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Um

A indumentária preferida de Kate O’Hare era a sua parka azul com as letras FBI gravadas nas costas, vestida sobre uma t-shirt preta básica e o correspondente colete preto à prova de bala. Este conjunto ficava bem com tudo, especialmente com calças de ganga e uma pistola Glock. A agente especial O’Hare, de 33 anos, não gostava de se sentir vulnerável e desarmada, sobretudo quando estava ao serviço. Por esse motivo, não era talhada para agente infiltrada, mas por ela não havia problema. Ela preferia mesmo o estilo duro da imposição da lei, que era exatamente o que estava a exercer, naquela tarde de 35 °C em Las Vegas, ao avançar em direção ao Hospital de St. Cosmas com a sua roupa preferida e seguida por uma dúzia de agentes vestidos da mesma maneira.

Enquanto os outros agentes se espalhavam pelo edifício para bloquear todas as saídas, Kate passou de rompante pelos seguranças no átrio e dirigiu-se, como um míssil teleguiado, ao gabinete de Rufus Stott, administrador-chefe do hospital, no primeiro andar. Passou pela aturdida assistente de Stott, sem sequer dar pela sua presença, e irrompeu pelo escritório adentro. Um Stott estarrecido guinchou e quase caiu da sua cadeira ergonómica de pele e cromados. Era um tipo pequeno e rechonchudo, como se uma qualquer feiticeira aborrecida tivesse pegado num nabo e, tocando-lhe com a sua varinha mágica, o tivesse transformado num engravatado de 55 anos. Tinha um bronzeado artificial, óculos de tartaruga e rugas brancas nos sulcos do bronzeado. As mãos estavam sobre o coração e ele tentava recuperar o fôlego.

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— Não dispare — conseguiu dizer, finalmente.— Não vou disparar — respondeu Kate. — Nem sequer

saquei da arma. Precisa de água ou outra coisa qualquer? Sente--se bem?

— Não, não me sinto bem — disse Stott. — Acabou de me pregar um susto de morte. Quem é você? O que quer?

— Sou a agente especial Kate O’Hare, do FBI.Pespegou uma folha de papel em cima da secretária

dele.— E isto é um mandado de busca que nos dá acesso total

à ala privada.— Não temos uma ala privada — disse Stott.Kate inclinou-se sobre ele e olhou-o com o azul intenso

dos seus olhos.— Seis pacientes obscenamente ricos e desesperados che-

garam cá hoje de avião, vindos de todo o país. Foram trazi-dos em limusinas do Aeroporto McCarran para aqui. Depois de chegarem à sua ala privada, cada um deles depositou um milhão de dólares na conta offshore do Hospital St. Cosmas e, imediatamente, passaram para o topo da lista de espera para transplante de órgãos.

— Só pode estar a brincar — respondeu Stott. — Não temos contas offshore e certamente não temos dinheiro para alugar limusinas. Estamos à beira da falência.

— É por isso que anda a fazer transplantes fora dos circui-tos legais, usando órgãos que compra ilegalmente no mercado negro. Sabemos que estes pacientes estão cá e se encontram neste momento a ser preparados para cirurgia. Se for preciso, vamos isolar este edifício e revistar cada quarto e cada arreca-dação de alto a baixo.

— Faça favor — disse Stott, devolvendo-lhe o mandado de busca. — Não andamos aqui a fazer transplantes nenhuns nem temos nenhuma ala privada. Nem sequer temos loja de recordações.

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Stott já não parecia assustado nem parecia estar a mentir. Não era bom sinal, pensou Kate. Ele devia estar com suores frios. E devia estar a telefonar ao seu advogado.

Dezoito horas antes, Kate estava sentada à sua secretária, em Los Angeles, a analisar informação dispersa sobre um cri-minoso procurado, quando encontrou referências a um hos-pital de Las Vegas, com dificuldades financeiras, que estava a oferecer transplantes de órgãos pela oferta mais alta. Pesqui-sou melhor e descobriu que os pacientes já se encontravam em trânsito para Las Vegas, para se submeterem às respeti-vas cirurgias, pelo que largou tudo e organizou uma operação policial de emergência.

— Veja isto — disse ela, mostrando a Stott uma fotografia que tinha no iPhone.

Tratava-se de um homem aproximadamente da mesma idade que ela, que envergava um polo largo e desbotado por anos de uso. O cabelo castanho estava despenteado. O rosto iluminava-se-lhe com uma expressão infantil que reforçava as linhas de riso no canto dos olhos castanhos.

— Conhece este homem? — perguntou.— Claro que conheço — respondeu Stott. — É o Cliff

Clavin, o engenheiro que está a tratar da remoção do amianto do nosso antigo edifício.

Kate sentiu uma dor surda no estômago, e não era por causa da sandes de ovo e salsicha que tinha comido ao pequeno-almoço. O estômago, liso e tonificado apesar dos seus péssimos hábitos alimentares, era a parte do corpo onde as suas ansiedades e instintos se manifestavam, comunicando com ela através de uma linguagem de cãibras, dores, pontadas e mal-estar geral.

— Cliff Clavin é uma das personagens da série Cheers — retorquiu ela.

— Pois é, que coincidência incrível, não?— Qual é o edifício antigo de que fala?

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Stott virou-se para a janela e apontou para um prédio de cinco andares do outro lado do parque de estacionamento.

— É aquele.O prédio era uma obra arquitetónica dos inovadores anos

60, com os seus pormenores em rocha de lava, grandes jane-las de vidros fumados e uma porta de entrada encimada por cascalho branco.

— Aquele era o hospital original — disse Stott. — Saímos de lá há um ano. Construímos este novo para responder à pro-cura de camas que prevíamos, erradamente...

Kate já não estava a ouvir. Correu imediatamente para a saída. Assim que viu o outro edifício, percebeu logo como é que ela e os seis pacientes ricos tinham sido enganados. O homem que estava na fotografia do iPhone não era Cliff Clavin e não era engenheiro. Era Nicolas Fox, o homem que ela procurava quando se deparou com o esquema de trans-plante de órgãos.

Fox era um golpista e ladrão internacionalmente procu-rado, conhecido pela extrema audácia dos seus golpes de alto risco e pelo óbvio prazer que deles retirava. Por maiores que fossem os seus feitos, e já contava com alguns bem grandes, voltava sempre com outros novos.

Kate assumira como sua missão no FBI conseguir apanhá--lo. Dois anos antes, tinha estado perto disso, quando desco-briu que Nick tinha um plano para esvaziar de todo o dinheiro e joias a penthouse de um prédio de 20 andares em Chicago, pertencente a um investidor imobiliário, enquanto o próprio, que se autointitulava «Rei das Aquisições Hostis», se casava na sala de estar.

Era uma ideia arrojada, com a marca Nick Fox. Para a pôr em prática, ele conseguiu, de alguma maneira, que o contra-tassem como organizador do casamento e levou consigo um grupo de delinquentes que se fizeram passar por empregados. Quando Kate irrompeu pelo casamento adentro com uma

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equipa de intervenção, o grupo de Nick dispersou como um monte de baratas que fogem quando as luzes se acendem, e Nick saltou de para-quedas do topo do edifício.

Vieram helicópteros, fecharam-se ruas, montaram-se blo-queios de estrada e revistaram-se prédios, mas Nick tinha desaparecido. Quando, ao cair da noite, Kate chegou final-mente ao quarto de hotel, tinha à sua espera um ramo de rosas e uma garrafa de champanhe. Cortesia de Nick. Mas a cobrar na sua conta, claro. Durante todo o tempo em que Kate esti-vera a persegui-lo, Nick estivera a relaxar no quarto dela, a ver filmes no videoclube da televisão, a usar o serviço de quarto e até a servir-se dos Toblerones em miniatura que ela tinha no minibar. Quando saiu, roubou inclusivamente as toalhas da casa de banho.

— Este filho da mãe anda a divertir-se demasiado às minhas custas — pensou Kate, enquanto atravessava que nem uma flecha o átrio do hospital, perante o olhar espantado de dois agentes, e saía para a rua em direção ao outro lado do parque de estacionamento.

Quando chegou à vedação de arame farpado que rodeava o edifício do hospital, já transpirava e sentia o seu coração a bater com tanta força que quase conseguia ouvi-lo. Sacou da arma e aproximou-se lentamente da porta da entrada. Já mais perto, viu uma carpete vermelha no chão e uma placa, escon-dida pelas sombras do nicho por baixo do pórtico, que dizia:

Bem-vindo à ala privada do Centro Médico de St. Cosmas.Pedimos desculpa pela poeira, mas estamos a remodelar

para lhe proporcionar mais privacidade, luxo e tecnologia de ponta em saúde.

Colando-se às paredes de rocha de lava, aproximou-se mais da porta, abriu-a de rompante e saltou para o espaço aberto, em posição de disparar. Mas não havia ninguém a quem apontar.

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Kate deparou-se com uma sala preenchida por mobiliário con-temporâneo em pele, chão em travertino e plantas luxuriantes.Na parede por trás da receção vazia havia fotografias das equi-pas de cirurgia. Kate reconheceu imediatamente duas das caras. Uma pertencia a Nick Fox, que tinha um estetoscópio à volta do pescoço e respirava força e confiança médicas.A outra era ela, com um sorriso apalermado no rosto. A ima-gem tinha sido recortada e trabalhada em Photoshop, a partir das fotografias da despedida de solteira da sua irmã Megan, que tinham sido tiradas há uns anos e agora constavam na sua página de Facebook. Em letras de bronze estava escrito por baixo da fotografia de Nick, «Dr. William Scholl», e, por baixo da dela, «Dra. Eunice Huffnagle».

Muito bem, e onde andava agora a equipa cirúrgica?, perguntou a si própria. E os seis pacientes milionários que tinham vindo de trás do sol-posto para fazer um transplante de órgãos?

Dirigiu-se às portas duplas que se viam de um dos lados da receção. Abriu-as e entrou numa sala, pronta a disparar. Mas, mais uma vez, não havia ninguém. Mesmo à sua frente, viu mais três conjuntos de portas duplas. Uma dizia «Sala de Operações N.° 1», a outra a seguir, «Pós-Operatório N.° 1», e a terceira, «Pré-Operatório». À esquerda havia um elevador, e à direita umas escadas.

Kate abriu a porta da sala de operações e encontrou uma sala totalmente equipada para cirurgias, cujo design parecia o de uma loja da Apple. Era tudo branco e elegante. Todo o equipamento brilhava tanto como carros novos numa feira automóvel.

Fechou a porta e espreitou para a sala do pós-operatório. Havia a típica cama hospitalar, o suporte vertical para os medi-camentos e os habituais aparelhos de monitorização, mas as semelhanças com qualquer outro hospital terminavam aí.O quarto estava magnificamente decorado com mobília francesa,

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prateleiras decoradas com livros de lombadas de pele, um ecrã plano de televisão e um bar cheio de bebidas espirituosas.

Ele é esperto, pensou Kate. Apresentar-se como uma empresa de remoção de amianto era o disfarce ideal para o esquema de Nick. Não só garantia que ninguém se aproxima-ria do antigo edifício do hospital, como Nick e o seu grupo poderiam criar à vontade o cenário e a encenação para o golpe.

Por fim, entrou na área do pré-operatório. A porta abriu--se para um longo corredor, com um balcão de enfermagem abandonado e várias divisórias fechadas com cortinas. Com cuidado, afastou a primeira cortina. Um homem de meia- -idade, inconsciente, estava deitado numa maca, com uma bata do hospital vestida e ligado por um tubo a um medica-mento pendurado no suporte vertical. Kate verificou-lhe o pulso, que estava forte.

Atravessou o corredor, abrindo as cortinas à medida que passava. Os seis homens que tinham chegado nesse dia ao aeroporto estavam ali, todos eles profundamente adormecidos e, segundo julgava, um milhão de dólares mais pobres.

As janelas do edifício vibraram e ela ouviu o som incon-fundível das pás de um helicóptero. Ocorreu-lhe de imediato que Nick Fox estava no telhado. Outra vez!

Correu em direção às escadas e subiu os quatro anda-res o mais rápido que conseguiu, o que foi espantosamente depressa, para uma mulher cujos jantares constavam normal-mente de frango assado, hambúrgueres, pizzas e batatas fritas.

Entrou de rompante no telhado, pronta a disparar, e viu um helicóptero pousado, dos «Passeios Aéreos Las Vegas», com a porta lateral aberta e vários «médicos» e «enfermeiras» no interior.

Nick Fox não estava entre eles. Estava descontraidamente parado a meio caminho entre ela e o helicóptero, de mãos nos bolsos, com o vento provocado pelas pás a despentear-lhe o cabelo e a fazer esvoaçar a bata de médico que tinha vestida como se fosse a capa de um super-herói.

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Kate tinha imaginado o homem dos seus sonhos aos doze anos de idade e mantivera-se fiel a essa imagem. Esse homem de sonho tinha cabelo castanho macio, olhos castanhos e inte-ligentes e uma expressão infantil. Media 1,85 m e exibia um corpo magro e ágil. Era esperto, divertido e sexy. Por isso, era com uma terrível noção de ironia que, ao longo dos últimos dois anos, Kate se tinha apercebido de que Nick Fox era a per-sonificação viva desse homem de sonho.

— Dr. Scholl? — gritou ela, por cima do barulho das pás do helicóptero. — A sério?

— É um nome muito respeitado na medicina — gritou ele em resposta. — Fico satisfeito por ver que usas os seus produ-tos para pés sensíveis.

Nick sabia que ela usava as palmilhas Dr. Scholl dentro dos ténis Nike pretos. Era uma das muitas coisas que ele tinha ficado a saber sobre ela nos últimos dois anos. A maior parte dessas revelações intrigava-o. Algumas outras assustavam-no. Esse medo advinha de uma atração física que sentia por Kate e que não conseguia explicar.

Ela tinha cabelo castanho apanhado num rabo-de-cavalo, e a pele, lisa, apresentava um ligeiro brilho de suor, devido à corrida pelas escadas acima e pelo parque de estacionamento. Era sexy, mas ele desconfiava que a fantasia que aquele brilho lhe inspirava era melhor do que a realidade. Ela só pensava no trabalho. Prova-velmente, deitava-se com o colete à prova de bala. Fim de história. E, no entanto, ele gostava de brincar com ela. Gostava dos seus grandes olhos azuis, do seu nariz pequeno e engraçado, do seu corpo atlético e da sua inabalável determinação em transformar o mundo num sítio mais cumpridor da lei. Isso tornava muito mais interessante a sua própria dedicação ao mundo do crime.

— Estás preso! — gritou ela.— Como é que chegaste a essa conclusão?— Porque a minha arma está apontada a ti e eu tenho uma

pontaria perfeita.

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Kate deu mais um passo em direção a ele. Ele recuou, tam-bém um passo.

— De certeza que tens, mas não vais disparar contra mim.— Na verdade, nem sei porque é que não te abati já.Outro passo em direção a ele.— Ainda estás chateada por causa dos Toblerones? — Ele

voltou a recuar.— Se deres mais um passo, disparo.— Não podes.— Consigo acertar nos testículos de uma águia a cem

metros.— As águias não têm testículos.— As minhas metáforas podem ser más, mas a pontaria

é excelente.— Não podes disparar porque eu estou desarmado e não

represento nenhuma ameaça física.— Mas posso disparar contra o helicóptero.— E arriscas-te a que ele caia em cima de um hospital

cheio de crianças? Não me parece.— Não há crianças no hospital.— A questão não é essa. — Nick olhou de relance para

o parque de estacionamento lá em baixo e viu uma série de agentes do FBI a correr em direção ao edifício. Voltou a olhar para Kate, que avançou mais dois passos. — Foi bom voltar a ver-te, Kate.

— Para ti, é agente especial O’Hare. E não vais a lado nenhum.

Ele sorriu e correu para o helicóptero.— Bolas! — Ela guardou a arma e foi atrás dele.Mesmo depois de subir a correr quatro andares de esca-

das, ainda conseguia ser mais veloz do que ele, facto que lhe agradava. Estava a aproximar-se rapidamente e tinha quase a certeza de que iria conseguir apanhá-lo antes de ele chegar ao helicóptero.

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Aparentemente, o piloto e a equipa de Nick pensavam o mesmo, pois, de repente, o helicóptero levantou voo sobre o edifício, deixando o seu líder para trás.

Nick aumentou a velocidade da corrida como se o telhado ainda se prolongasse por mais umas centenas de metros, em vez dos poucos que faltavam para acabar.

Com um horror crescente, Kate apercebeu-se do que ele tencionava fazer. Ia saltar. E, desta vez, não tinha para-quedas.

— Não! — gritou, atirando-se a ele, na esperança de o apanhar antes que ele cometesse um erro fatal. Tarde demais. Falhou por centímetros e caiu no cimento, enquanto Nick saltava em direção ao helicóptero suspenso. O coração parou- -lhe por momentos enquanto ele estava no ar e voltou a bater quando ele se agarrou ao trem de aterragem. Segurou-se com uma mão, e com a outra mandou-lhe um beijo. Depois disso, o helicóptero desapareceu em direção à faixa luminosa de Las Vegas.

Passados alguns segundos, Kate estava agarrada ao rádio, tentando pôr um helicóptero da polícia no ar e viaturas nas estradas, para a perseguição a Nick. Sabia que era inútil, mas ainda assim seguiu os trâmites.

Havia meia dúzia de helicópteros iguais ao dos «Passeios Aéreos Las Vegas» no espaço aéreo por cima de Las Vegas e, embora apenas um deles tivesse um homem pendurado no trem de aterragem, quando Kate conseguisse passar a pala-vra, o helicóptero de Nick já teria desaparecido. Também não ajudava muito que, no meio daquela confusão, ela não tivesse conseguido ver o número de cauda, para que os controlado-res aéreos pudessem localizá-lo. Não é que importasse muito. Aquele helicóptero não pertencia certamente àquela empresa. Só tinha sido pintado para parecer que sim.

Kate saiu diretamente do hospital para o quarto que alu-gara no Circus Circus, o hotel mais barato que tinha encon-trado na zona. Aproximou-se silenciosamente da porta, com a

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mão na arma que tinha à cintura. Passou o cartão na ranhura e abriu devagar a porta, na esperança de que Nick tivesse sido suficientemente arrogante para fazer duas vezes a mesma graça e esperando apanhá-lo em flagrante.

Não teve essa sorte. O quarto estava vazio e tinha o cheiro fresco de uma piscina com cloro. Sentou-se na beira da cama e suspirou. Não tinha sido o seu melhor dia. E sabia que tinha sido parva em deixá-lo escapar, em vez de arranjar uma des-culpa para o alvejar. E tinha muitas, sendo a última delas a fotografia da «Dra. Eunice Huffnagle», que conseguira tirar da parede antes que alguém a visse.

Olhou sorumbática para a sua imagem no espelho e come-çou a despir o colete à prova de bala. Foi então que reparou. Primeiro, não quis acreditar e teve de olhar por cima do ombro para se certificar, mas ele lá estava: um Toblerone em cima da almofada.

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Dois

Seis meses depois...

Quando uma pessoa normal acumula demasiada tralha e esta deixa de lhe caber em casa, aluga um contentor, mete tudo lá dentro, põe-lhe um cadeado barato e começa imediata-mente a comprar mais tralha. Mas, se for alguém com a idade e o dinheiro de Roland Larsen Kibbee, constrói um museu para guardar tudo, grava o seu nome em mármore no cimo da porta de entrada e cobra bilhete a quem quiser admirar a tralha e, por inerência, o seu proprietário.

Abrir um museu não tem só a vantagem de libertar a man-são de tralha, tem a vantagem adicional de ser um enorme símbolo de estatuto, difícil de igualar, mesmo numa época em que os bilionários se entretêm a mandar foguetões para o espaço. A coleção de pintura, escultura e joias de Roland fora adquirida com a fortuna que fez comprando quintas falidas na Califórnia, de onde expulsou os donos e onde fez a colheita das suas culturas com a mão-de-obra mais barata possível, tor-nando-se assim num dos maiores empregadores de imigran-tes ilegais daquele estado e um pilar da economia do México.

Mas, claro está, não abriu o seu museu no México. A cole-ção de arte Roland Larsen Kibbee ficou estabelecida em São Francisco, numa enorme mansão de Pacific Heights, cons-truída segundo o modelo de um castelo francês.

A forma de fazer negócio de Roland colidia com os ideais sociais da sua curadora de 26 anos, Clarissa Hart. A sua licen-ciatura em Belas-Artes não lhe dava emprego, e ela tinha um empréstimo universitário de 97 000 dólares para pagar, mas passar mais um dia que fosse em casa dos pais poderia

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levá-la a sufocá-los com uma almofada durante o sono. Por isso, engoliu os seus ideais e aceitou o ordenado mensal que Roland lhe pagava. Além disso, ainda que o Kibbee não fosse o Guggenheim nem o Getty, e as obras de arte, maioritaria-mente de nus, fizessem Clarissa sentir-se a anfitriã de uma Mansão da Playboy, mesmo assim ela tinha prazer no facto de ser uma verdadeira curadora de museu.

A coleção de pintura e objetos artísticos estava exposta em corredores e salas pessoais, para que os visitantes se sentis-sem como convidados em casa de Roland, embora o magnata de 85 anos que se dedicava aos negócios agrícolas nunca ali tivesse vivido. Morava em Palm Beach, na Florida, com uma stripper de 22 anos chamada LaRhonda, que estava à espera de que ele morresse. Depois de ele exalar o seu último sus-piro, ela tencionava apoderar-se do Pingente Carmim, um dia-mante raro vermelho de dois quilates que constituía a última aquisição de Roland.

O Pingente era também a grande oportunidade de Roland para reforçar o seu prestígio e, por isso, antecipando a noite da apresentação do Pingente Carmim no museu, polia-se o chão de mármore, restauravam-se os painéis das paredes e substi-tuíam-se os cadeirões de cabedal por modelos mais recentes. Clarissa estava a fazer uma visita guiada ao inspetor Norman Peterson, que aparecera para falar com ela sobre o controlo de tráfego durante o período da exposição e para se certificar de que o museu tinha tomado as medidas de segurança ade-quadas para proteger o diamante.

— Passei aqui de carro milhares de vezes e nunca repa-rei que havia um museu — disse Peterson, coçando o bigode que mais parecia uma centopeia adormecida por baixo do seu nariz largo.

Usava o distintivo numa fita pendurada ao pescoço, no que parecia a Clarissa uma tentativa mal sucedida de disfar-çar a grande barriga e a nódoa que tinha na gravata. Dava-lhe

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trinta e tal anos, se bem que achava que ele não chegaria aos quarenta, se não alterasse os seus hábitos alimentares.

Tinha acertado na idade mas falhado em tudo o resto. O inspetor Peterson era, na verdade, Nick Fox, com o corpo almofadado para parecer gordo e o rosto disfarçado pela hábil aplicação de próteses e maquilhagem.

— Somos um museu boutique — respondeu Clarissa, enquanto contornavam a equipa que colocava os móveis novos no lugar.

— Isso quer dizer o quê?Ela podia ter respondido que queria dizer que era um

museu mais pequeno, mais íntimo e mais cuidadosamente gerido do que os museus maiores, mas algo nele e na sua absoluta falta de pretensão fê-la mudar de ideias.

— Quer dizer que as pessoas passam por aqui milhares de vezes e nunca reparam em nós.

— Isso é uma pena, porque há aqui peças bastante boas.Nick parou a olhar para uma estátua de mármore em

tamanho real, com 500 anos, de uma mulher nua sentada num tronco de árvore e apertando o seio esquerdo.

— É estranho que não tenha trazido uma almofada ou uma manta, para se sentar.

— Ela não tinha esse tipo de preocupações.— Bem, ninguém quer espetar uma lasca de madeira no

rabo, pois não? Quem era ela?— Afrodite — respondeu Clarissa.— Não conheço — disse Nick. — Mas repare que está

a falar com um tipo que entra num Museu de Cera e não reconhece metade das pessoas supostamente famosas que lá estão.

Clarissa olhou-o de relance, para confirmar se ele estava ou não a gozá-la, mas pareceu-lhe sincero. Ela nunca tinha visitado um Museu de Cera, mas sabia que provavelmente teria mais visitantes num dia do que o Kibbee num mês.

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— Era a deusa grega do amor, inspetor. A história da sua origem é interessante. O jovem e invejoso Titã Cronos queria destronar o seu pai, Úrano, deus do Universo. Então, cortou os genitais do pai com uma foice e atirou-os ao mar, e nesse mesmo local surgiu Afrodite, no meio da espuma das ondas.

— E ela é a deusa do amor? — perguntou Nick. — Isso é brutal.

— Podemos dizer que é esse o tema por detrás de todas as peças da coleção do Museu Kibbee — respondeu Clarissa, embora ela própria duvidasse que houvesse qualquer tema por detrás das aquisições artísticas de Roland ou das suas mulhe-res, para além de uma fixação óbvia por seios. — O lado negro do amor. E também temos o esplendor do Pingente Carmim.

— Pensava que o tema desse era valer um infinitilião de dólares.

— Vale perto de 15 milhões. É um diamante raro, mas, como peça de arte, o seu valor advém da sua história.

Levou-o até à sala onde o Pingente Carmim estava exposto, ao centro, numa caixa de vidro, em cima de um pedestal de mármore trabalhado.

— É conhecido por todo o amor, morte e tristeza que sem-pre o rodeou.

Nick conhecia bem a história do diamante. Fora desco-berto por dois jovens naturalistas britânicos, em 1912, quando atravessavam a África do Sul. O casal estava muito apaixonado e queria usar o diamante para um anel de noivado, mas, assim que se soube da sua descoberta, foi abordado por ladrões armados de catanas e o diamante foi roubado.

A pedra acabou por ir parar à Rússia, onde foi utilizada num colar que o czar Nicolau Romanov ofereceu à sua esposa, Alexandra. Mais tarde, esta passou-o à sua filha Anastácia, que o usava debaixo do vestido, juntamente com outras joias de família, quando toda a família foi executada em julho de 1918.

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As joias, pilhadas do cadáver de Anastácia e dos outros membros da família e seus criados, foram vendidas e reven-didas, e o colar não voltou a aparecer, até ao dia 3 de novem-bro de 1929, altura em que o banqueiro Dick Epperson e a sua esposa Dollie, completamente falidos devido ao crash da Bolsa no mês anterior, vestiram a sua melhor roupa, deram um último beijo e saltaram de mãos dadas da varanda do seu apartamento na Park Avenue. O colar com o Pingente Car-mim estava ao pescoço de Dollie. Nunca ninguém descobriu como é que lhe tinha ido parar às mãos, mas os seus herdeiros depressa o venderam para saldar algumas dívidas.

Outros donos e outras tragédias se seguiram nas décadas subsequentes, sem que se fizesse história, até que, diz a lenda, terá sido adquirido por um admirador secreto que o ofereceu a Marilyn Monroe, pouco antes da sua morte, em 1962. O dia-mante não voltou a ser visto até há pouco tempo, quando Victoria Burrows, herdeira de uma companhia de petróleo, morreu aos 87 anos na sua mansão de Santa Bárbara, da qual não voltara a sair desde a morte do marido, em 1965.

«O Roland Larson Kibbee apoderou-se do diamante aquando da venda da propriedade dos Burrows, e agora é a minha vez de o tirar ao Kibbee», pensou Nick.

— Dizem que o diamante está amaldiçoado — continuou Clarissa. — Principalmente quando se trata de apaixonados.

— Seja como for, podem querer roubá-lo. O que é que os pode impedir?

— Um sistema de alarme ultrassofisticado, campos mag-néticos em volta das portas e janelas e, nesta sala, só para começar, detetores de movimento e de calor e meia dúzia de câmaras sem fios — respondeu. — E há de reparar que a sala não tem portas nem janelas.

— Claro que reparei — disse Nick, olhando em volta. — Sou um polícia treinado.

E ladrão.

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— Pode dizer-se que esta sala é, na verdade, um cofre aberto e bem decorado. Só há uma entrada, que é essa arcada por onde acabámos de passar. Se algum dos sistemas de segu-rança for ativado, fecha-se uma porta oculta, com 60 cm de espessura e em aço reforçado, que isola o pretenso ladrão e envia um alerta instantâneo diretamente para a sua esqua-dra. Quando tempo pensa que poderá demorar a chegar aqui, depois de o alarme soar?

— Mas o tipo fica isolado, certo?— Praticamente enterrado vivo. A porta foi concebida para

aguentar explosivos e horas de assalto concentrado com maça-ricos ou berbequins.

— Então, qual é a pressa? — Nick deu um risinho. — Tal-vez pare no Starbucks quando vier a caminho, só para deixar o tipo à rasca.

— Partindo do princípio de que ele não foi esborrachado por meia tonelada de aço, antes mesmo de ter entrado na sala.

— Nesse caso, ainda há menos razões para nos preocu-parmos — disse Nick. — Diga-me lá qual é o seu café prefe-rido, que eu também lhe trago um, se viermos a encontrar-nos nessa situação.

— Café doce com canela, por favor.Clarissa sorriu. O tipo não tinha grande figura, mas tinha

charme.— Quer ver o resto do museu?— Há mais mulheres nuas?— Há — respondeu ela.— Então, vamos lá ver isso.— Isto é um pouco estranho — disse ela —, mas havia um

Norm Peterson na série Cheers.— Mera coincidência — respondeu Nick.

***

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Às 21h52 dessa noite, quem estivesse no interior do Museu Kibbee teria oportunidade de ver uma cena surpreendente. Infelizmente, os dois vigilantes, que estavam numa sala a olhar com pouca atenção para as câmaras, não conseguiam vê-la.

Durante a tarde, um conjunto de cadeirão e sofá em cabe-dal tinha sido colocado no átrio que dava acesso à sala onde estava exposto o Pingente Carmim. Nessa sala havia câmaras apontadas para o cadeirão e para o sofá, mas um dos lados de cada uma das peças estava fora do ângulo de visão, e foi exa-tamente por aí que o cabedal começou a soltar-se, revelando dois homens. Um deles tinha estado numa posição enrolada dentro do cadeirão. O outro estivera deitado dentro do sofá. Ambos estavam completamente cobertos, da cabeça aos pés, por um fato verde colado ao corpo.

Se o Homem-Aranha fosse completamente verde, não dis-parasse teias dos pulsos e tivesse plena consciência do con-torno bastante exposto das suas partes íntimas, seria igual a estes homens.

O Homem Cadeirão levantou-se e tirou um lençol verde dobrado e uma pequena mochila verde de dentro do cadei-rão. O Homem Sofá levantou-se e tirou duas pranchas finas e embrulhadas em tecido verde de dentro do sofá. As pranchas leves e do tamanho dos homens tinham pegas na parte de trás, para que eles pudessem segurá-las como se fossem escudos.

Nesse momento, um dos dois vigilantes olhou para o monitor da câmara daquela sala e não viu nada de invulgar.O Homem Cadeirão, o Homem Sofá, o contorno das suas partes íntimas e as coisas que transportavam eram absoluta-mente invisíveis para a câmara.

O Homem Cadeirão abriu a mochila, acocorou-se diante da arcada, pegou num spray verde e descarregou-o nas pare-des, onde sabia que estavam escondidos os sensores de movi-mento e de calor. Ambos esperaram que a nuvem se dissipasse

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e, depois, o Homem Sofá deu um dos escudos ao Homem Cadeirão. Os dois homens verdes, protegidos pelos escudos virados para as paredes, entraram na arcada e, ao chegarem à entrada da sala, desdobraram as pernas das pranchas e montaram-nas. A porta de aço com meia tonelada, escondida por cima das suas cabeças, não desceu de repente, por isso entraram e dirigiram a sua atenção para o expositor do Pin-gente Carmim. Não havia canto nenhum da sala que não fosse coberto pelas muitas câmaras escondidas, mas, ainda assim, nenhuma delas captou os dois homens e o que carregavam.

O Homem Cadeirão pousou a mochila e o lençol verdes no chão, em frente ao pedestal que exibia o Pingente. Pegou num dos lados do lençol enquanto o Homem Sofá pegava no outro. Levantaram-no ao mesmo tempo, muito devagar, e deixaram--no cair com cuidado sobre o pedestal. O Homem Cadeirão esgueirou-se para baixo do lençol com uma ferramenta de cortar vidro e começou a cortar a caixa de vidro que protegia o diamante. Quando o corte não passava ainda de um pequeno arranhão, quase invisível a olho nu, um alarme disparou e a porta de aço caiu com estrondo, fazendo abanar todo o edifício como um terramoto e fechando os dois homens no interior da sala.

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Três

Nick Fox, no seu disfarce de inspetor Norman Peterson, chegou vinte minutos depois de o alarme ter disparado, com dois copos de café do Starbucks, um dos quais estendeu a Cla-rissa Hart. Esta esperava-o ansiosamente junto da porta de aço, acompanhada pelos dois vigilantes que controlavam as câmaras.

— Um café doce com canela, como prometido, embora eu não esperasse vir a encontrar-me nesta situação.

Apontou com a cabeça para o homem jovem e esguio, de casaco de bombazina, que tinha chegado com ele.

— É o meu colega, o inspetor Ed Brown.Brown acenou com a cabeça. Aquele não era o seu ver-

dadeiro nome, claro. Nem Nick sabia qual era. De cada vez que trabalhara com «Brown», ele tinha um nome e um aspeto diferentes.

— O que é que fez disparar o alarme? — perguntou Nick, dando um gole no café e parecendo não ter pressa nenhuma em prender os ladrões fechados do outro lado da porta de aço.

— Há um sensor que monitoriza a pressão do ar dentro da caixa de vidro que contém o Pingente Carmim. Dispara no momento em que o vidro abra qualquer brecha. Mas há aqui uma coisa que não faz sentido, inspetor — disse Clarissa, com o iPhone na mão. — Esta é a imagem de uma das câma-ras de segurança. Como pode ver, não há ninguém dentro da sala, mas também não há nenhuma maneira de sair dali, e

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a imagem é em direto. Consegue ver-se a porta de aço ali na arcada.

— Mas não se veem bocados disto — respondeu Nick, apontando para os pedaços de esferovite verde espalhados pelo chão, provenientes de qualquer coisa que tinha sido esmagada pela porta de aço.

Clarissa olhou fixamente para o iPhone e depois para Nick.— Tem razão. Quer dizer que esta imagem não é em

direto?— É em direto, é.— Então não percebo. — Conhece a história do Harry Potter? — perguntou Nick.— Claro que sim.— Então lembra-se do Manto de Invisibilidade — disse

ele, dando outro gole no café, que o deixou com espuma no bigode.

Ela sorriu.— Ah, acha que o ladrão é um feiticeiro?— Não, mas trabalhava para um, que já fugiu há muito e

que comandou todo o espetáculo a partir de uma falsa carri-nha da companhia dos telefones que estava estacionada aqui na rua.

— E como é que sabe isso?— Passámos por ela, quando vínhamos para aqui.Nick tirou a espuma do bigode com um dedo e limpou o

dedo às calças.— Sim, mas como sabe que era falsa?— Não sabia, mas sei-o agora, por causa disto — respon-

deu, empurrando um dos bocados de esferovite com o pé. — Isto é esferovite verde envolvida em poliéster.

— É como tu e o teu fato — disse Brown, com uma risada, olhando de relance para Clarissa para ver se conseguira ganhar pontos com ela. Com ela, não, mas com os dois vigilantes, sim, o que não lhe servia de consolo.

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— Mas qual é a importância do poliéster? — perguntou Clarissa.

— O poliéster tem uma condutividade térmica muito baixa — disse Nick.

Clarissa acenou com a cabeça, para mostrar que tinha compreendido.

— Então o ladrão usou a prancha envolvida em poliéster para que os sensores de calor não o detetassem ao entrar na sala.

— Isso mesmo.Nick tocou com o seu copo de café no dela e ela correspon-

deu ao brinde, enquanto Brown fazia uma careta.Clarissa olhou para o inspetor como se estivesse a vê-lo

pela primeira vez. Fisicamente, não era agradável, e, depois de ter precisado de lhe explicar quem era Afrodite, tinha-o des-cartado como um pateta inculto, apesar de simpático. Agora percebia que o tinha julgado muito mal. Aquele tipo não era pateta nenhum. Era perspicaz e sentia-se bem consigo pró-prio. Quanto mais ele falava, mais ela gostava dele.

— Acho que me está a escapar qualquer coisa, inspetor — retomou ela. — O que é que isto tudo tem que ver com o facto de não conseguirmos ver o ladrão dentro da sala?

— Ele está verde — respondeu Nick.— Mas olha que para principiante não está nada mal —

comentou Brown.— Ed, eu quis dizer que ele está vestido de verde. A mesma

cor destes escudos térmicos, o que nos leva de volta ao Harry Potter e ao seu Manto de Invisibilidade. É um efeito especial do cinema. O feiticeiro por trás deste crime usou a mesma técnica que Hollywood usa para colocar atores em mundos alienígenas que não existem ou no interior do cockpit de jatos que parecem estar no ar. Os atores representam diante de um ecrã verde e depois utiliza-se um computador para substituir esse ecrã por outra imagem qualquer, seja parada ou em movi-mento. Mas o nosso feiticeiro fez o contrário.

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— Pôs o ladrão e o seu material em verde — disse Clarissa, percebendo finalmente. — O feiticeiro, sentado com um por-tátil dentro da falsa carrinha dos telefones, penetrou no nosso sistema de câmaras e substituiu o ladrão e tudo o que fosse verde por imagens daquilo que lá estava anteriormente, tor-nando-os invisíveis.

Nick assentiu com a cabeça.— Nessa altura, o ladrão colocou um Manto de Invisibili-

dade por cima do pedestal do Pingente Carmim, para poder roubá-lo sem ser visto.

— Como é que ele fez isso? — perguntou Brown.— Tapou-o com um lençol verde, e o feiticeiro preparou

uma imagem parada do pedestal do Carmim e colocou-a por cima do lençol — respondeu Nick. — Assim, tudo o que os vigilantes viam era uma sala vazia e o diamante em segurança no interior da sua caixa.

— Isso é brilhante — exclamou Clarissa. — Esse feiticeiro é um génio.

— Não passa de um falhado total — desdenhou Brown. — Está a esquecer-se de que nós estamos aqui fora e o ladrão está ali dentro com o diamante; logo, o plano falhou.

— Mas esteve muito perto de o concretizar — disse ela. — Tem de lhe dar crédito por isso.

Nick concordou.— Um tipo assim tão esperto de certeza que anda nisto há

algum tempo. Talvez o FBI tenha ideia de quem ele é, isto par-tindo do princípio de que o ladrão não fará a gentileza de nos dizer quem ele é. E, a propósito, talvez esteja na hora de conhecer-mos o nosso visitante. Pode subir a cortina, por favor, Miss Hart?

Clarissa dirigiu-se a um quadro pendurado na parede e chegou-o para o lado, de modo a revelar um teclado escondido.

Nick olhou para os vigilantes.— Vocês os dois mantenham-se afastados e com as armas

guardadas. Não queremos acidentes.

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Nick pousou o café e sacou da sua arma. Ele e Brown puseram-se em posição de disparar, de frente para a porta de aço. Clarissa marcou um código no teclado. A pesada porta ergueu-se e revelou dois homens macambúzios, em fatos ver-des justos, sentados no chão e com as cabeças entre as mãos. O lençol verde estava enrolado junto à base do pedestal. O Pingente Carmim brilhava incólume, dentro da sua caixa de vidro.

— Polícia! — disse Nick. — Estão presos.— Demoraram imenso tempo — disse o Homem Cadei-

rão. — Íamos sufocando aqui.— Algema-os e lê-lhes os seus direitos, Ed — disse Nick,

atirando-lhe as algemas.Clarissa olhou para Nick com uma admiração indisfarçá-

vel. Era como um Columbo da vida real, mas bastante mais novo e sem o olho de vidro.

— É solteiro, inspetor? — perguntou ela.— Infelizmente, sim — respondeu ele.— Pelo contrário — disse ela, enfiando-lhe o seu cartão

no bolso de trás das calças e dando-lhe uma palmadinha nas costas.

***

O carro da polícia acelerava pela avenida abaixo com a sirene ligada. O nevoeiro espalhava-se pela cidade, vindo da baía, e os faróis do carro esforçavam-se para o dissipar. Brown conduzia e Nick ia sentado ao seu lado, com a mochila verde ao colo.O Homem Cadeirão e o Homem Sofá seguiam atrás, algemados.

— Tinhas mesmo de tagarelar tanto, durante tanto tempo? — perguntou o Homem Sofá.

— Estava a vender o meu peixe — respondeu Nick.O elaborado crime tinha ocorrido exatamente como ele o

descrevera a Clarissa, com a diferença de que o feiticeiro por

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trás do truque das câmaras, sentado na falsa carrinha da com-panhia dos telefones, era ele próprio. E também havia omitido que tinha intercetado o sinal do alarme vindo do museu antes de este chegar à esquadra.

— Estavas a armar-te em bom — disse Brown. — Não resististe a mostrar-lhe como te consideras brilhante.

— Tudo isso fazia parte da cena. E já podes desligar a sirene. As pessoas estão a tentar dormir.

— Qual é a piada de conduzir um carro da polícia se não podemos usar a sirene?

— Mas tenho de reconhecer — disse o Homem Cadeirão a Nick. — Ser apanhado de propósito é um grande plano. Eli-mina uma grande parte da tensão.

— Eu bem te disse — respondeu Nick, abrindo a mochila e retirando o Pingente Carmim, para o admirar. — É muito mais fácil deixares que o sistema de segurança te vença do que tentares vencê-lo.

— Mas teria sido ainda menos stressante se não tivesse de vestir esta coisa que mostrava a toda a gente o meu material — disse o Homem Sofá, atirando as algemas para o chão.

— Não sejas tão autocentrado — respondeu o Homem Cadeirão, tirando o capuz verde e passando a mão pelo cabelo ruivo suado. — Não tens nada que toda a gente já não tenha visto antes.

— Para ti é fácil dizer isso — respondeu o outro. — O teu é tão grande como o do cavalo do Godzilla.

— Obrigado. Espalha a palavra por todas as miúdas giras que conheças.

— O Godzilla não tinha nenhum cavalo — ripostou Brown.O Homem Sofá também tirou o capuz verde.— Bem, mas se tivesse, o do cavalo havia de ser enorme.Nick colocou o diamante de novo na mochila e fechou-

-a. Perguntou-se quanto tempo demoraria até que alguém percebesse que aquele que tinha ficado no museu era falso.

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Arrancou o bigode, que lhe fazia tanta comichão como se fosse hera venenosa, e atirou-o pela janela. Em seguida, foi a vez do nariz falso.

— Vá lá, desliga a sirene. Não vale a pena darmos nas vis-tas, não achas? — repetiu.

Brown obedeceu-lhe. — Não és nada divertido, Nick.— Como é que podes dizer uma coisa dessas? Deixei-te

ser polícia.— Sim, o polícia burro.— Olha, é melhor do que ser o feio e gordo.— Até podia ser — respondeu Brown. — Mas, ainda

assim, a miúda gostou foi de ti.— Ele consegue sempre isso — comentou o Homem Sofá,

com admiração.Nick estava distraído com outra coisa e não se apercebeu

dos elogios. Enquanto olhava para a rua à sua frente, viu algo no meio do nevoeiro, logo a seguir aos semáforos seguin-tes, de que não estava à espera: uma equipa da empresa das águas de São Francisco fazia obras na rua. Conseguia ver uma retroescavadora, alguns trabalhadores com coletes refletores e capacetes e um grande monte de terra no cruzamento, a blo-quear uma das duas saídas para sul.

— O que é que se passa? — perguntou Brown.— Não havia trabalhos de manutenção previstos para hoje

à noite — disse Nick. — Eu próprio verifiquei os registos.— Se calhar foi um curto-circuito, ou um cano que reben-

tou. São coisas que acontecem.— Mas as luzes dos prédios estão todas acesas, e não vejo

água nenhuma na rua — respondeu Nick. — Faz inversão de marcha no cruzamento.

— E voltamos para o mesmo lado? — perguntou o Homem Cadeirão. — Não me parece boa ideia.

— Estás a ser paranoico — comentou Brown.

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— Faz o que te digo — repetiu Nick, endireitando-se no lugar. Estava com um mau pressentimento.

Brown começou a dar a volta no cruzamento. Foi então que Nick olhou pela janela do seu lado e viu as luzes de um pequeno autocarro a furar o nevoeiro como um comboio a emergir de um túnel escuro. O autocarro embateu no carro, que rebolou várias vezes até finalmente se imobilizar no pas-seio, capotado.

Nick estava consciente mas aturdido, de cabeça para baixo, preso pelo cinto e com o airbag a comprimir-lhe o rosto.O airbag e a almofada à volta da barriga, que ele tinha colocado para parecer gordo, tinham-no protegido de ficar gravemente ferido. Ouviu os outros três homens a gemer, o que era bom. Significava que estavam vivos. O subconsciente Dr. Scotty que havia em si fez de imediato um diagnóstico completo e repor-tou ao seu consciente Capitão Kirk que, sim, capitão, houve um embate, mas todos os sistemas estão a funcionar.

Posso dar-lhe velocidade de impulso, Capitão, mas os propul-sores estão em baixo. Vou precisar de, pelo menos, dois dias para os reparar.

Tem dois minutos, Scotty.Está a pedir o impossível!É para isso que nos pagam, doutor.Nick fechou os olhos, sacudiu a cabeça e fez um esforço

para se concentrar. Abriu de novo os olhos. Através do vidro estilhaçado viu os trabalhadores da empresa das águas a correrem para o carro e percebeu que estavam armados. Confirmava-se que não eram trabalhadores da empresa das águas.

Nick ouviu alguém a aproximar-se, pisando pedaços de vidro. Virou a cabeça para o vidro da janela e só conseguiu ver a pessoa da cintura para baixo. Vestia calças de ganga e calçava ténis pretos da Nike, e caminhava devagar em direção ao carro, segurando descontraidamente uma Glock.

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O primeiro pensamento de Nick foi que estavam a ser rou-bados por um outro grupo. Existia toda uma classe de apro-veitadores especializados em roubar o produto de que outros ladrões mais engenhosos conseguiam apoderar-se. Era um dos riscos da profissão, sobretudo quando várias organizações estavam de olho no mesmo prémio de alto valor. Deixa-se que o melhor lá chegue primeiro e depois tira-se-lhe o prémio.

O seu segundo pensamento foi mais um desejo. Esperava que, quem quer que fosse, não lhe enfiasse uma bala na cabeça antes de fugir com o Pingente Carmim. Mas, se fosse um tipo esperto, abatia-o de certeza, porque Nick prometeu a si pró-prio nesse mesmo momento perseguir o filho da mãe até aos confins da Terra, para recuperar o diamante da forma mais humilhante e mais devastadora possível que conseguisse.

O tipo parou ao pé da janela de Nick, meteu a arma pelo vidro e baixou-se para olhar para ele.

— Estás preso — disse a agente especial do FBI, Kate O’Hare.

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