnimo utilizado pelo educador
francs Hippolyte Lon Denizard Rivail (1804-1869). Rivail estudou em Yverdon
como aluno de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) pedagogo suo,
considerado um dos principais precursores da Escola Nova, da Pedagogia Social e
Moral e publicou mais de 20 obras de pedagogia e didtica da lngua francesa,
dirigindo tambm Institutos de educao em Paris. Interessando-se pelos
fenmenos das chamadas mesas girantes ou falantes e o magnetismo, estudou-
os compenetradamente. Um empenho que o fez fundador da Doutrina Esprita
(WANTUIL e THIESEN, 1969).
A sua atitude intelectual representa, a nosso ver, uma reao filosfica e
ideolgica ao desafio do Iluminismo, do cientificismo e da secularizao, que prope
um cientificismo positivista, encarrilhado por uma elite burguesa "esclarecida"
sobrepondo a nobreza fragilizada de uma sociedade profundamente catlica. Os
novos pensamentos se infiltraram principalmente atravs do sistema de educao,
influenciando os membros de uma classe mdia interessados em manter padres de
embasamento espiritualista, mas sem desprezar os avanos da recm formada
cincia burguesa. O Espiritismo aparece no contexto como uma auto denominada
doutrina que, na sua essncia, amlgama determinados conhecimentos
espiritualistas com a razo vigente do pensamento do Sculo das luzes.
A forte interligao entre os cenrios acadmicos da Frana e do Brasil
trouxe rapidamente o Espiritismo para as terras brasileiras, onde mais tarde se
estabeleceu como importante ingrediente no campo das Formas Simblicas
(CASSIRER, 2001a) no incio do sculo XX.
No Brasil, atualmente se constata o maior nmero de adeptos do Espiritismo
no mundo, um sinal de que, como na da Frana do sculo XIX, a secularizao
(ainda?) no alcanou um nvel pleno no pas. De acordo com o censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), o Brasil, na casa dos 180 milhes de
habitantes, classifica-se como um pas cuja predominncia religiosa do
1 De acordo com a biografia feita por Henri Sausse e que consta como introduo da obra O que o Espiritismo, o professor Rivail adotou o cognome de origem celta Allan KARDEC por acreditar ser o seu, em uma das encarnaes passadas, como druida durante o Imprio Gauls Glia, Bretanha e Germnia de 260 a 264, na era do Imprio Romano. Informao supostamente concedida pelos espritos em uma das sesses que freqentara (KARDEC, 2005, p. 09-52).
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Catolicismo, admitido por volta de 80% da populao. Dentro deste quadro,
estatsticas do ISER (Instituto de Estudos da Religio) apontam para quatro milhes
o nmero de adeptos do Espiritismo, ou seja, aproximadamente 2% da populao
brasileira, considerando-se dados demogrficos do fim da dcada de 1990
(GIUMBELLI, 1997).
Todavia, o Espiritismo apresenta uma visibilidade maior na sociedade
brasileira. Recentemente, algumas das principais revistas semanais brasileiras
publicaram reportagens de capa com temas relacionados ao Espiritismo2. A ttulo de
exemplo, pode-se citar a reportagem na revista poca, de julho de 2006, intitulada
O Novo Espiritismo. Nela indicou-se, com base nos dados do IBGE, que
Espiritismo encontra-se com 20 milhes de adeptos no Brasil, sem contar os que
admitem a Doutrina como uma segunda religio. Tambm apontou que o Espiritismo
cresceu aproximadamente 40% entre os ltimos dois censos realizados,
principalmente nos estratos mais ricos e escolarizados da populao, verificando-se
que os espritas apresentam uma renda familiar 150% superior mdia nacional e
que 77% deles traz entre oito e dez anos de escolaridade na sua formao
(MENDONA, 2006, p. 66-74).
Com o avano do Espiritismo nas classes mais hegemnicas, o alcance
miditico se amplia nas revistas assim como na rede televisiva, inclusive
aumentando o nmero de telenovelas durante os ltimos anos (GIUMBELLI, 1997,
p.13), em especial na Rede Globo: A Viagem, Alma Gmea, Pginas da Vida,
O Profeta representam alguns dos ttulos relacionados a temtica. Tambm o
programa Globo Reprter, de 12 de maio de 2006, explorou aspectos da
espiritualidade no Brasil e ressaltou a estimativa de que existem quase 30 milhes
de espritas brasileiros. Como a maioria igualmente adepta de outras religies
(Catolicismo, Candombl, Umbanda etc.), os vnculos ao Espiritismo se devem
principalmente a fatores favorveis de socialidade (MAFFESOLI, 1987). No caso
2 Entre as matrias mais recentes pautadas em temticas espritas, destacamos: CRTES Celina; VANNUCHI Camilo. As crianas e o alm. So Paulo: ISTO, ano 30, n 1942, p. 38-43, 17 de janeiro de 2007. DAMIANI, Marco. A senhora do tempo. So Paulo: ISTO, n 1944, p. 40-43, 31 de Janeiro de 2007. FONSECA, Celso; LOBATO, Eliane; MIRANDA, Ricardo. Falando com o alm. So Paulo: ISTO, n 1918, p. 48-53, 26 de Julho de 2006. GERCHMANN, Lo. Carta psicografada ajuda a inocentar r por homicdio. Folha de So Paulo, C 3, tera-feira, 30 de maio de 2006.
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especfico da Doutrina Esprita, se ressalta a solidariedade a e esperana existencial
como os principais fatores socializantes.
Assoma-se, a essa configurao social do Espiritismo, a existncia de uma
alta visibilidade de instituies espritas nas cidades. Embora geralmente de esttica
modesta, os Centros ou Casas Espritas aparecem em profuso, alm de outros
focos onde se evidenciam prticas de assistncias espiritualistas vinculadas ao
Espiritismo, mesmo que nitidamente sincretizadas. Tambm se destaca um
considervel nmero de instituies filantrpicas, associaes e federaes de
carter esprita e grupos de estudos espritas. Observa-se ainda, um imenso e
diversificado volume de publicaes, desde peridicos a obras doutrinrias
classificadas em variados gneros, do romance esprita at artigos "cientficos"
espritas, sustentando um mercado literrio com quase 200 milhes de obras que
igualmente participa do crescente mercado de editoras brasileiras.
Ao que parece, uma popularizao do Espiritismo prossegue se acentuando
em diferentes meios. Junto a isso, aparecem informaes curiosas e mesmo
controvertidas como se verifica pelos dados censitrios a respeito do Espiritismo
no Brasil e sua real dimenso populacional e capacidade de insero em outros
campos sociais. De qualquer modo, trata-se no apenas de um fenmeno social,
mas tambm de um fenmeno miditico, mostrando que essa Forma Simblica
revela-se extremamente propcia para as "socialidades" (MAFFESOLI, 1987) ps-
modernas.
Socialmente, o Espiritismo contribui para a proliferao de uma
transformao religiosa no contnuo religioso brasileiro. Como no excludente,
mas aceita a participao de outras religies, associando-se tanto com o
Catolicismo, como com o Candombl, a Umbanda e o Budismo, torna-se um
amlgamo (equivalente ao sentido de mediador) e um instrumento fundamental na
configurao desse cenrio religioso.
Diante desse panorama busca-se, no presente trabalho, compreender como
se forma uma Geografia do Espiritismo3 na cidade de Ponta Grossa, cidade mdia
3 O Espiritismo se denomina uma doutrina igualmente religio, cincia e filosofia. Portanto, pode haver algum entendimento duvidoso de alguns termos durante este trabalho. Deixamos claro que
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no interior do Estado do Paran com uma considervel e pouco explorada tradio
no Espiritismo. Com base em uma conceituao de espacialidades religiosas (SAHR, 2003a), diferenciada pelas espacialidades da narrativa, das prticas e das
instituies, prope-se entender com se forma o espao religioso esprita atravs
das suas manifestaes no meio urbano, envolvendo e formando grupos sociais
entre os seus adeptos. Trata-se, claramente, de uma abordagem da Geografia
Social e Cultural que procura investigar a geograficidade (DARDEL, 1990, p. 16) das
formas e foras sociais e culturais e como elas se expressam no espao geogrfico.
Para isso desenvolve-se, no primeiro captulo deste trabalho, uma breve
discusso terica sobre a religio (e outras atitudes filosficas) como fato social e a
valorizao dessa perspectiva sociolgica e antropolgica para abordagens na
Cincia Geogrfica. Apresentam-se algumas noes epistemolgicas para uma
Geografia Cultural e da Religio e se faz um retrospecto do estado da arte das
pesquisas sobre a Doutrina Esprita. Tambm se descreve com mais clareza as
bases terico-conceituais que fundamentam a abordagem das trs espacialidades
sobre o Espiritismo.
No segundo captulo, h um esforo por melhor se compreender as trs
espacialidades do Espiritismo de um modo geral. No terceiro captulo, ser traada a
evoluo do Espiritismo como doutrina e a sua insero ideolgica e institucional no
conjunto scio-espacial brasileiro. Ainda no mesmo, se apresenta a cidade de Ponta
Grossa como um foco de atividades espritas no Sul do Brasil. Com estes dois
captulos, intenta-se ilustrar a histria e as perspectivas histricas e geogrficas de
uma doutrina que vislumbra um espao do alm, suas prticas que remetem os
adeptos para um alm do espao e a lgica de sua formao e organizao em
terras brasileiras.
No quarto captulo, visualiza-se a trplice espacialidade do Espiritismo em
Ponta Grossa, configurando uma espacialidade narrativa, uma espacialidade prtica
e outra institucional. A construo desta parte final segue-se de uma pesquisa sobre
as atividades de um segmento de espritas na cidade, baseada em anlises de pretendemos evitar uma confuso de conceitos, sempre pondo entre aspas os termos de autodeterminao ou referentes ao Espiritismo, para poder permitir uma investigao cientfica clara e que se mostre ciente do problema da "dupla hermenutica" nas cincias sociais (GIDDENS, 1991), dividindo, assim, a linguagem de investigao da linguagem do seu objeto de estudo.
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determinadas obras, entrevistas (ver APNDICE I) e observaes participativas com
fins de se entender a lgica da formao dos espaos religiosos e como a
socialidade do Espiritismo fundamenta a vida urbana como um fato social em Ponta
Grossa.
1 ABORDAGENS TERICAS SOBRE A RELIGIO E UMA GEOGRAFIA DA RELIGIO
O mundo social de hoje um conjunto cada vez mais interpenetrado de
culturas diversificadas, palco de uma miscelnea de crenas e resultado de uma
amalgamao de costumes devido ao processo globalizador e a forte influncia de
movimentos migratrios na convivncia dos povos, fator que o clssico Friedrich
RATZEL (1882) j havia conscientizado na sua famosa obra Antropogeografia.
Nesse contexto, culturas se baseiam em ideologias, crenas, aes e instituies e
formam, sob influencia da atual globalizao, um contnuo social (unificador e
contraditrio) no qual se inserem tambm as religies.
As religies assumem tonalidades igualmente mais complexas de se
apreender no atual espao geogrfico. Com isso, se arquiteta uma breve
considerao sobre a importncia sobre uma Geografia Cultural e da Religio hoje e
a apresentao de uma abordagem diferenciada nessa frente de estudos. Trazer o
pensamento de alguns autores das cincias sociais relevante, mais ainda para se
iluminar o caso pouco abordado da Doutrina do Espiritismo.
1.1 A RELIGIO COMO EXPRESSO SOCIAL
Um dos papis bsicos das religies de explicar o contedo existencial do
ser humano e salvaguardar a sua alma. Historicamente construda na base da
crena em foras ou poderes sobrenaturais, deidades e semideidades e nas
relaes com as mesmas, as religies tambm estabelecem e coordenam funes
sociais. Enquanto construes sociais, elas organizam a convivncia social por meio
de regras ticas e garantem estabilidade coletiva atravs da formao de
instituies. A religio aparece, portanto, no como um fenmeno alheio ao cotidiano
como j enfatiza mile DURKHEIM (1996) na sua concepo sociolgica da
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religio em As Formas Elementares da Vida Religiosa , mas sendo um fenmeno
social ordinrio.
Mircea ELIADE, em seu estudo O Sagrado e o Profano - A Essncia das
Religies (1992) define a atividade religiosa tambm nos moldes da cotidianidade,
quando destaca a funo social da religio no posicionamento de indivduos e
sociedades frente estruturao social fundamental do religioso, a diferena entre o
Profano e o Sagrado. Se atenta, desta maneira, s regras sociais que aliceram as
religies, definindo-as com um carter sistmico e consentindo a elas certa
autonomia em relao sociedade, afirmando os fatos religiosos com um valor em
si. Mas o autor tambm no exclui o campo religioso do cotidiano e destaca que o
homem moderno principalmente um herdeiro de uma religiosidade essencial
porque o homem exclusivamente racional uma abstrao; jamais o encontramos
na realidade, porque mesmo o homem mais francamente a-religioso partilha ainda,
no fundo do seu ser, de um comportamento religiosamente orientado (ELIADE,
1992, p. 171).
O socilogo Max WEBER (2004) desenvolveu, possivelmente, o que mais se
aproximaria de uma sociologia da religio, mas desta vez baseada na sua funo
motivadora para as aes humanas. Ele rejeita o unilateralismo do materialismo
econmico e foca na multiplicidade funcional das atividades relacionadas religio.
Pode-se citar, neste sentido, a sua famosa obra sobre A tica Protestante e o
Esprito do Capitalismo, mas tambm outros estudos sobre o Confucionismo e o
Hinduismo, pelos quais estabeleceu uma relao entre ideologia, religio e
estruturao social. Nessa tradio, encontra-se tambm o gegrafo Claude
RAFFESTIN (1993) que manifesta grande preocupao para com as religies nas
relaes de poder e dedica um captulo inteiro a essa temtica no seu conhecido
livro Por uma Geografia do poder.
Todos esses empreendimentos intelectuais poderiam ser citados tantos
outros se arranjam frente s foras do racionalismo e do marxismo clssico, em
certa medida ainda vigente no campo epistemolgico das cincias humanas, os
quais geralmente excluem a atividade religiosa como sendo irracional ou "enganosa"
em relao a "verdade" sociolgica racionalizada ou materialista.
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Recentemente, tambm os gegrafos, principalmente da geografia social e
cultural, tm se preocupado em reavivar abordagens sobre o religioso, debruando-
se sobre questes tais como o imaginrio das religies e a importncia das
manifestaes e das experincias religiosas no meio social (CLAVAL, 1995;
ROSENDAHL, 1996; SAHR, 2003a; GIL FILHO, 2001). As suas preocupaes
tericas se mostram teis diante da nova atualidade, na qual motivaes religiosas
tornam-se cada vez mais estruturantes para a vida social e a poltica, revelando
ainda hoje grandes diferenas e conflitos religiosos no mundo globalizado.
Todavia, importa reorientar o pensamento para uma definio de religio
mais condizente com as condies ps-modernas. Quanto a isso, parece vlido
relembrar o anseio ou a inquietao quanto s muitas tentativas de responder a
pergunta religio para qu?, o que parece naturalmente incluir e solucionar a
questo do por qu da religio. Partindo dessa premissa, Contardo CALLIGARIS
(2005, p. E3) faz uma interessante explanao em artigo para Folha de So Paulo
de novembro de 2005. O autor cita Paul Bloom, psiclogo da Universidade de Yale,
quando destaca o dualismo entre corpo e alma como elemento fundamental da
poca moderna, na qual a subjetividade mental do sujeito claramente separada do
corpo fsico. Bloom, contudo, aponta que o homem, no ntimo, no se apresenta
dualista porque acredita, religiosamente conceituando, em uma existncia
transcendental, o que permite pensar uma superao (ou negligncia) da diferena
entre corporalidade e espiritualidade no alm. Por isso, se indaga se o homem, por
no coincidir com o corpo, no se sobreviveria aps a morte?
A colocao ndica que a religio, sim, pode ser vista no apenas como um
fenmeno social, mas como um efeito da atual constituio psquica dos seres
humanos atravs de um novo entendimento da idia da subjetividade individual.
Esse o questionamento principal da religiosidade ps-moderna, a busca de uma
reunificao filosfica entre "body and soul", trazendo sua motivao em certo
esgotamento da abordagem racionalizante do moderno.
A idia encontra-se frontalmente com a proposta de Clifford GEERTZ (1989)
em seu livro A Interpretao das Culturas, no qual tem em vista a religio enquanto
um sistema cultural, supra-individual, que atua em conjunto, atravs de relaes
dialgicas com outros sistemas de conhecimento. De acordo com o autor:
-
21
Uma religio : (1) um sistema de smbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposies e motivaes nos homens atravs da (3) formulao de conceitos de uma ordem de existncia geral e (4) vestindo essas concepes com tal aura de fatualidade que (5) as disposies e motivaes parecem singularmente realistas (GEERTZ, 1989, p. 104).
Com essa definio, a religio configura-se como uma projeo simblica
coletiva que possibilita a coerncia de relaes sociais na realidade vivida, de tal
modo que sustenta uma coerncia atravs de grupos sociais que exercem poder.
Em outras palavras, as religies representam ideologias relacionando uma infinidade
de sujeitos concretos que se submetem a um Sujeito Absoluto como projeo.
Nesse caso, a religio estritamente vista como instituio mundana e os estudos
geogrficos inseridos nessa perspectiva somente podem enfocar as relaes entre
elementos fsicos e humanos, permitindo-se apenas uma anlise positivista. Na
interpretao de Sylvio F. GIL FILHO (1999, p. 2-3), reconhecer a religio como um
sistema simblico ou uma ideologia reduz a Geografia s anlises e descries dos
"fenmenos religiosos" de modo genrico e ambguo, sem captar a sua essncia. A
mesma critica segue s preposies da fenomenologia religiosa de Rudolf OTTO
(1992) e Mircea ELIADE (1992).
A partir desse ponto de vista fenomenolgico, as religies tm sido
apresentadas atinentes ao conceito da essncia do Sagrado, que expresso
atravs de objetos, pessoas, lugares, tempos, gestos, palavras, rituais, enfim, seria
a manifestao de uma realidade de ordem inteiramente diferente das realidades
naturais (ELIADE, 1992, p. 24). O conceito de Sagrado compreende uma revelao
e uma racionalizao de si mesmo na experincia religiosa. Subentende-se, por
isso, que o ato da manifestao do Sagrado, a chamada hierofania, representa a
base fenomenolgica de uma Geografia Social. A histria das religies tem um
nmero considervel de hierofanias, ou seja, todas as manifestaes das realidades
religiosas. isso o que explica o sagrado manifestando-se em pedras, animais,
rvores, etc. (ELIADE, 1992, p. 25).
Seguindo tal concepo, os aspectos sagrados ultrapassam a vida material
e as suas prticas religiosas, sacralizando outros aspectos do espao vivido como a
poltica, o direito, a tica, a esttica, a arquitetura, o casamento, a famlia e o sexo.
Desenvolve-se uma hierarquia de sacralizao e dessacralizao de lugares,
-
22
redefinindo a dinmica do mundo vivido. Nesse sentido, as religies apresentam-se
basicamente como um sistema organizado de smbolos perpetuados por tradies
cujo pilar central , em geral, o fundador, aquele que vivenciou a considerada
experincia religiosa original (ELIADE, 1992).
A considerao sobre a religio como a experincia do Sagrado tem
condicionado as anlises espaciais na Cincia Geogrfica. Uma abordagem que
pode conceder uma objetividade experincia religiosa, possibilitando diferentes
instncias analticas numa dimenso social do Sagrado. No entanto, no o abstrai
da experincia religiosa. Deve se considerar tambm, no caso da Geografia, o
Sagrado como uma dialtica entre ao, experincia e essncia, ao mesmo tempo
singular e plural: entende-se o Sagrado como singular na especificidade e
exclusividade de sua origem essencial e plural na diversidade de sua experincia.
Assim, o espao se apresentaria um campo de possibilidades relacionais dos
fenmenos sagrados e no apenas o receptculo das expresses do Sagrado.
A Geografia do Sagrado no a considerao pura e simples das espacialidades dos objetos e fenmenos sagrados e por conseguinte de seu aspecto funcional e locacional; mas sim sua matiz relacional. A Geografia do Sagrado est muito mais afeta rede de relaes em torno da experincia do sagrado do que propriamente s molduras perenes de um espao sagrado coisificado (GIL FILHO, 1999, p. 12).
Contudo, o universo das religies coloca ao pesquisador a dificuldade da
abstrao e do distanciamento dos fatos fenomenolgicos do mundo religioso
concreto. Delicado aqui se adentrar numa dimenso de crtica extra-emprica, que
ultrapasse os limites de uma disciplina cientfica.
Frank USARSKI (2004, p. 73) fala, por isso, da necessidade de uma
interdisciplinaridade maior para melhor focar as muitas faces dos fenmenos
religiosos. Para ele, o mundo religioso emprico apresenta uma imensa variedade de
representaes de existncia no tempo e no espao, mas sempre enftico no
Sagrado, tornando-o um fenmeno universal, nico e trans-histrico, o que pem em
risco relegar a um plano secundrio a plurivalncia das religies. Essa pluralidade
resulta da diversidade de elementos prticos, sociais, culturais e filosficos
especficos, a qual admite o Sagrado apenas como um denominador comum na
compreenso da amplitude religiosa, o que reduz a complexidade das expresses
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23
de vivncia dos seres humanos ao termo, ainda bastante vago. O autor nos mostra,
claramente, que a problemtica semntica revela uma suposta universalidade da
experincia, que no traduzvel, mas que assume simplesmente um sentido
anlogo para diferentes casos de expresses religiosas.
Na distino entre a linguagem terica, que denomina o Sagrado como
essncia fenomenolgica, e uma linguagem ao nvel do objeto, na qual as religies
falam no plural do Sagrado (o Sagrado Cristo, Hindu, etc.), a questo
epistemolgica assume um elevado grau crtico, uma vez que a identificao do
sagrado com relao ao profano no acontece atravs de representaes
subjetivas e intersubjetivas dentro da religio, mas meramente registrado por um
observador exterior que assume a natureza e a estrutura ontolgica dessa
realidade (USARSKI, 2004, p. 80). Torna-se virulenta, por conseqncia, a
problemtica da dupla hermenutica do cientista social, j apontada por Anthony
GIDDENS (1991). Pode haver, portanto, em todas as pesquisas fenomenolgicas
sobre os fenmenos religiosos, uma precipitao capaz de embaralhar as
perspectivas, argumentando-se sobre algo que pode ser categorizado por certo
grupo social como o Sagrado em contraposio a uma auto-definio, postulada
pelo pesquisador que induz que o Sagrado j existe a priori.
Provavelmente, a principal dificuldade de um conceito adequado do Sagrado
est nas mltiplas referncias transcendncia que as religiosidades empricas
demonstram e nas diversas maneiras como se as compreende. A abordagem mais
adequada para resolver o dilema posta na pessoa do pesquisador que: no deve
comprometer-se com motivos religiosos, mas deve agir com instrumentos
cientficos, renunciando a qualquer discurso religionista [...] que possa servir de
sustentao para a validade da experincia religiosa (TERRIN apud USARSKI,
2004, p. 81).
Obviamente, a Geografia no deve desconsiderar as reflexes sobre o papel
da fenomenologia religiosa. A opo pelo Sagrado de modo absoluto como a linha
mestra para se compreender um fenmeno religioso no convm aqui, haja vista a
pluralidade das manifestaes religiosas que eclodem na modernidade. Caso do
Espiritismo no Brasil, uma doutrina complexa e recente que sofreu intensas
-
24
reinterpretaes e redefinies doutrinais, prticas e de ordem institucional, desde
sua origem na Europa francesa at as atuais representaes em terras brasileiras.
Assim sendo, pode se considerar que o Totemismo, o Animismo ou
Fetichismo, a religio antropozoomrfica egpcia, o Judasmo, o Cristianismo e o
Islamismo, o Zoroastrismo e o Hindusmo, mas tambm as expresses
neopentecostais, do Candombl e da Umbanda, entre outras religies tradicionais e
modernas, so passveis de serem interpretadas pela idia de Sagrado. Mas sempre
requerem um distanciamento do pesquisador no que tange a aplicao do conceito
em uma ou outra situao.
Nesse contexto, o Espiritismo aparece negando uma religiosidade
convencional, afirmando uma perspectiva que considera "cientfica" e investindo na
assistncia humana e social. No seu caso, confirma-se claramente a impossibilidade
de proferir-se uma pesquisa adequada de um conceito aplicado do exterior, mas
mostra-se igualmente inadequada uma concepo interior da prpria corrente
"religiosa". Por isso, uma via terica sobre o Espiritismo seria uma rota precria e
liminar a ser trilhada.
Possivelmente, o impedimento de uma teorizao completa da viso do
mundo esprita uma das razes pela qual o Espiritismo est enquadrado
precariamente nas pesquisas das religies. Por se tratar de uma "doutrina" de
carter confessadamente cientfico e "filosfico", revalida valores morais cristos,
hindus e budistas em sentido diverso do apontamento religioso tradicional, dissolve
o simbolismo dos formalismos ritualsticos e pretere os dogmas religiosos em favor
dos dogmas filosficos. Para isso, desenvolveu ao modo da prpria Cincia
baseada no empirismo um mtodo terico experimental a maneira das cincias
clssicas do positivismo e da fenomenologia existencialista, ainda hoje presente em
suas prticas. Sem se desfazer de seu sistema pressupostamente humanstico e
espiritualista, se distende em aes sociais caritativas qualificadamente
progressistas, se legitimando como um movimento singular que nega, antes de tudo,
o prprio Sagrado.
Por isso, esta pesquisa no pretende entender o Sagrado dentro da vida
social e religiosa dos espritas. Entretanto, tambm no recusa por completo a idia
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25
do Sagrado e sua plausvel incidncia no contexto esprita. O que se pretende
entender a funo estruturante da Doutrina Esprita para enformar espaos e
espacialidades sociais. Uma abordagem espacial permite como a idia do espao
primeiramente resultado de discusses fora do prprio Espiritismo se
operacionalizar neste trabalho lateralmente ao seu objeto de estudo. Contudo,
quando adentramos na questo espacial, percebe-se rapidamente que o tema do
espao fundamental na configurao da religio. Necessita-se, todavia, de uma
apreenso mais abrangente de algumas concepes geogrficas para melhor se
compreender uma concepo religiosa de mundo.
1.1.1 Alguns elementos epistemolgicos para uma Geografia Cultural e da Religio
Qual corao no se sente tomado pelo medo (formidine) dos deuses, qual homem no mantm seus membros retesados de terror (pavore) quando, sob os golpes aterrorizantes dos raios, a terra treme e se ilumina por toda a parte, e surdos lamentos percorrem toda a extenso do cu? No verdade que os povos e as naes se apavoram e que at empavonados reis empalidecem, tomados pelo medo (timore) dos deuses? (LUCRCIO apud FILORAMO e PRANDI, 1999, p. 259).
Esta passagem escrita pelo poeta latino Lucrcio no sculo I a.C. desvela a
geograficidade (DARDEL, 1990) do sentimento religioso, explicitando a emoo
exaltada como um fenmeno psicolgico de medo e de respeito do inslito. Nessa
acepo, a religio provoca um contexto estruturado para o ser humano no entre-
espao em meio a imaginao psquica e a realidade social e institucional cotidiana.
Alm do aspecto psquico, o fenmeno religioso se apresenta tambm em outras
facetas psicolgicas, quando trata do misterioso, do fascinante, do majestoso e do
energtico (OTTO apud SAHR, 2003b, p. 49).
Cada um destes aspectos coincide com determinadas espacialidades
inseridas no prprio fenmeno da religio. A imaginao do temor de Deus, por
exemplo, aparece por um relato sobre a natureza, descrevendo raios, tremor e
iluminao em uma espacialidade fantasiada e romanceada por uma descrio
metafrica e quase literria. Outro aspecto espacial que se torna visvel no texto de
Lucrcio, est no aspecto da vida institucional das sociedades, mencionado nos
exemplos dos reis, das naes, dos povos afetados pela religio. Nesta passagem,
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26
marginalmente, tambm se pode perceber as reaes provocadas pelo fenmeno
religioso, dentre as quais se espera as aes de reverncia aos Deuses e ao
Sagrado, que tentam acalmar a majestosa e superpoderosa fora divina atravs dos
rituais. Faz-se visvel, nestes aspectos, a geograficidade que afeta diretamente a
construo do espao.
Destarte, a Geografia enquanto cincia sempre se debruou sobre o espao,
focalizando a categoria por diferentes lentes de entendimento. As religies foram
muitas vezes desconsideradas pela Geografia tradicional e em certa medida
tambm pela Geografia Marxista. H, no entanto, algumas abordagens pouco
referenciadas que orientaram, ainda na poca da Geografia Clssica, o pensamento
geogrfico ao fenmeno religioso, revelando que o mesmo um fenmeno da
subjetividade, do imaginrio e das relaes simblicas.
Aqui se pode ressaltar, j na dcada de 1940, John Kirtland WRIGHT, ao
mencionar em seus estudos as diversas concepes geogrficas do mundo como
esquemas de percepo a formarem nossa compreenso do espao, entre estes,
tambm as crenas e as religies.
[...] aquele aspecto da geografia sistemtica que lida potencialmente com conhecimentos e crenas de todos os tipos, seja religiosos, cientficos, filosficos, estticos, prticos ou outro qualquer. As vrias formas e manifestaes do conhecimento so investigadas luz de sua distribuio e de suas relaes territoriais... A ateno, no obstante, se concentra nos resultados que o conhecimento produz na face da Terra, ao invs de na natureza geogrfica do prprio conhecimento (WRIGHT apud HOLZER, 1999, p. 56).
A dcada de 1950 demarcada pela respeitvel contribuio de Eric
DARDEL, que buscou associar a Geografia filosofia na busca de um entendimento
existencial da relao do homem para com o seu meio.
A geografia, por sua posio no pode fugir de ser solicitada como instncia entre o conhecimento e a existncia. Se descartando da cincia ela se perderia na confuso e na loquacidade. Se entregando sem reservas cincia ela se exporia ao que Jaspers chama de uma nova viso mstica, esquecendo de que uma atitude cientfica objetiva visa a compreenso total do mundo que no pode deixar de ser tambm moral, esttica, espiritual. O frio isolamento csmico do espectador combina mal com a finitude e a solido moral do homem em sua existncia efetiva, com a exigncia concreta de sua morada terrestre (DARDEL apud HOLZER, 1999, p. 95).
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Ambos os autores adotam, como se fez ver, uma postura cientfica bastante
diferente das atitudes vigentes pelos gegrafos da poca. Enquanto a Geografia, at
os anos de 1970, versou sobre os fenmenos geogrficos como objetivados e
materializados no espao, na melhor tradio vidaliana e hartshorniana, engastada
nos moldes do positivismo e do neo-positivismo, estes autores enveredaram por
uma verso existencialista dos fenmenos.
Com isso, verifica-se que uma Geografia da Religio tradicional se referia
apenas aos fenmenos objetivados e no a fenomenologia religiosa como ainda
demonstram as obras de autores como Paul FICKELER (1947, 1996), Pierre
DEFFONTAINES (1948), Maximilian SORRE (1957) e David SOPHER (1967) e,
mais recentemente, Zeny ROSENDAHL (1996). Paul FICKELER (1947, 1996), por
exemplo, focaliza principalmente os elementos cerimoniais da religio, localizando-
os em diversos arranjos geogrficos. Pierre DEFFONTAINES (1948) apresentou
uma pesquisa entre as relaes das culturas para com suas representaes
religiosas concretas no espao. E de Maximilian SORRE, vale ressaltar sua obra
Gographie et religions, do ano de 1955, que faz uma anlise das atividades
religiosas e suas influncias sobre o espao social, principalmente no meio rural
(MELLO, 1990; MEGALE, 1984). Todos estes trabalhos foram preocupados em
integrar a questo da religio ao pensamento disciplinar da Geografia em termos
positivistas.
A partir dos anos de 1960, contudo, estabelece-se um raciocnio um pouco
diferente. Formam-se as correntes da Geografia da Percepo e a Geografia
Humanista, ambas influenciadas pela fenomenologia. As novas vertentes procuram
dilogos interdisciplinares com a sociologia, a psicologia comportamental e a
filosofia existencialista, valorizando igualmente o aspecto psicolgico nos estudos.
Este aparece pelas palavras de TUAN quando diz [...] parte do trabalho do gegrafo
retratar todos os aspectos das cenas (paisagens e regies) pelas quais tem uma
afeio especial. Afinal de contas, muitos de ns deve ter sentido o romance do
nosso objeto atravs de alguns encontros reais com a cor, odor o temperamento
de um lugar (TUAN apud HOLZER, 1999, p. 73).
Tambm David LOWENTHAL exprime, a partir das propostas de WRIGHT,
as suas preocupaes em compreender o funcionamento da percepo humana
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28
utilizando a psicologia comportamental e a filosofia existencialista nas suas
investigaes. Ele considera que cada ser humano um gegrafo informal e que,
portanto, se deve admitir os componentes subjetivos na Geografia (LOWENTHAL,
1985, p. 103-141).
Cada imagem e idia acerca do mundo composta, ento, da experincia pessoal, do aprendizado, da imaginao e da memria [...] Todos os tipos de experincia, desde aquelas mais intimamente ligadas ao nosso mundo cotidiano at aquelas que parecem como mais remotamente afastadas, juntam-se para formar nossa realidade individual da realidade. A superfcie da Terra moldada para cada pessoa pela refrao atravs das lentes pessoais e culturais, do hbito e da fantasia (LOWENTHAL apud HOLZER, 1999, p. 67).
Nessa senda, comeava a se introduzir um novo humanismo na Geografia,
baseado na experincia, na psicologia e finalmente na subjetividade dos fenmenos.
Por isso, o gegrafo Yi-Fu TUAN, aluno de Carl SAUER e membro da Escola de
Berkeley, empregou a palavra humanstica pela primeira vez em seu texto intitulado
China, de 1967. Mas somente em 1976 que o termo Geografia Humanista
comea a ser verdadeiramente reconhecido com o ensaio Humanistic Geography,
publicado por Yi-fu Tuan no Annals of the Association of American Geographers
(TUAN, 1985, p. 143-164).
O movimento humanstico na Geografia se justifica como uma proposta
contrria Geografia positivista e neo-positivista. Essa ltima dissocia o sujeito do
seu objeto, decifrando o ser humano atravs dos aspectos materiais na paisagem ou
pelos nmeros e pelas estatsticas abstratas dos modelos cientficos. A orientao
humanstica, todavia, resgata o homem e o trata com todos os seus atributos,
situando-o no centro de todas as coisas como produtor e produto de seu prprio
mundo (MELLO apud ALVAREZ, 1990, p. 96,). Ao centralizar o homem como um
ser pensante, concede-lhe uma relao com o espao baseada em simbologias e
significados que, inclusive, afetam a organizao social (HOLZER, 1999; MELLO,
1990). O humanismo em Geografia desenvolveu-se como reao certeza e preciso do positivismo em sua estrutura reducionista. A abordagem humanista se apia nas filosofias dos significados tais como a fenomenologia, o existencialismo, o idealismo e a hermenutica , procurando compreender, por intermdio da experincia vivida pelos indivduos e grupos sociais, o que o mundo vivido (MELLO, 1990, p. 92).
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H, no decorrer da evoluo da Geografia Humanista, um claro empenho de
incluir a diversidade dos conhecimentos e das crenas, das atitudes e dos valores
na Cincia Geogrfica. Nota-se, tambm, uma proximidade dos seus autores em
considerar uma perspectiva alm da cincia, em especial quando se pondera sobre
a importncia das imaginaes e das memrias como foras sociais e que podem,
inclusive, estimular o modo cientfico de pensar.
Desta maneira, a Geografia apresenta-se com uma duplicidade espacial: de
um lado, entende o espao como palco de expresses culturais resultando das mais
diversas manifestaes de crenas e valores enquanto que, neste mesmo,
contextualiza concreta e subjetivamente o homem crente em determinados meios
sociais atravs de suas particulares percepes e expresses de vivncia e de
mundo.
1.1.2 As trs espacialidades da Geografia da Religio
A Cincia Geogrfica aponta, pela primeira vez na sua histria
epistemolgica, para uma concepo plural do espao. No que se refere
duplicidade das espacialidades, resultado do confronto entre abordagens
objetivadas e apreciaes mais subjetivas pela Geografia, pode-se evocar Yi-Fu
TUAN (1983). O Gegrafo se refere diferena epistemolgica entre os termos
espao (como espao objetivo e relacional) e lugar (o espao subjetivo).
Todavia, a variao de espacialidades tambm pode ser capturada em
outros modelos de pensamento plural sobre o espao, os quais podem vir a
contribuir para a Geografia. Um exemplo se encontra na obra a Filosofia das
Formas Simblicas de Ernest CASSIRER (2001a; 2001b). O filsofo classifica os
fenmenos culturais das denominadas Formas Simblicas (como a religio) em uma
estrutura trplice, o que pode nos ajudar entender melhor o Espiritismo como
fenmeno social e religioso como pretendemos. Analisando Mito e Religio na
filosofia de CASSIRER, FERNANDES (2004) mostra que, na concepo do autor,
existem trs relaes bsicas de signo e significado. O ponto de partida de toda
Forma Simblica seria a relao de expressividade, onde se encontra uma
identificao entre signo e significado, a enunciao. Na relao de representao
-
30
h uma separao entre signo e significado. E na relao de significao h um
processo cultural de interligao (religao!) entre signo e significado. A partir disso,
se desenvolve a idia de que a objetividade no absolutamente passvel de ser
identificada apenas com o conceito de substncia, mas tambm como um modo de
construir e interpretar o mundo simbolicamente. Assim, considera que as Formas
Simblicas existem na extenso sensvel da realidade, mas o que as diferencia o
modo como cada Forma Simblica se faz legvel e inteligvel. Aqui, a relao entre
os seres humanos e o espao sensvel no imediata e sim mediata atravs das
construes das Formas Simblicas.
Ainda FERNANDES (2004), identifica que a religio aproxima-se mais da
relao de representao, assim como a linguagem, e que a cincia est na relao
de significado e o mito faz parte da relao de expressividade. A religio se
diferencia do mito por no aceitar signos e imagens como poderes e sim como
representaes. Deste modo, aqui o mito e a religio se apresentam como Formas
Simblicas diversas. No obstante, os pensamentos mtico e religioso se
assemelham na origem dos acontecimentos elementares da existncia, em especial,
a morte.
O imaginrio da morte, das relaes entre os vivos e os mortos e as
implicaes da morte no espao social geram os mais diferentes sistemas
explicativos para a realidade fatdica do ser humano, ou seja, modelos de
representao e comunicao (de modo especial presente no Espiritismo) que
parecem substituir e/ou localizar a identidade que se perdeu. Tambm promove ritos
que mobilizam grupos sociais e re-significam a vida pessoal e coletiva.
Quanto a isso, TUAN diz que:
Os mitos e as figuras geomtricas de poder simblico tambm podem ser interpretadas como esforos do homem para resolver contradies que encontra na vida. Na experincia, entre os pares antinmicos, o mais fundamental e doloroso o da vida e da morte. Os mitos surgem como tentativas para resolver o dilema [...] Os mitos, lendas e contos folclricos das mais diferentes partes do mundo tm sido interpretados como tentativas diversas para tornar a morte inteligvel e aceitvel (TUAN, 1980, p. 19).
-
31
Analisando alguns traos da religiosidade brasileira, VILHENA (2004) afirma
que a morte um fenmeno social total, e mais, totalizante e totalizador, certo que
incide em qualquer aspecto do mundo vivido.
A morte a morte e mais suas representaes [...] Ou seja, a morte a morte mais os complexos sistemas simblicos, imagens intelectuais e afetivas que a traduzem interpretando a realidade objetiva do morrer, apreendida pelas realidades internas aos sujeitos [...] sendo subjetivas as realidades internas aos sujeitos, no so menos objetivas, ou to somente individuais, posto que se alimentam de interpretaes e manifestaes culturais que so constantemente criadas e recriadas pelo conjunto da sociedade (VILHENA, 2004, p. 105).
Na filosofia de CASSIRER, a morte no est presente no mito ou na religio
primevos, mas se faz visvel quando o culto aos ancestrais deve ser considerado
como a primeira fonte e a origem da religio (CASSIRER, 1994, p. 141). Assim, a
morte dos familiares se faz parte incondicional do cotidiano, onde se separa o
mundo vivido de um Alm incompreensvel, enquanto o mito permanece
relacionado apenas com a expressividade das foras do mundo, no deixando
espao para qualquer alm-mundo.
Interessante que, no Espiritismo, a morte enquanto fato social
compreendida em uma viso meticulosa atravs do mtodo, pois toda uma
metodologia positivista que norteia os procedimentos medinicos e o ideal contato
com o mundo dos mortos. Vemos que, no Espiritismo, o mtodo parece substituir o
mito em sua importncia como nas religies tradicionais, visto que ainda hoje (aps
150 anos da publicao de O Livro dos Espritos) permanece intacto, e a
imperativa metodologia esprita parece tornar-se to incisiva quanto o rito religioso
nas prticas dos seus adeptos.
A Doutrina Esprita engloba a viso do distanciamento pela morte e ainda
inclui fatos histricos e personagens de outros tempos e espaos em sua estrutura,
reinterpretando a si mesma e os mitos, as religies e diversas outras expresses de
existncia do homem. Este carter invasivo da Doutrina pressupe, a priori, uma
histria do homem e do Espiritismo que antecedem a Doutrina atual e permeiam as
realidades sociais histricas, mesclando imaginrios e concatenando as Formas
Simblicas (uma vez que se arrisca enlaar aspectos das cincias, das religies e
dos mitos em uma abordagem unificante). A conexo para se perpetuar este fluxo
-
32
contnuo do imaginrio esprita se faz atravs de expresses medinicas e
artsticas, como os seus romances, por exemplo.
Vemos que possvel conceber e identificar diferentes espacialidades com
fins de se compreender mais intimamente uma Geografia do fenmeno religioso,
neste caso, focando a Doutrina Esprita. O socilogo da religio Joachim WACH
(1990) trata o trplice esse plano de espacializaes como um princpio
epistemolgico bsico, se referindo aos trs distintos modos de expresso da
atividade religiosa. O primeiro se refere narrao particular da doutrina religiosa, o
que ele chama de expresso terica (p. 32) da religio. O segundo envolve a
expresso prtica (p. 38), sendo a ritualstica uma expresso corporal de uma
dimenso psicolgica concretizada no culto. O terceiro a expresso sociolgica,
como, por exemplo, as formas de comunho. O autor avalia esta dimenso como
aquela que fornece sustentao religiosidade pelas relaes sociais estabelecidas
entre grupos naturais (ex. famlia, comunidade de aldeia, etc.) e unidades
organizacionais. Neste sentido, os elementos religiosos se configuram em um
campo de poder (WACH, 1990, p. 41) e a morte que pe a questo fundamental
de qualquer relao de poder, mostrando os limites do homem e as foras
superiores do Eterno e Supremo. Aqui, na morte, aparece a essncia da vida
humana.
Segundo WACH (1990), na experincia religiosa original, sempre h um
mnimo de expresso intelectual cujo contedo gira em torno de trs tpicos de
particular importncia Deus, o mundo, o homem. Em outras palavras, as
concepes teolgica, cosmolgica e antropolgica esto sendo continuamente
expandidas em termos de mito, doutrina e dogma (WACH, 1990, p. 36). Neste
sentido, o Espiritismo incorpora elementos de todas as trs facetas embasa-se
numa teologia especfica, amplia o mundo banal para um mundo tanto material
como espiritual e posiciona o homem na sua trajetria individual numa linha de
evoluo dos espritos, reduzindo a condio da morte a uma mera interrupo
provisria da vida. O desenvolvimento, a diferenciao e a sistematizao desse
conhecimento conduzem a uma teoria fundamentada a partir da experincia que
assume conotao filosfica e religiosa e para alguns uma realidade cientfica.
-
33
Mas a obra O Nascimento da Clnica de Michel FOUCAULT (2004) que
nos servir como apoio principal para desenvolvermos este estudo. O filsofo
prope uma abordagem que diferencia trs espacializaes como categorias de
anlise as quais ele utiliza para caracterizar a transformao do Hospital da Idade
Mdia para a Clnica moderna. Nas suas espacializaes, apresenta uma nova
distribuio de elementos discretos no espao, o que inclui uma localizao da
doena com as suas causas e efeitos num espao tri-dimensional. Aparecem, assim,
a doena, o paciente e a clnica como trs fatias de espao (DELEUZE, 2005, p.
16), revelando-se as trs diferentes espacializaes e suas interligaes.
Na primeira espacializao de FOUCAULT, organiza-se a topologia das
doenas, com os seus fenmenos e sintomas, sistematizados num tableau de
doenas classificadas. Esta organizao do espao acontece apenas no mbito
semntico. Trata-se de uma geografia bi-dimensional e relacional, sem
concretizaes corporais. Por isso, DELEUZE (2005, p. 16), denomina este tipo de
espao um espao colateral, por posicionar as doenas apenas na classificao
uma ao lado da outra, lateralmente.
A segunda espacializao se refere localizao das doenas no corpo do
paciente e, de tal maneira, realiza as categorias da primeira espacializao num
espao tri-dimensional concreto. Nesse espao surgem as prticas sociais entre o
mdico e o paciente que se encontram fisicamente atravs da prpria doena na sua
concretude. DELEUZE (2005, p. 18) denomina esse tipo de espao de espao
correlativo, porque se fundamenta numa correlao entre o tipo da doena,
conhecida teoricamente, e a sua incorporao pelo corpo concreto do paciente.
Trata-se, aqui, de uma relao entre os enunciados e os corpos dos sujeitos.
A terceira espacializao a mais parecida com a Geografia Clssica. Ela
descreve a totalidade dos gestos e das instituies que cercam a doena.
Produzem-se, nessa espacializao, lugares onde surgem tanto os discursos como
convivem nela os atores (faculdades de medicina, clnicas, polcia sanitria etc.).
DELEUZE (2005, p. 21) nos fala, no caso dessa espacializao, de um espao
complementar que no pertence s formaes discursivas propriamente ditas
(enunciados e atores), mas que o cerca com uma rede de poder condicionante.
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Revelam-se, assim, as trs diferentes espacializaes nas suas
interligaes:
Pelo Jogo da espacializao primria, a medicina das espcies situava a doena em uma regio de homologias em que o indivduo no podia receber estatuto positivo; na espacializao secundria, ela exige, em contrapartida, uma aguda percepo do singular, liberada das estruturas mdicas coletivas, livre de qualquer olhar de grupo e da prpria experincia hospitalar... Chamar-se- de espacializao terciria o conjunto de gestos pelos quais a doena, em uma sociedade, envolvida, medicamente investida, isolada, repartida em regies privilegiadas e fechadas, ou distribudas pelos meios de cura, organizados para serem favorveis (FOUCAULT, 2004, p. 15-16).
A partir disso, podemos observar atravs de diferentes espacialidades como
os espritas concebem o mundo repleto de intervenes dos espritos na realidade
ordinria e como sua formao discursiva sobre a distribuio de foras no mundo
divide-se entre as do lado de c e as do lado de l, o que se faz por intermdio
dos mdiuns. Os sintomas da chamada mediunidade conceito fundante das
relaes entre o adepto e seu imaginrio se localizam pelo corpo do indivduo a
semelhana de patologias e tambm se encontram descritos formalmente na
literatura esprita. O mdium ainda entretm relaes continuamente nas prticas,
tanto com o universo imaginrio dos espritos como com outros indivduos,
identificando e realizando tridimensionalmente os fenmenos medinicos. Por fim,
tudo isso acontece em uma esfera institucionalizada, com suas caractersticas
estticas e humanas prprias, o Centro Esprita.
O gegrafo Wolf-Dietrich SAHR mostra que a leitura de FOUCAULT (2004)
conveniente para ser aplicada ao fenmeno religioso. SAHR inclui reflexes
semelhantes na sua abordagem ps-moderna sobre a Geografia da Religio
analisando o Candombl brasileiro. Ele apresenta as diferentes modalidades
espaciais de uma Geografia da Religio no sentido de uma espacialidade narrativa,
a qual busca compreender as relaes sgneas por meio dos relatos e histrias que
fazem parte do imaginrio coletivo da religio e cuja narrao estabelece um vnculo
entre as concepes de mundo terreno e espiritual; uma espacialidade prtica, que
se evidencia nas prticas e relaes estabelecidas entre os adeptos da religio,
conformando-os nos seus diferentes lugares atravs de comportamentos
especficos; uma espacialidade institucional que visa explicitar a geograficidade da
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organizao religiosa com as suas prprias lgicas de organizao, sua estrutura e
distribuio (SAHR, 2003b e SAHR, 2001).
SAHR (2001, p. 48) tambm aponta o Sagrado, assim como ELIADE (1992)
e GIL FILHO (2001), como um problema fundamental da Geografia da Religio. Mas
ressalva que o maior ponto de discusso do Sagrado est na sua construo
geogrfica, quando se constri uma regionalizao entre Aqui e Alm. Isso se
evidencia, por exemplo, no Candombl, na diviso espacial entre o Aqui (Aiy) e o
Alm (Orun), aproximada em suas danas cerimoniais que ultrapassam a fronteira
entre os permetros espaciais possibilitando com que o Sagrado e o Profano se
encontrem. Uma viso que se faz diferentemente das geografias simblico-religiosas
de ELIADE (1992, p. 46), onde se contempla uma expresso territorial do Aqui e se
desencontra o elemento transcendente. Portanto, SAHR (2001, p. 49) do mesmo
modo afirma que, em uma adequada Geografia da Religio, o espao somente pode
ser uma construo vista na atividade religiosa.
Com o entendimento proposto pelas perspectivas apresentadas e o enlace
entre a viso de FOUCAULT e SAHR, pesquisamos as espacialidades do
Espiritismo na sua funo ativa de mediar um "Aqui" com um "Alm", apontando as
trs espacialidades religiosas: a formao discursiva esprita, a ao esprita e a sua
institucionalizao no Brasil, mais especificamente numa cidade mdia no Sul do
Brasil (Ponta Grossa). Como a Geografia ainda no contribuiu muito para uma
melhor compreenso da viso do mundo esprita, apresentaremos primeiro uma
descrio do estado de arte nas cincias humanas em geral, sempre destacando o
vis geogrfico das pesquisas.
1.2 AS PERCEPES DA CINCIA O ESTADO DA ARTE DAS PESQUISAS
SOBRE A DOUTRINA ESPRITA
Em geral, poucos trabalhos acadmicos se atentam sobre o Espiritismo e a
participao da Geografia mnima. Um exemplo mais recente desta situao se
evidenciou no II Simpsio Internacional sobre Religies, Religiosidades e Culturas,
realizado pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) em Dourados,
Mato Grosso do Sul, no ms de abril de 2006. Entre os mais de 400 trabalhos
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apresentados, as conferncias e mesas-redondas, somente dois trabalhos
apresentados enfocavam de algum modo o Espiritismo.
Embora o Espiritismo sempre tenha disposto de um alto grau de auto-
reflexo, devido incorporao de princpios cientficos na doutrina, o movimento foi
descoberto relativamente tarde pelas cincias sociais. Foi o socilogo Cndido
Procpio CAMARGO (1961) que iniciou as primeiras investidas de pesquisa sobre o
Espiritismo no Brasil, na dcada de 1960, com seu trabalho Kardecismo e
Umbanda. A partir destes primeiros estudos, prevaleceu a idia de que o
Espiritismo brasileiro se caracterizou pelo aspecto religioso em contraposio ao
cientfico, que seria a idia preconizada por KARDEC.
CAMARGO definiu a idia de um continuum religioso com seus estudos
sociolgicos realizados em Terreiros de Umbanda e Centros Espritas em So
Paulo. Esta definio deu-se ao notar que a expresso esprita se estende aos
espaos de manifestao das prticas dos umbandistas e dos espritas igualmente,
caracterizando um aspecto subjetivo, referente aos adeptos, e um aspecto objetivo,
presente nas estruturas destas duas formas religiosas. Este marco direcionou os
estudos referentes ao Espiritismo s comparaes com as religies afro-brasileiras,
e vice-versa, relegando o Movimento Esprita, no mais das vezes, a um segundo
plano.
Outra pesquisa pioneira da historiadora Silvia DAMAZIO (1994), um estudo
de importante significado Da elite ao povo: advento e expanso do espiritismo no
Rio de Janeiro. DAMAZIO pesquisa os meados do sculo XIX na Europa com fins a
entender melhor o contexto ideolgico em que o Espiritismo se conformou. Neste
trabalho, apresenta-se a Doutrina Esprita essencialmente como uma religio, da
qual o codificador das mensagens dos espritos seria KARDEC e cuja codificao
apresentaria dissenses nas terras brasileiras em direes a abordagens mais
religiosas ou mais cientficas.
Ao realizar um notvel estudo sobre a histria da condenao e legitimao
do Espiritismo no Rio de Janeiro intitulado O cuidado dos Mortos: Uma Histria da
Condenao e Legitimao do Espiritismo, o antroplogo Emerson GIUMBELLI
(1997) evidencia sua impresso de insuficincia a respeito da literatura
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antropolgica, sociolgica e historiogrfica dedicada a Doutrina Esprita. O autor faz
um levantamento da bibliografia acadmica referente ao tema e distingue quatro
grupos de trabalhos: um primeiro grupo se caracteriza por dedicar ateno
especificamente a algum aspecto da cosmologia e da prtica da Doutrina Esprita;
um outro grupo por analisar com maior profundidade o Espiritismo em alguma
situao particular, concentrando-se em uma pequena escala de anlise; compem
outro grupo aqueles trabalhos que se caracterizam por focar determinado contexto
da histria do Espiritismo, delimitando um recorte temporal, espacial e temtico
pouco abrangentes; conclui com um ltimo grupo composto por estudos buscando
caracterizar de modo bastante amplo o Espiritismo no Brasil.
Na Geografia, mais recentemente, destaca-se dentre os estudos sobre o
espao das religies e da espiritualidade no Brasil um trabalho de autoria de Alberto
Pereira dos SANTOS (1999), justamente por abordar o Espiritismo, ou Kardecismo
como se refere o autor mais precisamente, na cidade de So Paulo na ltima
dcada do sculo XX. A dissertao, com o ttulo de Geografia do (in)visvel o
espao do Kardecismo em So Paulo, merece breve comentrio pela iniciativa de
focar o tema dentro dos estudos geogrficos.
O autor define como categoria de anlise principal a prpria tica esprita
para interpretar o mundo, denominada de espao ou geografia do (in)visvel. Esta se
reveste de um sentido relacional, ou seja, para compreender a totalidade deve-se
levar em conta a complementaridade entre este mundo e um outro mundo que
faz parte dos espaos das religies e da espiritualidade. Em outras palavras, aborda
uma Geografia que diferencia um espao visvel e outro invisvel em relao
complementar. O primeiro est constitudo pelo territrio, pela territorialidade e pela
populao esprita, enquanto o outro se confere na subjetividade, nas idias e
filosofia da Doutrina. Esta idia guarda certa semelhana com a abordagem das trs
espacialidades, embora SANTOS focalize mais na diferenciao clssica entre o
espao objetivo e o lugar subjetivo da Geografia Humanista.
A antroploga Sandra STOLL (1999), em sua tese Entre dois mundos: o
espiritismo da Frana e no Brasil aponta de modo semelhante a DAMAZIO (1994)
para a perspectiva principal do Espiritismo. A autora afirma que o aspecto religioso
na proximidade com as religies afro-brasileiras o que haveria contribudo para a
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expanso da Doutrina no Brasil. Deste modo, diferencia-se a Doutrina Esprita
originria na Frana do Espiritismo que se propagou em terras brasileiras. STOLL
tambm comenta as faltas de anlise das pesquisas sobre o Espiritismo referentes a
uma herana crist catlica que exerceria influncia nas prticas espritas. Para a
autora, h uma tradio do catolicismo, que seria de cultuar seus lderes religiosos,
tambm presente no Espiritismo, influenciando e gerando uma maneira diferenciada
de ser esprita no Brasil. Define um conceito de santidade esprita-crist ao estudar a
vida de Chico Xavier e busca demonstrar como houve uma construo de um
modelo de conduta idntico aos dos santos catlicos em relao ao mdium
brasileiro (STOLL, 1999).
Na dissertao Chico Xavier: imaginrio religioso e representaes
simblicas no Interior das Gerais Uberaba, 1959/2001, a historiadora Raquel
Marta da SILVA (2002) busca estender como se construiu e se consolidou no
imaginrio da cidade mineira a idia de Capital do Espiritismo. O estudo avalia a
extrema influncia do mdium Chico Xavier neste processo, as disputas e
apropriaes e o impacto de sua imagem simblica sobre alguns setores da
sociedade uberabense, como o poder pblico, a imprensa e o Movimento Esprita
local. A autora tambm evidencia uma inferioridade de trabalhos a respeito do
Espiritismo, no pela qualidade, mas pela quantidade e retoma, em uma relevante
reviso bibliogrfica, diversos autores dentre os quais alguns j citados. Alm disso,
tenta referenciar poucos trabalhos que enfocaram o Movimento Esprita regional.
Outro estudo mais recente de autoria de Fbio Luiz da SILVA (2005).
Trata-se de uma dissertao de mestrado em histria na UEL (Universidade
Estadual de Londrina) publicada como livro pela EDUEL (Editora da Universidade
Estadual de Londrina) que se intitula Espiritismo: histria e poder (1938 1949).
Neste, a histria dialoga com a sociologia e a antropologia sobre religio, utilizando-
se de conhecimentos multidisciplinares. O autor buscou compreender o contedo
histrico de dois livros espritas em especfico, ambos de Francisco Cndido Xavier:
A Caminho da Luz e Brasil, Corao do Mundo, Ptria do Evangelho. Fez uma
anlise de discurso das obras destacando a viso histrica narrada e as suas
representaes com o fim de esclarecer prticas espritas, analisar permanncias
histricas e os possveis usos discursivos do contedo como estratgias de
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legitimao e concordncia com os campos religioso, cientfico e estatal, incluindo a
prpria organizao institucional esprita. O trabalho tambm visou a insero
histrica do Espiritismo e seus antecedentes culturais na Europa francesa e definiu
duas posies bsicas quanto ao relacionamento do Espiritismo para com os cultos
afro-brasileiros, uma que o aproxima e outra que o distancia destes.
Ainda vale mencionar os esforos da Federao Esprita do Paran (FEP)
em estabelecer, at pouco tempo, um banco de dados com pesquisas sobre o
assunto. No registro, constava que das 14 teses registradas, dez foram publicadas
entre os anos de 2000 e 2002, sendo que somente trs destes estudos classificam-
se como teses de doutorado. H ainda uma monografia e o restante se apresenta
como dissertaes de mestrado. A quase totalidade dos trabalhos se encaixa como
estudos histricos e literrios ou na educao e uma pequena poro se apresenta
em direito, filosofia e mesmo artes. Dentre os 14 trabalhos, apenas uma dissertao
de Geografia, justamente a j mencionada anteriormente (FEP, 2005).
Infelizmente, no foram registrados no banco de teses da FEB dois trabalhos
dignos de nota, ambos do mesmo autor, o historiador Flamarion Laba da COSTA. O
primeiro uma dissertao de mestrado com o ttulo Trabalho, solidariedade e
tolerncia (A Sociedade Francisco de Assis de Amparo aos Necessitados 1912-
1989.), realizada no curso de Ps-Graduao em Histria do Brasil na UFPR
(Universidade Federal do Paran) em 1995. O outro a tese de doutorado intitulada
Demnios e Anjos (o embate entre espritas e catlicos na repblica brasileira at a
dcada de 60 do sculo XX), de 2001. O primeiro atrai ateno por se tratar de um
estudo de micro histria, enfocando o desenvolver de uma comunidade esprita
especfica enquanto um movimento religioso e assistencial atuando por oito dcadas
contnuas na cidade de Ponta Grossa.
Avaliando-se o conjunto dos trabalhos sobre o Espiritismo no Brasil, nota-se
a classificao que o destina apriorsticamente como uma religio. De acordo com o
GIUMBELLI (1997, p. 21), basicamente existem duas perspectivas principais das
quais se desenvolvem as pesquisas sobre a temtica: uma primeira aborda o
Espiritismo enquanto uma ideologia ou um sistema cultural, abrangendo largamente
o campo das religies afro-brasileiras onde estaria inserido. Uma segunda tenta
explicar o Espiritismo condicionado como uma cultura brasileira ou nacional,
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justificando as suas peculiares expresses e vinculando-as com um misticismo ou
religiosidade pr-supostos.
Um lance de olhar mais ntido revela, todavia, duas problemticas maiores.
Primeiramente, a equivocada conceituao desse sistema de conhecimento
exclusivamente como uma religio, no apenas como ponto de partida para fins de
estudo, mas pela designao generalizada que, inclusive, o limita no terreno das
religies afro-brasileiras4. Os princpios bsicos do Espiritismo, no entender de seus
adeptos, procedem dos ensinamentos dos espritos condizentes com uma nova
interpretao da moral de Jesus Cristo no mundo moderno. No entanto, o corpo
doutrinrio proveniente desse esclio no se resume exclusivamente a uma religio
j acabada, o que o prprio exerccio de seus adeptos revela quando ressignificam a
Doutrina e interpenetram em outros campos sociais, podendo-se apontar o
jornalstico, o policial, o mdico, o jurdico, o sanitrio e o assistencial5. Como
GIUMBELLI (1997, p. 284) destaca em sua pesquisa: as fronteiras identitrias do
espiritismo s se mantm por esforos de delimitao e diferenciao sempre
renovados.
A outra problemtica a conseqncia da disposio inversa, que
subentende o Espiritismo apenas no campo das suas atuaes sociais, o tornando
parte da sociedade secularizada e moderna. Por meio de diferentes acepes
atinentes s cincias, filosofia e religio, fez-se sua elaborao (da Doutrina
Esprita), o que permitiria seu prosseguimento em um campo mais erudito e, no caso
do Brasil, provocando certo distanciamento entre os espritas intelectuais e os
msticos. Neste ponto, GIUMBELLI (1997) atenta para um equivocado
entendimento das categorias sobre as quais se erige o discurso esprita e evidencia
isso na leitura que faz do Espiritismo nos termos de seus prprios adeptos. Em face
da questo de se lidar com uma complicada Religio-cientfica ou uma Cincia-
religiosa, destaca como ponto principal, que na maioria das pesquisas:
4 No nossa inteno, neste estudo, desenvolver um debate maior sobre Espiritismo e cultura afro-brasileira. Para maiores informaes pode-se consultar, por exemplo, o trabalho Zlio de Moraes e as origens da umbanda no Rio de Janeiro de GIUMBELLI (2002). 5 Para mais detalhes, pode-se ver O baixo espiritismo e a histria dos cultos medinicos, de GIUMBELLI (2003)
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[] parece que os prprios termos em que a maior parte das anlises esto formuladas se revelam equivocados, pois se baseiam em concepes de cincia e religio externas quelas que foram formuladas pelos espritas brasileiros e provavelmente quelas propostas pelo prprio Kardec. (GIUMBELLI, 1997, p. 68).
Com isso, o autor reala que o Espiritismo deve ser entendido na proporo
em que certas delimitaes sociais so estabelecidas, podendo ser categorizado
como religio, cincia, crime ou doena. Quer dizer, conforme se pretende legitimar
ou condenar sua atuao, como evidenciam as descries construdas pelos
prprios adeptos, simpatizantes e adversrios do Espiritismo no decorrer da histria.
Expor a existncia de textos e outras manifestaes onde ficaram explcitas as posies dos espritas sobre a prpria doutrina que professavam no apenas interessante como um contra-exemplo, mas para evidenciar uma outra lacuna de trabalhos acadmicos (GIUMBELLI, 1997, p. 68).
A complexidade e extenso do Movimento Esprita e a proximidade do
mesmo para com outros sistemas de conhecimento, reajustando as conceituaes
das suas atividades nos campos sociais, possibilita a sua definio como movimento
cultural de significante transcendental, mas tambm dispondo de marcante atuao
social. Portanto, e em concordncia com GIUMBELLI (1997, p. 280-283), as prticas
dos espritas sejam enquanto doutrinrias e revestidas de determinantes
especficos de sua religiosidade, sejam enquanto iniciativas de assistncia social,
engastadas em um corpo institucionalizado definem a Doutrina como objeto de
estudo e componente do imaginrio social. Enformam-se, deste modo, as diferentes
espacialidades do Espiritismo brasileiro.
Este panorama do estado de arte em relao ao Espiritismo mostra que as
percepes sobre a Doutrina ainda se mostram vagas no meio acadmico. Percebe-
se que quase todos os estudos raramente ultrapassam o campo materialista da
instituio e dos discursos dessa tendncia, com exceo do trabalho de SANTOS
(1999), no se dedicando e captando a essncia social do Espiritismo. Este trabalho,
entretanto, procura, com a sua abordagem das espacialidades diferenciadas,
aproximar-se um pouco mais deste propsito.
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2 O ESPIRITISMO EM SUAS ESPACIALIDADES
O Espiritismo brasileiro classifica-se como uma manifestao scio-cultural
intrincada no espao do pas. Em geral, se apresenta como um fenmeno social
dotado de significado religioso e filosfico, aparentemente um dos mais tolerantes da
atualidade e com uma presena marcante no meio urbano. Em seu conjunto
doutrinrio, reencarnacionista, apresenta uma perspectiva para um alm do
mundano, pressupondo um contguo do mundo material ao espiritual (e vice e versa)
e dispondo de uma relao com a existncia transcendental possvel e manobrvel,
concomitante a uma forte ao assistencial.
Uma anlise especfica das espacialidades do Espiritismo revela
caractersticas especficas dessa viso de mundo, seja na sua espacialidade
discursivo-narrativa, quando se discute a concepo do espao dentro da prpria
Doutrina do Espiritismo, como na sua a espacialidade prtica, que se refere ao
comportamento e as aes dos seus praticantes inclusive suas motivaes e na
espacialidade institucional, onde se investiga o conjunto organizatrio no qual se
configuram a Doutrina propriamente dita e o agir dos seus adeptos.
Considerando essa juno de espaos, a nossa pesquisa refere-se,
inicialmente, aos elementos escritos, falados e medinicos dos adeptos e de
pesquisadores do Espiritismo para reconstruir uma viso narrativa do mundo
esprita. Tambm trazemos para a discusso o contedo de experincias vividas em
diferentes Centros Espritas, dialogando com os seus dirigentes, documentando as
prticas e avaliando as atuaes dos espritas no meio social. Alm disso,
apresentamos uma idia geral da composio de uma estrutura organizatria que
revela os diferentes modos de se praticar o Espiri