gluckman, m - analise de uma situação social

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5/20/2018 Gluckman,M-AnalisedeUmaSituaoSocial-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/gluckman-m-analise-de-uma-situacao-social 1/60 ANALISE  DE UMA  SITUAÇÃO SOCIAL NA  ZULULÂNDIA MODERNA Max  Gluckman I A  organização social  da  Zululândia moderna Introdução A  África  do Sul é um Estado nacional habitado por  2.003.512 brancos,  6.597.241  africanos  e  vários outros grupos  raciais. 1  Esta população  não  forma  uma comunidade homogênea porque o Esta- do  basicamente está constituído por sua divisão em grupos raciais de  vários  status.  Portanto,  o  sistema  social  do  país  consiste,  pre- dominantemente, de relações interdependentes em cada grupo e entre os vários grupos enquanto grupos raciais. Neste ensaio, analisarei  as  relações entre  africanos  e  brancos do norte da Zululândia, baseando-me em dados coletados durante dezesseis meses  de  pesquisa  de  campo,  realizada  entre  1936  e 1938. 2  Cerca de 2/5 dos  africanos  da  África  do Sul moram  em áreas reservadas, distribuídas  por  todo  país/  Apenas alguns euro- peus  (administradores, técnicos  do  governo, missionários, comer- ciantes  e  recrutadores) vivem nestas reservas  /Os  homens  africa- nos  costumam migrar  das  reservas,  por  curtos  períodos  de  tempo, a fim de  trabalhar para fazendeiros  brancos,  industriais  ou se *  Do  original  em  inglês: Analysis  of a  Social Situation  in Modern  Zulu- land in The Rhodes Livingstone  Paper,  1958, vol. 28, pp. 1-75. Tra- dução  de  Roberto Yutaka Sagawa  e  Maura Miyoko  Sagawa. 227

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  • ANALISE DE UMA SITUAO SOCIALNA ZULULNDIA MODERNA *Max Gluckman

    I

    A organizao social da Zululndia moderna

    Introduo

    A frica do Sul um Estado nacional habitado por 2.003.512brancos, 6.597.241 africanos e vrios outros grupos raciais.1 Estapopulao no forma uma comunidade homognea porque o Esta-do basicamente est constitudo por sua diviso em grupos raciaisde vrios status. Portanto, o sistema social do pas consiste, pre-dominantemente, de relaes interdependentes em cada grupo eentre os vrios grupos enquanto grupos raciais.

    Neste ensaio, analisarei as relaes entre africanos e brancosdo norte da Zululndia, baseando-me em dados coletados durantedezesseis meses de pesquisa de campo, realizada entre 1936 e1938.2 Cerca de 2/5 dos africanos da frica do Sul moram emreas reservadas, distribudas por todo pas/ Apenas alguns euro-peus (administradores, tcnicos do governo, missionrios, comer-ciantes e recrutadores) vivem nestas reservas /Os homens africa-nos costumam migrar das reservas, por curtos perodos de tempo,a fim de trabalhar para fazendeiros brancos, industriais ou se

    * Do original em ingls: "Analysis of a Social Situation in Modern Zulu-land" in The Rhodes Livingstone Paper, 1958, vol. 28, pp. 1-75. Tra-duo de Roberto Yutaka Sagawa e Maura Miyoko Sagawa.

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  • empregar como criados domsticos. Findo o trabalho, retornams suas casas. A comunidade de africanos de cada reserva mantmestreitas relaes econmicas, polticas, bem como outros tipos derelaes com o restante da comunidade africana branca do pas.Por isso, ao explicitar os problemas estruturais em qualquer reser-va, preciso analisar amplamente como e em que profundidade areserva est inserida no sistema social do pas, quais relaesdentro da reserva envolvem africanos brancos e como estas rela-es so afetadas e afetam a estrutura de cada grupo racial.

    Pesquisei, no norte da Zululndia, uma seo territorial dosistema social da frica do Sul, especificando suas relaes como sistema enquanto um todo. Acredito, entretanto, que provavel-mente o padro dominante da rea pesquisada se assemelhe ao dequalquer outra reserva do pas.3 Deve, alm do mais, apresentarpossveis analogias com outras reas localizadas em Estados hete-rogneos onde, embora vivendo separados, grupos socialmente in-feriores (do ponto de vista racial, poltico e econmico) inter-rela-cionam-se com os grupos dominantes. No pretendo neste ensaiodesenvolver nenhum estudo comparativo. No entanto, vale a penasalientar o contexto mais amplo dos problemas sob investigao.

    Como forma de iniciar esta anlise, descrevo uma srie deeventos conforme foram registrados por mim num nico dia. Assituaes sociais constituem uma grande parte da matria-primado antroplogo, pois so os eventos que observa. A partir dassituaes sociais e de suas inter-relaes numa sociedade parti-cular, podem-se abstrair a estrutura social, as relaes sociais, asinstituies, etc. daquela sociedade. Atravs destas e de novas si-tuaes, o antroplogo deve verificar a validade de suas genera-lizaes.

    Como o meu enfoque dos problemas sociolgicos da fricamoderna no foi previamente utilizado no estudo do que se con-vencionou chamar "contato cultural", estou apresentando um ma-terial de pesquisa detalhado. Desta maneira, poder-se- avaliarmelhor e criticamente a abordagem adotada.4 Escolhi deliberada-mente estes eventos particulares, retirados de meu dirio de cam-po, porque ilustram de forma admirvel o que estou tentando enfa-tizar neste ensaio. Ppderia, entretanto, ter selecionado igualmenteinmeros outros eventos ou citado outras ocorrncias do cotidia-no da Zululndia moderna. Descreverei os eventos da forma em

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    que os documentei ao invs de adicionar minha descriotudo aquilo que j conhecia previamente sobre a estrutura totalda Zululndia moderna. Espero que, dessa forma, a fora domeu argumento possa ser apreciada melhor.

    As situaes sociais

    Em 1938, estava morando no stio (homestead) de MatolanaNdwandwe5 um conselheiro do regente e representante governa-mental. O stio localiza-se a treze milhas da magistratura europiae da Vila de Nongoma, e a duas milhas do armazm de Mapopo-ma. No dia 7 de janeiro, acordei ao amanhecer e me preparei parair a Nongoma na companhia de Matolana e de meu criado RichardNtombela, que vive num stio aproximadamente meia milha dis-tante da casa do meu anfitrio. Naquele dia, meu plano era com-parecer de manh inaugurao de uma ponte no distrito vizinhode Mahlabatini e logo aps, tarde,, a um encontro distrital namagistratura de Nongoma.

    Richard, um cristo que morava com trs irmos pagos, veiovestido com suas melhores roupas europias. Ele um "filho"para Matolana, pois a me de seu pai era irm do pai de Matolana.Richard preparou o vesturio de Matolana para ocasies especiais:uniforme de jaqueta caqui, calas d montaria, botas e polainasde couro.

    Estvamos a ponto de deixar a casa de Matolana, quandofomos retardados pela chegada de um policial uniformizado dogoverno zulu, empurrando a sua bicicleta, e acompanhado por umprisioneiro algemado, um estranho no nosso distrito que estavasendo acusado de roubar ovelhas em algum outro lugar. O policiale o prisioneiro cumprimentaram Matolana e a mim. Respondemosao cumprimento do policial, que membro de um ramo colateralda famlia real zulu, com as saudaes dignas de um prncipe(umtwana). Ento, o policial relatou a Matolana como tinha captu-rado o prisioneiro com a ajuda de um dos guardas particulares deMatolana. Matolana repreendeu o prisioneiro dizendo que noadmitiria escrias (izigebengu) no seu distrito. Voltou-se, em se-guida, para o policial e criticou o governo por esperar que ele esua guarda particular ajudassem a capturar pessoas perigosas, sem

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  • pagar nada por esse servio, nem levar em considerao qualquerrecompensa aos seus dependentes, caso fossem mortos. Matolanafrisou ainda que trabalhava muitas horas administrando a lei parao governo, sem receber salrio; disse, tambm, que era suficiente-mente inteligente para deixar de fazer esse trabalho e voltar sminas, onde costumava ganhar dez libras por ms como capataz.

    O policial foi embora com seu prisioneiro. Em seguida, parti-mos em meu carro para Nongoma. Paramos no meio do caminhopara dar carona a um velho, lder de sua pequena sejta-eist, fun-dada por ele prprio e cuja parquia foi construda em seu stio.Esse velho lder atribui a si o ttulo de supremo na 'sua igreja, masas pessoas consideram a sua seita, que no reconhecida pelo go-verno, como sendo parte dos zionistas, uma grande igreja separa-tista nativa.'7 O velho lder estava se dirigindo a Nongoma paracomparecer ao encontro da tarde como um representante do dis-trito de Mapopoma. Ele sempre desempenhou esse papel, em partedevido sua idade e, em parte, por ser o lder de um dos gruposde parentesco local. Embora qualquer um possa comparecer e falarnessas reunies, h pessoas que so reconhecidas como represen-tantes pelos pequenos distritos. Nos separamos no hotel, em Non-goma. Enquanto os trs zulus foram cozinha para tomar o cafda manh, por minha conta eu resolvi tomar banho, antes do desje-jum. Ao voltar para o caf da manh, sentei-me mesa com L.W.Rossiter, veterinrio do governo para os cinco distritos da Zulu-lndia do Norte.8 Conversamos sobre as condies das estradas esobre as vendas de gado pelos nativos locais. Ele tambm estavaindo inaugurao da ponte e tinha, como eu, um interesse par-ticular nesse evento, pois a ponte havia sido construda sob a dire-o de J. Lentzner, da equipe de engenharia do Departamento deAssuntos Nativos, um grande amigo e velho colega de escola deambos.

    O veterinrio do governo sugeriu que Matolana, Richard eeu viajssemos em seu carro at a ponte, pois estava acompanhadopor apenas um nativo da sua equipe. Por meu intermdio, ele jhavia estabelecido relaes cordiais com Matolana e Richard. Fui cozinha dizer a Matolana e Richard que seguiramos no carrodo veterinrio, e ali |iquei por uns instantes, conversando com osdois e com os empregados zulus do hotel. Quando samos ao en-contro do veterinrio, todos trocaram cumprimentos, cada um in-

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    dagando cerimoniosamente sobre o estado de sade do outro. Ma-tolana tinha uma srie de reclamaes (pelas quais j era conheci-do entre os funcionrios qualificados do governo) sobre o exter-mnio dos parasitas de gado. A maioria das reclamaes era tecni-camente injustificada. O veterinrio e eu sentamos no banco dafrente do carro, enquanto os trs zulus sentaram atrs.9

    A cerimonia de inaugurao da ponte tornou-se relevante porser a primeira construda na Zululndia pelo Departamento deAssuntos Nativos, aps a implementao dos novos planos dedesenvolvimento nativo. A ponte foi inaugurada por H.C. Lugg,comissrio chefe dos nativos da Zululndia e de Natal.10 cons-truda sobre o rio Ufflfolosi Negro na direo de Malungwana, nodistrito magistratorial de Mahlabatini, numa estrada secundriapara o Hospital Ceza da Misso Sueca, algumas milhas acima deonde a estrada principal Durban-Nongoma atravessa o rio numcaminho de concreto. O rio Umfolosi Negro sobe rapidamente seunvel durante1 as chuvas pesadas (s vezes at vinte ps), tornan-do-se inavegvel. O 'principal objetivo da construo dessa ponte,nvel baixo (cinco ps), foi o de permitir a comunicao do magis-trado de Mahlabatini com a parte de seu distrito localizada almdo rio, durante as pequenas subidas do rio. Alm disso, essa pontetorna possvel o acesso ao Hospital Ceza, famoso entre os zuluspor sua especializao em obstetrcia. As mulheres zulus freqen-temente viajam at setenta milhas para serem internadas nessehospital.

    Durante nossa viagem, discutimos, em zulu, sobre os vrioslugares pelos quais passvamos. Dessa conversa, somente anoteique o veterinrio do governo perguntou a Matolana qual era alei zulu de punio ao adultrio, pois um de seus funcionrios zulusestava sendo processado pela polcia por morar com a esposa deoutro homem, embora at ento ignorasse o fato dela ser casada.

    No local onde a estrada bifurca-se para Ceza, o magistradode Mahlabatini havia colocado um zulu, vestindo trajes de guer-reiro, para orientar os visitantes. Na estrada secundria, ultrapas-samos o carro do chefe Mshiyeni, regente da Casa Real Zulu, queviajava de sua casa, localizada no distrito de Nongoma, para assis-tir inaugurao da ponte. Nossos acompanhantes zulus dirigi-ram-lhe a saudao real e ns o cumprimentamos. Alm de seu

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  • chofer, que dirigia seu carro, Mshiyeni tambm estava acompa-nhado por um oficial militar armado, de uniforme aide-de-camp,e mais outro auxiliar.

    estrada para hospital CEZA(9 milhas)

    llllltiWI

    estrada para a magistraturade Nongoma (22 milhas

    da blfurcao)

    A Zula DE ^

    r Ti-r r-i-t*r-i7 milhas / ,rio / /

    < LLLl.Li.Ll.

    estrada para Mahlabatinimagistratura

    caminho para a estrada principalz u l \ v ,\\.

    estrada para Mahlabatini\ \ magistratura e Durban

    milhas de bifurcao)

    bifurcao para CEZA

    , .1Postpjtinerrio guerreiro \A ponte est localizada num aluvio, entre margens bem

    ngremes. Quando chegamos, um grande nmero de zulus estavareunido em ambas as margens (em A e B no mapa). Na margemao sul, em um dos lados da estrada (no ponto C do mapa), haviauma barraca, onde a maioria dos europeus estava concentrada. Oseuropeus haviam sido convidados pelo magistrado local e incluama equipe administrativa de Mahlabatini, o magistrado, o assistentedo magistrado e o mensageiro da xorte de Nongoma; o cirurgiodo distrito; missionrios e funcionrios do hospital; comercian-tes e agentes recrutadores; policiais e tcnicos; e vrios europeuscom interesses centrados no distrito, entre eles C. Adams, leiloeironas vendas de gado nos distritos de Nongoma e Hlabisa. Muitosestavam acompanhados por suas esposas. O comissrio chefe dosNativos e Lentzner, bem como um representante do Departamentode Estradas da Provncia de Natal, chegou mais tarde. Dentreos zulus presentes estavam chefes locais, lderes (headmari) e seusrepresentantes; os homens que haviam construdo a ponte; policiais

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    do governo; o funcionrio dos nativos da magistratura de Mahla-batini, Gilbert Mkhize; e zulus residentes nas proximidades. ra-mos, ao todo, aproximadamente vinte e quatro europeus e 400zulus.

    Arcos de ramagem tinham sido erguidos em cada extremida-de da ponte. Uma fita esticada passava pelo arco da extremidadesul da ponte e seria rompida pela passagem do comissrio-chefedos Nativos em seu carro. Um guerreiro zulu, em trajes marciais,estava postado sm posio de guarda perto deste arco. O veteri-nrio do governo conversou com o guerreiro (um induna " local)sobre a desinfeco do gado local. Nessa ocasio, fui apresentadoao guerreiro para que pudesse lhe falar sobre o meu trabalho esolicitar a sua assistncia.

    Enquanto o veterinrio do governo e eu conversvamos comvrios europeus, nossos zulus juntaram-se ao grupo de 'zulus. Mato-lana foi recebido com o respeito devido a um importante conse-lheiro do regente. Quando o regente chegou, recebeu a saudaoreal e se juntou aos seus sditos, reunindo rapidamente ao seuredor uma pequena corte de pessoas importantes. O comissrio-chefe dos Nativos foi o prximo a chegar: cumprimentou Mshiyenie Matolana, e quis saber sobre a artrite de Matolana. Pelo quepude deduzir, tambm discutiu com eles alguns assuntos zulus.Depois passou a cumprimentar os europeus. A inaugurao foiretardada devido ao atraso de Lentzner.

    Aproximadamente s 11 e meia da manh, um grupo doszulus que construiu a ponte reuniu-se na extremidade norte daponte. No usavam trajes marciais completos, mas portavam lan-as e escudos. Quase todos os altos dignitrios zulus trajavamroupas de montaria europias, embora o rei estivesse usando umterno de passeio. Pessoas comuns trajavam combinaes variadasde roupas europias e zulus.12 A tropa de guerreiros armados mar-chou atravs da ponte, passando atrs da fita na extremidade sul;ali cumprimentaram o comissrio-chefe dos Nativos com a sauda-o real zulu, bayete. Depois, voltaram-se para o regente, saudan-do-o. Tanto o comissrio-chefe dos Nativos como o regente respon-deram saudao levantando o brao direito. Os homens eome-"\aram a cantar o ihubo (cano de cl), do cl Butezeli (o cl dochefe local que o principal conselheiro do regente zulu), masforam silenciados pelo regente. Ento, os procedimentos da inau-t

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  • gurao se iniciaram com um hino ingls, conduzido por um mis-sionrio de misso sueca Ceza, Todos os zulus, inclusive os pagos,ficaram de p e tiraram seus chapus.

    Mister Phipson, o magistrado de Mahlabatini, fez um discursoem ingls, traduzido sentena por sentena para o zulu pelo seufuncionrio zulu, Mkhize.13 O magistrado deu as boas-vindas atodos e agradeceu especialmente aos zulus por comparecerem inaugurao. Parabenizou os engenheiros e os trabalhadores zuluspela construo da ponte e ressaltou o valor que esta teria parao distrito. Em seguida, passou a palavra para o comissrio-chefedos Nativos, que conhece bem a lngua e os costumes zulus. Estefalou sobre o grande valor da ponte, primeiro em ingls para oseuropeus, depois em zulu para os zulus. O comissrio-chefe dos Nati-vos salientou que a construo da ponte era apenas um exemplodo que o governo estava fazendo para desenvolver as reservastribais zulus. Aps o comissrio, o representante do Departamentode Estradas da Provncia falou brevemente, ressaltando que em-bora tivesse sido | pressionado a construir uma, seu Departamentonunca tinha acreditado na resistncia de uma ponte baixa scheias do rio Umflori. Continuando seu discurso, cumprimen-tou os engenheiros dos Assuntos Nativos pela implementao daponte que, mesmo sendo construda a baixo custo, tinha resistido cheia de cinco ps. Anunciou, tambm, que o Departamento daProvncia iria construir uma ponte alta na estrada principal.14Adams, um velho zulu, foi o prximo a discursar em ingls e emzulu, mas no disse nada de relevante.

    O ltimo discurso foi o do regente Mshiyeni, em zulu, tradu-zido por Mkhize para o ingls, sentena por sentena. Mshiyeniagradeceu ao governo pelo trabalho que estava sendo realizado naZululndia. Disse que a ponte possibilitaria a travessia em pocade cheia e tornaria possvel s suas esposas irem livremente parao Hospital Ceza ter seus filhos. Apelou ao governo para que nose esquecesse da estrada principal, onde tambm era necessrioconstruir uma ponte, pois l o rio freqentemente impedia a pas-sagem. Mshiyeni anunciou ainda que o governo estava dando umacabea de gado ao povo e que o comissrio-chefe dos Nativoshavia lhe dito que |everiam, de acordo com o costume zulu,15derramar a blis nos ps da ponte, para dar boa sorte e seguranas crianas quando a atravessassem. Qs zulus riram e aplaudiram.

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    O regente considerou seu discurso encerrado e recebeu a saudaoreal dos zulus que, seguindo o exemplo dos europeus, haviamaplaudido os outros discursos.

    O comissrio-chefe dos Nativos entrou em seu carro e, prece-dido por vrios guerreiros em trajes marciais, cantando o ihuboButelezi, atravessou a ponte. Foi seguido, sem nenhuma ordemhierrquica, pelos carros de outros europeus e do regente. O regentepediu aos zulus trs vivas (hule, em zulu). Ainda tendo os guer-reiros frente, os carros fizeram o contorno na margem oposta eretornaram. No caminho, um funcionrio europeu da magistratura,que queria fotograf-los, pediu que parassem. Todos os zulus pre-sentes cantaram o ihubo Butelezi.

    Os europeus entraram na barraca para tomar ch com bolo.Uma missionria serviu o regente fora da barraca. Na barraca, oseuropeus estavam discutindo assuntos zulus e outros mais gerais.No acompanhei as discusses porque fui margem norte ondeos zulus estavam reunidos. Os zulus locais haviam presenteado oregente com trs cabeas de gado. Na margem norte, numa atmos-fera de grande euforia, o regente e seu oficial militar atiraramnesses trs animais, bem como no animal doado pelo governo. Oregente pediu a Matolana para selecionar homens, a fim de esfolare cortar o gado para distribuio. Depois se dirigiu a um local devegetao rasteira nas proximidades (D no mapa) para conversarcom seu povo e tomar cerveja zulu, da qual lhe haviam ofertadogrande, quantidade. O regente enviou quatro potes de.cerveja, car-regados por garotas, ao comissrio-chefe dos Nativos. Este bebeude um pote que reservou para si, dizendo as carregadoras parabeber dos outros potes e ento distribu-los entre o povo.16 Deacordo com a etiqueta zulu, este procedimento o apropriado.

    O comissrio-chefe dos Nativos e quase todos os europeusforam embora. A maioria dos zulus tinha se reunido na margemnorte, dividindo-se, grosso modo, em trs grupos. Na mata dearbustos (item D no mapa) estava o regente com seus indunaslocais, sentados juntos, enquanto mais longe ficaram os plebeus.Estavam tomando cerveja e conversavam, enquanto esperavampela carne. Logo acima, da margem do rio (item A do mapa)estavam alguns grupos de homens cortando rapidamente trsanimais sob a superviso de Matolana; faziam muito barulho,batendo papo em tom alto e rindo. O veterinrio do governo,

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  • Lentzner e o tcnico de agricultura europia do distrito os esta-vam observando. Logo atrs, a uma maior distncia da margem, omissionrio sueco havia arregimentado diversos cristos zulus queestavam alinhados em filas e cantavam hinos sob sua direo. Entreos cristos enfileirados, observei a presena de alguns pagos.Lentzner pediu a dois guerreiros para posarem ao seu lado numafotografia tirada na sua ponte. Os diferentes grupos continuaramcantando, batendo papo, conversando e cozinhando at irmos em-bora.

    Eu tinha passado de grupo em grupo, exceto pelos cristosque cantavam os hinos. Porm, passei a maior parte do tempo con-versando com Matolana, Matole e o chefe Butalezi, a quem conhecisomente naquele dia. Matolana tinha que ficar para assessorar oregente e por isso combinamos que o regente levaria Matolana reunio de Nongma. Partimos com Richard e office-boy do ve-terinrio. A reunio na ponte iria durar ainda o dia todo.

    Almoamos, novamente separados dos zulusj em Nongma, efomos, o veterinrio do governo e eu, separadamente, reuniona magistratura. Cerca de 200 a 300 zulus estavam presentes. Entreeles, chefes, indunas e plebeus. A reunio comeou um poucoatrasada, porque Mshiyeni no havia chegado ainda. Finalmente omagistrado iniciou a reunio sem a sua presena. Aps uma discus-so geral sobre assuntos do distrito (leiles de gado, gafanhotos ereproduo de touros de qualidade "), os membros de duas dastribos do distrito foram dispensados da reunio.

    H trs tribos: 1) os Usuthu, a tribo da linhagem real, queconstituem o squito de clientes pessoais do rei zulu (hoje o re-gente). Somente o rei detm jurisdio legal sobre os Usuthu, muitoembora quase todas as outras tribos na Zuzulndia acatem suaautoridade; 2) os Amateni, que constituem uma das tribos reais eque so governados por um dos pais classificatrios do rei; e 3) osMandlakazi, que so governados por um prncipe de um ramo cola-teral da linhagem real, e que se separaram da nao Zulu em guer-ras civis que se seguiram Guerra Anglo-Zulu de 1879/80.

    Os Mandlakazi foram requisitados a permanecer na reunio,pois o magistrado queria discutir as brigas entre faces que esta-vam ocorrendo entreiduas das sees tribais. O chefe Amateni eseu chefe induna foram autorizados a permanecer na reunio(Mshiyeni, o chefe Usuthu, ainda no estava l), mas o magistrado

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    no queria que os plebeus de outras tribos o ouvissem reprimindoos Mandlakazi.18 O magistrado dirigiu a palavra aos Mandlakazinum longo discurso, reprovando-os por terem saqueado a proprie-dade dos Zibebu (umzikaZibebu, isto , a tribo do grande prncipe,Zibebu) e por estarem numa situao em que so obrigados avender seu gado para pagar multas para o tribunal de justia, aoinvs de alimentar, vestir e educar seus filhos e esposas.19 Entre-mentes, Mshiyeni, acompanhado por Matolana, entrou e todos osMandlakazi se levantaram para saud-lo, interrompendo o discursodo magistrado. Mshiyeni se desculpou por estar atrasado e sesentou com os outros chefes.

    Aps ter feito suas reprimendas durante um bom tempo, omagistrado pediu que o chefe Mandlakazi se pronunciasse sobre aquesto. O chefe Mandlakazi reprovou seus indunas e os prnci-pes das sees tribais em conflito, sentando-se depois. Vriosindunas falaram, justificando seus atos e culpando os outros; umdeles, um indivduo que, de acordo com os outros zulus, estavaadulando o magistrado para se promover politicamente, fez seudiscurso elogiando a sabedoria e a bondade do magistrado. Umprncipe da linhagem Mandlakazi, que alm de membro de umadas sees em conflito tambm um policial do governo, reclamouque a outra seo tribal estava sendo auxiliada nas disputas porseus vizinhos, membros da tribo Usuthu que moravam no distritode Matolana. Finalmente chegou a vez de Mshiyeni falar. Ele inter-rogou rigorosamente os indunas Mandlakazi, dizendo-lhes que ti-nham obrigao,de verificar quem iniciou as brigas e prender osculpados, sem permitir que a culpa recasse sobre todos que agorabrigavam. Incitou os Mandlakazi a no destrurem a propriedade

    /ds Zibebu afirmando que, se os indunas no pudessem zelar pelanao, seria melhor que fossem depostos. Finalmente, repudiou aacusao de que seu poyo estaria participando das brigas.20 Omagistrado endossou tudo que o regente tinha acabado de falare encerrou a reunio.

    Anlise da situao social

    Apresentei acima uma amostra tpica dos meus dados depesquisa de campo. Estes consistem de vrios eventos que, embo-

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  • r ocorridos em diferentes partes da Zululndia do Norte e envol-vendo diferentes grupos de pessoas, foram interligados pela minhapresena e participao como observador. Atravs destas situaes,e de seu contraste com outras situaes no descritas, tentareidelinear a estrutura social da Zululndia moderna. Denomino esteseventos de situaes sociais, pois procuro analis-los em suas re-laes com outras situaes no sistema social da Zululndia.

    Todos os eventos que envolvem ou afetam seres humanosso sociais, desde a chuva ou terremoto at o nascimento e a morte,o ato de comer e defecar, etc. Se as cerimnias morturias soexecutadas para um indivduo, esse indivduo est socialmentemorto; a iniciao transforma socialmente um jovem em umhomem, qualquer que seja sua idade cronolgica. Os eventos envol-vendo seres humanos so estudados por muitas cincias. Assim, oo ato de comer objeto de anlise fisiolgica, psicolgica e sociol-gica. O ato de comer uma atividade fisiolgica, quando analisa-do em relao defecao, circulao sangnea, etc. uma situa-o psicolgica, em relao personalidade de um homem. uma situao sociolgica, em relao aos sistemas de produo edistribuio da comunidade, aos seus agrupamentos sociais, aosseus tabus e valores religiosos. Quando se estuda um evento comoparte do campo da Sociologia, conveniente trat-lo como umasituao social. Portanto, uma situao social o comportamento,,em algumas ocasies, de indivduos como membros de uma comu-nidade, analisado e comparado com seu comportamento em outrasocasies. Desta forma, a anlise revela o sistema de relaes subja-cente entre a estrutura social da comunidade, as partes da estru-tura social, o meio ambiente fsico e a vida fisiolgica dos mem-bros da comunidade.21

    Inicialmente, devo salientar-que a situao principal estavase configurando pela primeira vez de uma forma particular naZululndia.22 O fato dos zulus e dos europeus poderem cooperarna inaugurao da ponte mostra que formam conjuntamente umanica comunidade com modos especficos de comportamento. So-mente a partir desta perspectiva pode-se comear a entender ocomportamento dos indivduos da forma em que os descrevi.Apesar de parecer desnecessrio, quero enfatizar este tipo de abor-dagem porque foi recentemente criticada por Malinowski em suaintroduo aos ensaios tericos sobre "cultura de contato" escritos

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    por sete pesquisadores de campo. Malinowski ataca Shapera eFortes por adotarem uma abordagem similar quela que me foiimposta pelo meu material de pesquisa.23 Na segunda parte desteensaio, examinarei a validade desta abordagem para o estudo damudana social na frica; aqui, quero somente salientar que aexistncia de uma nica comunidade branco-africana na Zululndiadeve necessariamente ser o ponto de partida, da minha anlise.

    Os eventos ocorridos na ponte Malungwana que foi plane-jada por engenheiros europeus e construda por trabalhadores zu-lus, que seria usada por um magistrado europeu governando oszulus e por mulheres zulus indo a um hospital europeu, que foiinaugurada por funcionrios europeus e pelo regente zulu numacerimnia que incluiu no somente europeus e zulus, mas tambmaes historicamente derivadas das culturas europia e zulu devem ser relacionados a um sistema no qual, pelo menos umaparte, consiste de relaes zulu-europias. Essas relaes podemser estudadas enquanto normas sociais, como pode ser demons-trado pela maneira em que zulus e brancos adaptam, sem coero,seu comportamento uns aos outros. Por isso posso empregar ostermos Zululndia e zululandeses para abranger brancos e zulusconjuntamente, enquanto o termo zulu designa africanos somente.

    Seria possvel enunciar inmeros motivos e interesses dife-rentes que causaram a presena de vrias pessoas inauguraoda ponte. O magistrado local e sua equipe compareceram por deverprofissional e organizaram a cerimnia porque estavam orgulhososde dar ao distrito a contribuio valiosa da construo da ponte.De acordo com seu discurso, o comissrio-chefe dos Nativos con-cordou em inaugurar a ponte para demonstrar seu interesse pessoale dar relevncia aos planos de desenvolvimento assumidos peloDepartamento de Assuntos Nativos. Uma consulta ao rol de euro-peus presentes cerimnia mostra que aqueles do distrito deMahlabatini que compareceram inaugurao tinham interessegovernamental, ou pessoal, pelo distrito ou pela cerimnia. Almdo mais, qualquer evento constitui uma recreao na montonavida dos europeus numa reserva. A maioria dos europeus sentetambm obrigao em comparecer a esses eventos. Essas duas lti-mas razes poderiam ser atribudas aos visitantes de Nongoma. Oveterinrio do governo e eu fomos atrados inaugurao devidoa laos de amizade e tambm pelo nosso trabalho. Podia observar-se

    239

  • que vrios europeus levaram suas esposas, o que somente algunspoucos zulus cristos (como Mshiyeni) fariam em situaes simi-lares.24

    Entre os zulus, o regente, honrado por ter sido convidado (oque no teria sido "necessrio), veio, sem dvida alguma, paramostrar seu prestgio e para reencontrar alguns de seus sditos queele raramente v. O escrivo zulu e a polcia governamental com-pareceram a servio; o chefe Matole e os indunas locais vierampor se tratar de um evento importante no seu distrito. Os trabalha-dores zulus, que tinham construdo a ponte, sentiam-se especialmen-te honrados. Provavelmente muitos dos zulus presentes foram atl atrados pela festa, pela excitao e pela presena do regente.2S

    Vimos que vinda de Matolana e Richard inaugurao daponte foi motivada pelas relaes incomuns que mantinham comi-go. Com exceo do grupo do regente, eles eram, juntamente como zulu que acompanhava o veterinrio do governo, os nicos zulusa viajarem de uma certa distncia para comparecer cerimnia.Para os zulus, a inaugurao da ponte era um evento mais local doque para

  • de certos grupos sociais, personalidades e elementos culturais solidificou um pouco mais a estrutura social e as instituies daZululndia contempornea.

    Os presentes cerimnia dividiam-se em dois grupos raciais:os zulus e os europeus. As relaes diretas entre estes dois gruposeram predominantemente marcadas por separao e reserva. En-quanto grupos, reuniram-se em lugares diferentes, sendo imposs-vel para eles confrontarem-se em condies de igualdade. Emboraeu estivesse vivendo na propriedade de Matolana e tivesse grandeintimidade com a sua famlia, tivemos que nos separar para nossasrefeies, no ambiente cultural do hotel de Nongoma. No poderiacomer na cozinha com os zulus, tanto quanto eles no poderiamcomer comigo no restaurante do hotel. A separao transpareceatravs de todos os padres de comportamento zulu-europeu. En-tretanto, uma separao socialmente reforada e aceita pode repre-sentar uma forma indireta de associao, na realidade uma coope-rao, mesmo quando levada ao extremo do esquivamento, comotestemunha o comrcio clandestino na frica Ocidental em temposantigos. Esta separao envolve mais do que a diferenciao axio-maticamente presente em todas as relaes sociais. Pretos e brancosso duas categorias que no devem se misturar, como o caso dascastas na ndia ou as categorias de homens e mulheres em muitascomunidades. Por outro lado, embora em suas relaes sociais umfilho seja distinto de seu pai, tambm se tornar um pai. Na Zu-lulndia, um africano nunca poder transformar-se num branco.2ePara os brancos, a manuteno desta separao um valor domi-nante que transparece na poltica da assim chamada "segregao"e "desenvolvimento paralelo", termos esses que apresentam umafalta de contedo como tentarei Demonstrar na anlise que sesegue.

    Apesar dos zulus e europeus estarem organizados em doisgrupos na ponte, seu comparecimento ao evento implica esta-rem unidos na celebrao de um assunto de interesse comum.Mesmo assim, o comportamento de um grupo em relao ao outro desajeitado, o mesmo no ocorrendo no interior de cada gruporacial. De fato, as relaes entre os grupos so muito freqen-temente marcadas por hostilidade e conflito, o que, de certa forma,transparece tanto nas reclamaes de Matolana contra o banho

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    parasiticida do gado, como na existncia de uma igreja separa-tista zulu.

    A .ciso existente entre os dois grupos raciais em si o fatorde sua maior integrao em apenas uma comunidade. Eles no seseparam em grupos de status similar: os europeus so dominantes.Os zulus no podiam entrar nas reservas dos grupos brancosexceto pedindo permisso, como no caso dos criados domsticosencarregados de servir ch. Entretanto, os europeus podiam movi-mentar-se mais ou menos livremente entre os zulus, observando-ose fotografando-os, apesar de poucos terem feito isso. Mesmo axcara de ch oferecida ao regente, como tributo sua realeza,foi-lhe servida fora da barraca dos europeus. A posio dominantedos europeus transparece em qualquer situao em que indivduosdos dois grupos renem-se devido a um interesse em comum,abandonando a separao, como, por exemplo, na discusso verifi-cada entre o veterinrio do governo e os dois indumas sobre osbanhos parasiticidas de gado, ou no fato do regente chamar qual-quer europeu que encontra, mesmo aqueles que no ocupam/posi-o governamental, de nkosi (chefe), nkosana (chefe menor, sejovem) ou numzana (homem importante).

    Os dois grupos diferenciam-se em suas inter-relaes na estru-tura social da comunidade da frica do Sul, da qual a Zululndiaconstitui uma parte. Atravs dessas inter-relaes, podem-se delinearseparao, conflito e cooperao em modos de comportamento so-cialmente definidos. Alm disso, os dois grupos tambm se dife-renciam em relao a cor, raa, lngua, crenas, conhecimento,tradies e posses materiais. No tocante cooperao entre os doisgrupos, estas diferenas so permeadas por hbitos de comunica-o. Esses dois tipos de problemas envolvidos esto intimamenteinter-relacionados, mas podem ser tratados separadamente, at certoponto.

    O funcionamento da estrutura social da Zululndia pode serobservado nas atividades polticas, ecolgicas, etc. Politicamente,fica claro que o poder dominante est investido no governo dogrupo branco, sob o qual os chefes so, num de seus papis sociais,funcionrios subordinados. O governo detm a autoridade supre-ma da fora, da penalidade e do aprisionamento. Assim, pode para-lisar os conflitos entre faces na tribo de Mandlakasi, muito em-bora o magistrado, que representa o governo, tente manter a paz

    243

  • atravs de funcionrios zulus que lhe so subordinados. Apesardas efusivas boas-vindas dadas por Mandlakazi a Mshiyeni indi-carem que a superioridade social de Mshiyeni reconhecida, foio poder do governo que o habilitou a interferir nos assuntos inter-nos de uma tribo que havia se desligado da sua linhagem realzulu. '28

    Atualmente, o governo o agente dominante em todos osassuntos polticos. Embora um chefe nomeie seus indunas, haviacomentrios de que um induna estava procurando lisongear omagistrado com a finalidade de conseguir poder poltico. Os zulusque ocupam posies governamentais constituem uma parte im-portante da mquina judicial e administrativa do governo. Tmcomo dever, em relao ao governo, manter a ordem, auxiliar apoltica governamental, assumir causas jurdicas, ajudar nos banhosparasiticidas de gado e muitos outros assuntos de rotina. Entretan-to, no tm direito algum de julgar causas criminais importantes,sendo que somente o governo pode perseguir malfeitores (como,por exemplo, os ladres de ovelhas) de um distrito a outro. Contu-do, como resultado da diviso existente entre os dois grupos ra-ciais, h uma diferena nas relaes do povo zulu com os adminis-tradores governamentais europeus zulus. Tanto o comissrio-chefedos Nativos como o regente receberam a saudao real dos guer-reiros mas, enquanto o comissrio-chefe dos Nativos recebeu trsvivas, a presena do regente e do chefe local motivou a entoaode canes tribais zulus. O comissrio-chefe dos Nativos conversoucom os zulus importantes que conhecia. Enviaram-lhe cerveja zulu,mas preferiu tomar ch com o grupo branco. O regente sentou-secom os zulus, tomou cerveja e conversou com eles, at muitodepois dos europeus terem se dispersado. O governo forneceu umacabea de gado ao povo e o regente fui presenteado pelo povocom trs cabeas de gado e cerveja, que o prprio regente distribuiuentre os presentes.

    O governo no tem somente funes judiciais e administrati-vas,, desempenhando tambm parte importante nas atividades am-bientais. Mesmo nas informaes precedentes, vimos que o governoconstruiu a ponte, que foi paga com os impostos coletados entreos zulus; emprega cirurgies distritais, tcnicos agrcolas e enge-nheiros; organiza os banhos parasiticidas e vendas de gado; econstri estradas. Mesmo quando chefes indunas participam

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    neste tipo de empreendimento governamental, no o fazem tofacilmente quanto na organizao judicial e administrativa.

    Embora os chefes pudessem ter simpatizado com a faco emconflito dos Mandlakazi de uma forma que o magistrado com-preenderia, concordavam com o magistrado que a paz numa tribodeve ser valorizada. Mas Matolana tinha uma srie de reclama-es sem fundamento cientfico contra os banhos parasiticidas, osquais avaliava num idioma cultural diferente daquele do veterin-rio do governo.29 Apesar de os zulus terem acolhido favoravelmen-te a construo da ponte e de Mshiyeni ter agradecido, em nomede seu povo, por tudo que o governo estava fazendo em prol doszulus, em muitas ocasies o povo julga que seus chefes tm o deverde manter oposio aos projetos governamentais.30

    Os zulus e europeus esto igualmente interligados no que serefere ao aspecto econmico mais amplo da vida da Zululndia.Eu havia salientado que os criados domsticos eram admitidos nabarraca dos europeus e 'que a ponte foi planejada por europeus, masconstruda pelos zulus. O recrutador de trabalhadores da Rand GoldMinas estava presente inaugurao da ponte; Estes fatos so indi-cativos do papel que africanos da Zululndia, bem como africanosde outras reas, desempenham como trabalhadores no-qualifiadosnas atividades econmicas da frica do Sul. Estavam presentestambm inaugurao da ponte zulus que trabalham como poli-ciais do governo e um escrivo zulu. Os zulus dependem do dinheiroque recebem dos europeus pelo seu trabalho, para pagar seus impos-tos (que custearam a construo da ponte e os salrios de tcnicosgovernamentais) e para comprar produtos vendidos por comercian-tes europeus ou, ainda, para negociar gado com os europeus, atravsdas vendas de gado promovidas pelo governo, cujo leiloeiro haviacomparecido inaugurao da ponte. Os zulus dependem, emgrande parte da sua subsistncia, da lavoura que o governo esttentando melhorar atravs de seus tcnicos em agricultura.

    Esta integrao econmica da Zululndia no sistema indus-trial e agrcola da frica do Sul domina a estrutura social. Ofluxo de trabalhadores inclui praticamente todos os zulus fisi-camente capacitados. Em qualquer poca, aproximadamente 1/3dos homens do distrito de Nongoma est ausente, trabalhando

    245

  • longe da reserva. So organizados, por seus empregadores, emgrupos de trabalho similares aos que existem em todos os pasesindustriais. Parentes e membros de uma mesma tribo tendem atrabalhar e morar juntos nos acampamentos ou locaes munici-pais.31 Alguns empregadores, como no caso das Minas Rand,agrupam deliberadamente seus trabalhadores de acordo com suaidentidade tribal. Entretanto, nos locais de trabalho, os zulusencontram-se, lado a lado, com os bantus de toda a frica doSul. Apesar de sua nacionalidade zulu envolv-los em conflitocom membros de outras tribos, chegam a participar de agrupa-mentos cuja base mais ampla que a nao zulu. Raramenteesto sob a autoridade dos seus chefes, ^embora as Minas Rande os acampamentos Durban empreguem simultaneamente prnci-pes zulus como induna e policiais. Os chefes visitam seu squitode clientes na cidade para coletar dinheiro e conversar. Significati-vamente, mesmo as demonstraes de lealdade ao rei zulu em reu-nies urbanas tm sido marcadas por alguns indcios de hostili-dade. Apesar dos chefes zulus imporem-se enquanto tais emsuas visitas, no tm, nos locais de trabalho, qualquer statuslegal sobre os indivduos: as autoridades legais so os magistra-dos brancos, os supervisores de locao, a polcia, os adminis-tradores e empregadores. So somente os administradores bran-cos que mantm a ordem e controlam as condies de trabalho,implementando contratos, promulgando leis, etc. O chefe zulupode protestar oralmente, no mais que isso. Mesmo nas reservas,onde zulus vivem de agricultura de subsistncia, e embora o grupobranco governe atravs de organizaes zulus, aqueles que traba-lham para europeus acabam subordinando-se, atravs desta rela-o particular, diretamente aos administradores brancos. O chefezulu no tem a palavra em assuntos que envolvam membros desua tribo e europeus. O governo e a Corporao de Recrutamentode Nativos das Minas Rand agem atravs dos chefes a fim deque as reivindicaes dos zulus sejam expressas, e, ocasionalmen-te,, paream ser atendidas por seu intermdio. Os chefes constan-temente reivindicam melhor tratamento e salrios mais altos paraos trabalhadores zulas;ao mesmo tempo, esto sempre (Mshiyeni,em particular) incitando os homens de sua tribo a sarem paratrabalhar.

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    Uma .tarefa importante do governo manter e controlar ofluxo de mo-de-obra para satisfazer, se possvel, as necessidadesde mo-de-obra dos brancos. Alm disso, tenta evitar que o fluxode mo-de-obra resulte na fixao de grande nmero de africanosnas cidades. O trabalhador migrante zulu deixa sua,famlia nasreservas, para as quais depois retorna. Isto inevitavelmente envol-ve o governo numa srie de contradies, das quais luta paraescapar. Nas reservas, a tarefa bsica do governo , manter a lei ea ordem, tendo, secundariamente (desde 1931-32), comeado adesenvolver as reservas. O governo foi forado a implementar asreservas, devido ao estado precrio em que se encontravam emconseqncia da m agricultura e da excessiva alocao em terrasinadequadas. Isso se deve, em parte, ao fluxo de mo-de-obra queproporciona dinheiro aos zulus para compensar as deficinciastcnicas existentes nas reservas, sendo possvel que a demandadessa mo-de-obra possa, em ltima instncia, tornar sem efeitoo plano desenvolvimentista. tendem a reagir inovao comomembros de (B) v. (A). Contudo, se um membro de (B) aceitaindependentemente uma inovao de (A), outros membros de (B)tendem a aceitar a inovao oriunda da iniciativa individual dessemembro, pois reagem a um companheiro de (B).

    Embora os zulus pagos desprezem o cristianismo e os cris-tos, parentes pagos e cristos vivem juntos em razovel harmo-nia. Os pagos aceitam muitos costumes exoculturais dos brancosatravs de seus parentes cristos, costumes aos quais se opemquando impostos pelos brancos.

    Os princpios acima .podem ser chamados de princpios deresistncia fora de um grupo e princpios de aceitao, dentro deum grupo. O princpio-de aceitao dentro de um grupo aplica-separticularmente quando um grupo hierarquicamente organizadoe um membro superior aceita uma inovao; por seu intermdio,os membros inferiores do grupo provavelmente tambm aceitama inovao. Os zulus tm aceito, dessa forma, muito da exocul?tura dos brancos, atravs de seus chefes. Na Zululndia, emboraos representantes dos interesses zulus defendessem, h tempos,certos desenvolvimentos, eram violentamente combatidos pela maio-ria dos brancos at que o prprio governo, forado por necessida-des naturais, sugeriu alguns desenvolvimentos.

    Entretanto, se nesta situao os 'membros da alta hierarquiade unrgrupo mantm elos de interesse especial com o outro grupo,sua aceio da exocultura do outro grupo pode no ser transmi-tida aos seus subordinados. -Esses podem reagir aos seus lderes,passando a consider-los como membros do outro grupo e rejei-tando sua liderana, o- que ameaa a hierarquia. Isto est "tendendoa ocorrer com os chefes zulus.

    7 i _ Sob os princpios da inrcia social, avaliao da endo-cultura e do sedimento social, um grupo tende a abordar proble-mas sociais ( tcnicos) .causados pelas suas relaes com umoutro grupo cultura! antagnico atravs do material intelectual dasua endocultura, reforando ou revivendo velhas solues, ao invsde aceitar'solues exoculturais. Isto ocorre porque, na medidaem que no esto conscientes das relaes sociolgicas,' os mm-

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  • bros do grupo no entendem as causas desses problemas, que po-dem ter suas razes em condies sociais que sofreram mudanas.Por exemplo, dentre o grupo de fazendeiros brancos vizinhos daZululndia, que emprega zulus em suas fazendas, acredita-se queseus problemas de mo-de-obra poderiam ser resolvidos atravsda promulgao de um nmero ainda maior de leis, alm das nu-merosas j existentes, para reter seus arrendatrios nas fazendas,as quais esto inevitavelmente abandonando.24 No grupo zulu, oszulus sempre notaram e ainda notam a deteriorao das reasonde o gado excessivo. Porm, apreendem o problema em termosda antiga expanso zulu em terras abundantes, que agora lhesforam tiradas pelos brancos. Por isso, um velho zulu respondeua um tcnico que estava censurando a existncia do excesso deaglomerao de gado: "Vocs esto errados. No que nstemos gado demais para nossas terras, ns temos muito poucaterra para nosso gado". Os brancos, negando-se a admitir a natu-reza dos problemas africanos em relao s terras na frica doSul, sustentam que os zulus (e todos os bantus) prezam somentea quantidade de seus rebanhos e no a qualidade, o que umaimpreciso gritante/*5

    Por isso, sob estes princpios, num sistema social em mu-dana, quando novos problemas e conflitos emergem, os gruposenvolvidos tendem a explic-los atravs da obsolescncia de velhoscostumes e cerimnias, pois no podem, no ousam e/ou noinvestigam as causas reais. Por exemplo, os zulus atribuem o au-mento da taxa de nascimentos ilegtimos proibio do costumepelo qual uma mulher solteira que engravidasse casar-se-ia. Pararesolver o problema agravado pelas condies atuais, p regentezulu sugeriu que fosse reinstitudo o costume das mulheres maisvelhas realizarem um exame vaginal nas mais novas. Antigamenteisto era feito, por acordo comunal, em parte do distrito Mtumzinina Zululndia. Uma moa, acusada de no ser mais virgem, ins-taurou e venceu um processo por injria na corte magistrtica.26Para resolver este problema, tambm j ouvi zulus bem educadosdefendendo, numa grande reunio nacional em Durban, a restau-rao de um velho costume para reduzir o desejo sexual emcrianas que consistia em inserir uma vareta no nus de umacriana e gir-la contra a membrana do intestino para derramarsangue (ukugweb).

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    A EXPRESSO CULTURAL DE CONFLITOS E CLIVAGENSEMERGENTES

    Nesta seo, relaciono os princpios gerais de expresso cul-tural* de movimentos sociolgicos ao princpio de que, em todosos sistemas sociais, h uma tendncia para que as disputas indi-viduais que emergem dos conflitos sejam expressas em formas so-cialmente reconhecidas.

    l Se novos conflitos podem ser expressos e resolvidosparcialmente em termos de velhos costumes culturais, esses cos-tumes tendem a persistir. Por exemplo, os zulus podem explicarseu azar ou fracassos em seus esforos para obter trabalho juntoaos brancos dizendo que foram enfeitiados, pois isto relaciona-seao seu infortnio em competir com no-parentes. Ocasionalmente,isto pode ser explicado atravs da afirmao de que no foraminformados da morte de um parente ou que foram tomados pelaira dos espritos dos ancestrais. Porm, os espritos dos ancestraisoperam principalmente nos grupos de parentesco, no abrangendoo trabalho para os brancosr Na mesma esfera e pelas mesmasrazes, a boa sorte tende a ser atribuda magia e no aos esp-ritos dos ancestrais. Um segundo exemplo do mesmo costume :a condenao da feitiaria-adivinhao pelo magistrado, em con-traste crena do chefe nas mesmas, expressa a anttese magis-trado e chefe, e esta anttese refora a crena que pode aparecerem ao. Em alguns casos, o feiticeiro acusado recorre proteodo magistrado, e o acusador procura o chefe. Em situaes dife-rentes, um mesmo homem pode desempenhar ambos os papis.O culto da famlia ao ancestral no pode expressar este conflito,embora, em relao aos seus ancestrais, o fundamento da crenaproporcione ao chefe um lugar na vida da Zululndia completa-mente diferente do ocupado pelo magistrado.27 Finalmente, o novoconflito entre seitas separatistas e as da igreja dos brancos podeser expresso em crenas baseadas na adivinhao mgico-feiticeirae no em termos de crenas de culto ao ancestral. Isto ocorreporque as seitas separatistas so constitudas por indivduos queno esto ligados por parentesco e, por isso, os padres podemse utilizar do conjunto de crenas relacionadas feitiaria, masno das crenas de culto ao ancestral.

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  • 2 Se novos conflitos que emergem em um grupo podemser expressos atravs de costumes exoculturais, tais costumes ten-dero a ser aceitos, Este processo mostra que cristos zulus sen-tem que devem construir boas casas e usar roupas europias- parademonstrar seu cristianismo e distinguir-se dos pagos. Os zulustm um termo especial, que de certa forma infamante, paradesignar pagos que usam calas compridas. Este processo tam-bm abrange a regra geral, formulada por Frzer, de que grupoconquistador tende a atribuir poderes msticos ao grupo conquis-tado, devido ao fato de no temer a sua fora. Sob esta regra,inmeros brancos acreditam nos poderes mgicos dos zulus, .acei-tando, dessa forma, as suas crenas. Entretanto, no tm motivoalgum para aceitar crenas de culto ao. ancestral, porque essasoperam em grupos de parentesco, nos quais os brancos no entram.

    3 Se-conflitos antigos e persistentes num grupo -podemser-" expressos em antigos costumes endoculturais, estes costumestendero a persistir. Por exemplo, conflitos de interesse entreirmos em relao herana, que dominaram e dominam gruposde parentesco zulu, foram e continuam sendo expressos em acusa-es de feitiaria e, numa extenso bem menor, ern recriminaesmtuas sob forma de sacrifcios, na medida em que sacrifciosso agora realizados raramente:25.

    ' 4 Se conflitos antigos num grupo podem ser expressosem costumes exoculturais, estes costumes tendero a ser aceitos.Na antiga cultura zulu nenhuma diferena marcante no padro devida poderia ocorrer, pois no havia luxo. Nem mesmo os chefespoderiam viver num nvel muito mais alto do que o seu povo.Hoje, acredita-se com freqncia que melhores casas, roupas, etc.so mais apropriadas s chefes Q que a plebeus. Assim sendo,por motivos de prestgio, os chefes devem se esforar para acumu-lar bens da cultura dos brancos. O mesmo processo induz uni pe-queno nmero de brancos, em suas" disputas entre si, a explicarseus infortnios em termos' das crenas zulus relacionadas - ma-gia e feitiaria. Por exemplo, a sra. H.- Kuper contou-me o casode um vendiro branco que contratou um mgico Swazi parausar magia de relmpagos a fim de ajud-lo contra um rival.

    5r Se antigos costumes podem expressar a emergncia ma-nifesta de antigos conflitos, que em perodos anteriores geralmente

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    eram reprimidos ti irrompiam em violncia publicamente desa-provada, esses conflitos tendem a persistir. H sempre uma fortetenso entre "pais e filhos zulus que, sob as antigas condies,no poderia ser expressa, exceto pela migrao; hoje, essa tensopode ser expressa em termos de feitiaria e um zulu pode seracusado pelo seu prprio filho de ter matado seus netos. Estesconflitos no podem ser expressos no contexto do culto ao ances-tral, pois o mesmo dependente das hierarquias de parentesco.Portanto, novamente, sob este processo, as crenas em feitiariatendero a persistir enquanto as crenas no culto ao ancestral nopersistiro. ' ,

    6 Costumes exoculturais, que podem expressar emer-gncia manifesta de conflitos que eram anteriormente reprimidosem um grupo, tendem a ser aceitos. Conflitos familiares consti-tuam uma causa poderosa, mas obviamente essa no era a nicacausa qu levava jovens zulus a sarem para trabalhar fora. Defato, Fortes considera que entre os tallensi, onde a migrao damo-de-obra masculina no a norma social como o na Zulu-lndia, os "conflitos familiares parecem ser causa da emigrao,ao 'invs de sua conseqncia".29 Similarmente, a converso erapor est razo, com" freqncia, aceita. Assim, por volta de 1890,pais zulus queixavam-se aos magistrados que suas filhas estavamfugindo para as misses, sendo que, aparentemente, brigas familia-res eram a causa dessas fugas. Em geral, mulheres zulus erammais propensas, converso do que os homens; caso o meu argu-mento sobre o status inferior das mulheres zulus estiver correto,esta situao era a esperada.30

    7 Se um novo conflito for incompatvel com a prtica deum comportamento cultural particular, este comportamento" serextinto. Na Zululndia moderna, o povo ope-se fortemente a queseus chefes cooperem "com" os magistrados. Enquanto trabalhavaem Johannesburg, o filho de uma proeminente autoridade polticazulu no tinha a permisso dos outros trabalhadores que perten-ciam ao distrito de seu pai para morar com eles. Sob a alegao deque "o -pai desse rapaz estava sempre vendendo seu povo'ao go-verno, estes trabalhadores abandonaram uma velha prtica locale de grupo de parentesco, que foi trazida das casernas do rei paraos centros dea mo-de-obra.

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  • 8 H outras variaes possveis da regra 7, como: se umnovo costume for incompatvel com um antigo conflito, h umatendncia para se resistir ao costume. Assim, homens opuseram-seao cristianismo devido ao seu discurso de igualdade em relaos mulheres.

    CLIVAGEM SOCIAL E COOPERAO SOCIAL

    Em qualquer sistema social existe uma tendncia coope-rao atravessando todas as direes de clivagem. Por isso, numsistema social em mudana, at que a clivagem dominante sejaradicalmente resolvida em um novo padro, existe cooperao atra-vs dessa clivagem, sendo que cada clivagem nova tende a sercompensada por uma forma nova de cooperao.

    1 Assim, vimos na seo sobre inrcia social que, numsistema em mudana, onde a clivagem dominante expressa-se emgrupos culturais (A) v. (B), vrios grupos cooperativos tendem aemergir: (a), (ab), (aB), incluindo membros de (A) e (B). Paracada novo grupo formado devido ao desenvolvimento da clivagemdominante, um novo grupo cooperativo tende a emergir. Assim,seitas separatistas variam em crenas e em relao sua coope-rao e hostilidade aos brancos e zulus: alguns membros dessasseitas casam-se com zulus pagos em cerimnias semipags, outrosno; alguns so dominantemente antibrancos, outros menos; al-guns concentram sua ateno na adivinhao, outros em crenasmessinicas, etc.

    2 Sob os princpios de sedimento social, a cooperaosocial, semelhante clivagem, tende a tomar cada uma das pos-sveis formas.

    3 Diferenas na cultura de dois grupos cooperativos, emum nico sistema social, fazem com que o desenvolvimento decostumes de comunicao entre ambos torne-se essencial.

    r i Se novos modos de cooperao entre velhos ou novos gru-pos, ou personalidades sociais, podem ser expressos em antigos cos-tumes, estes tendejp a sobreviver..Assim, os zulus saudaram os fun-cionrios governamentais brancos como saudaram os chefes e estesmodos de saudao sobrevivem na nova situao. A magia pode

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    ser usada para ganhar a simpatia dos empregadores brancos, en-quanto os sacrifcios so utilizados para trazer boa sorte nessetrabalho.

    ii Se um grupo (A) no pode contar com a sua prpriaendocultura num novo modo de cooperao com outro grupo (B),o grupo (A) deve aceitar a exocultura de (B). O exemplo mais claro a aprendizagem da lngua do outro grupo e a instituio deintrpretes. Se ambos os grupos adotam a exocultura um do outro,as exoculturas contrastantes podem ser combinadas, como emkitchen kajir (isipansi, isilunguboyi)*1 uma palavra da lnguafranca zulu-ingls-afrikaans.

    iii Mesmo quando um grupo (A) no aceita costumes deoutro grupo (B) para usar em suas prprias relaes intragrupais,adotar a exocultura de (B) em seus relacionamentos com (B).Assim, os brancos usam o zulu para falar com os zulus, raramenteentre si; zulus tiram seus chapus para cumprimentar os brancos,mas nunca para suas prprias mulheres.

    4 Se novos modos de cooperao dentro de um grupo (A)podem ser expressos na exocultura de (B), (A) tender a adotaresses costumes de (B). Com a disperso de parentes nos centrosde mo-de-obra, os zulus adotaram a troca de correspondncia.

    5 Se modos antigos e recorrentes de cooperao numgrupo (A) envolvidos em relaes com outro grupo (B) podemser expressos em novos costumes culturais, isto tender a ocorrer.Assim, a cooperao econmica entre parentes continua a existirno contexto do trabalho assalariado: parentes zulus vo juntospara os centros de mo-de-obra e programam suas ausncias paraque alguns deles sempre permaneam em casa.

    6 Se modos antigos e recorrentes de cooperao podemcontinuar a ser expressos em antigos costumes, estes costumes ten-dero a sobreviver. Por exemplo, a famlia extensa ainda cultivauma rea de terra e cuida dos rebanhos em conjunto.

    7 Se novos modos de cooperao entram em conflitocom a antiga endocultura, esta tende a se enfraquecer nas rela-es relevantes. Assim, o valor que a civilizao moderna brancaatribui produo pesada e riqueza diferenciada marcada-mente conflitante com as crenas em feitiaria. Devido a essascrenas, um homem que consegue produzir mais que seus cama-

    331

  • radas est propenso a ser suspeito d recorrer feitiari. Damesma forma, um homem que possui muitos bens materiais^ temeser atacado pela feitiari. Este processo deve tender a destruiras crenas em feitiari, na medida em que podem'afetar estasrelaes particulares.

    A mudana individual e social numa sociedadede grupos culturais heterogneos

    Antes de formular alguns processos atravs dos quais os indi-vduos afetam e ao mesmo tempo so afetados pela mudana social,gostaria de considerar o papel do indivduo num sistema social emmudana. : ;

    Uma mudana social tende a estar associada com grandesvariaes e conflitos individuais. Entre os zulus, isto, por exem-plo, aparece no aumento do nmero e dos tipos de adivinhos "pos-sudos" entre os quais saliente o aumento da proporo dehomens. Diferenas individuais de temperamento, que so em si'amplamente o produto das condies sociais, constituem, sem d-vida alguma, foras determinantes importantes nos processos demudana social. Todos os antroplogos enfatizam isso.32

    Contudo, como Fortes j salientou, "os agentes de contato"so "em larga escala, personalidades socialmente estereotipadas,tanto do ponto de vista dos nativos quanto do ponto de vistados rgos da civilizao europia, para quem funcionam comoinstrumentos". Isto se aplica tambm s personalidades sociais/ulus. O governo ocidental, as relaes industriais, as instituies,valores, tcnicas, etc. enfim, a cultura ocidental chegaram Zullndia atravs de pessoas eomo funcionrios governamentaise outros brancos, e a sua aceitao, livre ou forada, bemcomo a reao socialmente determinada dos zulus, que produziramnovos grupos e modos de comportamento. As personalidades sociaisbrancas e zulus constituem Os centros das novas instituies, con-flitos e ajustamentos, assim corno o eram' dos antigos que agorasofreram transformaes. Isto ocorre necessariamente dessa .forma,porque os indivdues sobrevivem atravs das grandes mudanassociais e as mudanas devem atuar por seu intermdio e aparecerem seu comportamento .

    332

    . Porm, os indivduos so somente os centros desses sistemasde relaes em mudana. Apesar de alguns especialistas teremcorretamente enfatizado a importncia de se estudarem personalida-des individuais em mudanas sociais, ningum conseguiu convin-centemente demonstrar que a personalidade de um chefe, missio-nrio ou administrador pode alterar a ao bsica das foras so-ciais fundamentais. Entretanto, essa personalidade pode determinarquais,,das foras sociais em conflito poderiam tornar-se tempo-rariamente dominantes. A converso do chefe Kgatla pode tersido causada pelo seu temperamento, ou o do missionrio, eisto,, por sua vez, vinculou a converso de toda sua tribo.33 Porisso,,o.agrupamento cristo-pago emergente na ,Zullndia noocorre, entre os Kgatla. Mas, enquanto na Zullndia a ciso emgrupos ligados nova e antiga cultura centra-se formalmentenesta, diviso, isto tambm no deixa de ocorrer entre os Kgatla.As, razes pelas quais indivduos aderem a um pu a outro gruposo .somente, em, parte, uma questo de temperamento. Entretanto,esta questo, no pode ser separada de uma srie de, problemasestruturais que requerem uma anlise das relaes familiares,grupais, polticas e de classe. O estudo da personalidade socialna mudana social deve estar situado na anlise das relaes so-ciolgicas em mudana. J vimos que os conflitos e as, tendnciasindividuais zulus encontram sua expresso nas mudanas culturaisem desenvolvimento.

    Alguns, escritores sugerem que a personalidade individual temuma importncia dominante, pois um administrador-popular podeinduzir uma tribo particular a aceitar uma. inovao, enquantoum administrador impopular no o consegue. Apesar da validadedesta observao, deve-se acrescentar que isto ocorre somente narelao bsica entre tribo .e governo. De fato, a popularidade deum administrador no pode alterar os efeitos do estabelecimentoda paz, do encorajamento ao fluxo de mo-de-obra, da limitaodas terras tribais, do enfraquecimento da autoridade do chefe, etc.Na Zullndia, o administrador contraposto ao chefe, e r a pon-derao do equilbrio em qualquer .distrito particular variar deacordo.com as personalidades individuais do administrador e dochefe, bem como com o assunto em questo, mas somente ,a partirdos limites definidos .da relao principal.34 Portanto, as variaes,de personalidade podem facilitar ou exacerbar as relaes sociais.

    333

  • As relaes sociolgicas bsicas determinam o desenvolvi-mento das organizaes sociais; a jortori determinam a expressopermitida s diferenas individuais de temperamento.

    Comportamento individual e mudana socialA partir deste pano de fundo, proponho formular aquilo que

    considero como sendo processos sociais tpicos, atravs dos quaiso comportamento individual causa mudana social.

    l (a) uma regra geral que, em qualquer sistema degrupos antagnicos, onde a filiao aos grupos pode ser mudada,os indivduos utilizam-se da oposio existente entre os gruposem seu prprio benefcio transferindo-se de um grupo para outro.Uma extenso desta regra que, num sistema de grupos culturaisantagnicos, membros de um grupo usaro a cultura do outrogrupo, quando isso lhes for vantajoso. Assim, os indivduos zulus,que enquanto zulus acreditam na oposio ao cristianismo dosbrancos, podem enviar seus filhespara- se -tomarem cristos-e_receberem uma educao que os habilite, mais tarde, a ganharmais dinheiro como professores.

    l (b) Uma segunda extenso da regra acima que, numsistema de grupos culturais antagnicos, onde a filiao aos gruposno pode ser mudada, membros de um grupo agiro em prol debenefcios prprios, atravs de alguma inovao da exocultura dooutro grupo. Alm do mais, podemos dizer que um membro de umgrupo cultural (A) pode aceitar inovaes de um grupo culturalantagnico (B) em seu prprio benefcio pessoal embora, comomembro de .(A), acredite que as inovaes comprometam seu grupo(A) (compare o processo de aceitao dentro do grupo, sob inrciasocial).

    Traidores em um sistema recorrente ilustram a generalidadedestes princpios. Na Zululndia, a venda de gado fornece umexemplo paralelo. O ideal social zulu o de adquirir cada vezmais gado. Em termos de clivagem dominante, os zulus acreditamque as tentativas desgoverno de induzi-los a vender seu gado tmcomo objetivo a destruio do bem-estar do seu grupo, que paraeles est associado posse de gado. Entretanto, inmeros dos pr-prios zulus que criticam os leiles de gado postos em prtica na

    334

    Zululndia do Norte e que repreendem os que vendem gado, cha-mando-os de traidores, tambm vendem gadd, quando precisam dedinheiro. Inmeros brancos, que constantemente temem que a mis-cigenao possa ameaar seu grupo, esto bastante dispostos a sa-tisfazer seus desejos com mulheres zulus.

    1 (c) Como uma conseqncia adicional das regras acima,podemos inferir que, quando os desenvolvimentos sob condiesde mudana social se reduzem a dois modos alternativos de com-portamento, a fim de assegurar vantagens pessoais, um indivduopode mudar de um comportamento para o outro e, se necessrio,mudar sua filiao aos grupos aos quais esses modos de compor-tamento esto associados. Por exemplo, pagos doentes tentam ocristianismo para obter a cura, e cristos doentes podem conver-ter-se ao paganismo; freqentemente so utilizadas tanto as pr-ticas pagas quanto_as crists. Um dos credos principais de umacerta seita separatista cmbma-a-adiyinhao com preces a Cristopara a recuperao do paciente. ~ ~.. ^

    2 Se um tipo de comportamento associado a uma~perso-nalidade social ou grupo no for mais possvel sob antigas formas 'em condies novas, o comportamento tende a ser expresso emformas novas. Se pode ser expresso na exocultura de outro grupo,esta exocultura ser adotada. Isto pode ser comparado com a afir-mao de Fortes de que: "cultura de contato no a causa doindividualismo, mas meramente fornece canais [adicionais M.G.]de expresso para este tipo de comportamento que comumenterotulado de individualista".35 Um prncipe zulu que no maisconsegue poder poltico na Zululndia pode exercer autoridadecomo policial ou funcionrio autorizado dos brancos e, assim, osbrancos tendem a usar prncipes sob um processo definido naseo anterior. Tendncias individualistas e lutas pelo poder ocor-rem tanto entre os brancos como nas seitas separatistas.

    3 (a) Se os interesses de uma personalidade social (ougrupo) so ameaados pela prtica contnua de alguns costumesendoculturais sob condies novas, essa personalidade ou grupotende a cooperar para o abandono desses costumes, mesmo se essescostumes contriburam anteriormente para manter seus interesses.Apesar de muitos adivinhos terem continuado a praticar a adivi-nhao em termos do culto ao ancestral, os prprios sacerdotesdesse culto que tambm eram chefes dos grupos de parentesco

    335

  • tinham interesse pessoal em deixar o culto enfraquecer, pelomenos parcialmente, a fim de manter os cristos ligados a eles.Por isso, velhos lderes zulus murmuravam as preces perante ani-mais sacrificados para que os parentes cristos comessem a carnesob o pretexto de que tratava-se de mera caa, e com o tempofreqentemente tornou-se mesmo apenas alimento.

    3 (b) Ao contrrio, se uma nova personalidade social pu-der usar em seu prprio interesse antigos costumes endoculturaisabandonados, tender a faz-lo. Os padres zulus pertencentes sseitas da igreja, dos brancos usam a antiga relao cultural zuluentre o infortnio e as brigas pessoais; que , a,essncia da adivi-nhao ,da,feitiaria, atravs da,promessa da proteo de Cristocontra os inimigos. . ,: 4 Como uma regra subsidiria da tendncia circulaoda .elite, podemos dizer que, quando os membros (especialmentea elite) de um grupo cultural inferior no podem entrar para umgrupo cultural superior, tendero a adotar todos os costumes dogrupo superior que puderem, esperando com isso conseguir igual-dade. Esta uma das principais foras sociais que induzem zulusa serem convertidos.

    5 Quando dois grupos culturais so desiguais em statuse a sua composio no pode ser mudada, alguns membros dgrupo inferior, que fracassaram em conseguir igualdade em rela-o ao grupo superior atravs da adoo da cultura deste grupo,tendero a reagir violentamente cultura do seu prprio grupo(sob o princpio "do valor grupai da endocultura de um grupo).Assim, muitos zulus bem educados, que tentaram em vo com-petir com os brancos, reagem violentamente cultura zulu.38

    6 .Aqui est um exemplo final da forma do processo queconsidero possvel de ser formulado para analisar o, papel dosindivduos na mudana social: dois ou mais conjuntos de grupode interesses podem .se interseccionar numa nica personalidadesocial, e isso resolve, em parte, os conflitos desses .interesses, em-bora_ essa personalidade seja enredada em fortes conflitos .pes-soais." Assim, os chefes zulus, que so

    tao mesmo,wtmpo buro-cratas da .administrao governamental e lderes de tribos que, seopem a essa administrao, introduzem a cultura ,do grupo brancoaos zulus.

    336

    Nota: de acordo com os processos descritos nesta seo, osindivduos parecem se deparar com um conflito absoluto entreseu prprio comportamento e os valores que mantm enquantomembros de um grupo. Contudo, um sistema social est em geralrepleto de contradies similares e no tem consistncia em si;no entanto, os conflitos so resolvidos, pois os indivduos podemagir de acordo com valores diferentes em situaes diferentes.Por isso, o indivduo resolve inmeros conflitos atravs daquiloque Evans-Pritchard admiravelmente designou de escolha situacio-nal e elaborao secundria da crena.38

    Concluso: algumas ilustraes da Zululndiasobre a aplicao destes processos

    Os processos formulados acima no so de modo algum exaus-tivos. Nesse sentido, falta-me espao para considerar o que ocorrecom os costumes durante a operao desses processos.

    Meu argumento que, formulando processos nestas direese relacionando-os ao funcionamento das foras fundamentais numasituao de mudana total, o socilogo pode ser capaz de expli-car, e mesmo de predizer, a obsolescncia, a revitalizao e a ado-o de cultura numa sociedade em mudana composta por gruposculturais heterogneos. Isto pode ser feito atravs da determinaodo equilbrio entre os processos de obsolescncia, "persistncia, re-vitalizao e a adoo de cultura. Nesta seo conclusiva demons-tro como esses processo tm funcionado na histria de duas insti-tuies zulus.

    Antes de prosseguir, repito uma vez mais que, no complicadoemaranhado de eventos concretos, nenhum processo aparece iso-lado. Inmeros eventos e inmeras leis de inmeros tipos pro-duzem o comportamento concreto. Em segundo lugar, causa eefeito so interdependentes e todos os eventos so tanto causasquanto efeitos. Homens inteligentes e progressistas tendem a cana-'lizar sua habilidade para o estudo e para o cristianismo, e oscristos, livres de crenas intelectualmente bloqueadoras e de certasuspeita dos brancos, tendem a progredir em direo aceitaoda cultura dos brancos.

    337

  • l Crenas no culto ao ancestral e na magia feiticeira:Em geral, na Zululndia, o culto ao ancestral extinguiu-se em gran-de parte, enquanto que as crenas em feitiaria e magia sobrevive-ram. Isto se torna interessante se levarmos em conta que o go-verno tentou eliminar fora as crenas em feitiaria, emboratenhamos visto que a presso do governo pode ser um fator demanuteno dessas crenas sob os processos de endocultura comoum valor de grupo. As razes para esta diferena emergem dassees anteriores, onde escolhi, deliberadamente, as prticas m-gico-feiticeiras e as de culto ao ancestral como exemplos fre-qentes.

    Os sacerdotes/lderes de grupos de parentesco a princpioopuseram-se ao cristianismo e tentaram manter o culto ao ances-tral, tendo reagido ao cristianismo por considerarem-no, entreoutras coisas, um ataque ao culto que conferia autoridade aossacerdotes. Porm, uma vez que o nmero de cristos, conver-tidos por vrias razes, aumentou num grupo particular, a ex-tino das prticas do culto ao ancestral foi necessria para evitara fragmentao do grupo misto resultante de pagos e cristos.Os lderes de grupos de parentesco cooperaram para essa extin-o. Atualmente, h sinais sob os processos de revitalizao daendocultura no antagonismo de grupos e na interpretao denovos conflitos atravs da obsolescncia da endocultura antiga,de que a tentativa de revitalizar o culto logo pode ser realizada.

    anlise acima aplica-se melhor ao culto do ancestral fa-miliar do que ao culto do ancestral poltico. Semelhantementeaos grupos de parentesco, as tribos so compostas por pagos ecristos. Entretanto, existe uma tendncia maior para a sobrevi-vncia do culto aos ancestrais dos chefes, devido a esse culto terdemarcado a oposio zulu aos-brancos. A relao do chefe comseus ancestrais e as tradies tribais constituem uma das basesda anttese do chefe ao magistrado,39 e apenas os ancestrais doschefes, e no os das famlias, podiam adquirir esses valores po-lticos.

    O culto ao ancestral tem limites sociais no grupo de paren-tesco, enquanto as crenas em magia-feitiaria no tm. Devidoa esta diferena, asfcrenas em magia-feitiaria puderam ser am-pliadas para a rede crescente de relaes fora do campo de pa-rentesco, tanto com outros zulus quanto com brancos. No pre-

    338

    ciso repetir esses processos (veja seo VI em especial). O cultoao ancestral depende tambm das hierarquias de parentesco. Amagia pode ser aplicada em relaes que ameaam tais hierar-quias. Assim, vimos como as crenas em magia-feitiaria podiamexpressar a emergncia de novos e antigos conflitos nos gruposde parentesco zulu, o mesmo no ocorrendo com o culto ao an-cestral.

    Entretanto, a nfase ocidental na produo pesada e naaquisio da riqueza individual pode tender a destruir as cren-as em feitiaria. Essas crenas esto relacionadas a um sistemaeconmico com pouca variao em produtividade ou riqueza,embora, atualmente, a competio crescente pelo trabalho paraos brancos e as maiores variaes de riqueza tenham aumentadoo temor pela feitiaria.

    2 A famlia extensa: Dentre as relaes sociais zulus,as de parentesco so as que persistiram por um maior perodode tempo atravs de grandes mudanas nas relaes sociolgicas.As famlias bilaterais e polgamas transitrias, que mantm cone-xes com dois conjuntos de parentes, so unidades reprodutivase econmicas. Atualmente, a famlia extensa amplamente unidapela produo conjunta. O estabelecimento da paz e a introduodo trabalho assalariado deram aos jovens a chance de serem in-dependentes e dividirem as propriedades rurais das famlias ex-tensas. Porm, aps a fisso, as famlias que constituam uma pro-priedade rural tendem a construir suas casas bem perto uma daoutra e a se referir a si prprios como: "ns somos uma s pro-priedade rural". Estas famlias geralmente se separam e se ex-pandem dentro de uma rea limitada de terra de propriedade dafamlia extensa patrilinear. de interesse comum manter esta pro-priedade em conjunto, no tempo e no espao, ao mesmo tempoem que esta o centro dos conflitos que causam cises. O cul-tivo da terra ainda organizado dentro da famlia e da famliaextensa, as quais geralmente permanecem como unidades econ-micas bsicas. O afastamento dos homens para os centros demo-de-obra torna a sua cooperao necessria no cuidado comsuas famlias, terras e rebanhos. Mesmo para os jovens que lu-tam pela independncia, o trabalho assalariado apenas uma dasatividades econmicas de um homem, e a dicotomia espacial des-sas atividades requer que a escala de ausncias, assim como a

    339

  • alocao das tarefas de cultivo, sejam feitas dentro de um grupo.Inevitavelmente, isso foi feito nos grupos de parentesco.

    O trabalho para os brancos requisitou o auxlio mtuo parasuportar a presso das novas condies. Assim, a afinidade ma-trilinear (alm da patrilinear) e meras relaes de vizinhana aindafixam padres de assistncia ao longo das mudanas no idiomacultural (por exemplo, ajuda em dinheiro, ao invs de em gado;durante a monarquia, os parentes dividiam cabanas militares nascasernas, hoje saem para trabalhar e morar juntos). Essas so re-laes que puderam ser adaptadas a modos antigos e persistentesde cooperao e a novos modos de cooperao com os brancos eno grupo zulu. Por isso, os zulus e sua cultura distintiva essencialsobreviveram.

    O cristianismo irrompeu nos grupos homogneos de paren-tes. O dinheiro e os produtos dos brancos introduziram a riquezaconsumvel, tornando possvel uma divergncia embora peque-na nos padres de vida, pois os salrios so baixos para todosos zulus. Os efeitos e os valores da industrializao e do cristia-nismo esto pressionando as relaes entre homens e mulheres,pais e filhos e entre irmos. Portanto, novos conflitos esto sendocriados entre novos e antigos valores. Conflitos antes reprimidosemergem manifestamente agora, como se v nas acusaes de fei-tiaria contra parentes, tipo de acusao nunca feita antigamente.Entretanto, as mudanas na organizao social e o desenvolvimentode modos alternativos de comportamento criaram no somentenovos conflitos como tambm condies que permitem a sua reso-luo pela ao situacional. A migrao de mo-de-obra ofereceao filho ou irmo mais novo a chance de escapar das dificuldadesfamiliares. Apesar do desenvolvimento de novas foras de distr-bio na famlia extensa, b nmero 'crescente de modos alternativosde comportamento tem freqentemente evitado rupturas declara-das em situaes onde o vnculo sentimental forte per se falharia.

    Notas

    1 Sou grato aos drs. A. I. Richards e E. Hellmann, srta. Joyce Gluck-man (sra. L. Miller), e ao sr. Godfrey Wilson pelas crticas a um pri-meiro rascunho desta seo.

    2 Para outros trabalhos, vide Select Bibliography of South African Native

    Life and Problems, de Shapera. Note que uso Zululndia e zululan-deses para indicar tanto zulus quanto brancos moradores da Zululndia.Zulu refere-se apenas a africanos.

    3 Campbell, Norman, What is Science! (Londres: Methuen, 1921), p. 37.

    4 Vide Campbell, ibid., p. 167, para uma nfase clara sobre esta ques-

    to. Ele escreve como fsico e seu argumento se aplica, a fortiori, aeventos sociais.

    s Vide seu Ls Rgles de Ia Mthode Sociologique (Paris, 1895). Traduo

    para o ingls: Glencoe, Illinois, 1938.6 Vide especialmente onde me refiro a formulaes anteriores sobre

    esta distino feita por socilogos e outros cientistas. Repito esteponto aqui por ser essencial ao meu argumento e sinto que o mesmoainda no completamente valorizado por alguns socilogos que escre-vem sobre a frica.

    7 Exemplo, os Tallensi (M. Fortes, in African Political Systems, op. cit.);

    Ankole (K. Oberg, ibid.); os Barotse (M. Gluckman, Economy of theCentral Barotse Plain, Rhodes-Livingstone Papers, n. 7); os Masai-Kikuyu (E. Huxley, Red Strangers); vrios sistemas de ndios ameri-canos (ed, R. Linton, Acculturation in Seven American Indian Tribes,Londres: Appleton-Century, 1940); os Trobriand-Dobua (B. Malinowski,Argonauts of the Western Pacific, op. cit.).

    s Esta conceituao do nosso campo foi introduzida com mais clareza no

    pensamento sociolgico por Radcliffe-Brown. H muito tempo vem sen-do adotada por outros cientistas, mas ainda falta obter uma aceitaoampla em Antropologia Social. Repito esta questo porque preciso dela

    340 341

  • para estabelecer minhas definies. Como Radcliffe-Brown no publicounada sobre este tema, aproveito a oportunidade para reconhecer meugrande dbito s suas conferncias e discusses esclarecedoras.

    " A condio "enquanto membros de grupos ou partidos nas relaessociais" delimita o campo da Sociologia do campo da Psicologia queestuda as relaes entre os mesmos eventos enquanto partes de sis-temas mentais individuais. Esta a distino entre estas duas cinciasfeita por Radcliffe-Brown.

    10 A relao entre relacionamentos vigentes e tpicos um dos campos

    especficos da Sociologia, especialmente no estudo dos sistemas em mu-dana.

    11 Introduo de African Political Systems, op. cit., p. 3.

    12 Devo agradecer ao prof. T. J. Haarhoff, da Universidade de Witwa-

    tersrand, por estes termos que me foram por ele sugeridos com relu-tncia quando lhe perguntei como poderia descrever os conceitos emquesto. Ele os considerou inadequados e artificiais, mas muitos dostermos que precisam ser criados tambm o so, e eu os emprego porserem essenciais ao meu argumento. A sra. H. Kupper sugeriu in-groupe out-group como termos adotados anteriormente, mas estes eram usa-dos com conotaes diferentes dos meus endocultura e exocultura.

    13 "Culture Contact as a Dynamic Process", Methods of Study of Cultural

    Contact in frica, op. cit.14

    Isto , as personalidades e grupos sociais aos quais se referem os cos-tumes: compare com a incidncia de um imposto.

    15 Vide I. Shapera, "Premarital Pregnancy and Native Opinion. A Note

    en Social Change", frica, VI, 1933, pp. 59-89, para um bom estudonesta rea. Tambm do mesmo autor, Married Life in an African Tribe(Londres: Faber & Faber, s.d.).

    16 Devido falta de dados para diversas reas, no posso especificar a

    proporo. Pode haver alguma lei estatstica operando aqui, relacio-nando o nmero de zulus em sees brancas e separatistas pressosobre a terra, etc., em sees particulares da comunidade principal.

    17 Cf. o peso de um rio o sedimento que carrega.

    18 Bantu Studies, junho de 1940, p. 167. "Inrcia aquela propriedade da

    matria que lhe confere a tendncia de, uma vez em repouso, assimpermanecer e, quando em movimento, continuar em movimento na mes-ma linha de fora e direo, a no ser que sofra a ao de algumafora externa" (Oxford Concise Dictionary). Entretanto, inrcia socialdeve ser vista como um desenvolvimento contnuo numa certa direo,

    , possivelmente com grandes mudanas sociais. No uso o termo nomesmo sentido dos antigos fsicos sociais; por exemplo, a lei da inrciade Bechtereff como ficou manifesta na existncia do conservadorismo,tradio, hbito, etc. Vjde P. Sorokin, Contemporary Sociological Theories(Nova Iorque: Harpei & Brothers, 1928), na pgina 19 e em algumaoutra parte do mesmo captulo.

    342

    19 Naven, Cambridge University Press, 1936.

    20 Study of Culture-Contact in frica, op. cit., pp. 93 e 104.

    21 Witchcraft, Magic and Oracles among the Azande, op. cit.

    22 De fato, ao reagir contra a cultura de um outro grupo, um grupo pode

    estar envolvido numa sria contradio. Assim, os nazistas tentaramesmagar a cultura dos povos que conquistavam, pois se a cultura deum grupo persiste, esse grupo tende a manter sua identidade e fora.Os nazistas desejam destruir a clivagem dominante que resulta emgrupos nacionais opostos a eles. Ao mesmo tempo, porm, colocamum grupo cultural contra outro e por isso tentam manter a culturade cada grupo inferior contra outros grupos inferiores, mas no contraeles prprios. Mas j fracassaram na tentativa de explorar dois princ-pios sociais contraditrios na mesma situao.

    23 The Nuer, op. cit.

    24 Vide o Relatrio sobre Trabalho Agrcola Nativo da Comisso do Go-

    verno da Unio, 1939.25

    Para um exemplo desta impreciso, vide o Relatrio da Comisso Eco-nmica Nativa do Governo da Unio, 1922/1932. Em contraposio,para um relato cientfico da admirao que os africanos possuem pelaqualidade do gado, vide Evans-Pritchard, The Nuer, op. cit., captulo I.

    26 Informao do magistrado que julgou o caso.

    27 Vide meu artigo em African Political Systems, op. cit., p. 51.

    28 No pretendo negar que estes conflitos foram e ainda so expressos de

    outros modos, tais como lutas, migrao e processos judiciais.29

    Study of Culture-Contact, op. cit., p. 51.30

    Vide, de minha autoria, "Zulu Women in Hoeculture Ritual", BantuStudies, setembro de 1935. Em Acculturation in Seven American Trbes,op. cit., Linton argumenta que as mulheres so convertidas mais rapi-damente que os homens, quando a sua participao na vida religiosada tribo vedada.

    31 Isipansi = linguagem inferior; isilunguboyi = menino, na linguagem dosbrancos, sendo um modo comum dos brancos se dirigirem aos afri-canos.

    32 Study of Culture-Contact, op. cit.; Hunter, p. 23; Shapera, p. 33; Cul->wick, p. 44, para uma citao contrastante de Fortes, ibid., nota derodap, p. 90.

    Shapera, Bantu Speaking Tribes of South frica, op. cit., p. 368. Istoaconteceu com mais de um chefe Tswana e pode haver razes sociaispara que isso ocorra. Kuper considera que o rei Swazi, e Fortes queos chefes Tallensi, no podiam ser convertidos sem alterar as relaesque mantm sua autoridade. O regente zulu e seu irmo foram con-vertidos enquanto o pai deles estava no exlio. Se a monarquia esti-vesse vigorando, considero que isso teria sido impossvel. O ltimo rei

    343

  • rompeu com a Igreja. A f crist do regente envolve-o em dificuldadescom a maioria dos seus sditos, que so pagos. Ele vem tentandoescapar dessas dificuldades ao fundar e dirigir uma Igreja NacionalZulu uma clivagem nova produzida pela clivagem dominante, ape-sar de no reconhecer que est fazendo isto, de acordo com os movi-mentos fundamentais.

    34 Discuti isso em Afrian Political Systems, op. cit, p. 50.

    35 Study of Culture-Contact, op. cit., p. 84.

    36 Vide meu artigo em Afrian Political Systems e os captulos iniciais

    deste ensaio. Infelizmente no posso dar nenhuma estatstica.37

    Vide acima, pp. 46, 48.38

    Witchcraft, Magic and Oracles among the Azande, op. cit. Vide acimatambm pp. 47-48.

    39 Vide meu artigo em Afrian Political Systems, op. cit.

    A ANALISE SITUACIONAL E O MTODODE ESTUDO DE CASO DETALHADO *

    /. Van Velsen

    O trabalho de campo etnogrfico orientado, mas no ne-cessariamente determinado, pela viso terica do antroplogo.Como regra, o leitor de monografias etnogrficas nunca pode tercerteza sobre que tipo de material foi realmente coletado e regis-trado pelo antroplogo em seus dirios de campo. Entretanto, asevidncias existentes indicam que antroplogos com formaoterica contrastante coletam diferentes tipos de material e usam

    ' mtodos variados para colet-lo. Isto se aplica particularmentea trs escolas sucessivas da antropologia inglesa, com as quaisme preocuparei aqui, que rotulei de "pr-estruturalista", "estru-turalista" e "ps-estruturalista". Neste ensaio eu me restringireiao mtodo que Gluckman denominou de extended-case method(o mtodo de estudo de caso detalhado), mas que prefiro chamar,por razes vrias, de "anlise situacional" (Van Velsen, 1964:xxv). Isto se refere coleta efetuada pelo etngrafo de umtipo especial de informaes detalhadas. Mas isto tambm implicao modo especfico em que esta informao usada na anlise,sobretudo a tentativa de incorporar o conflito como sendo "nor-mal" em lugar de parte "anormal" do processo social.

    344

    * Do original em ingls: "The Extended-Case Method and Situational Ana-lysis" in The Craft of Social Anthropology, (ed.) A.A. Epstein (Londres:Tavistock Publications Limited, 1967), pp. 129-152. Traduo de IrithG. Freudenhein.

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