gÊnesis - img.travessa.com.br€¦ · gÊnesis 8. por uma força mútua da natureza que mantém...

13
GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas se unem numa coisa só: o universo da natureza, onde existem muitos mundos; os orbes de luz numa imensidão de tempo e espaço, 10. E entre eles seus satélites, num dos quais há uma parte da natureza que reflete a natureza em si mesma, 11. E pode meditar sobre sua beleza e seu significado, e pode procurar entendê-la: é a espécie humana. 12. Todas as outras coisas, em seus ciclos e ritmos, existem em si e por si; 13. Mas na espécie humana há também a experiência, que é o que cria o bem e seu contrário, 14. E nos quais a espécie humana procura apreender o sentido das coisas. Capítulo 1 1. No jardim há uma árvore. Na primavera ela dá flores; no outono, frutos. 2. Seu fruto é o conhecimento, ensinando o bom jardineiro a entender o mundo. 3. Assim ele aprende como a árvore passa da semente ao rebento, do rebento à maturidade, pronta para gerar mais vida; 4. E da maturidade à velhice e ao sono, de onde ela retorna aos elementos das coisas. 5. Os elementos por sua vez alimentam novos nascimentos; tal é o método da natureza e seu paralelo com o curso da espécie humana. 6. Foi da queda do fruto de uma árvore assim que nasceu uma nova inspiração para examinar a natureza das coisas, 7. Quando Newton se sentou em seu jardim e viu o que ninguém vira antes: que uma maçã atrai a terra e a terra atrai a maçã,

Upload: others

Post on 14-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

GÊNESIS

8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si.

9. Assim todas as coisas se unem numa coisa só: o universo da natureza, onde existem muitos mundos; os orbes de luz numa imensidão de tempo e espaço,

10. E entre eles seus satélites, num dos quais há uma parte da natureza que reflete a natureza em si mesma,

11. E pode meditar sobre sua beleza e seu significado, e pode procurar entendê-la: é a espécie humana.

12. Todas as outras coisas, em seus ciclos e ritmos, existem em si e por si;

13. Mas na espécie humana há também a experiência, que é o que cria o bem e seu contrário,

14. E nos quais a espécie humana procura apreender o sentido das coisas.

Capítulo 11. No jardim há uma árvore. Na

primavera ela dá flores; no outono, frutos.

2. Seu fruto é o conhecimento, ensinando o bom jardineiro a entender o mundo.

3. Assim ele aprende como a árvore passa da semente ao rebento, do rebento à maturidade, pronta para gerar mais vida;

4. E da maturidade à velhice e ao sono, de onde ela retorna aos elementos das coisas.

5. Os elementos por sua vez alimentam novos nascimentos; tal é o método da natureza e seu paralelo com o curso da espécie humana.

6. Foi da queda do fruto de uma árvore assim que nasceu uma nova inspiração para examinar a natureza das coisas,

7. Quando Newton se sentou em seu jardim e viu o que ninguém vira antes: que uma maçã atrai a terra e a terra atrai a maçã,

Page 2: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

10 GÊNESIS

Capítulo 21. Os primeiros que começaram a

desvendar os segredos e desígnios da natureza, opondo-se valorosamente à ignorância inicial da humanidade, merecem nosso louvor;

2. Pois passaram a tentar medir o que antes era imensurável, a discernir suas leis e a conquistar o próprio tempo pelo entendimento.

3. Foram necessários novos olhos para ver o que jazia oculto na ignorância, nova linguagem para expressar o desconhecido,

4. Nova esperança de que o mundo se revelaria à indagação e à investigação.

5. Procuraram descobrir as fontes primordiais do mundo, perguntando como a natureza gera e alimenta sua fartura,

6. E para onde, em seu curso, vão as coisas quando findam, se se transformam ou se deixam de existir.

7. Os primeiros investigadores deram aos elementos da natureza o nome de átomos, matéria, sementes, corpos primordiais, e entenderam que são coevos com o mundo;

8. Viram que nada vem do nada, e que a descoberta dos elementos revela como as coisas da natureza existem e se desenvolvem.

9. O medo domina as pessoas quando pouco entendem e

precisam de lendas e contos simplórios que consolem e expliquem;

10. Mas as lendas e a ignorância que lhes dá origem são morada de limitações e trevas.

11. O conhecimento é liberdade, liberdade frente à ignorância e seu filho, o medo; o conhecimento é luz e libertação;

12. O conhecimento de que o mundo contém a si mesmo, suas origens e o intelecto do homem,

13. De onde provém mais conhecimento e a esperança de ainda mais conhecimento.

14. Ousa saber: tal é o lema do esclarecimento.

Capítulo 31. Todas as coisas têm sua origem

em espécies anteriores:2. Os ancestrais da maioria das

criaturas vieram do mar, alguns habitantes do mar evoluíram de antepassados que habitavam terra firme;

3. Os pássaros descendem de criaturas que antes não voavam e corriam pelo chão;

4. Os rebanhos domésticos, as manadas e todas as criaturas selvagens da natureza, que pastam em terras cultas e incultas, provêm de espécies anteriores.

5. Tampouco os frutos conservam sempre as formas antigas, mas desenvolvem novas formas ao

Page 3: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

O BOM LIVRO 11

longo do tempo e do curso mutável da natureza.

6. Pode isso resultar de uma anarquia nas coisas, surgindo arbitrariamente do nada? Não:

7. Pois a natureza tem ordem e opera com medida; todas as coisas surgem dos elementos em suas gerações,

8. Cada espécie existe por sua própria natureza, que se forma a partir dos corpos primordiais que são sua fonte, e declina gradualmente ao longo dos ritmos da vida.

9. Nos campos, na primavera vemos vicejar a rosa, no calor estival, o trigo,

10. As uvas que sazonam amadurecidas pelo outono, porque as sementes das coisas em sua estação própria seguem juntas

11. E, chegado o devido tempo, novas formas e nascimentos se revelam e em segurança a terra prenhe entrega sua progênie às margens de luz.

12. Mas, se viessem do nada, sem ordem e sem lei natural, apareceriam de repente, imprevistas, em meses estranhos, sem genitor;

13. E nem cresceriam de sementes vivas, como se a vida fosse o resultado aleatório do vazio ou do caos;

14. E então o recém-nascido se faria homem de súbito e da relva brotaria uma árvore toda copada;

15. Mas, por natureza, cada coisa cresce ordenadamente a partir de sua semente, e durante o crescimento conserva sua espécie.

Capítulo 41. Daí vem a prova de que a fartura

da natureza tem origens próprias em todas as suas formas.

2. A terra fecunda, sem suas estações de chuva e sol, não produziria o que nos alegra,

3. E tudo o que vive, se fosse privado de alimento, não sobreviveria nem propagaria sua espécie.

4. Vemos que todas as coisas têm elementos em comum, como vemos letras comuns a muitas palavras.

5. Por que não faria a natureza homens de porte tal que vadeassem os mares ou com as mãos removessem montanhas

6. Ou em grande número de dias vencessem o tempo, senão porque todas as coisas obedecem à proporção?

7. Vemos como os campos lavrados superam os incultos, retribuindo o trabalho de nossas mãos com suas mais abundantes searas;

8. Veríamos, sem nossa faina, sem o sulco reto e o pomar cuidado, formas de geração espontânea mais belas do que as nossas? Sim;

9. Porque a natureza é também lavradora, cujo arado revolve o

Page 4: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

12 GÊNESIS

solo fértil e amanha a terra, estimulando a vida a nascer;

10. Nada vem do nada; todas as coisas têm suas origens nas leis da natureza e, por seus decretos, alcançam as margens de luz.

Capítulo 51. Quando as coisas fenecem e

decaem, retornam aos corpos primordiais; nada se desfaz em nada.

2. Pois se o tempo, que em seu curso desgasta todos os trabalhos do mundo, destruísse inteiramente as coisas, como as gerações da natureza se recomporiam, espécie por espécie?

3. Como as nascentes da montanha e os rios que correm no interior distante poderiam encher os oceanos?

4. E o que alimenta as estrelas? O tempo e as eras consumiriam todas as coisas, se as leis da natureza não estabelecessem inexoravelmente que nada volta ao nada.

5. Olha, as chuvas que caem do céu mergulham na terra; então brota o grão luzidio

6. E entre as árvores verdejam os ramos e eles mesmos se carregam de frutos.

7. Dessas dádivas da natureza alimentam-se a humanidade e todas as criaturas; assim cidades alegres vicejam de crianças e as

matas ressoam com o canto das aves;

8. As vacas, gordas e sonolentas, deitam nos pastos enquanto lhes escorre o leite, e aos carneiros cresce a lã nas encostas férteis;

9. A natureza oferece suas riquezas; a terra bondosa entrega seus tesouros; então o que é dado retorna à sua fonte para preparar novas riquezas;

10. Nada perece inteiramente, e nada nasce senão pela morte de outra coisa,

11. Pois a morte não é senão a origem da vida, como a vida é a compensação da morte.

Capítulo 61. E agora, como a natureza ensina

que as coisas não podem nascer do nada,

2. Nem, nascidas, podem tornar-se nada, não duvides dessa verdade se nossos olhos não conseguem enxergar as partes minúsculas das coisas.

3. Pois observa aqueles corpos que, embora conhecidos e sentidos, são invisíveis:

4. Os ventos fustigam invisíveis nosso rosto e nosso corpo, inundam os barcos no mar quando as ondas se enfurecem e rasgam as nuvens,

5. Ou, redemoinhando desenfreados, juncam as planícies de galhos quebrados ou varrem o topo das

Page 5: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

O BOM LIVRO 13

montanhas com rajadas, dilacerando as florestas.

6. Os ventos são invisíveis, e no entanto varrem o mar, as terras, as nuvens no céu, agitando e turbilhonando a toda força e velocidade;

7. Invisíveis, e no entanto poderosos como a enchente do rio que derruba casas e árvores ao longo de seu curso enfurecido,

8. De modo que nem mesmo uma ponte sólida pode resistir ao impacto quando as torrentes se avolumam: a correnteza turbulenta,

9. Com a força de cem chuvas, bate nos pilares, quebra-se destruidora e arrasta em suas ondas construções e pedras pesadas,

10. Arremessando ao longe tudo o que lhe resiste. Mesmo então as rajadas do furacão, como uma enchente poderosa que tudo arrebata,

11. Ou, às vezes, em seu vórtice rodopiante agarrando e arrastando objetos desamparados em redemoinhos pelo mundo abaixo:

12. E no entanto esses ventos invisíveis são reais, rivalizando em obras e maneiras com rios poderosos cujas águas podemos ver.

Capítulo 71. Considera também: conhecemos

os perfumes variados das coisas, e

no entanto nunca vemos o aroma que toca nossas narinas;

2. Com olhos não vemos o calor nem o frio, e no entanto os sentimos; não vemos as vozes dos homens, e no entanto as ouvimos: tudo é corpóreo,

3. Todas as coisas são matéria ou da matéria surgem; o real é o material, visível e invisível igualmente.

4. A roupa, pendurada perto da rebentação na praia, fica úmida; a mesma roupa, estendida ao sol, logo seca;

5. Ninguém viu como a umidade se infiltrou, nem como foi retirada pelo calor. Assim sabemos que a umidade está dispersa em partes demasiado minúsculas à visão.

6. Um anel no dedo se afina na parte interna com o passar dos anos;

7. As gotas de chuva pingando dos beirais de nosso telhado escavam a pedra;

8. A relha curva do arado, embora de ferro, se gasta insidiosamente entre os sulcos dos campos.

9. Vemos as pedras da estrada desgastadas por muitos pés, e as estátuas de bronze nos portões mostram a mão direita adelgaçada pelo toque dos viandantes.

10. Vemos que ela diminui ao desgaste, mas quais são as minúsculas partes que somem, a natureza, enciumada da visão, veda a nosso olhar.

Page 6: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

14 GÊNESIS

11. Por fim, o que os dias e a natureza acrescentam aos poucos, obrigando as coisas a crescer na devida proporção,

12. Nenhum olhar a nu, por mais penetrante, enxerga. Tampouco vemos o que o tempo rouba, quando as coisas fenecem com a idade e a decadência,

13. Ou quando os mares salinos consomem as saliências dos penhascos. Assim, por corpos e forças invisíveis, opera a natureza;

14. Assim estão os elementos e sementes da natureza muito além do olhar comum,

15. Precisando do olhar do intelecto, os olhos da ciência e os olhos da razão, para penetrar e entender;

16. E por fim dos instrumentos que o engenho do homem concebeu, para ver e registrar as partes minúsculas das coisas

17. E os elementos últimos da natureza, com os quais se constrói sua infinita variedade.

Capítulo 81. Os corpos são uniões dos átomos

primordiais. E estes nenhum poder é capaz de extinguir; vivem por seus próprios poderes e duram.

2. É difícil pensar que exista algo sólido; pois como som os relâmpagos atravessam paredes,

3. O ferro se liquefaz ao fogo, as pedras ardem com exalações

violentas no centro do vulcão e explodem em pedaços;

4. O ouro sólido se derrete no calor; o bronze frio se funde, vencido pela chama;

5. O calor e o frio intenso se infiltram pela prata, pois amiúde sentimos um ou outro na taça em nossa mão, ao se verter um líquido dentro dela;

6. Parece impossível encontrar algo realmente sólido, a não ser a fundação de elementos do mundo.

7. Mas, se a natureza fizesse com que as coisas se dissolvessem para sempre, não se reintegrassem ou não se renovassem no ser,

8. Todos os corpos que existiram outrora estariam agora reduzidos apenas às partes últimas, nada retornaria nem se reconstruiria a partir deles.

9. Pois cada coisa se deteriora mais rápido do que se faz; por mais longa que seja a infinidade de dias e de todo o tempo que se passou,

10. Jamais bastaria para preencher outra vez o mundo, por mais tempo que restasse.

11. E no entanto vemos as coisas se renovarem, em suas estações e segundo sua espécie: se renovarem ou serem novas, de acordo com as leis e necessidades da natureza;

12. Vemos como as coisas duram, grandes rochas de basalto e estratos de ferro sólido,

Page 7: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

O BOM LIVRO 15

mostrando os alicerces da estrutura da natureza.

13. As entidades e forças subjacentes a tudo são poderosas em sua simplicidade primeva, reunindo e ligando todos os objetos.

14. Com isso, elas mostram sua força, unindo-se entre si por vínculos que nossos sentidos não percebem;

15. Uma vinculação que existe dentro de todas as partes, nos mínimos da natureza, cada coisa em si sendo parte de uma outra,

16. De onde outras partes e outras similares em ordem se encontram reunidas em falange: a plenitude da matéria.

17. Em tudo o que tem partes, suas partes têm elos, conexões e movimentos, pelos quais as coisas vêm a ser, perseveram, declinam e se renovam.

18. O que é menor do que os átomos forma os átomos; os átomos, as moléculas; e estas no mundo animado e inanimado formam as variedades sólidas, líquidas e gasosas que, em seus sistemas e relações, são natureza,

19. Assim formando tudo, desde os animálculos à hoste de estrelas que com esplendor embeleza a noite, vasta no tempo e no espaço.

Capítulo 91. O mundo e a vida no mundo se

desenvolvem em gerações, uma a partir da outra, no tempo de imensas vastidões.

2. De cada sol terras explodiram, e dos primeiros planetas outros eclodiram;

3. Então o mar naquele coevo nascimento, onda após onda, cobriu a terra em movimento;

4. Nas cavernas primevas, pela cálida luz do sol nutrida, sob as ondas nasceu a organicidade da vida.

5. Primeiro, brota o calor das trocas químicas e dá à matéria suas asas elípticas;

6. Rompe-se a massa com forte repulsão, funde-se em sólidos ou em gás se inflama após a explosão.

7. A seguir a atração, estando o ar ou a terra assentados, separa da luz os átomos pesados,

8. Partes próximas num rápido enlace se unem, avolumam-se em esferas, em linhas se reúnem.

9. Então os fios da matéria finos aguilhões espicaçam, cordas se prendem a cordas, teias a teias se entrelaçam,

10. E a rápida contração, com chama etérea, instila vida na armação pelos átomos tecida.

11. Por geração bioquímica espontânea, em seguida, aparecem as primeiras partículas de terra animada de vida;

12. Do ventre da natureza vem a planta ou o inseto ao ar, que brota ou, com pulmões microscópicos, se põe a respirar.

Page 8: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

16 GÊNESIS

13. Na terra, no mar, no éter, em cima, embaixo, em torno, no tear da natureza a trama sutil da vida ganha contorno.

14. Numa linha viva estendem-se os pontos entre si ligados, que ao toque da luz aproximam seus extremos encurvados.

15. Anéis a anéis se unem, e no bocal de longos tubos prendem-se os nutrientes em forma de globos ou cubos,

16. Premidos por novas apetências, nem tudo repelem; escolhem, absorvem, retêm, digerem, secretam, expelem.

17. Em cones ramados a teia viva se expande, crescem órgãos e se desenvolve fecunda glande;

18. Artérias conduzem o sangue nascente e longas veias devolvem a rubra torrente;

19. Folhas, pulmões e guelras respiram o éter vital, na verde superfície da terra ou no oceano abissal.

20. Assim águas e ventos, pelas forças primordiais contidos, em conchas ou lenhos são convertidos;

21. Alastram-se leitos de argila, calcário e areia em vastos planos, forma-se a terra a partir dos represados oceanos.

Capítulo 101. Então as sinapses dos nervos

formam longa corrente e novas sensações despertam o cérebro incipiente;

2. A cada novo sentido dardeja uma aguda emoção, ruboriza-se a face, avoluma-se e palpita o coração.

3. Rápidas volições, nascidas do prazer e da dor, comandam os gostos e guiam o olhar escrutador;

4. Assim com a nascitura luz da razão o homem é guiado, e com fino equilíbrio distingue o certo e o errado.

5. Por fim, aparecem múltiplas associações, ideias se juntam, sentimentos se prendem a emoções;

6. De onde logo fluem em longas cadeias alegrias imaginadas e voluntárias desgraças sem peias.

7. A vida orgânica sob as ondas sem fim se formou e nas grutas peroladas do oceano se alimentou;

8. Primeiro formas minúsculas, invisíveis ao microscópio, nadam pelo mar ou a lodosa margem se põem a escalar;

9. Após gerações sucessivas, adquirem novos poderes e formas maiores assumem em seus seres,

10. De onde provêm as incontáveis formas vegetais, e pés, asas, nadadeiras dos reinos animais.

11. Assim surgiu nosso mundo e vida, um reino da natureza nascido e pela natureza conduzido:

12. É a evolução, ao longo de vastas eras, seu instrumento natural, desde que a vida primeiro nasceu até a vida complexa ao final.

Page 9: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

O BOM LIVRO 17

Capítulo 111. Em todas as espécies, a natureza

opera para se renovar, tal como para se alimentar e se preservar do perigo,

2. Cada qual por sua espécie e para sua espécie, na grande obra de continuidade que é a evolução.

3. Na espécie humana, a obra de renovação reside na obra da afeição, o vínculo recíproco formado pelo desejo;

4. Entre os objetos que a natureza em todas as partes oferece ao desejo, poucos são dignos de atenção, poucos tornam as pessoas mais felizes,

5. Do que o gozo da companhia de outro que pensa e sente como nós,

6. Tem as mesmas ideias, experimenta as mesmas sensações, os mesmos êxtases,

7. Estende seus braços sensíveis e afetuosos aos nossos,

8. E a cujos abraços e carícias segue-se a existência de um novo ser que se assemelha a seus genitores,

9. Que em seus primeiros movimentos de vida procura por eles para se aninhar,

10. Que por eles será criado e amado, cujo nascimento feliz já fortalece os laços que unem seus pais.

11. Se existe alguém capaz de se ofender com o elogio feito à mais nobre e universal das paixões,

evoquemos a natureza diante dele e deixemos que fale.

12. Pois a natureza dirá: “Por que te ruborizas ao ouvir o elogio do prazer, se não te ruborizas ao ceder a suas tentações sob o manto da noite?

13. “Ignoras seu propósito e o que deves a ele?”

14. “Crês que tua mãe arriscaria sua vida para te dar a tua, se não houvesse um encanto inexprimível no amplexo de seu esposo?

15. “Cala-te, infeliz, e pensa que foi o prazer que te tirou do nada e te deu vida.

16. “A propagação dos seres é o maior objetivo da natureza. Ela solicita imperiosamente os dois sexos, tão logo tenham recebido seu quinhão de força e beleza.

17. “Uma inquietude vaga e melancólica os avisa do momento; em seu estado mesclam-se dor e prazer.

18. “É então que ouvem seus sentidos e prestam atenção a si mesmos.

19. “Mas, se o indivíduo se apresenta a outro da mesma espécie e do outro sexo,

20. “Suspende-se o sentimento de qualquer outra necessidade: o coração palpita, os membros estremecem;

21. “Imagens voluptuosas vagueiam pela mente; uma torrente de sensações corre pelos nervos, excita-os

Page 10: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

18 GÊNESIS

22. “E vai se render ao assédio de uma nova sensação que se revela e atormenta o corpo.

23. “A vista se turva, nasce o delírio; a razão, escrava do instinto, limita-se a servi-lo e a natureza é satisfeita.

24. “Era assim que as coisas se passavam no início do mundo,

25. “E é assim que ainda se passam entre as sedas da alcova luxuosa, tal como nas sombras da caverna dos selvagens.”

26. O grande mandamento da natureza é que, em centenas de milhares de formas e maneiras, os semens fluam em abundância e superabundância,

27. Que em sua estação flutuem no mar e no ar miríades de vidas possíveis; que homens e animais na estação se acasalem com seus pares, obedientes ao desejo;

28. A primavera vê os recém-nascidos virem à luz ou piarem no ninho pedindo alimento; e ao seio da mãe o infante se amamenta,

29. Prova de que nenhuma lei ou loucura humana pode alterar o rio da vida, que sempre há de avançar poderosamente,

30. Procurando todos os caminhos para o futuro, sem aceitar obstáculos nem impedimentos.

31. Pois seu único monarca é a natureza, seu único guia é a mão da natureza, seu único fim é o cumprimento dos grandes imperativos da natureza.

Capítulo 121. Vagueio, entregue a reflexivo

pensamento, por bosques nunca dantes por ninguém trilhados.

2. Apraz-me ir às fontes jamais conspurcadas e beber suas fundas águas frescas,

3. Colher novas flores e as folhas do loureiro e do verde mirto,

4. Fazendo para minha fronte uma guirlanda oriunda de regiões onde as indagações jamais coroaram uma cabeça de homem.

5. Pois, como ensino sobre coisas poderosas e tento desprender a mente humana dos laços da ignorância cegante;

6. Como apresento temas tão amplos, sobre as coisas maiores e as menores, sobre as origens e o fim, do extenso império da natureza,

7. Escolho uma vereda sem espinhos e componho uma canção luminosa, a tudo perpassando com encanto,

8. Como o médico, precisando dar à criança a amarga losna, antes umedece a borda da taça com suco e mel,

9. Para que, desatenta, sinta-se deliciada nos lábios enquanto toma um gole de remédio,

10. Assim eu também exponho em suaves versos que adoçam com mel a borda da verdade.

11. Se assim fosse possível ensinar ao mundo, as multidões cessariam

Page 11: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

O BOM LIVRO 19

a discórdia trazida pela ignorância,

12. Finalmente conhecendo a verdade e a natureza das coisas.

Capítulo 131. Para as coisas naturais, não

admitamos causas além das verdadeiras e suficientes para explicar o que vemos.

2. Pois observa-se que a natureza não faz nada em vão, e mais vão é onde menos serve.

3. À natureza apraz a simplicidade, e ela não precisa da pompa das causas supérfluas.

4. Atribuamos sempre os mesmos efeitos às mesmas causas, como a respiração num homem e num animal,

5. Como as formações geológicas das montanhas na Europa e na América,

6. Como o calor de nosso fogo para cozer e o calor do sol,

7. Como o reflexo da luz na terra e pelos planetas.

8. Pois as mesmas leis se aplicam em toda parte, e os fenômenos da natureza são os mesmos, quer aqui ou numa galáxia distante.

9. As qualidades dos corpos que não admitem aumento nem redução de graus

10. E que se sabem pertencentes a todos os corpos ao alcance de nossas investigações

11. Devem ser consideradas qualidades universais dos corpos em toda parte.

12. Pois, visto que as qualidades dos corpos só nos são conhecidas por experiência, devemos tomar por universais todas as que concordam universalmente com a experiência.

13. Não devemos ignorar a prova das experiências em favor de sonhos e ficções de nossa própria invenção;

14. Nem devemos nos afastar da analogia da natureza, que é simples e sempre consoante consigo mesma.

15. Conhecemos a extensão dos corpos apenas por meio de nossos sentidos, e nossos sentidos não alcançam todas as partes dos corpos;

16. Mas, porque percebemos a extensão em tudo o que podemos sentir, então a atribuímos universalmente ao que não podemos sentir diretamente.

17. Esta é a ordem e disciplina da ciência.

18. Devemos tomar as proposições reunidas por indução geral com base nos fenômenos como acurada ou praticamente verdadeiras, a despeito de qualquer hipótese contrária que se possa imaginar,

19. Até o momento em que ocorram outros fenômenos pelos quais elas possam ser refutadas ou acrescidas de maior acurácia.

Page 12: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

20 GÊNESIS

20. Esta regra devemos seguir, para que ao argumento indutivo não se escape com hipóteses.

Capítulo 141. Estou convencido de que o

intelecto humano cria suas próprias dificuldades, por não usar os métodos verdadeiros, sóbrios e judiciosos de investigação a nosso dispor,

2. De onde vem a múltipla ignorância das coisas que causa inumeráveis danos no mundo.

3. Tentemos, portanto, ver se o comércio entre a mente humana e a natureza das coisas,

4. Um comércio mais precioso do que qualquer outra coisa na terra, pois é nada menos do que a busca da verdade,

5. Pode ser aperfeiçoado; ou, se não, elevado a uma condição melhor do que a que agora apresenta.

6. Não podemos pretender que os erros que têm prevalecido até o momento, e que prevalecerão para sempre se se deixar a investigação sem instrução e sem correção, venham a se corrigir sozinhos;

7. Porque as primeiras noções das coisas, que nossas mentes na infância ou sem educação tão pronta e passivamente absorvem,

8. São falsas, confusas e abstraídas demasiado às pressas dos fatos; tampouco as noções secundárias e subsequentes que formamos a

partir delas são menos arbitrárias e inconstantes.

9. Segue-se que o edifício inteiro da razão humana empregado na investigação da natureza está mal construído, como uma grande estrutura à qual faltam os fundamentos.

10. Pois, enquanto as pessoas se ocupam em admirar e aplaudir os falsos poderes da mente, passam ao largo e desconsideram seus verdadeiros poderes,

11. Os quais, se recebessem os auxílios adequados e se contentassem em se deter sobre a natureza ao invés de pretender em vão dominá-la, estariam a seu alcance.

12. Tal é o caminho para a verdade e o avanço do entendimento.

Capítulo 151. Restava apenas um curso, na

aurora da verdadeira ciência:2. Tentar recolocar o todo num

plano melhor e começar uma reconstrução do conhecimento humano sobre fundamentos adequados.

3. E isso, embora no projeto e na realização possa parecer uma coisa infinita e além dos poderes do homem,

4. Quando se tratou de proceder, revelou-se firme e sóbrio, muito mais do que já se fizera antes.

5. Pois a partir daí têm se dado grandes avanços; ao passo que as

Page 13: GÊNESIS - img.travessa.com.br€¦ · GÊNESIS 8. Por uma força mútua da natureza que mantém todas as coisas, dos planetas às estrelas, unidas entre si. 9. Assim todas as coisas

O BOM LIVRO 21

especulações anteriores, não científicas e fantasiosas,

6. Produziram apenas agitação perpétua girando em círculos, terminando onde se iniciara.

7. E embora os primeiros incentivadores da investigação soubessem quão solitário no princípio seria o empreendimento

8. De encorajar a ciência onde havia somente ignorância derivada dos sonhos da infância da humanidade,

9. E quão difícil seria ter algum reconhecimento, mesmo assim estavam decididos a não abandonar a tentativa,

10. Nem ser impedidos de tentar tomar o grande caminho da verdade, aberto à investigação humana.

11. Pois é melhor ter um início que possa levar a alguma coisa

12. Do que se empenhar numa luta e busca perpétuas seguindo cursos que não levam a lugar algum.

13. E certamente os dois modos de contemplação são muito semelhantes àqueles dois modos de ação, tão celebrados, no seguinte:

14. Um, árduo e difícil no começo, finalmente conduz a campo aberto,

15. Ao passo que o outro, parecendo à primeira vista fácil e desimpedido, leva a lugares intransitáveis e escarpados.

16. Além disso, como as pessoas não sabiam quanto tempo se passaria antes que essas coisas ocorressem a outros,

17. A julgar sobretudo pelo fato de que não haviam encontrado ninguém que, até então, aplicasse o pensamento ao mesmo,

18. Resolveram prontamente expor tudo o que eram capazes. Isso não por ambição, mas por solicitude para com o conhecimento verdadeiro;

19. Pois quem sabe restasse um esboço e projeto do que se poderia realizar em prol da humanidade.

20. Muitas outras ambições do peito humano parecem humildes em comparação a tal trabalho,

21. Sendo a tarefa tão grandiosa que pode se satisfazer com seu próprio mérito, não precisando de nenhuma outra recompensa;

22. Pois é nada menos do que procurar entender o mundo e a espécie humana dentro dele:

23. É nada menos do que a ciência, o maior empenho, a maior realização e a maior promessa:

24. Desde que dela a humanidade faça um uso sensato.