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GLOBALIZAÇÃO E CULTURA
CAMINHOS E DESCAMINHOS PARA O NACIONAL-
POPULAR NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
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CRISTINA SIMÕES BEZERRA
GLOBALIZAÇÃO E CULTURA Caminhos e descaminhos para o nacional-popular na era da
globalização
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de doutor em
Serviço Social.
Orientador: Professor Carlos Nelson Coutinho
Rio de Janeiro
2006
Resumo
BEZERRA, Cristina Simões. Globalização e Cultura: caminhos e descaminhos para o nacional-popular na era da globalização. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. O presente trabalho discute os desafios colocados para a categoria de nacional-popular, elaborada pelo pensador marxista italiano Antonio Gramsci, na da sociedade capitalista contemporânea, de onde se destaca o contexto de mundialização do capital e de reatualização do imperialismo. Tem por objetivo, portanto, problematizar e criticar a anunciada “globalização da cultura”, tanto em sua abordagem hegemônica, que anuncia o surgimento de uma ”cultura global”, capaz de substituir ou, pelo menos, de reorientar culturas locais e nacionais, quanto uma abordagem aparentemente “alternativa”, que destaca o momento contemporâneo como aquele em que se fez possível um “encontro de diferentes culturas”, surgidas de um cenário de desenvolvimento político e tecnológico que nos coloca em contato com a diversidade característica desta esfera cultural. Assim, esta tese propõe uma retomada da categoria gramsciana de nacional-popular como uma possibilidade de crítica e de superação destas perspectivas anteriores, entendendo que o nacional e o internacional continuam se constituindo numa relação dialética de afirmação e negação de seus próprios princípios. Conclui, então, que é necessária a retomada da concepção ampla de cultura em Gramsci para entender e alimentar a necessidade contemporânea de um novo projeto societário alternativo e contra-hegemônico ao sistema do capital em sua conformação do início do século XXI. Palavras-chave: globalização da cultura, mundialização do capital, nacional-popular, pensamento social gramsciano.
Abstract
BEZERRA, Cristina Simões. Globalização e Cultura: caminhos e descaminhos para o nacional-popular na era da globalização. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Sumário
Para a Helena, a Marina, o Thomás, o
Thiago, a Laura, o Rodrigo, o Lucas e o
Vitor, os “filhos deste doutorado”,
iluminadas crianças, “herdeiras do chão
como solo plantado, não as ruínas de um
caos...”
Agradecimentos
Aos meus pais, Elza e Antônio, que, por ocasião deste doutorado, praticamente
me adotaram novamente, garantindo-me tudo, absolutamente tudo, desde o pão,
que eu não tive tempo de comprar, até o carinho, que eu não tive tempo de pedir,
para que eu pudesse concluir esta tarefa. Amo vocês...
Ao meu orientador, Carlos Nelson Coutinho, com quem sempre aprendo tanto...
lições de Gramsci, lições de política, lições de afeto, lições de paciência
histórica...Companheiro de grandes expectativas e projetos de mudança...
Obrigada, muito obrigada.
Aos professores que compõem esta banca examinadora, meu eterno obrigada,
pela disponibilidade e pela atenção dedicadas ao meu trabalho. Ao professor José
Paulo Netto, constante interlocutor e provocador de minha consciência crítica; à
professora Myriam Lins de Barros, pelo debate tão responsável e, ao mesmo
tempo, tão carinhoso; à professora Virgínia Fontes, “companheira militante” de
uma verdadeira “vontade coletiva nacional-popular”; à professora Lúcia Neves,
encontro tardio, mas tão cheio de boas referências e expectativas.
Ao Robson, meu companheiro, em todos os sentidos que esta palavra possa ter...
À Helena, minha filha, que mesmo sendo tão pequenina, entendeu e “perdoou”
este doutorado. “Filhota, mamãe acabou o dever de casa.”
Aos meus sobrinhos e sobrinhas que, cada um a seu modo, não se cansaram de
me mostrar que minha vida era maior que este doutorado... Gostaria muito que
este meu “passo adiante” despertasse, em cada um deles, o gosto pelo estudo e a
curiosidade intelectual...
A minhas amigas do “Lar de Maria”, professoras Sandra, Nair, Ana Amoroso, Ana
Lívia, Alexandra e Cláudia Mônica, porque entre o mar carioca e as montanhas
mineiras, um pouco de nossas vidas ficou por estas estradas. Nós, que nos
julgávamos tão perdidas em meio às nossas idéias e aos nossos ideais, nos
fizemos presentes, PRESENÇA.
Às amigas Mônica Grossi e Verônica Borba, que sempre depositaram tanta
confiança em mim e em meu trabalho. Pessoas inigualáveis, com quem tenho
repartido, em toda a minha vida pessoal e profissional, tantas indignações e tantas
esperanças...
Aos AMIGOS, Cláudia Mônica e Rubinho, pelas eternas lições de um carinho que
só em vocês tenho encontrado...
À Elisangela, à Meire e à Maria, que com tanta dedicação cuidaram de mim, do
Robson, da minha casa e da minha filha para que eu pudesse me dedicar ao
doutorado.
A tantos outros amigos: Luciana, Joelcio, Fernanda, Edwiges, Claiton, Kiko,
Karina, Marilda, Marcus, Cláudia Lúcia, Gabriela, Adriana, Rui, Ana Justo,
Pizetta... foram tantos “colos” que ganhei ao longo destes cinco anos! Sem vocês,
eu certamente teria desistido... Obrigada, do fundo do meu coração!
À Faculdade de Serviço Social e à Universidade Federal de Juiz de Fora, por todo
o apoio, institucional e afetivo, para que chegássemos até este momento. Nestes
espaços temos aprendido a investir no ser humano, em todas as suas
potencialidades.
Às professoras Leila Yacoub, Marilene Sansão e Sandra Arbex, que
administraram a Faculdade de Serviço Social nestes últimos cinco anos, e que
têm, cada uma ao seu modo, incorporado nosso inegociável projeto coletivo de
emancipação humana. Obrigada pelo exemplo!
Enfim, mas não por uma importância menor, à CAPES, pela bolsa de estudos que
viabilizou materialmente a realização deste trabalho.
“Amada não me censure, se sou de pouco falar
Nem se esse pouco que falo não faz você suspirar
É tempo de vida feia, de se morrer ou matar
De sonho cortado ao meio, de voz sem poder gritar
De pão que pra nós não chega, de noite sem se acabar
Por isso não me censure, se sou de pouco falar
Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A lua é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
Mas criança chega a homem se a bomba quiser
A mulher só tem seu homem se a bomba quiser
Homem sonha e faz seu sonho se a bomba quiser
Não é tempo de ver lua nem tirar rosa do pé.
Amada minha não chore se nunca falo de amor
Nem se meu beijo é salgado, que é beijo chorado em dor
É tempo de vida triste, de olhar o céu com pavor
De mão pro último gesto, de olhar pra última flor
De verde que era esperança trazer desgraça na cor
Por isso amada não chore se nunca falo de amor.
Amada não vá embora se eu trouxe desilusão
Se aumento sua tristeza, tão triste a minha canção
É tempo de fazer tempo, de pegar tempo na mão
De gente vindo no tempo em passeata ou procissão
No mesmo passo de sonho pra bomba dizendo: não!
Amada não vá embora, mudou a minha canção!
Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A lua é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
Pois criança vai ser homem porque a gente quer
A mulher vai ter seu homem porque a gente quer
Homem vai fazer seu sonho porque a gente quer
Vai ser tempo de ver lua e de tirar rosa do pé”
(Mário Lago)
Lista de Siglas e Abreviaturas
1 Cultura e Sociedade: aproximações teórico-conceituais
1.1 – A contribuição da tradição marxista para o debate acerca da
cultura
A complexidade e as inúmeras determinações presentes no debate acerca
da cultura demarcam o primeiro desafio ao qual pretendemos responder durante o
desenvolvimento deste trabalho. É preciso, então, compreender as linhas mais
amplas de abordagem sobre o universo cultural, destacando os principais autores
e suas mais diversas concepções de análise.
No entanto, encontramos limites que nos obrigam a realizar um corte
teórico-conceitual. O termo cultura está presente em um cenário bastante amplo
de discussão, perpassando várias áreas de conhecimento e ganhando, em cada
uma delas, novas e importantes determinações que não se constroem de forma
isolada e/ ou fragmentada. Faz-se necessário justificar que nos detivemos no
debate acerca da noção de cultura no interior das Ciências Sociais e, mais
precisamente, da tradição marxista. Neste universo, cultura é um termo que tem a
potencialidade de pensar o homem enquanto unidade materializada na condição
de ser social, unidade esta que, contraditoriamente, caracteriza também a
diversidade além dos termos meramente biológicos. Ao longo deste trabalho,
estaremos preocupados justamente em criar um paralelo entre o trabalho e a
cultura enquanto esferas constitutivas do ser social. A cultura se coloca,
diretamente, na intervenção humana sobre a natureza e a sociedade. Escolhas
culturais interferem neste processo, tornando-o mais original e coerente com as
necessidades humanas em diferentes sociedade. O processo que se inicia com o
trabalho encontra na cultura um prolongamento e uma maior complexidade.
A opção pelo estudo desta temática no interior da tradição marxista não é
aleatória. Entendemos que a perspectiva marxiana de totalidade, bem como as
demais categorias centrais do materialismo histórico, constituem elementos
diferenciadores para a abordagem sobre cultura. É só no contexto desta tradição
que podemos questionar, por exemplo, alguns traços historicamente vinculados à
noção de cultura, tais como sua autonomia, seu caráter estático, as trocas e os
contatos culturais. Aqui o termo ganha uma atualidade e uma riqueza de
determinações que, em nossa concepção, não estão presentes em outras
tradições do pensamento social. Embora ganhe força a idéia de que a tradição
marxista não é, atualmente, suficiente para compreendermos todos os elementos
constitutivos de nossa realidade sócio-histórica, acreditamos, ao mesmo tempo,
que ela é indispensável para esta análise, potencializando-nos para uma reflexão
crítica e revolucionária acerca das características e das contradições
contemporâneas.
Temos clareza, por outro lado, de que ao falarmos sobre a tradição
marxista, não estamos, de forma alguma, tratando de um bloco homogêneo. Muito
pelo contrário, compartilhamos da idéia de que o que se convencionou chamar de
marxismo representa, na verdade, um conjunto de tendências e formulações
teóricas bastante diferenciadas entre si e, até mesmo, divergentes. Partimos, aqui,
da certeza de que não é possível medir qual destas tendências seja mais ou
menos marxista. A riqueza da herança marxiana, bem como os diferentes
contextos sócio-históricos nos quais ela se desenvolveu, deram origem a diversos
“marxismos” que, sobretudo a partir da segunda metade do século XX,
apresentaram-se com força suficiente para reivindicar legitimidade e
reconhecimento teórico.
Assim estão expressos, em NETTO (1989, p. 78-79), os avanços e os
limites desta pluralidade e desta “disputa” de tendências no interior da tradição
marxista.
Cabe destacar, ainda, dois pontos importantes. O primeiro remete à gênese das diferenciações constatáveis na tradição marxista. Elas têm origem menos nas interpretações que podem ser feitas da obra marxiana e mais nas exigências colocadas pelos contextos históricos em que se situam os marxistas. Às próprias demandas práticas que se põem aos marxistas se debitam boa parte das diferenças: a tendência usual é a de extrair de Marx aquilo que, num momento histórico preciso, é melhor instrumentalizável. O passo fatal consiste em, a partir desta escolha, se estabelecer uma interpretação global de Marx. O segundo, que nos leva a um plano de discussão bem mais complexo, se relaciona à legitimidade das várias propostas marxistas em face do pensamento marxiano. A existência factual de uma pluralidade de propostas inspiradas em Marx é indiscutível, outro problema é o de sua compatibilidade com a obra de Marx tomada na sua inteireza. Esta questão não pode ser resolvida recorrendo-se à letra de um ou outro texto marxiano; só deve ser equacionada considerando-se todo o projeto teórico e revolucionário de Marx, assentado em hipóteses que se verificam (ou não) na prática histórico-social.
Atentos a estas questões, e compreendendo a teoria “marxista” não como
uma “concepção de mundo”, mas como uma investigação do movimento real da
sociedade burguesa, como algo em construção, sempre aberto à confrontação
com os novos projetos emergentes, é que nos aproximamos da discussão que
vem se construindo em torno do termo cultura no interior desta tradição.
Procuramos, desta forma, recuperar suas principais contribuições, elencando,
assim, categorias que julgamos essenciais para nossos debates posteriores.
Dentre estas diferentes contribuições, destacamos as formulações gramscianas,
de onde extraímos os principais elementos orientadores deste trabalho.
Entendemos que abordar a questão específica da cultura no interior da
tradição marxista não pode ser um exercício fragmentário, mas deve estar
subordinado ao que MANDEL (2001, p. 19) chamou de uma “visão de conjunto da
sociedade burguesa e da história humana em seus sucessivos modos de
produção”, ou seja, de uma perspectiva de totalidade que constitui uma das bases
inquestionáveis da herança marxiana. Desta forma, propomos, em um primeiro
momento, um retorno às formulações próprias de Marx e Engels, a fim de
compreendermos, nestas fontes, as origens da discussão marxista sobre cultura.
Após este momento, e apoiados em duas obras principais de Raymond Willians
(1979, 1992), procuramos recuperar algumas reflexões principais do que este
autor teria chamado de “materialismo cultural”, ou seja, uma teoria das
especificidades da produção cultural e literária material, dentro do materialismo
histórico.
Nesta discussão, a referência a um determinado momento histórico se faz
necessária. O marco dos anos 60 e 70 do século XX caracteriza, sem dúvida, um
momento de renovação na tradição marxista. Embalada pelas primeiras
experiências de crítica ao “socialismo real” e ao chamado “marxismo ortodoxo” da
Terceira Internacional, esta tradição experimentou um renascimento e uma maior
abertura e flexibilidade de desenvolvimento teórico. É neste momento, sem
dúvida, que estudos mais aprofundados acerca da teoria cultural puderam vir à
tona no interior de um marxismo já marcado por uma ampla diferenciação.
Tal colocação não significa que, neste momento, o debate acerca da cultura
tenha ganhado centralidade e/ ou prioridade no contexto do universo marxista.
Poderíamos até mesmo afirmar que ele permanece, mesmo nos dias atuais,
compreendido como uma extensão da discussão política e econômica no interior
do marxismo. Como nos afirma WILLIAMS (1979, p. 8), “dificilmente alguém se
torna marxista por motivos principalmente culturais ou literários, mas por
prementes razões políticas e econômicas”. No entanto, não teríamos dúvida em
afirmar que o momento de renovação desta tradição trouxe à tona, com maior
clareza, a perspectiva metodológica de Marx, e a noção de totalidade recupera
seu lugar nesta discussão. Então, outros elementos, tais como a cultura, ganham
destaque como um espaço legítimo para a compreensão da realidade sócio-
histórica da sociedade burguesa.
O acesso a trabalhos marxistas mais novos, tais como as obras de Lukács
e de Goldmann, bem como a obras marxianas e marxistas mais antigas, tais como
as de Gramsci, da Escola de Frankfurt e do próprio Marx, agora em nova
tradução, representaram um novo arsenal teórico neste caminho de renovação.
Além disso, podemos considerar também determinadas experiências históricas
concretas de superação do capitalismo1 que, abandonando o modelo tradicional
clássico do marxismo soviético e da Terceira Internacional, demonstraram para o
mundo que havia um terreno novo no marxismo a ser explorado e que o próprio
marxismo é um fato histórico, com posições altamente variáveis e até mesmo
alternativas. Era preciso, portanto, libertar-se de um modelo das posições
1 Dentre os países que vivenciaram estas experiências podemos destacar a Polônia, o Vietnã e a China.
marxistas fixas e imutáveis e da correspondente negação de todos os outros tipos
de interpretação que fugissem do modelo de marxismo oficial.
Deste processo de renovação, vital para a história e a continuidade do
marxismo, construiu-se, a partir de uma releitura da obra marxiana, um conjunto
de categorias acerca do ser social que davam, com mais precisão, a dimensão da
complexidade e da incompletude que o caracterizam. A verdade do ser social
como um processo e a dinamicidade da realidade social são, para o marxismo do
final do século XX, elementos vitais de compreensão. Nas palavras de NETTO
(1989, p. 70), “o legado de Marx deixa de ser um território nitidamente demarcado
para se colocar como um espectro muito rico em matizes e variações”. Para o
fortalecimento desta perspectiva, foi essencial uma recuperação, acontecida neste
momento histórico, da importância do método em Marx, elemento fundamental
para a renovação das questões propostas por esta tradição.
Podemos, assim, afirmar que, no que diz respeito à discussão por nós
proposta, o marxismo consegue, a partir deste momento de renovação, contribuir
efetivamente para o debate e enriquecer, com diferentes determinações, conceitos
como “cultura”, “linguagem”, “literatura” e “ideologia”. Mais uma vez, não se
estabelece aqui uma história isolada, mas, na teoria literária, o marxismo se
combina com e contribui para outros tipos de pensamento correlato. Desta forma,
acreditamos que WILLIANS (1979) nos apresenta um caminho coerente quando
afirma que, no que se refere à produção cultural, é necessário examinar os usos
especificamente marxistas, sem perder de vista um quadro de evolução mais geral
do termo2.
DENNING (2005) afirma, inclusive, que a segunda metade do século XX foi
o período do que ele denominou de “virada cultural”, quando este elemento passa
para o primeiro plano de uma série de estudos e reflexões teóricas que se
constroem neste momento, passando a se constituir como uma parte cada vez
central da vida política e intelectual. Demarca-se, então, o que ficou conhecido
como “estudos culturais” que, originados na Inglaterra trabalhista, buscavam
abordar as diferenças e as diversidades culturais a partir de uma perspectiva de
uma “era dos três mundos”3. Em um momento de crise da proposta socialista e de
reorientação da sociedade capitalista, tais estudos se propunham a agir numa
proposta de reforma interdisciplinar e transdisciplinar das fronteiras acadêmicas. O
momento de reanimação e de renovação no pensamento radical e socialista
colocava em cena a necessidade de se pensar a relação entre a cultura e as
demais esferas da vida em sociedade. Intensificou-se, então, uma “volta às
superestruturas”, uma reconsideração da cultura, buscando-se atentar para as
particularidades regionais e nacionais geralmente ignoradas pelo
internacionalismo abstrato do marxismo oficial.
Uma das principais questões que envolvem este momento de apropriação
do termo cultura pela teoria marxista é o lugar deste termo no desenvolvimento do
2 É importante observarmos que WILLIAMS chama atenção para o risco de ecletismo nesta aproximação e, para isso, a fidelidade às categorias centrais do pensamento marxiano nos parecem essenciais. 3 A denominada “era dos três mundos” diz respeito ao que ficou historicamente conhecido como Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos, numa perspectiva claramente hegemônica do mundo capitalista.
materialismo histórico. É necessário, assim, retomarmos as bases desta proposta
marxiana, a fim de melhor fundamentarmos nossas análises.
GORENDER (1998) destaca a obra A Ideologia Alemã, escrita por Marx e
Engels entre os anos de 1845 e 1846, como o momento de nascimento do
materialismo histórico, ou seja, como a obra que demarca, pela primeira vez com
maior clareza, a superação que tais autores fizeram com relação à filosofia
clássica alemã. Naquele momento, recuperando e questionando o materialismo
sob a forma que lhes apresentava Feuerbach, do humanismo naturista, Marx e
Engels realizam um processo de reelaboração da dialética hegeliana e buscam
integrá-la no corpo do materialismo, o qual se apresenta, a partir de então, como
materialismo histórico-dialético. Tal concepção constituía, naquele momento, uma
abordagem radicalmente nova acerca do desenvolvimento da sociedade, visando
sua transformação radical. A Ideologia Alemã foi, para seus autores, um
importante momento de redefinições e avanços, demonstrando, a partir de seus
primeiros envolvimentos com o movimento operário europeu, que uma proposta
de absoluta renovação intelectual estava para ser gerada.
O primeiro e talvez principal elemento de debate de Marx e Engels nesta
obra é a própria concepção de ideologia e esta nos parece essencial para todo o
pensamento marxista sobre a cultura. Partindo de uma compreensão de ideologia
como o “estudo da origem e da formação das idéias”, sustentada por Destutt de
Tracy, em 1804, os autores demonstram sua crítica e superação de parte do
legado hegeliano, sobretudo quando este sustenta que “a Idéia é o sujeito, cujo
predicado são suas objetivações”. Para eles, a filosofia clássica alemã cai em um
grande equívoco ao postular que a “imaginação” e a “representação” que os
homens fazem de sua práxis real constitui a força realmente determinante e ativa.
Tais filósofos se movem no domínio do “espírito puro”, onde não existem
interesses reais, nem interesses políticos, mas apenas idéias “puras”. Nesta
perspectiva, as concepções, os pensamentos, as idéias, seriam produtos da
consciência, com uma existência independente em relação à base material e com
a potencialidade de constituírem verdadeiras cadeias para os homens, cuja
libertação viria através de uma “modificação da consciência”.
Este será, num primeiro momento, o sentido negativo que Marx e Engels
vão atribuir ao termo “ideologia”, ou seja, uma falsa consciência, um conjunto de
ilusões através das quais os homens pensam conhecer sua realidade, mas que,
na verdade, os fazem conhecer de forma enviesada, distorcida. Para Marx e
Engels, este conhecimento ideológico da realidade precisa ser invertido, pois as
idéias jamais se desenvolvem por si mesmas, como entidades substantivas.
Na verdade, estes autores inovam a filosofia alemã ao compreenderem o
desenvolvimento das idéias como subordinado, como dependente; elas seriam,
então, derivadas do substrato material da história. A essência do homem é, assim,
o conjunto de suas relações sociais e seu processo de humanização. Sua
elevação de ser natural a ser social só se dá dentro da sociedade e pela
sociedade. Assim, o que funda o materialismo histórico é a certeza de que os
indivíduos são constituídos por suas condições materiais de produção. Na busca
da satisfação de suas necessidades, os homens produzem seus próprios meios
de existência. Assim o que produzem e como produzem são os elementos-chave
para a compreensão da sociabilidade humana em diferentes tempos históricos. O
modo de produção constitui, assim, o elemento fundador das sociedades e dos
próprios homens enquanto seres sociais. Nas palavras dos autores,
As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. (MARX & ENGELS, 1998, p.10).
O materialismo histórico tem como princípio, desde seu momento originário,
esta compreensão de que o homem se constitui historicamente, primeiro em sua
relação com a natureza, depois em sua relação com os outros homens. É só com
este processo de socialização em curso que o homem se torna consciente e
capaz de refletir sobre sua vida material. Assim, é a vida que determina a
consciência; a história é a história da natureza e a história dos homens, que
estabelecem suas mais diferentes relações sociais na expectativa de atenção às
suas necessidades materiais. O intercâmbio dos homens entre si, e tudo que está
a ele relacionado, está primeiramente condicionado pelo modo de produção.
Este é o sentido da produção material. Os homens, ao contrário de outros
animais, começam a produzir seus meios de existência e, neste caminho,
produzem indiretamente toda a sua própria vida material. O que os indivíduos são,
enquanto seres “viventes e conscientes”, depende das condições materiais da sua
produção.
Esta produção, a cada momento de complexificação das sociedades,
caracteriza-se, cada vez mais, como um processo coletivo, um processo que
pressupõe o intercâmbio dos indivíduos entre si. Assim, os homens produzem em
sociedade, em condições sociais herdadas ou criadas por sua própria ação, se
constroem e se organizam em sociedade tendo na base deste processo as
condições e relações de produção.
Ao apresentarem este postulado básico para o materialismo histórico, Marx
e Engels colocam em xeque, desde então, a suposta autonomia dos produtos da
consciência, pregada pelo idealismo clássico alemão. A partir de então, a
produção de idéias, de representações, de símbolos e de referências no plano da
consciência, passa a ser compreendida como parte do processo de vida real dos
homens, como conseqüência de um determinado desenvolvimento das forças
produtivas e das mais diferentes relações (sociais, econômicas e políticas) que a
elas correspondem. Esses elementos nos parecem indispensáveis para que
possamos discutir, posteriormente, a noção de cultura no interior do marxismo.
Assim, da relação do homem com a natureza, na busca da satisfação de
suas necessidades, podemos extrair os pontos essenciais da discussão marxiana
sobre a questão do trabalho em toda a sua riqueza de determinações. Estão
colocadas, então, as premissas da relação entre trabalho e cultura enquanto
esferas constitutivas do ser social. A cultura surge como esfera determinada pelo
trabalho, constrói-se como a manifestação da consciência social, só é possível se
consideramos a imensa rede de relações produtivas que se estabelecem em um
determinado momento histórico. Assim, a cada forma diferenciada de organizar o
trabalho e a vida material corresponde um universo cultural equivalente, o qual se
constrói como algo dinâmico e historicamente referenciado.
Compreender o trabalho como elemento fundante da produção material e,
conseqüentemente, da socialização humana significa abordá-lo como o processo
que garante ao homem superar suas barreiras e limitações naturais e, atendendo
às necessidades exclusivamente humanas de sobrevivência, dar um salto de
qualidade em seu processo de socialização. Assim, a natureza é controlada,
regulada e transformada pelo trabalho humano. Neste processo, o homem, ao
desenvolver suas próprias potencialidades e submeter as forças naturais ao
domínio de sua racionalidade, se afasta da natureza, se revela superior a ela,
realiza em seus limites o projeto que antes apenas existia idealmente em sua
mente.
Construir “utilidades” ou “valores de uso”: este é o objetivo primeiro de
qualquer processo de trabalho, independente da formação sócio-histórica na qual
ele possa ser desenvolvido. Assim, uma intencionalidade comanda e dirige o
processo de trabalho: transformar elementos naturais para atender a
necessidades sociais. Nas palavras de ANTUNES (2000, p. 86), “um fim
previamente ideado transforma a realidade material, introduzindo-lhe algo
qualitativa e radicalmente novo em relação à natureza.”
Na concepção marxiana, o trabalho é a condição natural eterna da vida
humana. Portanto, seja qual for a formação sócio-histórica a ser investigada, o
trabalho se realizará como base e fundamento da vida social, como o ponto de
partida para a sobrevivência do homem e da comunidade em que vive. Ainda que
o movimento histórico introduza no trabalho enquanto categoria fundante uma
série de diferentes determinações, mudando as formas de produzir e de se
apropriar do que foi produzido, jamais se poderá prescindir deste processo para o
atendimento das necessidades sociais. Os elementos componentes do processo
de trabalho sofrem transformações e atualizações, mas jamais esgotam sua
existência.
Nesta discussão acerca do trabalho como elemento fundante do ser social,
é importante observarmos como Marx e Engels compreendem as mudanças na
divisão do trabalho e na forma de propriedade ao longo do desenvolvimento
histórico de diferentes sociedades. Analisando e comparando a evolução destas
mudanças, desde a propriedade tribal até o momento moderno, os autores
identificam este último como aquele em que ocorre a divisão entre trabalho
intelectual e trabalho material e, conseqüentemente, a separação entre campo e
cidade. Nesta contínua superação histórica, os homens, desenvolvendo sua
produção material e suas relações produtivas, transformam sua consciência social
e os produtos desta consciência. As diferentes formas de propriedade, de divisão
do trabalho e de modos de produção fazem corresponder, historicamente,
diferentes níveis ou formas de consciência social, uma vez que são produtos dos
homens reais, atuantes, histórica e socialmente determinados. Assim, nas
palavras de MARX & ENGELS (1998, p. 19), “a consciência nunca pode ser mais
que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real”. Nesta
mesma direção, a cultura corresponde ao desenvolvimento deste ser consciente.
Cada modo de produção produz a sua cultura, que se coloca como reflexo destas
relações produtivas, como um universo capaz de conter as características e as
contradições originárias destas relações.
A história da evolução humana tem demonstrado que o trabalho se
constitui, gradativamente, em um processo cada vez mais social, ou seja, que
envolve um número cada vez maior de pessoas em sua constituição e em suas
mediações com a natureza. Assim, a relação homem-natureza se realiza e traz
consigo uma relação do homem com outros homens, do homem em sociedade.
Através do trabalho, os homens se socializam, se interrelacionam, constroem
posições intersubjetivas que irão, por sua vez, intervir novamente nos diferentes
processos de trabalho em uma determinada sociedade.
O trabalho, inserido em uma divisão cada vez mais intensa, passa, assim, a
depender da cooperação entre muitas pessoas. Em outras palavras, para atuar
sobre a natureza, é preciso atuar teleologicamente também sobre outros seres
sociais, visando o convencimento e a interrelação com outras práticas. Na
concepção lukacsiana, uma práxis social interativa (ANTUNES, 2000) se constrói
a partir do trabalho enquanto momento fundante e, aos poucos, ganha uma
aparente autonomia, que será posteriormente questionada.
É necessário observarmos a afirmação marxiana de que a época do
indivíduo isolado é precisamente aquela na qual as relações sociais alcançaram o
mais alto grau de desenvolvimento. Se hoje é possível pensar que o homem é um
ser capaz de se isolar, é porque ele encontra, na sociedade, o resultado de
inúmeros processos de trabalho coletivos que lhe garantem tais condições de
isolamento. Assim, esta práxis social interativa só ganha esta autonomia aparente
porque se desenvolveu em um contexto societário em que o trabalho humano é
amplamente mediado, onde, muitas vezes, os homens não percebem, com
clareza, a importância deste elemento enquanto fundante da vida social. Nesta
articulação de uma práxis social interativa a partir do trabalho, os elementos
componentes deste próprio processo de trabalho se historicizam e se atualizam
permanentemente. É porque se produzem valores de uso em cooperação com
outros seres humanos que o objeto, os meios e o próprio trabalho podem se
renovar e se adequar às novas necessidades sociais que se apresentam na
sociedade enquanto coletividade.
Assim, é importante reforçarmos que o processo de “humanização do
homem”, em seu sentido mais amplo, tem como fundamento o trabalho. Através
deste processo, o ser humano se descobre como parte da natureza, mas também
como separado dela, uma vez que pode se apoderar de seus elementos para
satisfazer necessidades que só se colocam na vida em sociedade. Ao mesmo
tempo, o homem descobre também que este processo de apoderamento não é
individual, mas coletivo, pois, através do trabalho, a perspectiva de
intersubjetividade irá se constituir com mais força e dar origem a formas mais
complexificadas da vida humana. Assim se constrói o ser social, dotado de
autonomia, inserido em uma intersubjetividade, teleologicamente capacitado,
enfim, inteiramente diferente de formas de ser anteriores. É este ser social, que
agora possui o controle consciente sobre si mesmo e sobre a natureza, que irá
construir um universo cultural correspondente, um modo de vida próprio a estas
relações entre homem-natureza e homem-homem. Cultura se apresenta, nesta
discussão, como um conjunto de elementos simbólicos, como um modo de sentir,
pensar e viver que se constrói e se define em sociedade, a partir dos
enfrentamentos e das soluções que este próprio agrupamento consegue
desenvolver. A cultura seria, então, o outro componente de uma sociabilidade,
necessária enquanto espaço de reprodução de determinadas relações sociais.
Para que possamos aprofundar esta discussão acerca do “mundo da
cultura”, é necessário atentarmos para o fato de que, quanto mais complexas são
as sociedades, maior é a aparência de autonomia destas ações interativas, deste
universo cultural, em relação ao trabalho. Entretanto, problematizar esta
autonomia coloca questões relevantes para este debate. Evidentemente, a vida
social não se resume ao trabalho. O ser social se constitui também através de
outras esferas, tais como a política, a arte, os valores morais, a religiosidade, o
lazer, dentre outras que, na verdade, realizam também a mediação com a
natureza e com os outros homens. No entanto, estas esferas são,
inquestionavelmente secundárias, em um sentido ontológico, em relação ao
trabalho, que é o locus primeiro de realização da vida social. Para recorrermos
novamente às palavras de ANTUNES (2000, p. 141)
O trabalho, portanto, é a forma fundamental, mais simples e mais elementar daqueles complexos cuja interação dinâmica constitui-se na especificidade do ser social. (...) As formas mais avançadas da práxis social encontram no ato laborativo sua base originária. Por mais complexas, diferenciadas e distanciadas, elas se constituem em prolongamento e avanço e não em uma esfera inteiramente autônoma e desvinculada das posições teleológicas primárias.
O trabalho, então, enquanto atividade de produção, se constitui como o
ponto inicial, como o fundamento ontológico do ser social em seu processo de
satisfação das necessidades a partir do controle e da transformação da natureza.
A partir do trabalho, em suas mais diferentes determinações históricas, se
constroem as relações intersubjetivas e, num plano mais amplo, as relações
sociais de uma determinada sociedade. É a partir de determinado modo de
produzir que tais sociedades constroem, também, seus modos de distribuir, de
trocar e, enfim, de consumir. O trabalho dá início, portanto, a todo este processo
de sociabilidade do homem.
Entretanto, este não é um caminho de mão única. Ao produzir objetos
capazes de satisfazer suas necessidades humanas, o homem não encontra
caminhos apenas para garantir sua existência física. O homem produz também
determinado modo de refletir e de manifestar sua vida, produz determinado modo
de vida, construído a partir da relação com a natureza, mas também, e
principalmente, da relação com outros homens, na constituição daquela práxis
social interativa.
É no âmbito deste “modo de vida específico” que reside uma relação de
reciprocidade entre o momento da produção e os demais momentos, entre o que
comumente chamamos de infra-estrutura e os elementos de caráter
superestrutural. As relações vividas pelo homem nesta “segunda natureza” irão
dialeticamente influenciar e, em muitos casos, redirecionar o trabalho e a esfera
da produção. Sobretudo nas sociedades mais complexas, onde esta esfera da
práxis interativa parece dispor de relativa autonomia, podemos afirmar que os
costumes, os valores, as relações provenientes desta esfera exercem sobre o
modo de trabalho e de produção uma influência que não é mais marginal,
direcionando-os conforme a organização deste ou daquele tipo de sociedade
enquanto universo cultural.
É neste sentido, e não de forma negativa, que podemos falar desta práxis
social interativa como uma esfera determinada: indivíduos determinados, com a
atividade produtiva orientada por um modo de produção determinado, entram em
relações sociais e políticas determinadas. É o processo vital de indivíduos em sua
existência real, em seu modo de trabalhar e de produzir materialmente que cria
toda uma estrutura social, simbólica moral e política.
Este nos parece ser o elemento principal do debate sobre a cultura no
interior desta tradição marxista. Estamos afirmando, assim, que a produção de
idéias, de representações, da consciência, do universo simbólico está, num
primeiro momento, necessariamente ligada à atividade material, está condicionada
por um determinado desenvolvimento de forças produtivas e das relações que a
elas correspondem.
Não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas, partimos dos homens, em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital. (...) Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. (MARX & ENGELS, 1998:19-20).
Na verdade, pensar determinada sociedade a partir de sua constituição
cultural significa pensá-la além de seus traços meramente naturais, significa
pensar o homem já em um estágio avançado de seu processo de humanização e
de socialização, o qual iniciado com o trabalho, nos permitirá problematizar o ser
social, que realizou a passagem de uma adaptação natural a uma adaptação
social, interativa, também cultural.
Se o processo de trabalho, como vimos anteriormente, é o processo através
do qual o homem satisfaz suas necessidades, é importante ponderarmos que as
diversas sociedades se diferenciam neste processo, criando soluções originais
para os problemas que lhes são colocados, satisfazem as mesmas necessidades
através de objetos diferentes. Em outros termos, se as sociedades não dão
exatamente as mesmas respostas às necessidades humanas, é porque tais
processos são orientados também por elementos culturais diferenciados que, em
uma relação de reciprocidade, constroem e são construídos pelo processo de
trabalho. Como nos propõe Marx, não existe “produção em geral”, toda produção
ocorre em determinadas condições e sob determinadas orientações que são
advindas também deste universo coletivo, onde o elemento cultural nos chama
particular atenção.
O “mundo da cultura” nos remete, necessariamente, à ordem simbólica,
refere-se ao sentido que o homem historicamente atribui aos diversos elementos
de sua vida social. A cultura representa, desta forma, um importante espaço de
constituição do ser social, de reflexão e de crítica de sua vida social, de suas
relações com a natureza e com os outros homens. Neste sentido, valem as
palavras de KONDER (1993, p. 159) quando afirma que
(...) atuando sobre a natureza, tanto como atuando uns sobre os outros, os sujeitos humanos se defrontam sempre com momentos nos quais sentem a necessidade de rever suas idéias, suas impressões, percebem que lhes convém reavaliar suas representações, repensar suas convicções. Dão-se conta de que precisam fazer escolhas, tomar decisões importantes, assumir riscos. A cultura é esse plano no qual os seres humanos exercem plenamente seu poder de invenção, sua criatividade maior, sua efetiva liberdade.
Tais colocações são relevantes para que possamos evitar um duplo
equívoco em relação à análise da esfera cultural. O primeiro de, sobrevalorizando
a esfera do trabalho, dar a ela um status de exclusividade, ou seja, de que apenas
através do trabalho o homem se realiza e se constitui enquanto ser social. É
evidente, sobretudo em sociedades mais complexificadas, que nem só do trabalho
vive o homem, mas de um conjunto de esferas (cultural, religiosa, política, etc.)
que compõem uma totalidade e que dão sentido à sua existência e da coletividade
da qual ele faz parte. Tais esferas, aos poucos, vão se concretizando como
espaços de lutas sociais, de construção de interesses diferenciados, de correlação
de forças nas sociedades, o que acaba por influenciar e, muitas vezes,
redirecionar a esfera da produção. Assim, o ser social é constituído no interior
deste todo complexo e onde, gradativamente, nenhuma esfera tem mais
autonomia. Elas são absolutamente interrelacionadas e mudanças significativas
em uma dada sociedade dependem de mudanças em todo este conjunto. Se todo
modo de produção constrói e necessita também de um modo de garantir sua
própria reprodução, entendemos que as duas frentes se constituem como
momentos que comportam as lutas sociais e os projetos que se enfrentam em
torno de uma proposta hegemônica. Em outras palavras, é impossível pensarmos
em transformações na esfera do trabalho sem levarmos em conta, por exemplo, a
configuração cultural e política de uma sociedade.
Um outro equívoco, este talvez mais forte e mais contemporâneo, é o de se
acreditar que a esfera cultural é autônoma na dinâmica das sociedades modernas.
Parece-nos que boa parte da discussão contemporânea sobre o multiculturalismo
está pautada nesta premissa. Assim, segundo esta orientação, estaríamos
vivendo em sociedades onde, por elementos da conjuntura histórica, o trabalho
enquanto esfera fundante do ser social estaria em crise. O desemprego, as novas
tecnologias, os contratos temporários, o subemprego, e tantos outros elementos
da chamada reestruturação produtiva teriam feito do trabalho (e aqui, muitas
vezes, existe a infeliz confusão entre trabalho e emprego) uma esfera secundária
na vida social, o que teria dado a outras instâncias da esfera cultural, tais como o
gênero, a geração, a opção sexual, a etnia, dentre outras, um peso e uma
relevância muito maiores na determinação do ser social. Com isso, a cultura seria
o espaço da identidade, que abortaria ou minimizaria, conseqüentemente, a
identidade de classe.
BIHR (1999), ao analisar o momento de crise do movimento operário
europeu desde a década de 70, nos apresenta importantes colocações acerca
desta tendência de autonomização da esfera cultural. Segundo este autor, ela é
característica de um determinado momento do desenvolvimento da sociedade
capitalista e de seu correspondente processo, cada vez mais acentuado, de
alienação política. O capital é capaz de se apropriar de suas condições gerais de
reprodução, fazendo-as tomar a forma de forças sociais desencadeadas, externas
e estranhas ao corpo social, de forças sociais autonomizadas e reificadas. Assim,
a cultura, enquanto uma das condições de reprodução do sistema do capital,
também estaria passando por este processo ao ser colocada como uma esfera
autônoma e estranha ao mundo do trabalho.
Valendo-nos destas contribuições de BIHR, poderíamos afirmar que as
condições de reprodução do capital ultrapassaram seu mero movimento
econômico para se estender à totalidade das condições sociais de existência,
onde estaria colocada a questão cultural. Assim, fica em evidência, nas
sociedades capitalistas contemporâneas, que seus processos de superação
ocorrem, também, em terrenos e disputas aparentemente sem relação imediata.
Constrói-se, desta forma, a estreita relação que anteriormente apontamos entre
trabalho e cultura. Nas palavras de BIHR (1999, p. 134), “a luta anticapitalista deve
se desenrolar simultaneamente dentro e fora do trabalho, visando a reapropriação
da totalidade das condições sociais de existência.”
Esta aproximação com as primeiras discussões sobre este universo cultural
numa perspectiva marxista nos possibilita observarmos a gênese social da palavra
e da idéia de cultura, compreendendo sua importância e significação neste
processo de constituição do ser social. WILLIANS (1979) nos chama atenção para
a necessidade de analisarmos o termo cultura através de uma consciência
histórica, ou seja, tendo clareza de que as questões e as contradições através das
quais o termo se desenvolveu são historicamente incorporadas no próprio
conceito. Nesta análise, entretanto, é necessário realizarmos cortes e opções
teórico-metodológicas.
Uma abordagem da cultura, como a que pretendemos realizar, no interior
da tradição marxista, é uma formulação histórica relativamente recente. Até o
século XVIII, cultura representava um processo meramente objetivo, como “cultura
de alguma coisa”. Tratava, assim, do cultivo, do crescimento e do cuidado de
colheitas e animais. Aos poucos, o termo foi ganhando maior complexidade e
passou a ser usado, no interior das Ciências Sociais, para tratar do crescimento e
dos cuidados com as faculdades humanas. Neste cenário, o conceito de cultura,
assim como os de sociedade e economia, constituem os conceitos modeladores
iniciais do pensamento social moderno.
CUCHE (1999) introduz elementos também relevantes ao construir esta
evolução histórica e semântica da palavra cultura. Segundo ele, o século XVIII
demarca um ponto de inflexão neste debate, sobretudo para a concepção
francesa. Em 1700, cultura já era uma palavra antiga no vocabulário francês e,
originária do latim, significava, como apresentamos, o cuidado dispensado ao
campo e ao gado. Designava, assim, uma parcela de terra cultivada ou
correspondia a uma ação: o ato de cultivar a terra.
A partir da metade do século XVIII, tal significado passa a conviver com um
sentido figurado designando a cultura de uma faculdade humana, isto é, o fato de
que era possível trabalhar intelectualmente para desenvolvê-la. É este sentido
figurado que irá se impor no século XVIII e que fará parte do vocabulário do
Iluminismo, designando a “formação”, a “educação do espírito humano”. Assim,
cultura passa a designar o estado de espírito cultivado pela instrução, passa a
constituir o termo cujo adjetivo é “culto”, e não “cultural”.
Para os pensadores do Iluminismo, cultura é, então, um dos elementos
diferenciadores do ser humano, aquilo que realiza uma oposição conceitual em
relação à idéia do homem enquanto natureza. É a soma dos saberes acumulados
e transmitidos pela humanidade ao longo de sua história. É própria do ser humano
e está além de qualquer distinção entre os povos. Por isso, é um termo usado, até
então, sempre no singular. Está associada às idéias de progresso, de evolução,
de educação, de razão. É a palavra ideal para um momento de extrema confiança
no projeto de modernidade construído pelo Iluminismo.
Tal conceito moderno de cultura, a partir do século XVIII, terá seu
desenvolvimento paralelo ao de outro termo: civilização. A partir de então, tais
termos estarão intrinsecamente relacionados, com momentos de convergência e
de contradição.
Civilizar irá designar, a princípio, um processo de absorção dos homens por
uma determinada organização social, a qual se desenha, nas palavras de
WILLIANS, como um Estado realizado, que contrasta e supera um estágio de
barbárie, e/ ou como uma condição realizada de desenvolvimento humano e
social, como um processo histórico de progresso, significando, na proposta
iluminista, refinamento e ordem. Assim, no século XVIII, realizar a civilização
representava um processo secular, evolutivo e histórico.
Neste sentido, cultura e civilização são palavras muito próximas na língua
francesa. Civilização irá evocar os progressos coletivos alcançados por
determinada sociedade através da cultura de seus membros, significando o
processo que arranca a humanidade da ignorância e da irracionalidade. A
civilização é, assim, um processo que pode e deve ser estendido a todos os povos
que compõem a humanidade, os quais devem compartilhar do progresso oriundo
da evolução humana.
A acepção alemã do termo cultura terá, por sua vez, um elemento
diferenciador bastante relevante nos debates a partir do século XVIII. A
intelligentsia alemã se considera investida da missão de construir, desenvolver e
irradiar uma certa “cultura alemã”, baseada nos valores da ciência, da arte, da
filosofia e da religião. Para uma nação que ainda não conseguira sua unificação
política, a Alemanha procurava, então, afirmar sua existência glorificando sua
cultura.
O debate contemporâneo herdará da noção alemã de cultura os elementos
que se referem à delimitação e à consolidação das diferenças nacionais, opondo-
se, assim, à noção francesa universalista de civilização. A “nação cultural”, para os
alemães, precede a nação política. Cultura significa um “conjunto de conquistas
artísticas, intelectuais e morais que constituem o patrimônio de uma nação
considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua unidade.” (CUCHE,
1999, p. 75). Por esta razão, Johann Gottfried Herder irá utilizar, pela primeira vez,
em 1774, a palavra “culturas”, em um plural significativo construído justamente em
nome do gênero nacional de cada povo, que aponta para uma diversidade de
culturas como a riqueza da humanidade e contra o universalismo uniformizante do
Iluminismo, onde cada cultura exprime parte da riqueza de toda a humanidade.
A partir do século XVIII, as problematizações acerca do conceito de cultura
estarão diretamente marcadas por duas concepções construídas a partir deste
embate: uma universalista, que privilegia a unidade e minimiza as diferenças, e
outra particularista, que reconhece e valoriza a diversidade entre as culturas,
procurando, entretanto, demonstrar que ela não é contraditória com a unidade
fundamental da humanidade. Podemos perceber, a partir do debate em torno
destas duas concepções que, com o constante processo de complexificação da
sociedade burguesa no período pós-iluminista, os termos civilização e cultura
começam a sofrer um certo distanciamento. Enquanto o primeiro vai se
constituindo como um termo superficial, artificial, como o cultivo de propriedades
“externas”, cultura ganha o sentido alternativo de um desenvolvimento “íntimo”,
associado a outras instâncias da sociedade, tais como a religião, as artes, a
família, a vida pessoal e comunitária, etc. Cultura passa a ser vista, então, como
uma classificação geral de instituições e práticas que, embora sociais, constituíam
significados e valores simbólicos de uma dada sociedade. Este é o sentido de
cultura como um “modo de vida”, no interior do qual se constrói a subjetividade e o
processo criativo de resposta às necessidades coletivas.
Assim CUCHE descreve esta oposição
Duas palavras vão lhes permitir definir esta oposição dos dois sistemas de valores: tudo que é autêntico e que contribui para o enriquecimento intelectual e espiritual será considerado como vindo da cultura; ao contrário, o que é somente aparência brilhante, leviandade, refinamento superficial, pertence à civilização. A cultura se opõe então à civilização como a profundidade se opõe à superficialidade. (1999, p. 25)
Para WILLIANS (1979), entretanto, as divergências entre os dois termos
não são mais importantes que o seu principal ponto de convergência, qual seja, a
de trazer uma nova possibilidade de interpretação acerca do homem enquanto ser
social e de sua vida em sociedade.
Cada um deles foi uma idéia moderna no sentido de que ressaltou a capacidade humana não só de compreender, mas de construir uma ordem social humana. Foi essa a diferença decisiva entre tais idéias e a derivação anterior de conceitos sociais e ordens sociais, a partir de estados religiosos ou metafísicos pressupostos (WILLIANS, 1979, p. 22).
O que podemos observar ao recuperarmos a gênese social e o
desenvolvimento histórico do termo cultura é que os diferentes significados que
ele apresentou não foram substitutivos, mas se tornaram complementares. Assim,
podemos hoje, no interior do debate das Ciências Sociais, destacar diferentes
compreensões do termo, mas um estudo mais aprofundado nos permite relaciona-
las e aborda-las numa perspectiva mais ampla, de totalidade.
“Cultura” denotava de início um processo completamente material, que foi depois metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. No linguajar marxista, ela reúne em uma única noção tanto a base como a superestrutura. (EAGLETON, 2005, p. 10).
Primeiramente, teríamos um uso mais amplo do termo, tanto nos domínios
da Antropologia quanto da Sociologia. Cultura significa, neste sentido, um “modo
de vida global” de determinado povo ou grupo social, compreendendo um conjunto
de elementos (valores, costumes, tradições, símbolos, representações e
referências) que constroem, em torno de uma coletividade, um parâmetro
dinâmico de identidade. Neste sentido, se fala da “cultura de diferentes povos ou
grupos”, a qual possibilita, entre eles, ao mesmo tempo, um elemento de inclusão
e outro de exclusão, quando se compartilha ou não de uma mesma cultura. Assim
a cultura unifica e separa, identifica e aliena, aproxima e afasta as pessoas. Neste
âmbito de compreensão do universo cultural, faz-se necessária uma discussão
acerca deste elemento de identidade. O que se define, a partir deste “modo de
vida global” é uma norma de vinculação que permite que pessoas e grupos se
localizem em uma determinada ordem societária e que seja, ao mesmo tempo,
localizado por grupos e pessoas diferentes.
É importante observarmos, então, que identidade e alteridade se constroem
em uma relação necessariamente dialética, que está em jogo a partir de diferentes
enfrentamentos e embates sociais. Não existe, neste sentido, uma identidade que
se construa definitivamente. Se a cultura é um elemento dinâmico, que contém e
acompanha o movimento da vida real, o parâmetro de identidade que dela decorre
também se define no interior de contextos sociais que orientam as representações
e as escolhas culturais. É no interior das mais diversas trocas sociais, viabilizadas
pela dinâmica produtiva de cada sociedade, que ocorrem também as chamadas
trocas culturais, que fazem da identidade este elemento em constante
(re)construção.
CUCHE (1999) chama atenção também para o fato de que o homem
constrói, em sociedade, diversas e diferentes vinculações, compondo este todo
orgânico que irá caracteriza-lo como ser social. Desta forma, existe também uma
pluralidade de referências identificatórias, que compõem a cultura e a identidade
cultural como algo multidimensional. Assim, ela pode ser instrumentalizada nas
relações entre os grupos sociais, construindo fronteiras (HANNERZ, 1997) como
artifícios de separação e de diferenciação. Este uso reafirma, como podemos
observar em diferentes contextos, relações históricas de dominação, onde a
cultura aparece como algo superior ou inferior, estendendo esta concepção
hierárquica para os povos que compartilham desta ou daquela cultura.
Uma outra possibilidade de se abordar contemporaneamente o termo
cultura mantém referência com aquela idéia de um “processo íntimo” de
refinamento intelectual, de um “desenvolvimento do espírito” no sentido da
aquisição de conhecimentos e de capacidade de reflexão e crítica. Este uso
aponta para uma apreensão mais “individual” de cultura, no sentido de pessoas
mais ou menos “cultas”, que desenvolveram mais ou menos esta capacidade
reflexiva. No entanto, esta capacidade está, mais uma vez, diretamente
relacionada ao conjunto das relações produtivas e das condições sociais nas
quais os homens constroem os diferentes espaços de relações sociais. A cultura,
neste segundo sentido, também é uma esfera coletiva e socialmente determinada.
Virá da contribuição gramsciana, como veremos, um importante avanço nesta
compreensão de cultura, ao afirmar que a capacidade de trabalho intelectual é
inerente ao homem, que a vivencia e a desenvolve de diferentes maneiras, de
acordo com as condições históricas nas quais vive.
Enfim, é necessário registrar ainda a compreensão de cultura num sentido
mais restrito, qual seja, o da produção artística e intelectual de determinada
sociedade. Partindo da certeza de que a autonomia desta produção é algo
extremamente relativo, acreditamos que tal produção é mais bem apreendida
enquanto “manifestação ou expressão cultural”, no sentido de que apresenta a
potencialidade de “trazer à tona”, de tornar manifestas as relações sociais
constitutivas do modo de produção em torno do qual uma sociedade se organiza.
A arte e a vida intelectual explicam e explicitam a cultura, sendo, ao mesmo
tempo, determinadas por ela. Ao longo de toda a história da arte, podemos
observar como ela sempre foi um forte instrumento ideológico, respondendo a
projetos societários diferenciados e, ao mesmo tempo, expressando as relações
sociais que dão vida a estes projetos. Este uso do termo cultura, longe de uma
perspectiva menos importante, constrói-se na vida social, portanto, como espaço
de reflexo e de mediação. Assim afirma EAGLETON (2005, p. 36-37)
Entretanto, essa idéia minoritária de cultura, embora seja um importante sintoma de crise histórica, é também uma espécie de solução. Assim como a cultura como modo de vida, ela confere cor e textura à abstração iluminista da cultura como civilização. (...) As artes podem refletir a vida refinada, mas são também a medida dela. Se elas incorporam, também avaliam. Nesse sentido, unem o real e o desejável à maneira de uma política real.
Como percebemos, uma extrema complexidade caracteriza a compreensão
de cultura no interior das Ciências Sociais, gerando diferentes concepções e
relações. Estes três sentidos do termo cultura, como pudemos perceber, são
inseparáveis, e remetem a uma potencialidade desta esfera não só de explicar,
mas também de viabilizar alternativas àquilo que explica.
Nesse sentido, também, a cultura pode unir fato e valor, sendo tanto uma prestação de contas do real como uma antecipação do desejável. Se o real contém aquilo que o contradiz, então o termo “cultura” está destinado a olhar em duas direções opostas. (IBIDEM, p. 37-38).
Observamos, ao longo da produção marxiana, que as manifestações da
consciência social possuem estreita ligação com as relações de produção e com a
produção material de uma certa sociedade. Afirmam estes autores:
A produção das idéias, das representações e da consciência, está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens, ela é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. (MARX & ENGELS, 1998, p. 18).
Segundo esta orientação, podemos perceber um duplo movimento, onde o
que Marx e Engels denominam de “consciência social” exprime e também
contribui para a formação das relações sociais. Através dela, que se constrói como
a “linguagem da vida real”, os homens pensam a si mesmos e aos outros,
refletindo em seu interior relações de dependência, alienação e antagonismo,
presentes em sua vida social, assim como de convergência, identidade e
solidariedade. Através da consciência, os homens exercitam a capacidade de
pensar a sociedade onde vivem, trabalham e produzem e de questionar, ou dar
continuidade, às relações que nela se estabelecem.
As relações de produção contraídas pelos homens formam, na perspectiva
marxiana, a base material de determinada sociedade, sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política. A esta esfera correspondem as formas de
consciência social que se manifestam através de determinada cultura. Assim, ela
é resultado da intervenção humana sobre a natureza e sobre a própria sociedade,
e produto de uma apreensão do real que continua existindo em toda sua
autonomia, fora desta esfera simbólica, embora compreendido pelo homem
através dela.
Na opinião de WILLIANS (1979), entretanto, a análise da cultura como
elemento superestrutural não consegue expressar toda a dimensão desta esfera
no interior da tradição marxista. A proposição da relação entre infra-estrutura
determinante e superestrutura determinada foi, sobretudo no início do século XX e
no quadro do marxismo ortodoxo, considerada como sendo a chave de uma
possível análise marxista acerca da cultura.
Tal concepção tem por base a seguinte afirmação de Marx, que pondera
que
A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona os processos social, político e intelectual da vida em geral. (...) com a modificação da base econômica, toda a imensa superestrutura se transforma mais ou menos rapidamente. (MARX, 1999, p. 52).
No entanto, o contexto real desta interpretação é limitado, afirma
WILLIANS, pois poderíamos encontrar, ao longo da produção marxiana, pelo
menos mais dois sentidos de “superestrutura”: o de formas de consciência que
expressam uma determinada ideologia, uma visão de mundo característica de
uma classe e o de um processo no qual os homens se tornam conscientes de um
conflito econômico fundamental e o tentariam solucionar (práticas políticas e
culturais). Assim, este autor nos chama a atenção para o fato de que entender os
termos infra-estrutura e superestrutura como categorias separadas e áreas de
atividade fechadas é realizar uma abstração comum e vazia de sentido, própria
das formas de pensamento que Marx tanto condenou.
É portanto uma ironia lembrar que a força da crítica original de Marx se voltava principalmente contra a separação das áreas de pensamento e atividade (como na separação entre a consciência e a produção material) e contra o esvaziamento correlato do conteúdo específico – atividades humanas reais – pela imposição de categorias abstratas. A abstração comum da infra-estrutura e da superestrutura é portanto uma continuação radical dos modos de pensamento que ele atacou. (WILLIAMS, 1979, p. 82)
O conjunto da produção marxiana nos convida, desta forma, a compreender
a superestrutura como o palco da complexificação de verdadeiras relações
sociais. Para apreendê-la e estudá-la, é preciso estar atentos para os vínculos
indissolúveis entre produção material, instituições, atividades políticas e culturais e
consciência. Não se pode pensar em condições econômicas, regime político e
formas culturais como elementos organizados de forma seqüencial, pois isso seria
negar, em seus princípios fundamentais, a proposta marxiana da totalidade social.
Na verdade, estes elementos são inseparáveis. Não constituem e nem podem se
expressar de forma separada, mas como uma totalidade que se caracteriza como
atividades e produtos específicos do homem enquanto ser social.
Engels esclarece que a abstração tão comum da infra-estrutura e/ ou da
superestrutura é um fenômeno característico do processo de complexificação das
sociedades modernas, sobretudo da sociedade capitalista. Neste momento, a
interligação absolutamente orgânica entre formas de consciência e suas
condições materiais de existência se torna cada vez mais obscurecida por elos
intermediários, embora exista em toda sua completude.
Afirma ele (apud WILLIANS, 1979, p. 83),
Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e a reprodução da vida real. Mais do que isso, nem Marx nem eu jamais afirmamos. Portanto, se alguém torce o que dissemos para afirmar que o elemento econômico é o único elemento determinante, transforma essa proposição numa frase sem sentido, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os vários elementos da superestrutura (...) também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, são preponderantes na determinação de sua forma.
Desta forma, em uma proposta de análise da cultura que tenha por
orientação a perspectiva marxista, é necessário e relevante analisarmos os
processos reais específicos e indissolúveis que se estabelecem entre a base e a
superestrutura. Acreditamos que esta perspectiva marxiana, longe de colocar a
cultura numa posição subordinada e passiva, dá a ela uma extrema dinamicidade
e uma capacidade significativa de acompanhar o movimento histórico do real. O
conhecimento do mundo e, portanto, sua significação simbólica só são possíveis
através da ação exercida sobre ele e da transformação sofrida por ele. A
consciência social dos homens se modifica na mesma medida em que contribui
para as mudanças ocorridas na natureza e nas formas de intervir sobre ela. Nas
palavras de MARX & ENGELS (apud SAHLINS, 2003, p. 133)
(...) o mundo sensível que o rodeia não é algo diretamente dado desde toda eternidade e sempre igual a si mesmo, mas o produto da indústria e do estado da sociedade no sentido em que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, cada uma das quais se apóia nos ombros da anterior, que desenvolve sua indústria e seu intercâmbio, modificando sua organização social de acordo com as novas necessidades.
A cultura é, portanto, o espaço dinâmico no qual a consciência
social constrói este conhecimento e esta reflexão acerca da realidade
histórica passada, presente e futura, onde o homem se percebe com
novas necessidades e desafios para além da intervenção sobre a
natureza. É um espaço de mediação, de intencionalidade, de
construção de novas demandas coletivas a serem atendidas pela
atividade produtiva. Os homens, ao desenvolverem sua produção e
seu intercâmbio material, constroem sua cultura. Ao mesmo tempo,
mudam a natureza, mudam sua constituição enquanto ser social,
mudam seu pensamento e os produtos deste pensamento. Fazem e
refazem permanentemente sua cultura e, conseqüentemente, toda sua
vida em sociedade.
SAHLINS (2003) realiza, em relação a esta concepção de Marx acerca da
cultura, a sua crítica antropológica. Segundo ele, Marx apreende apenas o caráter
secundário de simbolização da cultura, modelo de um sistema dado na
consciência. Ao lidar com o significado apenas em sua qualidade de expressão de
relações humanas, Marx deixaria escapar, através das malhas da teoria, a
constituição significativa dessas relações.
Nesta crítica, a lógica pragmática da produção material formaria um sistema
de limitações ao qual todas as relações e representações estariam funcionalmente
submetidas. Existiria, assim, uma premissa prático-natural – a de que as
necessidades devem ser satisfeitas – que eliminaria qualquer perspectiva de
autonomia da esfera simbólica da cultura. O quadro conceitual de Marx não teria
sido capaz, portanto, de responder à dimensão cultural que ordena as
“necessidades” dos valores de uso.
Tal crítica à teoria marxista é, inclusive, bastante freqüente no pensamento
social moderno. Atribuiu-se a esta teoria as características de ser reducionista e
determinista, onde as atividades referentes à esfera cultural não têm nenhuma
significação em si mesma, sendo sempre reduzida a uma expressão direta ou
indireta de um conjunto de fatores econômicos que a precedem e controlam. É a
crítica que se constrói em torno do conceito de determinação.
Entendemos, no entanto, que tal crítica ignora, no interior da perspectiva
marxiana, um de seus elementos vitais, que é a perspectiva de totalidade. Marx
não limita o quadro das necessidades humanas às necessidades físicas, pois é
ele próprio quem afirma que
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. (MARX, 2003, p. 57)
Parece-nos claro, nas formulações marxianas, que o modo de produção de
determinada sociedade não é apenas a produção de bens materiais, mas de todo
um modo de vida, que contém também uma necessidade de reprodução do ser
humano em toda a dinâmica de sua vida social. Assim, os homens produzem e se
reproduzem sob determinadas condições e dentro de determinadas relações que
são criadas e mantidas, também, pelos elementos que compõem o universo
cultural desta sociedade. A produção dá origem também a um determinado modo
de vida, o qual, por sua vez, irá constituir o quadro geral em que esta produção
terá sua continuidade e será permanentemente revolucionada. Tais idéias serão
amplamente desenvolvidas pelo marxismo do século XX, sobretudo na
perspectiva gramsciana. A cultura constitui, assim, a resposta a necessidades e
imperativos humanos não ligados, única e necessariamente, à sua reprodução
física. Remete, portanto, ao aspecto da vida social concretizado no plano da práxis
interativa, da relação com os outros homens e das construções coletivas
processadas através desta relação.
Este conjunto de elementos que compõem a cultura não se encontra
disperso ou fragmentado. Ele constitui expressão da totalidade da vida social,
apresenta uma coerência na combinação de diferentes traços. É no interior desta
totalidade que determinada cultura deve ser analisada e questionada, inserida em
suas relações com os aspectos sociais, econômicos e políticos que constituem
determinada sociedade. Se a cultura é uma esfera capaz de mediar a dinâmica
das relações sociais de uma sociedade (FEATHERSTONE, 1997), ela deve ser
objeto de análise nesta perspectiva de totalidade, deve ser problematizada como
um todo, e não a partir do isolamento de um de seus elementos. Nossa insistência
nesta reflexão se justifica pelo fato de que ela nos parece extremamente relevante
para o debate que se coloca, nos dias de hoje, em torno da dinâmica do processo
de globalização em curso.
A idéia da cultura como um reflexo da realidade social foi, no interior do
marxismo, a explicação mais comum para os fenômenos culturais, altamente
influenciada por um viés positivista, onde a cultura e, sobretudo, a arte, deveriam
necessariamente refletir a realidade, ou seja, a “produção e reprodução da vida
real”, deveriam meramente reproduzir o movimento da vida real. Este tipo de
formulação, como vimos, implica em uma compreensão da cultura como algo
estático, objetivista, que, por sua vez, se relacionaria com uma concepção da
realidade, da infra-estrutura passível de ser conhecida separadamente, por
critérios de verdade científica.
A partir desta “teoria do reflexo”, constrói-se, na maioria das vezes, uma
abordagem mecanicista do materialismo, onde o mundo real aparece isolado
como um objeto em condição abstrata, com “leis” já definidas e conhecidas deste
processo. As diferentes manifestações culturais seriam apenas o reflexo destas
leis, teriam a função apenas de externar, no plano das idéias e do mundo
simbólico, o que já se constituía como a realidade básica do processo social
material. Neste sentido, na esfera cultural, não haveria espaço para a criatividade
e para relações mais dinâmicas, mas apenas para a reprodução ideal desta
realidade externa e estática. Na verdade, esta teoria acaba por eliminar o caráter
material e social da própria atividade artística e cultural. Tal modelo tende a reificar
o movimento da infra-estrutura, compreendendo-a como um objeto acabado. Não
consegue apreendê-la como um processo de vida material, como resultado da
atividade humana, como algo dinâmico e histórico, do qual a produção cultural é
parte constitutiva, e não mero reflexo.
No momento mais contemporâneo da evolução do marxismo, sobretudo a
partir dos anos 80 do século XX, esta concepção da cultura como mero reflexo foi
sendo questionada e, segundo WILLIANS, desafiada pela idéia de “mediação”. A
diferença principal estaria na compreensão deste processo ativo na relação entre
“base material” e “cultura”, entre “infra-estrutura” e “superestrutura”. A cultura
seria, então, uma mediação das diferentes relações sociais nas quais os homens
estão envolvidos, ou seja, um processo positivo e substancial, onde são
produzidos significados e valores compatíveis com e necessários para a produção
material mais ampla. Enquanto mediação, é possível compreender a cultura como
algo intrínseco à produção material, capaz de acompanhar e de redirecionar seu
movimento, seus altos e baixos, bem como, conforme analisaremos mais tarde,
sua correlação de forças e seu contexto de luta de classes. Assim, como propõe
WILLIANS (1979, p. 101),
Não devemos esperar encontrar (ou encontrar sempre), realidades sociais “refletidas” diretamente na arte, já que estas (sempre, ou com freqüência) passam através de um processo de “mediação”, no qual seu conteúdo original é modificado.
Vale, ainda, enfatizarmos a dimensão essencialmente coletiva que dá
direção ao universo cultural. Embora uma das questões mais relevantes para a
antropologia cultural nos dias de hoje seja compreender como os indivíduos
incorporam e vivem sua cultura, ou seja, como se adquire uma certa cultura, esta
deve ser sempre problematizada em seu aspecto coletivo, enquanto uma
dimensão da práxis social interativa. Cada cultura comporta, em sua dinâmica
social, um conjunto de valores comuns àqueles que dela compartilham e que a
tornam específica em relação a outras culturas. É, assim, uma esfera que gera
identidade entre seus membros e que define, portanto, não só categorias para a
inclusão ou a exclusão, mas também a afirmação dos sujeitos sociais enquanto
produto e suporte das lutas sociais e políticas de grupos ou comunidades inteiras.
É neste sentido que se fala da cultura dos imigrantes, dos setores populares, de
classes sociais, etc., enquanto elemento da construção social destes setores no
interior de suas diversas relações sociais.
Todas estas questões exigem que reafirmemos a esfera cultural como
altamente dinâmica, estando sujeita a constantes transformações oriundas do
quadro social mais amplo no qual a cultura é gestada. Abordar esta dinamicidade
significa questionar os caminhos que podem contribuir para se modificar uma
cultura e os sujeitos destas mudanças, sejam eles indivíduos, grupos ou
sociedades inteiras. É necessário, portanto, afastar o risco de reificação da
cultura, e entendê-la também como o espaço de reflexão acerca dos problemas
que envolvem uma sociedade, das lutas sociais empreendidas em seu interior, da
reorganização da esfera da produção, etc.
As configurações culturais devem ser estudadas no interior de diferentes
quadros de relações sociais, as quais favorecem os elementos de integração, de
competição, de conflito, etc. Os contatos e, sobretudo, as trocas culturais são
realizadas a partir destas relações que são desiguais, uma vez que estabelecem,
no domínio cultural, uma mesma situação de hierarquia e de dominação. Ao
mesmo tempo, enquanto um espaço de reflexão (e não meramente como reflexo),
a cultura se constrói como alternativa, como questionamento desta dominação.
Define-se, neste sentido, como um pólo tenso em que convivem elementos de
resistência e de integração, de questionamento e de assimilação.
Percebemos, então, a partir destas formulações, a importância e a
significação da compreensão da cultura no interior da tradição marxista. O homem
se constitui enquanto ser participante de uma sociedade através de suas relações
com outros homens, processos que o potencializam a criar e a se identificar com
uma cultura, a qual, por sua vez, dá nova dinamicidade a estas mesmas relações
produtivas e sociais. A partir destas considerações, acreditamos que o debate
acerca da cultura no contexto contemporâneo da globalização fica enriquecido e,
ao mesmo tempo, pode ser realizado numa perspectiva mais ampla de crítica e de
superação. Inserindo a cultura na dinâmica das relações produtivas de uma dada
sociedade, encontramos o espaço privilegiado tanto para a compreensão quanto
para o questionamento da estrutura desta sociedade, sobretudo quando estas se
referem ao modo capitalista de produção. Antes, porém, de estarmos realizando
esta abordagem mais específica sobre a cultura na sociedade capitalista
contemporânea, consideramos necessário observarmos, ainda dentro desta
tradição, as contribuições especificamente gramscianas para este debate,
sobretudo no que se referem à concepção nacional-popular, categoria chave para
os estudos que pretendemos realizar ao longo deste trabalho.
1.2 - Cultura e nacional-popular em Gramsci
Denominado por FORGACS & NOWELL-SMITH (1999, p. 41) como “o
maior escritor marxista sobre cultura”, Antonio Gramsci realmente representa,
como veremos, um divisor de águas para a compreensão da esfera cultural no
interior desta tradição. Em sua obra, esta esfera “encontra seu lugar privilegiado”
enquanto elemento constitutivo de relações sociais e de projetos societários mais
amplos.
Em toda a produção gramsciana, desde seus primeiros escritos políticos até
os Cadernos do Cárcere, a temática da cultura está presente e vai,
gradativamente, ganhando maior complexidade, tornando-se mais rica e mais
completa, relacionando-se intrinsecamente com a discussão de outras esferas do
ser social, sobretudo aquela que se refere à vida política. Em um primeiro
momento, podemos perceber em Gramsci uma perspectiva tradicional de cultura,
onde esta se refere à educação como atividade do espírito, como unidade de
consciência e auto-conhecimento humano. No decorrer de sua produção,
entretanto, percebemos em Gramsci, não um abandono, mas uma ampliação
desta concepção, a qual passa a ser relacionada com todo o processo histórico,
em seus elementos políticos, sociais e econômicos que, para ele, constituem-se
inseparavelmente. Esta nos parece ser a compreensão hegemônica de cultura na
orientação gramsciana, e nos parece claramente exposta na expressão “criar uma
nova cultura”, tão freqüente nos Cadernos do Cárcere.
Toda a militância política de Gramsci, sobretudo no período pré-carcerário,
pode ser considerada como o fio condutor desta renovação da noção de cultura.
Desde os embates com os anti-culturalistas, no interior do Partido Socialista
Italiano (PSI), no período de 1913 a 1921, passando por toda a experiência dos
Conselhos de Fábrica e chegando até sua atuação no Partido Comunista da Itália
(PCI), Gramsci vai encontrando oportunidades de reelaborar sua compreensão de
cultura, ampliando e diversificando suas colocações acerca do tema. Entendemos
que é necessário aprofundarmos estudos sobre este momento da produção
gramsciana.
Desde sua passagem pela Universidade de Turim, nos anos de 1911 a
1913, Gramsci demonstrava interesse por temas que, mais tarde, lhe foram
centrais em sua discussão sobre cultura. Na Faculdade de Letras, interessou-se
particularmente por estudos de lingüística histórica e de literatura italiana,
temáticas que voltariam a chamar sua atenção em seus escritos do cárcere,
conforme carta a Tatiana Schucht de 19 de março de 1927. Destes seus primeiros
interesses, teria ficado, para Gramsci, uma compreensão, ainda restrita, de que a
palavra escrita é o centro da formação cultural em indivíduos e em sociedades
inteiras.
Devido às suas precárias condições de saúde e à sua situação econômica,
Gramsci não conseguiu avançar qualitativamente nestes estudos. No mesmo
período, mais especificamente em 1913, estabeleceu seus primeiros contatos com
o movimento socialista de Turim, ingressando então no PSI. A preocupação com
sua própria formação cultural era evidente. Lia muito, periódicos, livros, informes
em geral. Preocupava-se claramente com a situação política de sua região, a
Sardenha, não se mostrava indiferente a toda a agitação da classe trabalhadora
em Turim. Juntamente com Ângelo Tasca, Palmiro Togliatti e Umberto Terracini,
todos bastante influenciados pelo idealismo historicista de Benedetto Croce,
Gramsci tem clara para si a necessidade de uma formação cultural ampla na
sociedade, cujo objetivo deve ser o de divulgar amplamente as idéias socialistas.
Desde 1912, a cultura se apresentava como uma questão importante no
interior do PSI, quando a seção juvenil, à qual Gramsci pertencia, havia iniciado
estes debates nos congressos do partido. FORGACS & NOWELL-SMITH assim
registram este momento
Um debate tomou lugar em seu Congresso então entre “culturalistas” tais como Angelo
Tasca (bastante próximo de Gramsci até 1919) que queriam dar total prioridade à atividade
cultural e à propaganda teórica em seu jornal, e “anti-culturalistas” (incluindo o jovem
Bordiga) que chamava estas propostas de burguesas e lembrava seus opositores que a crise
histórica tem causas econômicas. (1999, p. 45, tradução nossa)
No interior desde debate, e fazendo parte da chamada “fração da esquerda
revolucionária”, Gramsci se preocupa desde cedo com o que mais tarde
denominaria de “organização da cultura”, ou seja, com os organismos construídos
no interior das relações sociais de uma sociedade com a função ideológica de
difundir uma determinada cultura. Assim, projeta fundar uma revista socialista e, a
partir de 1915, passa a ser um intenso colaborador de Il Grido del Popolo,
semanário socialista, e da redação turinense do Avanti!, periódico diretamente
ligado ao PSI, onde publica artigos de crítica teatral, literária e de debates sobre
temas do cotidiano da vida política italiana.
Este momento da vida de Gramsci pode ser analisado como o início de uma
produção política mais madura, a qual iria caracterizá-lo como o grande
revolucionário do qual a história teria conhecimento mais tarde.
Agora o jovem, completados os 25 anos, lentamente retomava o gosto pela vida, pelo debate político, pela atividade de jornalista. (...) Com esta retomada do trabalho político, a transformação na vida de Gramsci se acentuava. Não havia ainda tomado a decisão de abandonar definitivamente os estudos universitários. Todavia, outros interesses já prevaleciam sobre a escola. O socialismo era a resposta a todos os problemas, inclusive os pessoais, que o angustiavam; era a solução da crise. De fato, nascia neste período, entre o final de 1915 e o início de 1916, o “revolucionário profissional”. (FIORI, G. 1979, p. 125).
Deste primeiro período de elaboração teórica, quando Gramsci ainda era,
como ele próprio afirma, “sobretudo tendencialmente crociano”, podemos destacar
alguns textos nos quais as primeiras formulações de sua compreensão acerca da
cultura ficam mais evidentes. Neste momento, e até 1917, existia para Gramsci
uma intrínseca relação entre a educação formal e a questão da cultura, onde a
primeira era um dos caminhos privilegiados para se alcançar a segunda. Já
existia, no entanto, a certeza de que esta educação não poderia ser
desinteressada, ou seja, alheia e desvinculada da perspectiva de um projeto
societário mais amplo. Neste sentido, já existia, segundo Gramsci, uma luta
ideológica que envolvia, em projetos diferenciados, tanto a educação quanto a
cultura.
Em “Socialismo e Cultura”, de 29 de janeiro de 1916, Gramsci elabora um
paralelo e uma oposição entre duas concepções de cultura. Uma delas, que
poderíamos chamar de conservadora, aborda a cultura como um “saber
enciclopédico”, como uma capacidade de acumular dados que faz com que certas
pessoas acreditem ser superiores ao resto da humanidade, estando elas
sustentadas pelo que o autor chama de “intelectualismo deletério”. Evidentemente,
Gramsci se opõe a esta concepção, e defende a compreensão do termo cultura
como “algo a mais”, como um processo de auto-domínio e de autoconhecimento
que seria a base de uma consciência crítica unitária, uma “nova cultura”. Em suas
próprias palavras,
A cultura é algo bem diverso. É organização, disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista de consciência superior: é graças a isso que alguém consegue compreender seu próprio valor histórico, sua própria função na vida, seus próprios direitos e seus próprios deveres. (GRAMSCI, 2004, p. 58).
A esta concepção de cultura, que alguns autores consideram como
extremamente marcada por um viés idealista, Gramsci já acrescenta um
importante elemento, que será mantido em toda sua compreensão acerca deste
universo: a cultura não se forma no homem, enquanto indivíduo ou coletividade,
por uma evolução espontânea, por ações e reações independentes da própria
vontade. O homem é uma criação histórica e só como tal pode adquirir a
mencionada consciência crítica, que é a base de sua cultura. Através deste
conhecimento crítico de si mesmo e dos outros, o homem historicamente se eleva,
se transforma em um “elemento de ordem”, se diferencia daqueles que o
precederam e pode, portanto, propor teleologicamente as ações revolucionárias
que tenha necessidade de fazer. Neste sentido, se compreende a afirmação
gramsciana de que toda revolução precisa ser precedida por um intenso e
continuado trabalho de crítica, de penetração cultural.
No desenvolvimento desta noção, Gramsci já deixa transparecer também
aquela estreita ligação, que ao longo de sua obra, ele diversas vezes reafirmou,
entre cultura e educação. Já demonstrando uma acentuada preocupação com o
elemento classista na dimensão de absorção cultural, Gramsci, em Homens ou
Máquinas?, de 24 de dezembro de 1916, critica os socialistas na Itália por
defenderem um princípio genérico da necessidade da cultura, mas não se
comprometerem com um programa escolar específico, que se diferencie dos
outros.
Para ele, o modo como o sistema educacional é organizado favorece “os
filhos da burguesia” e faz com que a escola e, conseqüentemente, a cultura se
transformem em privilégios, relegando o proletariado a perpetuar sua condição de
classe, freqüentando as escolas técnicas e profissionais. Para que um projeto
societário alternativo possa se construir e desenvolver na sociedade italiana,
proposta e expectativa dos socialistas, Gramsci afirma que o proletariado precisa
de uma “escola desinteressada”, humanista, uma escola de liberdade e de livre
iniciativa, onde se possa adquirir critérios gerais que sirvam para o
desenvolvimento daquela consciência crítica unitária por ele defendida. Gramsci,
inclusive, se envolve pessoalmente com esta proposta de uma nova orientação
educacional direcionada para o proletariado, participando de experiências como a
educação de adultos no movimento socialista e fazendo conferências para círculos
culturais de trabalhadores.
Podemos assim afirmar que, neste primeiro momento de sua produção,
Gramsci já levanta importantes elementos a serem considerados em sua
discussão sobre cultura. É função do projeto socialista arrancar o privilégio de
acesso de uma classe à cultura, é preciso capacitar criticamente o proletariado,
com vistas a prepará-lo culturalmente para realizar as grandes transformações
necessárias em uma sociedade. É preciso que ele possa, através de sua
formação cultural, superar e abandonar uma compreensão fragmentada e
imediata da realidade social em que está inserido e alcançar uma dimensão
coletiva, unitária e revolucionária. Acreditamos que aqui está o embrião do que
Gramsci, mais tarde, chamará da passagem do momento econômico-corporativo
da classe trabalhadora para o momento ético-político. Uma transformação cultural,
portanto, estaria na base desta passagem.
Estas primeiras formulações gramscianas ganharam contornos bem mais
definidos a partir de 1917, quando Gramsci intensifica suas atividades como
jornalista e sua militância no PSI. Ao mesmo tempo, uma maior aproximação com
as discussões da tradição marxista, sobretudo a partir de Lênin, e com a
experiência da Revolução Russa fazem com que Gramsci acrescente à sua
produção, inclusive acerca da esfera cultural, novas e decisivas determinações
sócio-históricas.
Assim, o biênio 1917-1918 representa um momento de importantes
definições em toda a produção gramsciana. Diretamente envolvido com órgãos de
divulgação e propaganda socialista (La Città Futura, em fevereiro de 1917, Il Grido
del Popolo, em setembro de 1917 e Avanti!, em outubro de 1918), Gramsci
aponta, com uma clareza cada vez maior, para o caráter de classe da cultura, ou
seja, para os elementos de composição de uma autêntica cultura proletária e para
as relações que deveria estabelecer com a cultura burguesa, buscando
compreendê-la e, conseqüentemente, ter condições de superá-la através da ação
política da classe trabalhadora.
Na expectativa de levar adiante esta proposta de construção de uma cultura
proletária, Gramsci assume um grande debate no interior do PSI. Em oposição
aos reformistas e aos maximalistas, este autor, juntamente com outros membros
da juventude socialista, aposta na necessidade de que o Partido assuma a defesa
desta “cultura para o proletariado”, ou seja, na necessidade de se eliminar, no
interior do partido, aquela concepção cultural como um saber enciclopédico e de
se construir outra, capaz de preparar e de capacitar o proletariado para um real
processo revolucionário. Para Gramsci, o PSI em Turim era formado por uma
militância forte, mas essencialmente desorganizada e teoricamente despreparada
para uma direção política concreta. Além disso, esta militância estaria submetida a
uma liderança formada por intelectuais que, na relação com a base, monopolizava
a teoria enquanto conhecimento crítico. Para Bordiga, por exemplo, o que
impulsionaria o proletariado a optar pela luta rumo ao socialismo seriam suas reais
condições e necessidades de classe, vivenciadas em seu cotidiano, e não a maior
ou menor consciência crítica que tivesse sobre estas condições.
A seleção de alguns textos escritos no período de 1917 e 1918 demonstra
esta preocupação de Gramsci em orientar o debate em torno do universo cultural
no interior do PSI, buscando consolidar a idéia de que uma renovação ideológica e
cultural se fazia urgente no movimento socialista italiano, e de que a ação no
âmbito do domínio político e econômico deveria ser acompanhada pelo trabalho
do organismo de atividade cultural. Observe-se que, desde já, Gramsci associa à
cultura a capacidade historicamente construída de reflexão, de crítica, de
superação, por uma atividade consciente, das perspectivas de alienação e de
despolitização. A cultura já se apresenta como uma condição essencial para a
emancipação humana, proposta pela perspectiva socialista.
No único número de “La città futura”, em 11 de fevereiro de 1917, Gramsci,
ao se voltar para o problema do grande número de analfabetos na Itália, coloca a
questão da cultura e do acesso a ela, como o elemento capaz de elevar o
indivíduo, preso a um pequeno círculo de interesses imediatos, à condição de
cidadão, aberto a um mundo mais amplo de novas expectativas e de novos
projetos societários alternativos ao capitalismo. Para ele, esta é uma tarefa
socialista: acabar com o analfabetismo e transformar os italianos, através do
acesso à cultura, em cidadãos ativos. A “cidade futura”, enquanto projeto socialista
de Gramsci, só irá se concretizar a partir da “obra inteligente” destes cidadãos, ou
seja, das pessoas que, através do acesso à cultura, conseguem superar a
indiferença e a passividade. É neste sentido que Gramsci propõe a “disciplina
socialista”, autônoma e espontânea, construída a partir de uma rigorosa coerência,
alcançada a partir de todo o trabalho cultural proposto pelos socialistas no sentido
de “apressar o futuro”.
Em “Notas sobre a Revolução Russa”, de 29 de abril de 1917, Gramsci
deixa clara esta potencialidade revolucionária do trabalho cultural a ser
desenvolvido pelos socialistas. Ao questionar o caráter proletário da Revolução
Russa4, nosso autor propõe que é necessário que o fato revolucionário se revele,
além de um fenômeno de poder, também como um fenômeno de costumes.
Assim, para que uma revolução, nestes termos, se efetive, para que desemboque
realmente na possibilidade de construção de um projeto socialista, é necessário
que novos costumes sejam criados, instaurando assim uma nova consciência
moral. Neste mesmo sentido, em “O Relojoeiro”, de 18 de agosto de 1917,
Gramsci nos fala da necessidade de uma série de “substituições revolucionárias”,
onde, acredita ele, a primeira seria aquela em que a inércia mental dá lugar a uma
“vida de pensamento”, a um exercício de reflexão e crítica que, paralelamente a
ações no âmbito sócio-econômico e político, possibilitariam a criação de uma nova
ordem.
Este momento nos permite observar uma primeira ampliação na perspectiva
de Gramsci sobre a cultura. Já existe aqui uma relação clara entre uma
capacidade crítica e reflexiva, alcançada pela educação e pela militância política, e
um “modo de vida” mais amplo, um conjunto de valores, de costumes, de práticas
que compõem um ponto de convergência para pessoas e grupos diferenciados.
Observe-se que aqui, para Gramsci, o elemento de identidade é a situação de
classe e, mais precisamente, as condições em que esta classe vive, trabalha, se
organiza e, ao mesmo tempo, pensa e problematiza sua vida em sociedade. A
“base material”, a “vida social” determina a cultura desta classe (enquanto
capacidade de crítica e de reflexão) e a faz projetar outro projeto societário, outro
“modo de vida”, outra cultura em seu sentido mais amplo.
4 Gramsci se refere aqui ao primeiro momento da Revolução Russa, em fevereiro de 1917.
Nestas reflexões, Gramsci já questiona a atuação das lideranças do PSI,
que vinham se mostrando incapazes de superar “pregações abstratas” à base do
partido. Para ele, a vida política e econômica na Itália estaria conduzindo o PSI
para um campo reformista e favorecendo um distanciamento entre o proletariado e
suas lideranças socialistas, enfraquecendo as bases daquela cultura socialista a
ser ainda construída. Na perspectiva de Gramsci (2004, p. 111):
Os socialistas não são os oficiais do exército proletário; são uma parte do próprio proletariado, talvez sejam sua consciência. Mas, assim como a consciência não pode ser separada do indivíduo, tampouco os socialistas podem ser separados do proletariado. Formam com ele uma unidade, sempre uma unidade, e não comandam, mas vivem com o proletariado (...). Vivem no proletariado, e sua força está na força do proletariado, o seu poder reside nesta perfeita aderência.
Desta forma, podemos afirmar que, após 1917, Gramsci intensifica seu
debate em torno da questão cultural, passando a denunciar uma liderança
partidária que monopolizava o conhecimento crítico e a cultura, comprometendo,
assim, a luta social do conjunto da classe trabalhadora. Na concepção de
Gramsci, então, era preciso favorecer, no interior do partido, um processo de
educação em massa, para que se formasse uma base militante culturalmente
preparada e capaz de, coletivamente, elaborar estratégias e encaminhar
deliberações por si mesma.
Esta discussão já aponta para as questões que Gramsci irá aprofundar nos
Cadernos acerca do “novo tipo de intelectual” e do partido político como o grande
“intelectual coletivo” da classe trabalhadora. Está minimamente colocada, desde
então, a necessidade de se eliminar a perspectiva de exclusividade, de uma
camada burocrática teórica e culturalmente preparada, propondo uma formação
ampla a todo o conjunto da classe trabalhadora, preparando-a para a atividade
deliberativa e revolucionária. Como se pode perceber, a defesa gramsciana de um
intelectual que “educa e organiza”, impulsionando a base para uma ação política
consciente e unitária já se apresenta nestes primeiros elementos de crítica ao PSI.
Gramsci demonstra constante preocupação com o caráter coletivo desta
formação crítica. Em “Intransigência, tolerância, intolerância, transigência”, de 8 de
dezembro de 1917, o autor pondera que as deliberações tomadas coletivamente
devem ter como base a razão, devem ser resultado de um amplo, e tolerante,
processo de debate, de discussões, onde a síntese seja uma verdade global e
integral porque resultado de um processo coletivo de avanço cultural. Decisões e
deliberações assim tomadas, coletivamente, justificam, para Gramsci, ações
intransigentes.
Outro elemento que podemos particularizar da concepção gramsciana
sobre cultura neste período pós-1917 é que a ênfase em um caráter de classe se
torna cada vez mais marcante, bem como a idéia de uma “cultura proletária”, que,
em alguns momentos, Gramsci também chama de “cultura popular”. Em “Para
uma associação de cultura”, de 18 de dezembro de 1917, Gramsci defende que tal
associação, promovida pelos socialistas, deve ter finalidade e limites de classe.
Em Turim, o proletariado vivenciaria um elevado grau de organização e
desenvolvimento, entretanto, nem todos os que participam do movimento em prol
do socialismo assimilam o conjunto de questões que os envolvem da mesma
forma. Por isso, uma associação de cultura teria esta finalidade, de ampliar, ao
proletariado enquanto classe, esta preparação cultural, de discutir os problemas
da construção do socialismo, esclarecendo-o, propagando-o e fazendo dele a
cultura a ser defendida pela classe trabalhadora. Só assim os socialistas poderiam
questionar, em igualdade de condições, a mentalidade dogmática e intolerante dos
setores populares na Itália, bastante influenciados por uma formação católica,
jesuítica e burguesa. Tal associação, ao construir as bases de uma cultura
proletária e socialista, instituiria, no interior da classe trabalhadora, novos
costumes e valores, mais livres, despreconceituosos e, portanto, revolucionários.
Ter vivenciado todo o desenvolvimento do processo revolucionário na
Rússia certamente favoreceu esta abordagem classista na concepção gramsciana
de cultura e impulsionou uma virada na abordagem “tendencialmente crociana”
dos primeiros escritos de Gramsci. Se, em 1916, existia uma vaga e questionável
noção de como a mudança histórica necessária seria culturalmente preparada
(FORGACS & NOWELL-SMITH, 1999), a partir do final de 1917, o contato mais
próximo com o marxismo e com o trabalho político-prático traz para Gramsci uma
maior fundamentação para se incluir a luta ideo-cultural como uma frente
necessária e imprescindível para a conquista do poder em torno de um novo
projeto societário. Em “A revolução contra O Capital”, de 24 de dezembro de 1917,
o autor exalta o fato de que, na Rússia, o proletariado tenha sido capaz de
“apressar o futuro” e de desenvolver uma vontade social, crítica e coletiva,
instaurando assim as bases de um socialismo que tenha condições sócio-
históricas de se desenvolver plenamente.
Acreditando que, neste país, “os fatos superaram as ideologias”, Gramsci
defende que os bolcheviques absorveram a proposta marxiana como um elemento
cultural vivo e dinâmico, e não como uma “doutrina de afirmações dogmáticas e
indiscutíveis”. Ao reconhecer esta dimensão cultural na Revolução Russa,
Gramsci reconhece o marxismo como uma forma de pensamento que
(...) põe sempre como o máximo fator da história não os fatos econômicos, brutos, mas o homem, a sociedade dos homens, dos homens que se aproximam uns dos outros, entendem-se entre si, desenvolvem através destes contatos (civilização) uma vontade social, coletiva, e compreendem os fatos econômicos, e os julgam, e os adequam à sua vontade, até que essa vontade se torne o motor da economia, a plasmadora da realidade objetiva, a qual vive, e se move, e adquire o caráter de matéria telúrica em ebulição, que pode ser dirigida para onde a vontade quiser, do modo como a vontade quiser. (GRAMSCI, 2004, p. 127)
Assim, em “Filosofia, boa vontade e organização”, de 24 de dezembro de
1917, o próprio Gramsci descreve sua concepção de cultura neste momento:
Dou à cultura este significado: exercício de pensamento, aquisição de idéias gerais, hábito de conectar causas e efeitos. Para mim, todos já são cultos porque todos pensam, todos relacionam causas e efeitos. Mas o são empiricamente, primordialmente cultos, não organicamente. Conseqüentemente, hesitam, desorganizam-se tornam-se violentos, intolerantes, briguentos, de acordo com a ocasião e as circunstâncias. Vou me fazer mais claro: tenho uma idéia socrática de cultura, acredito que ela significa pensar bem, em qualquer coisa que se pense, e conseqüentemente, agir bem, em qualquer coisa que se faça. (apud FORGACS & NOWELL-SMITH, 1999, p. 57, tradução nossa)
Por isso, Gramsci afirma que a cultura é um conceito básico para o
socialismo, que deve ser organizada, como qualquer outro elemento, a partir da
perspectiva socialista. Deve possuir sua própria institucionalidade, através de
associações de cultura que, ligadas ao movimento socialista enquanto um projeto
de totalidade, constituam em si uma necessidade mais ampla para um projeto
alternativo. Cultura se faz, assim, através do processo em que se discutem e se
investigam os problemas, onde se permite a participação e a contribuição de
todos, onde uma alternativa societária é gestada e assumida como projeto de uma
coletividade. Em torno desta idéia mais ampla de cultura, Gramsci particulariza
algumas questões, que nos interessarão particularmente no trato do objeto deste
trabalho.
Em alguns textos do início de 1918 (“A crítica crítica”, “A Liga das Nações” e
“Individualismo e coletivismo”), percebemos uma primeira preocupação de
Gramsci com a questão nacional e o nacionalismo. Gramsci faz, nesta
oportunidade, uma crítica às primeiras formulações do movimento socialista
italiano, as quais negligenciaram o estudo, o debate e a solução dos grandes
problemas nacionais que, segundo ele, interessavam a todo o proletariado italiano.
Posteriormente, Gramsci se preocupa em discutir e compreender o capitalismo
como um sistema de bases e leis internacionais e supranacionais, como o
mercado externo e a livre concorrência, mas que só conseguiu se construir como
tal porque se desenvolveu, de forma mais ou menos intensa, conforme as
particularidades naturais e históricas oferecidas por cada país. Na verdade,
teríamos aqui o embrião de algo que posteriormente será central na obra mais
madura de Gramsci: a concepção de nacional-popular, ou, em outras palavras, a
necessidade de compreensão, por parte do proletariado, das questões específicas
do desenvolvimento capitalista em cada nação e da orientação que este fato
acaba dando às diferentes experiências do movimento socialista.
Neste debate em torno de uma “questão nacional” se coloca para Gramsci,
por exemplo, a questão de uma língua nacional que, enquanto construção
histórica, está diretamente vinculada à complexidade das atividades sociais das
pessoas que a falam. Por isso, pondera Gramsci, não é possível criar uma língua
universal, como era a proposta do Esperanto, no início do século XX, nem mesmo
uma língua nacional que seja fixa no tempo e no espaço. Novas correntes e novos
usos da língua são introduzidos pela dinâmica da luta social de diferentes classes,
que surgem na história de forma politicamente organizada e fazem com que
(...) novas curiosidades morais e intelectuais provocam o espírito e o obrigam a se renovar, a se aperfeiçoar, a mudar as formas lingüísticas de expressão, tirando-as de línguas estrangeiras, revivendo formas mortas e mudando significados e funções gramaticais. (GRAMSCI apud FORGACS & NOWELL-SMITH, 1999, p. 66, tradução nossa)
A partir destas idéias, Gramsci estará preocupado em desenvolver, com
maior clareza, os elementos que, segundo ele, deveriam caracterizar uma “cultura
socialista”. Para ele, o princípio orientador da ação do proletariado deveria ser a
organização que, substituindo diretamente o individualismo, deveria garantir à
cultura proletária o “sentido de responsabilidade, o espírito de iniciativa e o
respeito pelos outros”. Assim, uma associação da cultura vinculada ao movimento
socialista deveria “educar para o desinteresse, para a iniciativa do ‘indivíduo
coletivo’, sem objetivos imediatos de lucro pessoal” (2004, p. 125).
Em “Cultura e luta de classes”, de 25 de maio de 1918, Gramsci enfatiza
que esta preocupação com uma “nova cultura”, de bases socialistas, não é uma
mera questão retórica, mas uma necessidade urgente. Segundo ele, Turim
constituiu-se como uma cidade moderna, que conta com um movimento socialista
complexo, mas com sérias carências culturais e intelectuais. A classe operária,
crescente, absorvia gradativamente novos indivíduos que, no entanto, não
compreendiam plenamente a luta de classes e a conseqüente exploração à qual
estavam submetidos. Neste sentido, Gramsci reafirmava a urgência do trabalho e
da organização cultural e propunha que, nos espaços onde a atividade intelectual
(de escritores e propagandistas) fosse de difícil acesso, o proletariado promovesse
uma educação mútua acerca dos princípios da crítica socialista.
É com esta orientação, de uma educação e de uma cultura que se
constroem na coletividade, que Gramsci afirma, em “Livre pensamento e
pensamento livre”, de 15 de junho de 1918, que os socialistas querem o
“pensamento livre”, ou seja, condicionado pelas condições históricas, mas, ao
mesmo tempo, livre de convenções, estreitezas e preconceitos. Este pensamento
seria, portanto, resultado de uma cultura mais sólida, ampla e crítica, onde a
verdade não deveria ser apresentada de forma dogmática e absoluta, mas seria
oriunda de um processo marcado por uma ampla tolerância nas discussões e nas
polêmicas e enriquecido pela possibilidade de divergências e, até mesmo, de
contradições.
O socialismo se apresenta, então, neste momento da produção gramsciana,
como um projeto societário a ser construído não só pela organização política e
econômica, mas também por uma intensa atividade cultural, capaz de revolucionar
também o saber e a vontade, aprofundando uma consciência de liberdade e de
ação. Nesta ampla atividade cultural, Gramsci inclui elementos como a escola e o
programa educacional, que devem ter a tarefa de educar e de construir novas
gerações para a vida social no socialismo e em sua perspectiva democrática.
Inclui também a arte, principalmente a literatura e o teatro, que devem apresentar-
se como instâncias de reflexão e de debate, de reconhecimento e de propostas,
onde as classes trabalhadoras possam exercitar sua função de classe
fundamental na sociedade. Mais uma vez, como podemos perceber, Gramsci
amplia sua concepção em torno deste termo, incluindo agora elementos de
manifestação e de expressão cultural, tais como as artes e a produção intelectual.
Além do contato e da exaltação da experiência soviética, que, segundo
Gramsci, criou condições de uma nova cultura e de uma nova organização, uma
aproximação mais radical com o marxismo, sobretudo com a produção de Lênin,
está na base desta ampliação da noção gramsciana de cultura. Em “O nosso
Marx”, de 5 de maio de 1818, nosso autor identifica que
Com Marx, a história continua a ser domínio das idéias, do espírito, da atividade consciente dos indivíduos isolados ou associados. Mas as idéias, o espírito, ganham substância, perdem sua arbitrariedade, não são mais fictícias abstrações religiosas ou sociológicas. A substância está na economia, na atividade prática, nos sistemas e nas relações de produção e troca. (GRAMSCI, 2004, p. 162).
O denominado “Biênio Vermelho” (1919-1920), na Itália, trouxe novas e
significantes inquietações para a produção gramsciana, a qual inova não só no
que se refere à ação política do proletariado, mas também com relação às suas
formulações sobre cultura. Um período de grande efervescência militante estava
se apresentando para Gramsci naquele momento e o desafia a novas formulações
teóricas e posições práticas.
Já no início de 1919, juntamente com Ângelo Tasca, Palmiro Togliatti e
Umberto Terracini, Gramsci dá continuidade ao seu projeto de fortalecer os
organismos de difusão da cultura socialista. O grupo resolve criar uma “resenha
semanal de cultura socialista”, intitulada L’Ordine Nuovo, que será a partir de maio
deste ano, o principal órgão de elaboração teórica das idéias de Gramsci e do seu
grupo, principalmente no que se refere à atuação dos Conselhos de Fábrica, à
crise interna do PSI e, posteriormente, já em 1921, às formulações do recém
criado Partido Comunista da Itália (PCI).
Ainda bastante envolvido pelos acontecimentos na URSS, e procurando
acompanhar a passagem de um momento revolucionário para a construção de
uma sociedade socialista, Gramsci se volta, em suas formulações, para
especificar os mecanismos de construção da revolução proletária e para buscar,
na realidade italiana, os caminhos para que ela efetivamente se colocasse como
desafio para a classe trabalhadora.
Para Gramsci, a especificidade da revolução proletária, o que faz dela “a
maior das revoluções”, é sua proposta de instaurar uma nova ordem e uma nova
disciplina, e não apenas de corrigir a forma da propriedade privada ou da figura do
Estado. Em sua opinião, os bolcheviques souberam dar uma nova organicidade ao
povo russo, desagregado e desorganizado, em torno de uma outra vontade
coletiva, capaz de romper com a cultura atrasada e dominante, vigentes até a
Revolução, e de desenvolver e enriquecer uma outra cultura, construída em
relação direta com a inserção diferenciada da classe trabalhadora no mundo da
produção.
Esta “outra cultura”, revolucionária, deveria se expressar a partir da
instauração de um novo Estado, proletário, capaz de garantir a permanência e o
êxito de toda atividade social levada adiante pelos bolcheviques. Neste sentido,
Gramsci exalta a figura dos “soviets”, entendidos por ele como uma forma
constitutiva da nova sociedade organizada, como o espaço capaz de substituir a
burguesia em todas as suas funções essenciais de administração e de controle da
produção. Os soviets teriam, também, uma dimensão cultural, viabilizada pela
realização de uma obra de propaganda, de esclarecimento e de educação entre o
proletariado, acerca dos princípios revolucionários a serem fortalecidos.
Em “Questões de Cultura”, de 14 de junho de 1920, Gramsci procura
resumir estas idéias. Afirma que a revolução proletária pressupõe um novo
conjunto de normas, novas maneiras de sentir, pensar e viver que, construídas a
partir do modo de vida das classes trabalhadoras, deverão se tornar dominantes
em uma sociedade pós-revolucionária. Assim, paralelamente à questão de
conquistar o poder econômico e político, o proletariado deve se colocar também o
problema de conquistar o poder intelectual, organizando-se culturalmente para a
produção de novos valores, de uma nova “concepção de mundo”. Neste sentido,
Gramsci invoca o Proletkult, organizações culturais da URSS, como exemplo de
organização cultural autônoma da classe trabalhadora.
Para Gramsci, a noção de “cultura proletária” está relacionada a sua defesa de uma moral proletária historicamente superior, baseada no trabalho produtivo, na colaboração e nas relações pessoais responsáveis, assim como em sua crença em um novo tipo de sistema educacional na qual a divisão entre trabalho manual e intelectual esteja superada (FORGACS & NOWELL-SMITH, 1999, p. 47, tradução nossa).
Bastante influenciado por esta experiência na URSS, Gramsci procurou
identificar, na sociedade italiana, as organizações que pudessem ter esta mesma
função dos soviets, ou seja, conter potencialmente o Estado socialista, organizar
culturalmente e dar poder ao proletariado na construção das bases de uma nova
sociedade. Assim, ele atribui às comissões internas o papel de um “embrião dos
soviets”5.
A idéia central de Gramsci era que todos os operários, todos os empregados, todos os técnicos e mais tarde todos os camponeses e logo todos os elementos ativos da sociedade deveriam tornar-se, fossem ou não inscritos no sindicato e independente do partido a que pertencessem, e mesmo que não militassem em um partido, mas apenas, pelo fato de serem operários, camponeses, etc., de simples executores a dirigentes do processo produtivo, de peças a um mecanismo regulado pelo capitalista a sujeitos; em essência, que os órgãos democraticamente eleitos pelos trabalhadores (os Conselhos de fábrica, de fazenda, de bairro) fossem investidos debaixo do poder tradicionalmente exercido na fábrica e no campo pela classe proprietária e nas administrações públicas pelo delegado do capitalista. (FIORI, G. 1979, p. 150).
Em “Democracia operária”, de 21 de junho de 1919, artigo que o próprio
autor definiu posteriormente como “um golpe de Estado redacional”, estão
colocadas as bases desta assimilação gramsciana entre os soviets e os conselhos
de fábrica, que, em sua opinião, já contém potencialmente o Estado socialista.
Tais instituições estariam, entretanto, dispersas e desordenadas, e existiria a
necessidade de dar-lhes organicidade e coerência, potencializando-as como os
órgãos do poder proletário que substituiria o capitalista na direção e na
administração das fábricas. Por isso, ele propõe uma organização de toda a
classe trabalhadora nos conselhos (de fábrica, de bairro), numa perspectiva de
experimentação política e administrativa e de preparação para o exercício do
poder. Para Gramsci, a ação dos Conselhos é mais ampla e mais efetiva do que a
5 GOODE (In BOTTOMORE, 2001: 78) afirma que esta concepção gramsciana beirava o
“utopismo”.
dos sindicatos, pois estes últimos trabalhariam nos limites do período histórico
dominado pelo capital, enquanto os primeiros teriam como orientação justamente
a superação desta sociedade. A natureza do sindicato é, segundo Gramsci,
concorrencial, e não comunista, e a razão de ser dos Conselhos está no trabalho e
na produção, e não mais no salário.
Gramsci acredita que os conselhos constituíam o momento de instauração
de um novo Estado, tipicamente proletário. Tem-se notícia de que, em setembro
de 1919, os operários da Fiat-Brevetti elegeram os comissários de seção e
nasceu, então, o primeiro Conselho de Fábrica. O movimento se torna crescente
na Itália, somando-se a experiências de conselhos em outros países, e Gramsci
ficará, durante o biênio 1919-1920, bastante envolvido com a função de garantir
uma fundamentação teórica e cultural aos Conselhos e de convencer os membros
do PSI de que o partido deveria assumir definitivamente esta lógica conselhista.
Para este autor, o PSI deveria ter como meta a unidade da classe operária
em um único comitê, capaz de agregar instituições urbanas, com trabalhadores de
todas as atividades da vida moderna, chegando a unidades cada vez mais
amplas, que incluíssem também os camponeses. Gramsci pensa, assim, em uma
grande frente de organização política e econômica da classe trabalhadora, que
deveria basear suas ações na realidade do trabalho, da produção, conciliando
exigências do momento atual com as expectativas e perspectivas do futuro.
A aproximação de Gramsci com esta discussão acerca dos conselhos o
teria afastado da temática específica da cultura? Poderíamos certamente afirmar
que não. Muito pelo contrário, Gramsci parece ter somado a esta discussão outras
importantes determinações. Se antes poderíamos afirmar que o binômio
educação/ formação política resume bem a primeira concepção gramsciana de
cultura, agora o autor parece somar outros elementos, quais sejam, a organização
e a militância. Para ele, os Conselhos de Fábrica teriam também uma importante
função cultural, entendida como a de materializar, de tornar real, num primeiro
momento, aquela que ele mesmo denominou de uma “cultura socialista”. Nos
Conselhos, o proletariado teria a oportunidade de exercitar esta cultura, através da
resistência à herança do capitalismo e da afirmação de princípios e valores
orientadores de uma prática socialista: o autogoverno, a lealdade e a disciplina, a
participação ativa e permanente, o sentimento rigoroso de responsabilidade, o
coletivismo e a experiência associativa, a solidariedade operária como algo
positivo e permanente. Os Conselhos seriam, assim, um órgão de educação
recíproca e de desenvolvimento de um novo espírito social, de uma nova cultura,
enfim, capaz de garantir uma unificação orgânica de toda a classe trabalhadora.
Gramsci reconhece, então, que, numa perspectiva radicalmente marxista,
as mudanças operadas pelos Conselhos na esfera da produção são
determinantes na configuração desta nova cultura.
E estas condições objetivas [de produção] se modificam, modifica-se também a soma das relações que regulam e informam a sociedade humana, altera-se o grau de consciência dos homens, a configuração social se transforma, as instituições tradicionais se debilitam, deixam de cumprir suas funções, tornando-se gravosas e destrutivas. (GRAMSCI, 2004, p. 260).
Neste sentido, a conquista do Estado proletário constitui, segundo Gramsci,
um processo de desenvolvimento que pressupõe um trabalho preparatório de
organização e de propaganda que, neste caso, é desenvolvido e construído
também culturalmente, através da participação do proletariado na lógica dos
conselhos.
Como já ponderamos, Gramsci estava, desde 1917, bastante preocupado
com o caráter reformista que vinha ganhando força no interior do socialismo
italiano. Segundo suas análises, elaboradas ao longo de todo o ano de 1920, o
crescimento repentino vivenciado pelo Partido havia-no desvitalizado, ao invés de
fortalecê-lo, e isso em decorrência da perda de contato da direção com as massas
em movimento, levando o partido a uma crise de marasmo e de letargia.
Existia, no interior do PSI, uma forte resistência à proposta dos Conselhos.
Para Bordiga, por exemplo, era um equívoco acreditar que o proletariado poderia
ganhar terreno e emancipar-se no plano das relações econômicas enquanto o
capitalismo ainda detinha a figura do Estado e o poder político. Para Serrati, por
outro lado, havia na elaboração de Gramsci, uma confusão entre os soviets, que já
atuavam no contexto de uma revolução vitoriosa, e os conselhos, que trabalhavam
no âmbito da ordenação industrial na sociedade capitalista. Apesar da proposta de
Gramsci obter minimamente um consenso, esta resistência do PSI ficou evidente
por ocasião da Greve de Abril6, em 1920, quando os industriais reagiram ao
movimento dos conselhos, crescente na Itália, e a classe trabalhadora não
recebeu o apoio esperado de seus dirigentes partidários e sindicais. Assim avalia
Gramsci esta derrota
6 A “Greve de abril” foi um movimento de greve geral, em abril de 1920, que chegou a reunir mais de 200 mil trabalhadores em Turim, Esgotou-se num prazo de dez dias, com a vitória substancial dos patrões.
(...) é certo que a classe operária de Turim foi derrotada porque não existem, porque ainda não amadureceram na Itália as condições necessárias e suficientes para um movimento orgânico e disciplinado do conjunto da classe operária e camponesa. Um indício desta imaturidade, dessa insuficiência do povo trabalhador italiano é, sem dúvida, a “superstição” e a mentalidade estreita dos responsáveis do movimento organizado do povo trabalhador italiano (GRAMSCI, 2004, p. 346).
Gramsci conclui então que, embora o partido político e os sindicatos sejam
co-responsáveis pelos atos de libertação da classe trabalhadora no processo
revolucionário, na Itália estes instrumentos não encarnaram este processo e,
conseqüentemente, não superaram o Estado burguês. A classe operária na Itália
teria, então, adquirido consciência da necessidade de uma unidade orgânica e da
volta do poder industrial à fábrica sob a forma do Estado operário no sistema dos
conselhos. No entanto, faltava-lhe organização e direção. Faltava, e isso ficou
evidente após a Greve de abril, a capacidade organizativa de fazer da revolução
um ato contínuo, de reconstrução a partir de um sentido comunista, de introduzir
uma nova ordem e construir um novo Estado.
O PSI teria falhado, então, exatamente em sua função cultural de educar,
formar politicamente e capacitar as massas a se organizarem em classe dirigente
e dominante. A classe operária deveria estar preparada para uma gestão social
diferente, com “a cultura e a psicologia de uma classe dominante” capaz de
debater e de se educar reciprocamente. Neste sentido, então, o PSI não tinha
contribuído na construção de uma verdadeira “cultura socialista”, estando tomado
por uma retórica vazia e impotente no aspecto político, com uma atuação
meramente parlamentar.
Por isso, torna-se urgente para Gramsci, a partir deste momento, uma
renovação do Partido Socialista. Era preciso abandonar a atuação meramente
parlamentar e os estreitos limites da democracia burguesa, atuando diretamente
no cotidiano das lutas empreendidas, no caso, pelo sistema dos conselhos. Era
preciso desenvolver um trabalho intensivo de educação política das massas no
sentido de uma orientação comunista, afastando o risco do reformismo que
pairava sobre todo o movimento socialista naquele momento.
É neste sentido de um reencontro do movimento socialista italiano com as
questões concretas da vida da classe trabalhadora, com vistas à criação de uma
nova cultura que Gramsci propõe a renovação do PSI na direção de um partido
revolucionário, homogêneo e coeso, com doutrina, tática e disciplina rígidas e com
um importante trabalho de educação de “consciências revolucionárias”. No
entanto, esta posição de Gramsci começava a perder força dentro do PSI. Havia
uma crise interna no partido e se configurava com mais clareza uma
irreconciabilidade entre suas várias tendências. Começavam a se formar, com
mais organicidade, grupos comunistas no interior do partido, que, funcionando
com mais vitalidade, assumiam, em algumas fábricas, o governo de classes.
Gramsci acreditava que a tendência era que estes grupos iriam se expandir no
interior do partido até conquistarem sua direção, transformando sua figura
histórica e eliminando, de vez, seus restos reformistas.
Este debate no interior no PSI tornou-se mais intenso após o movimento
que, em agosto e setembro de 1920, ficou conhecido como a “ocupação das
fábricas”, com todos os poderes sendo assumidos pelos Conselhos nas fábricas
de Turim. Os trabalhadores assumem a produção nos locais de trabalho, sendo
disciplinados pelos Conselhos. Tal movimento, que durou apenas 30 dias,
aproximadamente, foi reconhecido, inclusive internacionalmente, como uma
“verdadeira revolução”, como uma primeira experiência de poder da classe
trabalhadora na Itália.
Gramsci, que participou ativamente do movimento de ocupação das
fábricas, estava também bastante envolvido com a preocupação de fazer avançar,
no interior do partido, a cultura e os grupos comunistas, fazendo-os conquistar a
direção do PSI e de todo o movimento da classe trabalhadora italiana naquele
momento. No entanto, a ocupação das fábricas não se expande como um grande
movimento nacional e, ao fracassar em Turim, recoloca o problema da ação
reformista e parlamentar do Partido Socialista, trazendo, com mais clareza, a
intenção de ruptura dos grupos comunistas e de fundação de um novo partido.
Além disso, o fracasso do movimento turinense coloca em pauta outra
questão, que será central no debate gramsciano pré-cárcere: a restauração do
Estado na Itália pela reação neoconservadora do fascismo. O primeiro artigo de
Gramsci que aponta mais diretamente para esta questão data do final de 1920.
Em “O que é a reação?”, ao fazer uma crítica à atuação de Giolitti durante o
movimento de ocupação das fábricas, Gramsci reconhece que o capitalismo se
torna reacionário quando não consegue mais dominar as forças produtivas. Neste
momento, Gramsci dá maior destaque à intervenção direta e violenta do Estado
burguês reacionário sobre a luta de classes, reprimindo as tentativas e iniciativas
da classe trabalhadora. No momento seguinte, sobretudo nos anos de 1921 e
1922, este autor estará reconhecendo, no avanço e no fortalecimento do fascismo
enquanto um movimento internacional, o surgimento de um elemento de
consenso, de apoio de massas, que demarcará todo o Estado italiano entre as
décadas de 20 e 40.
Compõe-se, assim o novo quadro de questões demarcadas por Gramsci
neste período. Em primeiro lugar, a ruptura com o PSI e a formação do PCI. Em
segundo lugar, a reação capitalista e o fascismo na Itália. Vejamos, portanto, os
principais elementos deste debate e sua contribuição específica para a noção
gramsciana de cultura.
A partir da crise interna do PSI e da fundação do PCI, Gramsci reconhecia,
neste último, a necessidade de assumir uma postura de defesa do Estado
operário, devendo retomar o trabalho de orientação e de educação política
abandonado pelos socialistas, refundando, em bases inclusive culturais, a
perspectiva revolucionária mais ampla, capaz de ultrapassar a orientação
parlamentar.
Ao pensar e questionar o papel que o recém-criado PCI deveria ter junto à
classe trabalhadora, Gramsci não hesita em atribuir a esta classe a função de
“classe nacional”, ou seja, daquela que deveria arrancar o poder econômico e
político e resolver, com base em seus princípios e em sua cultura, o problema
central da vida nacional italiana, unificando econômica e espiritualmente o povo
italiano. Dialeticamente, Gramsci será enfático em ponderar que tal recuperação
da vida nacional italiana pelo projeto da classe trabalhadora só será possível “nos
quadros da revolução mundial” e, por isso, ele defende como imprescindíveis a
disciplina e a fidelidade à experiência soviética. Era necessário, assim, um poder
internacional fortemente centralizado, capaz de, atento às particularidades da vida
nacional, orientar as forças revolucionárias mundiais para o mesmo objetivo.
Observamos que, desde então, nacional e internacional se constituem, no
pensamento gramsciano, a partir de um movimento dialético, onde o primeiro
aponta para os problemas e questões específicos vivenciados pelas classes
trabalhadoras em seu cotidiano e o segundo aponta para o espaço de intervenção,
para a perspectiva revolucionária mais ampla, sem a qual não se resolvem os
problemas em âmbito nacional. Como teremos a oportunidade de discutir, esta
conclusão gramsciana nos parece absolutamente contemporânea para as
discussões que pretendemos realizar.
Entre as expectativas gramscianas para a atuação do PCI, está a tentativa
de se recuperar a importância dos conselhos de fábrica como o organismo de
poder operário sobre os meios de produção. Segundo Gramsci, é no terreno deste
controle que burguesia e proletariado lutam para conquistar a posição de classe
dirigente das grandes massas populares. Ao assumir esta posição, a classe
operária encontra bases concretas para iniciar o trabalho positivo de organização
do novo sistema econômico e social. Esta luta, portanto, é revolucionária e só será
levada adiante quando a classe operária conseguir elevar sua consciência em
torno de sua autonomia e de sua personalidade histórica. Desta forma, Gramsci
expõe, claramente, a relação intrínseca entre cultura e política que, de forma tão
intensa, caracteriza sua produção teórica, sobretudo no período do cárcere.
Neste sentido, o Partido Comunista incorpora, para Gramsci, o instrumento
capaz de congregar as inúmeras lutas particulares da classe operária em uma
luta, mais ampla, iluminada por um grande objetivo final. Assim, através da ação
do PCI, Gramsci visualiza uma maturidade material e moral do proletariado,
capacitando-o a assumir concretamente um novo poder, que não será conquistado
e exercido através dos organismos do Estado burguês.
É preciso que os operários, os camponeses, os trabalhadores de todas as categorias tornem-se dominadores de toda a sociedade, que tenham o poder e o exerçam através de novas instituições, capazes de dar à sociedade uma nova forma e uma férrea disciplina de ordem e de trabalho para todos. É preciso que todas as demais lutas se subordinem àquela que visa à conquista do poder, à criação do novo Estado, do Estado dos operários e dos camponeses. (GRAMSCI, 2004, p. 62).
Ao mesmo tempo em que se preocupa com a necessidade de desenvolver
e consolidar as primeiras teses do PCI junto à classe trabalhadora italiana,
Gramsci estará neste momento voltado, também, para elaborar uma crítica aos
elementos fascistas que começam a ganhar força na sociedade italiana. Ele
reforça o caráter de classe do fascismo italiano, reconhecendo nele um elemento
de “imaturidade humana na Itália”, onde a luta de classes assume um caráter
extremamente violento e anti-social. O fascismo seria, então, a prova de que não
se teve a experiência de um Estado bem organizado e administrado e de que
apenas nas mãos do proletariado este Estado poderia viver uma fase mais
“amadurecida” com uma reorganização da produção e de todas as relações
sociais a ela vinculadas. Em oposição aos socialistas, Gramsci reconhece o risco
de um golpe de Estado pelos fascistas e propõe que os comunistas respondam a
ele com a insurreição, com a condução do povo em armas até a criação do Estado
operário.
Fortalecido pelo uso “caótico” da violência privada, por fazer da ilegalidade
a “única coisa legal”, o fascismo se torna gradativamente mais agressivo contra as
classes trabalhadoras e as ações de governos locais socialistas. Gramsci
reconhece, desde então, o fascismo como um movimento em escala internacional
que, diante da guerra imperialista que arruinou as forças produtivas, buscava,
através da coerção, solucionar a unidade de crises nacionais que se construíam.
Gramsci reconhece, também no fascismo, um marcante elemento cultural.
Para ele, esta experiência política revela a decomposição da sociedade italiana,
expressa costumes e tradições que se identificam com a psicologia bárbara e anti-
social de alguns estratos do povo italiano, que sempre deram à luta de classes um
caráter extremamente violento. Assim, para o autor, a luta contra o fascismo é
uma luta também cultural, a ser levada adiante pelo comunismo, garantindo a
estes estratos populares a convivência com uma nova tradição, com uma nova
educação, com um Estado, bem organizado e bem administrado, sustentado por
outras relações, princípios e valores.
Assim afirma Gramsci,
(...) o fascismo enquanto fenômeno geral, enquanto flagelo que supera a vontade e os meios disciplinares de seus líderes, com sua violência, com seus monstruosos arbítrios, com suas destruições tão sistemáticas quanto irracionais, só pode ser extirpado por um novo poder de Estado, por um Estado “restaurado” tal como o entendem os comunistas, ou seja, por um Estado cujo poder esteja nas mãos do proletariado, a única classe capaz de reorganizar a produção e, em conseqüência, todas as relações sociais que dependem das relações de produção. (2004, p. 58)
Desta forma, a produção de Gramsci neste momento estará construída em
torno deste grande enfrentamento, qual seja, entre diferentes projetos que se
pretendem dominantes e dirigentes da classe trabalhadora italiana. Por um lado, o
debate com o PSI, do qual os comunistas haviam se desligado e que aderia, cada
vez mais, a uma perspectiva reformista, enxergando o inimigo não mais na
burguesia, mas nos comunistas e na possível concorrência em torno da conquista
da classe trabalhadora. O principal elemento de polarização será a organização do
proletariado em sindicatos ou em conselhos, sendo que Gramsci reafirmará que
os últimos são os grandes parlamentos operários, com a função de transformar as
velhas relações organizativas rompendo com o seu burocratismo. Para ele, nos
conselhos, triunfam as teses e os homens da revolução, organicamente formados
no Partido Comunista, enquanto no velho organismo sindical sustentam-se as
teses do reformismo, uma vez que não questionam o controle sobre a produção.
Em “Os partidos e a massa”, de 25 de setembro de 1921, Gramsci
reconhece que, orgânica e culturalmente, o PSI, desde sua formação, era um
partido politicamente frágil. Constituído principalmente por pequeno burgueses e
camponeses, não podia deixar de ser hesitante, carente de um programa claro e
preciso, destituído de orientação e de consciência revolucionária internacionalista.
Assim se justificava, portanto, o nascimento do PCI, reconhecido pelos seus
fundadores como a primeira organização autônoma e consciente do proletariado
industrial revolucionário, que não se deixou iludir pela aparência forte e
conciliadora do Estado burguês. Gramsci apostava na necessidade de o PCI
realizar um amplo e efetivo trabalho cultural e político junto ao proletariado para
efetivamente fazer dele um partido das mais amplas massas, o que ainda não
havia acontecido devido à grande desmoralização e abatimento, após o fracasso
da ocupação das fábricas.
Já em 1922, Gramsci visualiza que um acordo entre o Partido Socialista, o
Partido Popular e o fascismo, vivendo uma crise originária de sua ação coercitiva
e repressiva, estaria preparando a base de um futuro Estado social-democrata
italiano, onde seria mantido, com novos traços, o tradicional predomínio, no
Estado italiano, de uma classe dirigente que tem interesses opostos aos das
classes populares e que quer exercer sobre elas uma dominação de violência e
engano. Este acordo e, principalmente, a participação dos socialistas neste Estado
teria um forte componente ideológico e cultural, uma vez que impediria as massas
de tomar consciência da verdadeira intencionalidade capitalista e burguesa de um
Estado social-democrata. Assim se estrutura a crítica gramsciana à social-
democracia, como um caminho de reconstrução de um organismo que
historicamente priva o proletariado da liberdade e do bem-estar.
Aos comunistas caberia, então, o papel de criticamente afastar as ilusões
das massas populares, realizando um trabalho de reorganização e de
desenvolvimento que ia desde a formação política e cultural, no sentido do
questionamento e do enfrentamento de idéias até a criação de uma força armada
proletária capaz de derrotar a burguesia. Para Gramsci, os comunistas deveriam
aproveitar a fragilidade política dos socialistas e dos fascistas, bem como a crise
política vivida pelos fascistas, para divulgar, entre operários e camponeses, uma
consciência crítica da real situação da luta de classes e dos meios adequados
para se derrotar a reação capitalista.
Percebemos, então, que, neste biênio (1921-1922), é grande a
preocupação de Gramsci em demonstrar a diferença e a superioridade das
propostas comunistas em face das iniciativas políticas até então levadas adiante
pelas realizações históricas do Estado burguês na Itália. Gramsci está atento
também neste período para a relação dialética que virá se estabelecer entre as
particularidades nacionais do desenvolvimento capitalista na Itália e o
compromisso com uma proposta internacionalista do comunismo. Reconhece,
assim, que a “democracia” italiana carece de uma sólida estrutura de classes, uma
vez que não há predominância de nenhuma das duas classes proprietárias, os
capitalistas e os latifundiários. Na Itália, segundo Gramsci, este fato se agrava por
uma séria questão territorial, qual seja, a subordinação das regiões centrais e
meridionais do país, habitadas pelas classes rurais, às regiões setentrionais, onde
prevalece o capital industrial e financeiro. Assim, esta “questão meridional” vai
gerar, entre as classes trabalhadoras de ambas as regiões (camponeses no norte
e operários no sul) uma grande dificuldade de atuação conjunta, resultante, muitas
vezes, de diferentes padrões culturais e organizativos. Desta dificuldade se
aproveita a burguesia, que faz triunfar o capitalismo e que tenta criar um sistema
de alianças com o proletariado urbano, para que possa se desenvolver uma
democracia parlamentar. Diante deste quadro, os comunistas devem assumir uma
posição precisa, não só atentando e buscando intervir nesta questão meridional,
mas também demonstrando a insuficiência desta democracia parlamentar para a
solução da crise econômica e política italiana.
Esta atenção dos comunistas às particularidades da realidade italiana não
pode acontecer, na perspectiva gramsciana, sem um fiel compromisso com a
proposta da revolução mundial. Gramsci enxerga esta carência na compreensão
do operariado italiano acerca da experiência soviética: ela não se transformou em
uma concepção universal, não determinou a germinação de uma nova cultura
operária, baseada nas experiências concretas de luta e de mobilização. Afirma-se
aqui uma das maiores preocupações gramscianas ao longo de toda a sua
militância: a fidelidade dos comunistas à perspectiva internacionalista de
revolução. Nas suas palavras,
(...) a esperança deste proletariado (e de todos os outros proletariados) de que os conflitos e as crises que hoje dilaceram a sociedade sejam resolvidos, a esperança de que poderão se salvar da ruína extrema, residem tão somente na revolução mundial e na solidariedade da Internacional operária elevada à condição de árbitro das forças produtivas. (2004, p. 52).
Nos anos de 1923 e 1924, na liderança do PCI, Gramsci vive um período de
experiência internacional, como representante italiano junto a Terceira
Internacional, que irá demarcar questões relevantes em sua posição política e
cultural. A primeira preocupação será de fortalecer o Partido Comunista, recém
criado, em torno de uma proposta revolucionária que, ao mesmo tempo,
enfrentasse a consolidação do fascismo na Itália e congregasse forças para a
revolução mundial. Pensando neste duplo desafio, Gramsci propõe várias
iniciativas ao PCI, insistindo na necessidade de uma preparação ideológica e
cultural do proletariado em torno destas causas, principalmente na situação de
ilegalidade em que o movimento operário revolucionário italiano havia sido
colocado pelo fascismo. Em suas palavras,
Para que o Partido viva e esteja em contato com as massas, é preciso que todo membro do Partido seja um elemento político ativo, um dirigente. Precisamente porque o Partido é fortemente centralizado, deve haver uma ampla obra de propaganda e de agitação em suas fileiras; é preciso que o Partido, de modo organizado, eduque seus membros e eleve seu nível ideológico.
Centralização significa, sobretudo, que – em qualquer situação, mesmo sob um duro estado de sítio, mesmo quando os comitês dirigentes não puderem funcionar por um determinado período ou não tiverem condições de se ligar à periferia – todos os membros do Partido, cada qual em seu ambiente, sejam capazes de se orientar, de saber extrair da realidade os elementos para estabelecer uma diretriz, a fim de que a classe operária não se abata, mas sinta que continua sendo dirigida e ainda pode lutar. Portanto, a preparação ideológica de massa é uma necessidade da luta revolucionária, uma das condições indispensáveis para a vitória. (GRAMSCI, 2004, p. 297).
Mais uma vez está presente a percepção gramsciana de que o partido
político é o grande intelectual orgânico, responsável pela condução de uma luta
econômica e política que não pode estar desvinculada da luta ideológica e cultural.
Esta perspectiva será desenvolvida ao longo de todos os Cadernos do Cárcere e,
com base nela, Gramsci já começa, pouco antes de ser preso, seu exercício de
crítica aos rumos que o Partido Comunista Russo vinha dando para o movimento
revolucionário internacional, ao assumir uma visão autoritária e vanguardista do
partido, confundindo centralização com obediência e submissão.
Em outras palavras, seus últimos anos de liberdade constituem um
momento em que Gramsci, precocemente, percebe a degeneração da experiência
russa. Além da crítica à condução política do “Estado dos soviets” e às
contradições nas novas medidas econômicas implementadas na URSS, Gramsci
manifesta seu descontentamento com o que poderíamos chamar de “orientação
cultural da Revolução Russa”: a unidade e a disciplina tornaram-se mecânicas,
diante de um cenário onde a adesão das massas tornou-se um processo imediato,
não confirmado a cada nova ação política. A unidade do Partido Comunista, na
Rússia e em todo o mundo, estaria ameaçada. Afirma GRAMSCI (2004, p. 400),
em carta a Palmiro Togliatti,
A linha leninista consiste em lutar pela unidade do Partido, e não apenas por uma unidade de fachada, mas por uma íntima unidade, que consiste em não existir no Partido duas linhas políticas completamente divergentes em todas as questões. A unidade do partido é condição existencial não só em nossos países, no que se refere à direção ideológica e política da Internacional, mas também na Rússia, no que diz respeito à hegemonia do proletariado, ou seja, ao conteúdo social do Estado.
Sendo assim, parece-nos claro que Gramsci encerra seu momento de
militância política mais direta com questões essenciais para sua produção mais
madura, as quais envolvem uma compreensão da cultura como elemento de
crítica e de organização. Este será o grande legado gramsciano neste período pré-
carcerário, para o debate acerca da cultura no interior da tradição marxista: a
certeza de que este elemento é fundamental para o processo de organização
revolucionária, para a instauração de um novo modo de viver, de pensar e de agir,
vinculado ao projeto societário de emancipação da classe trabalhadora.
Todo o universo militante e reflexivo vivenciado por Gramsci neste período
anteriormente traçado será objeto de uma abordagem mais sistematizada a partir
do ano de 1929, quando este pensador recebe autorização para escrever no
cárcere de Turi7. A partir de então, terá início uma produção mais complexa e “fur
ewig” do pensamento gramsciano, o qual será responsável por uma das mais ricas
abordagens acerca da política no interior das Ciências Sociais contemporâneas.
Desde já, vale observarmos que Gramsci vai para a prisão com uma clara lição de
toda sua militância no período anterior: a necessidade de construir uma proposta
7 Os primeiros elementos de reflexão no Cárcere estão organizados nas Cartas do Cárcere, única produção permitida a Gramsci nos seus primeiros anos de prisão.
contra hegemônica. Sua grande preocupação não é apenas compreender o
fracasso do movimento comunista na Itália, mas contribuir para a retomada deste
movimento, para a capacitação e o fortalecimento das classes trabalhadoras em
seu processo de conquista da hegemonia.
Que significação e que importância terá a cultura neste momento da
elaboração gramsciana? Em primeiro lugar, podemos ponderar que não existe,
nesta abordagem, uma ruptura com os elementos anteriormente trabalhados. No
cárcere, Gramsci reafirmou e aprofundou análises e conclusões acerca da esfera
cultural, resituando a batalha de idéias e a construção de uma nova cultura como
passos decisivos para a luta hegemônica e para os projetos de conquista de
poder. Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci será responsável, por exemplo, por
uma retomada positiva da noção de “ideologia” no interior da perspectiva marxista,
onde este termo compreende agora um conjunto de idéias, valores e propostas de
ação comuns a uma determinada classe ou grupo em seu processo de
constituição enquanto sujeito político. Ser dirigente, nos termos de Gramsci, inclui,
portanto, um definitivo momento de conquista ideológica no contexto de definição
e redefinição da hegemonia.
Desde 1927, quando Gramsci, em carta a Tatiana Schucht, expressa a
vontade de elaborar um trabalho intelectual mais consistente, o interesse pela
continuidade de estudos e elaborações acerca da cultura permanece presente:
Gramsci menciona estudos sobre o espírito público na Itália (abordando a
constituição dos intelectuais italianos, suas origens, correntes intelectuais e modos
de pensar), a lingüística comparativa, o gosto teatral italiano e o gosto popular em
literatura. Posteriormente, quando, em 1929, começa a escrever seu primeiro
caderno, elabora uma lista onde, dos dezesseis tópicos apresentados, oito estão
relacionados diretamente com a cultura e sua difusão. São eles:
� Formação dos grupos intelectuais italianos;
� A literatura popular dos romances de folhetim e as razões de sua
permanente influência;
� Cavalcante Cavalcanti: a sua posição na estrutura e na arte da
Divina Comédia;
� O conceito de folclore;
� A questão da língua na Itália (Manzoni e G. I. Ascoli);
� Tipos de revista: teórica, crítico-histórica, de cultura geral;
� Neogramáticos e neolinguistas.
� Os filhotes do Padre Bresciani.
Se, num primeiro momento, Gramsci pensa em abordar estes temas
separadamente, talvez numa expectativa de retomar os estudos humanistas
abandonados pela sua dedicação ao jornalismo político e à militância, com o
desenvolvimento de sua produção, percebemos que a complexidade de suas
elaborações sobre cultura advém, justamente, de sua recusa em separar estas
questões das abordagens relativas aos aspectos econômico, político e social.
FORGACS & NOWELL-SMITH (1999) afirmam que, ao contrário de seus escritos
pré-cárcere, os Cadernos do Cárcere não apresentam um conceito de cultura
teoricamente definido por Gramsci8, o que lhe dá certa flexibilidade para abordá-lo
8 FORGACS & NOWELL-SMITH acreditam que cultura, para Gramsci, tem a palavra escrita como o centro da formação cultural em indivíduos e na sociedade. Discordamos, a princípio, desta formulação, pois Gramsci chama a atenção, repetidas vezes, para o fato de que todo homem,
no interior da análise de toda a dinâmica societária, tornando-o mais rico e
completo.
Quais são as estruturas societárias nas quais a cultura é construída? De
que forma a cultura pode influenciar a consciência e o engajamento políticos? Que
tipo de atitudes e de compromissos intelectuais impedem ou favorecem a
formação de uma “nova cultura”? Como esta nova cultura se relaciona com as
mudanças econômicas e políticas e como ela pode ser racionalmente organizada
e acelerada? Questões como estas parecem orientar a produção gramsciana a
partir deste momento e demonstram a preocupação deste autor em problematizar
esta esfera cultural no contexto das “superestruturas complexas”, nas mais
diversas formações societárias. Gramsci realiza, então, com relação à
compreensão da cultura, no interior da tradição marxista, um duplo movimento,
profundamente dialético: em primeiro lugar, reconhece-a como uma esfera
determinada, superestrutural, com uma limitada autonomia com relação a outras
esferas menos “flexíveis” e mais sistematicamente relatadas. Em outras palavras,
não cabe a leitura da produção de Gramsci sobre cultura alheia à abordagem de
outras categorias de seu pensamento político, entre as quais destacamos as de
intelectuais, de hegemonia, do Estado ampliado e da sociedade civil. Por outro
lado, para Gramsci, a cultura não é meramente um reflexo desta estrutura mais
ampla, mas também um elemento constitutivo de suas relações e de seus
embates mais profundos, demarcando, ela própria, instâncias de luta política e de
independente de seu acesso à educação formal, é culto, pelo fato de que pensa e reflete sobre a constituição de sua vida social.
hegemonia. “Criar uma nova cultura” faz parte, portanto, da proposta de uma
“sociedade regulada” na orientação gramsciana.
Esta observação nos parece relevante para evitarmos a falsa impressão de
que, a partir de um determinado momento na produção carcerária gramsciana, a
discussão sobre as questões relativas à cultura tenha se tornado escassa ou
mesmo desaparecido, dando lugar a abordagens mais diretamente ligadas à
dimensão da política. Nosso autor recorre constantemente à complexidade desta
esfera para orientar e fundamentar seu pensamento político, enriquecendo-o e
renovando-o substantivamente.
No momento de sua produção carcerária, Gramsci está se defrontando com
grandes embates nacionais e internacionais, os quais redimensionam este
universo cultural e sua importância na dinâmica societária: a experiência da
revolução socialista ficou isolada em poucos e diferenciados países, o nazi-
fascismo se instalou com força em importantes países da Europa, imprimindo uma
orientação conservadora no enfrentamento político daquele momento, o
capitalismo internacional passou a se estruturar com novas características e novos
suportes ideológicos. Era preciso que as forças comunistas em todo o mundo
reconstruíssem suas estratégias políticas e, neste movimento, redefinissem a
cultura como um momento privilegiado da crítica e da organização da classe
trabalhadora.
Gramsci indica claramente sua concepção de cultura como uma
“concepção da vida e do homem”, unitária e coletivamente defendida, capaz de
gerar uma ética, um modo de viver, uma nova atitude face às contradições e aos
enfrentamentos vivenciados pelas classes sociais enquanto fundamentais ao
modo de produção capitalista. É neste sentido que, para ele, se constroem os
elementos próprios do marxismo neste âmbito: lutar por uma nova cultura,
enquanto este “novo humanismo”, capaz de criticar e superar criticamente
costumes, sentimentos e concepções de mundo.
Os diferentes “modos de vida”, segundo a perspectiva gramsciana,
aparecem, para quem os vive, como algo absoluto, “natural”, imutável. Para uma
perspectiva contra-hegemônica, revolucionária, é preciso introduzir um “modo de
pensar historicista” (GRAMSCI, 1999, p. 257), capaz de demonstrar que uma
estrutura cultural só se justifica na medida em que existem certas condições e que
se modifica na medida em que estas condições também se revolucionam. A
cultura é, portanto, este elemento histórico, que compõe e que transforma uma
dada estrutura.
Com efeito, a verdade é esta: toda coisa que existe é “racional”, isto é, teve ou tem uma função útil. O fato de que aquilo que existe tenha existido, isto é, tenha tido sua razão de ser enquanto “conforme” ao modo de vida, de pensar, de operar da classe dirigente, não significa que se tenha tornado “irracional” porque a classe dominante foi privada do poder e de sua força de dar impulso a toda a sociedade. Uma verdade que se esquece é esta: aquilo que existe teve sua razão de existir, serviu, foi racional, “facilitou” o desenvolvimento histórico e a vida. (IBIDEM, 1999, p. 257).
As questões referentes à língua e à lingüística, por exemplo, têm um lugar
central na construção teórica de Gramsci no cárcere. Para ele, as relações
lingüísticas se inserem diretamente neste “modo de pensar e viver”, pois não
constituem apenas representações e traços históricos das relações entre as forças
do passado e do presente, mas são também referências, nas trocas de influência
e prestígio cultural9. Assim, tais relações se inserem diretamente na luta pela
hegemonia em um determinado contexto histórico, neste complexo processo de
“reforma intelectual e moral”.
A história das línguas é história das inovações lingüísticas, mas estas inovações não são individuais (como ocorre na arte): são de toda uma comunidade social que inovou sua cultura, que “progrediu” historicamente. Naturalmente, também elas se tornam individuais, mas não do indivíduo-artista, e sim do indivíduo elemento histórico-cultural completo, determinado. (GRAMSCI, 2002, p. 197).
Desde a apropriação gramsciana do debate sobre Oriente e Ocidente,
podemos observar a relação intrinsecamente estabelecida, por este autor, entre
cultura e política, ou, em outras palavras, da dimensão cultural que o
enfrentamento político apresenta nas sociedades ocidentais. A “justa relação”
entre sociedade civil e Estado, que se constrói no Ocidente, não se estabelece
somente, ou mesmo principalmente, em termos materiais. O conjunto de
“fortalezas e casamatas” que dá sustentação e legitimação ao Estado, nestas
sociedades, está completamente demarcado por um forte traço cultural, ou seja,
por uma concepção de mundo, por um leque de valores e significados simbólicos
que orientam o equilíbrio de forças e o consenso. Assim, ser dirigente em uma
sociedade, condição elementar para que uma classe se torne dominante, é uma
tarefa que está ligada à capacidade de uma classe em difundir e solidificar uma
9 Neste debate, Gramsci se dedica ao estudo sobre a língua na Itália, vendo o italiano e os dialetos como diferentes concepções do mundo”, que apontavam para uma diferença entre ambiente cultural e político-moral.
posição e uma proposta cultural, composta de filosofias, valores, gostos e opções
organizativas.
A ação política não se faz, neste sentido, de uma forma imediata. As
classes sociais, formadas e coletivamente construídas na esfera que Gramsci
chamaria de “sociedade econômica”, organizam seus aparelhos “privados” de
hegemonia na sociedade civil a partir de um processo de conscientização e de
auto-conhecimento possibilitado e garantido, também, pela dimensão cultural.
Através dela, os homens se reconhecem no processo produtivo, conscientizam-se
de suas possibilidades e de seus limites, ampliam sua dimensão reflexiva
enquanto ser social e, conseqüentemente, potencializam-se coletivamente para a
luta política. É neste sentido que WILLIAMS (1979) afirma que a cultura extrapola
a dimensão superestrutural, uma vez que seus elementos constitutivos estão
também na base de formação e de consolidação de relações sociais particulares.
Encontramo-nos, assim, diante de uma consideração definitiva para a
compreensão da hegemonia no pensamento gramsciano. A hegemonia tem sua
base na estrutura econômica, nasce “no chão da fábrica”, define-se a partir da
“função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo essencial da atividade
econômica” (PORTELLI, 1977, p. 64). No entanto, esta posição não é suficiente
para a conquista da hegemonia, embora seja necessária. Gramsci é enfático ao
afirmar que a “direção ideológica e cultural” concretiza e consolida a posição
hegemônica de uma determinada classe. Na perspectiva de se formar um “bloco
hegemônico”, ou seja, na medida em que a classe fundamental precisa se apoiar
em grupos aliados para consolidar sua hegemonia, a “batalha de idéias”, o
confronto cultural constrói uma frente indispensável, ao lado daquelas meramente
econômica e política. Em direção à conquista da hegemonia, a luta política é
sempre um processo de convencimento, de busca de consenso, de alianças que
se constroem em torno de um projeto societário que tem uma de suas bases
fundamentais no elemento cultural.
LIGUORI (2003) afirma, nesta direção, que o conceito fundamental dos
Cadernos do Cárcere não é o de sociedade civil, mas o de Estado ampliado.
Sociedade política e sociedade civil compõem um todo orgânico, e a distinção é
“puramente metodológica”. A hegemonia, que se constrói no interior da sociedade
civil, se estende até a sociedade política, revitalizando-a com enfrentamentos
políticos e ideo-culturais entre os grupos e as classes que a definem. Assim, o
consenso, base estrutural da hegemonia, se materializa na sociedade política e se
estende, através dela, por toda a sociedade nacional. As classes sociais
demonstram sua real capacidade hegemônica na medida em que podem “tornar-
se Estado”, atravessado sempre por embates cotidianos, cuja solução, imediata
ou em longo prazo, confirma ou redefine esta posição hegemônica.
A compreensão deste Estado ampliado está contida no que COUTINHO
(2003) chama de uma acepção mais ampla de política presente nos Cadernos do
Cárcere. Para que ela se realize, é necessário um movimento catártico, ou seja,
uma passagem, por parte da classe que se pretende hegemônica, do momento de
determinismo econômico (ou econômico-corporativo), para o momento de
liberdade política (ou ético-político). Neste último, esta classe não mais se
reconhece apenas como um fenômeno econômico, mas se coloca agora como um
“sujeito consciente da história”, capaz de elaborar uma “vontade coletiva”, de se
tornar uma “classe nacional”, de representar interesses que tendem a ser
universais. Este momento, no qual se toma consciência da dimensão de
totalidade, da possibilidade de transformação ativa do mundo social é, sem
dúvida, o contexto de maior materialidade cultural de uma determinada classe. A
cultura é, assim, um dos elementos que possibilita este salto qualitativo para uma
proposta hegemônica (ou contra-hegemônica), em direção a um bloco histórico
organicamente estabelecido.
O bloco histórico, neste sentido da perspectiva gramsciana, é a noção que
supera, dialeticamente, qualquer orientação determinista no interior da proposta
marxista. Ao contrário da idéia de “reflexo” que, como já observamos, é
insuficiente, Gramsci propõe que estrutura e superestrutura formam um bloco
histórico que, na verdade, é o momento fundante de uma sociedade. Nesta
unidade orgânica, Gramsci aponta para relações e propostas que, mais uma vez,
recolocam o debate ideo-cultural em posição de destaque ao longo do seu
pensamento político. A primeira colocação é de que a estrutura necessita deste
elemento ideológico, cultural, que nunca é, portanto, totalmente autônomo. É ele o
responsável por organizar e orientar os grupos sociais, sobretudo os “grupos
aliados”, unificando-os em torno de determinadas condições sócio-econômicas. A
base material precisa se reproduzir e, para isso, não pode dispensar caminhos e
orientações que só os espaços da superestrutura são capazes de criar. Isto nos
leva a ponderar, portanto, que discutir a primazia, no bloco histórico, de uma ou de
outra esfera é colocar um problema sem solução. Na verdade, dada a
complexificação cada vez maior das sociedades, a relação entre estrutura e
superestrutura tornou-se orgânica, indissolúvel, pois é no plano superestrutural
que não só se toma consciência e se critica as relações produtivas estruturais,
mas também, muitas vezes, se constroem respostas para as contradições
surgidas em seu interior.
A análise gramsciana sobre o jornalismo na Itália demonstra esta
preocupação do autor em pensar, nesta lógica, a composição de um bloco
histórico. Nas notas em que trata deste assunto, ele está preocupado em ver
como é organizada, na Itália do início do século, a estrutura ideológica da classe
dominante, no interior da qual destaca a imprensa como a parte mais dinâmica e
proeminente. Nas palavras de Gramsci, esta rede de instituições compõe, para o
capitalismo, um “formidável complexo de trincheiras e fortificações”, com a função
crucial de articulação política e de organização do consenso em torno de
interesses particulares que, no entanto, se pretendem como universais. No
contexto específico do início do século XX na Itália, a imprensa estava
completamente controlada pelo fascismo e pelos interesses do grande capital que
o sustentavam e se constituía, portanto, em um outro campo de luta e de
enfrentamentos políticos, no sentido da conquista ideológica como etapa
imprescindível para se chegar à direção hegemônica.
Com este objetivo, Gramsci pretende dar orientações, a partir do Cárcere,
para que o Partido Comunista possa planejar a organização de sua imprensa, que
deve funcionar como um elemento de articulação dos interesses do movimento
democrático de massas e chegar ao mais amplo número de leitores. Sua
preocupação, neste debate, vai desde o formato preciso e o nível lingüístico até o
conteúdo, as necessidades do grupo de compradores e os elementos
“econômicos”, que permitam a aquisição e a divulgação do aparato cultural
defendido pelo grupo que dirige esta imprensa.
Em suas palavras,
(...) um organismo unitário de cultura (...) satisfaria as exigências de uma certa massa de público, que e mais ativa intelectualmente, mas apenas em estado potencial, e que é a que mais importa elaborar, fazer pensar concretamente, transformar, homogeneizar, de acordo com um processo de desenvolvimento orgânico que conduza do simples senso comum ao pensamento coerente e sistemático. (GRAMSCI, 2000, p. 201).
Estas notas gramscianas acerca do jornalismo demonstram, mais uma vez,
a relação intrínseca que este autor estabelece entre o partido político e as classes,
trabalhadoras e aliadas, na dinâmica revolucionária que ele sempre defendeu. A
imprensa é, assim, um meio crucial pelo qual a informação é transmitida à base do
partido e a partir da qual novos membros são conquistados. É, portanto, uma das
estruturas da organização da cultura, capaz de materializar a “reforma intelectual e
moral” construída pelo materialismo histórico. Uma “concepção de mundo” integral
e uma “norma de conduta” constituem, portanto, os dois aspectos desta reforma.
Em Gramsci, portanto, a esfera cultural, na mais ampla de suas
conceituações, ganha visibilidade e, muitas vezes, centralidade. A política se
constrói a partir de uma dimensão cultural e a cultura, por sua vez, não se constrói
alheia às relações políticas e econômicas de uma dada realidade social. Forças
materiais e ideológicas, neste contexto, são diferenciadas e complementares,
representando espaços igualmente importantes de poder. Lutar por uma nova
cultura é, em Gramsci, mais um dos desafios das diferentes classes sociais na
busca da hegemonia. Este debate nos será de absoluta importância para
compreendermos o momento contemporâneo ao longo deste trabalho.
Neste sentido, Gramsci se preocupa constantemente em distinguir e
relacionar, ao mesmo tempo, cultura e arte. Para ele, cultura é algo muito mais
amplo e complexo do que simplesmente o conjunto de manifestações artísticas e
intelectuais, mas estas últimas não estão isoladas na dinâmica societária.
Dentre as manifestações artísticas e intelectuais mais dinâmicas no início
do século XX, Gramsci dá importância destacada à literatura, mas suas
conclusões podem orientar reflexões mais generalizadas. Uma nova literatura ou
arte não pode, portanto, ser criada “por decreto”, mas só pode ser compreendida
como efeito de uma nova cultura, através de um processo que implica, como
veremos, a criação de uma nova camada de intelectuais, capaz de construir uma
nova relação educativa com os setores populares, nesta oportunidade, na
condição de leitores. Assim, Gramsci está menos preocupado com o sentido
artístico restrito, e mais com o motivo pelo qual determinada manifestação artística
é absorvida, os sentimentos que ela desperta e sua capacidade de agir como
instrumento de consenso. A premissa de toda arte deve ser, portanto, histórico-
política, popular, em seu sentido mais complexo.
Assim Gramsci pensa a relação orgânica entre arte e cultura:
A literatura não gera literatura, etc. as ideologias não criam ideologias, as superestruturas não geram superestruturas a não ser como herança de inércia e passividade: elas são geradas não por “partenogênese”, mas pela intervenção do elemento “masculino” – a história – a atividade revolucionária que cria o “novo homem”, isto é, novas relações sociais. (GRAMSCI, 2002, p. 195).
A cultura, por sua vez, é o ordenamento de uma concepção de mundo, é
um elemento de organização de idéias e de propostas de ação, é o fio que
costura, ao longo de todo o bloco histórico, movimentos, valores, sentimentos,
expectativas, etc. em torno de um mesmo projeto societário. Retomando idéias
presentes já em seus textos da juventude, a cultura é um elemento unitário,
identitário, que dá coesão e organiza a capacidade crítica e propositiva de uma
sociedade.
A cultura, no entanto, não opera no vazio. Sua constituição está sustentada,
como já mencionamos, por toda a sociabilidade engendrada em uma dada
realidade. Portanto, a cultura também é um processo no sentido de que está em
construção a partir da dinâmica na qual está inserida. Por isso, Gramsci é claro ao
propor “criar uma cultura”, e não uma nova arte. Significa potencializá-la com
elementos constitutivos da realidade das “classes subalternas”, fazer dela um
instrumento de conhecimento, de reconhecimento e de impulso para novas ações
desta classe. Em uma das notas em que propõe um “retorno a De Sanctis”,
Gramsci deixa clara não só sua concepção de cultura no período mais maduro de
sua produção, mas também rechaça a perspectiva de uma cultura “neutra”,
“descompromissada”, alheia e isolada das definitivas identidades de classe. Afirma
ele que, neste caso, cultura significa
(...) uma coerente, unitária e nacionalmente difundida “concepção da vida e do homem”, uma “religião laica”, uma filosofia que tenha se transformado precisamente em “cultura”, isto é, que tenha gerado uma ética, um modo de viver, um comportamento cívico e individual. (...) Isto exigia, antes de mais nada, a unificação da “classe culta” (...) mas exigia, sobretudo, uma nova atitude em face das classes populares, um novo conceito do que é “nacional”,
diverso daquele da direita histórica, mais amplo, menos exclusivista, menos “policial”, por assim dizer. (GRAMSCI, 2002, p. 63-64).
Não se pode dizer, portanto, que se luta por um novo “conteúdo da arte”,
pois este não se manifesta abstratamente. Um novo “mundo cultural” gera, neste
sentido, um novo modo de sentir e de ver a realidade, o qual suscita a formação
de um novo grupo de artistas, enquanto nova intelectualidade, capaz de
“historicizar suas fantasias”. Por isso, “também o artista e toda sua atividade não
podem ser pensados fora da sociedade, de uma determinada sociedade”
(GRAMSCI, 2002, p. 240).
Mais uma vez, percebemos a preocupação gramsciana em enfatizar a
dimensão cultural das lutas em torno de sua posição hegemônica, em torno da
“capacidade de ser uma época”. Por isso, toda classe que se torna dirigente e
conquista, assim, este bloco hegemônico, produz, necessariamente, a sua
intelectualidade, inclusive artística.
Um novo grupo social que ingressa na vida histórica com postura hegemônica, com uma segurança de si que antes não possuía, não pode deixar de gerar, a partir de seu interior, personalidades que, antes, não teriam encontrado força suficiente para se expressar completamente num certo sentido. (IDEM, 2002, p. 70).
Percebemos, então que um duplo movimento de delimitação deste debate
em torno da cultura está presente ao longo dos Cadernos. Gramsci não deixa de
afirmar a cultura como um amplo “modo de vida”, um conjunto de elementos que
dão identidade e que orientam uma prática e uma forma de intervenção na
realidade. No entanto, ele também afirma que este “modo de viver, pensar e
sentir” não pode ser construído apenas por uma dinâmica involuntária e
espontânea, mas deve ser orientado, motivado, definido a partir de projetos
societários e classistas mais amplos. Existe, neste sentido, uma formação cultural,
que deve ser responsabilidade de um conjunto de espaços e pessoas na dinâmica
desta sociedade.
Vale observarmos que
Os dois significados do termo em Gramsci não constituem inovações do ponto de vista semiológico, pois, já entre os gregos e os latinos, as palavras Paidéia e humanitas assumiam essas significações. A meu ver, o que podemos destacar inicialmente, no uso gramsciano do termo, é a compreensão unitária dos dois significados, ou seja, cultura significa um modo de viver que se produz e se reproduz por meio de um projeto de formação. (VIEIRA, 1999)
Não existe uma formação cultural neutra, abstrata, alheia à luta de classes
que se realiza em determinada sociedade. Isso nos parece claro, por exemplo,
quando analisamos a sociedade capitalista e toda a estrutura cultural construída
em torno desta relação social que é o capital. Esta reflexão nos orienta, também,
para projetarmos a materialidade contra-hegemônica que se define em seu
interior. Formar uma cultura, como fato vivo e necessário, é um ato educativo a ser
levado adiante por aqueles que Gramsci chamará de intelectuais orgânicos, sejam
eles individuais ou coletivos, como os partidos políticos.
Quem seriam, portanto, estes intelectuais que têm, entre outras funções, a
de garantir organicidade à cultura? Para Gramsci, “todo homem é intelectual”, no
sentido de que toda atividade humana prevê uma elaboração intelectual, todo
homem participa de uma concepção do mundo, de uma determinada maneira de
pensar. Criar novos intelectuais, portanto, é uma iniciativa que consiste em
elaborar criticamente esta capacidade intelectual que já existe em cada um,
embora em graus de desenvolvimento determinados. Por isso, as escolas, afirma
Gramsci, tem fundamental importância na formação de intelectuais em diversos
níveis.
Desta forma, se todos os homens são intelectuais, a diferença entre eles
não deve ser buscada em atividades específicas.
O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, em vez de busca-lo no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais. (GRAMSCI, 2000, p. 18).
Por este motivo, uma das principais preocupações de Gramsci está
justamente em diferenciar os intelectuais orgânicos dos tradicionais, ou seja,
aqueles que “criados” por um determinado grupo social, lhe dão “homogeneidade
e consciência da própria função” essencial no mundo da produção econômica, e
aqueles que este mesmo grupo social já encontra formados a partir da estrutura
econômica anterior, os quais “se põem a si mesmos como autônomos e
independentes” de quaisquer grupos sociais. No que se refere aos embates no
universo cultural, Gramsci realiza importantes reflexões sobre a participação e o
envolvimento destes dois tipos.
Aos intelectuais tradicionais, nosso autor atribui um sério problema
histórico. Ao se posicionarem como alheios e autônomos em relação aos projetos
incorporados pelas classes fundamentais no modo de produção contemporâneo,
estes intelectuais acabam por reforçar uma perspectiva elitista e restrita da cultura.
Em suas mãos, a cultura se torna privilégio de alguns grupos na sociedade,
detentores de um “saber enciclopédico” e de um “modo de vida global” distanciado
das reais necessidades e dos embates mais significativos de uma sociedade. Tais
intelectuais não surgem organicamente ligados à estrutura desta sociedade e se
mantêm distantes do “povo-nação”, desconhecendo seus problemas e suas
potencialidades, ligando-se a embates e confrontos alheios à realidade em que
vivem. Assumem, muitas vezes, uma posição cosmopolita e reacionária,
fortalecendo uma cultura conformista, alienada e politicamente inepta.
É esta, aliás, a crítica que Gramsci desenvolve, ao longo de todos os
Cadernos, à intelectualidade e à cultura italianas. O Humanismo italiano, ao
contrário de outros países, teria sido um movimento culturalmente reacionário,
dando origem a um grupo ativo de intelectuais, mas que não foi responsável por
uma renovação política e ideológica na Itália. Este projeto, apesar de seus
aspectos inovadores no cenário europeu, foi incapaz, na Itália, de dirigir e de
capacitar as massas populares em direção a uma verdadeira renovação política e
moral, uma vez que não foi resultado de um movimento popular e nacional pela
emancipação da sociedade italiana. Assim, esta vinculação tradicional e
conservadora dos intelectuais italianos contribui para esta cultura contemplativa e
politicamente “desinteressada”, sem “nenhum contato com o universo dos
conhecimentos que perpassam o mundo imediato da produção e do trabalho
produtivo” (VIEIRA, 1999).
É importante observarmos que, para Gramsci, esta posição supostamente
neutra e contemplativa dos intelectuais tradicionais não é imutável. Pelo contrário,
a dinâmica da correlação de forças em uma sociedade impõe a necessidade de
que estes intelectuais se redefinam e se reposicionem, aderindo organicamente a
um dos projetos societários que se defrontam em determinado contexto histórico.
Conquistar intelectuais tradicionais constitui, desta forma, mais uma tarefa desta
batalha cultural.
Uma das características mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica” dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos. (GRAMSCI, 2000, p. 19).
Gramsci se dedica principalmente em destacar a importância dos
intelectuais orgânicos neste cenário de batalha cultural ideológica, aos quais
cabem o enriquecimento e o amadurecimento deste embate. Estando
intrinsecamente ligados às classes fundamentais do modo de produção
contemporâneo, estes intelectuais têm a função de direcionar culturalmente estas
classes, de lhes impulsionar a um movimento de (auto) conhecimento, de
organização e de preparação para o enfrentamento político na luta pela posição
hegemônica na sociedade. Estes intelectuais, individuais ou coletivos, seriam
então os responsáveis por fazer da cultura, como o próprio Gramsci afirma, a
“base de ações vitais”, reafirmando o projeto societário mais amplo que esta
classe difunde e procura viabilizar.
As funções destes intelectuais orgânicos se referem, sobretudo, à
explicitação e à elaboração, cultural e filosoficamente, da concepção de mundo
que está na base das práticas econômicas e sociais da classe fundamental que os
originou. Um duplo movimento se constitui nesta relação entre os intelectuais e as
massas: os primeiros dão esta organização cultural às segundas, enquanto estas,
por sua vez, alimentam a capacidade reflexiva daqueles com a dinamicidade de
suas lutas cotidianas. Assim se unifica, em Gramsci, a dialética teoria-prática, com
um processo complexo de determinação.
O processo de desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se desenvolve quantitativa e qualitativamente, mas todo progresso para uma nova “amplitude” e complexidade do estrato dos intelectuais está ligado a um movimento análogo da massa dos simples, que se eleva a níveis superiores de cultura e amplia simultaneamente o seu círculo de influência, com a passagem de indivíduos, ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para o estrato dos intelectuais especializados. (GRAMSCI, 2000, p. 143)
Os intelectuais orgânicos se constituem, enquanto bloco altamente
heterogêneo, na dinamicidade dos projetos das mais diferentes classes sociais.
No entanto, a ênfase gramsciana recai, obviamente, na necessidade de se
garantir a organicidade dos intelectuais com os problemas e os projetos daquelas
que ele denomina de “classes subalternas”, de “simples”, de “povo-nação”10. Nesta
orientação contra hegemônica frente às sociedades capitalistas, Gramsci se
preocupa com a elaboração cultural destas classes, com seu processo educativo e
formativo, com sua superação do momento econômico-corporativo em direção ao
ético-político.
10 Defendemos que esta múltipla denominação de Gramsci se dá em razão do processo de censura que sua produção sofria no Cárcere, e não por uma diferença teórico-metodológica na compreensão destes termos. Ao falar de “classes subalternas”, “povo-nação”, “simples” Gramsci está se referindo, indubitavelmente, ao conjunto das classes trabalhadoras em seu processo de constituição na sociedade capitalista, sobretudo a italiana.
Em boa parte das notas mais propositivas de Gramsci nos Cadernos, ele
está voltado a denunciar aquele histórico distanciamento, na realidade italiana,
entre os intelectuais e o povo. No entanto, ele também reconhece que estas
classes subalternas, possuem sua filosofia, sua própria cultura, enquanto modo de
viver, pensar, sentir e principalmente, agir. A esta cultura, Gramsci dá o nome de
“senso comum” e reconhece nela componentes culturais acríticos, não
questionados, carentes de um movimento maior de reflexão e de ação. No âmbito
deste senso comum, onde as classes subalternas guardam traços desorganizados
de conformismo e de resistência, encontra-se a fonte dos problemas que devem
ser estudados e resolvidos para que uma filosofia possa se tornar histórica,
depurando-se “dos elementos intelectualistas de natureza individual” e se
transformando em “vida”.
O senso comum, então, para Gramsci, não é uma “mentira” ou um
“equívoco” dos setores populares, mas uma concepção desagregada, incoerente,
inconseqüente. Através dele, pertencemos a uma “multiplicidade de homens-
massa”, onde reunimos elementos de diferentes momentos históricos, onde
empregamos o princípio da causalidade, do experimentalismo e da observação
direta da realidade, mas de forma empírica e limitada. Assim como toda
concepção de mundo, o senso comum conduz necessariamente a uma ação, a
uma intervenção direta sobre a realidade, mas que também se apresenta de forma
fragmentada e, muitas vezes, inoperante.
Em sua perspectiva histórica e dialética, Gramsci defende, portanto, a
necessidade de um verdadeiro “trabalho intelectual”, que é função não de um
grupo seleto de pessoas “intelectualmente mais desenvolvidas”, mas de todo
aquele que, organicamente vinculado ao contexto histórico de desenvolvimento
destas classes subalternas e ao compromisso de emancipá-las, possa contribuir
em seu processo de educação e de organização. A cultura, conforme
descrevemos anteriormente, é o mecanismo que permite esta superação, este
salto qualitativo em direção à crítica e a reflexão emancipatórias.
Para Gramsci, a relação entre uma “filosofia superior”, que coincide com o
“bom senso” e o senso comum só pode ser assegurada pela política, ou seja, a
escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, necessariamente, fatos
políticos, no sentido de que se observa uma “luta de hegemonias” em torno da
elaboração superior da própria concepção do real.
A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. Portanto, também a unidade de teoria e prática não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico. (GRAMSCI, 1999, p. 103-104).
Recuperando aquilo que Engels chama de um “trabalho técnico do
pensamento”, Gramsci propõe a dialética como um novo modo de pensar, uma
nova filosofia, capaz de afirmar a possibilidade e a necessidade de uma nova
cultura que vá de encontro ao senso comum, vulgar e dogmático. A “filosofia da
práxis” entra, portanto, nesta “luta de hegemonias”, e se propõe a “difundir
criticamente verdades já descobertas” para responder a determinados problemas
colocados historicamente pela realidade.
Gramsci apresenta, assim, uma visão altamente dinâmica e histórica do
elemento cultural. Ele denuncia, em sua produção carcerária, tanto a cultura
elitista que demarca a história dos intelectuais italianos, quanto o senso comum
que, abandonado a uma condição de “segunda natureza” dos setores populares,
os conduz a uma prática política historicamente não fundamentada. Por isso,
Gramsci enfatiza a necessidade deste trabalho intelectual que, superando a
desagregação histórica deste universo cultural popular, possa se apropriar de
seus elementos de crítica, de reflexão e de enfrentamento que, dispersos e
fragmentados, devem ganhar um perfil unitário e coerente.
Toda elaboração política de um grupo social homogêneo elabora, também,
uma filosofia homogênea, coerente e sistemática. Assim se forma o “homem
coletivo”, que pressupõe uma unidade conquistada também numa dimensão
sócio-cultural. O momento da crítica e da consciência é capaz de “soldar” uma
multiplicidade de vontades desagregadas, heterogêneas, em torno de um mesmo
fim, de uma concepção de mundo “idêntica e comum”. O desenvolvimento desta
“renovação cultural e moral”, na perspectiva gramsciana, não é simultâneo e
homogêneo em todos os estratos sociais, o que pressupõe um longo trabalho de
construção desta crítica em torno de uma concepção de mundo primária e
superficialmente construída. Assim, não se substitui o senso comum pelo bom
senso, negando, a priori, o universo cultural destes setores, mas se organizam os
elementos fragmentados do primeiro em direção ao segundo.
Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico
até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise. (GRAMSCI, 1999, p. 94).
Revolucionar as relações entre os intelectuais e o povo-nação na
perspectiva de reorganizar o senso comum, constitui, no pensamento gramsciano,
a frente cultural a ser assumida por aqueles que se propõem a construir o que ele
denomina por uma vontade coletiva nacional-popular no interior da sociedade civil.
Lembrando, mais uma vez, a proposta contra-hegemônica de Antonio Gramsci ao
longo de toda sua produção, torna-se necessário um retorno a suas principais
formulações acerca desta expressão, que guarda, em nossa opinião, idéias
centrais para a compreensão do momento contemporâneo.
A dimensão coletiva representa, para Gramsci, um valor superior em toda e
qualquer realidade social. Ele insiste em denunciar, em inúmeros momentos de
seus Cadernos, tanto o individualismo quanto a pulverização de movimentos que,
em última instância, são igualmente fragmentários. Tal dimensão é apresentada,
por ele, como um produto, social e histórico, da vontade (consciência da
necessidade histórica) e do pensamento coletivos que se realizam através do
esforço individual concreto, e não como “resultado de um processo fatal estranho
aos indivíduos singulares” (2000, p. 232). Assim, o que ele observa como
vontades coletivas (e, neste caso, o plural é significativo) não constituem um fato
natural, capaz de se desenvolver espontaneamente, por razões inerentes às
pessoas e às coisas. Tais vontades são construídas historicamente, em processos
de longo prazo, que dependem de elementos como a disciplina interior e que
enfrentam polêmicas e cisões, inevitáveis para o seu próprio desenvolvimento.
Elas podem, inclusive, deixar de existir, pulverizando-se em infinitas vontades
singulares, com direções diversas e contrastantes. Assim, afirma-se a ampla
dinamicidade de qualquer vontade coletiva (que é diferente da “vontade de todos”
e da “vontade de cada um”), que não se constrói de uma vez para sempre, mas
que é profundamente marcada pela luta ideológica e pelo enfretamento político
mais amplo de uma sociedade.
Para Gramsci, no contexto das sociedades capitalistas, o ponto de
referência para o “homem coletivo” é o mundo da produção, do trabalho, é a
posição ocupada por esta coletividade neste mundo. Neste sentido, só pode haver
uma reforma cultural, entendida como a “elevação civil das camadas mais baixas
da sociedade” (GRAMSCI, 2000, p. 19), se acontecer, simultânea e
paralelamente, mudanças também na posição social que estas classes ocupam na
sociedade econômica. Em suas palavras, o “programa de reforma econômica é
exatamente o modo concreto através da qual se apresenta toda reforma
intelectual e moral” (IBIDEM, p. 19). A vontade coletiva tem origem, portanto, na
base material, no universo econômico, mas deve, justamente, ser o elemento
capaz de superar este âmbito meramente econômico-corporativo, estando sempre
vinculada a determinado fim ético-político.
Na lógica gramsciana, são os espaços coletivos e plurais da sociedade civil,
orientados, em especial, pelos grandes aparelhos “privados” de hegemonia que
são os partidos políticos, que incorporam uma ideologia política e, atuando sobre
um “povo disperso e pulverizado”, restrito ao espaço da vida econômica, procuram
despertar e organizar sua vontade coletiva. Neste processo, marcado
hegemonicamente por um princípio educativo11, se fortalece e se expande o nível
cultural histórico-político que atuará coletivamente sobre a realidade concreta. A
vontade coletiva pressupõe, portanto, um certo grau de homogeneidade e
organicidade, a ser permanentemente conquistado, renovado e fortalecido.
A preocupação gramsciana não se limita a determinar o alcance ético-
político da(s) vontade(s) coletiva(s), mas se dispõe a propor qual delas poderá
capacitar os setores populares para o enfrentamento político que poderá conduzi-
las em direção à posição de classe hegemônica. Aqui se apresenta, mais
diretamente, o debate acerca do “nacional-popular”, a qual julgamos central para
as discussões que pretendemos empreender ao longo deste trabalho.
Dentre as categorias gramscianas dos Cadernos, nacional-popular nos
parece ser uma das mais dinâmicas, sendo amplamente utilizada. O autor a
relaciona com diversificados elementos, tais como a cultura, a literatura, a vontade
coletiva, a orientação política, etc., estando preocupado, portanto, em estruturar,
ao redor desta expressão, toda uma proposta contra-hegemônica, capaz de
reorientar e redimensionar a luta política na realidade italiana. FORGACS &
NOWELL-SMITH (1999, p. 333) se preocupam, desde o início de suas reflexões
sobre os escritos culturais de Gramsci, em afirmar que
A aparência puramente “cultural” de muitas notas de Gramsci sobre o nacional-popular não deve obscurecer o fato de que as mesmas preocupações políticas e históricas estão trabalhadas nelas. Os aspectos culturais da questão nacional-popular não são simples “reflexos”, cópias culturais de seus aspectos políticos, mas indicam que a questão está organicamente enraizada na história italiana com ramificações em vários níveis. (...) Eles também
11 Para Gramsci, toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica.
indicam que o terreno ideológico da sociedade civil é precisamente onde um amplo movimento nacional-popular deve ser construído.
Como já mencionamos, o interesse de Gramsci pela questão nacional
surgiu ainda em seu período de militância no Partido Comunista, mais
especificamente no momento em que as tentativas revolucionárias deste partido
haviam recuado e o fascismo, enquanto reação conservadora, havia chegado ao
poder (1924-1926). Buscando identificar as características italianas que teriam
permitido este quadro de crise, e a partir de sua experiência internacional,
Gramsci afirma, repetidamente, que a Itália era, historicamente, carente de uma
orientação econômico-política que lhe garantisse um perfil nacional e popular.
Esta parecia ser, portanto, a tarefa do proletariado italiano, através de uma aliança
hegemônica com o campesinato, em direção ao objetivo internacionalista do
comunismo. Já nos Cadernos, esta aliança recebe o nome de nacional-popular e
contribui significativamente para a ampliação da noção de hegemonia, passando a
abarcar um consenso ativo, na forma de uma “vontade coletiva”, que as classes
tradicionalmente dominantes sempre tentaram evitar que se formasse.
Uma série de determinações históricas dava à Itália, naquele momento,
uma configuração ideo-cultural conservadora, elitista e cosmopolita. Para Gramsci,
o Império Romano e a força política do papado na Itália teriam criado, desde muito
cedo, a ilusão da existência de uma “nação italiana”, quando, na verdade, o que
se tinha era uma dominação cultural de intelectuais tradicionais orientados por
uma perspectiva clássica de dominação. Neste processo, as classes dominantes
buscaram prevenir a formação de uma orientação ideológica e de uma vontade
coletiva que, de alguma forma, pudesse potencializar os setores populares
(proletariado e campesinato) para uma luta política de emancipação e de
reorientação de suas propostas societárias. Temia-se que tal formação pudesse
trazer “perigos vitais para a vida nacional unitária” (GRAMSCI, 2002, p. 33) da
forma como estava tradicionalmente organizada, ou seja, em torno do modo de
produção capitalista.
O que se observa, na realidade italiana do início do século XX, é a ausência
permanente de um movimento popular organizado em torno de uma proposta
verdadeiramente “nacional”, capaz de superar um interesse meramente
“econômico-corporativo” em direção a uma perspectiva “ético-política”. Constantes
experiências de “revolução passiva” na história italiana, dentre as quais Gramsci
destaca o Risorgimento, fortaleceram a aliança defensiva entre os industriais do
norte e os latifundiários do sul, constituindo um consenso burguês que garantiu,
entre outras coisas, a reação conservadora que instituiu, anos mais tarde, o poder
fascista. A formação da “nação italiana” e a luta pela unidade política e territorial
jamais foram problematizadas, no sentido de que as questões vitais que as
envolveram foram tratadas por interesse polêmicos imediatos e, portanto, sem
vontade de aprofunda-las. Daí resultou que, para o elemento popular, tais
questões receberam um tratamento “abstratamente cultural, intelectualista, sem
perspectiva histórica exata e, portanto, sem que se formulasse para eles uma
solução político-social concreta e coerente” (GRAMSCI, 2002, p. 33). Dentre este
conjunto de problemas, Gramsci menciona, por exemplo, a indiferença popular no
período das lutas pela independência e pela unidade nacional e o apolitiscismo do
povo italiano, elementos que nos auxiliam sobremaneira na análise da realidade
contemporânea.
Desta forma, a unificação italiana não se constituiu a partir de uma
perspectiva popular, onde este elemento pudesse apresentar suas demandas e
expectativas, suas potencialidades e seus limites. Por outro lado, a burguesia,
enquanto classe dominante, também não se estabeleceu como “classe nacional”
ou seja, não foi capaz de agregar em torno de si e de seu projeto as principais
questões de constituição econômica, política e social da realidade italiana.
Portanto, afirma Gramsci, a Itália era órfã de um projeto nacional e popular que a
fizesse conhecer e criticar sua própria existência e, portanto se afirmar em torno
de seus principais dilemas. Nas palavras do próprio autor, para manter intacta
uma orientação dominante conservadora, a Itália “apaixona-se por um passado
que não é seu”, ou seja, nutriu-se política e culturalmente de um cosmopolitismo
inepto e alienante.
É importante destacarmos, desde já, que Gramsci jamais perdeu de vista o
“internacionalismo comunista”. No entanto, para ele, este caráter internacional das
lutas das classes trabalhadoras não pode ser construído sem uma mediação viva
e dinâmica do elemento nacional. Em sua crítica, o fato de que o povo italiano
tenha sofrido a hegemonia cultural e política de intelectuais estrangeiros serviu
para consolidar, nesta realidade, uma posição de subalternidade e de dominação.
A Itália viveria o paradoxo de, ao mesmo tempo, construir grandiosos planos de
hegemonia internamente e não se perceber como objeto de hegemonias
estrangeiras, sustentadas, inclusive, por elementos “intelectuais e morais”
(GRAMSCI, 2002, p. 127). Neste sentido, Gramsci reforça ainda mais sua
preocupação com a histórica separação entre “intelectuais e povo-nação”.
(...) não existe no país um bloco nacional intelectual e moral, nem hierárquico nem (muito menos) igualitário. Os intelectuais não saem do povo, ainda que acidentalmente algum deles seja de origem popular; não se sentem ligados ao povo (à parte a retórica), não o conhecem e não sentem suas necessidades, suas aspirações e seus sentimentos difusos; mas são, em face do povo, algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta e não uma articulação (com funções orgânicas) do próprio povo. (IDEM, 2002, p. 42-43).
Neste processo, acredita Gramsci, a esfera cultural, em sua dimensão mais
ampla, teve um papel fundamental. A ausência deste alinhamento cultural e
político entre os intelectuais e o elemento popular fez com que as contradições
inerentes à formação italiana não fossem conhecidas ou problematizadas pelos
setores populares e que, portanto, a orientação dominante se apresentasse
sustentada por um aparente consenso. Teríamos, portanto, no âmbito cultural,
ramificações de uma questão organicamente enraizada na história política italiana:
a falta de uma língua comum no passado, a ausência de um verdadeiro
movimento romântico no século XIX, a falta de popularidade da literatura italiana,
o desprezo por temas e questões da dinâmica italiana nas suas mais diversas
manifestações artísticas e intelectuais, os diferentes preconceitos que
caracterizam o tratamento dispensado ao elemento popular nestas manifestações,
etc. Em poucas palavras, a Itália é carente desta orientação nacional-popular e
somente uma aliança orgânica dos setores populares pode suprir esta lacuna
histórica.
Nesta tarefa histórica, as diferentes classes sociais falharam ao longo da
vida política italiana, não sendo capazes de satisfazer as exigências intelectuais
do povo ou de elaborar um “humanismo” moderno, que pudesse ser difundido
junto às camadas populares. Nem mesmo os católicos tiveram esta capacidade,
pois garantiram uma razoável difusão de suas orientações culturais e morais não
por uma expansividade e coerência interna, mas pela poderosa organização da
Igreja. Assim, não existe uma “identidade de concepção do mundo” entre
intelectuais e povo, sendo que os primeiros não se propõem a elaborar os
sentimentos e as expectativas do segundo após tê-los revivido e deles se
apropriado.
É necessário ponderarmos, neste ponto, duas questões essenciais, que
qualificam nossos debates para compreendermos com mais clareza a importância
e a contemporaneidade desta categoria.
Em primeiro lugar, Gramsci não restringe esta perspectiva nacional-popular
meramente à dinâmica da esfera cultural. Apesar de a maioria das referências a
este termo nos Cadernos dizer respeito a uma “literatura nacional-popular”, esta
constitui, sem dúvidas, uma abordagem bem mais ampla, que envolve uma
extensa frente de luta econômica, social e política. Como já observamos, a cultura
em Gramsci não constitui uma esfera autônoma, estando, sim, diretamente
vinculada a estes elementos estruturais e superestruturais que compõem a
totalidade dinâmica da vida social.
Portanto, o nacional-popular se afirma como o ponto de partida e de
chegada de uma grande estratégia de construção contra-hegemônica. Em
diferentes aspectos desta totalidade, ficava demarcada, para Gramsci, a
necessidade de um movimento de recuperação, de retomada, pelos setores
populares, de sua história e de seu destino. Esta “reapropriação”, se tinha uma
evidente face cultural, não se limitava a ela. Construir uma “cultura nacional-
popular” significa, então, para as classes subalternas, apoderar-se de uma cultura
historicamente determinada e orientada pelos interesses e pela ideologia
burgueses e reestruturá-la segundo objetivos e expectativas dos setores
dominados, capacitando-os, conscientizando-os e reorientando suas ações vitais a
partir de novas bases. Neste caminho, um duplo movimento se constrói, onde a
cultura, naquela acepção mais ampla de Gramsci, se apresenta como um
elemento de mediação, de interface com outros momentos estruturais da
constituição do ser social. Em outras palavras, o nacional-popular se constrói, na
cultura, como impulsionador e como resultado de uma perspectiva revolucionária
mais ampla, jamais abandonada por Gramsci, mesmo em seus períodos de maior
desalento no cárcere.
Assim como a cultura é capaz de manifestar as contradições e os
enfrentamentos presentes em uma sociedade, ela também constitui um espaço
privilegiado para gestar propostas diferenciadas e organizar outros elementos de
consenso. O mundo cultural, enquanto universo de luta, “é um fato vivo e
necessário” (GRAMSCI, 2002, p. 260), que aponta e faz a intermediação com as
demais esferas da vida social, reorganizando a hegemonia em torno de consensos
diferenciados, neste caso, ligados à questão nacional e popular. Existe, portanto,
uma intrínseca relação entre arte, cultura e formação humana, uma vez que o
“homem inteiro é modificado na medida em que são modificados seus
sentimentos, suas concepções e as relações das quais o homem é a expressão
necessária” (GRAMSCI, 2002, p. 35).
O nacional-popular se afirma, então, como a orientação que, construída
profundamente no interior das lutas políticas das classes subalternas, poderia
prepará-las para influenciar e obter um “consenso espontâneo e vivo”, através de
um processo de autoconhecimento, autocontrole e emancipação política. Gramsci
observa, inclusive, que estas transformações culturais são produto de uma
complexa elaboração, que ocorre de maneira lenta e gradual, já que é resultado
de mudanças em toda a vida social. Uma série de “combinações sucessivas”, nas
mais diferentes instâncias de enfrentamento político e econômico numa
sociedade, se faz necessária para a construção desta “perspectiva nacional-
popular”.
Uma segunda questão a ser destacada no estudo desta categoria diz
respeito à concepção de nação por ela sustentada e, neste sentido, a sua validade
histórica. Embora construída a partir dos estudos gramscianos sobre a realidade
italiana do início do século XX, não teríamos dúvida em afirmar que a importância
de tal categoria não se restringe a este cenário. Uma primeira leitura das notas
que definem a categoria de nacional-popular nos Cadernos do Cárcere pode nos
dar a impressão de que ela se desenha com determinantes geográficos e
históricos bem delineados: ao falar de nacional, Gramsci estaria se limitando a
pensar a especificidade da nação italiana e, ao falar de popular, Gramsci faria
menção à configuração social, política e cultural do conjunto das classes
trabalhadoras, sobretudo o operariado fabril italiano, com as quais havia
trabalhado em seu período de militância partidária. No entanto, alguns elementos
nos fazem questionar esta aparente verdade.
No conjunto destas notas, está claro que a perspectiva gramsciana sobre
nação não é a-histórica, a-política ou, sobretudo, a-classista. Não existe a
concepção de uma nação abstratamente construída, capaz de se colocar acima
das contradições e dos enfrentamentos entre as diferentes classes sociais. A
nação é, assim, atravessada pelos elementos de hegemonia que se configuram no
interior da dinâmica societária. É por isso que Gramsci se preocupa justamente
em contrapor, à idéia de nacional até então hegemônica na Itália, a perspectiva de
um outro nacional, ligado à proposta, às necessidades e às potencialidades das
classes trabalhadoras em seu processo de luta e de constituição enquanto classe
social.
Preocupa-o, sobretudo, problematizar o fato de que a Itália se tornou uma
nação, na concepção mais imediata do termo, através de um processo “pelo alto”,
na expectativa de que esta constituição nacional pudesse reorganizar as forças
políticas dominantes até então existentes. Estas classes, organicamente frágeis,
encontravam-se restritas a interesses econômico-corporativos, e com base nestes
interesses, unificaram-se e buscaram construir um fictício “passado italiano”, onde
já se encontrassem elementos de uma unidade nacional constitutiva. Em sua
análise, entretanto, tudo isso se fez pelo receio de que pudesse ocorrer uma
intervenção, ainda que restrita, das “massas populares” na vida política italiana e
na estrutura do Estado.
Em suas palavras,
Realmente, a unidade nacional é sentida como precária, porque forças “selvagens”, não conhecidas com precisão, elementarmente destrutivas, se agitam continuamente em sua base. A ditadura férrea dos intelectuais e de alguns grupos urbanos, mais a propriedade fundiária, só mantém sua solidez superexcitando seus elementos militantes com este mito de fatalidade histórica, mais forte do que qualquer deficiência e incapacidade política e militar. É neste terreno que a adesão orgânica das massas nacional-populares ao Estado é substituída por uma seleção de
“voluntários” da “nação” concebida abstratamente (GRAMSCI, 2002, p. 33)
Desta forma, buscando conter uma construção popular de nação, não
deixando que forças políticas efetivas pudessem emergir deste processo, o
conjunto das classes dominantes conseguiu, incluindo, em sua linha de frente,
uma luta também intelectual, transformar a unidade nacional em uma “dádiva”, e
não em uma “conquista merecida dos italianos”. Fica ausente, portanto, qualquer
possibilidade de desenvolvimento permanente e contínuo desta “unidade
nacional”, a qual é dada de forma absoluta e acabada, sem possíveis
reorientações em torno de um movimento de caráter popular. Assim, segundo a
crítica gramsciana, o termo nação, na Itália, sempre esteve ligado a uma tradição
intelectual e livresca, não tendo se construído a partir de uma luta hegemônica em
torno de diferentes projetos classistas. A cultura italiana apresenta um sentimento
nacional (e não popular-nacional), no sentido de que é algo puramente subjetivo,
não ligado a fatores e instituições objetivos. Este sentimento e reconhecimento
nacional são algo que fica restrito aos intelectuais enquanto camadas estreitas e
pequenas. O resultado seria, então, a marca constante do fatalismo e da
expectativa passiva por um futuro que chegará para o elemento popular, visto
paternalisticamente, ausente da dinâmica societária mais ampla.
Dois elementos são apontados por Gramsci como resíduos medievais e
feudais na Itália, e que contribuem na efetivação deste “nacional” despolitizado e
amorfo: um particularismo municipal, que demarca uma concepção de mundo
restrita e vazia e, por outro lado, um cosmopolitismo católico que “inventava”,
desde muito cedo, uma nação italiana com vocação internacional. Ambos devem
ser superados, pondera Gramsci, por relações de hegemonia que envolvem uma
transformação cultural global.
Diante destas constatações, o conjunto das classes trabalhadoras deve ser
o herdeiro histórico de um novo projeto de nação, onde os caminhos para sua
construção estejam orientados não por uma perspectiva burguesa e conservadora,
mas popular e revolucionária. Nasce então, na construção gramsciana, uma
unidade indissociável: o nacional-popular.
(...) O que importa é o fato de que se busque uma ligação com o povo, com a nação, que se considere necessária não uma unidade servil, devida a uma obediência passiva, mas uma unidade ativa, viva, qualquer que seja o conteúdo desta vida. Esta unidade viva, independentemente de qualquer conteúdo, não ocorreu na Itália ou, pelo menos, não ocorreu em medida suficiente para convertê-la num fato histórico (...). (GRAMSCI, 2002, p. 254).
No caminho de construção desta perspectiva, Gramsci insiste na
necessidade de se “recuperar a história”, agora nas mãos do elemento popular, de
suas demandas e de suas potencialidades de luta. A “história duradoura”, diz
Gramsci, se constrói a partir de um duplo movimento, de continuidade e de
superação. Para isso, são necessárias “energias nacional-populares amplas e
numerosas”, onde os momentos potencialmente coletivos são de extrema
importância para um novo sentimento nacional que ainda está em processo de
formação. Recuperar a história pode significar, nesta orientação, tornar-se
consciente da importância histórica da classe trabalhadora enquanto tal, fazer do
passado, agora questionado e renovado, um “elemento de vida” para ações
presentes e futuras.
Podemos ponderar que a perspectiva gramsciana reinterpreta o conceito de
nação no interior do marxismo, uma vez que o “preenche” com uma série de
determinações históricas e classistas, reorientando o debate em torno das lutas e
das perspectivas revolucionárias. É impossível, para a emancipação da classe
trabalhadora, saltar um estágio nacional, que se manifesta em combinações e
composições diversas e heterogêneas, mas que se coloca, necessariamente,
como um ponto de partida. Para ele, no cenário nacional, o que temos é uma
“combinação original e única” de forças e relações sociais. Neste cenário,
assumem particularidades tanto as esferas da sociedade política e da sociedade
civil quanto os processos de luta hegemônica e de conformação de forças entre as
diferentes classes sociais. Portanto, para qualquer classe que se pretenda
dirigente, estas originalidade e unicidade devem ser compreendidas e
consideradas no que se refere ao seu processo de constituição enquanto classe
política.
Nesta nova construção do nacional, a esfera cultural constitui um elemento
determinante. Neste caminho, Gramsci pondera a importância dos intelectuais, os
quais desafia a superar o “espírito de casta”, a desconfiança e o medo em relação
ao povo, buscando tornar-se aderente às suas necessidades mais profundas e
elementares. A cultura precisa, assim, compor uma “vida nacional efetiva”,
construindo com os setores historicamente afastados da “nação” um amplo
exercício de hegemonia.
Assim ele expõe, por exemplo, a questão de que, no que se refere à
literatura,
(...) uma obra de arte é tão mais “artisticamente popular” quanto mais seu conteúdo moral, cultural e sentimental for aderente à moralidade, à cultura, aos sentimentos nacionais, e não entendidos como algo estático, mas como uma atividade em contínuo desenvolvimento. A imediata tomada de contato entre leitor e escritor ocorre quando a unidade de conteúdo e forma no leitor tem como premissa a unidade do mundo poético e sentimental; se não for assim, o leitor deve começar por traduzir a “língua” do conteúdo em sua própria língua. (GRAMSCI, 2002, p. 194).
Para nosso autor, fica evidente que é necessário superar o que ele
denomina de um conceito “puramente livresco” de cultura, onde se está alheio às
profundas correntes de orientação da vida nacional-popular. Na análise dos
elementos de organização da cultura italiana, Gramsci exemplifica:
(...) os jornais literários se ocupam de livros e de quem escreve livros. Eles jamais publicam artigos de impressões sobre a vida coletiva, sobre os modos de pensar, sobre os “sinais dos tempos”, sobre as modificações que ocorrem nos costumes, etc. (...) Inexiste o interesse pelo homem vivo, pela vida vivida. (GRAMSCI, 2002, p. 184).
No lugar de uma descrição satírica e caricatural do elemento popular, como
muitas vezes se apresenta no teatro e na literatura italianos, Gramsci propõe que
o movimento intelectual se torne ou volte a ser nacional a partir de uma “ida ao
povo”, de um encontro com as questões mais significativas do seu modo de
pensar e de agir, no sentido de preencher um “vazio histórico e moral” com um
debate que expresse as expectativas e orientações políticas do povo-nação, que o
organize em torno de um projeto societário hegemônico, que faça dele a nova
classe dirigente.
Quando colocamos esta necessidade de “ida ao povo”, apresentada por
Gramsci, fazemos referência também ao fato de que, para ele, o “povo” não
constitui uma coletividade homogênea, mas se apresenta através de numerosas
estratificações, muitas vezes contraditória, em que uma concepção de mundo não
elaborada, assistemática e múltipla pode vir à tona e desafiar esta nova
perspectiva nacional-popular. Em seus estudos sobre o folclore, por exemplo,
Gramsci insiste em dizer que ele deve ser compreendido como um reflexo das
condições de vida cultural deste elemento popular, como um “modo de conceber o
mundo e a vida, em contraste com a sociedade oficial” (GRAMSCI, 2002, p. 181).
Este universo cultural, todavia, deve ser observado e valorizado na dinâmica de
um novo projeto societário.
Portanto, conhecer o folclore significa, para o professor, conhecer quais são as outras concepções do mundo e da vida que atuam de fato na formação intelectual e moral das gerações mais jovens, a fim de extirpa-las e substituí-las por concepções consideradas superiores. (...) O folclore não deve ser concebido como uma bizarria, mas como algo muito sério e que deve ser levado a sério. Somente assim o ensino será mais eficiente e determinará realmente o nascimento de uma nova cultura entre as grandes massas populares, isto é, desaparecerá a separação entre cultura moderna e cultura popular ou folclore. (GRAMSCI, 2002, p. 136).
A militância política de Gramsci junto aos Conselhos de Fábrica e ao PCI o
levou a ponderar, já nos Cadernos, que as condições para se superar este estado
de coisas já existem na Itália. Sobretudo antes da Primeira Guerra Mundial, muitos
movimentos intelectuais, ligados principalmente aos grupos comunistas, estavam
empenhados no sentido de “rejuvenescer a cultura” e aproximá-la das
necessidades e expectativas populares, “nacionalizando-a”, no sentido
gramsciano. No entanto, afirma ele, tais movimentos constituíram o que, em outro
momento, ele denominou de “subversivismo esporádico”, ou seja, foram frágeis e
não exploraram devidamente estas condições, fazendo com que voltasse a
predominar a “nação retórica”.
Gramsci se preocupa também em exemplificar que esta perspectiva
nacional-popular é não só possível, mas também historicamente já realizada. Para
isso, recorre constantemente à realidade francesa para afirmar que, neste país, o
povo-nação se constituiu como o protagonista da história, como o “elemento
permanente das variações políticas” (GRAMSCI, 2002, p. 161). Esta constituição
não se deu de forma voluntária e espontânea, mas foi resultado de uma ligação
estreita entre este protagonista e seus intelectuais, em um exercício de se formar
organicamente para dirigir, para influenciar politicamente e obter um consenso
ativo e consciente em torno de seu projeto societário.
Esta referência constante de Gramsci à realidade e à experiência
francesas, bem como à dinâmica cultural de outros países12, demonstra que, em
seu pensamento, a noção de nacional-popular não está restrita, ou menos ainda,
submetida unicamente aos espaços e às fronteiras nacionais. Esta, aliás, nos
parece uma distinção central a ser feita neste debate gramsciano, a fim de que
possamos tê-lo como referência para a análise do momento contemporâneo. Para
Gramsci, o nacionalismo é um grande equívoco, uma vez que prega o
particularismo, reafirmando elementos de segregação e de superioridade que são
extremamente prejudiciais a uma perspectiva verdadeiramente nacional-popular.
12 Cf. Cadernos do Cárcere, 6, 124; 2, 159; 6, 161; 4, 301.
Baseada no nacionalismo, a guerra, por exemplo ganha “características de
profundidade passional e de ferocidade”, eliminando, desde seus princípios,
qualquer possibilidade de que uma classe ou grupo possa se tornar universal.
Da mesma forma, não se deve confundir popular, em Gramsci, com
populismo, ou com uma exaltação acrítica e naturalista do elemento popular, como
se o simples pertencimento a uma classe fosse suficiente para uma orientação
superadora ou não da realidade societária em que se vive. Assim BARATTA (?)
descreve a dinamicidade e a historicidade que determinam, em Gramsci, o
binômio nacional-popular.
Por “povo”, Gramsci entende o conjunto das classes ou grupos sociais subalternos. Mas a noção apresenta uma dialética interna, ligada à sua própria explicitação numa rede de relações que chega até o vínculo, ainda que problemático, com a totalidade social. É evidente que “povo”, associado a “nação”, não remete a uma parte separada da sociedade, mas a uma parte que põe em questão a sua relação (positiva ou negativa, orgânica ou desagregada) com a totalidade social-nacional. Não se trata de uma relação estática, mas dinâmica. E a parte popular de uma nação supera a própria dimensão nacional e se põe como membro da “classe internacional”.
É neste sentido que COUTINHO (2000) vai chamar o nacionalismo e/ ou o
populismo de as “doenças infantis” do nacional-popular. Segundo este autor, o
nacionalismo representa não só um empobrecimento da expressão estética e
cultural, mas também a “limitação das potencialidades críticas da consciência
ideológica das forças populares” (2000, p. 61), encontrando afinidades com forças
conservadoras em uma dada realidade social. O populismo, por sua vez, reforça
uma atitude paternalista da intelectualidade, que passa a estabelecer uma relação
“apenas retórica” com o elemento popular e com seu universo societário,
atribuindo-lhe valores idealizados e românticos.
No intelectual italiano, a expressão “humildes” indica uma relação de proteção paterna e divina, o sentimento “auto-suficiente” de uma indiscutível superioridade, a relação como entre duas raças, uma considerada superior e outra inferior, a relação que se dá entre adulto e criança na velha pedagogia (...). (GRAMSCI, 2002, p. 38).
Ao contrário, o nacional-popular em Gramsci se manifesta a partir de um
conteúdo intelectual e moral13, como “expressão elaborada e completa das
aspirações mais profundas de um determinado público, isto é, da nação-povo
numa certa fase de seu desenvolvimento histórico” (IBIDEM, p. 39). Esta
expressão inclusive justifica para Gramsci o interesse popular por esta ou aquela
manifestação artística. Para ele, a beleza de uma obra é sempre subordinada à
sua capacidade de expressar uma unidade na vida cultural nacional. Mais uma
vez se referindo à Itália, nosso autor acredita que é este o motivo pelo qual a
literatura francesa, por exemplo, é sucesso popular na realidade italiana. A
literatura italiana não é “nacional” porque não é “popular”, o que permite,
culturalmente, que o povo italiano sofra uma “hegemonia estrangeira”.
Como podemos perceber, a relação entre o que Gramsci determinava como
“situação internacional” e as “referências nacionais” se apresenta de forma
extremamente dinâmica. Para ele, a nação é um resultado, condicionado, em
larga medida, pelo equilíbrio de forças internas e externas, onde o contexto
13 É importante observarmos que, para Gramsci, conteúdo é diferente de tema. Não existe um tema nacional-popular.
internacional é elemento determinante das configurações econômicas, sociais,
políticas e culturais que se combinam como nacionais.
Por isso, acredita Gramsci, o nacional-popular não dispensa uma dimensão
internacional, uma vez que é nas relações externas que encontramos muitas das
questões-chave para problematizarmos a realidade nacional a partir de uma
perspectiva das classes trabalhadoras. Da mesma forma, inserido como esteve na
dimensão internacionalista do movimento comunista do início do século XX,
Gramsci defende a necessidade de uma articulação mais ampla das demandas e
das lutas sociais dos setores populares, onde o nacional seja o ponto de partida, o
primeiro impulso, a primeira determinação para uma luta que tem por objetivo
alcançar a dimensão transnacional.
O nacional não limita ou restringe o conjunto de lutas e de enfrentamentos
sociais vivenciados pelo elemento popular. O desenvolvimento deve ser no
sentido do internacionalismo, e não pode deixar de sê-lo. Em outras palavras,
poderíamos afirmar que o nacional não tem capacidade de absorver e de
encaminhar, em sua plenitude, um projeto hegemônico mais amplo. Mas, por outro
lado, sem levar em conta a particularidade que esta realidade impõe, não se
alcança ou se materializa este projeto, não se faz dele algo potencialmente capaz
de se impor em um cenário internacional. A hegemonia reúne, em si, as
exigências de caráter nacional, embora não se limite a elas. Portanto, uma
perspectiva internacional não se constrói sem se levar em consideração a
combinação de forças nacionais que a classe que pretende se tornar
internacionalmente dirigente deverá dirigir e desenvolver. A defesa do projeto
societário desta classe deve ter como meta o cenário internacional, mas não pode
deixar de levar em conta os diferentes contextos nacionais, os quais absorvem e
encaminham este projeto a partir de orientações diferenciadas.
Não é possível, portanto, interpretar, numa perspectiva gramsciana,
nacional e internacional como esferas separadas, ou mesmo pensar que o
segundo tem a possibilidade de superar ou de substituir o primeiro. Uma relação
dinâmica demarca a construção destas duas esferas e uma determinada classe só
pode se tornar hegemônica se interpretar exatamente esta combinação, o que
significa dar ao movimento de conquista da hegemonia, com uma amplitude
internacional, uma orientação política realista, de acordo com determinadas
perspectivas e particularidades nacionais.
Sem estar atento a estas questões e a esta relação dinâmica, qualquer
movimento que se pretenda internacional acaba se tornando vago e puramente
ideológico, não se instrumentalizando com um conteúdo de política realista e
efetiva. Uma classe que se pretenda internacionalmente hegemônica deve, desta
forma, se “nacionalizar”, num certo sentido, atravessando fases múltiplas em que
as combinações regionais e nacionais, estabelecidas em estruturas variadas,
impõem um curso e um direcionamento específicos para as diferentes lutas
internacionais.
Neste sentido, Gramsci nos capacita para problematizar várias questões
que, colocadas hoje no cenário da globalização como “supranacionais”, se
constroem de forma equivocada e pejorativamente ideológica. Quando não se
referem a nenhum país determinado, a nenhuma realidade concreta de correlação
de forças e de disputas políticas, estes conceitos e debates não passam de
“previsões genéricas”, que não se manifestam efetivamente.
Um globalismo inepto e alienado parece tomar conta de diferentes
discursos, inclusive de grupos historicamente vinculados a um projeto alternativo
de sociedade. Na expectativa de uma “identidade global”, que espera que todos se
mobilizem simultaneamente, mas que não se materializa a partir de nenhuma
questão específica, vivenciamos uma imobilidade generalizada, onde ninguém se
impulsiona verdadeiramente para organizar movimentos mais significativos de
questionamento e de superação da ordem estabelecida. Por outro lado, o
renascimento de um “nacionalismo radical” tende a realizar um corte na realidade
societária que não mais se sustenta. Enquanto espaço de resistência, o nacional
só se justifica se conduzir a perspectivas mais amplas, mais dinâmicas, onde o
momento supra-nacional contém, verdadeiramente, a potencialidade de
significativas transformações societárias.
A retomada de uma perspectiva nacional-popular no contexto da
globalização nos parece, portanto, necessária e, ao mesmo tempo, contrária a
estes dois posicionamentos específicos. É o que pretendemos comprovar a partir
do segundo capítulo deste trabalho.
2 A dinâmica societária na era da
mundialização do capital: desafios e
imposições
Compreender o debate que se apresenta em torno da expressão
“globalização da cultura” requer, primeiramente, que possamos abordá-la a partir
da compreensão das relações societárias que, desde meados da década de 70,
vêm se conformando no cenário internacional. Quaisquer modificações que
possam estar caracterizando a esfera cultural desde então só se justificam e se
tornam criticamente manifestas se, à luz do que discutimos anteriormente, forem
problematizadas como reflexo, mas, ao mesmo tempo, como momento constitutivo
da sociedade capitalista em seu perfil contemporâneo.
Entendemos que o termo “globalização”, que hoje se tornou uma constante
no discurso político e econômico, representa o fio condutor para estas reflexões.
Vale observarmos que ele apresenta, desde sua introdução no debate específico
das Ciências Sociais, uma ampla ambivalência ou imprecisão, ao se relacionar
com uma grande variedade de fenômenos nas mais diversas esferas constitutivas
da vida social. O início dos anos 80 demarca este uso mais freqüente do termo,
passando de uma assimilação primária das escolas americanas de administração
de empresas, popularizando-se através dos consultores de estratégia e marketing
internacional, expandindo-se pela imprensa econômica e financeira e chegando,
final e rapidamente, ao discurso hegemônico neoliberal14. É importante
demarcarmos, portanto, que, desde seu primeiro movimento de expansão, o termo
“globalização” sempre esteve vinculado às instituições voltadas para o movimento
do capital, buscando formas de gestão e de atuação estratégicas para a sua
supervalorização em escala planetária.
O debate que iremos minimamente abordar a partir de agora busca
apresentar os elementos principais que se constroem em torno deste termo, mas
parte da certeza de que “globalização” é uma noção intrinsecamente ligada a,
(...) uma linguagem e um projeto dominante de globalização econômica que termina por se identificar com uma receita de alcance universal – ou melhor, uma política econômica das relações internacionais ou um “novo constitucionalismo” – correspondente a um capitalismo globalizado, que tem por espaço natural o próprio mundo e que pretende auto-regular-se sem interferências políticas nacionais, regionais ou internacionais, com o fim de gerar benefícios para todas as nações que nele se inserem competitivamente (GOMEZ, 2000, p. 130).
Se o termo ganhou popularidade, sobretudo a partir da década de 80, como
um processo de crescente integração das economias e das sociedades, através
da circulação de mercadorias, serviços, pessoas e informações15, enquanto termo
cientificamente referenciado, “globalização” ainda é vago e impreciso, marcado
pela dificuldade de formulação e de reconhecimento. Importantes autores
14 Sobre esta evolução do termo “globalização”, remetemos a GOMEZ (2000, p. 18-19). Neste momento, o autor afirma que “o alvo da argumentação desliza de imediato do domínio micro da gestão interna das firmas para o interesse da macroeconomia (redefinição das políticas econômicas e das instituições econômicas nacionais) e da arquitetura do sistema internacional.” 15 Segundo o Novo Dicionário Aurélio, globalização representa o “processo típico da segunda metade do séc. XX que conduz a crescente integração das economias e das sociedades dos vários países, especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados financeiros e à difusão de informações.”
contemporâneos se preocupam em delimitá-lo, demarcando as diferentes esferas
da vida social nas quais este fenômeno se manifesta.
CHOMSKY (1999, apud SIQUEIRA et al., 2003) se preocupa em afirmar
que o termo “globalização” é ainda marcado por uma grande indefinição, uma vez
que pode ser “sinônimo de qualquer coisa”. De forma neutra, o termo não tem
qualquer compreensão que ultrapasse a de “integração internacional”, mas o que
a particulariza é que esta integração se faz a partir de uma configuração
específica, vinculada diretamente aos princípios e às propostas societárias do
modelo neoliberal. Na mesma direção parece apontar HERMAN (1999, apud
SIQUEIRA et al., 2003), que se soma a outros autores para afirmar que a
globalização é, na verdade, uma ideologia, no sentido de que tende a ocultar sua
vinculação político-ideológica por trás da lógica formal de facilidade em se superar
fronteiras e relações econômicas. Na verdade, afirma este autor, a função desta
“onda globalizante”, que marcou o discurso científico no final dos anos 80 e início
dos anos 90, é a de reduzir qualquer resistência ao processo de expansão da
acumulação capitalista, fazendo com que ele pareça positivo e insuperável. A
lógica de que “there is no alternative” para além da globalização capitalista parece
ter conquistado os quatro cantos do mundo no final do século XX.
LIMOEIRO-CARDOSO (apud GENTILI, 2000, p. 97) concorda com esta
ponderação, afirmando que esta concepção não pertence ao campo teórico-
científico, pois se estrutura alheia a quaisquer possibilidades mais fundamentadas
de questionamento e refutação. Seus principais argumentos, afirma esta autora,
não resistem ao enfrentamento com outras formulações ou com informações
históricas mais concretas. Esta perspectiva “globalizante” das sociedades
contemporâneas encontra-se, na verdade, no “campo próprio das ideologias”,
buscando produzir convencimento e adesão às idéias que difunde, garantindo
“consistência ideológica à dominação”.
A acepção dominante de “globalização” é, pois, uma ideologia. Expressa posições e interesses de forças econômicas extremamente poderosas e vem comandando intensa luta ideológica – luta essa que passa pela mídia e pela universidade – para tornar-se dominante mundo afora. (LIMOEIRO-CARDOSO, apud GENTILI, 2000, p. 98).
Nesta orientação, afirma MARCUSE (2000, apud SIQUEIRA et al., 2003), a
globalização parece ter ganhado “vida própria”, cuja existência transcende e
dispensa a vontade dos seres humanos, tornando-a inevitável e irresistível. A
partir dela, o capitalismo conseguiu reatualizar sua perspectiva de se expandir e
de se aprofundar, atingindo cada vez mais aspectos da vida humana. Neste
sentido, afirma J. L. FIORI (1997, p. 26)
A globalização, apesar de ser um neologismo muito pouco preciso, aponta para um processo de transformações cujas origens e conseqüências são muito mais complexas, por envolver inúmeras dimensões não-econômicas num intrincado processo de decisões privadas e públicas tomadas na forma de sucessivos e inacabados desafios e ajustes. Neste sentido, a globalização é sem dúvida uma realidade política, cultural e econômica que vai nascendo às costas dos produtores e dos governos, mas é também o resultado de decisões políticas e econômicas tomadas de forma cada vez mais concentrada por alguns oligopólios e bancos globais e alguns poucos governos nacionais.
Neste sentido, a globalização nos parece representar, em poucas palavras,
o modelo hegemônico do capitalismo do final do século XX para atualizar e dar
continuidade à sociabilidade burguesa, agora a partir de outras determinações,
com novas formas de articulação entre centro e periferia e a penetração, pelo
capital financeiro transnacional, dos países em desenvolvimento. Neste padrão
societário, CASTELLS (1997, apud SIQUEIRA et al., 2003) destaca o que ele
denominou de “sociedade informacional”, onde a geração, o processamento e a
transmissão de informações se convertem nas fontes fundamentais da
produtividade e, conseqüentemente, do poder.
Como podemos perceber a partir destas primeiras considerações, um
amplo leque de abordagens se ocupou, desde finais da década de 80, do debate
acerca da globalização. Apesar de se encontrar hegemonicamente direcionado
pelo discurso da irrecusabilidade e da inevitabilidade, este debate tem recebido,
no entanto, no início do século XXI, um forte aparato crítico. A idéia de que fora da
globalização não existe qualquer possibilidade de realização e desenvolvimento
societários se fortaleceu no cenário político internacional dos anos 80 e 90,
reafirmando valores, conceitos e preconceitos. Na base desta versão,
encontramos, sem dúvidas, a perspectiva de um “mercado globalizado”,
demarcando toda a liberdade e a flexibilidade alcançadas pelo grande capital após
a diminuição marcante das restrições impostas pelo Estado nacional. A
perspectiva hegemônica da globalização se ocupa em promover a idéia de que
somente a adoção das regras do neoliberalismo e do mercado pode garantir a
uma sociedade sobreviver em um cenário de concorrência com dimensões
planetárias. Tal globalização, sinônimo quase perfeito de “modernidade”, dita os
padrões de democracia e de cidadania das mais diversas sociedades, e o
cidadão, agora identificado com o consumidor, é aquele que está finalmente livre
para participar do mercado enquanto espaço democrático e autônomo, capaz de
atender às suas mais diversas necessidades.
Este caráter ideológico das formulações acerca da globalização vem
continuamente desafiando a produção científica, a qual questiona a possível
referência desta ideologia a algum processo significativo na realidade e apresenta
novas teorizações e interpretações. O que podemos observar, ao longo das
últimas décadas, é um rico processo de debate teórico e de crítica acerca desta
problemática, envolvendo autores inseridos em diferentes vertentes e levantando
questões mais ou menos abrangentes sobre o processo societário
contemporâneo.
A compreensão do capital como uma relação social necessariamente
“internacionalizada” está presente desde o próprio pensamento marxiano. Já no
Manifesto do Partido Comunista, seus autores reconhecem que é vocação da
burguesia e do modo de produção capitalista ultrapassar qualquer limite nacional
que porventura se imponha e conferir uma forma cosmopolita à produção e ao
consumo de todos os países. Neste sentido, o capitalismo é “internacional”, o
“capital não tem pátria”, superar nacionalidades e regionalismos é uma
necessidade e uma imposição para este modo de produção se expandir e se
fortalecer, atualizando-se constantemente. Este traço, que MARX & ENGELS já
reconhecem na sociedade capitalista de meados do século XIX, se renova a partir
de bases contemporâneas, e se recoloca como um desafio extremamente atual.
A mundialização das relações capitalistas, a mercantilização universal das relações sociais, o assalariamento generalizado, a insegurança social institucionalizada, a constituição de um
mercado global, a gravitação urbana, o significado das comunicações velozes, o desenvolvimento científico e tecnológico – todo este complexo aparece sintetizado na apreciação do mundo burguês, caracterizado pela “contínua subversão da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a permanente incerteza e a constante agitação”. Não é preciso nenhum grau de simpatia para com o Manifesto para reconhecer aí o nosso mundo de 1998 (NETTO, 1998, p. LXIX-LXX).
Parece-nos consensual, entretanto, que o momento contemporâneo deste
desenvolvimento trouxe novas características e particularidades, que levaram
diversos autores a acreditarem no “alvorecer de uma nova era”, no surgimento de
uma “aldeia global”, uma “fábrica global”, uma “modernidade-mundo”, apenas para
citar algumas das metáforas16 de que nos fala IANNI (1998).
Passada esta “euforia globalizante”, ganhou força, sobretudo a partir do
início do século XXI, a perspectiva de crítica a este discurso. As promessas de
uma sociedade mais harmoniosa porque interligada por uma extensa rede de
relações e de tecnologias mostravam-se irrealizadas e irrealizáveis, nos limites do
sistema do capital. Discursos e práticas alternativos foram se construindo e
demonstrando a face negativa e contraditória do processo de inserção de
economias periféricas neste cenário globalizado, as quais agravaram, cada vez
mais, as contradições já existentes. Em diferentes e diversos aspectos da vida
social, a globalização foi sendo colocada em xeque. É sobre eles, portanto, que
pretendemos nos debruçar ao longo deste capítulo.
16 IANNI (1998) afirma que as metáforas surgem e ganham força em um determinado discurso porque tentam dar conta de realidades que ainda não foram totalmente codificadas. Esta é a situação, afirma ele, das “metáforas da globalização”. Neste caso, elas suscitam ângulos diversos de análise para este fenômeno, desvendando traços fundamentais das configurações e movimentos da sociedade global, combinando reflexão e imaginação. Tais metáforas entram em diálogo umas com as outras, desafiando-se e enriquecendo-se mutuamente.
2.1 – “Não há alternativas”: hegemonia, imperialismo e a ideologia de
uma economia integrada e irrecusável
Um dos movimentos mais relevantes do aparato crítico que se formou a
partir do final da década de 90 é o de questionar e problematizar a identidade
construída entre “globalização” e “internacionalização de mercados”. Tal
questionamento, característico de um “globalismo crítico”, teoriza a globalização
considerando “não somente as forças de mercado, mas também as relações entre
os estados, as agências internacionais e a sociedade civil, tanto em suas
manifestações internas quanto internacionais”.(PIETERSE In LIMOEIRO-
CARDOSO, 2000, p. 99). Uma variedade de fenômenos e uma diferenciação de
impactos parecem caracterizar o que se convencionou denominar, simplesmente,
como “globalização”, envolvendo aspectos referentes a diferentes esferas da vida
social como a financeira, comercial, produtiva, tecnológica, cultural, etc. Se
partirmos desta certeza, é possível observarmos as quatro últimas décadas como
um novo momento de decomposição, de incerteza e de crise universal ou global,
que atinge e redireciona o sistema de organização do capital. Em outras palavras,
neste período, o capitalismo, agora sob a égide dos “mercados globalizados”, mais
uma vez não cumpriu suas promessas de desenvolvimento e de emancipação
humana, agravando ainda mais o quadro social que sempre o caracterizou e
demarcando o aprofundamento da crise econômica, política, social e moral que,
em seu interior, já se tornou estrutural. Vale analisarmos cada um dos aspectos
desta crise, norteados, é importante destacar, pela certeza de que a
“globalização”, apesar de suas evidentes referências a um processo efetivo na
realidade, guarda determinações e conseqüências que são aparentes, e que,
portanto, devem ser objeto de um desvelamento crítico rigoroso e responsável.
Não é possível ponderarmos acerca da globalização enquanto momento de
reorganização do sistema do capital sem discursarmos acerca de um conjunto de
determinações históricas que envolvem, em sua origem, os elementos referentes
à regulação fordista e, principalmente, à sua crise. A estrutura de organização
internacional do capital vivia, então, uma fase relativamente estável, com a
paridade fixa entre as moedas e com a base produtiva estabelecida em torno do
modelo fordista de inovações tecnológicas e organizacionais e do consumo de
massas17. Neste cenário, acomoda-se uma acumulação de capital essencialmente
ligada à economia regulada pelo Estado nacional, embora o fluxo de investimento
externo direto18 já se apresentasse como um elemento significativo para o
desenvolvimento econômico.
Uma série de legislações e mecanismos políticos passou a
demarcar, no período pós Segunda Guerra Mundial, um grau
de efetiva autonomia para os Estados nacionais limitarem, de
certa forma, a ação de multinacionais cujo investimento
estava subordinado a certas convenções e a uma relação
17 HARVEY (1999, p. 121) deixa claro que é esta relação entre produção de massa e consumo de massa o elemento chave para a compreensão do fordismo e de sua especificidade no processo de acumulação capitalista e de constituição societária mais ampla. “A separação entre gerência, concepção, controle e execução também já estava bem avançada em muitas indústrias. O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista.” 18 CHESNAIS esclarece que um investimento estrangeiro é considerado direto quando o investidor detém 10% ou mais das ações ordinárias ou do direito de voto de uma empresa.
salarial fordista. Esta regulação era caracterizada, assim, por
uma certa rigidez no processo de acumulação de capital,
rigidez esta que, resultante de uma configuração específica
na correlação de forças e na luta de classes naquele
momento, pode instaurar
Uma série de compromissos e reposicionamentos por parte dos principais atores dos processos de desenvolvimento capitalista. O Estado teve de assumir novos (keynesianos) papéis e construir novos poderes institucionais, o capital corporativo teve de ajustar as velas de certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papéis e funções relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e nos processos de produção. O equilíbrio de poder, tenso, mas mesmo assim firme, que prevalecia entre o trabalho organizado, o grande capital corporativo e a nação-Estado, e que formou a base de poder da expansão de pós-guerra, não foi alcançado por acaso – resultou de anos de luta. (HARVEY, 1999, p. 125).
CHESNAIS (1999, p. 300) apresenta o debate acerca da
existência de três formas institucionais que deram
sustentação a esta regulação fordista, capacitando-a para
assegurar a estabilidade e expansão da acumulação
capitalista naquele determinado momento:
a) Trabalho assalariado como forma absolutamente predominante de
inserção social e de acesso à renda;
b) Ambiente monetário internacional estável, com instituições e
mecanismos que instituíam as finanças como elementos
subordinados às necessidades da esfera produtiva;
c) Existência de Estados com instituições fortes para regular e
disciplinar o funcionamento do capital privado.
Não é verdade, entretanto, que este modo fordista de uma
acumulação regulada e rígida constituiu um processo de
bases puramente nacionais, pois muito de uma “questão
internacional” já se observava neste momento. A expansão
do pós-guerra, cenário em que esta regulação fordista se
instaurou e se desenvolveu, dependia, desde então, de uma
ampliação dos fluxos de comércio mundial e de investimento
internacional que já demarcava um desenvolvimento desigual
da economia mundial. Desde então, já se observava o
quadro hegemônico do poder econômico e financeiro dos
Estados Unidos, que agiam “como banqueiro do mundo em
troca de uma abertura dos mercados de capital e de
mercadorias ao poder das grandes corporações.” (HARVEY,
1999, p.131)
Este quadro parece vivenciar, já a partir de metade dos anos
60, uma crise do próprio sistema de regulação, que se
insere, como já afirmamos, em mais uma crise estrutural do
capital. Este, para mais uma vez garantir seu processo de
superacumulação, precisava quebrar os elementos daquele
padrão de regulação fordista, derrubando as formas
tradicionais da economia do Estado nacional, agora em um
contexto de internacionalização. Nas palavras de CHESNAIS
(1999, p. 306)
(...) as grandes companhias buscavam uma saída para a queda de rentabilidade do capital, para a saturação da demanda de bens de consumo duráveis e para a contestação dos trabalhadores, na deslocalização acelerada de suas operações.
Em outras palavras, o que podemos ponderar é que, a partir deste período,
um conjunto de fatores deixa claro que o modelo fordista é incapaz de conter e
administrar as contradições inerentes ao capitalismo. Dentre estes fatores,
poderíamos destacar:
a) A recuperação financeira e produtiva do capitalismo na Europa
Ocidental e no Japão, que vivencia, ao mesmo tempo, a saturação
de seus mercados internos e o impulso para garantir mercados de
exportação para seus excedentes;
b) A falta de flexibilidade para os investimentos de capital fixo de larga
escala e de longo prazo em sistemas de produção de massa;
c) O “poder excessivo” conquistado pela classe trabalhadora durante o
momento de regulação fordista, que direcionava, de forma negativa
para o capital, os mercados, a alocação e os contratos de trabalho;
d) A intensificação dos compromissos do Estado que, diante de
demandas cada vez mais amplas e da restrição da base fiscal para
os gastos públicos, cria uma profunda crise de legitimidade;
e) A profunda recessão de 1973, acelerada pela alta dos preços do
petróleo em todo o mundo.
Assim, o modo de produção capitalista, a partir do último terço do século
XX, passou a criar formas alternativas a esta institucionalização fordista, dando
início a um período de reestruturação econômica e de reajuste social e político. A
relação salarial foi diretamente afetada, passando a formas mais flexíveis e
instáveis de pagamento pela força de trabalho, quando não pelo desemprego
estrutural, mesmo em países capitalistas centrais. Ao mesmo tempo, a capacidade
de regulamentação dos Estados nacionais ficou bastante reduzida, deixando que
o capital-dinheiro se configurasse como uma força quase incontrolável. Nas
palavras de HARVEY (1999, p. 140)
A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direito com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (...). Ela também envolve um novo movimento que chamarei de “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado.
Diante de todo este quadro de reestruturação capitalista é que podemos
analisar, com mais rigor, este conjunto de novas determinações que se
convencionou chamar de globalização. Valendo-nos das observações de
CHESNAIS, que prefere a expressão “mundialização do capital”, veremos que ela
se refere, enquanto constituição da base material, a uma nova configuração do
capitalismo em escala mundial e a novos mecanismos que comandam seu
desempenho e sua regulação, remodelando a vida social em todas as suas
dimensões19. Apesar de constituir-se como um avanço e um prolongamento do
processo de internacionalização do capital de que nos falavam Marx e Engels já
no Manifesto do Partido Comunista, a atual fase guarda particularidades que a
tornam diferente de etapas anteriores do desenvolvimento capitalista.
IANNI (1998) observa que BRAUDEL e WALLERSTEIN constroem,
respectivamente, as discussões acerca da “economia-mundo” e do “sistema-
mundo”, onde cada um, com suas devidas particularidades, tende a dar primazia,
neste processo de globalização, ao aspecto econômico em seu sentido mais
amplo20. Esta capacidade de se expandir geograficamente, conquistando espaços
os mais variados, é um dos elementos que garantem, segundo estes autores, a
sobrevivência do capitalismo e a superação de suas sucessivas crises. A
construção de uma rede de processos produtivos interligados permite que este
sistema, em seus repetitivos quadros críticos, “se recupere” em alguma parte do
mundo e possa, através de economias-mundo regionais, situadas em diferentes
19 Chesnais nos chama atenção para o fato de que a internacionalização do capital, em todas as suas fases, sempre incluiu o comércio exterior, o investimento exterior direto e os fluxos internacionais do capital que mantém a forma monetária. É necessário abordar estas três estratégias como um todo hierárquico, que assume diferentes configurações ao longo da história do modo de produção capitalista. 20 Para IANNI, Braudel está marcadamente influenciado pelo funcionalismo de Durkheim e Wallerstein, por outro lado, demonstra clara aproximação com o estruturalismo marxista na análise do capitalismo moderno.
estágios de organização e dinamização, manter sua lógica de acumulação e de
reprodução societária.
Para estes autores, o Estado-nação ainda permanece como agente “real ou
ilusório”, a nação é um fato histórico e geográfico, um processo que se cria e
recria continuamente, mas, no que se refere à economia, tais realidades vivenciam
um declínio através da emergência de novos e poderosos centros mundiais de
poder, soberania e hegemonia. A “economia-mundo” transcende o local, o
nacional e mesmo o regional, e se apresenta como um “todo em movimento”
atravessado por movimentos de integração e fragmentação.
Para Wallerstein, a “economia-mundo” é agora universal, no sentido de que todos os Estados nacionais estão, em diferentes graus, integrados em sua estrutura central. (...) Uma característica importante do sistema unificado de Wallerstein é o padrão de estratificação global, que divide a economia mundial em áreas centrais (beneficiárias da acumulação de capital) e áreas periféricas (em constante desvantagem pelo processo de intercâmbio desigual). O sistema de Estados nacionais, que institucionaliza e legitima a divisão centro-periferia, também concretiza, por meio de uma intrincada rede de relações legais, diplomáticas e militares, a distribuição do poder no centro. (CAMILLERI & FALK, In IANNI, 1998, p. 36-37).
Parece unânime, entre os autores preocupados em desvendar as
particularidades deste momento da acumulação de capital, a certeza de que a
financeirização constitui o grande elemento diferenciador da contemporaneidade
de desenvolvimento capitalista. Se a riqueza continua sendo criada na produção,
como bem nos ensinara Marx, a esfera financeira se tornou, no momento atual, o
pólo de repartição e de destinação desta riqueza, com uma dinâmica e um
crescimento aparente e praticamente incontroláveis. Como nos propõe CHESNAIS
(1999, p. 14-15)
O estilo de acumulação é dado pelas novas formas de centralização de gigantescos capitais financeiros (ou fundos mútuos e fundos de pensão), cuja função é frutificar principalmente no interior da esfera financeira. (...) Não é mais uma Henry Ford ou um Carnegie, e sim o administrador praticamente anônimo (e que faz questão de permanecer anônimo) de um fundo de pensão com ativos financeiros de várias dezenas de bilhões de dólares, quem personifica o “novo capitalismo” de fins do século XX.
Desde fases anteriores da história capitalista, o setor financeiro já se
constituía como um elemento de fundamental importância para a reprodução
deste sistema. No momento atual, entretanto, ele não só cresce em proporções
significativas, dando origem a uma explosão de novos instrumentos e mercados
financeiros, como também passa a concentrar muito mais poder, dinamizando e
flexibilizando a produção, os mercados de trabalho e o consumo. “O sistema
financeiro alcançou um grau de autonomia diante da produção real sem
precedentes na história do capitalismo, levando este último a uma era de riscos
financeiros igualmente inéditos” (HARVEY, 1999, p. 181). Chesnais nos aponta
dois mecanismos característicos para o desenvolvimento e o fortalecimento desta
esfera: a “inflação do valor dos ativos”, com a formação de um “capital fictício” e,
principalmente, as transferências efetivas de riqueza para a esfera financeira,
através prioritariamente, do serviço de dívida pública e das políticas monetárias a
ele vinculadas.
Este capital financeiro tornou-se, então, o grande impulsionador da
economia mundial, e os Estados nacionais periféricos, “seus grandes reféns”,
contribuem para este novo quadro através de um endividamento cada vez maior.
Não são questionadas, de forma sistemática, as propostas e as exigências deste
novo perfil do liberalismo e, pelo contrário, as maiores potências do globo se
voltam para a defesa intransigente deste capital monetário, independente dos
custos políticos e sociais que esta opção possa acarretar. Além dos Estados, esta
esfera financeira também consegue subordinar o investimento dos grandes grupos
industriais com prioridades que tendem a reduzir o tempo necessário para a
valorização do capital industrial, atingindo, de forma direta, as classes
trabalhadoras, suas relações de trabalho e seu processo de organização na esfera
produtiva.
Como nos propõe SAMPAIO JÚNIOR (1999, p. 18)
A extrema mobilidade do capital internacional comprometeu o controle das sociedades nacionais sobre as empresas transnacionais. Os aumentos nas escalas mínimas de produção fizeram com que os novos processos produtivos exigissem um espaço econômico de referência mais amplo, que tendia a ultrapassar os limites das fronteiras dos Estados nacionais. A integração do sistema financeiro internacional levou ao paroxismo a liberdade de movimento de capitais, generalizando, para as economias centrais, um problema que até então se restringia aos países subdesenvolvidos: a incapacidade de circunscrever o circuito de valorização do capital ao espaço econômico nacional.
O debate contemporâneo acerca deste cenário afirma que o capital perde,
neste sentido, as determinações de suas formas particulares e singulares de
desenvolvimento, subordinando-se às formas do capital em geral. Não bastam,
neste momento, as formas tradicionais de reprodução em âmbito nacional, que
ainda existem, mas que não são mais determinantes. As transnacionais precisam
redesenhar o mapa geoeconômico e geopolítico, libertando-se das amarras que
antes eram colocadas pelos Estados nacionais e por suas demandas mais
específicas. As exigências de instituições, organizações e corporações
transnacionais, ou propriamente mundiais, parecem dar o novo tom deste
momento contemporâneo.
Segundo uma parte dos autores contemporâneos que trabalham esta
temática, dentre os quais destacamos IANNI (1998), uma das provas mais
concretas desta internacionalização está colocada justamente pelo fato de que o
principal opositor do sistema do capital, que historicamente ficamos conhecendo
pela expressão “socialismo real”, vai, aos poucos demandando a presença do
capital como elemento essencial para a sua organização e dinâmica. Aos poucos,
as economias centralmente planificadas demonstram-se estimuladas e desafiadas
pelas oportunidades de participar das oportunidades de mercado oferecidas. Nas
palavras deste autor,
Quando termina a Guerra Fria, inclusive como decorrência do modo pelo qual o capitalismo estava bloqueando e penetrando o mundo socialista, o “Segundo Mundo”, são outros espaços que se abrem. Sob vários aspectos, é como se o mundo todo se tornasse o cenário das forças produtivas acionadas e generalizadas pelas corporações transnacionais, conjugadas com ou apoiadas pelos governos dos países capitalistas dominantes. (1998, p. 50)
Está decretado, para autores que defendem esta perspectiva, o “fim da
geografia”, no sentido de que a localização geográfica não importa mais em
matéria de finanças e de desenvolvimento capitalista. O “mundo”, enquanto uma
concretude e uma determinação antes não manifestadas, aparece como o
caminho privilegiado para a definição, a gestão e a realização dos interesses do
capital, ou seja, para o processo de acumulação global de riqueza.
Entretanto, quando discutimos os caminhos da “mundialização do capital”,
estamos tratando de um fenômeno resultante não só da liberalização e da
desregulamentação que garantiram a abertura dos mercados nacionais. Também
podemos afirmar que operações altamente seletivas direcionam a finalidade
lucrativa, dando aos grandes grupos do capital internacional total liberdade para
decidir quanto, como, onde e até quando investir. O livre acesso às economias
periféricas e, mais ainda, a crescente dependência destas últimas garantem ao
capital internacional a possibilidade de optar pela exploração dos diferentes
mercados através dos produtos importados, da produção local, ou meramente da
especulação financeira. Assim, consegue aproveitar as potencialidades lucrativas
de cada região, procurando aquelas que possam oferecer, em cada realidade
específica, melhores oportunidades de acumulação e reprodução21. Assim,
podemos compreender que os vínculos deste capital internacional com as
diversas realidades nacionais dependem da importância destas últimas na
concorrência intercapitalista em escala mundial.
Esta constatação, de que o mercado globalizado busca se expandir através
dos mais diferentes caminhos, de acordo com a “vocação” de cada região para o
desenvolvimento capitalista, traz elementos que fortalecem a perspectiva de uma
possível “interdependência entre as nações”. Na verdade, para esta teoria, que se
estrutura, segundo IANNI (1998), enquanto uma análise sistêmica, a sociedade
21 IANNI (1998) chama a atenção para o fato de que as facilidades geradas pelo processo de desterritorialização do capital acabam por facilitar também a confusão entre o dinheiro com origem legal e aquele que se formou por atividades ilícitas, tais como o narcotráfico e a corrupção.
mundial já compõe um sistema econômico e unitário, onde as potências mundiais
estabelecem as condições de ordem neste sistema global. Assim, neste cenário,
deve ser valorizada e privilegiada a funcionalidade sincrônica, a articulação eficaz
e produtiva. Neste sistema global, já estabelecido e do qual as nações são
interdependentes, prevalecem a estabilidade, a normalidade, a harmonia, o
equilíbrio, a eficácia, a produtividade, a ordem e a evolução. O mundo é uma
totalidade harmônica, contendo partes e atores que estabelecem uma
interdependência negociada, administrada, pacífica.
A teoria da interdependência das nações se apresenta relacionada com a
perspectiva de “ocidentalização”, de modernização e de “racionalização” do
mundo. Observa-se uma sedimentação dos padrões e valores sócio-culturais
predominantes na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, traduzindo a idéia de
que o capitalismo é um processo civilizatório superior e inexorável, que tende a se
desenvolver pelos quatro cantos do mundo, sobrepondo-se a quaisquer outras
formas de organização da vida e do trabalho. Nesta direção, é vital que as
diferentes sociedades compartilhem de uma mesma orientação macro-econômica,
através da vigência e da generalização das forças do mercado capitalista, em
âmbito global, com pólos dominantes e centros decisórios em alguns poucos
Estados nacionais mais fortes.
A globalização aparece, desta forma, como um padrão de modernização
que dissolve e ultrapassa fronteiras de todo tipo. Neste padrão, moderno é
sinônimo de prático, técnico e instrumental, permeando as mais diversas esferas
da vida social. Generaliza-se um pensamento pragmático e tecnocrático, que
apresenta tarefas fundamentais para as elites intelectuais: é preciso que este
grupo assuma a tarefa de viabilizar a execução e a dinamização dos objetivos e
meios desta mundialização do capital, possibilitando que as coisas, as gentes e as
idéias passem a ser atravessados pela desterritorialização. Teremos a
oportunidade de problematizar melhor esta função das elites intelectuais22 neste
processo de “modernização capitalista” quando estivermos problematizando o que
denominaremos de “cultura da globalização”. A ela cabe construir e divulgar
ideologicamente a proposta de que chegou ao fim a era conturbada do capitalismo
e a mundialização é, agora, um processo possível, necessário, equânime e
inevitável. Ainda que esta modernização não se dê de modo abrupto e monolítico,
convivendo, portanto, com diferentes padrões, valores e instituições, ela tende a
predominar, inaugurando tendências no sentido da individuação e do
individualismo, da mercantilização e da acumulação capitalista em todas as
instâncias da vida social. O parâmetro de modernização contemporânea é dado
pelas sociedades mais desenvolvidas, ou simplesmente dominantes, e deve ser
seguido e almejado pelas que se encontram em uma posição secundária e
dominada.
Assim, se inaugura um padrão de racionalidade capitalista, onde são
criados parâmetros de organização das diversas ações sociais. Numa dimensão
expansionista, o mundo foi sendo permeado por valores, instituições e
organizações característicos do capitalismo enquanto modo de produção, que,
como vimos, desde o seu início, já tinha uma orientação internacionalizada. O
22 IANNI (1998) nos fala, inclusive, em tecno-estruturas, que reúnem profissionais diversificados, de todas as qualificações, com o objetivo de diagnosticar, planejar e implementar diretrizes gerais em conformidade com os interesses predominantes nas estruturas de dominação política e apropriação econômica.
direito, por exemplo, aparece como uma parte fundamental desta racionalização
da sociedade, traduzindo estes padrões e valores para o formato de um aparato
jurídico-administrativo que se une àquele universo de modernização capitalista.
Entretanto, o pensamento social crítico tem nos possibilitado compreender
que uma forte dose de idealização demarca esta tese da interdependência das
nações, da modernização e da racionalização das sociedades contemporâneas. A
mundialização do capital não se desenha como um momento de integração ou de
igualdade nas condições de participação no grande mercado mundial. Muito pelo
contrário, apesar de todo o discurso da “crise do Estado-nação”, vivemos em um
cenário extremamente marcado por relações econômicas e políticas de
competição, de dominação e de dependência, acentuando elementos de
hierarquização e de hegemonia entre os países. A distância entre “países ricos e
pobres” é cada vez maior, sendo que os últimos permanecem em uma posição
acentuadamente subordinada.
É diante de toda esta configuração crítica da base material do capitalismo
contemporâneo que J. L. FIORI (1999) recupera e dá nova significação ao tema
da “riqueza de algumas nações”. O que podemos perceber, neste início de século,
é que o cenário de internacionalização acima descrito aponta para um horizonte
de incertezas e de incontrolabilidade do livre movimento do capital, perpetuando,
para os países de capitalismo periférico, uma situação de “verdadeira tirania
financeira”. Assim, em um contexto de internacionalização, de flexibilização das
fronteiras econômicas nacionais e da anunciada “crise do Estado-nação”, a
simples competição intercapitalista em mercados desregulados e globalizados não
assegura o desenvolvimento nem muito menos a convergência entre as
economias nacionais do centro e da periferia do sistema capitalista mundial. A
“questão nacional” permanece em voga, nesta perspectiva crítica, ganhando
visibilidade e significação, sob novos parâmetros de discussão. A lógica perversa
dos mercados auto-regulados, estabelecida agora em um quadro de hegemonia
imperialista recomposta, demonstra ser a responsável por uma gigantesca
concentração empresarial e territorial da riqueza, com uma subordinação cada vez
maior dos países periféricos que
Quando optam pela alternativa de atrelar suas moedas à da potência dominante mundial ou regional, condenam-se a ciclos curtos de modesto crescimento (na média do ciclo), altas taxas de desemprego e ingovernabilidade, sustentável só durante os períodos de disponibilidade de capitais e créditos internacionais abundantes e baratos. (FIORI, J. L., 1999, p. 39).
Podemos perceber, neste contexto, a continuidade de uma ordem
hierárquica internacional, com claras perspectivas hegemônicas, onde parece
impensável o desenvolvimento e a mobilidade ascendente de todas as economias
nacionais. O mundo do “capital globalizado” é, cada vez mais, um mundo de
amplas desigualdades econômicas, cujos custos sociais, como poderemos
observar, nos parecem cada vez mais graves e reivindicam intervenções cada vez
mais urgentes.
Neste debate acerca da hegemonia e da hierarquia entre nações, há que se
problematizar a presença dos Estados Unidos, que, embora frágeis
industrialmente, destacam-se no cenário de expansão e de nova significação do
capital financeiro, o qual aumenta, consideravelmente, seu poderio nos planos
político e militar. Durante as décadas de 80 e 90, a imensa diferenciação entre
países credores e devedores e o sobreendividamento externo dos países de
capitalismo periférico, confirmaram a presença dos Estados Unidos como o pólo
propulsor do crescimento econômico destes países, através de uma série de
“concessões” unilaterais antecipadas e da adoção do receituário neoliberal
proposto pelo Consenso de Washington. A hegemonia norte-americana se
construiu, entretanto, no interior de um “mundo triádico”23, composto ainda pelo
poder econômico e político do Japão e da União Européia.
O que se percebe é que, se a afirmação destes outros dois grandes grupos
econômicos pode ameaçar a hegemonia norte-americana, isto não abala e, pelo
contrário, fortalece imensamente as estruturas da mundialização do capital. Estes
três “pólos” concentram, então, o grande volume do capital financeiro investido em
todo o mundo e demarcam sua existência e seu poderio através desta base de
financeirização. Dados apresentados por CHESNAIS (1999, p. 63) demonstram
que, ao longo da década de 80, tais grupos econômicos movimentavam entre si
mais de 80% do investimento externo direto (num movimento de investimento
internacional cruzado), o que ocorria através principalmente, de aquisições e
fusões de empresas já existentes, com vistas a uma maior capitalização das
mesmas. Assim, o desenvolvimento e a acumulação capitalistas sustentam e
mantêm a si mesmos, configurando e fortalecendo a estrutura de hegemonia que
se forma no contexto internacional. Nesta lógica, a Tríade atua com plena
liberdade no interior de suas fronteiras e busca estabelecer com rigor os caminhos
23 CHESNAIS afirma que o poderio econômico, político e social no contexto da mundialização do capital esta construído em torno de uma tríade, que também é denominada de “imperialismo coletivo”. Compõem esta tríade os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, sendo que o primeiro apresenta posição hegemônica.
e os passos que demarcarão a “integração” dos países em desenvolvimento neste
cenário.
Na lógica da ordem internacional hoje emergente, o desenvolvimento nacional fica excluído do horizonte de possibilidades dos países periféricos. Cabem-lhes, agora, basicamente, três funções na economia mundial: franquear o espaço econômico à penetração do capital internacional; coibir o êxodo de correntes migratórias que possam gerar instabilidade nos países centrais; e aliviar o estresse produzido pelas regiões altamente industrializadas no ecossistema mundial, aceitando o triste e paradoxal papel de pulmão e lixo da civilização ocidental. (SAMPAIO JÚNIOR, 1999, p. 24).
O que vai demarcar esta “inevitável” globalização e ditar as normas da
“adaptação” necessária é o investimento internacional, muito mais do que o
comércio exterior. Este investimento, do qual a maioria dos países periféricos se
tornou absolutamente dependente, passa a determinar a produção de bens e
serviços, numa inversão significativa no processo de acumulação capitalista
contemporâneo.
As estratégias internacionais do passado, baseadas nas exportações, ou as estratégias multidomésticas, assentadas na produção e venda no exterior, dão lugar a novas estratégias, que combinam uma série de atividades transfronteiras: exportações e suprimentos externos, investimentos estrangeiros e alianças internacionais. As empresas que adotam essas estratégias podem tirar proveito de um alto grau de coordenação, da diversificação de operações e de sua implantação local. (OCDE apud CHESNAIS, 1999, p. 27)
A globalização, assim desenvolvida a partir desta supremacia do capital
financeiro, pode garantir, também ao capital produtivo, uma intensa mobilidade,
caracterizada pela maior flexibilidade dos processos de produção, pela
deslocalização de tarefas, pela fragmentação dos processos de trabalho e pela
busca de melhores preços da força de trabalho. No entanto, este quadro se torna
ainda mais acentuado quando ponderamos que este capital produtivo encontra, na
aliança com o capital financeiro, oportunidades ainda mais amplas de
sobrevalorização, aliando flexibilidade e diversidade de operações através dos
mecanismos de investimento externo direto. Aprofunda-se, em decorrência disso,
uma concorrência ainda mais acirrada entre os paises dependentes, em torno da
atração de maiores e melhores investimentos externos, independentemente de
quaisquer políticas que antes faziam sentido através da lógica de “soberania
nacional”.
A globalização não atua sobre estes países, portanto, meramente como um
processo externo e coercitivo. Ela conta com a preciosa e definitiva “colaboração”
dos Estados que, responsáveis pela condução deste processo em âmbito
nacional, impulsionaram o avanço aparentemente incontrolável das estruturas do
capital financeiro. Em outras palavras, para nos apropriarmos, mais uma vez, das
discussões anteriores acerca da perspectiva gramsciana, a globalização possui
uma clara dimensão hegemônica, no sentido da obtenção do consenso e da
legitimidade, e os Estados nacionais recolocam agora sua importância, a partir do
momento em que moldam suas realidades internas para garantir maior
adaptabilidade a este capital “mundializado”.
Sem a intervenção política ativa dos governos Tatcher e Reagan, e também do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a eles, e sem a implementação de políticas de desregulamentação, de privatização e de liberalização do comércio, o capital financeiro internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam
podido destruir tão depressa e tão radicalmente os entraves e freios à liberdade deles de se expandirem à vontade e de explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde lhes for conveniente. (CHESNAIS, 1999, p. 34).
As estratégias de investimentos externos configuram-se como globais para
os interesses dos grandes oligopólios mundiais, concentrados nos poucos países
que compõem a Tríade. Para os demais atores, elas são sinônimo de um quadro
cada vez mais acentuado de dependência e de inclusão periférica no cenário
capitalista contemporâneo, extremamente polarizado, com um recuo dos
investimentos e das transferências de tecnologia para o interior dos próprios
países em desenvolvimento. Neste cenário, observamos, inclusive, uma
marginalização de áreas inteiras dos continentes. Dados apresentados por
HOBSBAWN (1997, p. 412) afirmam que, no início da década de 90, 26 das 42
“economias de baixa renda” não representavam qualquer interesse para os
investimentos do grande capital mundializado.
Elaborar uma análise do processo de globalização em curso nestes termos
significa reafirmar importantes elementos de continuidade e de aprofundamento de
relações próprias da fase imperialista, compreendida como uma ampla teoria
acerca do funcionamento da economia mundial no estágio do capitalismo
monopolista. Tem origem, desta forma, um “sistema global do capital”, enquanto
uma poderosa realidade independente e o imperialismo, enquanto teoria
explicativa da realidade, se recoloca, já não se limitando mais à esfera do
intercâmbio comercial, mas também ao movimento do capital produtivo de valor e
de mais-valia e do capital financeiro.
LÊNIN (2002), no início do século XX, já demarcava um conjunto de
características que nos parecem orientadoras para analisarmos o momento
contemporâneo da “globalização”. Seriam elas:
a) Concentração e centralização do capital industrial e formação de
grandes grupos industriais, designados como monopólios;
b) Movimento de concentração e centralização do capital monetário,
verificado no setor bancário e originário do capitalismo financeiro;
c) Importância adquirida pela exportação de capitais, em contraposição
às exportações de mercadorias, desencadeando mecanismos de
centralização do valor e da riqueza (capital rentista, com acentuado
caráter parasitário).
Estes elementos nos levam a considerar que é necessário recuperar e
atualizar esta teoria do imperialismo, com vistas a buscar a compreensão da base
material que explica outras dimensões da vida social. Consideramos que este
exercício é de fundamental importância para que possamos problematizar,
posteriormente, a tão anunciada “globalização da cultura”.
Valendo-nos, assim, das contribuições de ALMEIDA (2003), podemos
retomar cinco pontos a serem considerados neste movimento de recuperação e
atualização do paradigma do imperialismo para a compreensão da realidade atual,
a saber:
a) Podemos observar uma expansão da centralidade das relações entre
capital e trabalho, onde a industrialização crescente e específica de
um grande número de países de capitalismo periférico fortalece
ainda mais a compreensão do capital como uma relação social, em
sua fase expansionista.
b) Constrói-se, nesta “periferia do capitalismo”, um sistema que não só
repete as bases desta relação social, mas também as diferencia,
aprofunda e particulariza. Desta forma, a partir de meados da década
de 80, não se pode mais analisar as transformações ocorridas no
centro do capitalismo desenvolvido sem analisar suas conexões com
o que se constitui como relações sociais nas formações
dependentes.
c) No momento clássico do imperialismo, somente as formações sociais
hegemônicas eram estatais-nacionais. Hoje este tipo de formação
atinge praticamente todo o mundo, com a proliferação de Estados
burgueses nacionais, o que muitas vezes cria a necessidade de
(...) encenar a representação do povo-nação como uma coletividade soberana e, neste mesmo processo, reproduzir ou redefinir as relações de dependência desta formação social em relação aos centros do capitalismo hegemônico. (ALMEIDA, 2003, p. 65).
d) Como já mencionamos, a configuração contemporânea do sistema
do capital estabelece mudanças até mesmo no centro dos países
hegemônicos com a formação e o fortalecimento da Tríade, onde se
destaca o poderio norte-americano.
e) Também perde força a hegemonia do capital produtivo, o qual, a
partir de agora, fica subordinado, econômica e politicamente, ao
capital financeiro, dando um caráter de instabilidade crescente ao
sistema internacional e seus “mercados financeiros emergentes”.
Estaríamos diante, sobretudo a partir do final do século XX, de uma nova
etapa desta internacionalização do capital que se complexificou e passou a formar
um todo articulado, envolvendo o movimento do capital financeiro, o investimento
do capital produtivo e o intercâmbio comercial. Estas seriam três estratégias de
desenvolvimento e acumulação do capital, agora em uma dimensão global, que
compõem ciclos diferenciados de internacionalização do capital em cada época
histórica. É importante realizarmos considerações mais aprofundadas sobre cada
um destes elementos.
O salto e a importância adquirida pelo investimento externo direto nos anos
80 demonstram as particularidades do movimento do capital financeiro, o qual
parece adquirir uma significativa autonomia diante do capital industrial. Este
último, embora ainda comande a criação de valor e de riqueza, fica subordinado
ao primeiro, a cujas exigências deve se submeter. Em outras palavras, a produção
não está mais prioritariamente orientada pela produção de mercadorias que
satisfazem necessidades humanas, mas para mecanismos que acelerem o
crescimento, a reprodução e a acumulação do capital financeiro.
A configuração contemporânea das empresas multinacionais exemplifica
com bastante clareza estas afirmações, pois estas empresas vêm passando por
um processo de diversificação que intensifica e facilita sua internacionalização.
Elas permanecem com uma base nacional, que não apenas garante seu
crescimento como também define sua estratégia e sua competitividade, através da
ação e da “ajuda” do “seu” Estado. Além disso, apresentam-se atualmente como
um grupo altamente diversificado, envolvido em múltiplas atividades, buscando
uma valorização do capital diferenciada e multiforme. Dentre estas atividades,
destacam-se estratégias predominantemente financeiras, operando e intervindo
em mercados financeiros mundializados. São, assim, denominadas
“multinacionais de novo tipo” (DUNNING In CHESNAIS, 1999, p. 77) e ganham
extrema representatividade no momento atual porque
O grupo multinacional, então, precisa ser eminentemente rentável, mas atualmente essa rentabilidade não pode mais ser baseada unicamente na produção e comercialização próprias do grupo e de suas filiais. Precisa basear-se também no que Dunning chama, de forma vaga e um tanto eufemística, de suas “relações com outras empresas”. (IBIDEM, p. 77-78).
Estas “relações com outras empresas” acontecem tendo como centro, mais
uma vez, a lógica da financeirização ou da especulação, através de novas formas
de investimento, onde a multinacional disponibiliza uma fração de capital e,
portanto, conquista o direito de conhecer a conduta de outra empresa não através
de um aporte de capital, mas de um investimento sob a forma de ativos imateriais.
Tais investimentos apresentam, conseqüentemente, um caráter altamente flexível
e rentista, desligando-se da maioria dos riscos, e/ ou dos custos vivenciados por
estas empresas.
Assim se formam os chamados “oligopólios mundiais”, grupos que
demarcam a absoluta interdependência entre companhias, como espaços não só
de concorrência e rivalidade, mas também de colaboração, criando barreiras à
entrada de outros grupos ou empresas. Tais oligopólios se definem pela
capacidade de se sustentar num cenário de concorrência global, uma vez que
atuam simultaneamente em mercados variados e redesenham, inclusive, a
questão da localização produtiva industrial. Identificar as “vantagens de cada país”
significa algo além de buscar mão-de-obra mais barata. Na verdade, tal
localização envolve demandas maiores, mercados mais promissores e, sobretudo,
benefícios fiscais que tornem determinados países “mais atraentes” para o grande
capital mundial.
Torna-se muito mais ampla e definida, então, a noção de “concorrência
mundializada”. Em um primeiro plano, temos uma perspectiva mais direta desta
concorrência, onde empresas, em todo o mundo, que antes estavam limitadas,
mas também “protegidas”, pelos freios e entraves colocados pelos Estados-nação
ao livre jogo do mercado, agora se enfrentam de uma forma mais direta e radical,
oriunda das políticas de liberalização e de desregulamentação das economias
nacionais. No entanto, em um contexto oligopolista mundial, esta concorrência não
é mais anônima. Estes grandes grupos não só conhecem seus rivais, como
também controlam suas estratégias de acumulação e seus graus de
interdependência.
Entretanto, não podemos desprezar um outro nível de concorrência neste
cenário mundializado. Trata-se da disputa pelos próprios investimentos dos
“oligopólios mundiais”, o que atinge sobretudo a estrutura econômica, política e
social dos chamados países em desenvolvimento. Nesta questão, os Estados
nacionais têm um papel fundamental, de aumentar as “vantagens de seu país de
origem”, tornando-o mais atrativo. Teremos a oportunidade de analisar as
conseqüências desta disputa para a configuração das classes trabalhadoras
nestes países, bem como para sua organização política.
Assim, esta “globalização”, longe de garantir uma maior integração ou
equidade entre economias nacionais de diferente porte, institui uma concorrência
e uma rivalidade ainda mais acirradas nesta arena, agora global, exigindo dos
grupos oligopolistas novas estratégias e novos modos de coordenação e controle,
que sempre significa, em última instância, uma maior exploração das
desigualdades e das “vantagens” nacionais, mesmo dentro dos países que
compõem a Tríade. Como já tivemos a oportunidade de mencionar, com relação a
estas estratégias, as multinacionais norte-americanas gozam de melhores e
maiores condições de afirmação no cenário oligopolista mundial. São fatores de
diferenciação para estas multinacionais: a posição dos EUA no sistema financeiro
mundial, com mercados inigualáveis em suas dimensões e em sua diversidade, o
poderio político e militar, que estabelece uma total dependência de outros países
com relação às decisões tomadas pelos EUA e, finalmente, sua penetração
cultural, com uma produção planetária de imagens e mitos mercantilizados, tais
como o inglês como “língua mundialmente dominante”, a influência norte-
americana nas indústrias de comunicação de massas e “o ‘sonho’ projetado pela
indústria cultural do capitalismo e da mercantilização total das atividades e das
dimensões da vida social” (CHESNAIS, 1999, p. 24).
GUIMARÃES (1999) enumera, ainda sobre este debate, os principais
objetivos a serem alcançados pela estratégia norte-americana de afirmação e de
sustentação de sua posição hegemônica:
a) Implantar um sistema econômico internacional cujas normas
garantam a mais livre circulação de bens, serviços e capital;
b) Manter a capacidade de proteção de setores da economia americana
ameaçados pela competição estrangeira;
c) Induzir terceiros Estados a adotar instituições, normas de atividade e
políticas econômicas semelhantes às americanas;
d) Garantir o acesso americano direto às fontes de matéria-prima
essenciais à economia americana, em especial à energia;
e) Garantir a mais ampla liberdade de ação às empresas americanas
que atuam em terceiros países;
f) Impedir a transferência de tecnologia que permita o surgimento de
competidores efetivos nos mercados de ponta mais lucrativos.
Os grupos originários de países que, mesmo com uma posição econômica
dominante, não dispõem dos fatores hegemônicos norte-americanos, constituem e
determinam o que CHESNAIS (1999, p. 121) denominou de “competitividade
estrutural”, ou seja, deriva da “expressão dos atributos do contexto produtivo,
social e institucional do país”. Entre estes atributos, podemos chamar atenção
para:
a) A competitividade intrínseca do setor de bens de capital ou de bens
de investimento;
b) As relações dos bancos e do sistema financeiro com a indústria, pois
a capacidade de proteger e de salvaguardar o investimento está nas
mãos do sistema financeiro;
c) As “externalidades”, dentre as quais podemos incluir as infra-
estruturas e os serviços públicos, o nível de qualificação da mão-de-
obra, a qualidade do sistema de pesquisa e das infra-estruturas
científicas.
No que se refere à deslocalização da produção e à afirmação mundial
destas multinacionais, destaca-se ainda como fator importante a proximidade dos
centros produtivos com as principais bases das empresas. É até possível, para os
grandes grupos multinacionais, suportar um custo maior com a força de trabalho
de média ou baixa qualificação, desde que possam voltar a centralizar o conjunto
de suas operações perto de suas bases principais. Além do mais, o contexto de
mundialização do capital se torna tão acentuado que a ameaça do desemprego,
as políticas e teorias governamentais sobre salário e emprego e os acordos com
dirigentes sindicais garantem aos monopólios mundializados a possibilidade de
encontrar mão-de-obra qualificada barata em praticamente todo o mundo.
Sobre a deslocalização da produção, percebemos que
A mobilidade intrínseca do capital, combinada com a variedade de soluções técnicas oferecidas e a atratividade do suprimento das proximidades (o “just-in-time”), vai levar necessariamente a uma variedade de esquemas de localização bem maior do que no passado. (CHESNAIS, 1999, p. 133).
Este contexto de economia globalizada apresenta ao capital, então,
múltiplas e amplas formas de reprodução e de acumulação, demonstrando uma
flexibilidade e uma dinamicidade de difícil controle para os Estados nacionais e
suas populações. Este quadro é assim caracterizado por POCHMANN (2001, p.
15)
Nos dias de hoje, a versão mais sofisticada dessa visão teórica renovada pode ser encontrada nas publicações de importantes agências multilaterais que definem as possibilidades de expansão nacional como diretamente associadas à maior integração do
mercado mundial. A desregulamentação dos mercados financeiros, de produtos e do trabalho constitui peça fundamental no roteiro de medidas necessárias para o melhor acesso ao desenvolvimento econômico e à ampliação dos postos de trabalho.
Os avanços, o desenvolvimento e as opções de investimento na área de
tecnologia se afirmam como um outro fator ativo de competitividade, muitas vezes
decisivo. Neste cenário mundializado, ela se caracteriza por uma alta difusão
intersetorial, ou seja, pela capacidade de renovar a concepção de muitos produtos
e de inventar novos. Tal avanço tecnológico se constrói através de múltiplos
acordos entre diversas empresas, inclusive em âmbito intertriádico, as quais
contam com a figura imprescindível do Estado para manter sua competitividade
através da elaboração e do financiamento de amplos programas. A tecnologia e os
investimentos em pesquisa e desenvolvimento transformam-se, então, em
elementos-chave no processo de internacionalização, deixando claro o poderio
econômico destas economias. O desenvolvimento de novas tecnologias e o seu
posterior reconhecimento são elementos capazes de definir importantes espaços
no cenário globalizado, onde, mais uma vez, a hegemonia norte-americana ganha
destaque. Aos países em desenvolvimento, no que se refere a esta questão, cabe
o papel de meramente absorver uma tecnologia internacionalizada, produzida em
outra realidade societária, perpetuando, também por este caminho, uma posição
de subalternidade e de dependência.
[A internacionalização da tecnologia] inclui as medidas tomadas pelos grupos para proteger suas tecnologias privadas e impedir que sejam imitadas ou utilizadas sem a concordância dos proprietários, conforme as leis de patentes e instrumentos jurídicos internacionais, recentemente reforçados. E abrange ainda a
formação de “alianças estratégicas” internacionais entre os grandes grupos, bem como a elaboração de normas industriais, através de cooperação que, às vezes, começa desde a fase de desenvolvimento tecnológico. (CHESNAIS, 1999, p. 163).
Posteriormente, teremos a oportunidade de verificar como este elemento de
internacionalização da tecnologia apresenta elementos orientadores para o grande
enigma da “globalização da cultura”.
É importante apresentarmos, ainda nesta caracterização do processo de
internacionalização do capital, reflexões acerca do crescimento e da diversificação
do setor de serviços, considerado como uma “nova fronteira” para a expansão
capitalista. Algumas atividades deste setor vivem uma internacionalização mais
antiga, como o transporte marítimo e a atividade mercantil. No entanto, as
multinacionais industriais no período contemporâneo criaram as condições e as
exigências de novos serviços internacionalizados, como a auditoria, a publicidade,
a consultoria, o marketing, etc., tendo em vista, sobretudo, o atendimento a uma
demanda aparentemente homogeneizada em torno das expectativas de consumo
do capitalismo avançado.
Esta expansão do setor de serviços num quadro globalizado encontrou
incentivo também na contenção dos serviços públicos que, em uma fase anterior,
eram os garantidores da infra-estrutura necessária para o desenvolvimento do
capitalismo. Assim, o movimento de liberalização e de desregulamentação, levado
adiante pelos mais diversos Estados nacionais comprometidos com a proposta
neoliberal, permitiu o avanço destes serviços privados, chegando a muitas áreas
antes orientadas pelos monopólios estatais, tais como as telecomunicações, os
grandes meios de comunicação de massas e os serviços sociais. Abre-se,
portanto, um novo campo para o investimento externo direto, oferecendo
oportunidades de expansão para indústrias que buscam diversificar suas ações
em direção àquela superacumulação de que falávamos anteriormente.
CHESNAIS aponta dois elementos orientadores desta diversificação:
1) o domínio que esses grupos querem manter sobre aspectos complementares dos quais depende parte da rentabilidade de suas operações; 2) o lugar que certos serviços continuam ocupando, em relação ao movimento total de valorização do capital. (1999, p. 188)
Este crescimento do setor de serviços no âmbito globalizado se identifica, então,
com a necessidade de responder às novas exigências de mercado das indústrias
multinacionais. Um bom exemplo é o grande crescimento dos gastos com
publicidade, tentando atender à concorrência oligopolista e à diferenciação de
produtos, selecionando melhor a demanda e buscando condições de oferecer
serviços aparentemente personalizados.
O debate relativo ao investimento externo direto representa, portanto, na
contemporaneidade da internacionalização do capital, o principal elemento de um
quadro hierárquico que envolve, também, o comércio exterior e o fluxo
internacional do capital em seu padrão monetário. Estes dois elementos
completam, portanto, o cenário de desenvolvimento capitalista, que determinará
nossos estudos sobre a cultura.
Quando ao comércio exterior, percebemos que este constitui uma esfera
com acentuada polarização, criando um quadro de total marginalização de muito
países. O sistema mundial do comércio exterior continua altamente hierarquizado,
o que decorre de fatores econômicos, de mudanças científicas e tecnológicas e de
configurações políticas, onde pesa, sobretudo, a intensidade da intervenção
estatal nos quadros da economia nos países centrais e periféricos, através de
incentivos fiscais e do controle de taxas de importação e exportação.
O sistema mundial de intercâmbio parece reforçar alguns elementos dos
quais já tratamos anteriormente. Em primeiro lugar, as zonas mais intensas de
comércio exterior se formam em torno dos países que compõem a Tríade,
caracterizando um fenômeno de regionalização que se combina com uma
crescente marginalização dos demais países. Compõe-se então um paradigma de
concorrência ou competição, onde a competitividade de cada país designa, de
antemão, “ganhadores” e “perdedores”. Neste cenário, o sucesso de uma empresa
significa, muitas vezes, a falência ou a absorção de outras que não se
sustentaram neste quadro de competitividade e cujos países de origem, tornados
devedores externos, são diretamente afetados na relação importação/ exportação.
As multinacionais dominam, sem maiores riscos, o comércio exterior
mundial, sendo responsáveis, segundo dados da OCDE, por 40% do total de
produtos manufaturados. Entre estas multinacionais, cresce um importante
comércio “intracorporativo” ou “intragrupo”, resultante de modalidades de
integração industrial transnacional. Chesnais nos apresenta dados que afirmam
que 99% do comércio exterior dos EUA envolviam a participação de uma
multinacional americana ou estrangeira, como parte da transação.
O crescimento do comércio mundial, mas também sua subordinação à
intensidade do investimento externo direto, fizeram com que se acelerasse a
formação de intercâmbios intra-regionais e de blocos econômicos, com a
crescente criação das áreas de livre comércio. Alguns comentaristas afirmam que
esta regionalização do mundo é contraditória com uma “verdadeira” globalização,
chegando a ameaçar as propostas dominantes. Na verdade, esta ameaça não nos
parece real, uma vez que a regionalização, para os países em desenvolvimento,
tem, no máximo, um objetivo defensivo, no sentido de se configurar como um
acúmulo de forças na tentativa de se inserir, em melhores condições, no cenário
globalizado hegemônico, que anteriormente descrevemos. Ainda que,
politicamente, a formação destas regiões traga algumas particularidades
relevantes no enfrentamento aos modelos dominantes de globalização, isso não
se desenha no cenário econômico. Acreditamos que a Tabela 1, abaixo
apresentada, demonstra com clareza esta desigualdade nos processos de
regionalização em todo o mundo, onde se percebe a prevalência da América do
Norte, da Europa e da Ásia em termos de exportações intra-regionais no cenário
mundial.
Tabela 1 Intercâmbios inter-regionais
(em % do intercâmbio total da zona e em % do comércio mundial)
Exportações intra-regionais no total da zona
Exportações intra-regionais no total mundial
Zonas
1986 1991 1979 1989 América do Norte
39,1 33,0 4,6 5,3
América Latina 14,0 16,0 1,1 0,5 Europa Ocidental
68,4 72,4 28,8 31,1
Europa Central e ex-URSS
53,3 22,4 4,3 3,5
Ásia 37,0 46,7 6,3 10,0 África 5,9 6,6 0,3 0,2 Oriente Médio 7,7 5,1 0,4 0,3 Fonte: GATT apud CHESNAIS, 1999, p. 231.
Como mais um elemento a ser analisado no desenvolvimento deste
processo de mundialização do capital, temos o movimento específico da esfera
financeira restrita, do capital em sua forma monetária que, na verdade, representa
o encaminhamento mais imediato para o montante acumulado através do
investimento externo direto e do comércio mundial. Tal esfera conta, no mundo
contemporâneo, com uma mobilidade e uma flexibilidade surpreendentes,
construindo-se como o campo mais avançado da mundialização.
As instituições financeiras, bem como os “mercados financeiros” (cujos operadores são mais fáceis de identificar do que faz supor essa expressão tão vaga), erguem-se hoje como força independente todo-poderosa perante os Estados (que os deixaram adquirir essa posição, quando não os ajudaram), perante as empresas de menores dimensões e perante as classes e grupos sociais despossuídos, que arcam com o peso das “exigências dos mercados” (financeiros) (CHESNAIS, 1999, p. 239).
Desta forma, o processo contemporâneo de acumulação do capital vivencia
uma estreita imbricação entre as dimensões produtivas e financeiras, o que se
manifesta através de diversas estratégias, onde cresce a importância das
operações exclusivamente financeiras dos grupos industriais. Nestas operações, o
capital acumulado atua livremente, com poucos controles ou freios, numa
reprodução permanente e ilimitada.
A força econômica e mesmo política alcançada por este setor fica assim
expressa, nas palavras de SANTOS (2000, p. 101).
Antes, o território continha o dinheiro, em uma dupla acepção: o dinheiro sendo representativo do território que o abrigava e sendo, em parte, regulado pelo território, considerado como território usado. Hoje, sob influência do dinheiro global, o conteúdo do território escapa a toda regulação interna, objeto que ele é de uma permanente instabilidade, da qual os diversos agentes constituem testemunhas passivas. A ação territorial do dinheiro global em estado puro acaba por ser uma ação cega, gerando ingovernabilidades, em virtude dos seus efeitos sobre a vida econômica, mas também, sobre a vida administrativa. No território, a finança global instala-se como a regra das regras, um conjunto de normas que escorre, imperioso, sobre a totalidade do edifício social, ignorando as estruturas vigentes, para melhor poder contrariá-las, impondo outras estruturas.
É importante ponderarmos que o capital valorizado no setor financeiro,
embora encarado como atividade transnacional competitiva, tem uma origem pré-
determinada: ele é resultado de transferências, oriundas da esfera produtiva, onde
são criados os salários e os lucros como valor e rendimentos fundamentais. Este
setor se estabelece sempre com uma autonomia aparente e relativa, uma vez que
os capitais que nela se valorizam nasceram e continuam nascendo no setor
produtivo. “A esfera financeira alimenta-se da riqueza criada pelo investimento e
pela mobilização de uma força de trabalho de múltiplos níveis de qualificação. Ela
mesma não cria nada” (CHESNAIS, 1999, p. 241).
Este elemento absolutamente parasitário da esfera financeira se torna ainda
mais acentuado com inovações no mercado que lhes foram garantidas pela
eliminação das regulamentações e dos controles nacionais. Assim, registram-se
altos índices de um crescimento, a princípio, incontrolável, subjugando, mais uma
vez, os números relativos à esfera produtiva, da qual capta uma parte cada vez
mais elevada da riqueza. Nas palavras de MARX (2003), como podemos
confirmar, este capital monetário representa “a forma mais alienada, mais
fetichizada da relação capitalista”. É um capital que se reproduz sem passar por
um investimento no cenário produtivo, embora tenha nele suas raízes. É um valor
que tem o único objetivo de valorizar a si mesmo.
Não é possível deixarmos de observar que este capital financeiro tem como
um de seus principais dependentes e retroalimentadores os serviços de dívida
pública, sobretudo dos países em desenvolvimento. O próprio FMI afirma que
estes títulos públicos representam o centro deste processo de financeirização.
“Seu volume de transações supera, de longe, o de qualquer outro segmento dos
mercados financeiros, com exceção dos mercados de câmbio” (FMI apud
CHESNAIS, 1999, p. 248). Tem início, a partir daí, uma “economia de
endividamento”, que tem seus sustentáculos tanto na economia norte-americana
quanto européia e que colocou todo o sistema mundial à mercê do capital rentista
e de seu poder opressivo.
Os vários elementos que envolvem o aspecto econômico da globalização
revelam uma reorganização que atinge o conjunto da sociedade em seus mais
diferentes encaminhamentos. Neste sentido, é importante ponderarmos os
aspectos ou “custos sociais” deste processo de globalização, tendo em vista
alcançar, no próximo capítulo, o debate em torno do aparato cultural.
2.2 – Os custos sociais da globalização e as novas formas de
organização da sociedade civil
Quando se considera o processo contemporâneo de internacionalização do
capital, parece-nos evidente a necessidade de situarmos, primeiramente, o quadro
da luta de classes que então se concretiza, com suas particularidades e novas
determinações, uma vez que é este quadro que define e determina a configuração
da questão social. Para tanto, é necessário compreendermos as características e
a contemporaneidade do contexto que envolve a classe trabalhadora,
apreendendo sua processualidade e sua concretude, dado o seu papel central no
modo de produção capitalista. Desde então, partimos da certeza de que, apesar
da relativa autonomização da esfera financeira, como anteriormente descrevemos,
e de todos os discursos sobre “a crise da sociedade do trabalho”24, o capital
continua absolutamente dependente do trabalho humano para que se realize seu
processo de valorização. Se quantitativamente menor e qualitativamente
diferenciada, a classe trabalhadora não perdeu, nesta sociedade, a sua
centralidade.
24 Sobre a anunciada “crise da sociedade do trabalho”, vale acompanharmos o debate apresentado por ANTUNES, 1997, p. 75-97.
Segundo POCHMANN (2001), estamos diante de uma nova fase da
“divisão internacional do trabalho”25, onde podemos perceber, como
características mais amplas, a expansão mundial do desemprego estrutural, a
participação decrescente do emprego assalariado no total da ocupação e a
expansão de postos de trabalho precários e mal-remunerados. Na verdade, a
financeirização da economia global e o avanço, no setor produtivo, dos grandes
oligopólios mundiais realizaram uma redefinição da produção e do padrão de uso
e remuneração da força de trabalho, rebaixando-os consideravelmente. Nesta
nova fase, as atividades de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico estariam
concentradas nos países de origem das grandes corporações transnacionais, as
quais assumiriam, principalmente, as funções de comando e planejamento.
Conseqüentemente, as atividades de execução e produção, com operações mais
simples e rotineiras, e também com remunerações mais baixas, seriam
deslocadas para os países mais pobres, reforçando uma posição subordinada e
passiva à política de atração de investimentos externos.
O cenário contemporâneo reforça, portanto, a afirmação deste autor de que
a capacidade de absorção de um número maior de trabalhadores não depende
apenas do grau de expansão de cada país, mas do padrão de desenvolvimento
alcançado nacionalmente e de sua forma de inserção na economia mundial. É
assim que a economia mundial encontra-se estruturada nas relações entre centro,
semiperiferia e periferia capitalista.
25 POCHMANN (2001) nos fala de três fases da divisão internacional do trabalho, onde a primeira se caracteriza pela introdução da grande indústria, que possibilitou a divisão do trabalho, atribuindo a cada parte do globo papel determinado. A segunda fase, por sua vez, já no início do século XX, é marcada pela posição de nação hegemônica sendo assumida pelos Estados Unidos e pela reformulação do próprio centro capitalista mundial.
Entretanto, nas duas últimas décadas, o centro capitalista passou a concentrar maior participação relativa no total do emprego qualificado devido à difusão de uma nova Divisão Internacional do Trabalho. Em 1997, quase 72% do total dos postos de trabalho qualificados eram de responsabilidade dos países de maior renda, ao mesmo tempo em que continuavam a perder participação relativa nas ocupações não-qualificadas. Na periferia e na semiperiferia, a nova Divisão Internacional do Trabalho tem representado uma oportunidade adicional para maior concentração dos postos de trabalho não-qualificados, com diminuição relativa dos empregos de qualidade. Em 1997, por exemplo, de cada 10 ocupações não-qualificadas do mundo, 8 eram de responsabilidade dos países de menor renda, enquanto de cada 10 postos de trabalho qualificados, apenas 3 pertenciam aos países periféricos. Em 1980, os países periféricos e semiperiféricos eram responsáveis por 32% dos postos de trabalho qualificados e 84% das vagas não qualificadas. (POCHMANN, 2001, p. 35)
A partir da década de 80, podemos então considerar que esta terceira fase
da divisão internacional do trabalho ganha seus contornos mais definidos. Não só
se reafirma o poder econômico das corporações transnacionais, em números que
demonstram cada vez mais a concentração de capital26, como também se
intensifica a racionalização do trabalho, através daquela divisão de que tratamos.
Neste contexto, reafirma-se a hegemonia dos países de capitalismo central, que
encaminham a formação de redes de subcontratação, através do transplante de
partes da cadeia produtiva para os países periféricos e semiperiféricos. Estes, ao
aceitarem o programa destas agências multilaterais, acabam acarretando o
rebaixamento ainda maior do custo do trabalho e aceitando a quase completa
desregulamentação dos mercados de trabalho. Para estes países, diante de um
26 Segundo dados apresentados por POCHMANN (2001), no setor de produção de computadores, 10 empresas concentram 70% da produção mundial. Quanto ao ramo de material de saúde, 7 empresas concentram 92% da produção.
cenário marcado por uma força de trabalho de menor custo, por condições de
trabalho mais flexíveis e precárias e por uma diminuição relativa dos empregos
mais qualificados, os custos sociais da mundialização do capital se tornam ainda
maiores, elevando cada vez mais o grau de desigualdade na distribuição de renda
entre as populações dos distintos grupos de países.
A estas características da nova divisão internacional do trabalho se somam
outros elementos próprios do momento contemporâneo de reorientação do
sistema do capital, tais como a reformulação das políticas sociais e trabalhistas, a
descentralização e a focalização dos gastos sociais, a flexibilização dos contratos
de trabalho, a redução do poder sindical e o esvaziamento do quadro de direitos
sociais. Isso tudo faz com que os países de economia periférica ou semiperiférica
sofram, cada vez com maior rigor, os efeitos deletérios desta globalização.
Parece-nos desnecessário ponderar que o principal destes efeitos é o acentuado
desemprego estrutural daí resultante. Com esta configuração da divisão
internacional do trabalho, os países de centro se tornam menos vulneráveis a este
desemprego, com apenas 30% de suas ocupações mais expostas à concorrência
internacional. Por outro lado, países semiperiféricos e periféricos, ao concentrarem
suas atividades produtivas em operações de montagem mais simples e rotineiras,
ficam mais expostos à transferência destas operações e, segundo dados de
POCHMANN (2001), 70% de suas atividades são objeto de competição mundial.
Assim, temos um quadro em que, em 1999, apenas no Brasil, já tivéssemos
5,61% do total do desemprego mundial.
Diante de dados como estes, é inegável afirmar que o “mundo do trabalho”
vem passando, neste contexto de capital mundializado, por profundas mutações,
que atingem sua configuração, sua correlação de forças e suas formas de lutas
sociais27. A financeirização da economia mundial e a conseqüente subordinação
do setor produtivo aos seus interesses rentistas têm gerado uma redução do
“proletariado tradicional”, aquele caracterizado pela estabilidade e pela
especialização. Em contrapartida, aumenta o número de pessoas submetidas a
um trabalho precarizado (subproletariado moderno, part time, economia informal,
etc.) ou mesmo desempregadas.
(...) de um lado verificou-se uma desproletarização do trabalho industrial, fabril, nos países de capitalismo avançado. Em outras palavras, houve uma diminuição da classe operária industrial tradicional. Mas, paralelamente, efetivou-se uma significativa subproletarização do trabalho, decorrência das formas diversas de trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado à economia informal, ao setor de serviços, etc. Verificou-se, portanto, uma significativa heterogeneização, complexificação e fragmentação do trabalho. (ANTUNES, 2000, p. 209, grifos do autor).
A estrutura ocupacional no contexto da economia mundializada se alterou
significativamente. Acentuou-se uma perda de participação relativa das ocupações
industriais, que tem ocorrido mesmo em países do centro capitalista, dando
espaço ao crescimento do setor terciário. Analisando-se com mais rigor,
27 ANTUNES (2000) é enfático ao afirmar que, neste cenário, alterou-se profundamente o sentido
atual da compreensão da classe trabalhadora. Marcada por dimensões de diversidade, heterogeneidade e complexidade, esta compreensão deve incluir, agora, a totalidade daqueles que vendem sua força de trabalho, ou seja, desde os trabalhadores produtivos (diretamente ligados à produção de mais-valia e à valorização do capital), que encontram no proletariado industrial o seu núcleo, até os trabalhadores improdutivos, que através de formas de trabalho utilizadas como serviço, pelo setor público ou pelo próprio capitalista, garantem a dinamicidade e a sobrevivência do sistema, como um segmento em plena expansão. O autor se preocupa, ainda, em incluir nesta “noção ampliada de classe trabalhadora”, o proletariado rural, que vende sua força de trabalho para o capital nas mais diversas atividades.
percebemos, a partir das análises de ANTUNES (2000), que estas mudanças
operadas na estrutura ocupacional vieram agravar, ou mesmo recolocar em cena,
antigas questões no que se refere à configuração e às condições de trabalho: o
trabalho feminino vivencia uma exploração ainda mais intensificada, com a
precarização, a informalidade e os desníveis salariais; jovens e “velhos” (diante do
intenso desenvolvimento das forças produtivas, sobretudo no aspecto tecnológico,
pessoas com 45 anos, e sem a “devida qualificação”, já estão sendo consideradas
“velhas” para o desempenho exigido nos diferentes postos de trabalho) são
excluídos do mercado de trabalho, ampliando cada vez mais os contingentes do
mercado informal, do exército industrial de reserva e do desemprego estrutural;
crianças e adolescentes ainda são submetidos a uma inclusão precoce e
criminosa, sobretudo nos países asiáticos e latino-americanos. Este autor destaca
ainda a expansão do trabalho em domicílio, facilitada pela fragmentação do
processo produtivo que vem expandir pequenas e médias unidades produtivas,
em uma situação de completa subordinação ao capital, em condições
absolutamente precárias e ultrapassadas. O desenvolvimento capitalista
contemporâneo, no cenário globalizado, não só não resolveu seus antigos
dilemas, como também os atualizou, tornando-os mais perversos e excludentes.
No entanto, este desenvolvimento trouxe novas determinações,
complexificando o contexto sócio-político que podemos delinear. Uma destas
alterações é o crescimento e a diversificação do setor de serviços, aproximando
seus assalariados, cada vez mais, da lógica da racionalidade do mundo produtivo.
O setor terciário vem, assim, compensando a queda dos setores industriais e
agropecuário, nos âmbitos público e privado, mas não se desenvolve sem
contradições, pois o Estado tem reduzido seus serviços à população, sobretudo no
que tange ao aspecto social. O que se percebe, então, é o fortalecimento desta
esfera enquanto essencial para a sobrevivência do sistema capitalista em escala
mundial, e a sua privatização acelerada, ou seja, o seu crescimento enquanto
espaço de reprodução e acumulação do capital.
Como resposta a esta redução da intervenção do Estado no âmbito social é
que podemos compreender a expansão do trabalho no denominado “terceiro
setor”28. Abrangendo uma gama bastante diferenciada de organizações, este
setor, com um perfil mais comunitário, apresenta-se voltado, majoritariamente,
para atividades assistenciais, em um sentido “público, porém não estatal”, sem fins
diretamente lucrativos e funcionando à margem do mercado. Estas organizações
têm absorvido parcela significativa de trabalhadores desempregados pelo capital e
apresentam uma clara funcionalidade em relação ao sistema, desobrigando-o de
uma preocupação pública e social. Estes trabalhadores, no entanto, vivenciam
uma inserção precária e instável, muitas vezes não lhes garantindo a atenção de
suas necessidades sociais.
Esta caracterização contemporânea acerca da constituição da classe
trabalhadora, embora bastante complexificada, parece apontar para alguns traços
em comum entre os diferentes segmentos. O capital, em escala mundial, deu
continuidade e até mesmo ampliou as formas de exploração e de precarização,
além da intensificação do tempo e do ritmo de trabalho. Se a ideologia de um
aparente “fim do trabalho” ganha forças até mesmo no meio intelectualizado, não
28 Uma ampla bibliografia se ocupa, hoje, de descrever e de analisar o desenvolvimento deste “terceiro setor”. Apenas na intenção de exemplifica-la, citamos MONTANO (2002).
nos parece restar dúvidas acerca da intensidade do processo de valorização do
capital, que só pode ser resultado de um “trabalho social concentrado”, cada vez
mais central na sociedade.
ANTUNES (2000, p. 205) retrata, assim, esta condição da classe
trabalhadora no mundo globalizado
A classe trabalhadora, os “trabalhadores do mundo na virada do século”, é mais explorada, mais fragmentada, mais heterogênea, mais complexificada, também no que se refere a sua atividade produtiva: é um operário, ou uma operária trabalhando em média com quatro, com cinco, ou mais máquinas. São desprovidos de direito, o seu trabalho é desprovido de sentido, em conformidade com o caráter destrutivo do capital, pelo qual relações metabólicas sob controle do capital não só degradam a natureza, levando o mundo à beira da catástrofe ambiental, como também precarizam a força humana que trabalha, desempregando ou subempregando-a, além de intensificar os níveis de exploração.
O caráter transnacionalizado do capital e de seu sistema produtivo,
principalmente com as estratégias de deslocalização e de financeirização, tem
colocado as formas particulares do trabalho numa condição de subsunção e de
estranhamento ainda mais acentuada. Com a crescente desterritorialização, a luta
de classes, num patamar mais internacionalizado, fica mais “velada” e desafia o
“mundo do trabalho” a gerar respostas, estratégias de luta e consensos “globais”,
o que, até agora, parece-nos constituir um grande desafio para o conjunto da
classe trabalhadora.
E nesse terreno, como sabemos, a solidariedade e a ação de classe do capital está bem à frente da ação dos trabalhadores. Muitas vezes a vitória ou derrota de uma greve em um ou mais países depende do apoio, da solidariedade e ação de
trabalhadores em outras unidades produtivas da mesma empresa. (ANTUNES, 2000, p. 115)
Em outras palavras, poderíamos afirmar que, em um cenário de
mundialização do capital, questões como a identidade de classe, o seu
pertencimento e a sua ação coletiva ficam mediados e enfraquecidos por uma
série de elementos, que acabam tendo um caráter desmobilizador. Se vivemos em
um “mundo do trabalho” cada vez mais “proletarizado” e “assalariado”, vivemos,
contraditoriamente, em um estágio mais avançado de alienação e de
estranhamento em relação ao capital, com “patrões invisíveis”,
transnacionalizados, com os quais temos os mínimos contatos e, portanto, os
mínimos embates. Parece-nos cada vez mais verdadeira a afirmação de que os
espaços de organização da classe trabalhadora e de construção (ou
reconstrução?) de seus projetos societários ainda apresentam uma estruturação
enfraquecida para oferecer uma alternativa global à lógica do capital.
Valendo-nos nas análises que fizemos, no primeiro capítulo, poderíamos
afirmar que as condições materiais em que as classes trabalhadoras vêm hoje se
constituindo, enquanto classe, desafiam e, ao mesmo tempo, dificultam a
construção de uma vontade coletiva, capaz de impulsionar propostas e ações
alternativas. Apesar de o internacionalismo sempre ter sido uma bandeira do
movimento operário, na prática, sobretudo sob a perspectiva social-democrata,
este movimento se limitou, em termos organizativos e mesmo reivindicativos, ao
espaço nacional e nele, na maioria das vezes, realizou sua ação. Embora
tenhamos conhecimento, historicamente, de importantes iniciativas internacionais,
elas não constituíram a orientação hegemônica da organização dos trabalhadores.
Com o quadro que anteriormente traçamos de transnacionalização do capital e, ao
mesmo tempo, de “heterogeneização, complexificação e fragmentação” da classe
trabalhadora, chega-se a afirmar que qualquer ação política e reivindicativa que
esteja reduzida aos limites nacionais parecem, neste momento, insuficientes,
fazendo com que muitos teóricos recuperem a idéia de que “uma autêntica ruptura
revolucionária com o capitalismo é impossível no quadro do Estado-nação” (BIHR,
1998, p. 118). É justamente neste contexto que acreditamos na extrema
necessidade de recuperação da perspectiva “nacional-popular” elaborada por
Gramsci, a qual, de forma alguma, se limita ao nacional ou se confunde com o
nacionalismo.
Esta falta de elementos coesionadores mais amplos no interior da classe
trabalhadora parece ficar evidente quando surgem, no contexto atual, as principais
críticas ao movimento operário, no que se refere aos seus modelos
organizacionais e ações reivindicativas. Estas críticas, oriundas dos mais
diferentes setores da sociedade, levantam como um dos primeiros elementos o
estatismo característico do modelo social-democrata. Afirma-se que, no momento
em que o Estado nacional parece ter perdido sua capacidade regulatória sobre o
capital e sobre a formação social nacional, não faria mais sentido a proposta de
exercício do poder de Estado pela classe trabalhadora, a qual deveria se voltar
para ações mais imediatas e efetivas de conquista no interior da sociedade
capitalista.
Também em termos ideológicos, o movimento operário é criticado. Com o
avanço e o fortalecimento do sistema do capital em âmbito global e,
principalmente, com o “fim do socialismo real”, o que poderia ser conhecido como
uma possível “cultura operária”, enquanto finalidade de um projeto societário
alternativo, é duramente combatida, ficando o conjunto das ações políticas das
classes trabalhadoras reduzidas a uma orientação meramente reformista e
compensatória.
(...) as organizações internacionais que subsistem (...) na maioria das vezes de internacional só têm o nome. Seus congressos geralmente não têm poder algum de decisão relativamente às ações conduzidas pelas diferentes seções nacionais, que conservam então uma total liberdade estratégica. E, por isso, elas se apresentam como estruturas burocráticas da luta de classes ainda mais divididas do que suas seções nacionais. (...) O proletariado está, então, atualmente, quase desarmado para enfrentar as novas condições materiais e institucionais de sua luta de classe, em relação à transnacionalização do capital. (BIHR, 1998, p. 120).
Sem uma orientação política e ideológica alternativa e propositiva para
enfrentar os novos desafios da mundialização do capital, o movimento operário
encontra, portanto, limites efetivos quanto às suas práticas reivindicativas. Diante
do crescimento acentuado do desemprego, sobretudo estrutural, do subemprego,
da terceirização, do mercado informal, os sindicatos, enquanto instâncias
organizativas da força de trabalho empregada, vêem-se enfraquecidos em suas
capacidades de negociação, seja em torno de questões salariais ou mesmo de
melhores condições de trabalho. Pode-se afirmar que o movimento operário entra,
então, numa fase de ações defensivas, no sentido de tentar manter e garantir
mínimas condições e direitos trabalhistas, e não de reivindicar algo além do que já
foi estabelecido no contexto da social-democracia. Neste sentido, os sindicatos se
modificam, tentando “se adaptar” à nova reestruturação do capital.
Analisando o caso específico do sindicalismo inglês, ANTUNES (2000)
contribui com importantes elementos para esta discussão. Passando de um
momento em que sempre esteve associado à idéia de força e de estabilidade para
outro em que ficou conhecido como “inimigo central” do neoliberalismo, o
movimento operário inglês, sob as investidas do governo Thatcher, viu-se
profundamente atacado e reformulado. Primeiramente, verificou-se um declínio
dos índices de sindicalização, sobretudo no setor fabril, chegando-se a perceber
que “a fusão dos sindicatos tem sido uma das mais freqüentes respostas do
sindicalismo inglês, em face da desmontagem e da diminuição de seu número de
associados” (ANTUNES, 2000, p. 74). Foi drasticamente retraído, também, o
número de greves na Inglaterra, passando de uma média de 2412 greves em 1970
para 205 em 1994, as quais envolviam um número cada vez menor de
trabalhadores. Em termos de representatividade, percebemos também uma
diminuição dos espaços de reconhecimento dos sindicatos nos locais de trabalho.
“Somente 30% das novas empresas reconheciam os sindicatos, sendo 23% no
âmbito das empresas privadas” (IBIDEM, p. 75). Além disso, decresce
significativamente a amplitude das negociações coletivas e percebemos, ainda,
um processo de isolamento do movimento sindical, ou de uma maior aproximação
com o projeto neoliberal, quando se verifica um crescente distanciamento destas
organizações em relação à estrutura partidária.
ANTUNES menciona ainda algumas deliberações do Trades Union
Congress (TUC), em 1997, que demonstram a reorientação ocorrida nas
propostas práticas do sindicalismo inglês:
a) qualificar a força de trabalho;
b) dar-lhe maior empregabilidade;
c) manter parceria com a Confederação das Indústrias Britânicas e com
empresas no âmbito local;
d) colaborar com o “novo” ideário patronal, marcado pelas novas técnicas
de gerenciamento, pela aceitação das privatizações e pelo
reconhecimento da necessidade de flexibilizar o mercado de trabalho.
Tais deliberações seriam necessárias, neste encaminhamento, para
garantir uma “modernização do sindicalismo inglês”, de forma a “somar-se” à
proposta de hegemonia do capital.
Desta forma, num contexto de mundialização do capital, a necessidade de
uma unificação das classes trabalhadoras em âmbito global parece não ter
encontrado um direcionamento capaz de orientar, de uma forma geral, o
movimento operário contemporâneo, que ainda enfrenta especificidades culturais
e políticas que dificultam esta unificação. BIHR (1998, p. 121) nos indica, inclusive,
a importância destes limites para a própria dominação capitalista que
(...) lucra (em todos os sentidos do termo) com isso, e então esforça-se para manter e até reforçar essas divisões nacionais e regionais. Enfim, a DIT [divisão internacional do trabalho] hierarquiza severamente os diferentes espaços econômicos mundiais, coloca-os em concorrência e pode, em certos casos, tornar contraditórios os interesses imediatos de diferentes partes do proletariado mundial.
Como podemos perceber, a mundialização do capital trouxe consigo uma
estrutura de crise no mundo do trabalho e, conseqüentemente, no movimento de
organização das classes trabalhadoras, as quais se encontram afetadas não só
em sua formação e materialidade, mas também em “sua esfera mais propriamente
subjetiva, política, ideológica, dos valores e do ideário que pautam suas ações e
práticas concretas” (ANTUNES, 2000, p. 188). Enquanto crise de uma classe
central na produção e na reprodução da sociedade, esta acaba por se expandir
por toda a diversidade de esferas desta constituição, chegando a caracterizar uma
“crise de sociabilidade”.
Dialeticamente, portanto, esta mesma crise, que afeta o conjunto da classe
trabalhadora, faz surgir um amplo e diversificado ativismo societário,
principalmente em âmbito nacional, mas também internacional. Multiplicam-se,
como resposta às mais diversas manifestações da questão social, as experiências
de associativismo, complexificando e diversificando os aparelhos “privados” de
hegemonia da sociedade civil.
Neste momento, vale um parêntese para questionarmos alguns elementos
referentes a esta esfera da sociedade civil. Para isso, as observações de
COUTINHO (1992) nos parecem essenciais. Teríamos, segundo este autor, dois
projetos societários, para esta esfera, no conjunto das sociedades “ocidentais”, ou
seja, daquelas que, para Gramsci, apresentam uma “relação equilibrada” entre
sociedade política e sociedade civil, tendo o elemento do consenso como base de
obtenção da legitimidade. Um primeiro projeto, que o autor denomina de
“democracia de massas”, se constrói a partir de uma proliferação de movimentos
sociais de base, de um “sindicalismo combativo e politizado” e de uma “mediação
política de partidos programaticamente estruturados e socialmente hegemônicos”.
Neste projeto, ter-se-ia como objetivo a participação política organizada,
reconhecendo-se o pluralismo de interesses, mas buscando construir, a partir
dele, uma vontade coletiva majoritária, um efetivo interesse público. Em oposição
a um Estado baseado na privatização, buscar-se-ia a base em uma
democratização radical de sua estrutura, necessitando, assim, de reformas
substantivas na direção do predomínio do interesse público.
Em pólo oposto, teríamos o projeto “liberal-corporativo” (ou, simplesmente
neoliberal), onde o estímulo para a auto-organização da sociedade civil estaria
orientado para a defesa de interesses puramente corporativos, privatistas, que, em
última instância, favoreceriam a reprodução da ordem capitalista vigente. Em uma
sociedade civil deste tipo, poderíamos verificar partidos políticos ideologicamente
frágeis, com uma base social heterogênea, e sindicatos que se anunciam como
apolíticos, voltados para alcançar resultados imediatos para as corporações
profissionais que representam. Este projeto prima pela atuação do mercado na
solução dos conflitos de interesse e na atenção às demandas sociais, reduzindo o
papel do Estado como interventor econômico e “benfeitor” social. Este projeto
pressupõe uma participação social e política baixa, voltada para a atenção de
interesses personalistas e corporativos.
Esta explicação nos parece necessária para que possamos compreender
aquele impulso no ativismo social a partir dos anos 70, mas, sobretudo nos anos
90, em todo o mundo. Uma grande quantidade de diferentes associações se faz
presente nas mais diversas composições da sociedade civil, propondo práticas
alternativas que possibilitem uma intervenção sobre a ordem existente, o que não
significa, necessária e imediatamente, uma proposta de ruptura. É importante
demarcarmos, desde já, a imensa heterogeneidade que caracteriza este
movimento associativista, não apenas com relação a sua organização, mas
também quanto aos projetos societários que o constituem. Poderíamos afirmar
que o momento contemporâneo se caracteriza, em diversos países, por um
avanço de sociedades civis de tipo “liberal-corporativo”, em detrimento do projeto
de democracia de massas. Isso acontece, principalmente, pela crise de
sociabilidade que anteriormente demarcamos, onde pesa, sobretudo, o
enfraquecimento político e ideológico do projeto societário antes incorporado pelo
conjunto das classes trabalhadoras.
BIHR (1998) atribui, a estes que ele chama de “novos movimentos sociais”,
duas características mais gerais:
Por um lado, seu terreno de mobilização e as questões em jogo de suas lutas situam-se geralmente fora da esfera imediata do trabalho e da produção, para concernir a aspectos da vida social que não parecem diretamente determinados pelas relações capitalistas de produção. Por outro, seus protagonistas mantém, em geral, uma relação de indiferença, ou mesmo de hostilidade em relação às formas organizacionais e às referências políticas e ideológicas do movimento operário sob hegemonia social-democrata (BIHR, 1998, p. 143).
O principal impulso para o surgimento destes “movimentos sociais” seria o
aprofundamento de uma série de “crises sociais”, a partir das transformações
processadas no sistema do capital enquanto relação social, conforme
descrevemos anteriormente. Manifestando-se em diferentes aspectos da questão
social (realidade urbana, identidades locais, relações familiares e comunitárias,
relações de gênero, conflitos geracionais, modelos educativos, questão ambiental,
e tantas outras), uma mesma orientação fundamental estaria, portanto,
conduzindo este processo: “a maneira como essa relação social central que é o
capital informa, organiza, orienta, produz o vínculo social” na contemporaneidade
(IBIDEM, p. 147).
Estas crises, já presentes na ordem capitalista desde a fase fordista, vêm
se agravando e se complexificando com a reestruturação do capitalismo em sua
fase globalizada. Se, num primeiro momento, a intervenção estatal nestas
manifestações e, portanto, seu controle, eram mais diretos e imediatos (fase
keynesiana), com o avanço da mundialização e a crise do Estado de Bem Estar
Social, a anunciada “sobrecarga prejudicial do Estado” fez com que se
modificassem os caminhos para a solução destes problemas e para o
restabelecimento de um consenso mínimo. Assim, “o desenvolvimento e o
aprofundamento dessas crises sociais crônicas, de um lado, o fracasso de sua
tentativa de solução por intermédio de gestão estatal, de outro”, favoreceram um
maior desenvolvimento e uma ampliação destes novos organismos da sociedade
civil, os quais passaram, também, por uma refuncionalização, muitas vezes
orientada para a própria perspectiva neoliberal.
Estes movimentos e instituições, aparentemente situados fora da esfera do
trabalho e da produção29, apresentam, em geral, uma desconfiança (ou uma
descrença) para com o Estado enquanto gestor de ações públicas para o
enfrentamento dos problemas oriundos destas crises. Assim, passaram de uma
fase de ação reivindicativa em relação ao Estado, para uma fase quase
“substitutiva”, buscando garantir a reapropriação, para grupos e segmentos
29 Para BIHR (1998), existe um amplo processo de apropriação capitalista da práxis social. Por isso, estes movimentos estão apenas aparentemente fora do trabalho e da produção.
particularmente atingidos por estas crises, de melhores condições gerais de
sobrevivência.
Independentemente daquela heterogeneidade que demarcamos, estes
movimentos passaram a ser considerados, em uma ampla bibliografia, como
representantes de uma nova “força progressista, se não revolucionária, do futuro”.
No entanto, verifica-se o surgimento e a ascensão de um grande número de
movimentos que acabam por assumir e reproduzir uma orientação conservadora
(liberal) ou, no máximo, reformista (neo-social-democrata), com ações que visam,
no máximo, uma simples adequação social e cultural da sociedade ao movimento
do sistema do capital. Estes movimentos buscam se particularizar por propostas
de “parcerias responsáveis” com o poder público, fornecendo “elementos originais”
não para a solução, mas para o contorno temporário das diferentes crises sociais
crônicas. Percebemos, também, que justamente estes movimentos mais
“funcionais” ao sistema do capital se caracterizam por um alto grau de
particularismo, ou seja, de isolamento dos interesses e das ações de um grupo
com problemas específicos, aparentemente sem conexão de uns com os outros,
favorecendo o desenvolvimento de práticas estreitamente localizadas e, na
maioria das vezes, paliativas e imediatistas.
Entretanto, é impossível negar que o surgimento destes movimentos,
mesmo quando voltados para terrenos de intervenção considerados “periféricos”
quanto à relação social restrita do capital, apresentam, também, elementos
positivos que desafiam a compreensão e a luta política contextuais. Em primeiro
lugar, é importante demarcarmos que a existência destes movimentos tende a
ampliar as noções de luta de classes e de embate político, uma vez que revela
que as condições de reprodução do capital não se restringem ao econômico, mas
se estendem à totalidade das condições sociais de existência. Assim, movimentos
e instituições voltados para questões étnicas, culturais, de gênero, ambientais,
dentre outras, quando devidamente abordadas no interior de uma perspectiva de
totalidade social, demonstram que a luta contra a exploração e a dominação
capitalistas atinge terrenos e disputas que aparentemente não tem uma relação
imediata com elas.
Esta problematização também desafia e deixa claro o conjunto de limites do
movimento operário diante desta crise de sociabilidade contemporaneamente
engendrada. O capital, enquanto relação social, tem demonstrado que seu poder
se encontra difundido em várias esferas da sociedade e que a perspectiva
estratégica para superá-lo não pode estar reduzida à tomada do poder de Estado
nem à conquista restrita de melhores condições salariais ou de trabalho. Para
tanto, é preciso uma articulação dos objetivos, dos interesses e das estratégias de
atuação de diferentes “aparelhos privados” de hegemonia da sociedade civil em
torno daquele projeto de “democracia de massas” de que COUTINHO (1992) nos
falava anteriormente. Tais ponderações são necessárias porque, como já
observamos, a sociedade civil não constitui um bloco homogêneo orientado por
um mesmo projeto societário, nem do ponto de vista classista nem ideológico. Ela
é, na verdade, a esfera do pluralismo, do confronto político e ideológico, do
enfrentamento político mais amadurecido. Assim, não basta pensarmos nos
espaços de organização desta sociedade civil para compreendermos sua
complexidade, mas nos projetos que, em seu interior, se confrontam, pois são eles
que, efetivamente, definem o perfil e a configuração hegemônica desta esfera.
A partir destas considerações, vale observarmos que importantes autores,
dos quais destacamos GÓMEZ (2001), chamam a atenção, neste momento de
avanço e reconfiguração da sociedade civil, para um inédito ativismo
transnacional, que tentaria se organizar em torno de uma complexa proposta de
globalização contra-hegemônica. Assim, desde o final dos anos 90, estamos
presenciando a mobilizações organizadas por uma diversidade de forças sociais e
políticas que buscaria repensar alternativas para a globalização do capital e seus
perversos efeitos sociais30. Estas forças estariam propondo uma redefinição das
fronteiras e do sentido da política, através de um debate mais amplo do conteúdo
e das conseqüências do processo de mundialização do capital.
Este ativismo transnacional, apesar de sua evidente heterogeneidade, tem
como alvo principal de suas críticas a extensão e a profundidade das
conseqüências negativas das políticas econômicas neoliberais sobre o conjunto
da população, não só no terreno econômico, mas também político, cultural, etc.
Procura questionar e propor a reorientação, sobretudo, do poder conquistado
pelas instituições internacionais ligadas ao grande capital, tais como o FMI, o
Banco Mundial e a OMC, enquanto setores amplos de regulação, pressão e
controle dos Estados e das economias nacionais. Esta mobilização social de
âmbito transnacional, pelo menos em suas propostas originárias, coloca-se contra
estas agências, seja para combatê-las frontalmente, seja para influir nas suas
estruturas organizacionais e/ou em suas políticas concretas.
Assim coloca GÓMEZ (2001, p.18)
30 No estudo sobre este ativismo, é referência o Fórum Social Mundial, já em sua quarta experiência, e cuja dinâmica, estrutura e conformações políticas podem ser analisadas a partir das informações presentes em www.fsm.com.br.
O movimento transnacional emerge, então, durante a segunda metade dos anos 90, num contexto marcado pelas transformações estruturais do capitalismo e da política mundial e pelas múltiplas manifestações de descontentamento e resistência social que geram as políticas econômicas dominantes. No entanto, ele é o resultado de um processo de convergências progressivas e precárias, alimentado tanto por experiências setoriais de lutas passadas quanto pelas novas iniciativas de questionamento político aberto à governança global neoliberal e seu núcleo institucional mais visível.
Este autor ainda nos chama a atenção para algumas condições sócio-
históricas que teriam contribuído para o surgimento e para o desenvolvimento
deste ativismo:
a) Evolução da tecnologia de informação e comunicação, permitindo o
uso destes meios na mobilização política e na dinâmica
democratizante de contrapoder,
b) Configuração de novos centros de autoridade e de regulação para
além dos Estados nacionais, estimulando as populações de
diferentes países a influenciar em suas decisões;
c) Transformação do clima ideológico entre as elites internacionais e
transnacionais do centro, que passam a propor, diante dos custos
sociais e da fragilidade política do processo de mundialização do
capital, fórmulas mais atenuadas de liberalismo, políticas públicas
mais interventivas e maior receptividade às questões sociais
reivindicadas.
É importante observarmos que as diversas mobilizações que compõem este
ativismo transnacional não são um movimento “antiglobalização em geral”, mas
surgem e fazem parte do que se convencionou chamar de um fenômeno “mais
amplo da globalização”, compartilhando de seus problemas e demonstrando as
contradições estruturais deste fenômeno. Portanto, estas mobilizações
apresentam um potencial e, ao mesmo tempo, uma limitação que se inscrevem
“na dialética de antagonismos e conflitos inerente à configuração de um espaço
social global de poder e contrapoder em formação” (GOMEZ, 2001, p 20) e
marcado por imensas incompletudes. Assim, embora apresente um caráter
abertamente contra-hegemônico, está encoberto por grandes contradições.
(...) não são fáceis de superar os problemas analíticos, nem muito menos os políticos, na abordagem da diversidade e do pluralismo irredutível de identidades, formas organizacionais, níveis de recursos, interesses, táticas e objetivos de movimentos sociais, ONGs e grupos de ação cívica que, fazendo parte do ativismo transnacional, não são originários de uma mesma sociedade ou região. (IBIDEM, p. 22).
Assim, a pretensa “sociedade civil global”, além de não ter, para equilibrar
suas forças, algo equivalente a um Estado global ou uma comunidade política
global, também se constrói como uma arena muito mais ampla de conflitos, como
um espaço social marcado pela dialética histórica de combinações e relações de
forças hegemônicas e contra-hegemônicas. Portanto, antes de qualquer
perspectiva otimista acerca deste ativismo transnacional, é importante analisar
precisamente quais são as forças sociais que conduzem ou pretendem conduzir o
rumo desta proposta alternativa de globalização. Valem, pois, os questionamentos
de GOMEZ (2001, p. 13).
[Este ativismo] é uma manifestação inequívoca de crescimento da consciência democrática e cidadã para além das fronteiras territoriais, com implicações diretas na ascensão de uma arquitetura alternativa de governância na política mundial? Ou se está diante de processos de afirmação de identidades e interesses políticos particulares que, com não poucos componentes antiglobalizadores em geral (e não apenas antineoliberais) orientam-se com freqüência para os próprios âmbitos domésticos e produzem resultados que podem até reforçar práticas não democráticas e estruturas de desigualdade da economia política global que dizem combater?
Estas abordagens, embora tratadas de forma preliminar, nos parecem
fundamentais para compreendermos o quanto este reordenamento capitalista, em
direção a uma economia transnacional tem significado uma maior desigualdade
social para parcela significativa dos países nele inseridos. O que podemos
certamente afirmar é que, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico,
produtivo e financeiro garantido pelo modelo contemporâneo de acumulação do
capital, “a globalização do mercado não revela nenhuma tendência de igualização
econômica para a humanidade como um todo” (THERBORN, 2000, p. 79).
Em se tratando deste aspecto social em seu sentido mais restrito, o debate
mais rigoroso sobre o momento contemporâneo de desenvolvimento capitalista
num cenário globalizado insiste em chamar atenção para a contradição essencial
deste processo: um movimento que deveria minimamente remeter à noção de
integridade, de totalidade, tem significado, no conjunto da sociedade, exatamente
o seu oposto, ou seja, a divisão, a marginalização e a exclusão, com realidades de
extrema fragmentação e desintegração. Nas palavras de CHESNAIS, o que está
em desenvolvimento, no contexto global, é cada vez mais uma polarização, que
ocorre através de um duplo movimento:
A polarização é, em primeiro lugar, interna a cada país. Os efeitos do desemprego são indissociáveis daqueles resultantes do distanciamento entre os mais altos e os mais baixos rendimentos, em função da ascensão do capital monetário e da destruição das relações salariais estabelecidas entre 1950 e 1970. Em segundo lugar, há uma polarização internacional, aprofundando brutalmente a distância entre os países situados no âmago do oligopólio mundial e os países da periferia (CHESNAIS, 1999, p. 37).
Esta polarização revela, dentre outras coisas, que existe hoje uma
integração altamente seletiva, ou seja, o investimento direto dos países que
compõem a Tríade não ocorre na mesma proporção quando o alvo é o conjunto
dos países periféricos ou semiperiféricos. O capitalismo mundializado continua,
desta forma, a ampliar, numa escala cada vez maior, a desigualdade e a
heterogeneidade social entre países ricos e pobres, que, durante décadas,
sustentou a teoria de uma “era dos três mundos” (DENNING, 2005). O que antes
representava, no cenário capitalista, uma marginalização temporária e definida,
transforma-se agora em uma regra, uma condição, uma desigualdade social tão
drasticamente acentuada que se apresenta, muitas vezes, como inquestionável,
impossível de ser resolvida.
LIMOEIRO-CARDOSO (2000, p. 111) destaca outro elemento importante
deste cenário:
A desigualdade social acentuou-se drasticamente nas últimas décadas. Milhares de pessoas lutam para sobreviver sob condições extremamente precárias, não só nos confins do mundo e entre as legiões de perseguidos e de refugiados, mas também onde o capitalismo se apresenta como mais próspero.
Estes efeitos negativos da nova reestruturação capitalista se prolongam
mesmo sobre os países de economia avançada, trazendo-lhes um quadro de
conflitos e de problemas sociais que anteriormente eram julgados como
“controlados” no contexto social destes países. Esta exclusão, produzida pelo
grande impacto do capital rentista no cenário internacional, não apenas cria
“zonas de pobreza”, mas, de uma forma geral, acelera uma “disseminação” e,
muitas vezes, recoloca populações inteiras num cenário de pobreza, que agora,
evidentemente, encontra-se desvinculada da questão do desenvolvimento que
demarcou o cenário econômico dos países de capitalismo periférico na segunda
metade do século XX.
Destaca-se, como já ponderamos, o desemprego estrutural como o mais
grave elemento desencadeador deste quadro. Não se fala mais de um
desemprego conjuntural e temporário, mas de algo que se prolonga por longos
intervalos de tempo e que atinge a uma parcela cada vez mais determinada das
diferentes populações. Este fenômeno, resultado evidente das novas tecnologias e
das novas formas de organização do trabalho, ocorre paralelo à precarização das
condições de trabalho e de vida daqueles que, mesmo permanecendo inseridos
no mercado, são atingidos pelo processo de flexibilização da legislação trabalhista
e social.
Para aqueles que logram permanecer empregados, a situação também se complica. O crescimento tão significativo da mão-de-obra excedente atua clara e eficazmente no sentido do rebaixamento dos salários duma maneira geral. E todo esse processo se faz presente também no nível da formulação política, dando forma às propostas de precarização das relações de trabalho, por meio das quais se pretende reduzir ao limite mínimo e, se possível, abolir direitos e garantias que o trabalho havia conquistado no momento anterior do desenvolvimento capitalista, em que as relações de forças eram outras. (LIMOEIRO-CARDOSO, 2000, p. 115).
Neste contexto, a dicotomia norte/ sul ameaça ambos os pólos com a
“condição de pobreza” para os que não conseguem, pelos mais diferentes
caminhos, se integrar à economia mundial”. Ações emergenciais são esperadas e
propostas por parte do poder público, com vistas a criar estratégias de
enfrentamento da pobreza que sejam capazes de reordenar a estrutura societária
mais ampla e amenizar conflitos ainda compostos no âmbito nacional. O Estado,
em seu modelo neoliberal, acaba por se defrontar com uma parcela da população
que, a cada dia, depende mais das políticas sociais por ele oferecidas, ainda que
precárias e insuficientes. A necessidade de manter uma “clientela política” que lhe
garanta um consenso mínimo será um dos principais motivos para a permanência
destas intervenções públicas (LAURELL, 1995).
O redimensionamento dos negócios internacionais e mesmo a
intensificação do fluxo de capitais desde meados dos anos 80 não têm gerado,
para os países de capitalismo periférico e semiperiférico, profundas e significativas
mudanças na diversidade de seus desenvolvimentos. O que podemos observar é
que a desigualdade global entre países, e mesmo dentro de cada país, tem
aumentado consideravelmente31, neste cenário de capital globalizado.
Nos países periféricos ou semi-periféricos, observa-se, portanto, uma
preocupante contradição entre a homogeneidade na produção e a
heterogeneidade nas condições sociais. Graças às inovações tecnológicas,
organizacionais e gerenciais, estes países podem produzir bens e serviços
absolutamente compatíveis com as exigências e orientações do capital
31 Autores afirmam que o caso do desenvolvimento econômico do Leste Asiático é um fenômeno totalmente marginal por determinações econômicas e políticas que não teremos, infelizmente, a oportunidade de tratar aqui.
globalizado, garantindo, portanto, o pleno desenvolvimento do comércio exterior e
do investimento externo direito. No entanto, a força de trabalho, formal ou
informalmente empregada32, vivencia um quadro social cada vez mais
comprometedor, onde a condição de pobreza se desenvolve e se aprofunda.
Esta situação é assim descrita por GÓMEZ (2000, p. 154):
As conseqüências negativas que daí decorrem são hoje amplamente reconhecidas, indo desde o aumento do fenômeno da exclusão social e espacial (grupos e categorias sociais, zonas, países e até continentes que, rapidamente, tornam-se irrelevantes porque não conseguem integrar-se à dinâmica da economia mundial), passando pela brutal concentração de renda, o achatamento salarial, o desemprego estrutural, a flexibilização dos direitos sociais e o sentimento generalizado de insegurança no trabalho, o debilitamento das antigas identidades e formas de solidariedade de classe, e chegando até o crescimento das correntes migratórias internacionais, a intensificação da degradação ambiental, o consumismo desenfreado e o fundamentalismo reativo de afirmação de identidade dos não-incluídos.
Diante deste quadro, as recomendações dominantes, feitas pelas
instituições internacionais, insistem, ainda hoje, nos elementos básicos do ideário
neoliberal: a necessidade de se apostar no papel (auto) regulador do mercado e
nos aspectos nocivos da intervenção do Estado. Este último deve, portanto, ter
uma intervenção limitada à produção de externalidades para o pleno
desenvolvimento capitalista do mercado e a uma atuação puramente emergencial
no que tange ao enfrentamento da pobreza. SALAMA (2000) insiste em apontar
para o equívoco inerente a estas recomendações, uma vez que um crescimento
durável, capaz de modificar profundamente o desenvolvimento de uma sociedade
32 Salama (2000) nos chama a atenção para o crescimento do número de pessoas nos empregos informais de estrita sobrevivência.
não é “naturalmente” o produto de uma liberalização forte e repentina da
economia.
Muito pelo contrário, o que podemos perceber com mais clareza é que a
profunda deterioração de toda uma série de serviços públicos, sobretudo nos
países periféricos e semiperiféricos, contribuiu para o agravamento do quadro de
degradação social e de pobreza. Por outro lado, verificamos que, nos países com
uma maior capacidade estatal para assegurar um padrão de igualdade, de
segurança e de estabilidade social, os índices de desigualdade tendem a ser
menores.
Entre as economias desenvolvidas ou em desenvolvimento há uma correlação positiva entre intervencionismo do Estado e a igualdade de renda (...). E a capacidade dos Estados em fazer o que seus cidadãos ou seus dirigentes desejam, diante da crescente interdependência global, é talvez a questão mais acalorada de todos os debates acerca da globalização. (THERBORN, 2000, p. 83).
Discutir esta controvérsia acerca da “crise do Estado-nação” e a
“globalização da política” é o desafio ao qual nos propomos no próximo item deste
capítulo.
2.3 – Soberania nacional e mundialização do capital: afinal, onde está
o poder?
Uma das idéias mais difundidas no debate político contemporâneo é aquela
que apresenta os mercados financeiros internacionais e as corporações
transnacionais como as instâncias mais capacitadas para a regulação social,
construindo-se como mais fortes e mais eficazes do que os mais poderosos
Estados. Em outras palavras, parece ganhar força um movimento prático e
intelectual que torna sinônimos a “globalização da política” e a “crise do Estado-
nação”. Este último passa a ser apresentado como uma organização territorial
ultrapassada e ineficaz para a regulação das atividades econômicas nacionais e
deve assumir um papel cada vez mais periférico, tornando-se “simples autoridades
locais do sistema global, encarregadas da proteção, da infra-estrutura e dos bens
públicos considerados essenciais pelo capital internacional” (GOMEZ, 2000, p.
130).
Este debate parece apontar para uma crescente perda de importância de
unidades políticas territorializadas e “soberanas”, onde a configuração do poder
decisório mundial teria se autonomizado e perdido as referências a um território
específico. O cenário internacional estaria politicamente demarcado por diferentes
sujeitos sociais coletivos, não se podendo mais dar exclusividade ou prioridade
aos Estados nacionais, uma vez que estaríamos diante de uma realidade de
“soberania transnacional” que teria a capacidade de dissociar nacionalidade de
cidadania33.
ALMEIDA (2003, p. 67) reconhece um certo eurocentrismo nestas
afirmações, demarcadas, ademais, por um forte caráter ideológico. Em suas
palavras,
Talvez estes reparos ao paradigma “realista” no estudo das relações internacionais se centrem – e de modo exageradamente otimista – no processo europeu ocidental. É também provável que
33 LADISLAU DOWBOR (2003), ao questionar se “os EUA preocupam?”, chega a afirmar que, neste momento, todo o mundo nos preocupa, pois, “na era global, somos todos cidadãos do planeta”.
esta unilateralidade tenha contribuído para que os teóricos do “fim da soberania” e do “declínio do Estado-nação” não levem em conta a extraordinária performance do Estado nacional norte-americano no cenário internacional.
Assim, compartilhamos com este autor as afirmações de que, para
realizarmos uma análise deste momento histórico capaz de superar a perspectiva
de um “mundo do imediato”, é preciso um retorno, a partir de novas
determinações, ao paradigma do imperialismo. O mesmo movimento que fizemos,
na análise do campo econômico, nos parece necessário agora, na abordagem da
esfera política.
Este paradigma nos parece vital para que possamos evitar tanto
concepções estatocêntricas quanto globalistas acerca das sociedades
contemporâneas. As primeiras tendem a fecundar nacionalismos que se
sustentam em uma concepção acrítica e fortemente ideológica de soberania,
relacionando-a com o “Estado soberano”, representante de uma “nação” de onde
se pode abstrair a diferença e a luta de classes. As últimas, por outro lado, se
dirigem a pensar, como já afirmamos, a reconfiguração do Estado sob a
hegemonia do grande capital mundializado e das propostas neoliberais, tendendo
a visualizar a soberania e o Estado nacionais em uma fase terminal, que dará
lugar a um plano mais amplo de “política”, agora em bases transnacionais. Evitar
estas duas concepções significa, portanto, evitar o erro primário e simplório de,
para se opor à idéia da “globalização da política”, propor o retorno a um
nacionalismo sem ponderações ou críticas, como se este guardasse as
perspectivas mais desenvolvidas de conformação societária. Uma experiência
muito mais ampla de desvelamento crítico precisa ser, então, encaminhada.
O principal alvo de crítica do capital globalizado para a intervenção estatal é
o modelo construído sob a égide do Estado de Bem Estar Social, em sua versão
socialdemocrata, entendido como o mandatário da regulação econômica nacional,
do pleno emprego, do crescimento sustentado, da produção e do consumo de
massas e do compromisso de classes através de acordos tripartites (empresários,
sindicatos e Estado), compondo o que OFFE (1989) chamou de “capitalismo
organizado”. Para fazer frente a esta estrutura de regulação e intervencionismo
estatal, o conjunto de reformas econômicas e políticas neoliberais é estruturado
para reorganizar e reproduzir o sistema do capital, de forma que este possa se
afirmar, agora, no contexto globalizado, sem interferências ou controles políticos
nacionais mais diretos.
Se esta refuncionalização do Estado é hoje apresentada, ideologicamente,
como um processo irreversível, não se pode, de forma alguma, como já
afirmamos, acreditar num movimento unívoco, cujos resultados sejam
necessariamente positivos. O mesmo movimento que garante um fluxo crescente
de capitais, mercadorias, tecnologias, pessoas, idéias e valores garante também,
orientado pela lógica do sistema do capital, uma fragmentação que dá origem a
nacionalismos étnicos, fundamentalismos religiosos, guerras, desigualdades
crescentes entre países, xenofobia, racismo e pobreza. Para esta contradição
entre globalização e fragmentação, os Estados não podem continuar
apresentando uma mera atuação residual, sob pena de contribuírem ainda mais
para a “fenomenal desordem” mundial, da qual os recentes conflitos internacionais
são apenas a ponta do iceberg.
Desta forma, ambas as concepções são limitadas para a compreensão do
cenário político contemporâneo e acreditamos que, para superá-las, é preciso
recuperar uma abordagem do Estado, na sociedade capitalista, como
“organizador, inclusive no plano ideológico, da dominação burguesa de classe”.
Com este objetivo, o Estado, seja em sua versão nacional ou em sua perspectiva
“globalizada”, se construiu a partir de uma estrutura hegemônica onde sempre
tiveram papel fundamental as frações ligadas ao denominado “capital
internacional”.
É preciso, então, questionar esta configuração neoliberal do Estado a partir
de elementos históricos e conjunturais que problematizam a questão do Estado-
nação e de seu compromisso ou vinculação com bases territoriais e nacionais. A
primeira constatação a fazer é que o próprio sistema de Estados nacionais veio
“de fora”, a partir de acordos mútuos que “consagraram o princípio da não
interferência externa entre os Estados” (GOMEZ, 2000, p. 142). Assim, a própria
“doutrina da soberania” dependeu de acordos que criaram, desde cedo, uma
dimensão internacional para o poder político e para o desenvolvimento econômico
que ele buscava sustentar. Tendo em vista o caráter de classe do Estado
capitalista, ele sempre se valeu desta dimensão para fazer prevalecer os
interesses do capital, este sim, conforme estudamos, sempre internacionalizado.
A sociedade anárquica de inter-relações externas entre os estados (esse mundo de entidades auto-suficientes, em que cada uma age sob sua própria vontade, mas ficam todas limitadas pelo mútuo reconhecimento e pela obrigação de não interferir nos assuntos internos das outras) foi, assim, a pré-condição para um efetivo monopólio de poder interno (IBIDEM, p. 143).
Da mesma forma como este “estatismo” é profundamente marcado por
traços ideológicos, também o é a própria idéia conservadora de nação, que
sempre foi uma idéia construída, com a pretensão de atender a objetivos de
classe bastante específicos. O que demarca esta idéia, sob uma perspectiva
conservadora, é uma pretensa homogeneidade cultural, uma nação apolítica,
anterior à formação do próprio Estado, e que delimitaria os que compartilham de
um mesmo “conjunto comum de significados e entendimentos políticos
historicamente específicos” (GOMEZ, 2000, p. 144). Daí constrói, portanto, uma
comunidade imaginária que, na maioria das vezes, se estabelece de forma
conservadora, buscando desqualificar ou mesmo ocultar a diferença e a luta de
classes em seu interior. Assim, considerar a “nação” como o sujeito exclusivo da
soberania é ignorar a dimensão ideológica que demarca esta própria idéia.
O moderno Estado nacional, instituído a partir de um pacto internacional
claramente orientado pelos interesses capitalistas em expansão, seria constituído
a partir de princípios normativos centrais, a saber: territorialidade, onde o poder do
Estado atuaria sobre um espaço territorial fixo e exclusivo; soberania, onde ficaria
estabelecido o direito incontestado e exclusivo de supremacia para governar;
autonomia, que tornava os Estados modernos livres de qualquer intervenção ou
controle externos para conduzirem e decidirem seus assuntos internos e externos
e legalidade, que estabelecia um direito internacional para orientar a relação entre
os diferentes Estados. É interessante observarmos que tais princípios foram
estabelecidos por um pacto internacional, que pressupunha, desde o início, uma
relação entre diferentes nações que determinasse o grau de poder e de soberania
de cada Estado em particular. É preciso observar também como estes princípios
normativos são construídos a partir de uma perspectiva linear da esfera política,
como se ela não se estruturasse em razão de uma base material especifica e
heterogênea. Em outras palavras, a territorialidade, a soberania, a autonomia e a
legalidade nunca foram as mesmas para os mais diversos Estados nacionais,
relacionados, desde então, com um conjunto de relações econômicas
historicamente desiguais.
No entanto, a instituição de um Estado territorial, administrado por um poder
central, foi apenas o primeiro passo para a constituição do aparato administrativo
que hoje conhecemos e que vem sendo tão questionado pelos processos políticos
hoje em curso. Para garantir a legitimidade das ações deste Estado, era
necessária a construção de uma idéia homogeneizadora, uma base de integração
social capaz de acelerar os processos de destruição das relações pré-capitalistas
e de consolidação da burguesia como classe politicamente dominante. Assim é
que, no final do século XVIII, o Estado moderno e a nação moderna se fundem
para formar o Estado-nação. Inaugura-se aí toda a força política, social e
ideológica que o nacionalismo terá nos séculos XIX e XX. Neste sentido, é
importante recuperarmos o que afirma HABERMAS (1997, p. 281):
A consciência política da pertença nacional surge de uma dinâmica que só atingiu a população a partir do momento em que esta foi mobilizada e individualizada através de processos de modernização econômica e social que a libertaram dos laços sociais corporativos.
Para uma melhor compreensão da importância desta perspectiva nacional a
partir do século XIX, vale observarmos que ela representa, inclusive, um ponto de
inflexão no próprio sentido do termo nação. No vocabulário romano, “nação”
significava apenas um grupo de descendência comum e era um termo com
sentido negativo, usado para se referir aos pagãos, aos estrangeiros e a grupos
de indivíduos que não possuíam um estatuto civil e político, “sem rei e sem lei”.
Sua oposição era o termo “povo”, o qual se referia a grupos de indivíduos
organizados institucionalmente e que, sob esta condição, obedeciam a normas,
regras e leis comuns (CHAUÍ, 2000). Assim, enfatiza-se neste momento uma
concepção pré-política de nação, referindo-se a comunidades organizadas apenas
por relações de parentesco. Atribui-se ao termo uma naturalidade imaginária e, de
certa forma, inevitável e inquestionável. O indivíduo possui uma nacionalidade
herdada através da pertença a uma comunidade pré-política, integrada através da
descendência, da linguagem comum e das tradições comuns.
É esta a concepção de nação recuperada pelo Estado moderno e
convenientemente modificada pelo contexto de desenvolvimento das sociedades
modernas nos séculos XIX e XX. A partir de então, nação passou a significar a
fonte de soberania do Estado, a comunidade democrática intencional, a fonte de
identidade política dos sujeitos, o espaço onde ocorre a “passagem do status de
súdito para o de cidadão”, o palco da participação política efetiva. O Estado recém
formado precisava do consentimento prático da população e foi, aos poucos,
incorporando o termo nação ao vocabulário político com este outro significado: a
nação construída através da responsabilidade, do trabalho, do envolvimento de
todos com a sua prosperidade. Do “princípio da nacionalidade” aos dilemas da
“questão nacional” 34 , fica claro que
Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um lado, incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal; de outro, obter a lealdade dos habitantes ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, a luta no interior de cada classe social, as tendências políticas antagônicas e as crenças religiosas disputavam essa lealdade. (CHAUÍ, 2000, p. 17).
É no contexto desta redefinição da questão nacional que a perspectiva da
cidadania é definitivamente incorporada como condição daqueles que
compartilham de um sentido de nacionalidade e de pertença a um Estado.
Posteriormente, a este sentido somou-se o status de pessoas dotadas de direitos
e de deveres ou de responsabilidades cívicas para com sua comunidade.
Um “nacionalismo adquirido”, nos termos de HABERMAS (1997) passa a
ser o principal elemento de uma identidade coletiva propícia ao papel de cidadão.
Tal nacionalismo vai encaminhar a prática das pessoas no processo de
participação na vida pública e de luta pela conquista de seus direitos civis,
políticos e sociais. É no interior das nações, no desenvolvimento destes dois
séculos, que os diferentes grupos, classes e movimentos sociais procurarão
alcançar melhores condições sociais de vida, maior participação política,
liberdades individuais, garantias democráticas de autonomia e controle sobre suas
34 Valendo-se das observações de HOBSBAWN, CHAUÍ (2000, p. 16) mostra que a incorporação do debate sobre nação no vocabulário político foi sendo feita gradativamente a partir de 1830. Assim, ela estabelece três períodos deste processo: 1) 1830 a 1880, quando se fala em “princípio de nacionalidade”; 2) de 1880 a 1918, fala-se em “idéia nacional” e 3) de 1918 a 1950, quando a ênfase é na “questão nacional”.
próprias vidas e das coletividades nas quais estão inseridos. Nas palavras de
GOMÉZ (2000, p. 53)
(...) a democracia como forma de governo e a cidadania democrática como meio privilegiado de integração social na comunidade política estão inexoravelmente, “territorializadas” em virtude de sua vinculação histórica e teórica com a figura do Estado-nação, e conseqüentemente, com a ordem internacional baseada nos princípios e normas de Vestfália.
Questões como a ampliação ou a redução de direitos
sociais, a extensão do sufrágio, as virtudes cívicas
necessárias ao cidadão, a construção de uma esfera pública,
a noção de bem público, a existência de grupos oprimidos a
demandarem um tratamento diferenciado, tudo isso e outros
tantos dilemas das diferentes concepções de cidadania
surgem e se constituem como problematizações no interior
do Estado-nação e, até as últimas décadas do século XX,
serão por ele enfrentadas.
A possibilidade e a necessidade de retomarmos os
elementos-chave do debate sobre o imperialismo se colocam
neste momento e apresentam, desde então, uma contradição
substancial. Por um lado, a idéia construída de um
nacionalismo ocidental, que fortalece laços pré-políticos, mas
que, ao mesmo tempo, estabelece elementos de pertença e
de exclusão em limites territoriais e políticos absolutamente
rígidos. Por outro, a rigorosa proposta do imperialismo
enquanto processo de acumulação capitalista em escala
mundial, dividindo o mundo em esferas de influência e de
dominação das grandes potências da Europa em uma
característica luta intercapitalista. O capitalismo, mesmo no
momento de hegemonia da perspectiva do Estado-nação, se
sustentou por relações internacionais de dominação
econômica e a atenção aos seus interesses sempre foi
prioridade no cenário marcado pela orientação e pela prática
imperialistas.
A própria perspectiva do Estado-nação, somada aos elementos do
nacionalismo e da democracia participativa, que a lógica do capital globalizado
insiste em desqualificar é, em si, uma perspectiva absolutamente questionável.
Em primeiro lugar, porque tal comunidade política é um ideal que nunca se
realizou completamente, pois o trinômio soberania/ nacionalismo/ democracia foi
repleto de momentos ambíguos, em que se combinaram elementos de coerção,
persuasão ideológica, limites à participação e prevalência de interesses
imperialistas. Em segundo lugar, porque, de fato, construiu-se historicamente um
sistema internacional que definiu, ainda que de maneira velada, as orientações
políticas, econômicas e sociais nos mais diversos territórios, fazendo com que a
soberania e a autonomia dos Estados nacionais fossem constantemente
relativizadas. Este sistema internacional, como podemos ponderar, foi construído
e se encontra sustentado pela lógica do capital e a partir dela é que se
desenvolveram os consensos, os dissensos e as correlações de forças que
orientaram até mesmo todo o período do “capitalismo organizado”.
Portanto, falar da “crise do Estado-nação” é um risco, uma vez que oculta
estas assimetrias e estes embates hegemônicos que acompanharam as relações
capitalistas internacionais. É preciso, assim, recuperar a idéia de que uma série de
determinações externas às formações sociais nacionais sempre orientou os
Estados nacionais e que isto persiste até os dias atuais. É uma ilusão pensar que,
diante deste novo momento de um velho imperialismo, todos os Estados perderam
soberania e todos os territórios se desmancharam na onda da globalização. Valem
os questionamentos de ALMEIDA (2003, p. 72)
Um mundo sem soberania na época da hegemonia do “império” americano? (...) Fim dos territórios quando existe um muro nada virtual para controlar o ingresso de proletários, ou, na expressão de Michael Löwy, “pobretários”, no território da maior potência planetária? Fim da soberania do Estado nacional, quando os próprios dirigentes da política externa norte-americana explicitam que lhes cabe decidir quando ou não atuar segundo deliberações tomadas no interior da ONU?
O momento do Estado nacional foi, portanto, o momento em que a
dominação burguesa necessitou se apoiar na ideologia da “soberania do povo-
nação”. Da mesma forma, quando esta ideologia não mais responde aos
interesses do grande capital, cabe apresentá-la como algo anacrônico e
ultrapassado, onde soberania deve estar, portanto, subordinada a proposta de
“modernização” e “atratividade para o mercado”. Assim, estatismo e globalismo
são duas faces de uma mesma moeda, disposta a dar sustentação política ao
pleno desenvolvimento do sistema do capital. A partir destas idéias, ALMEIDA
(2003) nos chama a atenção para o risco de “surtos acríticos de estatismo” que
pode atingir, inclusive, os setores mais progressistas de uma sociedade.
Diante destas considerações, quais seriam, então, as verdadeiras
particularidades contemporâneas da tão divulgada “globalização da política”? Até
que ponto ela demarca, realmente, uma nova fase nas relações políticas em todo
o mundo ou até que ponto ela é apenas mais um momento de reorientação
ideológica da política sob a hegemonia do sistema do grande capital?
Neste que preferimos chamar de “novo cenário imperialista”,
pensar a configuração do Estado e da política, sem cair
naquele risco de “estatismo”, significa, acreditamos,
problematizar estas diferentes relações hegemônicas, intra e
entre nações, configurando-as no contexto de
desenvolvimento capitalista que anteriormente demarcamos:
Estado, sociedade civil e política estão, agora, mais vivos do
que nunca, embora reconfigurados, e constroem novos e
constantes enfrentamentos.
Um elemento relevante que podemos observar neste cenário é a expansão
de padrões de internacionalização dos processos decisórios e de mundialização
das atividades políticas. Da mesma forma como orientam as economias nacionais,
as organizações e instituições internacionais têm assumido, com muito mais
freqüência e intensidade do que no período anterior, o poder de decisão sobre as
regras e os princípios políticos de cada país. Constituem verdadeiros “diretórios
globais” que, tendo em vista o acirramento da interdependência econômica,
impõem suas condições, principalmente aos países de capitalismo periférico e
semiperiférico.
Assim explica GOMEZ (2000, p. 160)
(...) emergiram novas formas de política multilateral e transnacional, com diferentes estruturas decisórias envolvendo governos, organizações intergovernamentais e uma vasta gama de grupos de pressão transnacional e organizações não-governamentais. (...) Nesse universo heterogêneo de formas associativas destacam-se aquelas organizações e agências que, pela centralidade das questões estratégico-militares e econômicas abordadas, revelam uma clara estrutura e exercício assimétrico de poder sobre o controle das regras, recursos e políticas de alcance global.
Como um dos fatores fundamentais neste processo de internacionalização
dos padrões políticos decisórios, destaca-se o fortalecimento do chamado “direito
internacional”. Este se caracteriza por um sistema de regulação que reconhece
poderes, direitos e deveres que se colocam acima da configuração nacional de
cada Estado, tendo conseqüências diretas sobre a ação dos indivíduos e da
própria sociedade civil. GOMEZ (2000) destaca três áreas que teriam hoje este
alcance global: direitos humanos, democracia política e meio ambiente.
Se o reconhecimento destes “direitos internacionais” pode indicar um ponto
positivo no processo de globalização em curso, apontando para a possibilidade de
uma emergente “sociedade civil internacional” e uma “política global a partir de
baixo”, isto não ocorre sem contradições. Parece-nos ainda extremamente frágil
falar de uma internacionalização de direitos quando estes ainda estão submetidos
e limitados pela lógica do capital. Assim, ainda vivemos um momento em que não
se alcançaram, em nenhuma das três áreas, mas sobretudo no que tange aos
direitos humanos, condições mínimas para uma efetiva tutela internacional,
faltando não só uma institucionalização destes direitos, como também uma
orientação unívoca do que realmente possa compô-los. Assim, também acontece
com a noção de uma “verdadeira democracia política” internacionalizada, onde
percebemos não só governos abertamente antidemocráticos, mas também
defesas não consensuais em torno do que seria uma “nação democrática” e
relações marcadamente ditatoriais nas relações entre os Estados. No caso do
respeito ao meio ambiente, isto se torna ainda mais evidente, uma vez que,
apesar de toda a movimentação planetária em torno de sua defesa, vivemos uma
verdadeira “crise ecológica” (BIHR, 1999), com a exploração cada vez mais
acelerada dos recursos naturais, os constantes riscos de desastres ambientais,
ameaças de utilização de armas nucleares e relações, também neste sentido,
orientadas pelo padrão imperialista.
Desta forma, se muito vale a mobilização internacional em torno destas
questões, ela ainda está longe de produzir efeitos significativos no cotidiano da
vida social nos mais diferentes países, sobretudo quando não se unifica em torno
de um projeto societário alternativo ao sistema do capital. Poderíamos inclusive
afirmar que esta mobilização ainda se localiza no âmbito do que Gramsci
chamaria de um “subversivismo esporádico”, carecendo de significativos
elementos para alcançar uma necessária organicidade.
Este debate conduz a questionamentos relativos à configuração e à defesa
da democracia política no quadro deste capitalismo globalizado. Em outras
palavras, quais seriam hoje os centros de poder e que classes ou segmentos
teriam, democraticamente, participação e força política em sua dinâmica? Este
processo de mundialização do capital, como tivemos a oportunidade de observar,
se estabelece sobre um suposto distanciamento entre o poder econômico e o
espaço político. O primeiro se expande e se fortalece com um alcance planetário
cada vez mais intenso, onde as grandes corporações financeiras conquistam
poderes cada vez maiores e mais amplos. Por outro lado, os principais jogos e
recursos de poder político ainda continuam restritos às fronteiras territoriais, e a
democracia só se sustenta como forma de governo legítima nos limites do Estado-
nação.
O que se questiona, portanto, é que alcance efetivo tem a democracia
quando está condicionada à posição que os Estados ocupam na hierarquia política
e econômica global, quando a maioria dos Estados se encontra reduzida em sua
capacidade de ação em torno de políticas autônomas. Assim questiona BORON
(1999, p. 34)
Como compreender, à luz das normas democráticas, que há alguns [mercados] que votam todos os dias, ao passo que a esmagadora maioria da sociedade o faz uma vez a cada dois anos? Até que ponto pode ser considerado democrático um Estado que consente com tamanha desigualdade no exercício dos direitos políticos. No melhor dos casos, se trataria de uma democracia sumamente defeituosa, apenas uma tanga para dissimular a vigência de um regime fortemente oligárquico em sua estrutura e funcionamento.
Desta forma, apesar da grande multiplicidade de sujeitos coletivos que se
organizam contemporaneamente “para além do Estado” e apesar de uma
reestruturação da agenda política internacional, caracterizada por novas tensões,
contradições e articulações, percebemos o risco de um esvaziamento efetivo do
debate e da ação política, mesmo num contexto de aparente tendência à
universalização da democracia. Constrói-se, neste cenário político,
(...) um poder sem sociedade, que tende a engendrar sociedades sem poder e Estados em crise, e que desacredita a política submetendo-a às exigências de mobilidade, flexibilidade, privatização, desregulação, redução dos gastos públicos, sociais e salários, vale dizer, tudo aquilo que é considerado indispensável para o livre jogo da lei do mercado. (GORZ, apud GOMEZ, 2000, p. 122-123)
Esta reorientação estrutural da política, em âmbito internacional, questiona
as bases tradicionais sobre as quais estávamos acostumados a pensar o Estado,
a sociedade civil e a estrutura societária mais complexa. Se for verdade que o
capitalismo, mesmo quando alcança sua configuração mundializada, não dispensa
a figura do Estado, ele o rearticula com fronteiras cada vez mais porosas. Estes
Estados, que guardam, mesmo assim, imensos poderes, encontram-se
submetidos a uma multiplicidade de demandas, questionamentos e
condicionamentos, com normas e compromissos internacionais, com novas
competências, recursos de poder e modos de coordenação. Além disso, ao se
constituírem como o locus onde se revelam os efeitos sociais perversos da
globalização, são desafiados, por diferentes sujeitos coletivos, a apresentarem
respostas que estejam além das práticas meramente emergenciais e apontem
para a construção de efetivos projetos societários alternativos.
A política se recoloca, então, como a esfera da representação de interesses
e, na análise de diversos autores, o desafio é reconstruí-la na perspectiva de uma
“outra globalização”.
Ora, rejeitar a globalização, pretender resistir a ela nacionalmente, conduz infalivelmente a capitular frente a esta globalização. Não é contra a globalização que tem que se lutar para procurar sair dela, é no contexto da globalização em curso que é preciso lutar por uma globalização diferente. A resistência ao capital transnacional
só pode ser ela mesma transnacional; a resistência aos atores desta globalização exige, ante tudo, atores de outra globalização, guiados por uma visão, uma solidariedade, um projeto de civilização planetária. (GORZ apud GOMEZ, 2000, p. 125-126)
É nesta orientação que se insere, organizada em torno do que se
denominou de uma perspectiva “republicana cosmopolita”, parcela significativa
daquela “sociedade civil global” de que falávamos anteriormente, que defende a
necessidade de “civilizar e democratizar a globalização”, criando-se estratégias de
autoridade, legitimidade e participação política capazes de se sobrepor e, até
mesmo, regular a estrutura do capital mundializado.
Esta perspectiva, na análise de GOMEZ (2000), recupera a idéia de uma
comunidade política coletivamente autodeterminada, porém não mais a identifica
como localizada exclusivamente nas fronteiras nacionais. A emergência de vários
“lugares de poder” e a politização crescente de uma série de “questões-chave
supranacionais” apresentaria, assim, a necessidade de um duplo processo de
democratização, que atingisse, ao mesmo tempo, o âmbito nacional e os âmbitos
regional e global. Trata-se, portanto, de potencializar estes diversificados “espaços
de poder”, garantindo representação, participação e poder de deliberação para
assegurar a expansão de uma “nova esfera pública”, que possa envolver as
questões relevantes em âmbitos ampliados. No entanto, a potencialização de
amplos setores desta “sociedade civil global” não pode estar restrita ao que
Gramsci denominou de “pequena política”, ou seja, a questões “parciais e
cotidianas” que pouco ou nada interferem no direcionamento mais amplo, na
“grande política”, que, exercida exclusivamente pelos grupos e classes
dominantes, possibilitam as macro orientações de uma sociedade. Nas palavras
de CAMPIONE (2003, p. 61)
A dispersão, a falta de articulação com outros espaços que não os do próprio setor ou “tema”, o isolamento e a inorganicidade – coisas que muitos saúdam em nome da diferença ou da “tolerância” – só podem levar à conservação da sociedade existente. (...) As organizações populares precisam reagir em face das fortes pressões em favor de sua “domesticação”, de seu enquadramento nos limites de uma “governabilidade” entendida basicamente como um sistema em que as classes subalternas podem exercer sua liberdade de organização e mobilização, mas desde que se abstenham de tudo aquilo que possa perturbar as relações de poder existentes.
A formação e o fortalecimento desta “sociedade civil global” teriam como
orientação, em primeiro lugar, uma crítica à ordem hegemônica global e a defesa
da ampliação das fronteiras políticas, superando as “percepções de
estranhamento com outros povos”. Assim, estariam colocadas as bases para a
constituição de cidadãos e de instâncias de autoridade política capazes de
transcender as fronteiras e desencadear processos de democratização e de
controle dos centros mundializados de poder econômico, financeiro e político.
Seria colocada, aqui, a necessidade de se compreender, com Gramsci, que “a
história é sempre a história mundial”, ou seja, de que existe, entre e acima das
diferentes nações, um marco comum, um terreno político, econômico e cultural
compartilhado que deve ser recuperado, no momento atual, a partir de um
empenho histórico-crítico que, acreditamos, permanece ausente.
Após a “euforia globalizante dos anos 80” e suas primeiras críticas mais
estruturadas na década de 90, podemos afirmar que esta “democracia
cosmopolita” ainda permanece como um projeto, carente de espaços mais efetivos
de controle e de propostas concretas para a realização de uma “globalização
alternativa”. Entendemos também que recolocar o debate acerca do nacional-
popular, nos termos da análise gramsciana, pode representar um importante
movimento de reencontro com esta “história mundial”, que, partindo do nacional
enquanto particularidade, não se limita a ele, mas pensa em supera-lo
dialeticamente. Entendemos que, para o fortalecimento desta proposta, as
questões e os desafios próprios da esfera cultural são de extrema relevância.
Sobre eles é que iremos tratar no próximo capítulo deste trabalho.
3 Globalização da cultura? Ou cultura da
globalização? Os desafios
contemporâneos para a categoria
nacional-popular
Os elementos anteriormente analisados acerca do
movimento contemporâneo de acumulação do capital nos
aproximam do debate relativo à esfera cultural e nos fazem
recuperar, da perspectiva gramsciana, a concepção de bloco
histórico, ou seja, a idéia de que uma estrutura sócio-
econômica determinada desenvolve, em seu interior, a
necessidade de uma superestrutura político-ideológica,
capaz de garantir à classe hegemônica os elementos de
domínio e direção que lhe dão sustentação. Afirmamos que
este desenvolvimento se dá em seu interior porque este
aparato ideológico já se constitui como inseparável da base
sócio-econômica. A partir da constituição da sociedade como
uma totalidade, estrutura e superestrutura se mostram como
elementos indissociáveis.
Em Gramsci, portanto, percebemos uma superação concreta
da visão dicotômica entre estrutura e superestrutura, onde
esta última seria apenas um reflexo e/ ou um efeito da
primeira. Para este autor, um todo orgânico se configura a
partir da articulação destas duas esferas, definindo,
sobremaneira, a prática política das sociedades que ele
denomina como ocidentais.
Por isso, Gramsci é, muitas vezes, reconhecido como
um “teórico das superestruturas”, pois se preocupa
continuamente em chamar a atenção para o fato de que é
preciso analisar, no contexto de desenvolvimento de uma
sociedade, a “maneira como um sistema de valores culturais
impregna, penetra, socializa e integra um sistema social”
(PIZZORNO, apud PORTELLI, 1977, p. 16). Este momento
tem relação direta com as estratégias de luta hegemônica,
pois nele se pode compreender como se desagrega a
hegemonia de uma determinada classe e como se edifica um
novo sistema, capaz de dar origem e sustentação a outro
bloco histórico.
A concepção gramsciana de bloco histórico nos parece
relevante, portanto, para compreendermos que o cenário
sócio-econômico da “globalização” dispõe e necessita de um
momento superestrutural, ou seja, de um universo ideológico
que, pelos mais diferentes caminhos, garanta a continuidade
do quadro hegemônico que então se desenha. Este conjunto
de ideologias está, portanto, diretamente vinculado às
classes sociais em luta no cenário contemporâneo,
organizando os diferentes grupos sociais e dirigindo-os de
acordo com as condições sócio-econômicas que tomam
lugar nos dias de hoje. É através deste aparato ideológico,
como podemos observar, que os homens podem adquirir
consciência das relações sociais que os envolvem e, ao
mesmo tempo, se posicionar com relação a elas,
conformando-se ou desenvolvendo alternativas ao que está
colocado. É neste sentido que afirmamos, desde já, a
existência de uma “cultura da globalização”, mais que uma
“globalização da cultura”.
Estabelecido seu vínculo com a estrutura, as ideologias e atividades políticas tornam-se assim o verdadeiro terreno onde os homens tomam consciência dos conflitos que se desenvolvem no nível da estrutura, o que lhes confere um valor “estrutural” e confirma a noção de bloco histórico em que justamente as forças materiais são o conteúdo e as ideologias, a forma. (PORTELLI, 1977, p. 32)
É no interior deste debate que podemos compreender
os elementos constitutivos do que se convencionou chamar
de “globalização da cultura”. A expressão, e suas principais
variantes, como “cultura global” e “cultura mundo”, guardam
inúmeras problematizações que são determinantes para que
possamos analisar, com elementos mais precisos, o contexto
societário no qual estamos contemporaneamente inseridos.
A cultura, como já observamos anteriormente, em seus mais
diferentes níveis de compreensão, constitui um elemento
ideológico de extrema importância para as lutas sociais que
se desenrolam contemporaneamente.
O debate sobre este tema está, portanto, longe de se
construir em uma direção unívoca. Muito pelo contrário, ele
envolve amplas e contraditórias ponderações, que lhe dão
um caráter mais dinâmico e nos permitem compreender com
mais precisão as determinações históricas que o compõem.
O que pretendemos neste capítulo é, desta forma, apresentar
os principais elementos deste debate, conduzindo-os para
problematizar nosso objeto mais específico, qual seja, a
contemporaneidade da categoria nacional-popular envolvida
pelo cenário da globalização.
Antes, porém, de entrarmos mais diretamente nestas
discussões, vale realizarmos algumas observações
preliminares sobre a temática que nos desafia. Não restam
dúvidas de que a cultura representa, no cenário
contemporâneo, um elemento de extrema significação para
as lutas e os embates que hoje se desenvolvem.
CANCLINI (2003) observa que a cultura constitui a
esfera que, na constituição do ser social, lhe permite um
duplo e essencial movimento. Em primeiro lugar, como
esfera do conhecimento, a cultura se apresenta como um
espaço privilegiado para se “entender o real” com alguma
objetividade, traçando uma contextualização mais ampla da
realidade e dos elementos que a compõem. Em outras
palavras, é através da cultura que podemos conhecer e
problematizar o processo de globalização em curso. No
entanto, a importância da cultura não se limita a esta
capacidade. Ela é, também, esfera de transformação, ou
seja, de uma insatisfação, gerada pelo conhecimento, com o
quadro que se constrói, despertando o interesse pela
inovação e pela mudança. Num contexto de “mundo
globalizado”, a cultura permanece com uma capacidade de
estranhamento e, portanto, de reflexão crítica, que expressa
e traz à tona o que este cenário tem de fratura e de
segregação.
Daí advêm as dificuldades e os embates que envolvem
esta esfera da cultura no cenário da globalização. Por
inúmeras razões, que iremos abordar ao longo deste
capítulo, é difícil hoje tanto conhecer quanto transformar:
Para saber o que se pode conhecer e administrar, ou o que tem sentido modificar e criar, cientistas e artistas têm de negociar não só com mecenas, políticos ou instituições, mas também com um poder disseminado que se oculta sob o nome de globalização. Costuma-se dizer que a globalização atua por meio de estruturas institucionais, organismos de toda escala e mercados de bens materiais e simbólicos mais difíceis de identificar e controlar que no tempo em que as economias, as comunicações e as artes
operavam sempre dentro de um horizonte nacional. Hoje, Davi não sabe onde está Golias. (CANCLINI, 2003, p. 9).
Criar uma “cultura da globalização” ou, por outro lado,
uma “cultura global” se apresentou, desde o princípio,
portanto, como uma necessidade para o capital
mundializado. Esta esfera representava a possibilidade de
imprimir, ideologicamente, uma orientação dominante ao que
os diversos grupos e classes sociais poderiam imaginar,
defender e esperar da “globalização” em curso. Assim,
“muitos globalizadores vão pelo mundo simulando a
globalização” (IBIDEM, p. 11) e buscando redirecionar, sob
uma ótica dominante, os conflitos culturais advindos da
desigualdade de acesso à “economia global”. Daí se
compreende elementos como o avanço e a aceleração dos
intercâmbios midiáticos, o incremento e o desenvolvimento
incontrolável da indústria cultural, agora com padrões
transnacionais de competência, o vazio político e informativo
dos meios de comunicação de massas e o acirramento da
dependência cultural, como demonstram os dados abaixo:
A concentração nos Estados Unidos, Europa e Japão da pesquisa científica e das inovações em informação e entretenimento aumenta a distância entre o Primeiro Mundo e a produção raquítica e desatualizada das nações periféricas. Mesmo em relação à Europa, tem-se agravado a desvantagem da América Latina, como se verifica em relação ao desenvolvimento demográfico: nosso continente é responsável por 0,8% das
exportações mundiais de bens culturais, tendo 9% da população do planeta, ao passo que a União Européia, com 7% da população mundial, exporta 37,5% e importa 43,6% de todos os bens culturais comercializados. (CANCLINI, 2003, p. 22). Este processo não se constrói, no entanto, em uma
única direção. Sendo a globalização um processo
diversificado e desigual, como já tivemos a oportunidade de
demonstrar, a existência de uma possível “cultura global”
também encontra fortes e importantes resistências. Esta
esfera, sobretudo no que se refere a valores simbólicos e
significações, traz à tona o que a globalização tem de utopia
e o que ela, sendo desenvolvida sob o jugo do capital, não
tem capacidade de integrar.
O exemplo concreto da União Européia ilustra com clareza
estas afirmações. Apesar do grande número de programas
educativos e culturais que abrangem os países membros e
que buscam criar uma identidade simbólica “européia”, os
diferentes governos ainda não conseguiram trabalhar de
forma satisfatória com a heterogeneidade, as diferenças e os
conflitos que parecem irredutíveis a esta identidade
homogênea.
A cultura deixa claro, portanto, que persiste uma fração
de dimensões significativas entre a globalização que os
mercados e os governos entendem e divulgam e aquela que
os cidadãos vivenciam em seu cotidiano. As diferenças
culturais não se dissolvem com meros acordos econômicos
de integração, sobretudo quando estes reafirmam e
aprofundam um quadro de tantas disparidades sociais e
econômicas. Muito pelo contrário, estas diferenças culturais
não só se afirmam, como também colocam em cena críticas
e interesses que se unem àqueles de ordem política,
econômica ou social no momento de construção de esferas
públicas supranacionais.
Assim, por caminhos e motivos bastante diferenciados,
a cultura não se manteve alheia ao processo de globalização
em curso, servindo, muitas vezes, como elemento de
reorientação e de reordenamento das forças hegemônicas
neste processo.
Um dos principais obstáculos para que os cidadãos acreditem nos projetos de integração supranacional são os efeitos negativos dessas transformações nas sociedades nacionais e locais. É difícil obter consenso popular para mudanças nas relações de produção, comércio e consumo que tendem a depreciar os vínculos das pessoas com seu território nativo, a suprimir postos de trabalho e a achatar os preços dos produtos locais. O imaginário de um futuro econômico próspero eventualmente suscitado pelos processos de globalização e integração regional é muito frágil se não se leva em conta a unidade ou diversidade de línguas, comportamentos e bens culturais que dão sentido à continuidade das relações sociais. (CANCLINI, 2003, p. 24)
Partindo desta compreensão mais dinâmica acerca da
dimensão cultural dos processos de globalização hoje em
curso, podemos identificar diferentes posições acerca deste
debate. Tentamos organizá-las em dois grandes blocos, a
partir da compreensão mais ampla ou mais restrita do que
podemos chamar de “globalização da cultura”. Vale
observarmos cada uma destas abordagens.
3.1 – A abordagem hegemônica da cultura na globalização: a
homogeneização de padrões e referências culturais
Uma primeira perspectiva acerca dos determinantes culturais
do processo de globalização em curso trabalha com a idéia
de que o contexto contemporâneo e os “avanços” percebidos
nos mais diferentes campos do universo cultural têm
construído a possibilidade de a uma crescente
homogeneização dos elementos culturais dos diversos
grupos e classes sociais, nas mais diversificadas realidades
nacionais. A orientação-chave desta perspectiva é aquela
emergência de uma “sociedade global”, da qual tratamos
anteriormente, resultante de processos globais que
ultrapassam as vivências nacionais e locais de grupos e
classes sociais e que as superam em termos qualitativos.
Independentemente de suas vontades, os homens se
tornaram “cidadãos do mundo”, a perspectiva global penetrou
o cotidiano de todos e reorientou a organização cultural das
sociedades atuais, as quais se encontram, agora,
perpassadas por uma “vivência mundializada”. Afirma ORTIZ
(1994, p. 8)
Marlboro, Euro Disney, fast-food, Hollywood, chocolates, aviões, computadores, são os traços evidentes de sua presença envolvente. Eles invadem nossas vidas, nos constrangem, ou nos libertam, e fazem parte da mobília de nosso dia-a-dia. O planeta, que no início se anunciava tão longínquo, se encarna assim em nossa existência, modificando nossos hábitos, nossos comportamentos, nossos valores.
Segundo esta perspectiva, o “mundo” se apresenta
agora como uma nova categoria analítica, com uma nova
dimensão. Ele não representa mais apenas a “soma de
realidades nacionais”, onde cada uma delas tinha sua
autonomia e independência, embora estivessem interligadas
por um amplo leque de relações. Ele se apresenta como um
“sistema mundo”, um elemento constitutivo de vivência e de
reflexão que impõe novos desafios teóricos e práticos.
No que tange ao universo cultural, esta nova categoria
traria elementos significativos de reorientação. As novas
relações econômicas e sociais nas quais estamos inseridos,
agora em uma escala global, materializariam a possibilidade
de emergência de uma “cultura global” ou de uma
“globalização da cultura”. Em outras palavras, o homem,
enquanto “cidadão do mundo” teria, pela primeira vez na
história da humanidade, a oportunidade de construir valores,
hábitos, representações, costumes, reflexões, críticas e
questionamentos que seriam oriundos de sua inserção não
em um espaço local ou nacional, mas de uma suposta
integração cada vez maior da “sociedade global”. No
interior desta discussão, esta perspectiva aponta para um
conjunto de transformações societárias que estariam criando,
para a humanidade em geral, o que poderíamos chamar de
“referências culturais globais”. É importante observarmos
minimamente o debate acerca destas transformações no
universo cultural.
A própria idéia de globalização já aponta para
reorientações e novas determinações no que se refere às
noções de espaço e de tempo, agora materialmente
menores. Por diferentes caminhos, ouvimos as posições que
reconhecem um processo de “compressão-aceleração do
mundo”, onde o conjunto das novas tecnologias disponíveis
incide diretamente sobre estas noções, criando a expectativa
da integração e da sincronia. As pessoas estariam, então,
mais próximas, convivendo em um mundo que, em termo
simbólicos, estaria cada vez menor e mais parecido, o que
facilitaria os contatos, a mobilidade das fronteiras e a diluição
da oposição entre o autóctone e o estrangeiro.
A desterritorialização da produção, bem como o maior
fluxo de mercadorias e de pessoas, estabelece uma aparente
dinâmica onde o espaço se esvazia de seus conteúdos
particulares, os lugares se globalizam e constroem um
universo habitado por referências compartilhadas:
corporações transnacionais, produtos mundializados, marcas
facilmente identificáveis. Neste processo em que cada local é
capaz de revelar o mundo, o mercado parece ser o elemento
homogeneizador, capitalizando determinados signos e
padrões de consumo mundialmente reconhecidos e aceitos.
Esta experiência de coabitar um mundo mais parecido
traria para os homens, pela primeira vez, a possibilidade de
compartilhar também de uma mesma cultura, desta vez,
mundializada. ORTIZ é um dos autores que acredita nesta
possibilidade e afirma, inclusive, que o mais importante, para
esta cultura, é a sua especificidade, é a sua capacidade de
fundar uma nova maneira de “estar no mundo”, a partir de
novos valores e de novas legitimações. Não só os objetos,
mas também as referências culturais devem se desenraizar,
tornando-se mundialmente inteligíveis.
O processo de mundialização é um fenômeno social total que permeia o conjunto das manifestações culturais. Para existir, ele deve se localizar, enraizar-se nas práticas cotidianas dos homens, sem o que seria uma expressão abstrata das relações sociais. Com a emergência de uma sociedade globalizada, a totalidade cultural remodela, portanto, sem a necessidade de raciocinarmos em termos sistêmicos, a “situação” na qual se encontravam as múltiplas particularidades. (ORTIZ, 1994, p. 30-31).
No conjunto destas transformações contemporâneas, vale
destacar o redimensionamento conquistado pelos meios de
comunicação de massa. Surgidos já em um período de
desenvolvimento capitalista avançado, estes meios
ganharam, a partir do final do século XX, um perfil muito mais
dinâmico, realizando um exercício de articulação das
informações e dos bens culturais a serem transmitidos ao
público em um ritmo verdadeiramente “globalizado”. Assim,
estes meios conseguem fortalecer sua capacidade de
processar as mais diferentes dimensões da vida humana,
desde a informação até o lazer, e se transformam em um
veículo privilegiado para difundir, no mundo todo,
“referências globais” com as quais as pessoas passaram a
se relacionar em seu cotidiano. Este poder dos meios de
comunicação de massas será utilizado ao extremo pelos
grandes grupos econômicos em todo o mundo, seja através
da publicidade, divulgando e criando as “necessidades” dos
produtos do mercado global, seja através da manipulação
das informações que preparam o cenário político-ideológico
para o avanço desta mundialização do capital.
A expansão e o fortalecimento dos meios de comunicação de massas no
cenário globalizado apresentam importantes questões desafiadoras para esta
perspectiva de compreensão do processo de globalização em curso.
Paralelamente ao reconhecimento de que o mundo se tornou “mais próximo” pelo
incremento destes meios de comunicação e pela ampla difusão da informação,
constrói-se a crítica de que a mídia, ainda que aparentemente se coloque como o
espaço democrático onde todos são, ao mesmo tempo, produtores e receptores
de informação35, está cada vez mais convertida em agente de difusão de
discursos específicos, legitimadores da falsa consciência de um “mundo sem
fronteiras”.
Graças ao dinamismo deste campo da informação, os meios tecnológicos
permitem divulgar e legitimar signos sociais que se colocam como “mundialmente
reconhecidos”, sem uma procedência territorial nitidamente identificada. Assim,
fortalecem-se como propagadores de um modo de existência e de pensamento
que acaba por deslegitimar qualquer formulação que possa contestar suas
premissas, sobretudo no que se refere a alternativas de esquerda. Seriam,
portanto, os elementos que verdadeiramente favoreceriam uma vida
desterritorializada, tendo a capacidade de congregar simbolicamente partes de
uma totalidade que está em expansão e em redefinição. O que antes seria papel,
por exemplo, dos projetos societários de diferentes classes sociais, ou de
organizações que tivessem por desafio internacionalizar lutas e expectativas,
estaria agora sendo facilmente desenvolvido por estes meios de comunicação e
de produção de informações materializados pelo novo modo de acumulação
capitalista. O mercado surge, nestes meios, como o grande regulador das
demandas coletivas, inserindo mudanças cada vez mais rígidas no cotidiano da
36 A Internet, por exemplo, é apontada contemporaneamente como espaço constante de democratização e de livre acesso a informações, propostas e descobertas científicas.
vida social, as quais se manifestam também nos processos de sociabilidade e de
trabalho.
O debate que então se coloca visa a questionar até que ponto esta
comunicação tecnológica estaria se convertendo em agente privilegiado na
formação e na fixação de identidades culturais que desprezam ou dispensam os
horizontes historicamente reconhecidos do local e do nacional. Em outras
palavras, até que ponto as informações de abrangência ilimitada como as que são
hoje produzidas poderiam redimensionar culturalmente os povos de diferentes
espaços territoriais, a partir do momento em que tornam próximos e presentes
diferentes acontecimentos.
Algumas características destes meios de comunicação e das informações
por eles produzidas se colocam como elementos norteadores para uma avaliação
das questões anteriormente colocadas. Em primeiro lugar, pesa a sua
temporalidade. O mercado precisa constantemente de inovações tecnológicas que
renovem e garantam a chegada de novas informações e de novos padrões de
divulgação desta. A fugacidade e a efemeridade que as particularizam tornaram-
se constantes desafiadores e, ao mesmo tempo, impulsionadores da expansão
capitalista nesta área. Dados apresentados por MORAES (1997) sobre a década
de 90 demonstram, comparados aos atuais, a magnífica capacidade de expansão
desta fatia do mercado e, principalmente, sua vinculação ideológica cada vez mais
bem definida.
Esta inovação constante traz, para o universo da informação e da
comunicação, o traço também da diferenciação. Com vistas a negar quaisquer
estratégias que recuperem o consumidor indiferenciado e perdido na massa,
característico do mmomento fordista de produção, o modelo atual prima pela
atenção cada vez mais específica, buscando chegar a padrões extremos de
comportamento e de preferências. Uma rede mundializada de informações sobre
vendas permite analisar os diferentes comportamentos dos mercados, permitindo
inclusive concluir quais produtos devem ser retirados de circulação ou
modificados, definindo, portanto, o desenvolvimento de novos produtos. Para cada
segmento do mercado consumidor, um produto, uma mídia e uma informação
adequados, reconstruindo, em outros parâmetros, a fragmentação e a diversidade
culturais. É preciso, desde já, criticar esta perspectiva de diferenciação, partindo
da certeza de que o fato de estar materialmente diversificado não significa,
necessariamente, que esta parcela do mercado garanta a diversidade e o
pluralismo em torno das questões culturais, uma vez que estas se encontram
igualmente concebidas e desenvolvidas nos limites do sistema do capital. O
mercado se diversifica para, em última instância, continuar homogêneo na
dimensão da mercadoria e da indústria cultural.
Em consonância com esta diferenciação, surge com força, no momento
contemporâneo, o timbre da interatividade. Esta vem também ideologicamente
carregada da possibilidade de atenção a públicos segmentados, que podem,
através destes amplos e diferenciados “espaços de participação”, opinar
livremente e impulsionar trocas com base em interesses compartilhados. Assim
sendo, a interatividade cria a expectativa e a possibilidade de formação de novos
hábitos de consumo cultural e de novos processos de significação, onde participar,
agora, se tornou um ato tecnologicamente facilitado e acessível a qualquer
cidadão, desde que compartilhe das inovações disponibilizadas pelo mercado
capitalista. A tecnologia com a qual convivemos hoje teria, portanto, a
potencialidade de, através principalmente das redes de computadores, viabilizar
uma “presença cidadã autônoma”, desvinculada de uma institucionalidade pública
que, na crítica de vários sujeitos coletivos, estaria comprometida pelos elementos
da corrupção, do comprometimento ideológico e da inépcia política. As TVs pagas,
onde cada um escolhe a programação que quer assistir, as comunidades virtuais
na Internet, as múltiplas pesquisas de opinião das quais podemos participar ao
mesmo tempo, tudo isso estrutura, portanto, importantes conjuntos de afinidades e
de aspirações, dos quais participam múltiplos “sujeitos” receptores, advindos de
coletividades desterritorializadas.
Esta interatividade, em casos extremos, tende a subtrair verdadeiras fontes
de informação que favoreçam a opinião pública e a participação nos processos
decisórios. O risco de uma aparente e absoluta uniformidade na produção do
consentimento cresce e se coloca em confronto com a intransparência das
contradições sociais existentes e a própria importância da democratização do
poder político institucional.
A diferenciação e a interatividade do momento atual convivem,
contraditoriamente, com a necessidade de generalização e de uniformização de
produtos, instrumentos, informações e meios à disposição das parcelas da
população mundial que se inter-relacionam e “se desvendam”. O acelerado fluxo
de pessoas no contexto mundial36 cria a necessidade de que o mercado
36 DREIFUSS (1997) menciona que, em 1996, apenas o tráfego aéreo respondia pelo deslocamento de 1,3 bilhão de passageiros por ano, sem contar os “viajantes virtuais”, 2 bilhões de pessoas que, através das redes informáticas de consumo, buscavam este duplo movimento de uniformização e de diversidade de produtos.
desenvolva o sentido de “pertencimento”, disponibilizando “produtos mundiais”,
que atendam, em lugares indiscriminadamente distantes, a diferentes estilos de
vida e padrões de consumo. Num mundo em que a indústria de turismo e de
viagens responde por 10,9% do PIB global e emprega 10% da população
economicamente ativa mundial (dados apresentados por MORAES, 1997, tendo
como referência o ano de 1996), o elemento de uma “identidade planetária”
também precisa ser garantido pelo mercado.
Diferentes debates se travam em torno destas características. MUNIZ
SODRÉ (1997), juntamente com outros tantos autores, se preocupa em destacar
que estas tecnologias da informação criam, portanto, a ideologia de uma
comunicação universal, a ser medida e avaliada pelos elementos da velocidade,
da probabilidade e da instabilidade. Os meios de comunicação, nesta
compreensão, desempenham papéis estratégicos ao possibilitarem uma
naturalização ideológica da economia neoliberal de mercado, da qual a sociedade
humana aparece apenas como um acessório. As diferentes configurações
societárias, compartilhando do mesmo tempo e do mesmo espaço, devem agora
trabalhar para se desenvolver e para evoluir rumo a uma perfeita integração ao
desenvolvimento mundial, modelo único e inquestionável da sociedade de
mercado.
Tais meios de comunicação e de produção de informações contribuem para
a forte operação ideológica que busca reforçar o sentido universalista da
globalização. Tal sentido se constrói, na verdade, como abstrato e superficial, uma
vez que o que assistimos é a “universalização do particular”. Como já tivemos a
oportunidade de observar, o controle do processo de globalização se restringe a
poucos países e tende a excluir, das instâncias de deliberação e de decisão, a
maior parte da população mundial. A força com que se desenvolve a multimídia37
contribui, então, para a produção retórica de um real compatível com a lógica do
mercado e com a ideologia da globalização.
Diante deste cenário e das discussões que o interpenetram, um duplo
desafio se coloca para os diferentes padrões de cidadania e de políticas públicas
de gestão das comunicações. Em primeiro lugar, a técnica, ou o universo material
destes meios de comunicação, uma vez que o desenvolvimento tecnológico
continua restrito a poucas corporações econômicas, que ditam padrões de
consumo destas tecnologias e monopolizam sua produção, dando início ao que
poderíamos caracterizar como um novo processo de colonialismo, agora garantido
pelos meios de comunicação e de produção de informações. Além disso, desafia-
nos também a questão dos conteúdos veiculados, os quais, num momento em que
se põe em xeque a relação cultura/ nacionalidade, encontram-se ligados a uma
nova “armadilha teórica”, qual seja a de uma globalização informativo-cultural que
não se mostra desvinculada de fortes interesses de classe. Acreditamos que, nos
dias atuais, o debate sobre a democratização da cultura não pode se furtar a
responder a este duplo desafio, que BRASIL (1997) define como “saber quem
decide e realiza a enunciação de valor univocal”.
Nas palavras de GALEANO (apud BRASIL, 1997, p. 248-249)
37 RAMOS (1997) afirma que a multimídia representa a convergência de três elementos principais, a saber: as telecomunicações (infra-estrutura e serviços básicos), os meios de comunicação de massa e a informática. Neste sentido, podemos afirmar que estes veículos se caracterizam, no cenário neoliberal, pelos processos de privatização, de concentração de capital e de centralização ideológica, agora em um cenário mundial.
Nunca tantos foram tão comunicados por
tão poucos. Cada vez são mais os que
têm o direito de escutar e de olhar, mas
cada vez são menos os que têm o
privilégio de informar, opinar e criar. A
ditadura da palavra única e da imagem
única está impondo um modo de vida que
tem por cidadão exemplar o consumidor
dócil e o espectador passivo, que se
fabricam em série, escala planetária,
segundo o modelo norte-americano da
televisão comercial.
Parece-nos, portanto, que, a exemplo do que propõe SCHILLER (apud
MORAES, 1997), a idéia de um “imperialismo cultural” ainda é válida nos dias de
hoje, sobretudo no que diz respeito aos meios de comunicação e de produção de
informações. Inseridos na dinâmica da política internacional contemporânea,
teriam a dupla função de consolidar e garantir o sistema capitalista empresarial
das multinacionais e de intensificar a dependência cultural pela consolidação, a
nível subalterno, de sistemas de decodificação, definindo a multimídia como um
campo privilegiado para a valorização do capital mundializado. Reafirma-se, nos
dias atuais, a concentração da produção de informações nas regiões do mundo
industrializado38 e a subalternidade, por parte dos países periféricos, para os quais
a transferência destas informações é condição vital para que possam se integrar
no ciclo internacional da produção e do desenvolvimento econômico.
38 BRASIL (1997) contribui para este debate com dados sobre os índices de concentração dos meios audiovisuais: 90% na Irlanda; 75% no Reino Unido; 65% na Itália e 50% na Bélgica, Dinamarca e Holanda, no ano de 1996.
DANTAS (1996) chama a atenção, neste cenário acima descrito, para um
momento de privatização da informação, que reduz, ou até mesmo elimina, seu
caráter social, redefinindo as redes informacionais como instrumentos de
dominação e de exclusão no contexto internacional. A renovação constante nestes
meios técnicos de comunicações e de produção de informação aponta para novas
frentes de acumulação do capital, servindo à ampla articulação da produção social
geral.
Soma-se a esta capitalização crescente do setor a ausência, quase
absoluta, das possibilidades de intervenção democrática no processo de
desenvolvimento e de consolidação destes meios multimídia, Como nas mais
variadas frentes de desenvolvimento capitalista, também no que se refere aos
meios de comunicação, percebemos aquela clara distinção entre os que discutem
e produzem cultura e aqueles que a consomem, sendo que estes últimos pouco
ou nada sabem acerca do funcionamento das comunicações. Nas palavras de
DANTAS (1996, p. 15)
Uma vez que a grande maioria das
lideranças, quadros e militantes
comprometidos com os movimentos
sociais ignora ou não se dá conta dos
problemas sociais (políticos, econômicos,
culturais) envolvidos e articulados nas
comunicações, somos cada vez mais
moldados, mesmo sem o sentir ou saber,
pelos arranjos capitalistas dos sistemas de
informação. Estes nos parecem naturais e
espontâneos, e não o resultado de
construções sociais e históricas concretas.
Assim, nos são apresentados pelos
discursos economicistas e tecnicistas,
traduzidos para o senso comum pelo fait-
divers jornalístico.
O que demarcaria o momento contemporâneo de expansão deste setor
teria suas raízes em um movimento iniciado na passagem do século XIX para o
século XX, justamente quando, através dos recursos garantidos pelo capital
financeiro, teriam surgido indústrias tipicamente produtoras de tecnologias de
informação, a qual, a partir daí, se tornou o objeto imediato de trabalho da maioria
dos indivíduos. A informação se transforma, a cada dia, em um elemento
necessário para que o capital possa se desenvolver e a importância das diferentes
formas de trabalho humano nesta sociedade se mede a partir da quantidade e da
qualidade da informação com a qual se desenvolve. A principal atividade das
pessoas, no universo do mundo do trabalho, é tornar disponíveis diferentes dados,
e o valor da informação, neste processo, é o de poupar tempo de trabalho, o que
interfere diretamente nos processos de produção de mais-valia nas sociedades
capitalistas contemporâneas.
A partir de então, a produção cultural, neste sentido, torna-se indistinguível
da produção material, no que se refere aos processos de trabalho e à necessidade
que apresentam para o desenvolvimento da sociedade. Tal produção passa a ser
integrada à produção material capitalista geral através de dois caminhos: como
meio de acumulação direta, através da venda de equipamentos e de difusão de
tecnologia, e indireta, formando e redefinindo hábitos de consumo para a
expansão de mercados cada vez mais amplos e diversificados.
Questões objetivas, assim como decisões políticas e empresariais, acabam
criando um sistema de monopólios também nesta área, onde a indústria que
produzia equipamentos para registrar e comunicar informação torna-se, a partir do
final do século XX, produtora da própria informação a ser registrada e
comunicada. No âmbito exclusivo do capital, percebe-se a constante tendência à
cooperação, no sentido de que há um intercâmbio de soluções e de produtos que
estejam sendo desenvolvidos pelas corporações transnacionais, através de
alianças cada vez mais estreitas e economicamente fortes. Nos países de
capitalismo central, detentores destes monopólios, isto acontece sem uma maior
intervenção política de cunho público por parte de outros atores, e, por outro lado,
nos países periféricos, não houve qualquer incentivo para o desenvolvimento de
sistemas próprios e autônomos de produção de informação ou de tecnologias para
este setor, sendo que esta ficou, desde o século passado, sob o controle de
empresas estrangeiras, especializadas nas comunicações internacionais. Os
grandes blocos tendem a segmentar e fragmentar a geração e a comunicação das
informações estratégicas para o conjunto da sociedade, as quais podemos chamar
de “informação-valor”. Tais blocos se especializam no atendimento a esta ou
aquela região, disponibilizando a tecnologia específica. Um mundo redividido em
novos grupos de poder econômico significa também um novo mundo
informacional, o qual redefine relações políticas, sociais e, principalmente,
culturais.
Verifica-se uma enorme disparidade na distribuição mundial destes
recursos informacionais, o que torna os países periféricos despreparados para as
mudanças neste campo e transforma a articulação da informação no mundo todo
em um movimento de mão única, dos países centrais para os países periféricos,
onde estes últimos importam não só os conjuntos técnicos, mas também os
conteúdos culturais neles embutidos. Podemos inclusive configurar este processo
como uma “expropriação simbólica de outras culturas”, que acabam substituídas
por padrões de racionalidade, representação, identidade, premiações e punições
próprios dos países de capitalismo central. Cópias perfeitas de programas e de
padrões de produção cultural são trazidos de forma avassaladora para a realidade
dos países periféricos, sendo apresentados como “modas culturais” que devem
ser mundialmente reconhecidas. Mais uma vez está colocada a perspectiva de
uma homogeneização da cultura, com todo o mundo compartilhando, pela
intervenção da “mão nada invisível do mercado” de um mesmo padrão cultural
Portanto, o que se forma a partir daí é o que poderíamos chamar de um
sistema de informações globalizado, nas mãos de grupos cada vez mais
concentrados e centralizados, consolidando, através de suas ações em escala
mundial os laços de dependência política e cultural já amplamente desenvolvidos.
Emerge, neste momento, o problema da “subinformação” de regiões inteiras do
globo terrestre, assim descritas:
Sociedades que não desenvolvem
tecnologias de informação tendem não só
a ser subinformadas em relação aos
países capitalistas centrais, como também
a erigir, dentro de suas fronteiras, divisões
ainda mais fundas entre suas minorias
ricas-informadas e suas maiorias pobres-
desinformadas. Aquelas minorias
buscarão um modo de ingressar na
“sociedade da informação” global, ainda
que vestindo grotescas fantasias de
“primeiro mundo”. Quanto às maiorias, não
lhes restará muito mais do que uma
violenta exclusão social. Subinformação:
eis o novo nome para o
subdesenvolvimento nesta nova etapa
histórica da evolução capitalista.
(DANTAS, 1996, p. 95)
Segundo este autor, as “agências de notícias”, principalmente no padrão de
desregulamentação norte-americano, que se expandiram por todo o mundo a
partir do final do século XX, internacionalizaram um tipo específico de jornalismo e
veiculação de informações que “dá importância ao imediato, ao extraordinário, ao
sensacional, ao superficial, ao bizarro, ignorando as articulações dos fatos, os
processos sociais, as diferenças culturais e históricas entre os povos” (1996, p.
42). Em outras palavras, construíram uma única imagem do mundo, a qual os
diferentes países deveriam aspirar no sentido de parecerem “desenvolvidos”.
O final do século XX foi palco de uma terceira revolução tecnológica nas
comunicações, que ofereceu ao capital novos meios para processar e transmitir
informação, tornando cada vez mais rápido, eficiente e barato o transporte dos
dados necessários e interessantes ao desenvolvimento do capital. Tanto nos
países de capitalismo central quanto nos países periféricos, o que se percebeu foi
que, neste ramo, o Estado continuou com sua antiga função de “gerente dos
interesses do capital”, uma vez que incentivou a expansão privada do setor,
fomentou o processo a partir da destinação de recursos públicos e utilizou destas
informações para o encaminhamento dos interesses políticos, militares e
econômicos do cenário internacional. Reproduziram-se, neste setor, as relações
de dominação e de segregação social já características do desenvolvimento
histórico capitalista, pois este desenvolvimento tecnológico e esta oferta de
sistemas cada vez mais inovadores concentraram-se no atendimento às
corporações e usuários de alta renda, em detrimento do conjunto da população e
dos interesses públicos sobre elas. Como elemento adicional, este setor se
fortalece cada vez mais como uma fatia do setor produtivo que não pode conviver
com legislações e práticas regulatórias mais rígidas, dada sua dinamicidade e,
muitas vezes, sua necessidade de intervenções sigilosas.
Mais uma vez, no que se refere ao universo da cultura, vemos prevalecer o
movimento que incorpora o indivíduo à imagem alienada e reducionista do
“consumidor”. No que se refere ao acesso, à configuração, à produção e à
utilização da mega-informação produzida em nossa sociedade, não tem lugar, ou
ocupam um lugar profundamente reduzido, o indivíduo-cidadão, seus espaços
societários de organização e mobilização, bem como a multidão massificada pelos
diferentes processos de constituição social. Tem continuidade, no momento atual
de evolução do sistema capitalista, um padrão de comunicação e de cultura que
prossegue determinado pelas exigências exclusivas (ou quase) da acumulação de
capital, e não do atendimento das carências ou direitos maiores do conjunto da
sociedade.
Com este conjunto de alterações tecnológicas empreendidas nos meios de
comunicação de massa e de produção de informações, vivemos, portanto, uma
verdadeira "violência da informação" (SANTOS, 2000). Temos acesso, a cada
instante, a um grande volume de informações, que nos chega cada vez mais
rapidamente e que nos traz dados de pessoas, grupos e sociedades que
julgávamos absolutamente distantes de nós. É neste sentido que se afirma que os
espaços que antes separavam as pessoas se comprimiram, pois o "mundo" se faz
cada vez mais presente em nosso cotidiano através das informações às quais
temos ou não acesso. Em um número cada vez maior, com dados cada vez mais
recentes e inéditos para a maioria da população, com conteúdos anteriormente
inimagináveis sobre os avanços da humanidade e com um forte elemento político-
ideológico, estas informações acabam sendo realmente violentas, principalmente
porque, conforme observamos, estão marcadas por um crescente elemento de
desigualdade em seu processo de apreensão: não há tempo hábil ou
oportunidades coletivas para refletir sobre todas elas, e elas acabam por,
indiscriminadamente e acriticamente, questionar as relações e as referências que,
durante tanto tempo, fizeram parte de nosso cotidiano “nacional”.
Outra discussão bastante relevante nesta compreensão da cultura no
contexto de “globalização do capital” diz respeito ao processo já devidamente
analisado como o crescimento e o redimensionamento da chamada “cultura de
consumo”. Esta se refere, primeiramente, ao avanço da acumulação, na
sociedade capitalista, de uma cultura material na forma de bens e locais que se
destinam, prioritariamente, ao lazer e às atividades de consumo nas sociedades
contemporâneas. Tais mercadorias, inseridas desta vez em um movimento
mundializado de crescimento e de afirmação, são utilizadas e fortalecidas como
elementos capazes de criar vínculos e de estabelecer distinções sociais
marcantes, criando bases materiais para um imaginário cultural cada vez mais
consumista. A lógica de que “somos aquilo que podemos consumir” se fortalece e
ganha dimensões significativas em nossas sociedades, pois o fluxo
constantemente renovado de mercadorias traria novas determinações para
compreendermos o problema da leitura do status ou da posição do portador das
mercadorias.
ADORNO & HORKHEIMER (1985) já apontavam, no início do século XX,
para este redimensionamento das atividades de lazer, arte e cultura neste
contexto de capitalismo avançado, onde a indústria cultural tem a potencialidade
de filtrar aquilo que poderia compor o elemento ideológico nesta sociedade. Uma
orientação baseada no valor de troca seria a tônica, com valores e propósitos que
sucumbem à lógica do processo de produção e de mercantilização. Para estes
autores, numa perspectiva eminentemente negativa, o capitalismo estaria dando
início a um momento em que as diferenças essenciais, as tradições culturais e a
qualidade das manifestações culturais estariam sendo transformadas em
elementos que estariam se diferenciando apenas no aspecto quantitativo. Os
estudiosos da Escola de Frankfurt foram enfáticos ao afirmar que a indústria
cultural produz uma homogeneidade que acaba colocando em risco elementos de
subjetividade e de criatividade nesta esfera. Para Adorno, a perspectiva de uma
“mercadoria livre” significa, no contexto da sociedade capitalista, dizer que ela
pode adquirir uma ampla variedade de associações e ilusões culturais, as quais,
entretanto, poderíamos complementar, não estão alheias aos processos de
dominação e hegemonia presentes em uma sociedade. O que se configura, então,
é uma aparente liberdade, que significa, na verdade, um forte aprisionamento
ideológico para a produção cultural a partir de então.
Se tomarmos estas considerações como ponto de partida para
compreendermos a contemporaneidade do debate sobre a “cultura de consumo”,
poderemos observar que a infinidade de signos, imagens e simulações que nos
chegam por meio da mídia não aponta, necessariamente, para ricos e essenciais
elementos de pluralismo e de diversidade, mas sim para uma diferenciação
superficial com vistas a atender às especificidades de consumo. Na verdade,
estaríamos vivendo em uma sociedade sob forte ênfase cultural, mas de uma
“cultura sem profundidade”, condizente com uma vida social desregulada e
relações sociais extremamente variáveis, próprias do que ficou conhecido como a
“lógica cultural do capitalismo tardio” (JAMESON, 2002)
A indústria cultural se configura, no momento da globalização, como uma
importante elemento de transmissão dos possíveis vínculos existentes entre as
diferentes sociedades hoje contemporâneas. Portanto, na análise desta primeira
perspectiva, ela poderia ser considerada como o que mais contribui para sua
homogeneização, a partir do momento em que possibilita a formação de “públicos-
mundo” (CANCLINI, 2003), com gostos e identidades culturais cada vez mais
semelhantes. Postula-se, assim, uma tendência dominante nas empresas deste
setor: globalizar a cultura na perspectiva de criação de uma “cultura global”
através da partilha dos mesmos produtos e bens culturais.
Argumenta-se que este movimento é facilitado pela possibilidade de
desenraizamento dos produtos culturais com relação ao patrimônio das nações.
Em sua maioria, os bens e mensagens editoriais, audiovisuais e informáticos são
produzidos em formatos industrializados, fabricados por empresas que, de âmbito
transnacional, fazem circular seus produtos por canais controlados pelo grande
capital. Aqui também se afirma o “imperialismo coletivo”, uma vez que estas
empresas estão concentradas nos Estados Unidos, na União Européia e no
Japão, com produções marcadamente transnacionalizadas. Esta ação oligopolista
reconfigura a comunicação social, a informação e o entretenimento, os quais se
encontram cada vez mais distribuídos de maneira desigual.
Assim afirma CANCLINI (2003, p. 135)
As grandes massas esbarram em limitações na sua incorporação à cultura globalizada, pois somente têm acesso à informação e ao entretenimento veiculados no rádio e na televisão aberta. Enquanto as classes alta e média, e pequenos setores populares, têm acesso à televisão a cabo e certos circuitos informáticos, restringindo-se às elites empresariais, universitárias e políticas, o uso de computadores, fax, antenas parabólicas, em suma, os circuitos de inovação e interatividade nas redes eletrônicas.
Estas questões recolocam, em outro patamar, as abordagens
acerca das políticas culturais, as quais hoje devem problematizar uma
orientação de alcance mais nacional ou mais globalizado. Infelizmente,
não teremos a oportunidade de discutir, nos limites deste trabalho,
esta dimensão das políticas culturais e de sua importância no cenário
apresentado como de “globalização da cultura”. No entanto,
gostaríamos de reforçar aqui a importância deste debate, sobretudo no
que se refere a países de capitalismo periférico como os da América
Latina.
Nos dias de hoje, dois processos parecem orientar, portanto, a
produção e o consumo cultural de uma forma mais geral. Em primeiro
lugar, vemos uma reordenação dos mercados sob uma lógica
globalizadora, o que atinge, inclusive, os imaginários nacionais. Se
antes, o que tínhamos eram tendências artísticas com “sobrenome
nacional” (como, por exemplo, nas artes plásticas, o “barroco francês”
ou o “pop americano”), delimitando uma “arte estrangeira” que era
usada como referência para se pensar o patrimônio cultural próprio,
hoje a escala de criação, difusão e recepção da arte se faz em um
universo muito mais amplo, que ultrapassa, sobremaneira, os limites
da sociedade em que as obras são produzidas. Por conta disso, o
nacional ganhou um outro elemento de determinação, ou seja, a sua
capacidade de ultrapassar suas fronteiras naturais e de se tornar
referência em outro universo cultural.
Além deste processo, percebemos também um avanço cada vez
mais agressivo de instituições e empresários globalizados que, no que
se refere às produções artísticas em geral, se apresentam como
lideranças no cenário internacional, substituindo, muitas vezes, as
vanguardas artísticas que davam o tom de determinadas
manifestações artísticas e intelectuais. Hoje se instaura um sistema de
concorrência transnacional, que controla o mercado mundial de forma
concentrada e que define padrões e estilos artísticos, voltados para
atender diferentes gostos e contornos culturais. No que diz respeito às
artes plásticas, por exemplo, fortalecem-se galerias com uma estrutura
e uma organização multinacionais, com escritórios em vários países, e
que não expõem trabalhos de artistas com uma “baixa cotação” neste
mercado. Isto atinge, inclusive, países como a França e a Inglaterra,
que antes apresentavam uma liderança estética reconhecida e que
hoje, segundo dados de CANCLINI (2003), não superam 15% das
operações públicas no mercado mundial.
Entretanto, este estreitamento não se torna evidente, uma vez
que dispomos nos dias contemporâneos de oportunidades antes
nunca imaginadas no que se refere à circulação de exposições, feiras,
bienais que reduzem o caráter nacional das produções estéticas, mas,
por outro lado, abrem a possibilidade de conhecimento de obras do
patrimônio artístico universal que estavam anteriormente restritas a um
público bastante reduzido. O que temos, então, é uma aparente
democratização do acesso à arte, uma vez que viabiliza-se através do
mercado, o contato com este patrimônio, ainda que de maneira
imediata e sem que isso problematize as relações de poder que o
mercado consegue impor neste cenário. Neste contexto, as relações
transfronteiras tornam-se mais decisivas do que a representatividade
nacional, e o lugar do artista passa a ser definido não a partir de uma
visão interna a cada cultura em particular, mas no trânsito desta com
outras culturas.
CANCLINI (2003) avalia, ainda, que as dificuldades de acesso a
este mercado global são mais evidentes quando se trata de produtos
visuais que, por questões de várias ordens, não conseguem
transcender as culturas regionais. Em sua avaliação, existem
excelentes artistas e produtores culturais que, entretanto, não
conseguem se envolver em exposições metropolitanas, dada a
rigorosa especificidade de sua produção, ligada, por exemplo, a
questões regionais mais específicas. Estas últimas são vistas como
questões menores, menos envolventes, que atingem um público mais
restrito e que, portanto, não interessam o mercado de uma forma mais
ampla. Não está ausente, neste momento, um importante elemento de
dominação: as estéticas originárias das metrópoles, quando se
interessam pela periferia, quase sempre esperam uma marginalidade
folclórica, um exótico sem possibilidade de maiores abrangências.
O que se verifica, desde os anos 90, é que, também no que se
refere ao campo artístico mais especificamente, constrói-se um
cenário de tensão entre estas tendências homogeneizadoras e
comerciais da globalização e, por outro lado, a valoração deste campo
como uma instância em que se conservam e mesmo se renovam
importantes diferenças simbólicas. Deste desencontro, temos assistido
importantes movimentos de experimentação e de inovação, mas que
ainda não se constituíram como um movimento mais amplo de
questionamento dos processos de mercantilização e padronização que
atingem os bens e as mensagens culturais.
Neste sentido, poderíamos afirmar que nesta abordagem sobre a
“globalização da cultura”, o nacional, enquanto especificidade, parece
ter perdido a capacidade de explicar os fenômenos sociais. Assim, os
elementos de uma possível “identidade nacional”, construída e
manifestada através da cultura, teriam perdido sua validade, uma vez
que as nações e as nacionalidades estão hoje atravessadas por
questões e relações de poder produzidas em escala mundial, cuja
relação com um único e determinado território não seria mais possível.
Desta forma, as referências para a construção de uma identidade
entre as pessoas e as sociedades estariam localizadas não em um ou
em outro território nacional específico, mas em elementos globais,
desterritorializados.
Destas afirmações, poderíamos avaliar que o que estaríamos
assistindo seria, então, uma aceleração dos fluxos de pessoas,
mercadorias, capital e informações por todo o mundo, permitindo, a
priori, um maior intercâmbio e uma maior integração mundiais. No
entanto, a aproximação crítica com esta perspectiva nos conduz a
pensar que estes elementos não significam uma maior
democratização da cultura, uma vez que as relações de dominação e
de dependência econômicas, acentuadas com o contexto de
mundialização do capital, dariam a estes fluxos, no que se refere ao
universo cultural, um caráter unidirecional, ou seja, as influências e
referências culturais viriam dos países de capitalismo central e seriam
absorvidas pelos países periféricos através de mecanismos como os
da indústria cultural em direção, prioritariamente, à cultura de
consumo.
Em outros termos, trabalha-se com a idéia de que é possível a
extensão de uma determinada cultura até o limite global. Assim,
culturas heterogêneas tornar-se-iam incorporadas e integradas a uma
cultura dominante, através de um processo de conquista e unificação
do espaço global, onde diferentes povos e nações poderiam ser
assimilados a uma cultura comum. Esta desterritorialização
representaria o desenraizamento territorial de elementos que
permitiam, em outro contexto histórico, pensar a possibilidade de uma
cultura nacional, única e coesa. Os grupos e as comunidades
nacionais se encontrariam envolvidos pelas “referências culturais
globais”, ou seja, elementos que, nas artes, no pensamento científico,
nos espaços públicos, nos mais diferentes aspectos da vida social,
permitiriam a construção de valores ou de visões de mundo, mas que
não estão mais vinculados, necessariamente, a um ou outro território
nacional. Evidentemente, estas referências globais não são as únicas
que existem nos dias atuais, mas, na análise sobre a
desterritorialização, elas ganham força e se divulgam com tamanha
rapidez, que poderiam conquistar uma perspectiva realmente
hegemônica no cotidiano das mais diferentes realidades nacionais.
A citação abaixo exemplifica esta perspectiva:
O conhecimento acumulado sobre a sociedade nacional não é suficiente para esclarecer as configurações e os movimentos de uma realidade que já é sempre internacional, multinacional,
transnacional, mundial ou propriamente global. É óbvio que a sociedade nacional continua a ter vigência (...). Mas a sociedade nacional não dá conta, nem empírica nem metodologicamente, nem histórica ou teoricamente, de toda a realidade na qual se inserem indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e civilizações. (IANNI, 1999, p. 239)
Entendemos que esta perspectiva não pode ser
absorvida sem contestações. No que se refere
especificamente ao estudo das relações e das identidades
culturais, constata-se que não existe uma completa oposição
entre local, nacional e global, uma vez que os dois primeiros,
se aparentemente perderam o status de espaço para a
construção da cultura (argumento que posteriormente,
pretendemos desconstruir), ganharam a condição de locus
onde o global se realiza, ou seja, onde se manifestam as
relações de identidade dos grupos com estas referências
globais. Neste encaminhamento, a idéia de globalização
como homogeneização poderia ser relativizada, uma vez
que, ao se reterritorializar, ao ser absorvida em diferentes
locais e nações, esta globalização é também alterada pelas
particularidades dos grupos. Desta forma, longe de ser uma
fatalidade, a globalização também está atravessada pelas
lutas sociais presentes na história e, portanto, marcada pelas
contradições inerentes ao próprio sistema que a criou. Assim,
esta relação entre local, nacional e global na esfera cultural
não é um processo livre de hierarquias e distinções.
Entender estes vetores de dominação e, ao mesmo tempo, as
possibilidades e as formas de conflito que atravessam as sociedades neste
contexto de sociedade global nos parece um desafio marcante para as Ciências
Sociais hoje. Parece-nos que este conhecimento é a única possibilidade de afastar
o risco de imaginarmos a globalização como algo harmônico e incontrolável,
ignorando, assim, o movimento de crítica e de questionamento, principalmente dos
setores populares. Este nos parece ser o ponto fraco desta perspectiva de análise
acerca da globalização, ou seja, a idéia de que os processos de integração,
homogeneização e unificação pretendidos pelo capital em seu momento
mundializado não seriam elementos de contestação e de resistência.
3.2 – Uma perspectiva alternativa da globalização da cultura – o
“encontro com o diferente”
Uma segunda abordagem sobre o processo de globalização
contemporâneo parece apontar, no que se refere à cultura, para uma
conseqüência paradoxal: ao mesmo tempo em que aponta para uma
“possibilidade de homogeneidade”, também encaminharia um maior
contato com a diversidade que demarca esta esfera. Segundo esta
perspectiva, a intensificação dos fluxos de informação, conhecimento,
capital, mercadorias, pessoas e imagens parece ter reorientado o
senso que, anteriormente, separava e “isolava” as pessoas.
SAID (1995) nos chama a atenção para o fato de que existiu
sempre uma relação intrínseca entre o imperialismo (europeu e, agora,
norte-americano) e a cultura dos “povos dominados”. Tal relação,
sustentada pelo Ocidente metropolitano, resumia-se, a princípio, na
dicotomia “nós/ eles”, onde o “objetivo” ocidental seria de “levar a
civilização a povos bárbaros ou primitivos”, que tinham a necessidade
de dominação, pois “o que ‘eles’ melhor entendiam era a força e a
violência”.
O imperialismo europeu sustentava, assim, uma relação que era,
sem dúvida, de subordinação, expulsando as identidades “primitivas”
da cultura e da própria idéia da Europa. A modernidade ocidental
postulava que as regiões colonizadas, em decorrência de seu histórico
atraso, sobretudo econômico e tecnológico, não possuíam vida,
história ou cultura dignas de menção ou de representação sem a
referência ao Ocidente. Sob esta relação clara de dominação
imperialista, foram construídas e sustentadas, até a metade do século
XX, imagens unitárias, coerentes e ordenadas do que seria a
modernidade, projetadas a partir dos centros ocidentais.
Nas palavras de FEATHERSTONE (1997, p. 105)
Partia-se do pressuposto de que as estruturas do mundo natural e social podiam ser desvendadas por meio da razão e da ciência. Estas últimas detinham um conhecimento tecnologicamente útil que lhes permitira domar a natureza, mas também levaria a uma tecnologia social paralela, destinada a aperfeiçoar a vida social e a introduzir “a boa sociedade”. Juntamente com o desenvolvimento
da ciência e da tecnologia, a expansão do capitalismo industrial, a administração pública e o desenvolvimento dos direitos da cidadania eram vistos como uma prova convincente da superioridade fundamental e da aplicabilidade universal do projeto da modernidade. Presumia-se que as nações ocidentais, as primeiras a desenvolver e aplicar tal conhecimento, estavam muito adiante no processo de desenvolvimento social e poderiam manter confiantemente sua liderança, na medida em que povos de outras partes do mundo procuravam, com muito empenho, seguir e colher os benefícios da modernização.
Na orientação imperialista clássica, entendia-se que a
separação das sociedades no espaço representava, também,
uma separação fundamental no tempo. As sociedades
tradicionais passariam ao status de sociedades modernas
através de um conjunto de processos específicos de
expansão do modo de produção capitalista que tomariam
lugar nestas sociedades: industrialização, urbanização,
mercantilização, racionalização, diferenciação,
burocratização, expansão da divisão do trabalho,
crescimento do individualismo e processos de formação do
Estado-nação.
O contexto do imperialismo sustentava, portanto, uma
noção exclusiva e vigorosa de identidade nacional enquanto
elemento de interação, como parte de um processo de
formação dos Estados-nação, que se entregavam cada vez
mais a uma configuração competitiva acirrada. A emergência
e a consolidação da consciência nacional constituiu, a partir
deste momento, o principal elemento de integração cultural
incentivado pelo Estado moderno para a sua constituição
enquanto agente do desenvolvimento do sistema econômico
capitalista.
O processo de pós-colonialismo e antiimperialismo teve,
como uma das bases de sua orientação, a constituição
específica da esfera cultural, entendida como a possibilidade
de se expor e refletir sobre as lutas econômicas, políticas e
ideológicas de uma sociedade. O contato cada vez mais
intenso entre europeus, norte americanos e os antigos povos
colonizados trouxe à tona uma série de questões culturais
que gradativamente parecem alterar, segundo alguns
autores, o jogo de poder construído no cenário mundial. O
pós-colonialismo teria sido, assim, o período de emergência
de novas narrativas, de vozes recém-assumidas que, pela
primeira vez, tinham a oportunidade de questionar e
reinterpretar a história e a cultura do imperialismo, buscando
uma argumentação elaborada sem o peso da dominação.
Nas palavras de SAID (1995, p. 250)
Os ocidentais vieram a perceber que o que eles têm a dizer sobre a história e as culturas dos povos “subordinados” é questionável para esses mesmos povos, os quais, até poucos anos atrás, estavam simplesmente incorporados, com cultura, terras, história e tudo, nos grandes impérios ocidentais e seus discursos disciplinares.
Em outras palavras, o império ocidental, que sempre
sustentou uma reflexão sobre o contato cultural baseada na
dominação e na apropriação pela força, passou por um
processo em que se criavam condições para que ele fosse
minimamente enfrentado e questionado.
Pela primeira vez, os ocidentais foram compelidos a se encarar não simplesmente como o governo colonial, mas como representantes de uma cultura e mesmo de raças acusadas de crimes – crimes de violência, crimes de eliminação, crimes de consciência. (IBIDEM: 250)
Para o mundo ocidental, sobretudo a Europa, a
sensação de mudança de perspectiva na relação Ocidente e
não–Ocidente era inteiramente nova. A idéia de que o
domínio europeu havia proporcionado modernidade às
colônias foi substituída pela ponderação oposta de que, na
verdade, o progresso e o bem estar da Europa foram
construídos através de um violento processo de dominação.
Desta crítica à dominação ocidental, teve início o que
poderíamos denominar como uma emergente “cultura de
resistência”, onde uma complexa relação de integração e
separação da cultura ocidental colocava para os povos,
agora independentes, a possibilidade de redescobrir e
reafirmar o que fora culturalmente suprimido pelos processos
de dominação.
Segundo SAID (1995), a cultura pode favorecer, nestes
casos, tanto a resistência quanto o conformismo com a
condição de dominado. Em sua opinião, construir uma
cultura de resistência requer compreendê-la como apenas
um dos aspectos da vida social em toda a sua complexidade.
Em outras palavras, uma cultura de resistência só pode
ocorrer quando, dentre outros fatores, instala-se, também,
internamente uma exaustão política e econômica que
questione o custo do domínio colonial e, em decorrência
disso, as representações do imperialismo comecem a perder
justificação e legitimidade.
É neste sentido que se afirma que o esforço pela
restauração da comunidade pré-colonial e pela retomada da
cultura não é um processo imediato. Ele permanece por
muito tempo após o estabelecimento político dos Estados-
nação independentes, fazendo da resistência e da
descolonização um processo contínuo e permanente.
As narrativas de emancipação e esclarecimento em sua forma mais vigorosa também foram narrativas de integração, não de separação, história de povos que tinham sido excluídos do grupo principal, mas que agora estavam lutando por um lugar dentro dele. (SAID, 1995, p. 29)
Nesta cultura de resistência, existiria a preocupação de se
realizar um remapeamento do território cultural, buscando
reconstituir o passado da comunidade, resguardando-a
contra as pressões do sistema colonial. Uma “redescoberta
cultural” apresentaria a necessidade de encontrar uma base
ideológica capaz de dar a sustentação e a unidade que
aquelas comunidades, em seu período de vivência colonial,
jamais haviam experimentado.
É esta a investida de estudiosos e artistas não
europeus, que, revendo e repensando o terreno comum a
europeus e colonizados, reconhecem a necessidade de uma
autoconsciência dos antigos povos colonizados, que tenham
por princípio superar a consciência de um Outro designado
historicamente como inferior. As experiências do pós-
colonialismo se mostram, assim, reinterpretáveis e revivíveis,
pois o “nativo” agora poderia falar e agir em seu próprio
território, reconstruindo as interpretações nativas sobre si
mesmos, que não poderiam agora ser apenas descartadas
ou silenciadas. Tais povos buscam ver a vida de suas
comunidades como passíveis de desenvolvimento, como
parte de um processo de trabalho, crescimento e maturidade
a que anteriormente apenas os europeus pareciam ter
direito.
As perspectivas de análise desta “cultura de resistência”
reconhecem que sua construção não se faz, entretanto, sem
profundas contradições. O imperialismo foi função tanto da
expansão dominante européia quanto de uma relativa
“colaboração” por parte dos povos colonizados que, em certa
medida, viam nesta experiência a possibilidade de acesso a
um “mundo desenvolvido” que lhes parecia inalcançável por
seus próprios esforços. Assim, no momento de
independência, não faltou, junto a estes povos, uma
tendência a se “imitar” o estilo europeu moderno, procurando
se modernizar segundo aqueles padrões de progresso. SAID
(1995) nos fala, inclusive, de missões nativas enviadas a
países do Ocidente com o objetivo de “aprender” os usos e
os hábitos do “homem desenvolvido”.
Uma das questões que exemplificam estas contradições
no processo de resistência cultural é a própria idéia de
nacionalismo. Neste sentido, cresce junto a estas populações
o que poderíamos chamar de um “nacionalismo
antiimperialista”. Este é um ponto altamente polêmico no
debate acerca do pós-colonialismo, pois, em muitos casos,
este nacionalismo significou apenas uma substituição de
autoridades e de burocratas imperialistas por equivalentes
nativos, aumentando, assim, os perigos de chauvinismo e da
xenofobia. Para parte dos autores que analisam este
fenômeno39, este nacionalismo, herdado da cultura ocidental,
não levou estes povos à consciência da própria história como
um aspecto da história de todos os homens e mulheres
subjugados.
Constrói-se como uma necessidade para estes povos
reencontrar e construir uma “nação”, em seu sentido mais
específico, onde elementos como a língua e a cultura
nacionais eram formas de se organizar e sustentar uma nova
memória, com narrativas locais, autobiografias, memórias
que procuravam fazer um contraponto às histórias
monumentais e aos discursos oficiais reproduzidos pelo
imperialismo em sua fase expansiva. Assim, uma das
primeiras tarefas da cultura de resistência foi a busca de uma
origem nacional mais adequada, tentando reivindicar a
retomada da terra e da cultura colocadas sob dominação
imperialista. Neste processo, a contradição de um nativismo
nascente vem à tona, a partir do momento em que é
reforçada a distinção hierárquica estabelecida pelo
imperialismo, mesmo quando se valoriza o lado mais fraco
ou servil. Por outro lado, em meio a uma expectativa de
reencontro com as origens pré-coloniais como as bases
autênticas dos povos recém descolonizados, a
39 SAID avalia estas posições através das formulações de Elie Kedourie, Eric Hobsbawn, Ernest Gellner e Partha Chatterjee.
nacionalidade, o nacionalismo e o nativismo são conduzidos
como uma força mobilizadora de resistência contra o império.
SAID (1995) resume bem esta contradição ao afirmar
que, em um primeiro momento, o nacionalismo é o caminho
encontrado pelos povos colonizados no sentido de fazer
avançar a luta contra o domínio ocidental, na medida em que
possibilita uma restauração da comunidade e o surgimento
de novas práticas culturais, buscando construir uma nova
identidade. No entanto, recuperando categorias gramscianas
de análise, este autor pondera que este nacionalismo é
necessário, mas não é suficiente, pois a proposta de
libertação destes povos deve ser muito mais ampla,
necessitando da articulação de suas lutas e demandas com
as de outros povos dominados. O limite à realidade
nacionalmente restrita pode conduzir a velhas ortodoxias,
injustiças e pensamentos autoritários incapazes, no final das
contas, de questionar e de superar as bases do poder
imperialista. Neste caso, libertação não se limita à
independência nacionalista, pois envolve a transformação da
consciência social para além da consciência nacional.
É em meio a este contraditório processo de
independência e de emancipação dos antigos povos
colonizados que podemos ver surgir as bases de uma
diferente concepção de “globalização da cultura”. Assim, o
século XX, sobretudo o período pós-anos 40, foi palco de
uma enorme difusão de culturas não européias no centro
metropolitano, culturas estas que, embora situadas em fases
diferenciadas de desenvolvimento, comungavam de uma
inquestionável experiência antiimperialista. Autores que
abordam este processo de “viagem para dentro” arriscam
afirmar que tais culturas periféricas, trazidas para o interior
dos países ocidentais, conseguiram transformar as
disciplinas e dar voz a novas idéias que modificaram a
estrutura de atitudes e referências da cultura européia.
Esta lógica sustentaria a idéia de que, nas palavras de
SAID (1995, p. 28), “todas as culturas estão mutuamente
imbricadas, nenhuma é pura, todas são híbridas,
heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer
monolitismo”. Teria acontecido, assim, uma troca cultural que
permitiria hoje, às culturas periféricas, dialogar e mesmo se
contrapor à cultura metropolitana utilizando as técnicas, os
discursos e armas do saber e da crítica antes reservados
somente aos europeus. Por outro lado, WILLIAMS (1992)
argumenta que ainda não é certo se tais contatos geram
rupturas agudas e até violentas com práticas tradicionais ou
se eles acabam sendo absorvidos e se tornam parte da
cultura dominante de um período metropolitano subseqüente.
Segundo ele, o que existe agora é uma sobreposição e
interdependência que não pode ser imediatamente resumida
à reação de uma identidade nativa ocidental separada.
Este movimento antiimperialista daria início a uma
variedade da obra cultural híbrida. Estaria, assim, se
constituindo uma internacionalização adversária capaz de
questionar a manutenção das estruturas imperialistas e de
comprovar que a história não corre unilateralmente. Tendo
por base toda esta estrutura histórica do pós-colonialismo, a
abordagem diferenciada de globalização vai reconhecer, no
mundo todo, uma multipolaridade e uma emergência de
novos centros competitivos que vêm, nos dias de hoje,
colocando em xeque o pressuposto de que os países
economicamente dominantes são o centro a partir de onde
tudo flui em direção a uma periferia absolutamente
dependente.
Um elemento marcante para a construção deste
questionamento relaciona-se com a movimentação cada vez
mais intensa de pessoas no mundo, entre culturas e
fronteiras, que deslocam a perspectiva de uma exclusiva e
vigorosa identidade nacional para o reconhecimento, cada
vez maior, de que estamos lidando com sociedades
multiculturais. Isto acaba por redimensionar, quando não
desconsiderar, as antigas imagens unitárias coerentes e
ordenadas de uma modernidade que, advinda dos grandes
centros ocidentais, permitiu a europeus e norte-americanos
projetarem a sua civilização, sua história e seus
conhecimentos como se eles fossem universais.
O que se sugere, neste sentido, é que vivemos em um
mundo culturalmente globalizado não porque estamos
submetidos a uma homogeneização cada vez mais evidente.
No universo das questões culturais, o que estaríamos
vivenciando, desde meados do século XX, seria justamente o
contrário, ou seja, uma relativização espacial do Ocidente.
Nas palavras de FEATHERSTONE (1997, p. 29)
A auto-imagem ocidental e a do outro passivo sofrem uma contestação cada vez mais intensa. (...) já não é mais possível conceber os processos globais em termos da dominação de um centro único sobre periferias. Ao contrário, existem inúmeros centros competitivos que estão causando modificações no equilíbrio global do poder entre os Estados-nação e os blocos e forjando novos conjuntos de interdependências. Com isso, não se pretende sugerir uma condição de igualdade entre os participantes, mas um processo que está vendo mais parceiros admitidos ao jogo, os quais exigem acesso aos meios de comunicação e ao direito de serem ouvidos.
O processo de globalização em curso teria, portanto,
permitido um tamanho fluxo global de informações,
tecnologias, debates e questionamentos que teria propiciado,
na verdade, um novo estágio para as diferenças globais, uma
“vitrine mundial das culturas”, um entrechoque cada vez mais
discordante das culturas. A diferença agora é que não
existiria mais um único centro civilizatório em relação ao
resto do mundo. A globalização teria nos tornado conscientes
de novos e indissolúveis níveis de diversidade cultural.
O resultado das lutas e questões econômicas, sociais
e políticas nos séculos XIX e XX foi a prioridade para se criar
uma “cultura nacional”. Esta expressão supunha a formação
de concepções unitárias de culturas, muitas vezes
concepções altamente reificadas, onde a integração e a
inclusão, como objetivos expressos, conduziam,
necessariamente, ao seu oposto, à rigidez e à exclusão. A
partir do final do século XX, a conceituação de uma “des-
ordem cultural” e de sincretismos cada vez mais complexos
deixa de ser algo excepcional, passando a considerar como
objetivo a inclusão de perspectivas culturais desintegradas.
Um “outro” cada vez mais próximo no tempo e no espaço
procura dialogar e desafiar qualquer descrição particular de
seu mundo, apresentando-se como um interlocutor
impossível de ser ignorado.
Nesta perspectiva do processo de globalização, o
sentimento de que “somos o mundo” parece estar cada vez
mais evidente. No entanto, isto não significa
homogeneização, como propõe a primeira perspectiva, mas
sim um maior intercâmbio e colisão de diferentes narrativas
históricas. Ocorre o reconhecimento de que povos do mundo
não-Ocidental têm histórias próprias e de que uma
percepção histórica linear interminável de unificação do
mundo se torna difícil de sustentar. A história só pode ser
compreendida em relação com outras temporalidades
coexistentes e espacialmente distintas. Em outras palavras,
quaisquer termos e expressões que possam traduzir um
inquestionável senso de unidade e universalidade tornam-se
agora problemáticos e limitados.
O senso de que para o mundo existem histórias plurais, de que existem culturas e particularidades diversas que foram excluídas do projeto universalista da modernidade ocidental, mas que agora afloram, a ponto de lançarem dúvidas sobre a viabilidade do projeto, é um desfecho particular da atual fase do processo de globalização. Ele assinala uma avaliação mais positiva do Ocidente em relação à alteridade e às diferenças resultantes da mudança no equilíbrio do poder entre nações que, progressivamente, se vêem unidas em uma configuração global, em que se torna cada vez mais difícil optar por sair. (FEATHERSTONE, 1997, p. 127)
Neste processo, redefine-se o que vemos ser
denominado por cultura global. Ao contrário da idéia de que
uma única nação predominante poderia desenvolver uma
cultura global comum, como anteriormente especificamos,
nesta abordagem tal cultura seria caracterizada por uma
maior diversidade de intercâmbios, onde encontros
transculturais e transnacionais se tornam freqüentes,
principalmente a partir de imagens e informações
socializadas a partir da mídia. Estes contatos e trocas
culturais não ocorrem, entretanto, sem conflitos e sem
enfrentamentos. Falar de uma cultura global, neste sentido,
significa incluir diferentes formas de conformação cultural,
onde a idéia da “tolerância” ainda é a determinante e uma
perspectiva cosmopolita ainda esta por se construir e afirmar.
A atual fase de globalização teria, então, apresentado
para os países dominantes, a necessidade de “aprender a
tolerar” uma maior diversidade cultural no interior de suas
fronteiras, manifestada pelo multiculturalismo e pela
polietnicidade. Isso aumentaria a demanda por uma igual
participação, pela expansão de direitos de cidadania e por
maior autonomia para minorias regionais e étnicas.
É neste sentido, de uma maior interação e de um maior
envolvimento de diferentes processos culturais em todo o
mundo que um outro conceito de “cultura global” estaria
ganhando força e se tornando tão significativo quanto o
anterior conceito de uma cultura nacional ou local. Esta
perspectiva tenta relativizar a idéia de que existe uma
ameaça à cultura local a partir do momento em que ela se
integra a redes regionais, nacionais e transnacionais mais
amplas, por meio do desenvolvimento de uma alta tecnologia
em termos dos meios de comunicação. Longe de perder sua
particularidade e sua força referencial, as culturas locais se
tornariam mais imediatas e enfrentariam a necessidade
urgente de se fazerem inteligíveis, uma vez que suas
fronteiras tornaram-se algo mais permeável e difícil de
manter. Neste caminho, uma série de reações nacionalistas,
étnicas e fundamentalistas à globalização em curso foi se
construindo no mundo todo, mas, segundo FEATHERSTONE
(1997), este não seria o caminho mais apropriado para se
pensar as relações culturais no mundo contemporâneo, às
quais deveriam ser pensadas a partir da lógica da interação e
do intercâmbio capazes de compor esta cultura global
marcada, principalmente, pela diversidade. Reage-se, assim,
a uma forma de globalização, propondo-se outra, onde se
reconstituam identidades coletivas locais dentro de uma linha
pluralística e multicultural, onde as diferenças étnicas e
regionais sejam levadas em conta. O mundo agora seria um
“espaço dialógico”, embora com discordâncias, colisão de
perspectivas e conflito.
Para os autores que defendem esta concepção, encarar
o global e o nacional (ou local) como dicotomias separadas
no espaço e no tempo não seria, contemporaneamente, o
caminho para se pensar o universo cultural. Na verdade, os
processos de globalização e de localização estariam
inevitavelmente ligados na atual fase.
Experimentamos aqui, a sensação de que o mundo contemporâneo não presenciou um empobrecimento cultural, uma atenuação dos recursos culturais. Tem havido, na verdade, uma
ampliação dos repertórios culturais e uma intensificação da engenhosidade de vários grupos no sentido de criar novos modos simbólicos de afiliação e de pertença (...). (IBIDEM: 154)
Assim, o processo de globalização levaria à colisão de
diferentes interpretações sobre o significado do mundo,
construídas por diferentes tradições nacionais e civilizatórias,
e não poderia ser visto como o produtor de uma cultura
comum, integrada e unificada. A diversidade cultural, bem
como diferentes elementos de identidade (étnicos ou
nacionais, mas também de geração, gênero, sexo e classe,
entre outros) estariam não só presentes, mas absolutamente
fortalecidos no mundo globalizado em que vivemos.
Diferentes universos culturais não se ignoram. São até
mesmo capazes de manter certo grau de impermeabilidade,
mas também procuram realizar importantes trocas culturais
sempre que isso se mostre possível. Tais trocas não foram
necessariamente para melhor, nem vêm sendo capazes,
como podemos perceber nos conflitos internacionais que
estamos vivenciando, de criar um ponto de convergência
entre eles, mas criam, inevitavelmente, oportunidades de
mistura entre seus elementos.
O estudo destas trocas e desta perspectiva multicultural
no mundo contemporâneo vem sendo realizado por diversos
autores e o debate construído entre eles nos parece
importante para as discussões que estamos realizando.
SAHLINS (1997), em seu artigo O “pessimismo
sentimental” e a experiência etnográfica, inicia suas
formulações afirmando que, apesar dos processos de
globalização em curso, “a cultura não é um objeto em
extinção”. Em sua abordagem, “a cultura nomeia e distingue
a organização da experiência e da ação humanas por meios
simbólicos” e isso jamais será abandonado.
Este autor reconhece que, em razão do processo de
desenvolvimento da nova ordem capitalista mundial, as então
chamadas “culturas exóticas” estão certamente passando por
um momento de reformulação ou mesmo de redefinição. O
que antes, no interior da Antropologia, serviria como
instrumento de demarcação da diferença como tal, chegando
até mesmo a servir à subordinação e à exploração, estaria
agora se transformando radicalmente, através de um
intercâmbio cada vez maior e mais amplo com outras
culturas e civilizações.
No entanto, esta mesma cultura estaria reaparecendo
como um elemento de reafirmação desta diferença, mas
agora numa posição de contraponto às forças do
imperialismo ocidental. SAHLINS pondera que a cultura é,
assim, a antítese de um projeto colonialista de estabilização,
e os mais diferentes povos, nas mais diferentes partes do
mundo, se utilizariam de suas culturas não apenas para
remarcar e reconstruir sua identidade, mas também para,
como diz o autor, “retomar o controle do próprio destino”.
O autor continua suas reflexões afirmando que o
“pessimismo sentimental” que ronda os estudos culturais, ou
seja, a convicção de que “a vida dos outros povos do planeta
estaria desmoronando em visões globais da hegemonia
ocidental”, não daria conta dos vários tipos de “resistência
cultural” que estariam se construindo em todo o mundo.
Estas diferenças culturais, silenciadas e dominadas durante
os anos do colonialismo, estariam retornando, “pela porta
dos fundos”, e construindo novos projetos de identidade
coletiva. A cultura destes povos permanece porque sua
consciência e sua capacidade de construir significados
também estão intactas.
Desenvolvem-se, assim, simultaneamente, uma
integração global e uma diferenciação local.
As semelhanças culturais da globalização se relacionam dialeticamente com as exigências de indigenização. (...) Justamente por participarem de um processo global de aculturação, os povos “locais” continuam a se distinguir entre si pelos modos específicos como o fazem. (SAHLINS, 1997, p. 57)
Este autor nos propõe a análise do momento
contemporâneo, então, como uma “cultura mundial da(s)
cultura(s)”, o que, em sua essência, seria radicalmente
distinto de uma “cultura global”. O que estaria em jogo neste
novo esquema seria uma organização e uma compreensão
racional da diversidade, e não uma replicação da
uniformidade. As formas de adaptação dos povos locais ao
sistema mundial não devem ser compreendidas como
“inautênticas”, mas como parte integrante desta diversidade
cultural, que se constrói em um intercâmbio dialético do
global e do local. Para citar novamente o autor, “o
imperialismo não está lidando com amadores nesse negócio
de construção de alteridades ou de produção de identidades”
(1997, p. 133).
Outro autor que também se preocupa em determinar com
maior precisão as formas contemporâneas de contatos e
trocas culturais originados do processo de globalização é Ulf
Hannerz. Ele reconhece que, durante muito tempo, o tema
das interconexões culturais no espaço não constituía uma
área de grande interesse para a Antropologia, que, ao
contrário, dava mais valor àquilo que caracterizava a
“pureza” e a “originalidade” das culturas nativas. Para ele,
somente nos anos 90, a globalização e a transnacionalização
tornaram-se um novo objeto de pesquisas para esta área.
Frente a isso, HANNERZ (1997) se propõe a dimensionar
termos e expressões que, no contexto contemporâneo,
aparecem associados à problemática da globalização e dos
contatos e trocas culturais. Detendo-se, sobretudo, em três
termos, quais sejam, fluxos, limites e híbridos, o autor não
deixa de afirmar que tais termos constituem, na verdade,
metáforas que se encontram sujeitas a oscilações e
contestações. Vale observarmos o que ele compreende por
cada um destes termos.
O termo fluxos se relaciona, em sua acepção mais imediata,
a “coisas que não permanecem no seu lugar, a mobilidades e
expansões variadas”. No estudo da globalização, este termo
parece essencial, pois o que vivenciamos nos dias atuais é a
intensificação dos fluxos do capital, de trabalho, de pessoas,
de mercadorias, de informações e de imagens. A noção de
fluxo nos capacita, no que se refere à cultura, a pensá-la em
termos processuais, evitando o risco da reificação. Assim,
esta noção sustenta dimensões espacial e temporal. Esta
última implica em pensar nos elementos culturais em
constante movimento, capazes de serem sempre recriados, o
que os torna, na verdade, passíveis de permanecerem
duradouros. É o fluxo cultural, numa dimensão temporal, que
faz com que as pessoas possam refletir e transmitir uma
cultura, mantendo-a viva. No entanto, para as discussões
referentes à questão da globalização, é a dimensão espacial
que dá à noção dos fluxos um papel relevante. Segundo
HANNERZ, os fluxos têm direções e o que acontece é uma
reorganização da cultura no espaço mundial. Este processo,
no entanto, não acontece sem conflitos ou contradições, pois
se deve sempre observar, no cenário global de fluxos, um
centro no qual eles se originam e uma “periferia” para a qual
se destinam. O autor duvida que tenhamos chegado a um
ponto onde seja impossível distinguir os centros das
periferias. Este é, aliás, o ponto crítico para o debate atual,
pois o que se observa é uma tendência a que se dê maior
atenção à multicentralidade, aos fluxos entrecruzados, à
descentralização. Para estas formulações, a dicotomia
centro/ periferia coloca a questão dos fluxos como uma
questão de simples transposição, simples transmissão
unilateral de significados, o que parece ser um equívoco
diante das mudanças contemporâneas em nossa sociedade.
Em oposição à idéia de fluxo, fronteira (ou limite) vai indicar
descontinuidades e obstáculos, ou seja, a linha em relação à
qual se está dentro ou fora de determinados limites. A partir
dos nos 50, afirma HANNERZ, a cultura passou a ser
considerada como um “marcador de grupos”, implicando, ao
mesmo tempo, pertencimentos e exclusões, o que está
diretamente associado tanto a questões econômicas quanto
políticas. No que se refere à globalização a partir do final do
século XX, entretanto, estes limites estão cada vez mais
tênues e difíceis de serem demarcados. As experiências
vivenciadas pelas pessoas através das diversas formas de
fluxos fazem com que elas sejam envolvidas nas
diversificadas correntes de cultura que se fazem presentes
em seu cotidiano, construindo diferentes oportunidades de
identidade que não, especificamente, a grupal. Em outras
palavras, outras maneiras e outros pontos de referência se
afirmam no momento de fixar limites, os quais, por sua vez,
são transcendidos com maior rapidez, facilidade e, ao
mesmo tempo, racionalidade. Assim, segundo o autor, uma
compreensão suficientemente pluralista é necessária para se
dar conta das variações na forma cultural em questão. Isso
não significa, entretanto, que estes limites e estas fronteiras
não existam, muitas vezes como claros elementos de
“resistência cultural”, sobretudo para povos antes
colonizados.
Seu terceiro termo, hibridez, sugere, no interior dos estudos
culturais, a idéia de mistura, de miscelânea, de algo novo
que ingressa em determinada cultura como “um pouco disto
e um pouco daquilo”, em uma clara possibilidade de
renovação e de adaptação cultural. É como se surgisse,
através de um processo de fusão, um terceiro sistema
sociocultural novo. Assim como outros termos que também
vão expressar, como afirma HANNERZ, possibilidades de
mistura, tais como sinergia, transculturação, criolização e
sincretismo, a idéia de hibridez se transforma em um dos
elementos-chave para compreendermos os contatos e as
trocas culturais próprios do momento contemporâneo, onde
os elementos de dominação estariam sendo, ao mesmo
tempo, questionados e assimilados por povos anteriormente
subordinados.
Aliás, é sobre esta questão da hibridação que se debruça um
outro autor bastante presente nos debates contemporâneos
acerca da globalização e da cultura. Néstor Garcia Canclini,
pensando sobretudo o contexto latino-americano, vai afirmar
que a hibridação foi o elemento-chave para compreendermos
a latinidade, para a qual contribuíram, em sua origem, os
elementos dos países da Europa, do indígena americano e
das migrações africanas. Este processo de mistura
continuaria nos dias atuais em relação aos Estados Unidos, à
Europa e à Ásia. Ao final do século XX, afirma o autor,
fatores como os processos interétnicos e de descolonização,
globalizadores, viagens e fronteiras, cruzamentos artísticos,
literários e comunicacionais tornam a idéia da hibridação
indispensável para a análise das culturas.
O autor define hibridação como as oportunidades de
processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas que
existiam em forma separada, combinam-se para gerar novas
estruturas, objetos e práticas. Assim, pensar em hibridação
significa colocar em evidência a produtividade e o poder
inovador de experiências interculturais, quando se busca
reconverter determinado patrimônio para reinseri-lo em
novas condições de produção e de mercado.
Segundo CANCLINI (2000, p. 69), o objeto de estudos e de
discussão nos dias de hoje deve ser os processos de
hibridação, os quais acabam por relativizar a noção de
identidade, antes compreendida como algo “puro” ou
“autêntico”, o que acabava por limitar a possibilidade de se
modificar a cultura e a política. Os processos de hibridação
demonstram que não é possível falar de identidade como se
fosse um conjunto de traços fixos, ou como a essência de
uma etnia ou nação. No contexto da globalização em curso,
a hibridação demonstra sua força, uma vez que, para os
mais diferentes autores situados nesta linha de análise, as
identidades se reestruturam em meio a conjuntos
interétnicos, transclassistas e transnacionais e procuram se
situar e se afirmar em meio a uma heterogeneidade cada vez
mais marcante.
Ao defender a noção de hibridação como capaz de explicar a
constituição cultural latino-americana, CANCLINI (2000) não
deixa de afirmar, no entanto, que a hibridação se constrói em
meio a contradições e resistência, ou seja, existe aquilo “que
não se deixa hibridar”. A proposta é de se entender a
hibridação como um processo ao qual se pode ascender e
que se pode abandonar, do qual se pode ser excluído ou ao
qual se pode subordinar, e não como uma “harmonização de
mundos desgarrados e beligerantes”. Esta noção é
importante para que possamos compreender o espaço do
sujeito nestas relações interculturais, capaz de estabelecer o
que é possível harmonizar e o que se constitui como
inconciliável. Apesar de o momento contemporâneo da
globalização nos desafiar cada vez mais com oportunidades
de mestiçagem e de hibridação, persistem os confrontos, os
conflitos e as demandas de diálogo.
Este autor acredita na hibridação, portanto, como o recurso
através do qual se torna possível que a multiculturalidade
supere os elementos de segregação e de discriminação e
possa converter-se em reais experiências de
interculturalidade. Através dos momentos de hibridação, é
possível trabalhar democraticamente com as divergências
culturais, evitando que elas se reduzam a guerras e
contradições. Os movimentos contemporâneos de
globalização, ao criarem mercados mundiais de bens
materiais e simbólicos, multiplicam as oportunidades de
hibridação. As fronteiras e os limites antes rígidos dos
Estados-nacionais e de suas culturas se tornaram mais
flexíveis e parece praticamente impossível pensar em
unidades estáveis, com limites precisos.
No entanto, este mesmo contexto condiciona os formatos,
estilos e contradições da hibridação, que ocorrem em
condições históricas e sociais específicas, orientadas por
sistemas de produção e de consumo que, muitas vezes,
demarcam de forma coercitiva estes momentos. Neste
sentido, tal mecanismo nem sempre é um momento de
adaptação e de acomodação aos novos contextos
globalizados, mas muitas vezes funciona como recurso para
resistir ou modificar a globalização através de alianças entre
atores sociais marginalizados ou excluídos deste contexto.
CANCLINI (2000) nos adverte para o que ele considera “uma
visão simplificada da hibridação”, ou seja, a sedução de um
mercado globalizante que tende a reduzir a arte a um
discurso de reconciliação planetária, que, na maioria das
vezes, oculta estes movimentos como campos conflitivos,
instáveis e de tradução.
Em Culturas Híbridas, CANCLINI (1998) chama a atenção,
ainda, para a necessidade de um “olhar transdisciplinar”
sobre estes circuitos culturais híbridos, pois os mesmos não
podem mais ser estudados com ferramentas das disciplinas
que anteriormente os estudavam separadamente.
Problematizando a questão da diferença entre culto, popular
e massivo, o autor observa que as Ciências Sociais
estabeleciam diferentes escalas de observação, fazendo com
que cada uma construísse uma visão diferente e, portanto,
parcial. Assim, a história da arte, a literatura e o
conhecimento científico dominariam conteúdos cultos; a
antropologia e o folclore teriam como objeto de estudos o
universo do popular e as indústrias culturais gerariam o
sistema de mensagens massivas. Assim, nesta busca de se
construir objetos puros, também estariam organizados de
forma diferenciada os bens e as instituições responsáveis por
cada um deles, tais como as feiras populares, os museus e
os meios de comunicação de massa.
Hoje, postula CANCLINI (1998), assistimos a processos de
hibridação que fazem com que esta divisão maniqueísta dê
lugar a uma visão mais complexa sobre as relações entre
tradição e modernidade. Ao contrário do que se imaginava, o
culto tradicional não foi apagado pela industrialização de
bens simbólicos, mas sim, muitas vezes, incorporado por ela.
O que parece estar se desvanecendo não são os bens
conhecidos como cultos ou populares, mas a pretensão de
uns e de outros de constituir um universo auto-suficiente e de
que as obras produzidas em cada campo sejam unicamente
“expressão” de seus criadores.
O que é a arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas, e os críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores e os especuladores. Da mesma forma, o popular não se define por uma essência a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas posições, e também pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos, para a mídia. (CANCLINI, 1997, p. 23)
Neste novo momento de reorganização do universo
cultural, a crença de que a cultura segue um processo
ascendente, ou que certos modos de pintar, simbolizar ou
refletir sejam superiores parece perder força. Embora ainda
seja necessário para o mercado sustentar certas hierarquias
para renovar a distinção entre os grupos e as classes
próprias da sociedade capitalista, a hibridação faz com que,
em geral, todos reformulem suas formas e seus capitais
simbólicos em meio a cruzamentos e intercâmbios, levando-
nos a participar de forma intermitente de grupos cultos e
populares, tradicionais e modernos.
Como nos foi possível observar, o debate acerca das
relações entre o processo de globalização e o universo
cultural guarda diferentes e divergentes posições teóricas,
que nos desafiam a pensar nossa realidade sócio-cultural e a
contemporaneidade de nossos enfrentamentos nesta
realidade. Acreditamos, no entanto, que uma perspectiva de
totalidade tem se mostrado ausente neste debate, tornando
insuficiente cada uma das abordagens aqui dimensionadas.
Por isso, faz-se necessário, neste momento, recuperar o
debate sobre nacional-popular em Gramsci, a qual,
defendemos, nos potencializa para um debate responsável e
verdadeiramente alternativo à insuficiência das duas
abordagens anteriores. É o que pretendemos detalhar na
última seção deste trabalho.
3.3 – Nacional-popular como alternativa de crítica e de superação às
perspectivas de globalização da cultura
Um importante embate teórico se faz perfeitamente visível na discussão
acerca da globalização e do universo cultural. Este parece estar presente, na
verdade, na compreensão de toda a nova ordem mundial, pois aqui os
movimentos das esferas econômica, política e cultural se sobrepõem e se
complementam reciprocamente. A partir daí se constroem as duas perspectivas de
análise que anteriormente tentamos apresentar. De um lado, uma formulação que
acredita que um “mundo globalizado” significa, nos dias atuais, uma realidade
cultural homogeneizada, numa lógica de dominação paralela e integrada às
questões econômicas e políticas. Nesta direção, a cultura seria o caminho para se
construir uma visão universal da realidade social que, sob orientação dos países
que vivenciam o cenário do capitalismo central, garantiria, em parte significativa da
“sociedade global”, a internalização de um conjunto de normas e valores
“globalizados” que passam, a partir de então, a constituir um novo senso comum
inquestionado e inquestionável pelos povos historicamente subordinados à lógica
do capital. Por outro lado, e, em certa medida, como resposta a uma possível
visão determinista desta primeira perspectiva, vemos surgir e ganhar força a idéia
de que globalização, na verdade, significa diversidade, heterogeneidade, contatos
diferenciados, forças periféricas que, anteriormente dominadas e silenciadas,
teriam encontrado agora, no contexto globalizado, a oportunidade de se auto-
recuperarem e de se afirmarem, fazendo frente ao processo de dominação
imperialista e colonialista que anteriormente vivenciaram.
Nossa perspectiva de análise busca compreender estas duas abordagens
sob uma orientação crítica que não se limita a justificá-las ou a simplesmente
negá-las. Entendendo que a cultura, conforme caracterizamos no primeiro
capítulo, é uma esfera de dimensões determinadas, ou seja, sujeitas às
oscilações, crises e correlações de forças da estrutura econômica e política de
uma sociedade, afirmamos que ela não pode se manter suspensa a todos os
aspectos contemporâneos do desenvolvimento capitalista. Assim,
compreendemos o crescimento e a monopolização da indústria cultural em âmbito
mundial, a despolitização e a fragmentação constantes das manifestações
culturais, a intensificação de uma cultura de consumo cada vez mais especializada
e localizada e outros tantos elementos culturais que hoje nos desafiam porque
compreendemos também que o resultado econômico e político dos embates
ocorridos no final do século XX foi a afirmação de uma nova hegemonia burguesa,
base para um novo bloco histórico que, até os dias de hoje, não nos parece
superado ou suficientemente enfrentado por grupos organizados que proponham
uma contra-hegemonia.
Como bem ilustra SIMIONATTO (2003, p. 283), as formulações
gramscianas apresentam-se como essenciais para discutirmos este processo.
As superestruturas ganham materialidade e a classe dominante reatualiza a sua “estrutura ideológica”, a fim de defender e manter um certo tipo de consenso dos aparelhos de hegemonia em relação a seus projetos, legitimados por via democrática. A transformação da objetividade burguesa em subjetividade e sua naturalização na sociedade expressam-se através de um “movimento molecular” que, conforme indica Badaloni, “envolve indivíduos e grupos, modificando-os insensivelmente, no curso do tempo, de modo tal que o quadro de conjunto se modifica sem a aparente participação dos atores sociais”.
Entretanto, entender que esta relação de dominação, que produz
uma cultura de passividade e de conformismo atingindo, sobretudo, as
classes subalternas é a única via em que se processam os contatos e
as trocas culturais também nos parece um posicionamento limitado.
Compartilhamos da idéia de que tal dominação burguesa não
acontece sem conflitos e resistências.
Assim, as discussões e afirmações realizadas no âmbito da segunda
perspectiva contribuem para o debate contemporâneo ao alertarem para as
formas como os grupos, as classes e, até mesmo, os povos historicamente
subalternos tentam encontrar espaço para fazer da cultura uma esfera de auto-
conhecimento e de auto-afirmação, possibilitando refletir sobre as contradições e
os enfrentamentos presentes em seu cotidiano. A partir de diferentes estratégias,
os contatos e as trocas culturais, nesta direção, passam a se apresentar como
oportunidades de reflexão e de enfrentamento diante dos contextos de exploração
e de dominação vivenciadas por estes grupos.
Tais colocações são importantes quando se pensa, particularmente, na
idéia de que, contrariamente aos seus objetivos fundamentais, o desenvolvimento
globalizado do capitalismo teria criado as oportunidades para “uma nova
globalização”, a partir “de baixo”, onde povos e setores excluídos dos avanços da
nova ordem mundial poderiam “se encontrar” e se articular para buscar novas
conquistas e novos enfrentamentos econômicos, políticos e sociais. Neste
caminho, a cultura teria uma importância fundamental enquanto elemento que,
segundo Gramsci, permite ao homem, no interior da sociedade e das relações em
que vive, uma concepção unitária de suas condições de vida social, garantindo,
portanto, a reflexão e a ação humanas conscientes.
Esta potencialidade contida no processo de globalização em curso é assim
expressa por SANTOS (2000, p. 172-173)
Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo fica mais perto de cada um, não importa onde esteja. O outro, isto é, o resto da humanidade, parece estar próximo. Criam-se, para todos, a certeza e, logo depois, a consciência de ser mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material ou intelectual. (...) Assim, o cotidiano de cada um se enriquece, pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações atuais como pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida nos lugares, ainda mais enriquecidas, são paralelamente, o caldo de cultura necessário à proposição e ao exercício de uma nova política.
A cultura tem a possibilidade de se construir, neste caminho, como uma
esfera de auto-conhecimento para os “de baixo”. Ao encontrarem condições
propícias para recuperarem, através de suas mais diversas manifestações
culturais (arte, folclore, hábitos, costumes, princípios religiosos, etc.), uma parte de
suas histórias, numa perspectiva “nacional e popular”, estes grupos, classes e
povos podem refletir, criticamente, sobre as relações sociais nas quais estão
inseridos, compreendendo os contextos de dominação e de exploração que
vivenciaram. Nos dias atuais, tal compreensão significa, principalmente, abarcar
as implicações de uma inserção marginalizada no processo de desenvolvimento
global do capitalismo em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.
No atual contexto de globalização, onde as possibilidades de contatos e
trocas culturais são cada vez mais intensos, este auto-conhecimento
proporcionado pela esfera cultural nos parece um caminho privilegiado para
pensarmos, em meio à fragmentada realidade na qual vivemos, as possibilidades
de construção de uma “contra-hegemonia”, ou seja, de um movimento que possa
levar “à formação de uma ordem sociopolítica nova e mais universal”. Se é
possível pensarmos em “uma outra globalização”, onde os “de baixo” possam se
conhecer e se “reconhecer” tendo como ponto em comum os processos de
dominação e de exploração por eles vivenciados e as tentativas de superação
desta realidade, então a cultura se constitui, efetivamente, como um domínio
essencial para estas “guerras de posição”, para estas lutas em torno de uma nova
hegemonia.
É importante reforçarmos esta perspectiva de que estamos refletindo sobre
uma possibilidade de reação contra-hegemônica. Tal colocação é essencial para,
a princípio, afastarmos um entendimento excessivamente otimista que vemos se
afirmar no interior desta discussão acerca do culturalismo. Se a cultura pode se
constituir, para estes setores, como uma esfera de auto-afirmação, é importante
que não a isolemos de outras esferas, que, no contexto contemporâneo, definem e
redefinem as atuais forças hegemônicas. Não hesitaríamos em afirmar que,
apesar de todos os movimentos e tentativas de reação dos povos dominados,
permanece, no interior das estruturas internacionais, um bloco global de poder que
envolve, além de instituições políticas e estruturas socioeconômicas, uma série de
mecanismos morais, ideológicos e culturais que visam garantir o consentimento e
o apoio de grupos subalternos. Tal bloco, podemos afirmar, tem garantido sua
hegemonia, no cenário internacional, a partir do momento em que demonstra a
capacidade de fazer com que seus interesses particulares, sobretudo na esfera
econômica, tomem a aparência de interesses gerais ou universais. Nos dias
atuais, fica cada vez mais evidente que o exercício da hegemonia vai tornando
possível minimizar o uso da coerção e da dominação explícita e disseminar outros
sistemas de legitimação, capazes de mobilizar o apoio e de garantir a direção.
Neste sentido, acreditamos que a segunda perspectiva de análise da
globalização e da cultura, que apresentamos ao longo deste trabalho, ainda
carece de importantes elementos de crítica: estaríamos, realmente, diante de um
mundo mais “democrático” no que se refere à esfera cultural? Estaríamos,
concretamente, vivendo em uma “sociedade globalizada”, no sentido de pluralista
e com condições mais igualitárias de manifestação das diferentes expressões
culturais? Seriam os contatos e as trocas culturais, hoje intensificados,
possibilidades reais de conhecimento de alternativas para “ambos os lados”? Os
conflitos étnicos, nacionais ou mesmo culturais ocorridos neste início de século
não parecem apontar para respostas muito positivas a este tipo de questão.
Assim, reforçamos a idéia que anteriormente buscamos sustentar: a
globalização em curso coloca a necessidade e abre a possibilidade para a busca
de uma contra-hegemonia, potencializa grupos, classes, ou mesmo povos inteiros,
para, numa perspectiva transnacional, construir um novo bloco de forças capaz de
superar as contradições e fragilidades de nossa realidade social. Todavia, este
processo ainda nos parece algo absolutamente embrionário. Não nos parece
constituída, ou mesmo em vias concretas de constituição, a tão anunciada
“sociedade civil global”, enquanto um espaço real de construção de consensos e
de projetos para a humanidade, numa perspectiva transnacional. Neste contexto,
a cultura ainda guarda fortes elementos de subordinação, de dominação e de
conformismo, os quais precisam ser questionados e superados para que
possamos realmente compreender uma outra perspectiva, de uma situação
globalizada das manifestações culturais, enquanto elementos de emancipação e
de conhecimento de todos os povos.
É neste momento que a recuperação da categoria nacional-
popular se faz necessária e urgente. Como tivemos a
oportunidade de detalhar, no primeiro capítulo deste trabalho,
tal perspectiva se constrói, no pensamento gramsciano,
como claramente contra-hegemônica, ou seja, como capaz
de potencializar um projeto alternativo da classe
trabalhadora, como sempre imaginou Gramsci, onde o auto-
conhecimento e o conhecimento da realidade societária em
que se vive se faz com uma orientação crítica e reflexiva,
cultural, em seu sentido mais pleno. Neste momento, em
Gramsci, nacional e transnacional se constroem
mutuamente, determinando-se enquanto particularidade e
totalidade.
Para melhor fundamentarmos esta reatualização do nacional-
popular diante dos desafios contemporâneos, caberia
refletirmos sobre elementos que estão presentes na acepção
gramsciana e que precisam ser, no atual cenário,
criticamente problematizados.
3.3.1 – A questão dos intelectuais: a insustentável distância entre o silêncio
e o engajamento
Em uma de suas primeiras tentativas de demarcar a
compreensão de nacional-popular, conforme já discutimos,
Gramsci critica o histórico distanciamento, existente na
realidade italiana, entre os intelectuais e os setores
populares. Para ele, o resultado desta condição, em que os
primeiros não se sentem ligados organicamente aos
segundos, seria uma visão elitista de cultura, em que os
interesses e os problemas vivenciados pelas denominadas
“classes subalternas” não encontrariam visibilidade ou não
seriam politicamente problematizados por parte das camadas
intelectuais.
Como poderíamos compreender, nos dias atuais, esta
aproximação (ou a ausência dela) entre os intelectuais e os
setores populares? Que interesses a redimensionam e que
propostas os primeiros apresentam? Em outras palavras,
teria vida hoje, no cenário globalizado, o “intelectual
engajado”, ou ele, verdadeiramente, seria uma “figura em
extinção”?
CHAUÍ (2006) apresenta importantes colocações
acerca desta discussão. Refletindo exatamente sobre a
composição e o engajamento desta intelectualidade, a autora
afirma que o percurso histórico dos intelectuais comporta
uma difícil bidimensionalidade. Os intelectuais, sobretudo na
contemporaneidade, oscilam entre o recolhimento e o
engajamento, o silêncio e a intervenção pública, de acordo
com a forma como sua autonomia racional40 é tratada pelos
projetos societários em luta pela hegemonia. Quando tal
autonomia é respeitada, os intelectuais tendem a se recolher
e assumir uma posição de neutralidade e de silêncio. Por
outro lado, quando a mesma autonomia é ameaçada pelos
poderes instituídos, a tendência é de que os intelectuais
40 É de Boaventura de Souza Santos a discussão sobre esta “autonomia racional” na sociedade
contemporânea, quando ele reconhece o momento de crise do projeto societário da modernidade e
o avanço do que ficou denominado como “pós-modernidade”. Cf. SANTOS, Boaventura S. Pela
mão de Alice; o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
venham à cena pública para defendê-la. Esta fala e esta
ação pública dos intelectuais estariam orientadas por dois
traços principais, quais sejam, a transgressão com relação à
ordem vigente e a defesa de causas universais, distantes de
interesses particulares imediatos.
Entretanto, o que observamos é que o modo de
produção capitalista apresenta, contemporaneamente, novos
desafios e novas demandas para uma possível
“intelectualidade engajada”. Sobretudo no período pós-
Guerra Fria, quando a ideologia burguesa parece ter
encontrado sua perfeita configuração através da lógica de
que a ordem obteve vitória sobre a transformação, a
autonomia racional não pôde se manter alheia a todas estas
influências. Assim, fortaleceu-se, nos dias atuais, a idéia
clássica, já denunciada por Marx e Engels n’A ideologia
alemã, de que é possível uma separação entre o trabalho
intelectual e o trabalho manual, e de que o primeiro tem
primazia sobre o segundo. Reafirma-se, por este caminho, a
histórica separação entre os intelectuais, enquanto camada
que se imagina autônoma, e a realidade social mais
dinâmica, as classes sociais em luta, o conjunto das relações
sociais que compõem o modo de produção no qual estamos
envolvidos.
Desta forma, percebemos um cenário em que o
engajamento dos intelectuais encontra cada vez mais
desafios. Por inúmeros processos societários, está cada vez
mais mediada a necessidade de tomada de posição contra a
ordem vigente e contra as classes dominantes, e está cada
vez mais ausente a figura do intelectual como aquele que
intervém criticamente na esfera pública, procurando exprimir
e dar organicidade a uma perspectiva societária alternativa.
Assim, CHAUÍ (2006) busca enumerar possíveis causas para
este atual “silêncio dos intelectuais”.
Primeiramente, poderíamos mencionar “o amargo
abandono das utopias revolucionárias, a rejeição da política,
um ceticismo desencantado”. A derrota histórica de
experiências que se propunham alternativas ao capitalismo e
o avanço deste último pelos “quatro cantos do mundo”,
sobretudo sob o formato da mundialização do capital,
anunciam o desaparecimento do “horizonte histórico do
futuro” e decretam o “fim da história”. O presente se coloca
agora como o único universo possível e se fecha sobre si
mesmo. “Morre o sujeito revolucionário” e, com ele, a
expectativa de que o engajamento dos intelectuais poderia
garantir a consolidação de uma proposta alternativa.
Segundo SANTOS (1995), parecia haver, na lógica do projeto da
modernidade, uma profunda relação entre a capacidade e a intencionalidade. Se o
sujeito revolucionário tinha interesses em uma transformação, também tinha
capacidade para realizá-la. A história, entretanto, parece ter demonstrado que esta
relação não era tão verdadeira assim. Segundo este mesmo autor, parece existir
hoje uma dúvida sobre a capacidade ou sobre a intencionalidade revolucionária da
classe operária, considerada como o sujeito revolucionário por excelência. Se o
proletariado deseja fazer uma mudança radical de superação do capitalismo,
parece não ter capacidade para tanto. Ou, em outra situação, se o proletariado
tem capacidade para fazer tal mudança, parece não ter mais interesse. A crítica
parece ainda mais contundente: não existe nem mesmo uma única identidade que
possa criar o sujeito revolucionário. Este agora parece estar diluído em inúmeras
identidades, as quais o possibilitam fazer apenas pequenas mudanças e
transformações na organização social de seu cotidiano.
Além de vivenciarem esta ausência de um “sujeito revolucionário” ao qual
educar e organizar, os intelectuais, na expectativa do engajamento, parecem se
confrontar também com um encolhimento do espaço público e o alargamento do
espaço privado, favorecidos pelo desenvolvimento de novas formas de
acumulação do capital impulsionadas pelo neoliberalismo. Diante de um novo
conjunto de valores burgueses, onde o cidadão é transformado em consumidor,
até mesmo de serviços sociais que são agora, abraçados pela lógica de mercado,
parece desnecessária a figura do intelectual.
O recuo da cidadania e a despolitização produzem a substituição do intelectual engajado pela figura do especialista competente, cujo suposto saber lhe confere o poder para, em todas as esferas da vida social, dizer aos demais o que se deve pensar, sentir, fazer e esperar. A crítica do existente é silenciada pela proliferação
ideológica competente dos receituários para bem viver. (CHAUÍ, 2006, p. 30)
Neste sentido, mudou o modo de inserção de pensadores e técnicos na
sociedade. O saber e a tecnologia, no modo de produção capitalista
contemporâneo, não se configuram mais como meros elementos de suporte do
capital, mas se converteram em agentes diretos da acumulação capitalista.
Vivemos a “sociedade do conhecimento”, mas nela o que se observa é o uso
competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos
processos produtivos. Neste cenário, onde a lógica de mercado para ter dominado
o conhecimento, que funções e que participação se espera do “intelectual”, no
sentido gramsciano?
O conhecimento contemporâneo se caracteriza pelo crescimento acelerado e pela tendência a uma rápida obsolescência. Neste contexto, como falar em autonomia racional? Se as artes já haviam sido devoradas pela indústria cultural, agora são as ciências e as técnicas que se encontram submetidas à lógica empresarial. Não só a pesquisa se transformou em survey e posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa, mas também depende diretamente dos investimentos empresariais, os quais são determinados pelo jogo estratégico da competição no mercado, de maneira que os pesquisadores são mantidos e se firmam se forem capazes de propor obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos microproblemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez menor. Os produtores de conhecimento e tecnologias absorvem a lógica da competição empresarial e dão a ela sua adesão, negando, portanto, a autonomia racional, que dava autonomia à intervenção pública crítica dos intelectuais. (IBIDEM, p. 32)
Como podemos observar, a noção de intelectual e a função atribuída a esta
camada por Gramsci ao longo de toda a sua produção, se fazem cada vez mais
necessárias e urgentes. O intelectual que “educa e organiza”, sobretudo a partir de
um projeto de classe, ou seja, o intelectual orgânico, reforça neste cenário a sua
importância, no sentido de potencializar o movimento das classes em luta e de
problematizar criticamente este aparato ideológico burguês. Os “tempos pós-
modernos” necessitam, cada vez mais, do intelectual enquanto impulsionador de
uma “verdadeira revolução de idéias”, capaz de alimentar os elementos de crítica
e de resistência que, embora dominados, não se encontram completamente
ausentes de nossa sociedade.
Assim, estes intelectuais, inseridos numa orientação nacional-popular,
devem manter sua função cultural em seu sentido mais amplo, ou seja, de um
movimento de conhecimento e de auto-conhecimento crítico capaz de garantir ao
conjunto das classes subalternas, ao mesmo tempo, a compreensão de sua
inserção na sociedade “globalizada” e os caminhos pelos quais ela pode ser
superada. Coloca-se, dentre outras, a questão da linguagem, como um desafio
para projetos que se pretendam alternativos ao que hoje se apresenta como
hegemônico. Ao falarmos sobre linguagem, lembramos a formulação gramsciana,
onde ela se constrói como fato histórico, através da qual intelectuais e “povo-
nação” se compreendam para lutar por uma nova cultura. Coloca-se também a
necessidade de comunicação e compreensão de experiências diversas, ligadas ao
cotidiano das classes trabalhadoras, e de novas associações de cultura, como as
que Gramsci pensara em seu período pré-cárcere.
Retomar a perspectiva nacional-popular se afirma, então, como uma tarefa
intelectual, principalmente no sentido de, numa proposta contra-hegemônica,
reatualizar a tradição marxista, retomando seus elementos de continuidade e, ao
mesmo tempo, problematizando-a diante dos novos desafios socioeconômicos e
culturais da contemporaneidade.
Ser gramsciano hoje implica, entre outras
coisas, reconhecer que os intelectuais
orgânicos do presente se defrontam com
novas realidades e, portanto, que surgem
novos conteúdos em sua união e aliança
com as forças subalternas, como parte do
necessário processo conjunto de
esclarecimento, amadurecimento da
consciência, responsabilidade
internacionalista e ação autônoma e
concertada. É por meio desse esforço que
os subalternos chegam a fazer parte do
sujeito histórico, ou seja, do sujeito
empenhado na transformação radical do
sistema. (MONAL, 2003, p. 198-9)
Na necessária presença dos intelectuais orgânicos na contemporaneidade,
se afirma a orientação gramsciana do “pessimismo da inteligência e otimismo da
vontade”41, onde a segunda não é suficiente para sustentar, sobretudo nos dias
atuais, uma nova proposta revolucionária. Exige-se uma reciprocidade dos dois
elementos, onde a renovação esteja dialeticamente combinada com o realismo,
que os intelectuais devem ser capazes de construir. Nas formulações de LESTER
(2003, p. 161)
41 Literalmente, a formulação do “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” é de Romain Rolland, embora tenha ganhado, com Gramsci, a visibilidade que hoje conhecemos.
(...) em nenhum lugar as próprias massas
estão tão pessimistas quanto os
intelectuais. Mas aquilo de que mais
precisam, e que buscam
desesperadamente, é um ponto de
referência e um centro em torno do qual
convergirem. Trata-se de algo que os
intelectuais podem lhes dar e o fracasso
nesta tarefa seria a pior de todas as
traições. Um sentimento de otimismo tinha
de ser mantido vivo, enquanto prosseguia
a busca de um terreno mais fértil, no qual
se pudessem lançar suas sementes.
Este seria, em nossa opinião, o primeiro desafio contemporâneo de uma
perspectiva nacional-popular, a necessidade de uma verdadeira unidade entre o
conhecimento, a compreensão e o sentimento. Este desafio, evidentemente, não
se constrói isoladamente.
3.3.2 – O nacional e o global: oposição ou construção dialética?
O centro das discussões gramscianas sobre a perspectiva nacional-popular
está, indubitavelmente, no seu debate em torno da importância do elemento
nacional na construção de um projeto alternativo à sociedade capitalista. Se, num
primeiro momento, poderíamos pensar que esta preocupação de Gramsci com o
nacional se dá por sua inserção sócio-histórica da “era do Estado-nação” e nas
particularidades da realidade italiana, podemos observar que está é uma
conclusão aparente, pois ainda hoje o nacional se apresenta como questão-chave
do pensamento social contemporâneo e como desafio para a construção de
propostas alternativas.
Desde o início, é preciso lembrarmos que Gramsci é um pensador
organicamente internacionalista, mas de um internacionalismo real, que só o
comunismo poderia garantir, através de um engajamento constitutivo entre nação
e povo. Em suas formulações, nacional e internacional compõem sempre um todo
dialético, onde o primeiro é o ponto de partida, o espaço das manifestações mais
imediatas das contradições e dos embates vivenciados pelas classes sociais em
luta e que, portanto, não pode ser, de forma nenhuma desprezado. O segundo,
por outro lado, é o espaço da determinação e da intervenção revolucionárias, é o
horizonte ao qual devem almejar os diferentes projetos societários na luta
hegemônica.
Não há, portanto, qualquer possibilidade de se separar, ou mesmo de negar
qualquer um destes elementos, sob pena de perdermos a riqueza histórica da
dialética entre particularidade e universalidade, pois as “histórias particulares
vivem somente no quadro da história mundial”42. A partir das análises feitas por
BARATTA (2003, p. 15), podemos perceber que Gramsci é enfático na “afirmação
do status de nação como pressuposto para a plena participação de um povo ou de
uma cultura no ‘quadro da história mundial’”. O nacional-popular é sempre uma
combinação entre consciência nacional, internacionalismo e perspectiva de classe,
42 É interessante observarmos que Gramsci sempre menciona, como exemplos de uma literatura nacional-popular, obras de Shakespeare, Goethe, Tolstoi, dentre outros. Em outras palavras, o que caracterizaria esta literatura não é a nacionalidade dos autores, mas a realização orgânica e verdadeira da relação entre intelectuais, povo e nação.
e é neste sentido que deve impulsionar as mais diversas formas de manifestação
da cultura. Diante do avanço capitalista contemporâneo, conforme discutimos
anteriormente, o avassalador desenvolvimento dos meios de comunicação e de
transporte não nos permite pensar mais em alternativas societárias que se
construam no espaço nacional de forma isolada.
Parece-nos que é este sentido e esta significação da “questão nacional”
que precisa ser recuperada pelo pensamento social crítico na contemporaneidade,
com a finalidade de deixar claro o conteúdo ideológico da anunciada “sociedade
global”. Recuperar o nacional neste “mundo globalizado” significa conhecer suas
especificidades, seus dilemas e suas potencialidades, não para se limitar a eles,
mas para, a partir deles, compreender a inserção no cenário globalizado,
entendendo a correlação de forças que se desenha neste contexto
contemporâneo. Em outras palavras, uma perspectiva nacional-popular se
sustenta hoje a partir da capacidade de se garantir, nas mais diversas realidades
nacionais, o conhecimento e a crítica do processo de mundialização do capital em
curso, bem como de seus efeitos econômicos, políticos e sociais, nas dimensões
nacional e internacional.
Pelo contrário, no discurso hegemônico, sempre que se chama atenção
para a questão nacional e popular, existe uma tendência a identificar estes dois
elementos com regionalismos, nacionalismos e independentismos, em uma visão
restrita desta dualidade. Em outras palavras, existe uma falta de identidade entre
povo e nação e são sempre valorizados os elementos que tendem a fortalecer
esta dicotomia. O resultado deste imediatismo é que se acentuam as diferenças
nacionais e se particulariza o elemento popular, cortando na raiz a dialética
relação, proposta por Gramsci, entre estes dois elementos.
É expressiva a analogia que Gramsci
estabelece, neste caso, entre linguagens
científicas e culturas nacionais. Ele
argumenta que, da mesma maneira que
dois cientistas formados no terreno de
uma mesma cultura fundamental
acreditam sustentar “verdades” distintas
somente porque empregam linguagens
diferentes ao expor suas idéias, assim
também duas culturas nacionais, que são
expressão de civilizações profundamente
parecidas, acreditam ser distintas e se
apresentam como opostas e até
antagônicas apenas porque empregam
linguagens de tradição distinta. (BUEY,
2003, p. 32-33)
Neste sentido, podemos observar que um dos grandes obstáculos para a
construção de uma concepção de mundo “alternativamente globalizada” hoje é
esta dificuldade de se trabalhar com a identidade e a diferenciação de uma forma
dialética. Na análise desta questão nacional, vale lembrar a formulação
gramsciana de que
Descobrir a identidade real sob a aparente
diferenciação e contradição, e descobrir a
substancial diversidade sob a aparente
identidade, eis o mais delicado,
incompreendido e, não obstante, essencial
dom do crítico das idéias e do historiador
do desenvolvimento histórico. (GRAMSCI,
2000, p. 206)
Neste sentido, a cultura apresenta uma potencialidade indiscutível,
naqueles três níveis de compreensão que construímos no primeiro capítulo do
trabalho. Enquanto “modo de vida global”, a cultura deixa manifesto o conjunto de
valores, tradições, conceitos e representações que, histórica e socialmente
determinados, dão a dimensão do que seja uma “cultura nacional” e, ao mesmo
tempo, situam esta cultura num plano mais amplo, enquanto parte constitutiva de
uma cultura mundial marcada por relações de dominação e de consenso.
Assim também estão caracterizadas as manifestações artísticas e
intelectuais, que expressam estas relações e, portanto, são envolvidas por
elementos desta identidade e desta diferenciação. Estas manifestações, quando
orientadas por uma lógica nacional-popular, têm a potencialidade de promover o
debate, de tornar evidente as relações de dominação capitalista nas quais
estamos envolvidos e de articular a experiência nacional e a consciência da
necessidade internacionalista, de expressar o próprio lugar e, ao mesmo tempo, o
mundo em seu conjunto.
Neste momento, é importante lembrarmos também que, para Gramsci, as
relações hegemônicas não ocorrem somente em nível nacional, mas também
internacional. É neste sentido que ele constrói sua idéia de nação hegemônica,
que tem, entre seus elementos constitutivos enquanto potência internacional, o
elemento ideológico, ou cultural em seu sentido mais pleno, que tende a minimizar
o uso do poder coercitivo, fortalecendo e dando novas determinações ao domínio,
também cultural e ideológico. Em suas próprias palavras,
O modo através do qual se exprime a
condição de grande potência é dado pela
possibilidade de imprimir à atividade
estatal uma direção autônoma, que influa
e repercuta sobre os outros Estados: a
grande potência é potência hegemônica,
líder e guia de um sistema de alianças e
de pactos com maior ou menos extensão.
(...) Um elemento “imponderável” é a
posição “ideológica” que um país ocupa no
mundo em cada momento determinado,
enquanto considerado reporesentante das
forças progressistas da história. (...) Dispor
de todos os elementos que, nos limites do
previsível, dão segurança de vitória
significa dispor de um potencial de
pressão diplomática de grande potência,
isto é, significa obter uma parte dos
resultados de uma guerra vitoriosa sem
necessidade de combater. (GRAMSCI,
2000, p. 55)
A nação hegemônica (ou, as nações hegemônicas), nos dias de hoje, tem,
portanto, a necessidade de criar uma “cultura da globalização”, ou seja, um
aparato cultural, principalmente no campo das artes e das manifestações
intelectuais, que dê “vida” e, ao mesmo tempo, justifique a lógica da globalização
em suas dimensões econômica, política e social. A produção de Gramsci nos
capacita a acentuar, assim, o papel ideológico da globalização, ou seja, a
necessidade de elementos culturais que afirmem a hegemonia do grande capital
nos dias de hoje. O capital mundializado retira suas forças, também, dos seus
poderes e mecanismos de persuasão. Neste cenário, uma perspectiva “nacional-
popular”, criticamente recolocada, tem por proposta garantir o conhecimento deste
processo como um momento de renovação da lógica imperialista, destacando a
ênfase contemporânea às estratégias de conquista de hegemonia, e buscar, nas
dimensões nacional e supranacional, o caminho para, capacitando, também
culturalmente, o conjunto das classes trabalhadoras, buscar reais alternativas de
superação desta nova ordem do capital. Este nos parece ser um importante
exercício a ser levado adiante pelas forças contra-hegemônicas em nossa
sociedade, em especial por intelectuais coletivos, tais como os partidos políticos.
3.3.3 – A análise do “elemento popular” a partir de uma dimensão classista:
o desafio de reencontro com as “classes trabalhadoras”
Um terceiro desafio na tentativa de recuperar, no cenário contemporâneo, a
perspectiva nacional-popular diz respeito, justamente, ao segundo termo que
compõe esta totalidade. Em outras palavras, o que Gramsci entende, ao longo de
toda a sua produção, por “elemento popular”? Estaríamos diante de um abandono,
por parte deste autor, de uma perspectiva de classe, onde sua adesão sempre se
referiu à classe trabalhadora?
MONAL (2003) afirma que Gramsci, ao longo dos Cadernos do Cárcere, vai
gradativamente abandonando o termo “classes trabalhadoras”, ou “classes
subalternas” e substituindo-o por “grupos subalternos”. Na opinião da autora, isso
representa mais que uma opção lingüística. Significa que Gramsci vai se dando
conta, no cárcere, de que as classes trabalhadoras estariam passando por um
complexo processo de fragmentação, dispersão e heterogeneidade que daria
origem a uma nova categoria, a de grupos, os quais não se compõem,
necessariamente, enquanto classes sociais fundamentais ao modo de produção
capitalista. Assim, segundo esta autora esta “categoria” grupos subalternos seria
de grande significação nos dias atuais para pensarmos a dinamicidade e a
multiplicidade de espaços organizativos, que dão vida às diversas sociedades civis
em todo o mundo.
Discordando, a princípio, desta formulação, acreditamos que ela representa
uma leitura muito imediatista da obra de Gramsci. A utilização de termos
“alternativos” nesta produção, tais como “grupos subalternos”, nos parece fruto da
censura e da autocensura a que Gramsci esteve submetido, e não uma
diferenciação teórico-conceitual significativa. A análise do conjunto desta produção
nos faz afirmar que Gramsci nunca abandonou, ou mesmo relativizou, a
perspectiva de classe que o orientava desde seus escritos políticos, quando a
militância nos partidos socialista e comunista da Itália o aproximou definitivamente
do cotidiano da classe operária italiana e da perspectiva marxista.
Esta análise feita por MONAL (2003) nos parece, entretanto, justificada por
uma configuração contemporânea. Durante as décadas de 80 e 90, ou seja, no
momento de auge da redefinição do processo contemporâneo de acumulação de
capital, ganharam força as análises teóricas que passaram a compreender o
“povo” e a “classe trabalhadora” como agrupamentos complexos de múltiplos
atores que se entrecruzam e se renovam continuamente. Da mesma forma,
cresceu, neste momento, a proposta de análise, nos marcos do que se
convencionou chamar de “pós-modernidade”, de que estaríamos vivenciando uma
verdadeira disputa de diferentes formas de subjetividades. Seríamos, assim,
constituídos por uma rede de sujeitos com estas diferentes subjetividades, as
quais correspondem às várias formas de poder que circulam na sociedade. Desta
forma, dependendo das múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas, uma de
nossas subjetividades poderia se destacar, tais como etnia, gênero, classe,
cultura, etc. Assim, esta subjetividade é que daria o tom, naquela circunstância
específica, das perspectivas de transformação social que se apresentam para o
sujeito. Assim, este seria, ao mesmo tempo, livre, porque não estaria orientado por
um único elemento de sua vida social, e determinado, porque estas múltiplas
subjetividades o colocariam, a cada momento, dentro de comportamentos e
valores específicos.
Parece-nos claro que a proposta pós-moderna tem, assim, uma explícita
intenção substitutiva. Ao privilegiar tópicos como a sexualidade, o corpo, o gênero,
a etnicidade, entre outros, a lógica pós-moderna coloca uma nova pauta política,
onde antes vigoravam questões como classe, Estado, ideologia, revolução, modos
de produção, etc. As questões mais imediatas para a compreensão do cotidiano
vêm à tona, são politizadas e mobilizam a população em torno de novos e
diversificados movimentos sociais. Enquanto isso, as chamadas “formas clássicas”
são desqualificadas e negadas, diante de um processo evidente de naturalização
do capitalismo. Assim, o que vigora hoje seria um “paradigma da diferença”,
quando uma grande variedade de conflitos parece substituir a luta de classes.
Diante deste cenário “pós-moderno”, percebemos a recuperação de uma
perspectiva individualista e aclassista, onde a identidade humana não se coloca
como algo dado, mas como uma “tarefa”, uma possibilidade, diante das inúmeras
subjetividades que se encontram em disputa no cenário político. A sociologia
contemporânea estaria marcada pela lógica do fim da sociedade dividida em
“burgueses e proletários” e nela não existe a possibilidade de uma vontade
coletiva que conduza e construa uma ação coletiva daqueles que vendem sua
força de trabalho.
Esta não nos parece, de forma alguma, a posição gramsciana. No que se
refere especificamente à sua orientação nacional-popular, acreditamos que
recuperá-la significa, necessariamente, repensar a sua noção acerca das classes
subalternas, retomando a centralidade histórica das classes trabalhadoras em
toda a sua complexidade. Acreditamos, sim, que a constituição desta classe hoje
coloca novos desafios que devem envolver a problematização da questão
territorial e os novos instrumentos de luta política, mas nunca a sua centralidade.
Para Gramsci, indubitavelmente, “popular” está diretamente relacionado à
constituição das “classes trabalhadoras”. A hegemonia, categoria central para o
pensamento gramsciano, nasce “no chão da fábrica”, ou seja, tem suas raízes na
esfera da produção, e só a partir da definição das classes sociais na dinâmica
desta esfera é que se pode falar de uma dimensão societária mais ampla. Em
Americanismo e Fordismo, por exemplo, Gramsci delimita com clareza o fato de
que o capital se constrói, enquanto relação social, numa perspectiva de totalidade,
ou seja, ao mesmo tempo, ele produz mercadorias, produz suas classes em luta e
produz também formas de consciência moral que são determinadas por esta
estrutura de classe. O plano ideológico-cultural é, portanto, parte constitutiva das
relações produtivas colocadas em movimento pelas formas históricas que o
capitalismo vem apresentando.
Desta forma, recuperar a noção de nacional-popular hoje significa recuperar
a potencialidade das classes trabalhadoras contemporâneas para a conquista de
uma nova hegemonia capaz de, conforme afirma SIMIONATTO (2003), recompor
um novo modo de pensar e de conhecer o mundo. Supõe a capacidade destas
classes, apesar de toda sua heterogeneidade, para mudar não só as relações de
dominação e de exploração na esfera econômica, mas também a formação de
novos padrões culturais. Significa pensar, enfim, os caminhos para que tais
classes se tornem dirigentes, sejam capazes de “tornar-se Estado”, costurando
interesses e perspectivas altamente diferenciadas da sociedade capitalista
contemporânea em torno de um novo “sujeito histórico”, coletivo, formado pelas
classes exploradas em seu diversificado conjunto.
Os “novos dirigentes”, como se pode
deduzir da visão de Gramsci, são
considerados em sua singularidade, mas
não coagulados em seu individualismo;
são livres, mas não anárquicos e
pulverizados, são organizados em torno de
um projeto de democracia popular, não
“socialmente entrosados” para auferir
interesses corporativos, são formados e
não apenas informados, transformadores e
não apenas “eficientes”, anseiam pela arte
e não por modismos, são populares e não
populistas, solidários e não
assistencialistas. (SEMERARO, 2003, p.
272).
Tal desafio recoloca, em outra dimensão, as tarefas de
natureza cultural que o movimento de organização das
classes trabalhadoras precisa recuperar nos dias de hoje.
Para isso, acreditamos que uma nova compreensão de
cultura se faz extremamente necessária.
3.3.4 – Por uma concepção ampla do termo cultura
Para que possamos levar adiante este debate acerca dos desafios
contemporâneos para a perspectiva nacional-popular, é preciso reforçar a idéia de
que, em Gramsci, existe uma compreensão mais abrangente do termo cultura, que
ultrapassa, ao mesmo tempo, uma abordagem meramente artística e intelectual
do termo e outra meramente antropológica, onde cultura seja entendida apenas
como um elemento que reforça e prega a convivência e a tolerância com as
“diferenças”.
Cultura em Gramsci está relacionada, como vimos, a uma consciência
plenamente desenvolvida, um modo de pensar e de compreender a inserção de
determinada classe, e do projeto por ela incorporado, na dinâmica da vida social.
Nosso autor reforça também que esta consciência precisa se superar, tornando-se
a “base de ações vitais”, que se materializa na sociedade através de uma “reforma
intelectual e moral”. Lembrando as formulações presentes em Socialismo e
Cultura, ainda em sua fase “tendencialmente crociana”, Gramsci já construía a
proposta de que cultura é a obtenção do autoconhecimento e da autodisciplina, é
o espaço de reflexão e de consciência superior, é a oportunidade de conhecer seu
próprio valor histórico e sua “própria função na vida” social. Devemos destacar,
nesta compreensão de cultura, a idéia de que é através dela que as classes
subalternas conhecem “os outros” e que, ao mesmo tempo, se forma enquanto
sujeito de uma alternativa a este processo.
A própria compreensão de nacional-popular se insere nesta concepção
mais ampla de cultura em Gramsci. Tal perspectiva não aponta meramente para
uma posição artística ou intelectual, mas é o horizonte de uma nova consciência, é
um objetivo político e político-cultural absolutamente amplo do conjunto das
demandas das classes trabalhadoras. Em seu desenvolvimento, ela envolve
também questões econômicas, políticas e sociais. O que teríamos de nacional-
popular na esfera das artes e da vida intelectual seria, portanto, o resultado de
uma perspectiva mais ampla, a orientar e impulsionar diferentes movimentos na
sociedade.
Por isso, cultura e educação são, em Gramsci, termos absolutamente
dependentes, pois remetem a um trabalho de crítica, de penetração cultural, de
impregnação de idéias novas que acontece como momento constitutivo de um
processo revolucionário, e não anterior ou posterior a ele. Nos Cadernos do
Cárcere, Gramsci supera definitivamente sua fase idealista na abordagem sobre a
cultura, e o faz a partir do momento em que reconhece a luta cultural como parte
de uma luta pela hegemonia, que se dá no conjunto da sociedade, a partir de um
ponto de vista classista. É a hegemonia que dá direção a uma sociedade, e ela
prevê um momento ideológico e persuasivo que Gramsci não hesitaria em chamar
de “cultural”.
A civilização burguesa moderna, na visão
de Gramsci, se perpetua através de
operações de hegemonia – isto é, através
das atividades e iniciativas de uma ampla
rede de organizações culturais,
movimentos políticos e instituições
educacionais que difundem sua
concepção do mundo e seus valores
capilarmente pela sociedade. Mas – deve-
se logo acrescentar – Gramsci não
compreende as operações hegemônicas
como unidirecionais; elas não consistem
somente na transmissão e disseminação
de idéias e opiniões dos grupos
dominantes para os estratos
subordinados. A atividade cultural, no
sentido mais amplo do termo, também
estimula novas idéias nos setores
privilegiados da sociedade, permite-lhes
enfrentar novos problemas e
permanecerem sintonizados com as
demandas e aspirações de todos os
setores da sociedade; em poucas
palavras, ela reforça a capacidade dos
grupos dominantes para olhar além do
próprio interesse corporativo e estreito e,
portanto, ampliar sua ação e influência
sobre o resto da sociedade. A hegemonia,
tal como Gramsci a concebe, é uma
relação educacional. (BUTTIGIEG, 2003,
p. 46-47, grifos nossos)
Para este nosso autor, a revolução é um processo constante e permanente,
que comporta um importante momento de renovação cultural. A cultura é este
elemento que, paralelamente aos demais, dá persistência à revolução enquanto
esfera da consciência e da existência com determinados valores, socialmente
construídos e referendados. Por isso, a revolução é um processo também longo e
incerto, pois prevê “momentos de destruição”, não só de coisas materiais, mas de
“relações invisíveis, impalpáveis”, que se constroem e se afirmam em nosso
cotidiano. Para que ela se concretize, é preciso contar com uma coesão e uma
consciência coletiva que se constituem em pressupostos de um novo poder
hegemônico.
Neste sentido, nacional-popular é uma nova “vontade coletiva”, uma nova
consciência de “necessidades objetivas históricas”. Ela só pode se vincular, nos
dias atuais, a um novo projeto de hegemonia, com raízes nacionais e articulações
internacionais, fundado naquela interação dialética de que nos fala BUTTIGIEG
(2003), entre o “saber” de uma nova intelectualidade e o “sentir” do “povo”, não
enquanto elemento abstrato e a-histórico, mas como materialidade construída a
partir das relações sociais nas quais estão envolvidas as classes trabalhadoras
contemporâneas em toda a sua complexidade e heterogeneidade, como nos
propunha ANTUNES (2000).
Desta forma, se o nacional-popular é um projeto alternativo das classes
trabalhadoras, ele pode se afirmar a partir do que SEMERARO (2003) chamou de
outras “armas” para a luta hegemônica, armas estas que devem ser “entregues” e,
ao mesmo tempo, construídas pelas classes subalternas em luta:
(...) distanciamento crítico da realidade, formação da sua autonomia pela ação política, representação de si pela criação de uma cultura própria, participação ativa na construção de um projeto popular de democracia articulado com forças nacionais e internacionais. Sem socializar o poder e criar uma nova cultura em que os excluídos tenham lugar na construção do conhecimento, na produção e na distribuição das riquezas planetárias, não é mais possível falar plenamente em democracia. (2003, p. 262)
Acreditamos que é esta perspectiva mais ampla de “cultura” que
está absolutamente ausente do debate contemporâneo, e esta
ausência acaba por permitir a vitória ideológica de propostas de
“globalização da cultura” pelas mãos do grande capital mundializado.
Mais uma vez, também neste aspecto, ler Gramsci tem se mostrado
como um importante exercício para não só entender, mas também
intervir e transformar a realidade.
3.3.5 – Cultura e sociedade civil: o espaço privilegiado para a construção de
uma perspectiva nacional-popular
Enfim, teríamos a acrescentar ainda que todo este processo não se faz sem
um “local” específico de luta. É aqui que acreditamos na necessidade de se
recuperar o debate acerca da sociedade civil e, mais propriamente, da noção de
“Estado ampliado” em Gramsci.
Como já tivemos a oportunidade de observar, hegemonia é um tema
freqüente nos Cadernos, mas que não se apresenta completamente construído
desde um primeiro momento. Ele vai sendo gradualmente enriquecido e
trabalhado por Gramsci, em conexão com seu tratamento de temas e fenômenos
cada vez mais diversos. Podemos ponderar que a maturidade gramsciana acerca
da hegemonia acontece a partir do reconhecimento da esfera da sociedade civil
como o espaço da luta política, do confronto entre diferentes e plurais projetos
societários, da superação do momento econômico-corporativo pelas diferentes
classes sociais em luta na sociedade. A sociedade civil deixa evidente, em sua
constituição, a validade histórica da guerra de posição como estratégia
revolucionária, ou seja, de uma revolução prolongada no tempo, com várias
frentes simultâneas, sujeitas a avanços e retrocessos parciais. Neste caminho, a
revolução se coloca como um processo de laboriosa gestação, que inclui, dentre
outras, uma dimensão cultural.
Assim, é na sociedade civil que se constrói, segundo Gramsci, a
expectativa e a possibilidade de uma verdadeira “reforma cultural e moral” ou do
que preferimos chamar de uma revolução cultural. Na trama pluralista e dinâmica
desta esfera, diferentes projetos, inclusive o das classes trabalhadoras, podem
investir na geração de várias formas de consciência coletiva e de consenso,
viabilizando uma organização ético-cultural da vida social. Naquele sentido da
hegemonia, podemos afirmar que a sociedade viabiliza a produção, não só
material, mas também cultural de uma classe hegemônica.
Por esta análise, a sociedade civil se afirma como a esfera do conflito, do
confronto, do embate político que demonstram a dimensão cultural da luta política,
e vice- versa. A classe dominante constrói, na sociedade civil, estruturas e
instituições (escolas, associações culturais, dentre outras) que tendem a garantir
suas reservas políticas e ideológicas, fazendo do trinômio economia, política e
cultura um todo orgânico e complexo, onde estes elementos se determinam
mutuamente. É daí que o Estado, na versão ampliada de que nos fala Gramsci,
retira sua força material e moral, quando consegue assimilar a atividade e o
enfrentamento cultural e ideológico e consegue transformá-los em base de
legitimação no interior da sociedade.
Se compreendermos a sociedade civil como este espaço dinâmico para a
construção de uma perspectiva nacional-popular, percebemos que esta última
encontra novos e complexos desafios no cenário contemporâneo. Neste momento,
o que parece evidente é a tentativa das classes dominantes de promover a
neutralidade e o enfraquecimento político-ideológico da sociedade civil, retirando
permanentemente as classes subalternas da esfera pública. Neste quadro, a
sociedade civil é esvaziada de seu potencial pluralista e conflituoso, e
transformada em um todo acrítico e apolítico, que existe apenas para reproduzir o
discurso e a prática dominantes. É a primazia da “pequena política”, poderíamos
dizer, e de tudo de imediatismo que ela pode construir.
A dispersão, a falta de articulação com
outros espaços que não os do próprio
setor ou “tema”, o isolamento e a
inorganicidade – coisas que muitos
saúdam em nome da diferença ou da
“tolerância” – só podem levar à
conservação da sociedade existente. Os
atuais pensadores da dominação deixam
com prazer às organizações das classes
subalternas, o terreno da “pequena
política”, no qual apenas se disputam
questões “parciais e cotidianas”, para
disfarçar assim a renúncia à “grande
política”, que se abandona com
exclusividade às classes dominantes. As
organizações populares precisam reagir
em face das fortes pressões em favor de
sua “domesticação”, de seu
enquadramento nos limites de uma
“governabilidade” entendida basicamente
como um sistema em que as classes
subalternas podem exercer sua liberdade
de organização e mobilização, mas desde
que se abstenham de tudo aquilo que
possa perturbar as relações de poder
existentes. (CAMPIONE, 2003, p. 61)
A sociedade globalizada seria, a partir desta despolitização, o cenário de
avanço de uma proposta pós-moderna de mini-racionalidades. O capitalismo,
enquanto modo de produção “natural” busca subordinar ao seu domínio toda a
realidade, apresentando-se como um sujeito abstrato, não imediatamente
perceptível, num mundo superficial e harmonioso. Diante da fragmentação
resultante do desenvolvimento do projeto de modernidade no interior da sociedade
capitalista, a saída pós-moderna seria partir para racionalidades e necessidades
locais múltiplas, construídas e enfrentadas nos espaços micro, sem uma
necessária relação de totalidade.
Desorganizar, fragmentar, reforçar o privado, “seduzir” pela crescente oferta de bens de consumo são caminhos de busca de passividade das massas, em nada coincidentes com a geração do consenso “ativo e organizado” a que faz referência Gramsci. Trata-se muito mais de um consentimento à própria despolitização, persuadido daquilo que Therborn chama de “sentimento de inevitabilidade” (IBIDEM, p. 58-59)
Neste contexto, NOGUEIRA (2003) nos aponta uma série de questões que
precisam ser abordadas criticamente a fim de que possamos fortalecer o desafio
de construir uma “vontade coletiva nacional-popular”. Dentre elas poderíamos
citar:
a) A investida neoliberal, com sua proposta conservadora de redução
do Estado, sobretudo em suas antigas funções, tem fortalecido o que
este autor denominou de uma “sociedade civil liberal”, com novas
feições e novos encargos.
b) Com o enfraquecimento da dimensão e das instituições públicas,
assim como da capacidade de influenciar decisivamente nas grandes
questões da sociedade, esta esfera vem, a cada dia, substituindo o
Estado em suas funções e enfraquecendo-se em termos de projetos
societários, compondo-se cada vez mais como uma estrutura de
mera reprodução e legitimação do poder dominante.
c) Percebemos um duplo movimento de expansão e fragmentação da
sociedade civil, pois apesar de inúmeras ações e movimentos,
próprios de um rico processo de pluralização, ela se esvazia de
macro projetos societários, consistentes e capazes de propor
alternativas reais ao conjunto das classes sociais em luta pela
hegemonia.
d) Na ausência destes projetos, o que ganha força é uma fragilidade
das bases de contestação, com movimentos antes reivindicativos e
politicamente definidos partindo para “caminhos pós-modernos”, nos
quais ficam claros o bloqueio da democracia e o incentivo à
improdutividade dos governos.
Diante desta investida neoconservadora nas sociedades
contemporâneas, é preciso recuperar a perspectiva
gramsciana de que a sociedade civil, apesar de ser o espaço
de consenso e de hegemonia, não é o lugar de uma
“harmonia” ou de um apoliticismo que tende a eliminar o
enfrentamento entre as diversas classes sociais em luta.
Faz-se urgente, neste contexto, valer-se da cultura como um
elemento de redefinição de projetos societários, os quais
devem se contrapor, na trama pluralista da sociedade civil,
em torno das questões da “grande política”, tão ausentes e,
ao mesmo tempo, tão necessárias para as verdadeiras
disputas que tomam lugar em nossa sociedade.
Em um cenário como este, afirmamos, mais uma vez, que a
proposta de “recuperar o nacional sob uma perspectiva
popular”, pelos caminhos que anteriormente propusemos,
significa, claramente, uma opção contra-hegemônica, tarefa
“nacional e internacional”, de movimentos realmente
convencidos da efemeridade e da limitação histórica da
sociedade construída sobre o sistema do capital.
Considerações finais
Como tivemos a oportunidade de perceber, o processo de
globalização que estamos vivenciando é amplo e diversificado,
atingindo as mais diferentes esferas da vida social. Entretanto, apesar
desta diversidade, parece-nos inquestionável o caráter excludente e
desigual deste processo em todas as suas manifestações. Os
resultados econômicos, políticos e sociais de sua dinâmica acabaram
por reforçar e por agravar a diferença e a desigualdade entre as
nações, intensificando a parcela de excluídos não só do mercado de
trabalho e da riqueza social, mas também das decisões políticas e dos
principais espaços de manifestação e de participação coletivas da
sociedade civil. No mundo globalizado da anunciada “vitória do
capitalismo”, do “fim da história”, da soberania do sistema financeiro,
do “desaparecimento dos grandes sujeitos sociais”, da incapacidade
interpretativa das antigas metanarrativas, as eufóricas promessas de
uma humanidade mais próxima, mais solidária e mais desenvolvida
encontram-se cada vez mais esvaziadas de uma objetividade
histórica.
Por outro lado, o contexto construído por tal globalização tem sido o
movimento propulsor de um novo questionamento sobre a realidade mundial.
Sobretudo neste início de século, quando os efeitos perversos deste processo
ficaram evidentes, uma orientação contra-hegemônica desta globalização dá
sinais de que começou a ser gestada, desencadeando, como propõe GOMÉZ
(2000), processos de auto-identificação e de solidariedades coletivas subnacionais
e supranacionais. Começa a ser pensada, assim, uma “outra globalização”,
orientada no sentido de buscar interações capazes de socializar e de democratizar
o acesso aos possíveis benefícios desta “modernidade-mundo”. É no interior deste
debate que vemos se construir e ganhar força a perspectiva de uma “cidadania
planetária” ou “cidadania global”.
No entanto, a referência histórica da cidadania e da democracia
com o Estado-nação coloca alguns desafios importantes para esta
proposta transnacional. No processo vigente, fica claro que os Estados
nacionais estão cada vez mais debilitados em sua capacidade de
controlar e regular seus próprios assuntos nacionais, sendo que
muitas das identidades tradicionais encontram-se enfraquecidas. Por
outro lado, o peso destes mesmos Estados na condução dos
processos democráticos e das lutas pela cidadania ainda é bastante
significativo. Sobretudo nas sociedades onde a construção desta “idéia
nacional” ou desta “questão nacional” ainda é uma etapa inconclusa,
como o Brasil, por exemplo, a idéia de organizações supranacionais
que possam conduzir suas lutas democráticas ainda é bastante frágil.
Nestas realidades, fenômenos de localismo e renacionalização, muitas
vezes, se sobrepõem ao processo de globalização e se mostram
extremamente importantes. Como exemplo, podemos citar os
processos de descentralização e municipalização das políticas sociais
no Brasil, quando, em um cenário de economia globalizada e mercado
financeiro, onde as decisões macroeconômicas são conduzidas pelas
grandes agências internacionais de financiamento, os estados e
municípios são chamados a assumir a responsabilidade sobre as
políticas sociais, contando, para isso, com parcos recursos e com
pouca influência nos processos de destinação de recursos para estes
instrumentos de institucionalização dos direitos sociais.
Assim, sem querer aderir a um ceticismo com relação a esta
globalização “por baixo”, visualizamos que ainda persiste uma tensão
acentuada entre os espaços nacionais, locais e regionais, por um lado,
e o espaço global, por outro. SANTOS (2000, p. 113) é um dos que
recupera esta tensão ao afirmar que
Nas condições atuais, o cidadão do lugar pretende instalar-se também como cidadão do mundo. A verdade, porém é que o
“mundo” não tem como regular os lugares. Em conseqüência, a expressão cidadão do mundo torna-se um voto, uma promessa,
uma possibilidade distante. Como os atores globais eficazes são,
em última análise, anti-homem e anticidadão, a possibilidade de existência de um cidadão do mundo é condicionada pelas
realidades nacionais. Na verdade, o cidadão só o é (ou não o é) como cidadão de um país.
Eis, em nossa opinião, um desafio crescente para a construção
de uma suposta “cidadania planetária”. Como ultrapassar os limites e
as fronteiras nacionais, em todos os aspectos, desde o econômico até
o cultural, e direcionar expectativas e demandas para questões que se
colocam acima das nações? Como falar de “direitos humanos
supranacionais” em sociedades como a nossa, onde as condições de
desigualdade e de exclusão social são cada vez mais marcantes?
Como propor um ativismo internacional para uma população que
sempre foi silenciada e imobilizada, através de práticas de coerção ou
de assistencialismo, e que historicamente não ocupou seus espaços
de participação nem mesmo nos limites da sociedade civil nacional?
Desta forma, visualizamos a cidadania global como um projeto político de
longo prazo, que desafia e inova a teoria e a prática acerca desta temática.
Destacamos sua importância ao buscar responsabilizar os Estados e o sistema
internacional de Estados por suas ações e omissões, desafiando o domínio desta
“globalização pelo alto” e recolocando a necessidade de valores que redefinam a
relação entre os homens no século que se inicia.
É neste sentido que reafirmamos a perspectiva nacional-popular, elaborada
por Gramsci, como a oportunidade de recolocarmos, sobre outras bases, a
possibilidade de crítica e de superação do processo de globalização em curso.
Entendendo esta perspectiva como orientada por uma lógica cultural que não é,
no entanto, exclusiva, insistimos no fato de que ela nos capacita para pensar a
sociedade como um todo, envolta dialeticamente em relações nacionais e
internacionais, a partir de uma posição classista bem definida, e que tem, no
conjunto das mais diversas relações sociais, seu espaço de realização e de
responsabilização. Assim, a partir de nossas elaborações anteriores, não
hesitaríamos em afirmar que nacional-popular não representa um retrocesso a um
“nacionalismo” e a um “populismo” exacerbados e apolíticos, mas uma verdadeira
“tomada de posição”, uma orientação contra-hegemônica que tem por objetivo
capacitar os setores subalternos desta sociedade para novos enfrentamentos
políticos, a partir de novas bases societárias. Com isso, retomamos o projeto da
“sociedade regulada” em Gramsci, onde significativos elementos culturais, em seu
sentido mais amplo, apontam para relações e lutas políticas renovadas, a serem
verdadeiramente colocadas nas sociedades contemporâneas por aqueles que,
coletivamente, se afirmam contrários e alternativos ao sistema de controle do
capital.
Esta retomada da perspectiva nacional-popular não se faz,
entretanto, sem novos desafios. Como tivemos a oportunidade de
discutir ao longo deste trabalho, a sociedade capitalista se renova,
neste cenário globalizado, construindo também um forte aparato ideo-
cultural, sustentado, principalmente, por uma orientação pós-moderna
que, por vários caminhos, busca negar esta perspectiva de superação
de suas contradições. Neste caminho, a luta se faz em dimensões
cada vez mais bem definidas. É preciso termos clareza de que, nos
termos em que é colocada, a pós-modernidade se apresenta muito
mais como uma “anti-modernidade”, onde o que se afirma é que já que
não podemos transformar e revolucionar o quadro que está colocado,
é melhor aderirmos e nos conformarmos com ele, contentando-nos
com as pequenas reformas que se apresentam como possíveis.
O nacional-popular hoje se refere, portanto, a diversos movimentos de
crítica e de superação da ordem desta sociedade, que vão desde aqueles mais
diretamente relacionados com a base material, com as relações produtivas em sua
dimensão mais restrita, até os grandes embates culturais e ideológicos,
envolvendo artistas e Intelectuais, movimentos sociais, partidos políticos e tantas
outras esferas da sociedade civil que tem o desafio de recolocar, na agenda
política, questões subjugadas pelo sistema do capital, em sua constituição mais
extrema. Aqui se recoloca a cultura como uma dimensão vital da constituição do
ser social, como aquela que nos permite “conhecer e transformar”, como a que
nos mostra o tamanho e a força de uma proposta alternativa ao que hoje se
apresenta como hegemônico, “imutável e inquestionável”. Nas palavras de
SIMIONATTO (2003: p. 275-276), esta relação é assim apresentada,
Permeado por crises, o momento presente continua proclamando a aparente vitória do capitalismo, assentado na supremacia do sistema financeiro, no espectro do fim da história e das ideologias, no desaparecimento dos grandes sujeitos sociais, na ênfase exacerbada em comportamentos individualistas, fundamentalistas
e nacionalistas – enfim, a ausência de sonhos e o “desencantamento utópico” são as marcas indeléveis dos esfumaçados dias atuais.
É preciso, portanto, a construção e o fortalecimento de um projeto societário
que demonstre os limites desta ordem, que não se restrinja à produção de
riquezas em outra lógica, mas que aponte para a produção de toda uma vida
social, com novos padrões de sociabilidade e novos valores que sejam capazes
de redimensionar as expectativas de emancipação humana tão caras para outros
momentos societários. Para esta tarefa, uma proposta nacional-popular nos
parece essencial, necessária e possível.
Referências
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