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Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho Globalização e sociedade de controle: a cultura do medo e o mercado da violência TESE DE DOUTORADO DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito Rio de Janeiro, setembro de 2007

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Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho

Globalização e sociedade de controle: a cultura do medo e o mercado da

violência

TESE DE DOUTORADO

DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito

Rio de Janeiro, setembro de 2007

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Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho

Globalização e sociedade de controle: cultura do medo e o mercado da violência

Tese de doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio.

Orientador: Professor Doutor João Ricardo Wandeley Dornelles

Rio de Janeiro, setembro de 2007

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Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho

Globalização e sociedade de controle: cultura do medo e o mercado da violência

Tese de doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Professor Doutor João Ricardo Wandeley Dornelles (Orientador) Departamento de Direito – PUC-Rio

Professor Doutor José Maria Gómez Departamento de Direito – PUC-Rio

Professor Doutor Florian Fabian Hoffmann Departamento de Direito – PUC-Rio

Professora Doutora Vera Malaguti Batista

Professor Doutor Castor Bartolomé Ruiz

Prof. Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro (RJ), 18 de setembro de 2007

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho

Graduou-se em Direito (Universidade Federal de Santa Catarina) em 1992, concluiu o mestrado em Direito pela UFSC em 2001, ingressou no doutorado em agosto de 2003, sendo bolsista da CAPES. Membro efetivo do NUPED (Núcleo de Pesquisa em Estado, Política e Direito, da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC), realizando pesquisa na área da criminologia, violência e Direitos Humanos. Advogado desde 1992, professor universitário desde 1995.

Ficha catalográfica

SOBRINHO, Sergio Francisco Carlos Graziano. Globalização e sociedade de controle: cultura do medo e o mercado da violência / Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho; orientador: João Ricardo Dornelles – Rio de Janeiro: PUC; Departamento de Direito, 2007.

267 p 1. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui referências bibliográficas.

1. Direito– Tese. 2. Globalização. 3. cultura do medo. 4. controle social. 5. reprodução do capital. 6 direitos fundamentais. 7. criminologia. I. Sobrinho, Sergio Francisco Carlos Graziano. II. Dornelles João Ricardo W.. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. IV. Título.

CDD: 340

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Aos meus filhos Victor e Mateus

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Agradecimentos

Neste momento, submeto-me a um intenso exame de consciência para

agradecer, profundamente, àqueles que, de alguma forma, me apoiaram e

contribuíram à conclusão dessa pesquisa.

Agradeço à nossa UNESC - Universidade do Extremo Sul Catarinense – na

pessoa de seu Reitor, Professor Antônio Millioli, pelo apoio à pesquisa,

imprescindível para a concretização do curso, demonstrando a preocupação com a

capacitação de seu corpo docente.

Aos amigos Carlos Magno, pela sua compreensão no momento do meu

licenciamento do curso, e Rogério Dultra, pelo incentivo e indicação da PUC e do

Prof. João Ricardo (orientador) como o melhor lugar para alcançar os objetivos de

pesquisa.

Aos colegas de doutorado, Fabiana, Júlio, Thomas e Maurício. Parceiros de

proveitosas discussões.

Ao orientador: meu muito obrigado ao Prof. Dr. João Ricardo W. Dornelles,

pela orientação em si e pelas conversas sempre esclarecedoras. Entretanto, cabe

aqui uma pequena reflexão. A missão de orientação, numa tese de doutorado,

realmente não é fácil. O orientador deve confiar no orientando, pois é seu nome

que também está em jogo. Esta missão se torna um pouco mais difícil, num

doutorado em que o orientando está no interior de Santa Catarina e o orientador

no Rio de Janeiro. Muito embora as ‘inovações tecnológicas’ tenham colaborado e

encurtado tempo e distância, confesso que nossa relação (orientador – orientando)

ultrapassou (ou ultrapassaria) qualquer barreira. Não foi por menos que, em duas

oportunidades (uma na fria Porto Alegre, comendo pizza e tomando vinho, e outra

na congelante São Marcos, no sítio do nosso amigo José) fizemos da orientação

um ritual de aproximação e profunda amizade. O ‘senhor’ e Professor João

Ricardo, exímio orientador e talento intelectual incontestável, tornou-se, com o

passar do tempo, o companheiro João. Muito obrigado, meu caro amigo.

Ao corpo docente da pós-graduação em Direito da PUC-Rio: agradeço,

especialmente, aos professores José Ribas Vieira, José Maria Gómez (professor e

membro da banca de qualificação), Carlos Alberto Plastino, Antônio Carlos Maia,

Ricardo Lobo Torres, Nádia Araújo, Florian Hoffmann, Gisele Guimarães

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Cittadino e Adrian Sgarbi (membro da banca de qualificação), Vera Malaguti

Batista (membro da banca de qualificação), bem como meu agradecimento

especial à Professora Jeanine Nicolazzi Philippi, da Universidade Federal de Santa

Catarina, pelos diálogos enriquecedores proporcionados na disciplina que cursei

naquela universidade.

Aos funcionários da PUC-Rio: muito obrigado à querida e simpática

Carmen, ao flamenguista e sofredor Anderson por toda ajuda fornecida e ao

vascaíno Marcos (Marcão) pela inesquecível ajuda nos momentos que precederam

a seleção ao ingresso no doutorado e, durante o curso, pela disposição e amizade.

E, finalmente, meu eterno agradecimento aos amores da minha vida: meus

pais, Sigfrido e Cacilda, pois suas vidas dimensionam cada etapa ultrapassada da

minha; Cristina, minha esposa, Victor e Mateus, meus filhos, pelo incentivo,

respeito e carinho dispensados nestes quatro anos de estudo e ausências (ainda

que, muitas ou na maioria das vezes, não saibam disso...). Muito obrigado.

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Resumo

Graziano Sobrinho, Sergio Francisco Carlos; João Ricardo Wandeley

Dornelles (orientador). Globalização e sociedade de controle: a cultura

do medo e o mercado da violência. Rio de Janeiro, 2007. 267p. Tese de

Doutorado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro

Diante do contexto globalizado da sociedade e da ‘necessidade’ do controle

social, o sistema penal exerce papel preponderante. A partir dos referenciais

teóricos da economia política e da criminologia crítica à definição de categorias

como criminalidade, exclusão social, violência, direitos humanos e acumulação de

capital, objetiva-se compreender as implicações do fenômeno da violência, do

ponto de vista do controle social e conflitos sociais, diante da lógica

mercadológica propugnada pelo neoliberalismo. A hipótese central é no sentido de

que as estratégias de poder tendem a implementar rigorosas políticas de segurança

pública de perfil cada vez mais autoritário, tipicamente de “combate” e de

“exclusão”, privatizando o controle social, explorando economicamente a

violência. Utilizando-se da cultura do medo e contando com mecanismos de

intervenção estatal, que não refletem ou não significam melhoria na garantia dos

direitos fundamentais, mas atentam contra os mesmos, provocando efeitos em

sentido inverso – mais violência e exclusão social, o controle social serve à

reprodução e acumulação do capital através de conexões entre o fomento aos

mecanismos de regulação, resolução dos conflitos sociais e às “democracias de

mercado”.

Palavras-chave: Globalização, cultura do medo, controle social, reprodução do

capital, direitos fundamentais, criminologia

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Abstract

Graziano Sobrinho, Sergio Francisco Carlos; João Ricardo Wandeley

Dornelles (orientador). Globalization and social control: the culture of

fear and the market of violence. Rio de Janeiro, 2007. 267p. Tese de

Doutorado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro

According to globalized context of the society and by the ‘necessity’ of the

social control, the penal system exercises the preponderant character. From he

theoretical references of the economy policy and critical criminology in relation to

the definition of categories such as criminality, social exclusion, violence, human

rights and accumulation of capital, the aim is to understand the implications of the

violence phenomenon from the point of view of social control and conflicts, and

through the marketing logic advocated by the neoliberalism. The centra

hypothesis is in the sense that the strategies of power tend to implement rigorous

policies of public security with an increasing authoritarian profile, typically of

“combat” and “exclusion”, privatizing the social control, exploring the economy

of violence. It makes use of the culture of fear and counts on mechanisms of state

intervention which do not reflect or do not mean improvements in the guarantee of

the fundamental rights, but attempt against them, causing effects in the inverse

direction – more violence and social exclusion, the social control serves to

reproduction and accumulation of the capital through connections between the

promotion to the regulation mechanisms, resolution of the social conflicts and the

“market democracies”.

Keywords: Globalization, culture of fear, social control; reproduction of the

capital, fundamental rights, criminology

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SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO................................................................................................11 2. GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA.........................................................18

2.1 Delineamentos da moderna e contemporânea democracia..............................19

2.2 Os reflexos do liberalismo e das globalizações na democracia:

liberdades, separações e polarizações....................................................................28

2.2.1 As objeções democráticas do liberalismo.....................................................28

2.2.2 A globalização e seus reflexos: separações e polarizações..........................32

2.2.3 Os processos de globalização e os pressupostos à violência estatal.............35

2.2.4 Democracia, capitalismo e coerção estatal: uma crítica no

mundo globalizado.................................................................................................51

2.3 As relações entre os processos de globalização e os Direitos Humanos..........63

3. GLOBALIZAÇÃO E CONTROLE SOCIAL...............................................66

3.1 Estado e a relação social da produção..............................................................68

3.2 A intervenção política do Estado na economia................................................79

3.2.1 As formas de intervenção do Estado.............................................................82

3.2.2 O uso dos instrumentos ideológicos e repressivos: o conteúdo

político das funções econômicas do Estado..........................................................87

3.3 A criação de novos espaços à reprodução do capital.......................................90

3.3.1 As transformações no mundo do trabalho....................................................90

3.3.2 O cenário mundial do capital e os ciclos econômicos no último

quarto do século XX..............................................................................................93

3.3.3 Espaço e tempo à reprodução do capital......................................................98

3.3.4 A produção industrial militar e a necessidade do

“consumo destrutivo”...........................................................................................103

3.4 O mercado da violência..................................................................................111

4. CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE DE CONTROLE............................114

4.1 O mundo do trabalho: do “grande internamento” à normalização

do proletariado no regime de acumulação flexível.............................................118

4.1.1 O proletariado no período fordista e sua relação com o cárcere.................122

4.1.2 O proletariado no regime de acumulação flexível e sua relação

com sistema punitivo............................................................................................130

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4.2 A economia política da pena: a relação entre sistema prisional,

fábrica e controle social......................................................................................143

4.3 A sociedade contemporânea como sociedade de controle.............................149

4.3.1. A legitimação da dominação pelo controle................................................153

4.3.2. As tecnologias de poder e as formas de controle.......................................154

4.4 A cultura do medo como legitimadora do controle social: a divulgação

da violência e a banalização dos direitos e garantias fundamentais....................160

4.4.1 O discurso do medo e as práticas de segurança..........................................163

4.5 O controle total da vida dos corpos (ou dos corpos vivos)............................169

5. MERCADO E PRODUÇÃO NORMATIVA DA

DECISÃO POLÍTICA......................................................................................174

5.1. A biopolítica e os Direitos Humanos............................................................175

5.1.1 Os novos espaços e as novas estratégias de poder: o biopoder..................175

5.1.1.1 Um primeiro significado: economia e biopolítica como

estratégia de poder...............................................................................................181

5.1.1.2 Um segundo significado: o biopoder, Direitos Humanos e a

guerra perpétua.....................................................................................................183

5.1.1.3 Um terceiro significado: exclusão social, excesso de biopoder e

violação dos Direitos Humanos...........................................................................188

5.2 O mercado como centro de produção normativa e de decisão política..........195

5.2.1 A exacerbação da divulgação de atos de violência como mecanismos

de controle...........................................................................................................197

5.3 O estado de exceção.......................................................................................201

5.4 Controle social e reprodução do capital: a face oculta da mesma “moeda”..207

5.4.1 O controle social na ordem capitalista globalizada....................................210

5.4.2 A gestão política de Segurança Pública conservadora:

“eficientismo penal”, “tolerância zero” e “teoria das janelas quebradas”

como controle social de classe............................................................................218

5.4.3 A privatização das prisões: retirada da “sujeira” pelo controle social........226

5.4.4 O controle social privatizado: a exploração econômica do medo..............234

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................246

7. BIBLIOGRAFIA...........................................................................................257

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1 Introdução

A presente pesquisa tem por objeto analisar as estratégias de poder na

adoção de políticas de segurança públicas em detrimento de outras políticas

públicas de segurança, seus objetivos e tendências voltadas à reprodução do

capital. Portanto, o objetivo, num primeiro momento, concentra-se em entender as

conseqüências da transição do regime de poder soberano (definido por Foucault)

para um modelo de controle disciplinar, típico das sociedades industriais, o qual,

contemporaneamente, é substituído pelo paradigma de controle biopolítico,

especialmente aquele efetivado pelo sistema penal para, não mais treinar corpos

indóceis, não mais excluir ou eliminar o inimigo, vigiando-o e punindo-o, mas

sim observá-lo, induzi-lo a determinadas práticas, potencializando o deslocamento

da soberania do Estado para o mercado.

O marco inicial de análise é a relação muito próxima (quase de

dependência) existente entre a vinculação que se faz da noção liberal de liberdade

que coincide com a realização dos desejos dos indivíduos. Esta noção liberal de

liberdade, identificada na realização dos desejos, forjada a partir dos ideais

oitocentistas do mercado, que garantia um mundo sem desgastes, racional, livre e,

essencialmente com igualdade de condições a todos, é visto, no início do século

XXI, a partir da lógica do sucesso capitalista, isto é do triunfo de seu principal

pressuposto: reproduzir para acumular capital.

Partindo-se dessa constatação, a pesquisa pretende estabelecer os

enlaces teóricos que relacionam o sistema penal (prisão, polícias, poderes

constituídos – o judiciário e político) através de uma visão econômica, de viés

marxista, possibilitando estabelecer pontes que façam a interface entre a severa

atuação do sistema de controle social nos últimos anos – típico da sociedade

burguesa contemporânea – e as formas atuais de reprodução do capital como algo

que subjaz a análise tradicional da punição.

Através, e indo um grau além, de importantes contribuições

prodigalizadas pela criminologia crítica – lembremos das funções veladas do

sistema penal como a estigmatização, docilização da mão-de-obra e a seletividade,

tão bem debatidas por diversos autores como George Rusche, Otto Kirchheimer,

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Michael Foucault, Dario Melossi, Massimo Pavarini e Alessandro Baratta – a

pesquisa aportar-se em dois elementos históricos à escolha do seu objeto de

estudo e a forma de observá-lo: primeiro, a constatação empírica de um aumento

significativo, não só da população efetivamente encarcerada, mas também

daqueles submetidos a outros tipos de controle sócio-penal (probation, parole,

livramento condicional, suspensão do processo, penas alternativas, etc.) nos

últimos 30 a 40 anos, no Brasil, nos Estados Unidos e em alguns países da

Europa, como a Inglaterra, por exemplo, e; segundo, os complexos processos de

globalização que intensificaram o fenômeno da mercantilização dos direitos

sociais e possibilitaram novas formas de reprodução do capital, levou o sistema

capitalista, diante da crise dos anos 1970, a buscar novos espaços à sua

reprodução, descobrindo-os, aos moldes da acumulação primitiva (como a

expropriação de terras, de que fala Marx), na utilização de recursos antes somente

imaginados à punição e ao disciplinamento.

Portanto, a análise deverá transitar por correntes teóricas que

permitam a visualização dos efeitos desse controle a partir do ponto de vista

econômico, possibilitando identificar as privatizações dos presídios, a

implementação de sistemas de segurança – públicos e privados – o aumento dos

mecanismos de efetivo policiamento ostensivo da população (veículos,

equipamentos eletrônicos, investimento em pessoal, armamentos, etc.), o

incremento, cada vez maior, de alterações nas políticas sociais-penais

direcionadas ao ‘combate’ à criminalidade (crime organizado, ao tráfico de

drogas, ao terrorismo, etc.), como tendências em transformar as políticas de

segurança pública em verdadeiros instrumentos de reprodução e expansão do

capital. Este é, portanto, o ponto central da tese.

Diversos fatores contribuíram para deflagração desses fatos,

importando saber, contudo, que passou a existir e aumentar, especificamente no

período compreendido entre o final da década de 1980 e início dos 90, uma

enorme massa de excluídos, fruto do que se convencionou chamar de pós-

fordismo (não só pela flexibilização dos direitos trabalhistas e mercantilização dos

direitos sociais, mas também pelas novas dinâmicas do trabalhador da fábrica),

iniciando um intenso processo de desprendimento do indivíduo em relação ao

contexto social, justamente porque estes não se sentiram contemplados, mesmo

diante da potencialidade das promessas da modernidade, de obter vida digna e

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igualdade para todos.

Portanto, da mesma forma que as fábricas e o trabalho vivo mudaram

sua configuração, as instituições de seqüestro – consideradas instituições

subalternas à fábrica (lembremos não só de Foucault em “História da Loucura”,

mas também das hordas de mendigos, vagabundos e pequenos criminosos que

invadiram as cidades do século XVI e XVII na Europa, muito presente nas

historiografias de Rusche e Kirchheimer e de Melossi e Pavarini, constituindo-se

na classe perigosa, preocupando a burguesia ascendente) – perderam, de certa

forma, sua função original, permitindo, de outro modo, sua realização pela lógica

neoliberal, confirmando sua funcionalidade política, isto é, se havia a necessidade

de treinar corpos, há, entretanto, na contemporaneidade, a necessidade do

controle.

O que ocorre, entretanto, é que não se imaginava a possibilidade de

reproduzir o capital utilizando-se da violência estrutural do Estado. E isto, hoje, é

um fato. Não podemos desdenhar a capacidade do capital. Charles Melnam parece

ter razão: tudo é possível na contemporaneidade. Não há lugar para imprecisões e

dúvidas diante da fúria vociferante do capital e do mercado.

Como explicar este fenômeno? Como explicar ou a quem se socorrer

para explicar esses fenômenos? Será que os mecanismos de intervenção estatal,

relacionados a políticas de segurança pública, ao não refletirem ou não

significarem, diretamente, melhoria na garantia dos direitos fundamentais,

atentam contra os mesmos, provocando efeitos em sentido inverso – mais

violência e exclusão social? Quais conexões podem ser feitas diante do discurso

das políticas conservadoras de segurança pública (especialmente as chamadas

políticas de “tolerância zero” e o movimento de “lei e ordem”), os mecanismos de

auto-regulação (agências reguladoras) e resolução (privatização dos presídios) dos

conflitos sociais com as “democracias de mercado”? Estas são, portanto, os

interrogantes da pesquisa.

Considerando estes objetivos, a proposta é, em primeiro lugar,

identificar os interesses na exploração e divulgação da violência (por exemplo, as

guerras internacionais, combate ao tráfico ilícito de entorpecentes), à consecução

das finalidades resultantes das chamadas economias de mercado, as quais tentam

demonstrar que o problema da segurança pública é prioritário em detrimento aos

direitos sociais e às garantias fundamentais, fomentando o aparecimento de novas

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formas de controle e, em segundo lugar, referenciar estes efeitos em relação aos

resultados causados pela criação de inimigos comuns (especialmente o tráfico

ilícito de drogas e armas e o terrorismo) e divulgação da multiplicação de atos

violentos, possibilitando a inserção de novos mecanismos de exploração

(econômica) e de controle.

Assim, a hipótese principal de resposta aos problemas até aqui

apresentados, está diretamente relacionada com a adoção das políticas econômicas

neoliberais, significativamente em relação às políticas de segurança pública, em

função do exacerbado sentimento de medo, umbilicalmente vinculado ao

sentimento de insegurança, pois como estas políticas de “combate” à violência

caminham em sentido oposto à implementação de políticas públicas de segurança

(como moradia, saúde, educação, etc.), é possível verificar seus efeitos

devastadores em relação aos indivíduos que ficam “sujeitados” a um violento e

funcional processo de anulação do seu status jurídico, o que proporciona o espaço

próprio da biopolítica (seu significado é o estado de exceção), fomentando novas

formas de controle e de reprodução do capital.

O resultado, na análise conjunta desses fatos, foi, em primeiro lugar, a

percepção de uma sensível alteração das funções da pena, da prisão e dos

mecanismos de controle social exercido pela sociedade contemporânea em

comparação àquelas descritas por Michel Foucault em “História da Loucura na

Idade Clássica” (2004), bem como na clássica obra de Rusche e Kirchheimer

“Punição e estrutura social” (1999); e, em segundo lugar, o surgimento, esses

mesmos excluídos, de um sentimento de “não pertencer” ao grupo, que foi sendo

efetivado através de diversos acontecimentos nos últimos 40 anos.

Podemos pensar, por exemplo, em toda destruição ambiental efetivada

no planeta, na progressiva pauperização das populações, na destruição das

instâncias coletivas e, em conseqüência, a destruição do indivíduo e total

indiferença em relação ao outro, nos intensos processos de subjetivações

existentes, na perda da instância política em detrimento do mercado, com a

transformação dos políticos em gestores da coisa pública (Melman, 2003), na

criação de inimigos comuns ou, ainda, na impossibilidade de ser consumidor

(consumidor falho, no dizer de Bauman). Há um desnudamento dos direitos,

inclusive ao direito à vida: é o homo sacer de Agamben.

Os níveis de exclusão são diversos. A intensidade e efeitos dos

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mecanismos de controle social provocam sentimentos variados, especialmente

quando a comunidade está com medo, com o que se divulga de descontrole social:

corrupção, atentados, terrorismo, guerras, crimes violentos, ações policiais cada

vez mais intensas, surgindo a necessidade – e de certo modo legitimado por esse

sentimento de insegurança – de se fazer algo, ainda que o custo seja a perda de

direitos.

Apenas a título ilustrativo, basta verificar as constantes alterações

legislativas no âmbito da segurança pública (legislação penal, processual penal e

de execução penal), na discussão sobre a função investigativa das polícias e da

temática em relação a possibilidade ou não da investigação ser realizada pelo

Ministério Público1, pelo constante aumento da população carcerária, pela

exibição de programas de televisão que procedem julgamentos públicos de

pessoas, ainda que não formal e judicialmente acionadas criminalmente,

incentivando um sentimento mórbido de vingança e realização de justiça.

Simbolicamente estes fatos colaboram para exacerbar o sentimento de

medo e insegurança, justificando medidas que privam os indivíduos de direitos,

suscetíveis, portanto, ao descrédito das instituições, podendo levar a poderes e

domínios totalitários.

Para alcançar estes objetivos, a pesquisa foi dividida em quatro

capítulos.

No primeiro capítulo será analisado o liberalismo econômico e seu

desenvolvimento no contexto da democracia e da globalização, delimitando o

objeto na perspectiva do papel da democracia na atual sociedade capitalista,

marcada pelo confronto e pela violência. Com esta análise pretende-se verificar as

conseqüências da implementação e desenvolvimento da democracia na

configuração das relações de poder e força do Estado, em função de que o Estado,

necessário ao sistema capitalista, vê-se, hoje, confrontado com a obrigação de

buscar novos espaços à reprodução do capital.

No capítulo segundo serão discutidas as novas formas de ampliação

do capital utilizando-se recursos teóricos da economia política, de viés marxista,

para entender os processos de globalização que intensificaram a excludente

1 O debate sobre a possibilidade de o Ministério Público realizar investigações criminais está sendo debatido no Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus no 84.548. Apenas dois Ministros manifestaram seu votos até agora: Marco Aurélio Mello (contra) e Sepúlveda Pertence (a favor).

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política social e a mercantilização dos direitos sociais, com a conseqüente

vulnerabilidade dos direitos humanos. Serão ainda analisadas as conseqüências do

capitalismo globalizado, como desemprego em massa, pobreza, xenofobia e, em

última análise, o encarceramento de determinadas parcelas da população e a

utilização do sistema penal para controlar a massa de desempregados ou de “sub-

empregados”.

No momento seguinte, ainda neste segundo capítulo, serão estudadas

as tendências e contradições internas do capitalismo em função de sua dificuldade

à expansão e a busca de novos espaços à reprodução do capital, mapeando as

tendências de controle, proletarização e encarceramento dos excluídos, para

entender a ultrapassagem da lógica do internamento e do disciplinamento dos

corpos.

No terceiro capítulo serão estudadas as estratégias e tecnologias de

poder em um mundo socialmente flexibilizado. Partindo-se das conseqüências das

estruturas políticas e econômicas globalizadas, a pós-modernidade impõe a

“dialética do destino” e que “vença o melhor”: ricos e pobres, criminosos e não

criminosos, intolerância social, consumidores e não consumidores, seletividade

criminal, etc.

O objetivo do capítulo é entender as conseqüências da adoção de

políticas de segurança pública – como a necessidade da construção de mais

presídios, por exemplo – fazendo-se uma leitura da relação existente entre o

aumento das taxas de encarceramento e demais tipos de controle sócio-penal e o

atual cenário de controle, exclusão e barbárie social. Portanto, pretende-se

estabelecer uma relação entre a maximização da divulgação do crescimento da

violência e a criação do sentimento social de necessidade de combatê-la através de

políticas de segurança pública conservadoras.

No quarto e último capítulo, serão analisadas todas as relações

existentes, discutidas nos três capítulos anteriores, vislumbrando estabelecer as

possibilidades de inserções sociais de mecanismos de exploração econômica do

controle social. A hipótese que será discutida neste capítulo é central à pesquisa,

isto porque os efeitos do discurso da suposta crescente violência social atinge, de

frente, os parâmetros da ação política estatal diante da crise da segurança pública,

resultando em políticas cada vez mais autoritárias e truculentas das autoridades

públicas, constituindo-se, contudo, um caminho de portas abertas à necessidade de

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realização dos pressupostos capitalistas: criação de novos espaços a expansão e

reprodução do capital.

Finalmente, a título exclusivamente metodológico, saliente-se que as

transcrições da obra de Alessandro De Giogi (Il governo dell'eccedenza.

Postfordismo e controllo della moltitudine) citadas no trabalho, em nota de

rodapé, foram traduzidas pelo Professor Sérgio Lamarão, responsável pela

tradução da obra para o português, em correspondências eletrônicas que mantive

com ele. Destaque-se, contudo, que a referida obra somente chegou às prateleiras

das livrarias brasileiras após sua utilização no presente trabalho, razão pela qual

ela não fora utilizada ou refenciada no texto, mas sim o original em italiano

adquirido no ano de sua publicação. A obra traduzida chama-se “A miséria

governada através do sistema penal”, publicada pela Editora Revan em parceria

com o Instituto Carioca de Criminologia, no ano de 2006.

Page 19: Globalização e sociedade de controle: a cultura do medo e ... · Globalização e sociedade de controle: ... Fabiana, Júlio, ... 2.2 Os reflexos do liberalismo e das globalizações

2 GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA 2.1 Delineamentos da moderna e contemporânea democracia. 2.2 Os reflexos do liberalismo e das globalizações na democracia: liberdades, separações e polarizações. 2.2.1 As objeções democráticas do liberalismo. 2.2.2 A globalização e seus reflexos: separações e polarizações. 2.2.3 Os processos de globalização e os pressupostos à violência estatal. 2.2.4 Democracia, capitalismo e coerção estatal: ma crítica no mundo globalizado. 2.3 As relações entre os processos de globalização e os Direitos Humanos

Este primeiro capítulo pretende analisar, num primeiro momento,

como o liberalismo econômico se desenvolveu no contexto da democracia e da

globalização, ou seja, como os países fundados a partir da preservação dos direitos

individuais funcionam sob a lógica capitalista globalizada e caracterizada por uma

sociedade de consumo, de mercado, pela lógica da competição e da atomização.

Há que se perguntar, delimitando o objeto do presente capítulo, qual o papel da

democracia na atual sociedade capitalista, marcada pelo confronto e pela

violência? Neste sentido é importante verificar e entender as razões que levam

alguns autores1 a indicar que há uma relação absolutamente antitética entre

capitalismo e democracia.

Na primeira parte deste primeiro capítulo será descrita a relação entre

“democracia” e “liberalismo”, a partir do que será possível entender o sentido

provocado pelas separações (Igreja e Estado, sociedade civil e comunidade

política, etc.) preconizadas e aplicadas pelos liberais, os quais se opuseram à

forma estruturada no mundo antigo.

Na segunda parte será priorizado o movimento crítico do debate, ou

seja, privilegiará alguns autores do pensamento político moderno, como Norberto

Bobbio, Miguel Abensour e Ellen Meiksins Wood, na tentativa de demonstrar os

acertos e fragilidades do relacionamento da democracia liberal. Por fim, pretende-

se, não de forma exaustiva, invocar as conseqüências práticas da implementação e

desenvolvimento da democracia no âmbito da sociedade liberal, em especial as

implicações na configuração das relações de poder e força do Estado.

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2.1 Delineamentos da moderna e contemporânea democracia

A trajetória e herança democráticas têm seu marco inicial estabelecido

nos sistemas da Grécia clássica e em Roma, por volta do século V a. C., onde,

provavelmente os atenienses cunharam o termo democracia (Dahl, 2001, pp.

18/19). Para Robert Dahl a democracia não apareceu na Grécia antiga de uma

hora para outra, nem mesmo teve uma trajetória linear ascendente (em

desenvolvimento) na história, mas, muito ao contrário, depois de,

aproximadamente, dois séculos – na Grécia e em Roma – ocorreu seu declínio e

queda. Dahl credita o aparecimento da democracia, na história da civilização, às

condições adequadas de ser implementadas.

Esta idéia de Robert Dahl reflete bem determinadas situações que, à

primeira vista, sejam inconciliáveis, como por exemplo, o liberalismo

democrático, pois ele acredita que a democracia pode ser inventada ou

reinventada, dependendo das condições que se apresentam em determinado

momento histórico, pressupondo, ainda, que a participação democrática

desenvolve-se a partir de uma “lógica de igualdade”. Atenas, a mais importante

cidade democrata grega, possuía um sistema no qual, em assembléia, todos os

cidadãos estavam autorizados a participar. A democracia, hoje, tem uma

conotação de regime político no qual a soberania cabe ao povo, entretanto, para os

antigos, o termo representava algo, no mínimo, diferente, pois a partir da

definição de cidadão, realizada por Aristóteles (na qual estavam excluídos

escravos, mulheres e estrangeiros, por exemplo), estes (os cidadãos) podiam

deliberar diretamente nas assembléias e não por intermédio de representantes e,

igualmente, podiam eleger os magistrados2.

Em Roma o direito de participar das decisões estava restrito aos

patrícios e aristocratas. Mais tarde, depois de muita luta, a plebe também

conseguiu o direito de tomar parte das decisões, entretanto toda participação 1 Neste sentido ver a obra de Ellen Meiksins Wood (em especial “Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. 261 p.”).

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estava restrita aos homens o que, de certa forma, irá permanecer até o início do

século XX.

Foi a partir de diversos pensadores (tais como Maquiavel, Bodin e

Hobbes) que a idéia pré-moderna de visão do mundo toma contornos muito

diferentes, em especial com o deslocamento do governo do povo para o poder real

(concreto do governante). Nesta visão – na qual já se pode falar em modernidade

– o desenvolvimento da democracia não foi apenas uma mera substituição de um

tipo de governo por outro – da monarquia ou absolutismo para a democracia –

mas houve fundamental alteração do objeto em estudo, pois o modelo mais velho

(pré-moderno) estava estabilizado de forma “a colocar em primeiro plano um

cosmos ordenado por força divina, pelo menos parcialmente acessível à percepção

humana, e a pressupor uma intencionalidade ou teleologia divino-natural que

impregna e orienta todos os seres vivos” (Dallmayr, 2001. p. 15.), enquanto que

na modernidade é o sujeito que passa a ser o centro de investigação.

Hobbes ultrapassa o pensamento pré-moderno (pela substituição de

um telos transhumano por uma racionalidade e por uma vontade humanas) com a

idéia de busca individual pelo poder3, insistindo no fato de que o indivíduo só

conseguiria encontrar segurança pública por meio de estabelecimento (contratual)

de um poder soberano “todo-poderoso”, o qual pode ser atribuído, com a mesma

plausibilidade, ao rei e ao corpo coletivo (assembléia) de cidadãos em uma

democracia.

Para Hobbes “a questão principal na escolha do regime é, pois, a unidade e continuidade do poder”, pois não importa que a soberania recaia em um indivíduo ou a uma “assembléia”, desde que haja unidade, bem como é importante haver continuidade pois “o maior problema não é causado pela longa duração, mas pelos pequenos espaços de tempo que a compõem; pois a ameaça de uma disputa pela sucessão do trono é mais fácil de agastar do que o perigo acumulado por pequenas desobediências, que terminam por chamar e magnificar a rebelião.” (Ribeiro, 1978, p. 45)

Locke – um dos principais pensadores do paradigma liberal-

2 Sobre Aristóteles, importante ver seu pensamento em “WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Tradução de Thereza Christina Ferreira Stummer e Lygia Araújo Watanabe. 2a ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. 156 p”. 3 Conforme Leo Strauss (1980, p. 75-76), Hobbes, ao traduzir “História da Guerra do Peloponeso”, de Tudídides, em 1629, deixa claro que concorda com seu pensamento, no sentido de não concordar com a democracia mas aprovava no mais alto grau o governo real. Hobbes se apresenta como um defensor da monarquia e um opositor da democracia.

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individualista – refina o pensamento de Hobbes, eliminando sua idéia do poder

soberano – como destinatário exclusivo e individual da soberania – depositando

sua confiança no governo parlamentar e nas “regras de direito”. Também

legitimada no contratualismo – na racionalidade calculada e na vontade humana –

o estado de direito liberal moderno sempre esteve marcado pelo paradoxo de

investir no “direito” – um “super” poder hobbesiano – ou, então, permitir que a

sociedade seja levada de volta à anomia (Dallmayr, 2001, p. 17). Esta passagem –

da legitimidade para o entorno da legalidade – marca uma fase posterior do

Estado moderno, ou seja, o Estado de Direito, fundado a partir da liberdade

política e igualdade de participação dos cidadãos diante do poder, exercido pela

burguesia através dos instrumentos “científicos” fornecidos pelo direito e pela

economia.

Outros dois referenciais importantes na consolidação da trajetória da

democracia na modernidade foram o pensamento de Rousseau, que propugnava

pela transferência do poder absoluto do soberano (Hobbes) para a vontade geral

do povo e, em meados do século XIX, por Marx, que pretendia transferir a

soberania popular (Rousseau) para o proletariado elegendo-o, assim, como o novo

poder soberano ou identidade coletiva e como motor determinante da mudança

social revolucionária (Dallmayr, 2001, p. 19).

Foi a partir do final do século XVIII, com o advento das revoluções

francesa e americana, que houve a fusão do Estado moderno com a nação

moderna, formando o chamado Estado-nação. Conforme adverte Adauto Novaes

(2003, p. 12), longe de uma visão romântica da nação, principalmente

prodigalizada por historiadores como Ernest Renan e Paul Valéry, que

expressavam a implicação do surgimento da nação ante a evidente

homogeneização cultural, territorial e temporal de uma população, sua história foi

marcada por peças e espólios de guerras, anexações, alianças e dominação de

classe.

Diferente da concepção de Estado Federal do século XVI que, pelo menos em tese, pretendia garantir um mínimo de autonomia às “nacionalidades”, a idéia de Estado-nação fez um deslocamento do poder, criando um núcleo central, que é o Estado: é a soberania do Estado que deve garantir a independência nacional. Os cidadãos de uma nação não reconhecem nenhuma autoridade superior à do Estado (Novaes, 2003, pp. 12/13).

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Esta convergência permitiu que o Estado-nação, como principal forma

de organização política, principalmente como domínio da soberania popular,

tivesse profundas implicações na sociedade democrática. Durante o século XIX a

idéia de “nação do povo” é traduzida como incremento nas lutas pela

democratização, produzindo no imaginário comum a mudança da concepção dos

sujeitos envolvidos no processo, marcando, por exemplo, o domínio agora do

cidadão – relação jurídica – ao invés da relação servil – relação social de produção

típica do período feudal, marcada pela obrigação dos camponeses em trabalhar

aos senhores feudais sem remuneração4.

A política democrática nacionaliza-se. Intercambiável com o termo “povo”, o termo “nação” passa a ser portador ambíguo do republicanismo e do nacionalismo, dois componentes que operam juntos embora com sentidos diferentes: um, legal e político – a nação de cidadão, legalmente capacitados para exercer seus direitos e obrigações, que proporciona a legitimação democrática –; outro, pré-político – a nação herdada ou atribuída, moldada pela origem, cultura, história, língua comum, que facilita a integração social (Goméz, 2000, p. 50).5

Importante análise a ser percebida é que, com o alargamento das

relações entre Estado e sociedade, a partir do século XVIII, alguns países

europeus começaram a desenvolver programas assistenciais, dentro ainda das

estruturas de poder patriarcal. Algumas razões foram responsáveis pelo

aparecimento e consolidação das políticas assistenciais do Estado, em especial a

luta pelos direitos civis (século XVIII) – liberdade de pensamento, expressão, etc

– as reivindicações dos direitos políticos (século XIX) – organização, voto e

posteriormente o sufrágio universal – significando o desenvolvimento da

democracia e, fundamentalmente, o aumento do poder político das classes

operárias, o que resultará na luta pelos direitos sociais.

Esta forma de aproximação existente entre povo (identidade coletiva)

e Estado (Estado-nação), forjado a partir de uma noção ambígua do termo

“nação”, levou à exacerbação do nacionalismo favorecendo o surgimento de

4 Destaque-se que a relação servil, diversamente da relação burguesa, é marcada na Idade Média pela pressuposição da existência, desde o nascimento, de sujeitos diferentes. O pertencimento do ser social se dá com o nascimento, ou seja, há, naturalmente, uma separação entre sujeitos, não constituindo qualquer categoria econômica pois se há diferença entre as pessoas, há apropriação da produção (do trabalho, animais, etc.) sem qualquer necessidade de retribuição, já que as trocas somente ocorrem entre pessoas iguais. 5 Esta citação foi feita por José Maria Gómez, ao interpretar Habermas.

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ideologias opostas à identidade coletiva (ameaçando o conteúdo republicano do

Estado-nação) – a exemplo do que aconteceu na Europa dos séculos XIX e XX –

como o fascismo e o comunismo stalinista6. Estes, denominados Estados

totalitários, sob o ponto de vista liberal, possuíam uma base industrial avançada

sem, entretanto, apresentar as características institucionais da democracia liberal.

É importante perceber e sublinhar:

(...) o fato de, durante todo esse tempo, a soberania democrático-populista ter sido apaziguada, talvez até desviada, pelo constitucionalismo liberal, pelo legado processualista e pelo “estado de direito” (Rechtstaat) de Locke – um legado que, precisamente como resposta ao totalitarismo, aprofundou sua própria inclinação pela anomia e pela autobusca individualista. Esta última tendência foi fortemente sustentada pela expansão do capitalismo corporativo e do liberalismo de mercado em todo o mundo, uma expansão tendente a reduzir a política e a vida pública a um complemento da empresa privada (Dallmayr, 2001, p. 20).

É neste cenário que, no transcorrer dos séculos XVIII, XIX e XX,

estruturam-se as lutas democráticas mais importantes. Entretanto, cumpre destacar

a análise dos acontecimentos, à luz das políticas liberais e de suas conseqüências

políticas estruturais na sociedade, especialmente porque “na era da

internacionalização da economia, quando as políticas nacionais perderam grande

parte do poder de decisão, vemos uma reversão espetacular: são os Estados

nacionais que criam estruturas que tendem a neutralizar as diferenças nacionais”

(Novaes, 2003, p. 13). É esta relação que tentaremos trazer nas próximas linhas.

Tomemos, à análise do tema (relação existente entre democracia,

capitalismo e coerção estatal), a contribuição da professora de Ciência Política,

Ellen Meiksins Wood, exposta na obra “Democracia contra o capitalismo: a

renovação do materialismo histórico”, a qual reside na retomada da discussão da

democracia (entendida no sentido socialista e radical do poder pelo povo), pela

6 Estes movimentos de massa que foram classificados por totalitarismo, conforme entendimento de Giddens, possuem seis características básicas: 1) uma ideologia totalitária; 2) um partido único comprometido com essa ideologia e normalmente liderado por um único homem, o ditador; 3) uma polícia secreta totalmente desenvolvida; e três tipos de monopólio ou, mais precisamente, de controle monopolístico: que são 4) comunicação de massa; 5) armamentos operacionais; 6) todas as organizações, incluindo as econômicas. Para entender mais sobre totalitarismo ver: a) ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Cia das Letras, 1989; b) STOPPINO, Mario. In: Dicionário de política. Bobbio, Norberto (org.), et. al. 12a ed., v. 2. Brasília: UnB. p. 1247-1259; c) GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação: segundo volume de Uma crítica contemporânea ao materialismo histórico. Tradução de Beatriz Guimarães. São Paulo: Edusp, 2001. p. 308-321.

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qual busca esclarecer e recuperar o projeto teórico de Karl Marx, mostrando sua

incompatibilidade com o capitalismo, vez que este representa o governo de classe

pelo capital, bem como limita o poder do povo entendido no estrito significado

político.

Sua contribuição aponta para a crítica ao capitalismo, pois este, diante

da submissão aos ditames da acumulação de capital e às leis de mercado (via

políticas liberais) coloca mais e mais esferas da vida (cidadania) fora do alcance

da responsabilidade democrática, com o firme propósito de conter as massas

(exclusão social), gerando a necessidade de novas formas de dominação e coerção

(Wood, 2003, p. 23).

Conforme apontado por Ellen Wood, o segredo fundamental da

produção capitalista (revelado por Marx) refere-se “às relações sociais e à

disposição do poder que se estabelecem entre trabalhadores e capitalistas para

quem vendem sua força de trabalho”, tendo como condição a configuração

política do conjunto da sociedade, ou seja, o equilíbrio de forças de classe e os

poderes do Estado que tornam possível a expropriação do produtor direto, a

manutenção da propriedade privada absoluta para o capitalista e seu controle

sobre a produção e apropriação (2003, p. 28).

Na interpretação de Ellen Wood (2003, p. 28), no Capítulo I de “O

Capital”, “Marx desenvolve a evolução da forma de mercadoria, passando pela

mais-valia até o ‘segredo da acumulação primitiva’, revelando por fim que o

‘ponto de partida’ da produção capitalista não é outra coisa senão o processo

histórico de isolar o produtor direto dos meios de produção, um processo de luta

de classes e de intervenção coercitiva do Estado em favor da classe

expropriadora”, demonstrando que o problema é, eminentemente, político. Para

Ellen, o que difere a análise de Marx daquela exposta pela economia política

clássica é que “ela não cria descontinuidades nítidas entre as esferas econômica e

política” e Marx é “capaz de identificar as continuidades porque trata a própria

economia não como uma rede de forças incorpóreas, mas, assim, como a esfera

política, como um conjunto de relações sociais”.

As relações sociais em que se insere esse mecanismo econômico – e que na verdade o constituem – são tratadas como algo externo. No máximo, um poder político espacialmente separado pode intervir na economia, mas a economia em si é despolitizada e esvaziada de conteúdo social (Wood, 2003,

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p. 29).

Esta é a relação que se impõe compreender: a importância ao

capitalismo da separação entre as instâncias econômica e política, para perceber a

existência de questões políticas nas relações econômicas, como na disposição do

poder de controlar a produção e a apropriação, ou a alocação do trabalho e dos

recursos sociais que foram afastadas da arena política (Wood, 2003, p. 28).

Este mecanismo – separação entre fatores políticos e econômicos –

nos permite entender como, historicamente, o Estado tem sido essencial para o

processo de expropriação que está na base do capitalismo, pois como afirma Ellen

Wood (2003, p. 36) a autonomia do Estado capitalista está intimamente ligada à

liberdade jurídica e à igualdade entre cidadãos, estabelecendo-se um vínculo

econômico entre produtores expropriados livres e apropriadores privados que têm

a propriedade absoluta dos meios de produção e, portanto uma nova forma de

autoridade sobre os produtores. “É esse o significado da divisão do trabalho7 em

que dois momentos de exploração capitalista – apropriação e coação – são

alocados separadamente à classe apropriadora privada e a uma instituição

coercitiva pública, o Estado”. Ou seja, se por um lado o Estado tem o monopólio

da força coercitiva, por outro, é essa mesma força que garante o poder econômico

privado (Wood, 2003, p. 36).

Assim é que a relação entre “econômico e político” no capitalismo

está vinculada à separação política da economia privada, ou seja, da extração e

apropriação da mais-valia daquelas vinculadas à esfera pública, com propósitos

7 O conceito de “divisão do trabalho” trará implícita, nos limites da presente tese, a contribuição marxista que lhe empresta ao termo. Para alguns autores a divisão do trabalho é a simples distribuição de tarefas entre os indivíduos ou grupos sociais. Entretanto, como bem observa Marilena Chauí (1996, p. 413) a divisão do trabalho é a “manifestação da existência da propriedade”, é a separação das condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho, possibilitando a introdução de conceitos diferenciados entre “meios de produção” (instrumentos) e “força de trabalho” (o trabalho propriamente dito), permitindo “perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades de sociedade”. Marx escreve que “na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais” (2003b, p. 5). Significa dizer que o “modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (2003b, p. 5). A importância do conceito de “divisão do trabalho” reside, então, na possibilidade de perceber que a medida que aumenta a complexidade das relações sociais (iniciando pela família) surge a distinção entre divisão técnica do trabalho (realização de atividade especializada no processo produtivo, tanto em relação às idéias quanto em relação às coisas produzidas) e divisão social do trabalho (a divisão da sociedade como um todo), possibilitando e reforçando a autonomia das idéias e independência dos indivíduos e o nascimento da ideologia e da alienação do trabalhador em relação ao produto de seu trabalho.

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mais comunitários.

A separação acima identificada já corresponde aos princípios liberais

(especialmente em relação sociedade civil e comunidade política) o que, em certa

medida, representou a recuperação pelos proprietários capitalistas, através do

controle direto da produção, dos poderes políticos que haviam perdido para o

Estado, os quais retiveram os poderes privados de exploração mitigados das

funções sociais. Com esta transferência de poderes políticos à economia e à

sociedade privada, fruto da referida separação, o Estado capitalista reduziu as

condições efetivas da cidadania (influindo diretamente na responsabilização

democrática), não permitindo, por exemplo, a discussão das condições de

proprietário e de trabalhador, ou seja, o Estado somente pode intervir na

quantidade mas não na qualidade da exploração da mais-valia.

A dominação exercida pelo capital é extrema e, mais

contundentemente, em vista de sua dissimulação. Ellen Wood (2003, p. 200/201)

mostra como os oligarcas de 1688 fizeram a revolução em nome da liberdade. A

defesa de seus direitos, especialmente a liberdade, estava diretamente atrelada ao

direito de dispor de seus bens como bem entendessem pois a “propriedade que

defendiam já era em grande parte capitalista, mas a liberdade que invocavam para

protegê-la, o que era praticamente um sinônimo de privilégio, estava enraizada no

senhorio pré-capitalista”. Para ela, neste momento histórico de transição, a forma

de dominação do senhorio havia sido substituída não só por um Estado

centralizado mas também pela propriedade privada, típica do modo de produção

capitalista, isto porque a relação entre proprietários dos meios de produção e

proprietários da força de trabalho, existente nesse modo de produção, exige a

manutenção da propriedade privada.

A configuração atual de liberdade, em comparação com as

aristocracias modernas, não possuem a mesma significação, pois, conforme Ellen

Wood (2003, p. 200), especialmente em função

(...) da economia ter adquirido vida própria, completamente fora do âmbito da cidadania, da liberdade política ou da responsabilização democrática”, mesmo porque “a essência da ‘democracia’ moderna não é tanto o fato de ter ela abolido o privilégio ou estendido os privilégios tradicionais à multidão, mas, sim, o fato de ter tomado emprestada uma concepção de liberdade criada para um mundo no qual o privilégio não é o problema. Num mundo em que a condição política ou jurídica não é o determinante principal das

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nossas oportunidades de vida e em que nossas atividades e experiências estão em grande parte fora do alcance de nossas identidades políticas e legais, liberdade definida nesses termos deixa muita coisa sem explicação (Wood, 2003, p. 200). Para Ellen Wood (2003, p. 201), é o próprio capitalismo o responsável

pelo surgimento da relação entre democracia e liberalismo, especificamente com o

surgimento das relações de propriedade burguesas. Esta estreita vinculação (pode-

se dizer: plena identificação pois a democracia é “reduzida” ao liberalismo)

aparece com desenvoltura em função da separação do poder político e jurídico

com as relações econômicas. Com isto, a possibilidade de existir um diálogo entre

as diversas esferas fica submetida e restrita à necessidade e à conjuntura do

mercado, ou seja, as relações de produção não estão mais submetidas ao controle

da responsabilidade democrática do Estado, mas ficam sujeitas ao mercado, que

funciona, dentro dessa lógica liberal, como instância de decisão política e centro

de produção normativa.

A maneira característica com que a democracia liberal trata essa nova esfera de poder não é restringi-la, e sim libertá-la. De fato, o liberalismo nem mesmo a reconhece como uma esfera de poder ou de coerção. Isso vale principalmente em relação ao mercado, que tende a ser percebido como uma esfera de liberdade, de escolha, até mesmo por aqueles que sentem necessidade de regulá-lo (Wood, 2003, p. 201).

É necessário perceber que a condição de existência da democracia nas

sociedades liberais é a separação entre a esfera econômica e o poder democrático,

sendo, portanto, possível suscitar a democracia quando necessário restringir

direitos, desde que a liberdade econômica e contratual estejam ameaçadas.

Especificamente, é importante atentar aos efeitos deletérios do

capitalismo, os quais irão desembocar na vertente liberal do capitalismo

globalizado (e suas terríveis conseqüências). Conforme escreve Harnecker (2000,

p. 239), diversos são os problemas causados por este tipo de globalização,

“gerando uma série de fenômenos sociais negativos: apartheid social, fomento do

racismo e da luta étnica, destruição dos direitos da mulher, dos jovens, dos idosos,

dos emigrantes, e freqüentemente estímulo aos confrontos destrutivos entre

nacionalidades”, produzindo não uma globalização da riqueza, mas sim da

pobreza”.

A par da visível recessão que atravessam os países mais ricos, em

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especial os Estados Unidos e alguns da Europa, os efeitos da economia liberal

estão sendo sentidos em todos os quadrantes: desemprego em massa, pobreza,

xenofobia, etc. Para manter essa massa de desempregados ou de “sub-

empregados”, conseqüências diretas do capitalismo globalizado, é que o Estado

lança mão de seu braço coercitivo de controle social: monopólio legalizado do

emprego da violência física, leis penais cada vez mais rígidas e controle do

desvio.

2.2. Os reflexos do liberalismo e das globalizações na democracia: liberdades, separações e polarizações

Neste ponto tentaremos mostrar as implicações do liberalismo no

contexto da sociedade contemporânea e, num segundo momento, quais as

conformações (resultados) à democracia que estão sendo impelidas pelos

processos de globalização econômica.

2.2.1. As objeções democráticas do liberalismo

“Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição

(entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se

aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais” (Hobbes,

1999, p. 171). Assim, inicia Hobbes seu discurso sobre a liberdade dos súditos.

Partindo dessa definição de liberdade em Hobbes, o pensamento liberal interpreta

que o único conceito válido de liberdade é o definido negativamente. Conforme os

termos de Isaiah Berlin, liberdade significa a não interferência dos outros, ou seja,

“quanto maior a área de não-interferência, mais ampla a minha liberdade” (Berlin,

2002, p. 230). No sentido de que se definem liberdades negativas pela não

interferência e, justamente como a não interferência supõe somente um titular, o

indivíduo como sujeito de direito pode dar o conteúdo que melhor lhe convém ao

exercício de sua liberdade.

Partindo-se da elaboração conceitual e princípios do Estado moderno,

o liberalismo político, fundado na liberdade individual (autonomia do indivíduo),

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preocupa-se com a liberdade no sentido de ausência de oposição, cumprindo notar

a necessidade de que este indivíduo, numa visão antropológica, tenha plenamente

assegurado, não só, esta liberdade, mas também condições institucionais, através

de um ordenamento jurídico e político, capazes de garantir o pleno exercício

dessas liberdades.

Não basta, por exemplo, para definir o conteúdo da liberdade de um

indivíduo, mostrar-lhe que se não pode conseguir o que deseja, precisa aprender a

desejar apenas aquilo que pode conseguir. Isto apenas restringirá suas liberdades

civil e política. O sentido de liberdade individual empregado por Berlin “implica

não apenas a ausência de frustração (que pode ocorrer quando se destroem os

desejos), mas também a ausência de obstáculos a possíveis escolhas e atividades –

ausência de obstáculos nas estradas por onde um homem pode decidir passar”

(Berlin, 1981, p. 21).

Ocorre que, diante do núcleo duro das liberdades individuais – como a

vida, a propriedade, a segurança, inclusive a tutela de outros direitos como o

devido processo e o acesso à justiça – é a instância do Estado que está

encarregada de velar e aplicar a lei justamente quando algum tipo de direito esteja

sendo violado. Este funcionamento – institucionalmente articulado – somente é

possível quando se cria esta proteção e o elenco dos direitos fundamentais esteja

totalmente vinculado a um Estado que os garante: o Estado de Direito.

É absolutamente necessário entender que a garantia das liberdades

individuais, está vinculada ao paradoxo estatal, ou seja, a antítese opressão-

liberdade. Mais especificamente, se por um lado as instituições devem garantir as

liberdades, estas (as liberdades) devem servir como limitadoras do poder estatal à

interferência na vida privada. “Segue-se que é preciso se traçar uma fronteira entre

a área da vida privada e a da autoridade pública” (Berlin, 2002, p. 231),

preservando-se uma área restrita à atuação do indivíduo.

Percebe-se que toda visão liberal está montada sobre a idéia de um

Estado limitado – limitado em seus poderes e em suas funções – porque só assim

este Estado pode chegar a ser a garantia das liberdades individuais, pois sua

atividade institucional está totalmente submetida às regras do direito, nasce a

necessidade, portanto, de estabelecer um corte absoluto entre um domínio público

e o privado. Entretanto, face a ineficácia e violações aos direitos e garantias

individuais ocorridas nos diversos países do mundo, deve-se, por conseqüência,

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ser ponderada a interferência liberal nas democracias, em especial, nas chamadas

novas democracias.

Reside aqui, o ponto de contato entre a visão liberal de poder político

e o regime democrático do Estado de Direito, ou seja, a necessidade de

diagnosticar o sentido (ou os sentidos) que se deve adotar na definição política da

democracia. Na sua obra “Capitalismo, socialismo e democracia”, de 1942,

Joseph Schumpeter se contrapõe à definição clássica de democracia, enquanto

uma teoria de meios e fins, afirmando que esta (democracia) nada mais é do que

um método, ou seja, trata-se de um determinado arranjo político para se chegar a

decisões políticas. Entretanto esta visão estritamente política se contrapõe à idéia

de democracia como sistema absolutamente afetado pela existência de igualdades,

especialmente, socio-econômicas, social organizativas e políticas.

Diante dessa perspectiva conceitual de democracia, Guillermo

O’Donnell (2000, p 338), opta pela primeira possibilidade (democracia em um

caráter estritamente político – de matriz schumpeteriana), argüindo que a

definição que combina democracia com um grau substancial de justiça ou

igualdade social não é útil em termos analíticos além de perigosa, pois tende a

condenar qualquer democracia existente e, portanto, favorece ao autoritarismo.

Entretanto, independente da opção feita, O’Donnell desenvolve uma análise entre

democracia e alguns aspectos da igualdade entre indivíduos, já como pessoas

legais – portadores de direitos e obrigações, ou seja, cidadãos – fundamentais aos

interesses e objetivos da presente pesquisa.

O’Donnell parte do princípio de que os direitos conquistados pelos

cidadãos pressupõem certa autonomia, o que torna este sujeito responsável por

estas liberdades e direitos conquistados. “Este é o pressuposto que torna todo

indivíduo uma pessoa legal, um portador de direitos e obrigações formalmente

iguais não só no domínio político mas também nas obrigações contratuais, civil,

criminais e tributárias, nas relações com órgãos estatais e em muitas esferas da

vida social” (2000, p 339).

Para O’Donnell, esta presunção de autonomia e responsabilidade que

toca todas as partes que atuam nas transações, demonstra amplas potencialidades

de proporcionar uma maior igualdade entre os cidadãos, muito embora perceba a

seriedade que a crítica marxista realiza em relação à igualdade formal e ao

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liberalismo8. Neste sentido é que O’Donnell reconhece a importância prática do

argumento segundo o qual a democracia corre sérios riscos de não sobreviver

quando a população de uma determinada sociedade for incapaz, devido a pobreza

extrema, de exercer sua autonomia. O’Donnell (2000, p. 341) afirma que, muito

embora “a democracia não tem nada a ver com esses obstáculos socialmente

determinados, (...), esse é um argumento prático, sujeito a testes empíricos que, de

fato, mostram que as sociedades mais pobres e/ou mais desigualitárias têm menos

probabilidade de ter poliarquias duradouras”.

Observa-se que esta liberdade definida negativamente pressupõe uma

igualdade jurídica como condição de universalizá-la, sem, entretanto, ultrapassar

esses limites. O próprio O’Donnell adverte que esta igualdade – caracterizada

apenas sob o ponto de vista formal – é “estabelecida em e por normas legais que

são válidas (no mínimo) por terem sido sancionadas de acordo com

procedimentos prévia e cuidadosamente ditados, com freqüência regulados em

última instância por normas constitucionais” e também porque “os direitos e

obrigações especificados são universalistas, no sentido de que são atribuídos a

cada indivíduo qua pessoa legal, independentemente de sua posição social, com a

única exigência de que o indivíduo tenha alcançado a maioridade (isto é, uma

certa idade, legalmente prescrita) e não tenha provado que ele sofra de algum tipo

de incapacidade desqualificante (estritamente definida e legalmente prescrita)”

(O’Donnell, 2000, p. 342).

Importante destacar o reconhecimento de que a igualdade formal é

absolutamente insuficiente e que a crítica às liberdades formais revelaram e

induziram duas grandes conquistas. A primeira, com a necessidade de medidas

políticas que, substancialmente, ultrapassem as desigualdades, de modo que todos

tenham, efetivamente, condições de exercer seus direitos. A segunda resultou do

reconhecimento de que essas políticas equalizadoras necessitam de medidas mais

específicas e, como conseqüência, vários tipos de auxílio social e legal foram

criados àqueles que possuem dificuldades para exercerem seus direitos

(O’Donnell, 2000, p. 343).

8 Sobre a crítica que se faz sobre o liberalismo, ver WALZER, Michael. El liberalismo y el arte de la separación. In: Guerra, política y moral. Buenos Aires: Paidós. pp. 93 – 114.

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2.2.2. A globalização9 e seus reflexos: separações e polarizações

A palavra “globalização” teve sua recepção acadêmica através da

metáfora de McLuhan sobre a configuração de uma “aldeia global”, mas tornou-se

conhecida no sentido econômico no início dos anos 80, sendo assimilada pelo

discurso hegemônico neoliberal.

A importância para as relações político-sociais contemporâneas – para

efeito de entendimento da pesquisa – é perceber o conteúdo básico da dimensão

deste processo chamado “globalização”, ou seja, a possibilidade da constituição

de uma economia mundial sem fronteiras (visando altas taxas de lucros através da

globalização dos mercados), através de empresas internacionais, as quais

dominam os mercados financeiros restringindo as políticas econômicas

tradicionais dos Estados. Como conseqüência, “chega-se a afirmar que a

emergência da economia globalizada rompe de tal modo com o passado que se

assiste, virtualmente, à decomposição das economias nacionais e ao fim do

Estado-nação como organização territorial eficaz em matéria de governabilidade

das atividades econômicas nacionais” (Gómez, 2000, p. 20).

Através de uma intensa conceitualização10 sobre globalização, é

possível entendê-la como um processo que envolve diversas conexões, implicando

uma sensível mudança nas organizações sociais contemporâneas, constituindo-se

em uma condição multidimensional em que o crescimento dos padrões de

interconexão global alcança domínios institucionais-chave da vida social moderna

– econômico, cultural, político, tecnológico, legal, ambiental e social – e envolve,

9 GÓMEZ, José Maria. 2000, pp. 18-19. Aqui não será privilegiado o estudo da “globalização”, por não fazer parte da análise direta da pesquisa. 10 Para uma maior especificação conceitual, Gómez (op. cit. p. 56-57) atribui cinco critérios à “globalização”: a) esticamento de atividades sociais, econômicas e políticas através de fronteiras nacionais, de modo que os eventos ou decisões acontecidos em uma parte do mundo têm impacto imediato em outros lugares distantes; b) intensificação ou incremento de densidade dos fluxos e padrões em e entre Estados e sociedade que constituem o moderno sistema mundial; c) aprofundamento e imbricação estreita entre o local, o nacional, o regional e o global, que tornam crescentemente confusas as separações entre o “interno” e o “externo” dessas instâncias; d) salienta um conjunto de problemas transnacionais, caracterizados pelas interconexões globais, ao mesmo tempo que aumenta a sua visibilidade e consciência, de modo que eles só podem ser resolvidos mediante ação cooperativa entre Estados e instituições e mecanismos multilaterais de regulamentação; e) configuração de uma teia de relações de interdependência, dinâmica e contingente, complexa e instável, entre Estados, instituições internacionais, corporações econômicas transnacionais, organizações não governamentais e todo tipo de associações e movimentos sociais que constituem um sistema global.

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necessariamente, organização e exercício de poder social em escala transnacional

e intercontinental (Gómez, 2000, p. 58).

Estas condições – mudança nas organizações sociais contemporâneas,

crescimento dos padrões de interconexão global e a organização e exercício de

poder social em escala transnacional e intercontinental – geram conseqüências

transformadoras na democracia política e, conseqüentemente, na cidadania

democrática tradicional (princípios políticos do Estado-nação e da ordem de

Vestfália11), como por exemplo, a noção de soberania que é colocada em cheque a

partir do momento em que ela (soberania) é limitada ante as condições efetivas

dos intercâmbios globais.

Cumpre, aqui, fazer uma pequena dilucidação. O conceito de

soberania, tanto teórico como prático tem sofrido diversas e importantes

mutações. Seu conceito, em conseqüência, entrou em crise no século XX, tanto

sob o ponto de vista teórico – com as novas teorias constitucionalistas – como

prático – com a crise do Estado moderno visto que não é mais capaz de se

apresentar como centro único e autônomo de poder, sujeito único de poder

político no âmbito internacional. São fatores importantes que contribuíram para

essa crise, a existência de uma sociedade democrática pluralista, a

interdependência entre Estados, tanto no aspecto jurídico e econômico, como

também no sentido político e ideológico, resultando, cada vez mais nítido, o

desaparecimento dos limites (geopolíticos) dos Estados12.

São estas transformações produzidas pela globalização (nos diversos

âmbitos – econômico, social, político, internacional, até mesmo geográfico, etc.),

que permitem dizer que o modelo de Estado-nação de base territorial passe a ser

visto de forma diferente, pois os governos democráticos perdem capacidade de

controlar seus próprios assuntos, ante a agilidade dos fluxos transnacionais.

Ademais, Gómez (2000, p. 64) explica que as formas estabelecidas de

geogovernança internacional e global, com capacidade de regular as atividades

transnacionais, expressam novas e reforçadas concentrações de poder, não

admitindo qualquer forma de controle democrático, afetando a autonomia 11 “Ordem de Vestfália” é a denominação da constituição do sistema internacional dos Estados, na qual seus princípios normativos centrais são a territorialidade, a soberania, a autonomia e a legalidade (Gómez, 2000, p. 45).

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democrática dos Estados individuais e impõe-lhes restrições severas à sua

capacidade tradicional de integração social e nacional.

Os impactos causados pela textura social globalizada são dramáticos,

atingindo “em profundidade a cidadania democrática na sua dupla natureza, como

modo de legitimação e como meio de integração social, como status legal

igualitário de direitos e deveres dos membros da comunidade política em face do

poder político e, simultaneamente, como identidade coletiva baseada no

pertencimento à comunidade nacional de origem e destino”, entretanto, é bom que

se diga, “o incremento da polarização social, em escala doméstica e global, e a

erosão da solidariedade social decorrentes de duas décadas de intensa

globalização (afetando especialmente a figura do Estado de Bem-estar e os

direitos sociais)” têm provocado fortes restrições no duplo registro acima

mencionado, assim como na dimensão sempre presente de ‘cidadania ativa’

comprometida com a busca da ‘boa sociedade’ em termos de democracia

substantiva” (Goméz, 2000, p. 65).

De uma maneira bastante simples é possível identificar as mazelas

institucionais causadas pela globalização, em especial na política econômica

adotada pelo marco referencial teórico de viés liberal, a qual reverte o papel do

Estado em relação à regulação do mercado, bem como na responsabilidade dos

direitos sociais. Cria-se, pois, um verdadeiro paradoxo, entre o discurso da

democracia liberal ante as novas estruturas globalizadas de poder, fundadas em

conseqüência das políticas liberais.

Com a globalização alastram-se os grandes problemas atuais mundiais

– como a degradação ambiental, a busca desenfreada do consumo, a hibridização

cultural e problemas relacionados com a insegurança e o mal-estar da sociedade.

Rompe-se com todos os padrões tradicionais (tanto do Estado-nação como na

“ordem de Vestfália”) e o que se verifica é a deflagração do fenômeno da

mercantilização dos direitos sociais, criando-se um profundo abismo de

expectativas. É possível verificar que:

(...) a poderosa imagem do Estado-nação como forma dominante de identidade coletiva irredutível, sustentada no pressuposto de uma população

12Para entender melhor, de forma detalhada, a referida crise no conceito de soberania, verificar o verbete “Soberania”, item IX – O eclipse da soberania, in: MATTEUCCI, Nicola. In: Dicionário de política. Bobbio, Norberto (org.), et. al. 12a ed., v. 2. Brasília: UnB. pp. 1187-1188

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com elevado grau de homogeneidade cultural - que, como se viu, havia facilitado o desenvolvimento da cidadania legalmente definida, com força de integração e solidariedade social –, vê-se hoje cada vez mais desafiada por uma sociedade crescentemente pluralista ou multicultural, no sentido de uma diversidade enorme das formas culturais de vida, dos grupos étnicos, das visões de mundo e das religiões, desenvolvidas simultaneamente nos planos infra-estatal e supra-estatal (Gómez, 2000, p. 66).

Significa dizer, conforme Gómez (2000, p. 66-67) explica, que essa

sociedade, multicultural ou pluralista, representa mais uma entre tantas outras

maneiras de identificação nacional entre os povos, ou seja, é possível dizer que a

identificação dos povos pode ser mais forte ou mais fraca. Citando Krause e

Reinwick, Gómez acrescenta que “outras identidades, por exemplo de gênero,

étnica, de classe social, de raça ou de preferência sexual, que não estão enraizadas

no apego a um território particular, podem ser altamente significativas”, ou seja,

os processos de globalização desestabilizam as identidades coletivas essencialistas

baseadas em concepções territoriais do “nós” e dos “outros”, desencadeando uma

dinâmica de diferenciação em torno e para além do princípio de nacionalidade,

contribuindo para a constituição e expansão de um espaço político global,

multidimensional, contraditório e descentrado.

As transformações causadas pela globalização atingem os mais

diversificados setores sociais (políticos, econômicos, religiosos, culturais, etc.),

em especial pelo visível e crescente fenômeno “do esgotamento e do

desaparecimento das grandes sagas de legitimação, especialmente as da religião e

da política” (Dufour, 2001, p. 01), bem como pela desregulamentação dos direitos

sociais e trabalhistas, os quais estão juntos com a retomada do Estado punitivo.

Desregulação social, ascensão do salariado precário (sobre um fundo de

desemprego de massa na Europa e de “miséria laboriosa” na América) e retomada

do Estado punitivo seguem juntos: a “mão invisível” do mercado de trabalho

precarizado encontra seu complemento institucional no “punho de ferro” do

Estado que se reorganiza de maneira a estrangular as desordens geradas pela

difusão da insegurança social (Wacquant, 2001 a, p. 135). Estas são as

conseqüências da globalização que devem ser entendidas e analisadas.

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2.2.3. Os processos de globalização e os pressupostos à violência estatal

É possível citar conseqüências políticas dos processos de

globalização? É possível relacionar, dentro do contexto político moderno,

aventuras do pensamento religioso e as atitudes de um íntimo relacionamento

entre o poder exercido pela religião e o poder político? Estas e outras indagações

serão objeto de análise e, para tanto, farei incursões conceituais sobre autoridade

(e sua crise), violência, poder e liberdade, utilizando, principalmente, Hannah

Arendt.

Primeiramente é preciso deixar claro que os processos de globalização

conduziram à atual crise de identidade da civilização, isto porque os interesses do

grande capital – traduzida na militarização e hierarquização das potências

hegemônicas – intensificaram a perversa e excludente política social e

humanitária. Conforme Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 76/78), essa

modernidade é um projeto ambicioso, revolucionário, de grande complexidade,

rico em idéias e ilimitado nas suas promessas e que seu projeto sócio-cultural,

construído entre os séculos XVI e final do XVIII, assenta-se nos pilares da

regulação (princípio do Estado, do mercado e da comunidade) e da emancipação

(racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-

prática da ética e do direito e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e

da técnica).

Importante contribuição é dada por Hannah Arendt, ao destacar a

impossibilidade do diálogo entre passado e futuro nas experiências políticas e

progressos tecnológicos da ciência, vez que o século XX foi pródigo ao encontrar

na violência e nas diversas possibilidades de destruição em massa formas de

controle, significando à “intromissão massiva da violência criminosa na política”.

Hannah Arendt indica, ainda, que as novas gerações cresceram sob a

cumplicidade dos massacres como os campos de concentração, o terrorismo, o

genocídio, guerras civis, etc (1994, p. 20).

Em contrapartida, ou seja, ante a complexa relação do indivíduo-

sujeito e o mundo dos direitos humanos, entre situações de conflito social e

agressão aos direitos individuais e coletivos, percebe-se que estão de mãos dadas

com o discurso da igualdade, da paz e da solidariedade, o egoísmo, a opressão, o

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xenofobismo, o acúmulo de capitais, em resumo, as “democracias de mercado”.

Surge, então, uma íntima relação entre racionalidades: por um lado se

pretende um mundo melhor e mais digno, por outro a barbárie das guerras, da

exploração do trabalho infantil, da exploração sexual, a precarização à relação e

aos direitos trabalhistas, a exploração dos países de primeiro mundo em relação

aos países subdesenvolvidos, surgindo com mais intensidade um estado policial e

não mais social.

Estas situações vêm demonstrar as fissuras que não puderam ser

obturadas pelas transformações pretendidas pelos ideais modernos – construídas a

partir dos pressupostos liberais – notadamente a realização do projeto da

modernidade delimitado por Boaventura de Souza Santos.

Neste sentido, e percebendo a centralidade do sujeito nas relações

sociais, Dufour (2001, p. 1), afirma que as formas de destituição subjetiva que

invadem as nossas sociedades estão a revelar esta grande contradição, mostrada

pelos “colapsos psíquicos, o mal-estar no campo cultural, a multiplicação de atos

de violência e a emergência de formas de exploração em vasta escala. Todos estes

elementos são vetores de novas formas de alienação e desigualdade”. Esta

barbárie13 é refletida pela multiplicação dos atos de violência e as novas formas de

exploração. Estes fenômenos podem e devem ser entendidos como mecanismos

consectários do processo de globalização da segurança pública e do controle

social, em resposta à desregulamentação da economia e do esfacelamento do

Estado Social.

Questiona-se, pois, quais foram, efetivamente, as conquistas do

liberalismo ao sistema de leis implantado, pois os símbolos representados pelo

poder deixaram de existir, facultando à utilização da violência e da força àqueles

responsáveis pelos “distúrbios da ordem social”.

É preciso, portanto, estabelecer os lugares de identificação efetiva da

influência dos processos de globalização, especialmente pelo reconhecimento da

existência dos limites intransponíveis da responsabilidade, evitando a

“normalidade” e “legitimidade” dos imperativos impostos pela contingência da

legalidade estrita e desta como a mais profunda e totalitária forma de expressão do

13 Joel Birman ao apresentar o trabalho do Professor Marildo Menegat (Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie) afirma que “barbárie então é a condensação ampla, geral e irrestrita, de tudo aquilo que fica de fora do estrito campo da razão, tendo, pois, na natureza a sua condição histórica de possibilidade.” (2003, p. 15)

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ser humano.

Hannah Arendt (2003), ao narrar o julgamento de Eichmann14, o faz,

de certa forma, demonstrando o lado da opressão dos vínculos normativos que,

naquele instante, ocorreu, pois se de um lado o carrasco burocrata Otto Adolf

Eichmann tinha relativa responsabilidade pelas atrocidades do holocausto, mas se

defendia dizendo ter agido dentro dos precisos limites da legalidade, por outro,

“as irregularidades e anormalidades do julgamento de Jerusalém foram tantas, tão

variadas e de tal complexidade legal que, no decorrer dos trabalhos e depois na

quantidade surpreendentemente pequena de literatura sobre o julgamento,

chegaram a obscurecer os grandes problemas morais, políticos e mesmo legais

que o julgamento inevitavelmente propunha” (2003, p. 275).

Longe de parecer uma vítima de uma suposta fúria vingativa daquela

Corte Distrital de Jerusalém, ante a impossibilidade de obscurecer sua

responsabilidade na deportação de milhões de judeus aos campos de extermínio

nazista, Eichmann, em seu julgamento, ao pretender triunfar a partir de sua

mediocridade, como funcionário público exemplar, honesto e obediente,

fervorosamente um cumpridor de ordens legais vigentes na Alemanha, permitiu a

Hannah Arendt concluir que a banalização do mal está situada não na tragédia do

totalitarismo nazista, mas na incapacidade de pensar, na incapacidade de obter

discernimento entre os limites intransponíveis da vida humana.

Enquanto cumpridor das normas vigentes, Eichmann se despiu das

responsabilidades do holocausto. Mais que isso. Apesar de não existir desculpas

ou inocência, também não existia o monstro, pela total tolerabilidade de sua

conduta. É exatamente neste chão que Hannah Arendt percorre suas reflexões

sobre a ‘banalidade do mal’, sobre a capacidade do ser humano em realizar ações

14 Otto Adolf Eichmann foi um funcionário do regime nazista alemão. Em 1961 Eichmann foi capturado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense e levado a julgamento numa Corte Distrital de Jerusalém por ter cometido crimes perpetrados contra o povo judeu, bem como ter pertencido a um grupo organizado com fins criminosos, durante a Segunda Guerra Mundial. Todas as sessões do julgamento foram públicas e acompanhadas por jornalistas do mundo inteiro, inclusive por Hannah Arendt, enviada pela revista The New Yorker. Eichmann foi condenado e enforcado em 1962, nas proximidades de Tel Aviv. Hannah Arendt (2003, p. 277) levanta três importantes objeções contra o julgamento de Eichmann: primeiro, ele estava sendo julgado por uma lei retroativa e era trazido à corte dos vitoriosos; segundo, as objeções que se aplicavam apenas à corte de Jerusalém, pois questionavam sua competência ou sua incapacidade de levar em conta o ato do seqüestro de Eichmann em Buenos Aires e; terceiro, por ter sido acusado de ter cometido crime “contra o povo judeu” e não “contra a humanidade”, portanto à lei sob a qual estava sendo julgado, levando-se à conclusão de que somente uma corte internacional poderia julgá-lo.

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desumanas normalizadas pela legalidade, especialmente pela violência perpetrada

pelo Estado, aliás, diga-se, uma violência como forma usual de proceder do

Estado.

O pensamento de Hannah Arendt (1994, p. 36) sobre a relação entre

violência e poder é importante pois, em seu entendimento, é na utilização da

violência que o poder tende a desaparecer. O poder quer apenas significar que

“corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em

concerto”, ou seja, a possibilidade de agir em consenso, com o apoio de várias

pessoas, pois “a partir do momento em que o grupo, do qual se originara o poder

desde o começo, desaparece, ‘seu poder’ também se esvaece”.

É o apoio da população ao poder político que pode dar às instituições

condições de instrumentalizar e controlar ações políticas de interesse coletivo em

detrimento da utilização da violência, vez que esta ao ser altamente dimensionada

(através da tecnologia) corrompe as relações de poder gerando, em conseqüência,

novas formas de violência.

Independentemente da ordem instituída, o discurso atual é o do

recrudescimento das leis penais e, a cada instante, aumenta a participação das

polícias (públicas ou privadas) no controle e resolução dos conflitos sociais.

Assim, diante do desaparecimento das instâncias coletivas de controle e

reivindicações (sindicatos, por exemplo) e o surgimento das formas privadas de

resolução dos conflitos, a tentativa de controle da utilização da violência deve

transitar pela exortação à possibilidade de agir em consensos (poder), pois, como

afirma Hannah Arendt (1994, p. 63) “cada diminuição no poder é um convite à

violência”.

É preciso, portanto, entender o conceito de autoridade e sua crise (da

própria autoridade) a fim de perceber as diferenciações entre violência, poder e

autoridade, isto porque a autoridade sempre exige obediência, ou seja, é comum

ser confundida com poder ou com violência, visto que a autoridade exclui os

meios externos de coerção e é incompatível com a persuasão (Arendt, 2002, p.

129).

A análise do pensamento de Hannah Arendt está, inicialmente,

calcada no ideário grego, especialmente em Sócrates e Platão. Sem dúvida a

importância do pensamento grego deriva da sua concepção de homem na

sociedade, colocando o Homem no centro do seu pensamento e vendo na

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educação um processo de construção consciente, pois para os gregos esta

(educação) não pertence ao indivíduo, “mas pertence por essência à comunidade”

e que “toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que

rege uma comunidade humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma

profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou em

Estado” (Jaeger, 2003, p. 4).

Jaeger, ao analisar a história da educação, percebe que, para os gregos,

a educação é fundamental ao crescimento da sociedade, tanto sob o ponto de vista

exterior, como no desenvolvimento espiritual e “uma vez que o desenvolvimento

social depende da consciência dos valores que regem a vida humana, a história da

educação está essencialmente condicionada pela transformação dos valores

válidos para cada sociedade” e que “da dissolução e destruição das normas advém

a debilidade, a falta de segurança e até a impossibilidade absoluta de qualquer

ação educativa”, isto porque a tradição foi violentamente destruída (2003, p. 4).

Para Hannah Arendt, a perda da tradição (e, numa situação análoga,

também ocorreu com a religião), no mundo moderno, provocou a perda de um fio

condutor que conectava, com segurança, aos vastos domínios do passado e, essa

perda significa a privação da dimensão de profundidade na existência humana.

Importante notar que a perda da autoridade foi apenas a fase final de um processo

histórico que durante séculos desvastou, inicialmente, tradição e religião. Assim é

que “a autoridade, assentando-se sobre um alicerce no passado como sua

inabalada pedra angular, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que os

seres humanos necessitam precisamente por serem mortais” (2002, p. 130 e segs.).

Isto é importante a fim de perceber que, no dizer de Hannah Arendt

(2002, p. 130), “com a perda da autoridade, contudo, a dúvida geral da época

moderna invadiu também o domínio político, no qual as coisas assumem não

apenas uma expressão mais radical como se tornam investidas de uma realidade

peculiar ao domínio político”.

No início de sua análise sobre autoridade, Hannah Arendt faz uma

importante distinção em relação a autoridade e sua implicação com o problema

afim da liberdade no domínio da política, pois para as teorias liberais, a História é

caracterizada pelo alinhamento que o progresso deve manter na direção da

liberdade organizada e assegurada, olhando “cada desvio desse rumo como um

mero processo reacionário conducente à direção oposta”, ocorrendo, em

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conseqüência, a indiferenciação “entre a restrição da liberdade em regimes

autoritários, a abolição da liberdade política em tiranias e ditaduras, e a total

eliminação da própria espontaneidade, isto é, da mais geral e elementar

manifestação da liberdade humana a qual somente visam os regimes totalitários

por intermédio de seus diversos métodos de condicionamento” (Arendt, 2002, p.

133).

Estas distinções são importantes, como ela (Hannah Arendt) mesmo

aponta, porque nos permite perceber que não é simplesmente uma diferenciação

de grau de liberdade que se está tratando, mas, fundamentalmente, na sua

existência ou abolição, o que pode ser visto – e a identificação liberal assim

procede – como uma certa inclinação de práticas totalitárias, ao ver as limitações

de governos de viés autoritários. Entretanto esta ponderação liberal olvida-se em

perceber a diferença entre tirania e autoritarismo15, poder legítimo com violência e

entender que a origem da autoridade é sempre exterior e superior a seu próprio

poder: “é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política,

que as autoridades derivam sua “autoridade” – isto é, sua legitimidade – e em

relação à qual seu poder pode ser confirmado” (Arendt, 2002, p. 134). Os

discursos liberal e conservador tendem a medir um processo de refluxo da

liberdade e da autoridade (respectivamente) com vistas a identificar práticas

totalitárias, entretanto se observarmos “as afirmações conflitantes de

conservadores e liberais com olhos imparciais, podemos ver facilmente que

estamos de fato em confronto com um simultâneo retrocesso tanto da liberdade

como da autoridade no mundo moderno” (Arendt, 2002, p. 138).

Uma segunda distinção que Hannah Arendt faz é entre autoridade e

violência em função da freqüente e indistinta utilização das palavras, pois a idéia

de que a violência cumpre a função da autoridade supre um conceito pelo outro.

Entretanto, diz Hannah Arendt (2002, p. 141) “aqueles que chamam as modernas

ditaduras de ‘autoritárias’, ou confundem o totalitarismo com uma estrutura

autoritária, equacionam implicitamente violência com autoridade, e isso inclui os

conservadores que explicam o ascenso das ditaduras em nosso século pela

necessidade de encontrar um sucedâneo para a autoridade”, ou seja, sob o ponto

15 Conforme Hannah Arendt (2002, p. 134) “a diferença entre tirania e governo autoritário sempre foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que mesmo o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis.”

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de vista funcional admitem a possibilidade de uma sociedade restabelecer a

autoridade somente se for utilizada a violência.

Hannah Arendt (2002, p. 143 e segs.) alavanca seu conceito de

“autoridade” a partir da filosofia política de Platão e Aristóteles, os quais

introduziram algo parecido na vida pública da polis grega, pois eles, até então, não

conheciam qualquer experiência política autoritária. Para a polis o governo

absoluto (tirania) tinha três características: governar por meio de pura violência,

necessidade de proteção do povo por uma guarda pessoal e separação entre esfera

privada (os súditos cuidavam de seus próprios negócios) e pública (reservada ao

tirano). Assim, o exercício da tirania nos moldes apresentados, significava, para

os gregos, que a não participação na vida pública era a privação da participação

política que era sentida como a essência da liberdade, ou seja, a liberdade (para os

gregos) estava diretamente ligada à participação política: o indivíduo era livre a

partir do momento que poderia participar da vida política.

Entretanto, fica bastante evidente, nas pesquisas desenvolvidas por

Hannah Arendt (2002, pp. 160/162), que as diversas tentativas de se dar um

conceito de autoridade não foram encontradas na Filosofia política grega, isto

porque as experiências lá produzidas foram extraídas de conteúdos não políticos,

como por exemplo de modelos do âmbito privado, especialmente no modo de vida

das comunidades domésticas, mas tão somente na política romana, em função de

que aqui encontra-se a convicção do caráter sagrado da fundação, ou seja, a

participação na política significava preservar a fundação da cidade de Roma.

Importante observar a estreita relação que existe entre política e religião romanas,

pois ambas estão ligadas às suas fundações: a religião ligada ao passado e a

política à história de suas origens, uma vez que os romanos estavam intimamente

ligados ao solo e à criação da cidade.

É neste contexto que a auctoritas aparece inicialmente. Vinculando-se

as origens (às fundações), religião e atividade política podem “ser consideradas

como praticamente idênticas”, pois em ambas, o crescimento16 dirige-se no

sentido do passado, significando dizer a preservação e a santificação da tradição.

Assim, a preservação do passado (feita pela manutenção da tradição) fornecia a

16 A palavra autocritas é derivada do verbo augere, que significa, entre outras coisas, aumentar, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação (Arendt, 2002, p. 163/164).

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experiência política necessária a resguardar a força coerciva da autoridade, mesmo

porque esta tem a característica de não possuir poder, mas a ‘força coerciva dessa

autoridade está intimamente ligada à força religiosamente coerciva do auspices’,

que ao contrário do oráculo grego não sugere o curso objetivo dos eventos futuros,

mas revela meramente a aprovação ou desaprovação divina das decisões feitas

pelos homens (Arendt, 2002, p. 163 e segs.).

Conceitualmente, pode-se dizer, segundo Hannah Arendt (1994, p.

36/37), que a essência da autoridade é o reconhecimento inquestionável por

aqueles a quem se pede que obedeçam e nem a coerção ou a persuasão são

necessárias. É preciso notar, contudo, que com o declínio do Império Romano, a

Igreja Católica recebe a herança (praticamente sua fundação) política e espiritual

de Roma e a tríade romana da religião, autoridade e tradição puderam ser

assumidas pela era cristã constituindo-se um importante legado na história do

ocidente, mormente em função de dois aspectos bastante significativos: de um

lado, “repetiu-se mais uma vez o milagre da permanência, pois, dentro do quadro

de nossa história, a durabilidade e continuidade da Igreja como instituição pública

só possui termo de comparação com o milênio de história romana na

Antigüidade” (Arendt, 2002, p. 169) e, de outro lado, quando houve a separação

entre igreja e poder real, isto representou não só a separação entre autoridade

sagrada da igreja e o poder real, mas, além da confirmação da Igreja como

instituição política importante na história do ocidente, fundamentalmente, a perda,

no âmbito da política, da autoridade, havendo, em conseqüência, um certo

atrelamento e dependência entre religião, autoridade e tradição.

A partir desse momento e “na medida em que Igreja Católica

incorporou a Filosofia Grega na estrutura de suas doutrinas e crenças dogmáticas,

ela (a Igreja) amalgamou o conceito político romano de autoridade”, que era

baseado à noção grega de medidas e regras transcendentes (Arendt, 2002, 170).

Para Hannah Arendt isto representou, muito mais que a perda da autoridade, pois

a estrutura política da sociedade também perdeu seu aspecto perene, o que lhe

proporcionava um caráter contínuo da autoridade, ou seja, a estabilidade política

de uma sociedade estava diretamente relacionada com a “estabilidade do

amálgama, que sempre que um dos elementos da trindade romana fosse posto em

dúvida ou eliminado, os dois restantes não teriam mais segurança” (Arendt, 2002,

p. 171).

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É exatamente a partir do século V, em função do esfacelamento do

Império Romano, provocado pelos constantes confrontos com os bárbaros e, em

grande parte pelos povos germânicos, que se inicia a decadência da civilização

romana, desenvolvendo-se uma nova estrutura social, política e econômica (que se

convencionou chamar de período medieval), permitindo-se, contudo, a

consolidação da igreja católica como instituição, difundindo-se o cristianismo

entre os bárbaros e, essencialmente, exercendo um importante papel na política do

medievo.

Assim é que Hannah Arendt, (2002, p. 170) ao vincular a perda da

autoridade do Estado com o conseqüente domínio exercido pela Igreja, conclui

que isto “implicou na realidade ter o político agora, pela primeira vez desde os

romanos, perdido sua autoridade e, com ela, aquele elemento que, pelo menos na

História Ocidental, dotara as estruturas políticas de durabilidade, continuidade e

permanência”. Esta perda que Hannah Arendt fala, pode estar configurada na

existência de uma nova dimensão que, passando pela Lei17, aparece na autoridade

do mercado.

Para o contexto da pesquisa, é fundamental entender a importância da

incorporação dos postulados da filosofia grega à Igreja Católica – especialmente

em suas doutrinas e crenças dogmáticas – o conceito político romano de

autoridade, pois foi importante legitimar para a Igreja as interpretações das

“noções um tanto vagas e conflitantes do Cristianismo primitivo acerca da vida

futura à luz dos mitos políticos platônicos, elevando assim ao nível de certezas

dogmáticas um elaborado sistema de recompensas e castigos para ações e erros

que não encontrassem justa retribuição na terra” (Arendt, 2002, p. 171). Hannah

Arendt atribui a Platão as primeiras concepções do juízo final, das recompensas

ou castigos e as descrições geográficas do inferno, do purgatório e do paraíso.

Para ela, Platão foi o primeiro a tomar consciência da potencialidade política das

crenças, pois estas são necessárias à persuasão, única maneira de trabalhar com a

multidão. Para Platão, a teologia não era o estudo e a interpretação da palavra de

Deus, mas uma ferramenta da Política, ou seja, a arte de poucos governarem sobre

muitos (Arendt, 2002, p. 176/178).

17 Sob a ótica da psicanálise, importante entender a idéia da autoridade da lei, para além do mito do assassinato do pai primevo mas, prioritariamente, entender o referencial moderno da retransmissão da norma aos sujeitos a ela destinados, como fator preponderante para o atendimento e chamado da autoridade – o outro imaginário.

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Importante entender que a introdução da teoria do inferno nas crenças

dogmáticas cristãs fortaleceu a autoridade religiosa, contribuindo, entretanto, com

a diluição do conceito romano de autoridade, diretamente vinculado a

legitimidade, permitindo-se, com isto, a poderosa influência da persuasão sobre a

consciência, permitindo uma intensa e vigorosa vinculação do poder da igreja na

vida pública e a utilização do elemento “violência”. Entretanto, sem dúvida, há

grande diferenciação entre o atual pensamento político e este momento, de séculos

passados, em que o medo do inferno sujeitava as ações das massas, qual seja, a

contemporânea perda das crenças uma vez que estas serviram, ao seu tempo,

como autoridade ante a sanção religiosa transcendente. Desse modo, a religião

perde seu elemento político e a vida política a sanção religiosa (Arendt, 2002, p.

180).

Esta é, sem dúvida, a grande contribuição – para a presente pesquisa –

do estudo sobre autoridade que fez Hannah Arendt ou seja, é o sentido

contundente que ela concebe o poder político da autoridade e as expectativas

atuais diante das formas que se pretende alcançar a autoridade: violência e medo.

Não será mais o medo do inferno o motivo pelo qual uma multidão poderia ser

persuadida ou ser-lhe imposta alguma regra de comportamento, mas sem dúvida,

a autoridade, na contemporaneidade, está vinculada a alienação da verdade

(mesmo porque esta não é objeto de persuasão), ou seja, a autoridade passa a ser

muito mais instrumental, muito mais mecanismo de consecução do que estrutura

política social. É dizer: é necessário, para a realização dos pressupostos do

capitalismo globalizado, um poder político dotado de autoridade suficiente para

persuadir e imprimir o ritmo desejado na conduta da administração das políticas

públicas necessárias à acumulação do capital utilizando-se, entretanto, a profusão

do medo e da violência – tanto a violência institucional (pela atuação repressiva

do Estado e do parlamento) quanto estrutural (impondo a produção e reprodução

da desigualdade social).

A pergunta que Hannah Arendt lança em “Crises da República” é

bastante conveniente aos propósitos da presente pesquisa, pois corresponde, até

certo ponto, a uma das hipóteses de resposta prevista em nosso projeto inicial.

Para ela, diante do apocalíptico jogo de xadrez entre as superpotências, no qual

todos serão derrotados (não haverá vencedores), o objetivo é a intimidação e não a

vitória, pois “quanto mais intimidação houver maior é a garantia de paz” (Arendt,

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1999, p. 94). Esta equação, para Hannah Arendt, sugere um nó que dificilmente

será desatado, entretanto é importante lembrar as ponderadas distinções que ela

faz em relação aos fenômenos do “poder”, do “vigor”, da “força”, da “autoridade”

e da “violência”18.

A importante crítica de Hannah Arendt está, principalmente nos textos

publicados de “Crises da República” e “Sobre a Violência”, na utilização da

violência no campo da política pois, para ela, tanto o vigor, a força, como a

violência são fenômenos individuais e não plurais, como o poder e a autoridade e,

diante das diversas crises de legitimidade do Estado contemporâneo, estes últimos

(poder e autoridade) perdem espaços à utilização da violência e esta, por sua

natureza instrumental, necessita de justificação, diferentemente do poder que,

como se viu, necessita de legitimidade. Como lembra Hannah Arendt (1994, p.

42-43) a violência não depende de números ou opiniões mas de implementos e

estes, como todos os meios, amplificam e multiplicam o vigor humano, os quais

podem destruir o poder, mas jamais criá-lo ou substituí-lo, pois o resultado da

utilização da violência não será a conquista do poder, mas a obediência.

Ao examinar todos estes fenômenos, Hannah Arendt alicerça a

conclusão de que é necessário o uso do terror para manter a dominação e isto se

dá com a vitória da violência sobre o poder (1994, p. 43). Como bem enfatiza

(Arendt, 1994, p. 41), o poder está diretamente relacionado com a legitimidade

ou, dito de outra forma, o poder sempre depende dos números pois ele, como se

viu, corresponde à habilidade humana para agir em consenso, por isso que ela diz

que o poder não necessita de justificação mas de legitimidade, que está

diretamente relacionada à autoridade. 18 Conforme Hannah Arendt (1994, pp. 36 e 37) “O poder corresponder à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade do indivíduo; pertence ao grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido”. “O vigor inequivocamente designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas”. “A força, que freqüentemente empregamos no discurso cotidiano como um sinônimo da violência, especialmente se esta serve como um meio de coerção, deveria ser reservada, na linguagem terminológica, às ‘forças da natureza’ ou à ‘força das circunstâncias’, isto é, deveria indicar a energia liberada por movimentos físicos ou sociais”. “A autoridade (...) pode ser investida em pessoas. Sua insignia é o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias. Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para miná-la é a risada”. “A violência, como disse, distingue-se por seu caráter instrumental. Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como

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Cabe aqui, pois, duas situações importantes levantadas por Hannah

Arendt, sobre o uso do terror na política: a primeira é sobre o surgimento de sua

utilização pois, para ela, é possível o uso do terror quando, após a violência ter

derrotado o poder, ela continua sendo utilizada ao controle total; a segunda, é a

dependência do terror ao grau de atomização social, ou seja, a eficácia da

utilização do terror está diretamente relacionada e dependente ao grau de oposição

pois “toda forma de oposição organizada deve desaparecer antes que possa ser

liberada a plena força do terror” (1994, p. 43).

Muito mais que utilizar a violência à dominação, este discurso

(especialmente do poder e da segurança) produz a imagem necessária do terror

social e isto é transferido de forma natural e espontânea ao senso comum19, o qual

exige uma ação estatal cada vez mais disciplinadora e emergencial, típica dos

estados totalitários. Como conseqüência “natural”, há uma ideologização que dá

ao Estado a legitimação necessária à garantia da ordem, possibilitando uma

organização social rígida, hierarquizada e sem oposição (atomizada), na qual as

classes sociais, especialmente as classes subalternas (estratos sociais mais baixos),

estarão submetidas a todos os tipos de violência – estrutural e institucional – do

Estado, as quais, mais que compreender em nível da razão, foram (e seguem

sendo) levadas a ver e a sentir seu lugar na estrutura social” (Neder, 1993, p. 9).

É preciso que todos se sintam muito mais que dominados, mas

pensando que fazem parte do sistema e pensando conforme o sistema. Os

indivíduos devem se manter, não só obedientes, mas devem estar sujeitados,

evitando-se a criação dos desejos, deixando-os aprisionados aos desejos

permitidos, criando-se um imaginário próprio conforme determinadas

circunstâncias já estabelecidas, ou seja, para a existência da dominação total é

necessário não mais (ou não só) a violência física, mas que a produção dos

todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo. 19 O sentido de senso comum aqui referido, diferentemente de conhecimento científico, significa os saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade com as seguintes características: a) é subjetivo, exprimindo sentimentos e opiniões individuais e de grupos; b) é qualitativo; c) heterogêneo, pois se refere a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos entre si; d) é individualizador, por serem qualitativos e heterogêneos; e) é generalizador, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes; f) tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos; g) procuram projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido; h) cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos. In: CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p. 174/175.

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desejos esteja controlada e direcionada aos objetivos estruturais da sociedade. Isto

revela outra situação, a saber: se vivemos numa sociedade liberal, de capitalismo

globalizado (de mercado sem intervenção estatal) e uma sociedade disciplinada e

de controle das massas, a produção das subjetividades estará condicionada a estes

tipos de desejos, ou seja, do consumo e das subjetividades isomórficas.

Este é o novo paradigma de dominação, ultrapassando a lógica da

violência institucional e estrutural, mas agora com a utilização do terror social à

produção de novas subjetividades: é a morte do sujeito, esta é a razão que Carlos

Plastino adverte que o sujeito está doente. Vou um pouco mais longe: não há

lugar, no mundo contemporâneo, aos sujeitos desejosos. Não há sujeitos, não há

individualidades em função da não produção (ou não permissão da produção) de

desejos. Conforme escreve Castor Ruiz (2004, p. 73):

A ordem se produz e reproduz no exercício do desejo de cada indivíduo; eis por que, para a nova ordem, é prioritária não a repressão do desejo, mas seu controle. Por isso, nas sociedades modernas, o indivíduo entende que a prática de sua liberdade passa, fundamentalmente, pela realização de seus desejos. A noção liberal vinculou estreitamente a liberdade ao desejo, de tal modo que o desenvolvimento dos desejos coincide com a prática da liberdade.

Esta impossibilidade de realização dos desejos está diretamente

relacionada com o conceito de liberdade apresentado por Hannah Arendt, isto

porque não importa para ela a idéia de “sentir-se livre”20 (neste sentido foi a

tradição cristã que consolidou a identificação entre liberdade e livre-arbítrio) ou,

mais precisamente, a noção liberal (cunhada a partir da modernidade) de liberdade

individual (autonomia do indivíduo), no sentido de ausência de oposição, mas na

real possibilidade de participar da vida política e, consequentemente, pela

capacidade de ser responsável. É esta a razão pela qual Hannah Arendt aponta

para o surgimento do totalitarismo no século XX, ou seja, o surgimento de

regimes políticos que excluíram a liberdade da cena política, fato que para ela

resulta numa contradição à idéia de espaço público como locus privilegiado da

vida pública pois é impensável ação e política destituídas de liberdade21.

20 Para Hannah Arendt (2002, p. 194) “tomamos inicialmente consciência da liberdade ou do seu contrário em nosso relacionamento com outros, e não no relacionamento com nós mesmos.” 21 Interessante ponderação é feita por Hannah Arendt (2002, p. 195) quando credita à ascensão dos regimes totalitários “(...) a pretensão de ter subordinado todas as esferas da vida às exigências da política e seu conseqüente descaso pelos direitos civis, entre os quais, acima de tudo, os direitos à

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É este o sentido que Hannah Arendt procura, então, desmistificar, qual

seja, “quando a liberdade não era mais vivenciada no agir e na associação com

outros, mas no querer e no relacionamento com o próprio eu” (2002, p. 211),

evidenciando um problema político a ser resolvido pois em função do “desvio

filosófico da ação para a força de vontade, da liberdade como um estado de ser

manifesto na ação para o liberum arbitrium, o ideal de liberdade deixou de ser o

virtuosismo22 no sentido que mencionamos anteriormente, tornando-se a

soberania, o ideal de um livre-arbítrio, independente dos outros e eventualmente

prevalecendo sobre eles”.

O alerta de Hannah Arendt sobre a identificação de liberdade com

soberania é muito importante porque conduz, segundo ela (2002, p. 212), à

negação da liberdade humana ou à compreensão de que a liberdade de um

homem, de um grupo de homens ou de um organismo político somente pode ser

adquirida mediante a liberdade (soberania) dos demais. Para ela (2002, p. 213) a

soberania dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais,

só pode ser mantida pelos instrumentos de violência, isto é, com meios

essencialmente não-políticos”.

É possível dizer que este foi o estatuto da modernidade e ainda o é na

condição pós-moderna23. A procura de uma organização política fundamentada

intimidade e à isenção da política, fazem-nos duvidar não apenas da coincidência da política com a liberdade como de sua própria compatibilidade.” 22 Sobre o conceito de virtuosismo, Hannah Arendt (2002, p. 199) afirma que “a melhor ilustração da liberdade enquanto inerente à ação seja o conceito maquiavélico de virtù, a excelência com que o homem responde às oportunidades que o mundo abre ante ele à guisa de fortuna. A melhor versão de seu significado é ‘virtuosidade’, isto é, uma excelência que atribuímos às artes de realização (à diferença das artes criativas de fabricação), onde a perfeição está no próprio desempenho e não em um produto final que sobrevive à atividade que a trouxe ao mundo e dela se torna independente.” 23 A fim de delimitar o termo “pós-moderno” na presente pesquisa, é preciso, em primeiro lugar estabelecer que o termo trazido será sempre empregado como uma situação diferente apresentada pela “modernidade”, especialmente em relação aos pressupostos econômicos e políticos, não sendo levadas em consideração as transições culturais e estéticas que o termo e o período apresenta (importante ver Harvey (2004), parte I). Somente a título de delimitação, já que a discussão sobre características e conseqüências da “modernidade” e “pós-modernidade” estará sendo travada nos capítulos II e III da presente pesquisa, é possível identificar três momentos distintos na sucessão dos paradigmas econômicos, os quais, de alguma forma, são identificados como um primeiro período no qual a agricultura e a extração de matérias-primas dominaram a economia; um segundo período de domínio industrial de fabricação de bens duráveis e, um terceiro momento, de predomínio do setor de serviços e de manuseio de informações. Este último período, no qual estamos vivendo, caracterizado pela transição e passagem da modenização (ou industrialização, correspondente ao segundo período) para o domínio da informação, é denominado (não de forma consensual) de processo de pós-modernização econômica ou de informatização. Estas mudanças, ou o processo de pós-modernização, tem sido demonstrado nos países de capitalismo dominante,

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em princípios racionais, na defesa de princípios baseados na dignidade, igualdade

e, essencialmente, na liberdade, bem como o surgimento de uma sociedade

globalizada – complexa e contraditória – não foram suficientes para evitar as

marcas da perversa legalidade: a barbárie da escravidão, os regimes totalitários, os

campos de concentração, o xenofobismo, o colonialismo exploratório, a

discriminação racial, de gênero e das minorias. O que é pior: a racionalização da

exclusão social, neste universo globalizado de disputa de todos contra todos

(indivíduos ou grupos sociais), é inaugurada pela naturalização da desigualdade –

já que todos são, formalmente, iguais – e fundada no império da lei, uma vez que,

no caminho sedimentado pela racionalização jurídica buscou-se, no princípio da

igualdade (mais tarde igualdade jurídica), a conservação da idéia darwinista da

competição como pressuposto da plena liberdade de todos. Esta liberdade formal

(a qual não passa de uma ilusão)24 contribuiu para justificar, a igualdade material

de todos.

A partir deste pensamento e com a sólida edificação da dimensão

imaginária da racionalização, em que limites são estabelecidos por normas e

adequados, pretensamente, à consecução de uma sociedade justa, eqüitativa e

livre, percebe-se, neste contexto, a idealização mais contundente da tentativa de se

trazer, diante da suposta neutralidade da norma, a apresentação de uma verdade (e

apenas uma) com a conseqüência direta de impedir a criação dos desejos e

facilitar a morte do sujeito.

É preciso, portanto, vincular o sentido de liberdade ao contexto da

estrutura social capitalista, idealizada pelos princípios liberais dos séculos XVII e

XVIII, que permitiu que esse modo de produção tomasse a frente da sociedade,

impondo-se como única alternativa possível, normalizando condutas através de

um intenso processo de subjetivação constante na produção e satisfação dos

desejos pois, como se sabe, o princípio de mercado – característica fundante do

capitalismo global – impõe os padrões de consumo, ditando e otimizando as

desde o começo dos anos 1970 (Harvey, 2004, pp. 117-119; HARDT e NEGRI, 2004, pp. 301-306). 24 Apesar do conteúdo “formal” ser concreto, um ponto de partida (muitas vezes) e não uma ilusão, a forma pela qual a liberdade que se apresenta no modo de produção capitalistas de matiz liberal é reveladora, vez que a contradição exposta pela liberdade – vista sob o prisma da relação entre forma e conteúdo – é reveladora. Assim, a ilusão se refere a um determinado conteúdo (não fixo, mas mutável em função das constantes alterações no modo de vida social e político – material portanto – e que, consequentemente, contribuem para alterar o conjunto das idéias), no sentido da essência e não da aparência pois, ao contrário da essência, na aparência todos somos livres.

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promessas da modernidade, revelando – na pós-modernidade – que os intensos

processos de globalização somente podem ser mantidos se, e somente se,

estiverem também mantidos os pressupostos à violência estatal: os meios não-

políticos.

2.2.4. Democracia, capitalismo e coerção estatal: uma crítica no mundo globalizado

Assim como diversos outros fenômenos afetos à condição humana,

entendo ser absolutamente pertinente a análise materialista das condições sociais

da atividade coercitiva estatal dentre as quais, a violência produzida no seio do

Estado (estrutural e institucional) deve ser avaliada como condição social inerente

ao domínio do atual modo de produção capitalista25.

Para este propósito, entretanto, é pertinente compreender duas grandes

hipóteses (conceitos) trazidas por Karl Marx: a concepção do “materialismo

histórico” e o desvelar da “mais-valia”26. A idéia do “materialismo histórico” é

resultado da concepção de Marx em explicar a história da sociedade baseando-se

em fatos materiais, fundamentalmente econômicos. Para Marx (2003 b, p. 5) “não

é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que,

inversamente, determina a sua consciência”, ou seja, é o ser social (atividade

material produtiva) que determina a consciência social. Marx, a partir de uma

revisão crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, elabora seu pensamento que se

torna o “fio condutor” de seus estudos. Para ele, cada modo de produção – no

curso do desenvolvimento dos modos de produção (o das comunidades primitivas,

o da antigüidade, o escravista, o asiático, o feudal, o capitalista ou o socialista) –

gera uma correspondente superestrutura, a qual reflete as relações materiais

25 A pertinência da análise do objeto da presente pesquisa sob a ótica materialista se revela importante pois é preciso entender – a fim de revelar – qual a contradição que se apresenta diante de uma sociedade aparentemente livre – de forma – e, ao mesmo tempo, aprisionada diante das impossibilidades estruturais – conteúdo – impostas concretamente pela sociedade dividida socialmente. São evidências reveladoras, por exemplo: o acesso à justiça, previdência social, seletividade criminal, direitos civis plenos (moradia, alimentação, educação, saúde, segurança, etc.), exploração sexual, trabalho infantil, etc. 26 Tanto o “materialismo histórico” como “mais-valia” são conceitos fundamentais na teoria marxista. Através deles será possível explicar a exploração capitalista e os mecanismos de utilização da violência estatal à consecução dos fins pretendidos pelo modo de produção capitalista. Ambos os conceitos serão analisados de forma específica.

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dominantes. Sua conclusão geral sobre seus estudos é que:

na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. (...). Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas27 materiais da sociedade que entram em contradição com as relações de produção28 existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então (MARX, 2003 b, p. 5).

Assim é que, diante do desenvolvimento das forças produtivas

materiais (ferramentas, máquinas, tecnologia, o próprio trabalhador, etc., ou seja,

tudo o que possibilita a produção), surge o dilema, o conflito, com as relações de

produção existentes – compradores de força de trabalho (capitalistas) e

vendedores da força de trabalho (proletários) – o qual será definido em favor das

forças produtivas, surgindo novas relações de produção, ou seja, a transformação

da base econômica altera toda a imensa superestrutura. Com o estabelecimento do

modo de produção capitalista, como em todas as relações, denominadas “relações

sociais de produção” dos homens, há uma divisão de classes, e a base material que

se constitui de maneira específica e própria, altera toda a superestrutura,

especialmente nas esferas política, jurídica e ideológicas (as artes, a religião, a

27 “Força produtiva” são as “forças naturais (inclusive o próprio homem) apropriadas pelo homem para a produção e reprodução de sua vida social. A parte material das forças produtivas, isto é, os instrumentos e os objetos de trabalho, constituem a base material e técnica da sociedade. A principal força de produtiva, no entanto, é o próprio homem, que cria instrumentos de trabalho cada vez mais poderosos, aperfeiçoa seus objetos de trabalho e combina ambos no sentido de ampliar constantemente a produção. Isso significa que as forças produtirvas tendem a crescer constantemente. Essa expansão opera modificações nas relações de produção e no modo de produção. Assim, a determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas correspondem determinadas relações de produção. (SANDRONI, 2005, p. 352) 28 “Relações de produção” é um conceito da economia marxista que designa o conjunto de relações econômicas que se estabelecem entre os homens, independente de sua consciência e de sua vontade, no processo de produção e reprodução de sua vida social. No capitalismo, a relação de produção fundamental é a que ocorre entre capitalistas (compradores de força de trabalho) e proletários (vendedores de força de trabalho). A base das relações de produção está nas relações de propriedade sobre os meios de produção. O caráter das relações de produção depende de quem sejam os proprietários dos meios de produção e de como se realiza a união desses meios com os produtores diretos. As relações de produção se desenvolvem diretamente, vinculadas e em dependência recíproca das forças produtivas da sociedade. A conjugação das primeiras e das últimas forma um modo de produção historicamente determinado (SANDRONI, 2005, p. 719).

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moral) e se materializa através da coerção e da força estatal. Para Marx (2003 b, p.

5):

A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superstrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às últimas conseqüências. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.

Existe aqui, sem dúvida, de fato, um limite estrutural nesta economia

política em que o modo de produção é o capitalista e o Estado, como o conjunto

de instituições (jurídicas, políticas e sociais) capaz de, formal e

preponderantemente, aplicar os instrumentos de coerção e violência (estrutural e

institucional) a conter os conflitos sociais. Para Ellen Wood (2003, p. 37):

Esses instrumentos de coerção podem ou não, desde o início, ser projetados como meios para que um segmento da população possa oprimir e explorar os demais. Em qualquer dos dois casos, o Estado exige o cumprimento de certas funções sociais comuns que outras instituições menos abrangentes – lares, clãs, famílias, grupos etc. – não têm condições de executar. Sendo ou não verdade que o objetivo essencial do Estado seja manter a exploração, o seu cumprimento das funções sociais implica uma divisão social do trabalho e a apropriação por alguns grupos sociais de excedentes produzidos por outros.

Assim é que esta violência estatal – tanto estrutural como institucional

– enquanto maneira de estabelecer e reproduzir a propriedade privada dos meios

de produção, fornece também os meios necessários à contenção da grande massa

de excluídos, a fim de manter a ordem social necessária ao processo de

reprodução do Capital, tornando possível o indivíduo – dentro do modo de

produção capitalista – não possuindo os meios de produção, vender sua

capacidade de trabalho àquele que os possui e desta forma entregar parte do seu

trabalho na forma de mais-valia.

Estas idéias ficam claras ao analisar o Capítulo XXIV (“O segredo da

acumulação primitiva”) uma vez que, conforme ensina Marx (2003 a, p. 828),

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para ocorrer a acumulação primitiva é necessário a dissociação entre os

trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais se realiza o trabalho, ou seja,

é necessário o encontro de duas espécies de possuidores de mercadorias: de um

lado o proprietário do dinheiro, dos meios de produção e de subsistência,

pretendendo aumentar seus valores já acumulados e comprar a força de trabalho

alheia e, de outro, os trabalhadores livres29, que vendem sua força de trabalho.

A partir de seu rigor metodológico, Marx consegue demonstrar o

longo período de consolidação do modo de produção capitalista, afirmando, ainda,

que este não se limita apenas em manter esta dissociação entre trabalhador e

meios de produção, mas a reproduz em escala cada vez maior, pois o “processo

que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira do trabalhador

a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital

os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os

produtores diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo

histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção” (Marx, 2003a, p.

828).

Neste mesmo capítulo XXIV, Marx aponta como ocorreram os

mecanismos de expropriação dos camponeses, em especial e mais detidamente

explicando que foi a partir do final do século XIV, quando as relações de servidão

tinham praticamente desaparecido na Inglaterra, proporcionando, enfim, no último

quarto do século XVIII, o desenvolvimento, ascensão e triunfo do capitalismo

europeu, o que possibilitou seu espraiamento, intensificando o desenvolvimento

desigual do mundo. Para Marx (2003 a, p. 847) o “ roubo dos bens da Igreja, a

alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a ladroeira das terras comuns e a

transformação da propriedade feudal e do clã em propriedade privada moderna,

levada a cabo com terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da

acumulação primitiva. Conquistaram o campo para a agricultura capitalista,

incorporaram as terras ao capital e proporcionaram à indústria das cidades a oferta

necessária de proletários sem direitos”.

Assim, além da demonstração de que a acumulação de capital

representa o aumento do proletariado, ou seja, mais exclusão e distanciamento

29 Para Marx (2003 a, p. 828) os trabalhadores são livres em dois sentidos: “porque não são parte direta dos meios de produção, como os escravos e servos, e porque não são donos dos meios de produção, como o camponês autônomo, estando assim livres de desembaraçados deles.”

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entre as classes sociais, Marx aponta que isso somente foi possível através de uma

“legislação sanguinária” que permitiu a expulsão dos camponeses do campo, sua

criminalização em sua “chegada” às cidades. Com este deslocamento dos

camponeses, surgem, pelo menos, duas conseqüências importantes em função da

alteração das condições habituais de subsistência dos mesmos, vez que eram

grandes as diferenças no campo daquelas exigidas nas cidades: a não adaptação às

duras condições de trabalho exigidas nas fábricas e a impossibilidade de serem

absorvidos pelas manufaturas já existentes e em franco desenvolvimento na

mesma proporção que os camponeses apareciam disponíveis (livres ao trabalho),

ou seja, havia grande quantidade de trabalhadores livres sem que houvesse postos

de trabalho suficientes para tamanha demanda.

Estas duas conseqüências foram o bastante para, dentro do ponto de

vista dos efeitos da “economia política da pena”30, resultar na formação (ou

transformação) de uma “categoria” de pessoas absolutamente destituída de

direitos: os vagabundos, os mendigos, os ladrões, os quais, encontraram no novo

sistema de produção a mais completa e abrangente condição de criminoso pois, se

de um lado, o próprio sistema capitalista criou a circunstância que foram

submetidos os camponeses, ou seja, a imposição de venderem sua força de

trabalho e a impossibilidade de encontrarem postos de trabalho, pois muito

escassos, o mesmo sistema capitalista burguês criou, em conformidade com a

razão iluminista, o crime propriamente dito (com previsão legal da criminalização

da vagabundagem).

A importância da análise de Marx, em “O Capital”, sobre a questão

penal, é rica no momento em que se percebe que a função exercida pela violência

estatal tem como objetivo “garantir o controle da força-trabalho e, portanto, a

extração da mais-valia, a exploração” (Melossi, 2004, p. 130) demonstrando que a

repressão exerce um papel fundamental no processo de contenção dos

“trabalhadores livres”. Dario Melossi (2004, p. 130) elabora importante

contribuição sobre o relacionamento e encontro entre o campesinato e a

30 Esta expressão (economia política da pena) foi, originariamente, formulada por Alessandro De Giorgi (2002, p. 34) ao investigar a relação entre economia e controle social, utilizando, para tanto, de uma orientação da criminologia crítica, de derivação principalmente marxista e foucaultiana. Ao prefaciar a obra de De Giorgi, Dario Melossi (De Giorgi, 2002, p. 8) afirma que o estudo da sociologia da pena é identificado na “interpretação da história da penalidade na qual o objeto fundamental consiste em relacionar as categorias de derivação marxista à reconstrução dos processos de desenvolvimento das principais instituições penais”.

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manufatura:

Vindos das ruínas do feudalismo, capital e operários “livres” são colocados frente a frente. E são reunidos materialmente na manufatura. Para esse proletariado em formação, tal abraço não é voluntário nem de modo algum prazeroso. Ele deve adaptar-se à clausura, à falta de luz e de espaço, à perda daquela relativa autonomia permitida pelo trabalho nos campos, para submeter-se à autoridade incondicional do capitalismo, na mais brutal e fatigante monotonia e repetitividade. Não é por acaso, como veremos, que manufatura e cárcere tenham historicamente uma mesma e interdependente origem.

É a grande contribuição dada pelas obras de George Rusche e Otto

Kirchheimeir, quando explicam a origem materialista da prisão, levando sempre

em conta a função efetivamente cumprida pela instituição. Diante dessa

perspectiva materialista da origem da prisão, é importante fazer a análise,

relacionando o surgimento do capitalismo com o surgimento das penas privativas

de liberdade. No mesmo sentido Dario Melossi e Massimo Pavarini fizeram a

análise também a partir da relação entre capital e trabalho, ou seja, a investigação

apontou que tais transformações ocorreram a partir da mudança do modo de

produção feudal para o modo de produção capitalista, isto é, a origem da

instituição carcerária encontra-se no capitalismo e na conseqüente aparição do

proletariado.

Como dito, a grande massa de camponeses que invadiu as cidades, em

busca de emprego, encontra apenas dificuldades, pois nem todos eram utilizados

como mão-de-obra. Foi assim que, inevitavelmente, a fuga para as cidades

converteu os trabalhadores do campo em desocupados. Na primeira metade do

século XVI, aproximadamente, por influência do clero inglês, o rei da Inglaterra

autorizou a utilização do castelo de Bridewell para serem recolhidos os

vagabundos, desocupados, ladrões e autores de pequenos delitos, com a finalidade

de reformá-los pelo trabalho e disciplina, bem como o de servir para desestimular

a vagabundagem e ociosidade daqueles que assim se encontravam (Melossi e

Pavarini, 1987, p. 30-32).

Assim é que no final do século XVI os métodos punitivos começam a

sofrer profundas alterações, com a possibilidade da utilização da mão-de-obra

daqueles submetidos ao cárcere. Segundo Rusche e Kirchheimer (1984, p. 25),

estas alterações foram causadas, não pelas considerações humanitárias, mas sim

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pelo incipiente desenvolvimento econômico e um material humano à disposição

do aparato administrativo, pois como afirmam “A força de trabalho dos reclusos

era utilizada em uma das duas formas: ou eram as próprias autoridades que

administravam a instituição, ou os reclusos eram entregues como aluguel a um

empresário privado” (1984, p. 49)31.

Assim, em consonância com o novo pensamento capitalista, havia a

necessidade da redução dos custos de produção, e o olhar se voltou para o

aproveitamento da mão-de-obra disponível para “(...) não só absorvendo-a dentro

da atividade econômica senão, ‘ressocializando-a’ de tal modo que no futuro

estivesse disposta a integrar-se voluntariamente ao mercado de trabalho” (Rusche

e Kirchheimer, 1984, p. 15)32.

Para Marx, “a população rural, expropriada e expulsa de suas terras,

compelida à vagabundagem, foi enquadrada na disciplina exigida pelo sistema de

trabalho assalariado, por meio de um grotesco terrorismo legalizado que

empregava o açoite, o ferro em brasa e a tortura”. Esse é o modo pelo qual é

preciso entender como o sistema capitalista envolve e domina o trabalhador, pois

agora, somente de uma forma excepcional, o sistema utilizará a violência para

garantir as condições à reprodução do capital, pois a “burguesia nascente

precisava e empregava a força do Estado, para “regular” o salário, isto é,

comprimi-lo dentro dos limites convenientes à produção de mais-valia, para

prolongar a jornada de trabalho e para manter o próprio trabalhador num grau

adequado de dependência” (2003 a, p. 850).

Destaca-se, contudo, que todas estas alterações passaram a ocorrer na

Europa, entre a segunda metade do século XVI33 e o final do século XVIII, com o

triunfo do capitalismo, ou seja, as estratégias de poder mudaram, como afirma

Foucault, do regime de poder soberano, de uma função de destruição física dos

criminosos, ao regime de disciplinamento dos corpos, quando se inicia o chamado

período dos “grandes internamentos”. A ordem, agora, é o encarceramento. Uma

31 Tradução livre do autor: “La fuerza de trabajo de los reclusos era utilizada en una de dos formas: o eran las propias autoridades las que administraban la institución, o los reclusos eran entregados en alquiler a un empresario privado.” 32 Tradução livre do autor: “(...) no solo absorbiéndola dentro de la actividad económica sino, además, ‘ressocializándola’ de modo tal que en el futuro estuviera dispuesta a integrarse voluntariamente en el mercado de trabajo” 33 As Casas de Correção surgiram, provavelmente, a partir de 1555, “com o propósito de limpar as cidades de vagabundos e mendigos”, com a criação da Bridewell, em Londres (Rusche e Kirchheimer, 1999, p. 61).

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forma muito mais sutil de alcançar os objetivos da nova classe social que

ascendia, a acumulação do capital. O objetivo principal do encarceramento era de

constituir uma massa de trabalhadores dóceis e úteis, a fim de transformar sujeitos

camponeses em “força de trabalho livre”. Esta complexa relação permite um

enorme poder e disponibilidade sobre a força produtiva, tornando-a cada vez mais

apta (e domesticada) à expansão do capitalismo.

Cumpre, entretanto, verificar como esse procedimento ocorre hoje e

quais são seus motivos, em função de que os trabalhadores estão levantando os

braços e, de joelhos, imploram para serem explorados, ou seja, quais são as

funções do cárcere hoje? Este assunto será tratado, mais detidamente, nos

capítulos II e III da presente pesquisa. Neste momento, contudo, é importante

observar os reflexos dos estudos da criminologia crítica, de corte marxista

(especialmente no estudo da economia política) para entender sua relação com o

controle social.

Melossi (2004, p. 133) diz que durante os séculos XVII e XVIII,

paralelamente ao surgimento da manufatura, nos países ocidentais desenvolvidos,

surgem as “casas de trabalho” e “casas de correção” em substituição às formas de

punição corporal, baseadas em uma visão ascética e produtivista da vida e é

“precisamente o elemento reeducativo do trabalho, de fato, que acima de qualquer

outro, é ressaltado nesse período e que determina a novidade tanto ideológica

como de organização material dessas novas instituições. O ministério da

disciplina vai se tornando, assim, cada vez menos obscuro; essa disciplina

particular que o subproletariado (ainda em larga medida somente futuro

proletariado) deve aprender é a disciplina que regula o coração mesmo da

sociedade burguesa. Mas o coração dessa sociedade é a acumulação do capital, ou

seja, a extração de mais-valia”.

Esta relação é de compreensão fundamental. É preciso ter a percepção

de que à extração da mais-valia depende do grau de adaptação do trabalhador à

disciplina da fábrica, isto porque os princípios que regem o trabalho nas

manufaturas, para extrair o máximo de produtividade do trabalhador, exige o rigor

e a disciplina que o modo de produção capitalista impõe ao operário, pois “se fora

da produção pode imperar a ideologia jurídica, dentro dela impera a servidão, a

desigualdade. Mas o lugar da produção é a fábrica. Assim, a função institucional

que cumprem a casa de trabalho, primeiro, e a prisão, como se verá depois, é o

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aprendizado, por parte do proletariado, da disciplina de fábrica” (grifo no

original) (Melossi, 2004, p. 134). Este foi o papel predominante do cárcere, cuja

origem encontra-se no capitalismo e na conseqüente aparição do proletariado:

diante das grandes transformações sociais ocorridas na Europa nos séculos XVI e

XVII, ocorreu o enfrentamento pela imposição do trabalho, “a praga social da

vagabundagem e a praga econômica do aumento dos salários, provocado pela

escassez de força de trabalho” (De Giogi, 2002, p. 45).

O que se vê cada vez mais é uma íntima relação entre as origens do

modo de produção capitalista, especialmente o estudo da origem da acumulação

primitiva do capital, com a história da pena (direito penal) e da prisão

(instituição), observando-se, como dito, privilegiadamente, o objeto com o olhar

crítico da criminologia, pois como afirma Juarez Cirino dos Santos (2005, p. 19),

“a teoria criminológica materialista/dialética mostra a emergência histórica da

retribuição equivalente como fenômeno sócio-estrutural específico das sociedades

capitalistas: a função de retribuição equivalente da pena criminal corresponde aos

fundamentos materiais e ideológicos das sociedades fundadas na relação

capital/trabalho assalariado, porque existe como ‘forma de equivalência’ jurídica

fundada nas relações de produção das sociedades capitalistas contemporâneas”

(grifo no original).

Esta importante contribuição, trazida pela discussão crítica do sistema

penal, inaugurada por Pasukanis – com “A Teoria Geral do Direito e o

Marxismo”, de 1926 – passando pelas historiografias de George Rusche e Otto

Kirchheimer – com “Punição e Estrutura Social” de 1933, Michael Foucault –

com “Vigiar e Punir”, de 1975, Dario Melossi e Massimo Pavarini – com

“Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário”, de 1977 – chegando ao

fundamental trabalho de Alessandro Baratta – com “Criminologia crítica e crítica

do Direito Penal”, de 1986 – possibilita compreender como as relações de

trabalho estabelecidas na fábrica – principal instituição característica do período

capitalista – tem estreita, direta e perfeita relação com a prisão – local apropriado

ao disciplinamento dos corpos e principal instituição representante da imagem do

controle social burguês – fundamentalmente, pela característica da reprodução das

desigualdades sociais e dominação a qual dá idêntico contorno presente nas

fábricas.

É, como diz Foucault (1996, p. 15), o momento em que a “punição

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vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias

conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência

abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade e não à sua intensidade visível; a

certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o

abominável teatro”, isto porque a pena privativa de liberdade começa a surgir com

a alteração do foco da punição, pois dos castigos corporais passa-se à privação de

tempo do condenado e é neste sentido que Foucault (2002, p. 122) identifica as

instituições de seqüestro34, pois através dos “jogos de poder e do saber”

potencializam a “transformação da força do tempo e da força de trabalho e sua

integração na produção” e que “o tempo da vida se torne tempo de trabalho, que o

tempo de trabalho se torne força de trabalho, que a força de trabalho se torne força

produtiva”.

O propósito da extração da mais-valia à acumulação capitalista, isto é,

da sociedade alicerçada e desenvolvida aos processos de acumulação e reprodução

do capital, moldam uma superestrutura jurídica que corresponde, exatamente, aos

seus propósitos, é dizer, diante de uma sociedade baseada na desigualdade e

subordinação – circunstância típica das sociedades baseadas no modo de produção

capitalista – é preciso, para conter a massa de excluídos, um sistema de controle

do desvio absolutamente repressivo, e nada melhor que o sistema penal para

cumprir este papel, isto porque este procedimento de cariz responsável, encobre

um sistema eivado de contradições e ilusões, encobrindo, na verdade, o mal-estar

provocado pelo modo de produção capitalista de julgamento moral das condutas.

A prisão, também e portanto, é extrema e eficazmente funcional pois,

após extrair o tempo de vida dos homens transformando esse tempo em trabalho e

transformando o corpo em força de trabalho, é exatamente nas instituições de

seqüestro em que se realiza um novo tipo de poder: “um poder polimorto,

polivalente” (Foucault, 2002, pp. 119/120), pois, de certa maneira, estabelece-se

um poder econômico (no caso das fábricas, nas relações de troca entre salário e

tempo de trabalho), um poder político (relações hierárquicas, estabelecimento de

ordens, expulsar indivíduos e aceitar outros, etc.) e, também, um poder judiciário

(pois estabelecem punições, recompensas e instâncias de julgamentos). São estes

34 Para Foucault as instituições de seqüestro (século XIX) surgem em oposição às instituições de reclusão (século XVIII), pois se estas pretendiam a exclusão dos marginais ou o reforço da marginalidade, aquelas tinham por finalidade a inclusão e a normalização (2002, p. 114).

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micro-poderes que se aglutinam e, em conjunto com o novo saber tecnológico

(psicologia, criminologia, etc.), típico das instituições de seqüestro, consolidam a

transformação do tempo em tempo de trabalho.

De certa maneira, há plena justificação da existência da prisão – ela se

torna válida – e, conseqüentemente, das outras instituições também, pois se

privilegiam desta legitimidade, uma vez que todas elas estabelecem e criam

formas de dominação, por serem muito semelhantes, estabelecendo, portanto, o

poder e o saber de forma homogênea, é dizer, há a concretização e efetivação do

poder econômico, político e judiciário em um só lugar, em um só momento, pois

conforme afirma Foucault (2002, p. 124) “a prisão ao mesmo tempo se inocenta

de ser prisão pelo fato de se assemelhar a todo o resto, e inocenta todas as

instituições de serem prisões, já que ela se apresenta como sendo válida

unicamente para aqueles que cometeram uma falta”.

É preciso fazer, entretanto, uma pequena ponderação (de ordem

metodológica e epistemológica), utilizando-se, para tanto, da argumentação de De

Giorgi (2002, p. 41/42) e de Foucault (2002, p. 124/126), antes mesmo de iniciar a

discussão sobre a economia política da pena. Para De Giorgi, por exemplo, a

relação entre estrutura social e penalidade não pode ser considerada “como uma

relação mecânica a qual a superestrutura ideológica da pena possa ser deduzida,

de modo linear, da estrutura material das relações de produção”35, exercendo,

entretanto e sem dúvida, um lugar de destaque na composição dos sistemas

repressivos.

Para Foucault a relação “homem e trabalho” é determinada por uma

série de operações, as quais ligam os homens ao aparelho de produção para o qual

trabalham. Divergindo da proposição marxista de que, sendo o trabalho a essência

do homem, é o capitalismo que transforma esse trabalho em mais-valia, Foucault

afirma que a influência do sistema capitalista é muito mais profunda em nossa

existência, pois o próprio sistema foi obrigado a impor e criar técnicas políticas e

de poder, responsáveis pela vinculação do homem com o trabalho, muito além dos

vínculos materiais explícitos pelo trabalho – como a acumulação, o acréscimo

patrimonial, etc. – criando relações quase de afetividade e dependência, fixando

os homens aos aparelhos de produção transformando-os em trabalhadores. Para

35 “(...) come un rapporto meccanico in forza del quale la sobrastruttura ideologica della pena si possa ricavere in modo lineare dalla struttura materiale dei rapporti di produzione”.

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ele, a “ligação do homem ao trabalho é sintética, política; é uma ligação operada

pelo poder. Não há sobre-lucro sem sub-poder” (2002, p. 125).

É conveniente, portanto, como se verá a seguir, analisar a relação

existente entre desemprego e encarceramento com determinados cuidados, isto

porque a hipótese de que a relação entre estrutura social e sistema penal espelha

sempre uma relação de percepção da marginalidade social e seu

contingenciamento ou, em outras palavras, a solução aos problemas sociais

causados pelo capitalismo e, mais especificamente, pela exclusão social resolver-

se-ia através do encarceramento, é hoje de discutível aferição. É preciso, portanto,

fazer uma leitura (ou uma releitura) do sistema penal – especialmente do cárcere –

uma vez que, além das funções efetivamente produzidas (significativamente:

vigilância e estigmatização), é possível e necessário entendê-lo de maneira

diferente: hoje, o cárcere, não desempenha mais as funções de agenciamento de

mão-de-obra, como local de adestramento dos corpos, ou de construção de um

exército de reserva. Como instituição de controle que é, o cárcere estabelece

novas tecnologias de produção, em especial a produção de uma específica

subjetividade, trazida por sua função simbólica que é, visivelmente, a submissão

ao controle do Estado pela normalização das condutas estabelecidas pela lei.

Diante das novas tecnologias de poder e de controle e da abundância

da mão-de-obra, a função do cárcere passou, de um controle direto das massas –

pelo disciplinamento dos corpos – ao controle da produção de subjetividades das

massas ou seja, no momento contemporâneo, é possível perceber que os

encarcerados perderam (despojaram-se) de todos seus direitos, pois há um

domínio total sobre seus corpos, o que os leva a perderem suas condições de

serem humanos, possibilitando a exuberância da exceção e da anormalidade.

É preciso entender, portanto, o sistema penal de forma instrumental,

não como mero coadjuvante na história ou que hoje tenha perdido suas funções,

mas entendê-lo como instrumento hábil e disponível a exercer determinadas

funções em determinadas épocas, conforme a necessidade, justamente pela

potência exercida.

A tese fundamental é de que o cárcere produz efeitos diversos

daqueles anteriormente delimitados, mas fundamentalmente produz efeitos

controladores, disciplinadores e recrutadores, dentro e fora da instituição,

diretamente subordinados à ela, bem como vinculados à sua função simbólica: é

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possível, por exemplo, verificar o aumento da população carcerária nos Estados

Unidos36 e a grande quantidade de pessoas selecionadas pelo sistema penal

brasileiro desde a edição da Lei no 9.099/95, as quais estão subordinadas a todos

os seus efeitos. Vemos nesses dois casos, a submissão das massas à criação de

verdadeiros depósitos para seres humanos – destituídos de todas as suas

características, especialmente da cidadania – ou aos vínculos estigmatizantes do

sistema.

Enfim, muito mais do que idealizar esta relação, é preciso significá-la

historicamente entre sistemas repressivos específicos (o sistema penal e a prisão

por excelência) e as estratégias de poder e dominação existentes. Este será o

propósito do capítulo seguinte.

2.3. As relações entre os processos de globalização e os Direitos Humanos

Quais são, enfim, as expectativas e as possíveis soluções? A reflexão,

dentro de perspectivas muito precisas, especificamente no núcleo da relação

vinculante entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento humano, deve

demonstrar profundos laços existentes ante o compartilhamento de posturas éticas

e políticas comuns. O centro é a idéia de sujeito livre, ou seja, a idéia de

autonomia, estreitamente vinculada à “capacidade de direito”, não somente ser

titular da ação, mas também ser responsável por suas conseqüências.

A idéia de cidadania está vinculada a este sujeito livre (autônomo) que

encontra na democracia seu maior referencial, pois este sujeito (não numa visão

individual, mas inseridos em comunidades – grupos, nações, etc.) que delibera e

participa é, ao mesmo tempo, consciente e responsável das conseqüências de suas

decisões, sobretudo políticas (não de um cidadão passivo, mas um cidadão ativo).

Outro referencial importante é a idéia de Direitos Humanos, já que

estes pretendem responder às necessidades humanas básicas contra a violência e 36 Este assunto será debatido com mais detalhes nos capítulos seguintes, mas é importante já mencionar os referenciais teóricos que podem ser analisados desde já, especialmente os dados levantados em: “WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, 174 p.” e “CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a

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às ameaças que não permitem sobrevivência elementar, ou seja, criar capacidades

para que as necessidades básicas sejam um direito possível a qualquer pessoa,

independente de nacionalidade, sexo, raça (de caráter universal), etc. Assim, os

Direitos Humanos compartilham com a idéia de cidadania ativa, que significa

capacidade de direitos para satisfazer necessidades básicas de modo a garantir a

toda e qualquer pessoa sua condição de titular de ação, com capacidade e direitos,

tais como educação, moradia, saúde, etc., com a finalidade precípua de que as

pessoas possam desenvolver-se o máximo possível, em suas potencialidades.

De modo oposto, e ante as constantes demonstrações do

individualismo exacerbado – e seu alcance egoístico – o que se vê é o fruto entre

as perversas e complexas relações intersubjetivas da contemporaneidade com o

universo dos Direitos Humanos. Contudo, o paradoxo é assustador, pois ao

mesmo tempo em que o desenvolvimento econômico das sociedades capitalistas

produziu um mundo capaz de gerar riquezas sem precedentes na história, a

sociedade, estruturada em classes, não conhece os resultados e as promessas de

uma vida melhor, mas, ao contrário, lhe são negadas e sonegadas todas as

possibilidades de participação, provocando, com isto uma estrutura de terrível

desigualdade e polarização social, com o conseqüente empobrecimento e exclusão

de camadas cada vez maiores da população, causando um progressivo e constante

esgarçamento da tecitura social.

Diante desse contexto, o que se verifica são as constantes práticas de

intolerância – conforme Bobbio (1992, p. 204) tanto derivada da concepção de

possuir a verdade, como daquela derivada de um preconceito – vivificada pela

atuação passiva das instituições do Estado, fincadas na separação entre sociedade

civil da sociedade política, hermética condição das políticas liberais, a qual exorta

ações repressivas cada vez maiores, bem como a constante e crescente erosão dos

afetos e das solidariedades sociais, abalando, sobremaneira, a garantia dos direitos

individuais e coletivos, com suas conseqüentes flexibilizações.

Para responder ao questionamento feito sobre o papel da democracia

na atual sociedade capitalista, importante contribuição é feita pela crítica marxista

ao capitalismo. A crítica revela que a separação entre as esferas da sociedade civil

e sociedade política não é tão evidente assim, pois o poder político que está com o

caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Tradução de Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998, 227 p”.

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Estado não é outra coisa senão a própria expressão mediatizada de poder de

classe, organizada no modo que se produz materialmente na sociedade capitalista.

Este Estado tão monstro e tão parcial nada mais é do que um Estado de classe,

cuja natureza funcional é assegurar o direito de propriedade, implicando em seu

envolvimento nas próprias relações de produção, razão pela qual ele (o Estado) se

utiliza da prerrogativa do monopólio do uso da força para compor e ajustar as

relações sociais.

Assim, o Estado, tão necessário às consecuções e interesses do

capitalismo, principalmente para manter a ordem e garantir o pressuposto da

constante acumulação, assume sua posição de garante, pois com todo o aparato

repressivo, utiliza-se do monopólio do uso da força para manter as desigualdades,

o controle social do desvio e as relações de subordinação, provocadas às camadas

mais vulneráveis da sociedade.

Page 67: Globalização e sociedade de controle: a cultura do medo e ... · Globalização e sociedade de controle: ... Fabiana, Júlio, ... 2.2 Os reflexos do liberalismo e das globalizações

3 GLOBALIZAÇÃO E CONTROLE SOCIAL 3.1 Estado e a relação social da produção. 3.2 A intervenção política do Estado na economia. 3.2.1 As formas de intervenção do Estado. 3.2.2 O uso dos instrumentos ideológicos e repressivos: o conteúdo político das funções econômicas do Estado. 3.3 A criação de novos espaços à reprodução do capital. 3.3.1 As transformações no mundo do trabalho. 3.3.2 O cenário mundial do capital e os ciclos econômicos no último quarto do século XX. 3.3.3 Espaço e tempo à reprodução do capital. 3.3.4 A produção industrial militar e a necessidade do “consumo destrutivo. 3.4 O mercado da violência

Os processos de globalização que conduziram à atual crise de

identidade da civilização, isto porque os interesses do grande capital – traduzida

na militarização e hierarquização das potências hegemônicas – intensificaram a

perversa e excludente política social e humanitária, produziram uma intensa

deflagração do fenômeno da mercantilização dos direitos sociais, com a

conseqüente e inevitável vulnerabilidade dos direitos humanos.

Esta é a relação que precisa ser feita. É preciso entender esse

imbricado jogo. A par da visível recessão1 que os países mais ricos atravessam,

em especial os Estados Unidos e alguns estados da Europa, os efeitos da economia

liberal estão sendo sentidos em todos os quadrantes, como efeitos deletérios do

capitalismo, os quais desembocam na vertente liberal do capitalismo globalizado

(e suas terríveis conseqüências): desemprego em massa, pobreza, xenofobia e, em

última análise, no encarceramento de determinadas e enormes parcelas da

população. Para manter essa massa de desempregados ou de “sub-empregados” –

conseqüências diretas do capitalismo globalizado – é que o Estado lança mão de

seu braço coercitivo de controle social.

Antes mesmo de tecer comentários a esta hipótese, segundo a qual, o

sistema econômico neoliberal ao priorizar o problema da segurança pública, o faz

em detrimento de outros direitos – especialmente os direitos sociais – fomentando

o aparecimento de novas formas de controle, é preciso entender que, a partir dos

anos 90 do século XX, principalmente com o colapso do socialismo real, a 1 Para Sandroni (2005, p. 711) recessão pode ser entendida como o “conjunto de declínio da atividade econômica, caracterizada por queda da produção, aumento do desemprego, diminuição da taxa de lucros e crescimento dos índices de falências e concordatas. Essa situação pode ser superada num período breve ou pode estender-se de forma prolongada, configurando então uma

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globalização produziu um sentimento, relativamente homogêneo, no sentido de

terem triunfado os pressupostos liberais, tanto políticos (democracia liberal) como

econômicos (capitalismo globalizado) (Cf. GÓMEZ, 2000, p. 15).

Contudo, como afirma David Harvey (2003, p. 77/78), as contradições

internas, tendentes a gerar crises, da acumulação do capital estão a revelar a

dificuldade da reprodução do capital e a conseqüente necessidade de se achar

espaços próprios a esta finalidade. É preciso, portanto, traçar alguns pontos de

contato a fim de se chegar às relações entre o desenvolvimento das políticas

econômicas, a partir do século XX, especialmente com a crise do estado de bem

estar social e, mais tarde, já nas décadas de 80/90 até o momento atual com a

condição do novo proletariado2, e as dinâmicas das relações de produção que

podem estar influenciando o novo encarceramento, ou seja, ultrapassando a lógica

do internamento e do disciplinamento para a lógica de um controle e

proletarização das classes excluídas.

Na lógica do sistema neoliberal3, a adoção das políticas econômicas,

mesmo nos países capitalistas mais avançados, condiciona o Estado numa

dimensão crescente de envolvimento, direto e indireto, para “salvaguardar a

continuidade do modo de reprodução do metabolismo social do capital.” (Cf.

Mészáros, 2003, p. 29).

Os efeitos dessas políticas são devastadores. De uma maneira bastante

simples, é possível identificar as mazelas institucionais causadas pela

globalização, em especial na política econômica adotada, a qual reverte o papel do

depressão ou crise econômica. O fenômeno da recessão está ligado ao processo de desenvolvimento dos ciclos econômicos próprios da economia de mercado ou capitalista.” 2 No capítulo III da presente pesquisa o tema será aprofundado. Neste momento, entretanto, é importante compreender que as análises feitas pelas diversas historiografias utilizadas à contextualização das classes sociais trabalhadoras, indicadas pela leitura marxista, não me parecem suficientes à preparação do estudo que nos propusemos, isto porque, de certo modo, a força de trabalho que está sendo constituída no processo produtivo contemporâneo (ou, até mesmo, está sendo expulsa da constituição do processo produtivo) não atinge mais as finalidades levantadas, especialmente o disciplinamento e o controle. Portanto, este novo proletariado, acima referido, será significado como um termo que alguns autores denominam como “pos-fordismo”, ou seja, nesse período de indefinição daquilo que “não é mais” e que “ainda não é”, indicará uma transição e a tendência da produção, marcadamente no limite do modelo fordista e o atual momento de flexibilização da produção. 3 O termo neoliberal é trazido, a partir de meados dos anos 70 do século XX, como a nova proposta para os mesmos pressupostos estampados pelo liberalismo econômico de Adam Smith e David Ricardo, numa tentativa de trazer uma linguagem desideologizada, mas que tem como finalidade circunscrever e permitir ao Estado uma função mínima, regulatória apenas, permitindo que as liberdades (especialmente do mercado – livre concorrência) possam diretamente contribuir, democraticamente, aos ganhos coletivos. Por esta razão é importante que, durante a elaboração da tese, sejam realizadas dilucidações sobre “liberdade” e “democracia”.

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Estado em relação à regulação do mercado, bem como na responsabilidade dos

direitos sociais. Cria-se, pois, um verdadeiro paradoxo, entre o discurso da

democracia liberal ante as novas estruturas globalizadas de poder, fundadas em

conseqüência das políticas liberais. Marta Harnecker (2000, pp. 212-213 e 239)

afirma que os efeitos da adoção das políticas neoliberais (tanto do ponto de vista

político como do econômico) são extremamente negativos para a sociedade, e

também aos trabalhadores em geral (estabilidade no trabalho, salários dignos,

segurança social), atingindo suas organizações de classe, para permitir a menor

intervenção do Estado, deixando os conflitos de classe para resolução pelo livre

mercado.

Como dito, para conter essa nova classe – esse novo proletariado – é

que o Estado lança mão de seu braço coercitivo de controle social. Esta é a relação

que precisa ser feita, ou seja, é possível entender as estruturas de poder como uma

explicação de práticas autoritárias que se prolongam no tempo ou são decorrentes

do modo de produção capitalista consolidadas nos modelos democráticos à

disposição da sociedade? Estes são os desafios (questionamentos) a serem

respondidos.

3.1. Estado e a relação social da produção

Como visto, o liberalismo econômico que se desenvolveu a partir do

século XVIII, produziu uma espécie de não intervenção nas relações econômicas,

especialmente na circulação de mercadorias, deixando a regulação à livre

concorrência. De certa forma a idéia de auto-regulamentação constituiu uma

novidade, em função do modelo até então existente (final do século XVIII – por

volta dos anos 1780) pois, como afirma Hobsbawm (2002 a, p. 50) “pela primeira

vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das

sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação

rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços”.

A partir da Revolução Industrial – seu ponto de partida4 situa-se entre

as décadas de 1780 e 1800 – as idéias dos fisiocratas5 perdem espaço sem,

4 Para Hobsbawm (1977, p. 51) este período de industrialização inicia-se em 1780 e termina com a construção das ferrovias e das indústrias pesadas em 1840, na Grã-Bretanha.

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entretanto, causar impacto nas teorias liberais, especialmente aquelas trazidas por

Adam Smith6. Em “A Riqueza das Nações” Smith desenvolve seu pensamento de

modo a explicar que os sentimentos individuais na busca de cada interesse pessoal

resultaria no bem-estar coletivo. Ao exaltar o individualismo e considerando que o

desenvolvimento harmonioso dos indivíduos tomados isoladamente resultaria no

desenvolvimento social, Smith propõe a não interferência do Estado,

especialmente na economia, defendendo a idéia da livre-concorrência como

mecanismo de uma economia eficiente.

Como explica Hobsbawm (2002b, p. 58) “embora o ritmo comercial,

que configura o ritmo básico de uma economia capitalista, tenha, por certo, gerado

algumas depressões agudas no período entre 1873 e meados dos anos 1890, a

produção mundial, longe de estagnar, continuou a aumentar acentuadamente”, ou

seja, embora as taxas de crescimento tenham diminuído, elas continuavam

aumentando, impelidas pela industrialização e pelas políticas econômicas liberais

em curso consideradas as mais aptas ao desenvolvimento econômico. A grande

preocupação dos economistas e empresários era, então, a prolongada depressão

dos preços, dos juros, pois o que estava em questão não era a produtividade e sim

a lucratividade. Esta tendência da queda da taxa de lucro foi minimizada pelos

grandes investimentos realizados no estrangeiro7, especialmente, mas não só pelo

impulso colonialista, mas também pela intervenção (protecionismo) do Estado,

isto porque, conforme Hobsbawm (2002b, p. 68) o mundo não era mais formado,

5 Os fisiocratas foi um grupo de economistas franceses do século XVIII que combateu as idéias mercantilistas formulando, de maneira sistemática, uma teoria do liberalismo econômico. A idéia principal é de que toda a riqueza vem da terra e de que a única classe produtiva é a dos agricultores, tendo, portanto, duas condições básicas: a liberdade e a propriedade privada. Paulo Sandroni (2005, p. 345) explica que foram os fisiocratas que criaram a noção de produto líquido, transferindo o centro da análise do âmbito do comércio para o da produção, isto porque “sustentaram que somente a terra, ou a natureza (physis, em grego), é capaz de realmente produzir algo novo” enquanto a indústria e o comércio apenas transformam ou transportam os produtos da terra. Para eles, a sociedade era dividida em três classes: os produtores (agricultores), os proprietários de terra (a nobreza e o clero) e as “classes estéreis” (demais cidadãos) e que existe uma circulação da renda entre elas, o que correspondia a uma ordem natural regida por leis imutáveis, razão pela qual defendiam a liberdade econômica contra as barreiras feudais ainda existentes à época. Em conseqüência, o Estado somente poderia intervir para garantir esta ordem, assumindo um papel de guardião da propriedade e da liberdade econômica. O principal representante dos fisiocratas foi François Quesnay e estes (os fisiocratas) exerceram grande influência sobre Adam Smith. 6 Adam Smith (1723 – 1790) principal economista da escola clássica teve influência muito grande dos fisiocratas, especialmente de François Quesnay. Em 1776 publicou sua mais conhecida obra – e talvez a mais importante – “A Riqueza das Nações”. 7 Na América Latina, por exemplo, os investimentos estrangeiros atingiram níveis muito elevados nos anos 1880, quando a extensão da rede ferroviária Argentina foi quintuplicada (Cf. HOBSBAWM, 2002 b. p. 59).

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apenas, por uma massa de “economias nacionais”, pois a “industrialização e a

Depressão transformaram-nas num grupo de economias rivais, em que os ganhos

de uma pareciam ameaçar a posição de outras”, aumentando a responsabilidade e

o papel do Estado que teve, a partir da Primeira Guerra Mundial, que assumir as

diretrizes das políticas econômicas.

É de notar, entretanto, que o período compreendido entre as duas

grandes guerras mundiais (1918-1945) foi um período que os autores chamam

(consideram) de colapso econômico (ou A Grande Depressão) e que levou o

jovem John Maynard Keynes a escrever uma severa crítica à conferência de

Versalhes de 1920 (The economic consequences of the peace), afirmando que sem

uma restauração da economia alemã, seria impossível a restauração da civilização

e da economia liberais estáveis na Europa. Hobsbawm afirma que as perturbações

e complicações políticas explicam, em parte, o referido colapso econômico no

mencionado período, creditando, entretanto, a outros dois fatores econômicos: o

primeiro é o impressionante e crescente desequilíbrio na economia internacional,

devido à assimetria de desenvolvimento entre os EUA e o resto do mundo e, em

segundo lugar, na não geração na economia mundial, de demanda suficiente para

uma expansão duradoura, pois “com os salários ficando para trás, os lucros

cresceram desproporcionalmente, e os prósperos obtiveram uma fatia maior do

bolo nacional. Mas como a demanda da massa não podia acompanhar a

produtividade em rápido crescimento do sistema industrial nos grandes dias de

Henry Ford, o resultado foi superprodução e especulação. Isso, por sua vez,

provocou o colapso” (Cf. HOBSBAWM, 2003, p. 103-104).

A certeza da necessidade de movimentos bruscos na economia

capitalista foi resultado da eminente estagnação provocada pela crise de 1929,

mesmo sabendo que a década de 1930 é considerada de grandes inovações

tecnológicas. De toda sorte, todos os lados do mundo sofreram com a depressão

dos anos 19308. Conforme Hobsbawm (2003, p. 108-109) no final dos anos 30 do

século XX a economia liberal do livre mercado estava totalmente dominada pela

grandes corporações o que tornava pouco realizável a livre concorrência, fato que

provocou o desgaste da economia mundial, a qual podia ser vista como um

8 Para se ter um panorama globalizado dos impactos políticos da Grande Depressão dos anos 30, no mundo, ver Eric Hobsbawm, “A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991”, Cia das Letras, pp. 108-111.

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sistema composto de um setor de mercado, um setor governamental (no qual,

economias planejadas faziam suas transações) e um setor de autoridades públicas

que regulavam partes da economia, como os acordos internacionais.

Diante da catástrofe produzida pelo liberalismo econômico, tanto no

sentido de destruição da economia como da sociedade, havia três opções à

hegemonia política: o comunismo marxista; um capitalismo ligado à social

democracia de movimentos trabalhistas não comunistas (que, depois da Segunda

Guerra Mundial, foi a proposição mais efetiva); e, a terceira opção era o fascismo

(na Alemanha foi o nacional-socialismo) que, aproveitando-se de toda conjuntura

política e econômica, estava decidido a livrar-se do fantasma do desemprego (Cf.

HOBSBAWM, 2003, p. 111-112).

É importante perceber, então, que as crises estruturais que o

capitalismo atravessou no final do século XIX (entre o fim da Guerra de Secessão

nos Estados Unidos, em 1865, e os anos 1890, denominado da Grande Depressão)

e também no período ‘entreguerras’ do século XX (1920-1939, especificamente

com a crise de 1929), tanto na Europa como nos Estados Unidos, nos permitem

algumas considerações. Gérard Duménil e Dominique Lévy apontam que no final

do século XIX a taxa de lucro desabou e somente a partir da Primeira Guerra

Mundial é que houve uma tendência ao aumento da rentabilidade, mediante a alta

da produtividade do capital e a tendência do crescimento econômico foi

restabelecida em função de uma revolução técnico-organizacional e pela explosão

dos mecanismos monetários e financeiros e das rendas financeiras, e as políticas

correspondentes.

Nos Estados Unidos, a partir dos anos 1890, houve uma transformação

das instituições do capitalismo (empresas e fábricas), provocando uma verdadeira

revolução de gestão – de técnica e de organização – atingindo todos os aspectos

do funcionamento das empresas, o que se chamou de taylorismo9: "além da

organização da produção, afetou a comercialização, a gestão dos estoques, do

financiamento e da tesouraria, a gestão do pessoal etc. O arquétipo disto é a linha

de montagem. A mecanização permitia tradicionalmente economizar trabalho e

9 Frederick Winslow Taylor (1856-1915) é considerado o pai da administração científica. Assim, dá-se o nome de “taylorismo” ao conjunto deas teorias para aumento da produtividade do trabalho fabril elaboradas por Taylor, que “abrange um sistema de normas voltadas para o controle dos movimentos do homem e da máquina no processo de produção incluindo propostas de pagamento pelo desempenho do operário” (Cf. SANDRONI, 2005, pp. 821-822).

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aumentar a produtividade do trabalho, mas o custo, em termos de capital, era

grande. A proporção entre capital e trabalho aumentava consideravelmente”

(2003, p. 26-27).

A partir dessa “revolução de gestão” – especialmente pelo taylorismo

e pela linha de montagem – isto é, do capital investido em técnicas, é que houve

um aumento da produtividade e da rentabilidade do capital, invertendo-se, pois, a

tendência da queda da taxa de lucro.

A eficiência foi o tom das primeiras décadas do século XX. De certa

forma estes fatos produzidos nesse período desfaz a idéia levantada por Marx, no

livro III de “O Capital”, da tendência da queda da taxa de lucro. Ocorreu,

entretanto, o que não se poderia imaginar naquele momento: diante das

assimetrias existentes no desenvolvimento econômico entre os Estados Unidos e

os demais países do mundo, a economia não produziu a demanda suficiente à

expansão necessária. Diante da concentração de renda (aliando-se à queda dos

salários) e do aumento dos lucros (aliando-se à incapacidade de demanda de

massa em acompanhar o crescimento industrial), entra em cena o que Duménil e

Lévy descrevem como o “desenvolvimento de um importante setor financeiro,

cuja relação com o sistema produtivo se transformou: a finança10 deixou de ser

uma simples auxiliar da atividade das empresas e do financiamento de suas

transações para tornar-se, então, a encarnação do capital enquanto propriedade,

frente ao capital enquanto função” (2003, p. 31). É o passo decisivo à especulação

financeira e, em 1929, com a queda da bolsa de valores de Nova York, inicia a

segunda grande depressão (1930).

Em 1936, John Maynard Keynes11 escreve “A Teoria Geral do

Emprego, do Juro e da Moeda”12, no qual contestava os dogmas do liberalismo

econômico. Keynes defendeu a idéia, por exemplo, da inexistência do princípio do

equilíbrio automático na economia capitalista, especialmente o princípio liberal

segundo o qual a queda no consumo levaria à queda da taxa de juros, resultando 10 Duménil e Lévy (2003, p. 31) afirmam que “por ‘finança’, entendemos aqui um vasto conjunto de indivíduos endinheirados e de instituições – indivíduos por trás de instituições – que detêm importantes capitais monetários e financeiros”. 11 John Maynard Keynes (1883-1946), economista inglês, nascido em 5 de junho de 1883, em Cambridge, foi o pioneiro da macroeconomia, produzindo estudos sobre o emprego e o ciclo econômico, os quais contestavam os “conceitos e a ortodoxia marginalista, e as políticas por ele sugeridas conduziram a um novo relacionamento, de intervenção, entre o Estado e o conjunto das atividades econômicas de um país” (Cf. SANDRONI, 2005, p. 455).

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num maior investimento e aquecimento da economia, provocando um novo

equilíbrio em direção ao pleno emprego.

Keynes demonstrou, entretanto, que “o nível de emprego numa

economia capitalista depende da demanda efetiva, ou seja, da proporção da renda

que é gasta em consumo e investimento” (Cf. SANDRONI, 2005, p. 456).

Fundamentalmente, o desemprego é resultado, para Keynes, de uma demanda

insuficiente de bens e serviços e que somente será resolvido por meio de

investimentos, pois “o nível de equilíbrio do emprego, isto é, o nível em que nada

incita os empresários em conjunto a aumentar ou reduzir o emprego, dependerá do

montante do investimento corrente” e este dependerá do “incentivo para investir,

o qual, como se verificará, depende da relação entre a escala da eficiência

marginal do capital e o complexo das taxas de juros que incidem sobre os

empréstimos de prazos e riscos diversos” (1992, p. 40).

Qual a importância da análise keynesiana? Conforme explica Sandroni

(2005, p. 456), os investimentos, como fator dinâmico da economia, são os

responsáveis pela solução do problema do desemprego e capazes de influenciar a

demanda e, mais importante, é que esta análise permite verificar a necessidade da

intervenção do governo para a economia atingir seu nível de equilíbrio, isto

porque pode a economia equilibrar-se e, ao mesmo tempo, estar com uma alta taxa

de desemprego caso não haja intervenção governamental com políticas adequadas

que sustentem a demanda efetiva, mantendo altos níveis de renda e emprego, de

modo que, a cada elevação de renda, o consumo e o investimento também

cresçam.

O que seria necessário, portanto, era alterar as expectativas dos

capitalistas (empresários) em relação à demanda futura e permitir que o capital

iniciasse uma nova fase de expansão, sendo imprescindível a intervenção do

Estado, o que ocorre, mais especificamente, a partir dos anos 1930. É exatamente

neste momento que se dá início ao intervencionismo do Estado e a implementação

das políticas keynesianas as quais conseguem reverter a situação de crise, pelo

menos temporariamente, especialmente nos anos após a Segunda Guerra Mundial,

constituindo-se, portanto, no chamado Welfare State: financiamento público13 da

12 Ver, KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de Mário R. da Cruz. São Paulo: Atlas, 1992, 328 p. 13 Oliveira (1998, p. 20) traz alguns exemplos do chamado financiamento público: “a medicina socializada, a educação universal gratuita e obrigatória, a previdência social, o seguro-desemprego,

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economia capitalista baseado, originalmente, nas políticas anticíclicas de

teorização keynesiana (Oliveira, 1998, p. 19).

Este financiamento público passou a ser o pressuposto dos processos

de acumulação de capital e da reprodução da força de trabalho a fim de que a

reprodução do capital se realizasse por meio da circulação de mercadorias,

financiada através da redistribuição da massa de mais-valia e salários arrecadados

via tributos pelo Estado, ou seja, em função do crescimento do salário indireto

(seguro-desemprego, salário-família, previdência social, entre outros),

transformou-se em liberação do salário direto ou da renda da família para

alimentar o consumo de massa, induzindo à produção e a um novo ciclo de

expansão, impedindo o surgimento de uma crise (CF. OLIVEIRA, 1998, p. 22).

Para Francisco Oliveira (1998, p. 20-23), a formação do sistema

capitalista é impensável sem a utilização do padrão de financiamento público do

chamado Estado-providência (com o conseqüente aumento do déficit público dos

países industrializados), funcionando quase como uma acumulação primitiva,

criando-se uma esfera pública institucionalmente regulada, revelando que a

presença dos fundos públicos na reprodução da força de trabalho e dos gastos

sociais públicos gerais é estrutural ao capitalismo e, até certo ponto, insubstituível.

Meszáros (2003, p.29) chega a afirmar que “apesar de todos os protestos em

contrário, combinados com fantasias neoliberais relativas ao ‘recuo das fronteiras

do Estado’, o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte

apoio que recebe do Estado”, lembrando que o século XX foi pródigo no

reaparecimento daquilo que Marx chamou de “ajuda externa”, desde políticas

agrícolas comuns e de garantias de exportação até os imensos fundos de pesquisa

e do complexo industrial-militar.

os subsídios para transporte, os benefícios familiares (quotas para auxílio-habitação, salário-família) e, no extremo desse espectro, subsídios para o lazer, favorecendo desde as classes médias até o assalariado de nível mais baixo, são seus exemplos”. Oliveira ainda aduz que a descrição das diversas formas de financiamento à acumulação inclui “desde os recursos para ciência e tecnologia, passa pelos diversos subsídios para a produção, sustentando a competitividade das exportações, vai através dos juros subsidiados para setores de ponta, toma em muitos países a forma de vastos e poderosos setores estatais produtivos, cristaliza-se numa ampla militarização (as industrias e os gastos em armamentos), sustenta a agricultura (o financiamento dos excedentes agrícolas dos Estados Unidos e a chamada “Europa Verde” da CEE), e o mercado financeiro e de capitais através de bancos e/ou fundos estatais, pela utilização de ações de empresas estatais como blue chips, intervém na circulação monetária de excedentes pelo open market, mantém a valorização dos capitais pela via da dívida pública, etc.”.

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Esta “ajuda externa” tem, então, a finalidade de evitar o aparecimento

de crises, em especial aquelas clássicas que surgiram no final do século XIX, num

contexto do modo de produção capitalista muito competitivo, de empresas

relativamente menores, sem intervenção estatal – o que levaria a uma espécie de

capitalismo muito concorrencial ou anárquico. No século XX, especialmente

nesses pós-guerras, aumenta-se a intervenção estatal, sob várias formas, não só

quantitativa mas, qualitativamente, pois ela vai adquirir novas funções (o que nos

remete também à formação de uma nova classe burocrática profissional) mais

complexas – educação, saúde, previdência pública, segurança, etc. – levando à

frente empreendimentos industriais cuja magnitude de capitais envolve tamanhos

riscos e uma quantidade de capital tão grande que os capitalistas individuais não

conseguem levar à frente (no Brasil, nos anos 1940, foi a situação da telefonia,

energia elétrica, petróleo e no século XIX isso aparece nas ferrovias, etc.) a

atividade industrial, necessitando da intervenção econômica direta (hidrelétricas,

extração de petróleo, etc.) do estado ou, por vezes, intervenção indireta

(organização das relações entre trabalhadores e capitalistas, previdência, saúde,

educação universal, etc.), distanciando-se, cada vez mais daquelas funções

clássicas do Estado do século XIX (garantia dos direitos individuais, etc.).

Para Gérard Duménil e Dominique Lévy (2003, p. 15-32), é

importante considerarmos, na análise do desenvolvimento do modo de produção

capitalista, os dois períodos que antecederam e sucederam as crises estruturais14

dos finais dos séculos XIX e XX (a primeira desencadeada entre o fim da Guerra

da Secessão – 1865 – e os anos 1890 e a segunda no final do século XX – iniciada

nos anos 1970. Os autores lembram ainda a crise de 1929 que, apesar de

circunstâncias diferentes, também legitimou enormes transformações). Apesar de

serem considerados períodos diferentes do capitalismo (o primeiro período

chamado anárquico ou desorganizado e no segundo período chamado de

capitalismo organizado) a saída das duas crises estruturais ocorridas foram

marcados por circunstâncias favoráveis ao restabelecimento da hegemonia das

finanças.

14 As crises estruturais são marcadas por diversos fatores, mas especialmente pelo baixo investimento e desenvolvimento da economia, desemprego, inflação, redução do progresso técnico, diminuição da rentabilidade do salário, lentidão do progresso do salário.

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A primeira hegemonia findou-se com a crise de 1929 e iniciou um

novo ciclo de desenvolvimento (ou uma nova “longa onda”, como chamam os

economistas15) que esgotou-se com a crise dos anos 1970. Neste período que vai

de 1930 até o início dos anos 1970, o papel do desenvolvimento do Estado-

providência, foi fundamental à concretização do chamado “compromisso

keynesiano”. Destacam Gérard Duménil e Dominique Lévy (2003, p. 32),

contudo, que o fracasso das políticas keynesianas, depois de três décadas de sua

implementação, criou, novamente, as circunstâncias favoráveis ao

restabelecimento da hegemonia da finança por meio do monetarismo, seguido

pelo neoliberalismo.

No contexto brasileiro, a Revolução de 1930 marca o início de um

novo ciclo na economia, especialmente com o fim da hegemonia agrário-

exportadora e o início da predominância da estrutura industrial. Mesmo que

somente a partir de 1956 o setor industrial ultrapasse o da agricultura, o

movimento de hegemonização é fundamental, notadamente pela “nova correlação

de forças sociais, a reformulação do aparelho e da ação estatal, a regulamentação

dos fatores, entre os quais o trabalho ou o preço do trabalho, têm significado, de

um lado, de destruição das regras do jogo segundo as quais a economia se

15 Nicoali Dmitrievich Kondratieff (1892-1930) foi economista e estatístico russo. Conforme Sandroni (2005, p. 460) “seu nome está associado ao estudo dos ciclos econômicos longos, ou ciclos seculares, de quarenta a sessenta anos”. Alguns economistas admitem a existência de 3 (três) ciclos econômicos longos (Ciclos Econômicos de Kondratieff): o primeiro até 1850 – compreendendo 24 anos de alta e 36 anos de baixa; o segundo que vai de 1850 a 1896 e o terceiro de 1896 a 1940. Muito embora estes ciclos de Kondratieff sejam de conceituação um pouco imprecisa, é importante verificar que os períodos de contração econômica ocorrem entre 24-30 anos após um período de expansão. O principal trabalho de Kondratieff é considerado “Los ciclos largos de la coyuntura económica” de 1926, publicado nos Cuardenos de Economía – Cidade do México. Talvez a característica marcante de seus estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo histórico seja a divisão destes ciclos longos em duas fases: a primeira fase de crescimento ou de expansão econômica e uma segunda fase de recessão econômica. “Considerando-se os anos 1930 como um período de contração, pode-se admitir que o período que vai de 1945 até os dias de hoje é um típico Ciclo Econômico de Kondratieff, onde a fase de ascensão vai de 1945 até 1967-73 e a fase de contração de 1967-73 até os dias de hoje (BRAUDEL, Fernand. O tempo no mundo. São Paulo, Editora Martins Fontes, 3 vol., 1996; WALLERSTEIN, Immanuel. Globalization or the age of transition? A long term view of the trajectory of the world system. International Sociology, vol. 15 (2), pp. 249-265, june, 2000). De forma semelhante, o debate sobre o nível de intervenção do Estado na economia após os anos 1930 parece seguir os ciclos de expansão e de contração da atividade econômica de tal forma que, se em alguns momentos a presença do Estado na economia é desejável, em outros é indesejável, o que se pode apreender através das abordagens teóricas. Assim foi o liberalismo no período anterior à crise dos anos 1930, o keynesianismo dos anos 1930 até meados dos anos 1970 e o neoliberalismo a partir dos anos 1980, que justificavam diferentes formas de relações entre o Estado e a sociedade” (Projeto de pesquisa apresentado à UNESC pelo NUPED – Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito), sob a coordenação do Professor Reginaldo de Souza Vieira. Haverá pequenos apontamentos sobre a importância e as conseqüências do estudo dos ciclos econômicos no item 2.4.2 desta pesquisa.

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inclinava para as atividades agrário-exportadoras e, de outro, de criação das

condições institucionais para a expansão das atividades ligadas ao mercado

interno”. Este novo modo de acumulação dependerá, sobretudo, da realização de

determinadas posturas, penalizando, por exemplo, os custos e a rentabilidade dos

fatores alocados à atividade agrícola destinado ao comércio externo – confiscando

os lucros parciais (como o caso do café) ou aumentando o custo relativo do

dinheiro emprestado à agricultura – o que poderia ser feito diminuindo o custo do

dinheiro emprestado à indústria (CF. OLIVEIRA, 2003, p. 35-36).

Analisando alguns aspectos que desempenharam essa missão na

concretização desse novo modo de acumulação, Francisco de Oliveira aponta16,

principalmente, a intervenção do Estado na produção econômica, agindo não só

no fator trabalho mas também na fixação de preços, na distribuição de ganhos e

perdas entre os diversos estratos ou grupos das classes capitalistas, no gasto fiscal

com fins reprodutivos, nos subsídios, etc., criando mecanismos aptos à reprodução

da acumulação industrial, pois “o seu papel é o de criar as bases para que a

acumulação capitalista industrial, no nível das empresas, possa se reproduzir”

(CF. OLIVEIRA, 2003, p. 40). Voltando ao contexto brasileiro, Francisco de

Oliveira mostra que a intervenção estatal teve como finalidade destruir (mas não

na totalidade) o modo de acumulação para o “qual a economia se inclinava

naturalmente” (o modo agrário-exportador), criando as condições do novo modo

de acumulação (o modo urbano-industrial)17.

Como visto, a partir de meados dos anos 1970, ocorreu o fracasso das

políticas keynesianas, mas é preciso lembrar que seu fracasso foi devido,

principalmente, “à internacionalização produtiva e financeira da economia

capitalista” em função de que a reprodução do capital, os aumentos da 16 Francisco de Oliveira aponta três aspectos: o primeiro (2003, p. 36) faz parte das regulamentações dos fatores, ou seja, da oferta e demanda dos fatores no conjunto da economia, no qual a regulamentação das leis de relação entre o trabalho e o capital é o mais importante; o segundo aspecto (2003, p. 40) refere-se à intervenção do Estado na economia; e o terceiro aspecto levantado (2003, p. 42) é o papel da agricultura. 17 Neste ponto merece destaque o fato de que o capitalismo destrói e constrói os mecanismos aptos à sua reprodução sem, entretanto, o fazer de forma absoluta. Veja que um dos aspectos da missão de concretização do novo modo de acumulação (urbano-industrial) é o papel desenvolvido pela agricultura. Francisco de Oliveira (2003, p. 42) afirma que a agricultura exerce um papel qualitativamente diferente neste momento, pois, de um lado “por seu subsetor dos produtos de exportação, ela deve suprir as necessidade de bens de capital e intermediários de produção externa, antes de simplesmente servir para o pagamento dos bens de consumo” e, de outro lado, “por seu subsetor de produtos destinados ao consumo interno, a agricultura deve suprir as necessidades das

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produtividade e a elevação do salário real se circunscreveram aos limites

territoriais nacionais dos processos de interação daqueles componentes da renda e

do produto, dissolvendo, portanto, a circularidade nacional dos processos de retro-

alimentação que pressupunha ganhos fiscais correspondentes ao investimento e à

renda que o fundo público articulava e financiava, razão pela qual o fundo público

é estrutural e insubstituível no processo de acumulação à necessidade de expansão

do capital (Cf. OLIVEIRA, 1998, p. 26-31).

Para Francisco de Oliveira (1998, p. 35) o fundo público é o antivalor

no sentido de que os pressupostos da reprodução do valor contêm os elementos de

sua negação, afinal “o que se vislumbra com a emergência do antivalor é a

capacidade de passar-se a outra fase, em que a produção do valor, ou de seu

substituto, a produção de excedente social, toma novas formas” as quais aparecem

não como desvios do sistema, mas como necessidade da lógica de expansão do

capital.

A interessante hipótese apresentada por Francisco de Oliveira reside

no fato de que a “força de trabalho está se desvestindo das determinações da

mercadoria”, ou seja, a anulação do “fetiche da mercadoria” isto porque os

componentes à remuneração da força de trabalho são, não só conhecidos, mas

determinados politicamente, mesmo imaginando-se que vivemos numa sociedade

de massa, absolutamente “fetichizada”. No lugar do “fetiche da mercadoria”

Oliveira propõe o “fetiche do Estado”, local em que se operará a exploração da

força de trabalho e sua “desfetichização”, determinando, portanto, que agora o

capital é social.

Nesta nova relação social de produção será importante não só a

presença do salário e da propriedade privada, mas também todas as outras esferas

à reprodução do capital: a circulação, a distribuição, o consumo, além da esfera da

produção, produzido pela presença do fundo público na reprodução, tanto do

capital como da força de trabalho. Para Oliveira (1998, p. 37) “o desenvolvimento

do Welfare State é justamente a revolução nas condições de distribuição e

consumo, do lado da força de trabalho, e das condições de circulação, do lado do

capital”.

massas urbanas, para não elevar o custo da alimentação, principalmente e secundariamente o custo das matérias-primas, e não obstaculizar, portanto, o processo de acumulação urbano-industrial.”

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3.2. A intervenção política do Estado na economia

Como visto, convencionalmente se atribui as intervenções estatais

àquelas hipóteses já levantadas, especificamente de intervenção direta (quando o

capital privado não consegue realizar – por exemplo os altos investimentos ou de

grande risco) e indireta (regulamentação do mercado de trabalho, formação de

uma classe burocrática, etc.), ou seja, diretamente relacionadas com a atividade

econômica, isto porque, de uma forma geral, estas intervenções estabelecem

(objetivam) a reprodução do conjunto do capital social. Entretanto, há também

algumas determinações políticas da intervenção estatal que não se circunscrevem

aos aspectos econômicos propriamente ditos e é exatamente neste sentido que

Nico Poulantzas questiona: “por que o Estado toma a cargo setores perfeitamente

rentáveis para o capital?” (2000, p. 185).

Antes, porém, é preciso fazer uma breve discussão sobre o Estado e a

maneira pela qual ele é visto na obra “O Capital” de Karl Marx. É necessário,

primeiramente, utilizando-se a obra de Ruy Fausto, (Marx: lógica & política.

Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética, especificamente o

Capítulo 4. “Sobre o Estado”) analisar o Estado a partir do conteúdo representado

pelas oposições de classes concebidas como oposições de interesses, ou seja,

como o próprio autor adverte, não se pretende abranger o conjunto da teoria do

Estado mas analisá-lo na medida e a partir de “O Capital”, tendo como objeto as

formas de Estado. A idéia inicial é estabelecer o ponto de partida exato da

derivação da forma Estado a partir da sociedade. Para tanto, Ruy Fausto

desenvolve categorias da sociedade civil em categorias do Estado, ou seja, a partir

do pensamento e categorias marxistas, segundo ele, há três momentos em que é

possível apreender o Estado: a primeira é a relação entre forma e conteúdo; a

segunda no contexto do aumento da composição orgânica e da queda tendencial

da taxa de lucro; e, a terceira, diante dessa queda tendencial da taxa de lucro, a

necessidade de intervenção direta do Estado.

O primeiro desenvolvimento inicia do estudo da primeira parte do

livro I de “O Capital”, isto porque ela traz a análise da “circulação simples”, ou

seja, a forma de circulação de mercadoria e seu equivalente, demonstrando a

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“aparência” do sistema e, consequentemente, a ocultação da essência. Para Ruy

Fausto (1987, p. 291-292) no nível da circulação simples, os indivíduos

proprietários das mercadorias – que a obtiveram, direta ou indiretamente, através

de seu trabalho – as trocam observando-se o princípio da equivalência e que, o

princípio da apropriação no nível da circulação simples, segundo Marx, é o da

apropriação pelo trabalho próprio.

O segundo momento, que ele chama de “primeira negação”, o “capital

é posto mas com uma pressuposição externa, a da existência ou da presença do

capitalista e do trabalhador”. Esta pressuposição da apropriação pelo trabalho

torna a situação inicial uma relação de igualdade (também pressuposta). Contudo,

entra em cena o terceiro momento: a continuidade do processo de produção faz

com que a troca de equivalentes se torne uma simples aparência, bem como a

igualdade dos contratantes e a apropriação pelo trabalho. Esta relação – entre

capitalista e trabalhador – mostra-se, então, uma relação não equivalente entre

desiguais e uma “apropriação da riqueza não pelo trabalho próprio mas pelo

trabalho alheio”. Como visto, estas partes estão ligadas entre si por uma relação de

contradição a qual deve ser o ponto de partida do Estado capitalista, ou seja, o

desenvolvimento do Estado ocorre na contradição entre aparência e essência do

modo de produção capitalista, isto porque, na aparência não há contradição de

classes (mesmo porque elas não existem) mas, ao contrário, há identidade entre

indivíduos (igualdade). Somente no momento em que há uma relação de

exploração que as classes (oposição) nascem, ou seja, considerado a partir das

formas, o Estado deriva da contradição entre a identidade e a contradição (Cf.

FAUSTO, 1987, p. 292-294).

Neste sentido e a partir da idéia da equivalência entre indivíduos

iguais, ou seja, na aparência do sistema (no momento da circulação simples), há

algo mais que uma relação econômica, há uma juridicização do econômico através

(meio) do contrato estabelecido entre os indivíduos livres. Assim, estas relações

jurídicas se realizam por meio das relações econômicas, permitindo, portanto, um

relacionamento muito estreito entre esta e a superestrutura jurídica. Veja-se,

portanto, que a sociedade civil é formada pelo relacionamento entre as estruturas

de produção (econômica) e sua expressão jurídica (garantida pelo Estado), ou seja,

no contexto da circulação simples, as relações econômicas tornam-se relações

legalizadas pelo Estado através do Direito. Assim, chegando nesse ponto é preciso

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responder dois questionamentos: qual a necessidade da relação jurídica ser posta

como lei e o segundo é porque há esta posição (no sentido de direito posto pelo

Estado).

Para Ruy Fausto (1987, p. 299), à primeira pergunta se obtém a

resposta comparando a relação jurídica enquanto lei com a ideologia. Partindo da

idéia de que ideologia é o “boqueio das significações”, esta torna positivo aquilo

que é, em si mesmo, negativo, ou seja, a função da ideologia é, num primeiro

momento, ocultar a contradição para, num segundo momento, operar a própria

contradição. Assim é que “o Estado guarda apenas o momento da igualdade dos

contratantes negando a desigualdade das classes, para que, contraditoriamente, a

igualdade dos contratantes seja negada e a desigualdade das classes seja posta”

(1987, pp. 299/300).

A segunda pergunta (por que é preciso que haja posição) – que é

decorrência da primeira – Ruy Fausto (1987, p. 300) responde que a posição da lei

se impõe em função do seu próprio conteúdo, ou seja, ela se impõe porque a

“identidade dos contratantes se interverte no seu contrário, porque a lei (o

primeiro momento) contém em si o princípio do seu contrário” isto porque “se a

relação jurídica obedecesse a lógica da identidade, se ela fosse (somente) idêntica

a si mesma, ela não precisaria ser posta enquanto lei”. Assim, ela não precisaria

ser posta enquanto lei pois “a sua transgressão poderia ocorrer ou não, e portanto

toda garantia contra a transgressão, a da ideologia como a do Estado, não teria a

mesma necessidade”.

Para Fausto (1987, p. 301) uma lei que se realiza pelo seu contrário

contém a transgressão no seu interior, ou seja, está contido no interior (como

forma de realização) da própria lei a transgressão, a qual visa garantir sua

identidade. Desta forma é necessário perceber que a lei somente é transgredida

quando se lhe obedece plenamente, restando claro que não obedecer significa não

transgredir.

Se a transgride – isto é, se questiona o primeiro momento, a lei dos equivalentes enquanto lei dos equivalentes, o contrato livre, ou seja, se quer alterar o contrato “livre”, em favor de uma das partes – para que ela não seja transgredida, para que o contrato não se torne o que ele se torna por si mesmo, o contrário do contrato livre e da relação entre iguais (Cf. FAUSTO, 1987, p. 301).

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É preciso, pois, para salvar a aparência do sistema, a ideologia (como

“bloqueio das significações”) e o Estado funcionando como guardiães da

identidade dos contratantes (do sistema). Esta função é realizada pelo Estado (no

processo de expropriação), em parte como a ideologia o faz e, em parte,

utilizando-se da força e da violência (como detentor do monopólio do uso da força

coercitiva). Desta forma é possível enxergar que a violência está na essência do

Estado (não na aparência), ou seja, é a violência do capital que reside no interior

da sociedade capitalista. Em síntese, o Estado – como guardião da identidade –

garante o funcionamento das relações de produção capitalista – cristalizando a

aparência do sistema – utilizando-se da violência portanto. Assim é que, na função

de guardião da identidade, o Estado deveria se colocar como uma força de

equilíbrio ou, se preferir, assumindo um papel de intervenção regulando as

relações no interior do sistema. Entretanto, como isso acontece e qual o motivo

que leva o Estado intervir nas relações sociais, especialmente econômica? Sobre

isso trataremos no ponto seguinte.

3.2.1. As formas de intervenção do Estado

O estudo desenvolvido por Nicos Poulantzas sobre a intervenção do

Estado na economia – em “O Estado, o poder, o socialismo”18 – é bastante

interessante pois o momento histórico era muito rico em função de que, a partir do

final dos anos 1970, a economia entra num momento de transição: falência do

modelo keynesiano e retomada dos pressupostos liberais (o que se convencionou

chamar de ‘neoliberalismo’), o que resultou em diferentes formas de

relacionamento entre o modo de produção capitalista e o Estado.

A análise do Estado capitalista, para Poulantzas (2000, p. 165), não

deve circunscrever-se, “em suas relações de constituição, à economia, ao seu

18 A análise foi desenvolvida por Nicos Poulantzas em 1978, ou seja, pode-se dizer que ainda dentro do contexto do Estado de bem-estar e, fundamentalmente, incapaz de dar conta de outros fenômenos do capitalismo contemporâneo, especialmente em função da internacionalização das relações sociais capitalistas. Por esta razão, capital e Estado passam por um processo de reestruturação em que a acumulação do capital tenta encontrar novas formas de reprodução. Entretanto a discussão apresentada por Poulantzas coloca no centro da análise o debate da democracia e do socialismo, deixando claro, para tanto, a necessidade de estabelecer uma discussão teórica suficiente a fim de estabelecer o papel do Estado no contexto contemporâneo, sem o qual não poderemos entender os motivos que hoje é vivenciado.

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relacionamento com as relações de produção e com a divisão social capitalista do

trabalho no sentido geral. Elas se traduzem, conforme as fases e estágios do

capitalismo, como funções econômicas desse Estado”, tratem elas da “violência

repressiva, da inculcação ideológica, da normalização disciplinar, da organização

dos espaços e do tempo ou da criação do consentimento”, ou seja, é preciso

entender, exatamente, a articulação entre o espaço político (do Estado) e da

reprodução do capital (da economia). Para ele, à medida em que modificações nas

relações de produção, na divisão do trabalho, na reprodução da força de trabalho,

na extração de mais-valia, etc., passam a integrar diretamente o espaço-processo

de reprodução e valorização do capital (econômico), modificando os pontos de

impacto no Estado, é que nesses domínios o papel do Estado ganha novos

contornos, ocupando, pois, as funções econômicas, posição central.

Recorrendo à análise de Ruy Fausto, é possível distinguir três formas

de intervenção do Estado:

a) regulamentando a concorrência. Nesta situação, o Estado assume a

regulação das relações econômicas intervindo nos contratos e, através disso, no

jogo da concorrência, na qual se efetivam as leis do sistema – por exemplo, a

tendência no sentido de extrair mais-valia relativa se efetiva pelo esforço de cada

capitalista individual, com vistas a obter um lucro excedente, através do aumento

da produtividade – ao mesmo tempo em que se irrompem as contradições do

modo de produção, as quais são corrigidas por mecanismos internos do próprio

sistema que se manifestam por ele próprio. Assim, o Estado tende a substituir a

concorrência na realização das leis do sistema e na correção dos desequilíbrios

“anormais”, devendo, portanto, a intervenção do Estado ser preventiva. Tentando

entender esta função do Estado, Ruy Fausto utiliza-se da idéia de Engels do

Estado como uma máquina essencialmente capitalista (Cf. FAUSTO, 1987, p.

315-316);

b) nas relações entre capitalistas e trabalhadores assalariados. Diante

da relação existente entre forma-aparência e conteúdo-essência, ou seja, entre

igualdade das partes no contrato e a troca de equivalentes se intervertendo em

desigualdades e extração de uma classe sobre outra, regulamentada pelo direito

posto, o Estado ultrapassa essa lógica e reconhece a natureza particular dessas

relações intervindo, reconhecendo que uma das partes é mais fraca do que a outra,

dando vida ao chamado direito social, reconhecendo, por exemplo, os contratos

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coletivos de trabalho. Muda, portanto, a forma de aparência do sistema, ou seja,

enquanto no capitalismo clássico a identidade das partes ocultava a desigualdade

das classes, no capitalismo contemporâneo a diferença oculta a contradição. Neste

sentido o Estado aparece não mais como um árbitro a intervir entre iguais –

comunidade política – mas a corrigir as diferenças comunitárias, não mais

políticas mas econômicas19, zelando não só pelas garantias individuais

(provocadas pelo contrato entre iguais, em sentido genérico e abstrato) mas agora

pela garantia do bem estar de cada um. Cabe aqui, entretanto, uma pequena

ponderação, pois o Estado, por estar inserido em um específico modo de produção

– no caso o modo capitalista de produção – e representar os interesses coletivos na

consecução e realização de certas tarefas, de certa forma entra numa contradição

interna do próprio sistema, em função de que, ao mesmo tempo que representa o

interesse coletivo, o faz no interior do modo de produção que, na essência, serve à

dominação e exploração das classes (Cf. FAUSTO, 1987, p. 317-321);

c) e a terceira, a presença do Estado enquanto agente econômico,

sobretudo enquanto proprietário de empresas. É possível fazer uma pequena – mas

importante – distinção: nos dois primeiros casos o Estado intervém, diretamente,

na relação entre as partes, enquanto que no último caso ele é parte, ou seja, a

intervenção do Estado surge de outras formas e por outras razões, não mais na

contradição do sistema mas por sua incompletude, isto porque a economia, por si,

não é capaz de realizar o conjunto das necessidades do sistema, razão pela qual o

próprio Estado se torna o próprio capitalista. Neste contexto (e aqui merece,

novamente, uma nova ponderação), a propriedade dos elementos do capital sobre

19 Para Ruy Fausto (1987, p. 321-322) “dizer que o Estado pressupõe uma comunidade significa que o Estado assume a realização de certas tarefas coletivas, mas que ele as realiza no interior das exigências formais do sistema, sistema que se baseia na exploração e na dominação de classe. Quando o Estado corrige diferenças, se pode dizer que ele põe no interior do sistema certas possibilidades inscritas na comunidade que ele pressupõe, comunidade que não significa mais aqui somente a exigência da realização de tarefas de interesse coletivo, mas também a garantia para cada membro da satisfação de certas necessidades. Mas assim como as tarefas de interesse geral são postas no interior do sistema (o que significa que há uma ruptura entre elas mesmas fora e dentro do sistema), também as tarefas de proteção e de correção das diferenças são a posição no interior do sistema do que elas são, como possibilidades pelo menos, fora ou ‘no fundo’ dele. Isto não significa que essas medidas já estivessem inscritas numa essência qualquer do Estado (embora elas existissem como possibilidades, dadas as das pressuposições comunitárias do Estado). isto não significa também que o Estado se alterou essencialmente, que ela passa a ter agora uma essência comunitária. O que se passa é algo assim como se o Estado ao assumir essas funções instituísse novas pressuposições (se se quiser, pusesse novas pressuposições enquanto pressuposições), precisamente a pressuposição de uma espécie de comunidade econômica, que entretanto se deve distinguir do que é efetivamente posto e que representa só um mínimo de garantias a todos os membros da ‘comunidade’.”

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uma sensível mutação, uma vez que é o próprio Estado que detém, agora, mais do

que nunca, a oportunidade de realizar os pressupostos da produção social, pois

além de ser o proprietário dos meios de produção, organizará (nos termos da

acumulação e reprodução capitalista, especialmente na extração da mais-valia) a

expropriação antes executada pelos capitalistas privados (individuais) e, o mais

importante, isto tudo realizado no interior do sistema (efetivado pelo próprio

Estado) (Cf. FAUSTO, 1987, p. 324-327).

Para efeito da presente pesquisa, importante compreender que no

período que medeia o final da segunda Guerra Mundial e início dos anos 1970, é

considerado um período de grandes intervenções estatais. Não significa,

entretanto, o único momento, pois no desenvolvimento capitalista, considerado

historicamente, é possível observar uma grande intervenção do Estado “na pré-

história imediata do capitalismo e nos seus começos, diminuindo

consideravelmente na primeira metade do século XIX, para reaparecer no final do

século” (Cf. FAUSTO, 1987, p. 314).

Como dito, no período compreendido entre 1945 e 1970, havia ainda

um grande espaço à expansão do capital (ante a destruição da Europa e a

necessidade de sua reconstrução), o Estado viu-se “obrigado” a fazer

investimentos, até então, inéditos pois ele vai ser o interventor direto (Estado

empreendedor, Estado capitalista – criando empresas, investimentos diretos, etc.)

e, ao mesmo tempo, é o capital de apoio que vai financiar o desenvolvimento

através, por exemplo, da pesquisa, da educação e na formação de uma burocracia

estatal (planejamento econômico, trabalhadores diretos incorporados à estatais,

professores universitários, cargos técnicos, engenheiros, advogados,

funcionalismo público em geral, etc.)20.

De certo modo, os encargos dessas funções ao capital individual

comportam grandes riscos e uma magnitude de capital muito grande, razão pela

qual essas funções podem ser deslocadas para o Estado, de maneira selvagem,

para o benefício de uma determinada fração do capital, em detrimento de outras

frações do capital ou capitalistas individuais, aumentando as contradições internas 20 No Brasil, em situação muito semelhante (senão análoga), foi feito o chamado Plano de Metas. Este plano previa o desenvolvimento econômico e social e foi adotado durante o governo de Jucelino Kubitschek (1956-1960), caracterizado por investimentos estatais em infra-estrutura (transportes, principalmente) e na produção e distribuição de energia elétrica. Durante esse período

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no bloco do poder, demonstrando, portanto, que o cumprimento dessas funções

está diretamente relacionado a uma necessidade política (Cf. POULANTZAS,

2000, p.184-185).

Assim, tanto para Poulantzas como, de forma muito semelhante, para

Ruy Fausto, as intervenções do Estado, em cumprimento a determinadas funções,

são realizadas, sem dúvida, ainda que sob a lógica do interesse geral, em benefício

da fração hegemônica do capital, o que demonstra a importante manifestação

política do Estado na economia, no interior mesmo do sistema, em atendimento ao

bloco de poder constituído pelas classes dominantes. Assim, o Estado se obriga,

justamente em função das diversas contradições que são criadas, a adotar medidas

políticas com proveito predominante do capital monopolista. Para Poulantzas

(2000, p. 186) “esse caráter político diante das classes e frações dominantes

atinge, em diversos graus, o conjunto dessas funções. Isso está muito claro na

reprodução e gestão ampliada da força de trabalho, coordenada geral da

reprodução coletiva do capital, mas também nas disposições do Estado que visam

à desvalorização de determinadas frações do capital constante21”.

Esta desvalorização ocorre, segundo Poulantzas (2000, p. 186),

constantemente no processo econômico, ora pela ação direta de certos capitais –

normalmente decorrente da ação do capital monopolista – contra outros capitais –

tanto em decorrência do capital não-monopolista como também do capital

monopolista – através, por exemplo, de falências, absorções e concentrações. A

intervenção do Estado na economia possibilita, por vezes, que parcelas inteiras do

capital devam morrer a fim de que outras possam sobreviver. É a essência do

capital. As formas selvagens de apropriação dos meios de produção – narrados

com detalhes por Marx (especialmente a expropriação de terras pela força física o PIB brasileiro cresceu 7% ao ano e a indústria se expandiu num ritmo de cerca de 13% ao ano (Cf. SANDRONI, 2005, p. 653). 21 A composição do capital, do ponto de vista do valor, é determinada pela proporção em que o capital se divide em constante (o valor dos meios de produção que apenas transfere às mercadorias produzidas sem criar mais-valia) e variável (o valor da força de trabalho que sai valorizada do processo de produção, criando mais-valia). Em termos materiais, o capital constante é composto pelos meios de produção, tais como máquinas, edifícios, matéria-prima, etc., e o capital variável é a parcela do capital destinada à compra da força de trabalho, para o pagamento de salário. Ver MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. O processo de produção do capital. Livro 1, volume 2, capítulo XXIII (A lei geral da acumulação capitalista), p. 715 e segs. Muito embora não exista, empiricamente, resultados que comprovem a concepção marxista segundo a qual haveria uma tendência decrescente da taxa de lucro com o desenvolvimento do capitalismo, é possível dizer que esta desvalorização de frações do capital constante ocorre justamente em razão desta

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ou pela força das leis) – típicas da acumulação primitiva, são encobertas pelas

ações do Estado na contemporaneidade, ajudando o capital monopolista de forma

direta através de incentivos fiscais, por exemplo, demonstrando a abrangência da

atuação do Estado e sua vinculação com as frações dominantes do capital à

hegemonia política.

2.2.2. O uso dos instrumentos ideológicos e repressivos: o conteúdo político das funções econômicas do Estado

Diante desta caracterização política da intervenção estatal, cabe, ainda,

entender o conteúdo político dessas funções econômicas do Estado, ainda mais

que as intervenções estão diretamente relacionadas com as massas populares, isto

porque, diante dessas funções (a intervenção direta do Estado na economia,

favorecendo determinada classe social) e, efetivamente, diante da sua atuação com

medidas protetivas do capital que visam, essencialmente, sua reprodução, o

Estado utiliza-se de mecanismos ideológicos e repressivos, uma vez que “é ao

materializar a ideologia que o apresenta como representante do interesse geral e

do bem-estar comum acima das classes, que o Estado se incumbe diretamente das

funções econômicas ocultando das classes populares seu real conteúdo de classe”

(CF. POULANTZAS, 2000, p. 187).

Para Poulantzas (2000, p. 188) não se pode entender o Estado,

especialmente o Estado-Providência, tomando posturas de caráter meramente

social, isto porque “toda uma série de medidas econômicas do Estado, muito

particularmente as que se referem à reprodução ampliada da força de trabalho, lhe

foram impostas pela luta de classes dominadas (grifo no original) em torno do

que se pode designar sob a noção, social e historicamente determinada, de

‘necessidades’ populares”, ou seja, essas funções sociais do Estado dependem,

sobretudo, do grau de mobilização popular e, por vezes, da tentativa do Estado em

dissuadir, antecipadamente, o movimento de lutas populares (de classes). Diante

disso, Poulantzas afirma que, independente de como foram conseguidas as

reivindicações sociais, a longo prazo a concessão de determinados benefícios

tendência, isto porque a composição orgânica do capital tenderia a aumentar com o desenvolvimento do capitalismo e do avanço tecnológico, levando a uma queda na taxa de lucro.

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estão inseridas em mecanismos que favorecem o capital e sua reprodução

ampliada.

Assim é que o Estado, ao intervir diretamente na economia, o faz de

forma a cumprir sua agenda política, ou seja, elaborando políticas sociais o Estado

garante a acumulação do capital e perpetua a hegemonia de classe sobre as massas

populares, resultando na possibilidade em afirmar que não existem funções

puramente sociais do Estado às populações mais necessitadas, criando-se, na

verdade, através da intervenção social – via Estado-Providência – além dos

mecanismos aptos à reprodução da força de trabalho (e produção de mais-valia e

sua apropriação por determinada classes social) e facilitação e desenvolvimento

do consumo de massa, novas intervenções de caráter político no controle das

populações22.

De fato, após décadas de “sucesso” de implantação das políticas

keynesianas, em especial o Estado de bem-estar nos países centrais e o Estado

desenvolvimentista nos países periféricos, é possível afirmar que no período

situado entre a metade dos anos 1970 e início da década de 1980, caracterizou-se

por um novo período de crise estrutural no capitalismo e, juntamente com a

revolução tecnológica (informação e comunicação, principalmente, projetando

novas técnicas e redução de preços) que tomou conta do cenário mundial,

proporcionaram diversas alterações e redefinições com sérias implicações no

processo de acumulação do capital, o qual necessitava encontrar novas formas de

garantir sua reprodução. Os reflexos dessa crise foram, dentre outros, de um lado,

um aumento considerável no desemprego e, de outro, conforme acentua Lévy e

Duménil (2003, pp. 23-24) “desde meados dos anos 1980, a rentabilidade do

capital aumentou e o controle sempre estrito dos salários e do custo do trabalho

em geral fez com que esta drenagem de renda para as camadas mais favorecidas

assumisse proporções consideráveis. As desigualdades patrimoniais foram

restabelecidas e mesmo acentuadas, de modo que o capitalismo contemporâneo

readquiriu algumas de suas características do passado.”

A conseqüência mais marcante (ou, uma primeira conseqüência

observável) que se pode ter desse período é o fato de que, em função do Estado de

22 Neste momento não será realizado um estudo mais denso sobre os diversos processos característicos da modernidade de disciplina e controle das massas. Este estudo será feito no capítulo seguinte, quando a discussão estará ultrapassando a lógica da disciplina e do controle, preponderando, pois, os processos de subjetivação que marcam a contemporaneidade.

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bem-estar não ter ainda entrado num processo de implosão (que ocorre mais tarde

a partir da queda dos regimes socialistas na Europa nos anos 1990), foi a

necessidade de cada vez mais pessoas estarem sujeitas e reféns desse modo de

produção social, uma vez que foram beneficiadas pelos programas estatais,

tornando-as, de certa forma, sujeitas às conotações do processo punitivo da

estigmatização.

Este período, sem dúvida, é marcado pelo enorme contingente de

mão-de-obra desempregada, bem como, pelos primeiros traços da nova

seletividade punitiva, qual seja, a criminalização de uma enorme massa popular de

excluídos do mercado de trabalho (estratos sociais determinados e pessoas

determinadas: pobres, imigrantes e jovens) que passam a ser considerados pessoas

perigosas ao sistema. De certa forma começa a segmentar (fragmentar) este novo

grupo de pessoas: aqueles que estão, ao menos temporariamente, incluídos no

sistema e vinculados politicamente ao Estado, através do Estado-Providência ou

ao Estado-Penitência (necessidade política do Estado na intervenção econômica).

Lembrando Ruy Fausto, é criado um processo de regulamentação entre as classes

sociais, principalmente pelo Direito do Trabalho que, ao lado das medidas

caritativas do Estado de bem-estar, condicionam uma grande massa de

desempregados a estarem plenamente vinculados ao Estado, principalmente pelos

referenciais legais de equivalência, é dizer, àqueles que se comportam como o

sistema pretende lhe é concedido o Estado social e, ao revés, àqueles que

representam um contingente perigoso às relações sociais e aos aparelhos de poder

lhe é concedido o Estado policial-penal.

É preciso, agora, entender o comportamento da economia e sua

transformação global na década de 1990, trazendo o colapso e esgotamento dos

modelos industriais taylorista e fordista de produção e a necessidade da criação de

novos espaços à reprodução do capital.

3.3. A criação de novos espaços à reprodução do capital

É possível caracterizar os vinte anos que se seguiram a década de

1970 como um período de profundas mudanças e crises, caracterizando, na década

de 1980, uma grande recessão, comparável (e até mesmo pior) à crise de 1930. O

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que se viu, na verdade, foram os modelos de processo de trabalho que predominou

durante o século XX – basicamente os modelos taylorista e fordista de produção –

sendo substituídos por modelos de produção flexíveis e desregulamentados,

especialmente no sentido da substituição e (ou) eliminação da produção de

direitos e conquistas trabalhistas. Assim, de que forma o Estado pôde intervir –

direta ou indiretamente – para manter o modo de produção social do capital e

quais suas conseqüências no mundo contemporâneo?

3.3.1. As transformações no mundo do trabalho

Após o término da chamada “Era do Ouro” em 1973-1975, ocorreram

diversas alterações nos anos 1980, em razão do grande avanço tecnológico, da

automação e dos grandes investimentos na robotização das indústrias, cujas

conseqüências foram sentidas nas relações de trabalho e produção. Independente

das divergências teóricas em relação a esta nova fase do capitalismo23, de fato, o

que se vê é, segundo Hobsbawn (2003, p. 394), uma grande transformação no

modo de produção, especialmente pelo avanço tecnológico e melhoria nas

comunicações e meios de transporte que solucionou o inconveniente da

necessidade de estoques, característica da produção em massa (fordista) da década

de 1970, quando as ‘novas’ indústrias podiam produzir em grande quantidade.

Na verdade houve uma mescla de procedimentos, pois a produção em

massa alcançada através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos,

resultado do controle do tempo e dos movimentos pelo cronômetro taylorista e da

produção em série fordista vai resultar na flexibilização da produção através da

baixa quantidade de estoques e pela produção do necessário e suficiente para

abastecer os vendedores, obtendo-se uma grande capacidade de variação na

produção a fim de enfrentar as exigências de mudanças. 23 Sobre esses novos processos produtivos, é importante compreender que não há unanimidade, entre os autores, em relação às suas características. Ricardo Antunes (2005, pp. 24 e segs.) explica que os novos processos do trabalho emergem quando os modelos tradicionais – especialmente o taylorista e fordista – são “substituídos” pela flexibilização da produção, utilizando-se, para tanto e principalmente, da tese de David Harvey. Por oportuno, Ricardo Antunes traz algumas considerações sobre o assunto, fazendo referências teóricas sobre diversos autores que divergem em relação aos novos padrões de busca de produtividade. Segundo ele, alguns autores, como Sabel e Piore, pioneiros da tese da “especialização flexível”, entendem que estes novos processos

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O resultado disso, como observa Hobsbawn (2003, p. 395) é que no

final do século XX, por um lado, os países capitalistas desenvolvidos estavam

mais ricos e com uma enorme capacidade de produção, maior que no início do

anos 1970 e a economia global estava imensamente mais dinâmica, e de outro, a

situação de regiões como a África, a Ásia ocidental e a América Latina, tinha

estagnado pela paralisação do crescimento do PIB per capita24, resultando num

sensível empobrecimento dessa população na década de 1980.

Para David Harvey (2004, p. 140) até 1973 – quando iniciou uma

profunda recessão nos países capitalistas – tinha-se no modelo fordista de

produção (em massa) e na aplicação das medidas keynesianas, os mecanismos de

estabilidade política e financeira da população trabalhadora. A partir de então,

teve início uma série de modificações no interior do processo de acumulação que

caracterizou a década seguinte (1980) como um período de incertezas, oscilações

e de reestruturação econômica e reajustamento político e social: o regime de

acumulação flexível. Para ele, este novo regime de acumulação é marcado pela

ausência de rigidez do “fordismo” e se apóia na flexibilidade dos processos de

trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Este

regime caracteriza-se:

(...) pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (tais como a “Terceira Itália”, Flandres, os vários vales e gargantas do silício, para não falar da vasta profusão de atividades dos países recém-industrializados) (Cf. Harvey, 2004, p. 140).

produtivos são inteiramente distintos das bases fordistas, enquanto que, para outros, como Anna Pollert, não há significativa transformação no interior do processo de produção de capital. 24 Para entender o cenário internacional diante desse fatos, Hobsbawn (2003, p. 295) afirma que: “Quanto às economias da área antes entendida como de ‘socialismo real’ acidental, que haviam continuado um modesto crescimento na década de 1980, desabaram completamente após 1989. Nessa região, a comparação das crises após 1989 com a Grande Depressão era perfeitamente adequada, embora subestimasse a devastação do início da década de 1990”. (...) “O mesmo não se dava no oriente. Nada era mais impressionante do que o contraste entre a desintegração das economias na região soviética e o espetacular crescimento da economia chinesa no mesmo período. Naquele país, e na verdade na maioria do sul e sudeste da Ásia, que saíram da década de

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O novo regime de acumulação flexível, segundo Harvey (2004, p.

141), impõe o aumento dos níveis de desemprego ‘estrutural’ (em oposição a

‘friccional25’), uma rápida destruição e reconstrução de habilidades, pequenos

ganhos reais (salários) e o retrocesso do poder sindical, isto porque, na verdade

como a acumulação flexível é uma forma de capitalismo, algumas proposições

desse modo de produção se mantêm, especialmente a exploração do trabalho vivo

na produção como mecanismo hábil de crescimento de valores reais, ou seja, na

diferença entre o que o trabalho obtém e aquilo que cria. Para Harvey (2004, p.

166) “o controle do trabalho, na produção e no mercado, é vital para a

perpetuação do capitalismo. O capitalismo está fundado, em suma, numa relação

de classe entre capital e trabalho. Como o controle do trabalho é essencial para o

lucro capitalista, a dinâmica da luta de classe pelo controle do trabalho e pelo

salário de mercado é fundamental para a trajetória do desenvolvimento

capitalista”.

Ricardo Antunes (2005, p. 30-31), ao analisar as propostas de David

Harvey, citando-o, mostra que o desenvolvimento das novas tecnologias de

acumulação flexível garantem a geração de excedentes de força de trabalho, o que

possibilitou a extração da mais-valia, o desenvolvimento de práticas de trabalho

informal, mesmo nos países de capitalismo avançado, tendo como conseqüências

negativas, dentre outras: o trabalho organizado foi solapado, altos níveis de

desemprego estrutural, retrocesso da ação sindical e o individualismo exacerbado

encontrou condições sociais favoráveis.

3.3.2. O cenário mundial do capital e os ciclos econômicos no último quarto do século XX

1970 como a região econômica mais dinâmica da economia mundial, o termo ‘Depressão’ não tinha sentido – exceto, muito curiosamente, no Japão do início da década de 1990”. 25 Conforme Sandroni (2005, p. 241) “O desemprego friccional ou normal ocorre por desajuste ou falta de mobilidade entre a oferta e a procura, quando empregadores com vagas desconhecem a existência de mão-de-obra disponível, enquanto trabalhadores desempregados desconhecem as ofertas reais de trabalho”. “O desemprego tecnológico ou estrutural origina-se em mudanças na tecnologia de produção (aumento da mecanização e automação) ou nos padrões de demanda dos consumidores (tornando-se obsoletas certas indústrias e profissões e fazendo surgir outras novas) em ambos os casos, grande número de trabalhadores fica desempregado a curto prazo, enquanto uma minoria especializada é beneficiada pela valorização de sua mão-de-obra”.

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Antes mesmo de entrar na tese central de David Harvey sobre os

‘rearranjos espaciotemporais’ e ‘acumulação mediante despossessão’ (que será

objeto de estudo no item 2.4.4.), é preciso trazer alguns elementos teóricos que

esclareçam a necessidade e a importância do estudo do tema. Para tanto é preciso

fazer uma pequena descrição analítica do cenário da produção capitalista, entender

as características dos ciclos econômicos e perceber as contradições endêmicas do

capital, especialmente entre excedente de trabalho e excedente de capital.

Conforme Valério Arcary (2004, p. 148-150), não seria possível

pensar em estratégias de lutas com o intuito político de conquista revolucionária

do poder, especialmente aquelas revoluções mais importantes ocorridas no século

XX26, sem o fomento de crises econômicas, as quais resultassem em crises sociais.

O que se viu, entretanto, é que, muito embora as enormes turbulências causadas

pelas crises econômicas nestas localidades e por grandes períodos (temporais –

anos e até décadas de crises), o capitalismo não desapareceu como modo de

produção, pois para o capital “não há recessão, ou mesmo depressão, sem saída.

Sempre há um saída econômica para o capital; se a sua dominação não estiver

politicamente ameaçada, descarregará, de uma ou outra forma, os custos da

recuperação da taxa média de lucro sobre outras classes”. O próprio autor admite

(mais adiante) que, de certo modo, a herança marxista histórico-política

construída em relação à natureza destrutiva do capitalismo não se confirmou,

entretanto, é pertinente entender a importância da construção destes cenários em

função das tendências e dos movimentos das forças existentes.

Como se viu, ao contrário das previsões ‘otimistas’ (ou pessimistas)

da ‘crise final’ do capitalismo, depois da Segunda Guerra Mundial (pelo menos

até meados dos anos 1970), especialmente com a implementação das políticas

keynesianas, o capitalismo nos países centrais experimentou um novo e vigoroso

ciclo de expansão, não sendo suficientes as crises e as guerras para destruí-lo mas,

ao contrário, revitalizou-o na chamada década de ouro do capitalismo, o que

demonstrou que as crises recorrentes do capital – alternando períodos de expansão

e contração – são características sistêmicas no desenvolvimento histórico do

26 Arcary cita as lutas de Petrogrado em 1917, Berlim em 1921 e 1923, Madri e Barcelona entre 1930 e 1937, a França e a Itália entre 1945 e 1948, as lutas pelas independência na Índia e na China, a revolução cubana e o processo latino-americano ocorrido entre o final dos anos 1950 e início de 1960.

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capitalismo, resultado da relação deste com as conjunturas sociais, políticas,

econômicas e ideológicas.

Os ciclos sistêmicos estão ligados à ascensão e crise de um Estado

hegemônico27 no sistema mundial, especialmente no domínio do capitalismo.

Como lembra Carlos Eduardo Martins, (2005, p. 70), “os ciclos representam

padrões de repetição em torno de tendências seculares e evolutivas que são

irreversíveis no desenvolvimento do moderno sistema mundial. Essas tendências

são: no plano material, a acumulação ilimitada e, sua resultante contraditória, o

descenso da taxa de lucro; e no plano superestrutural, o aumento das bases

demográficas, territoriais e de legitimidade para o exercício do poder

hegemônico”.

É preciso, portanto, ao estudar os ciclos econômicos ter como pano de

fundo o desenvolvimento e as contradições do capital, ou seja, se, por um lado o

“capital impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas, com vistas à

produção de uma massa crescente de valores de uso, como nunca antes ocorrido

na história da humanidade; por outro, limita este desenvolvimento à necessidade

de valorização do valor. Esta contradição não pode ser abolida no interior da

produção capitalista, a menos que seja exigida a criação de formas sociais dentro

das quais essa contradição se mova e se realize” (Cf. TEIXEIRA, 2000, p. 207).

A literatura sobre os ciclos volta a se desenvolver a partir do

esgotamento da fase de ouro (até início dos anos 1970), principalmente com

autores marxistas (especialmente Ernest Mandel). Conforme lembra Carlos

Eduardo Martins (2005, p. 89) Mandel traz para a discussão dos ciclos – como

elemento central – a taxa de lucro como indicador, o que exigirá uma revisão

metodológica de suas causas e dinâmicas, isto porque “tanto em Kondratieff como

em Schumpeter, o elemento central na geração dos ciclos longos era a apropriação

27 Os ciclos sistêmicos foram teorizados a partir de estudos de alguns autores, especialmente Giovanni Arrighi, Beverly Silver e Immanuel Wallerstein. Entre estes autores há algumas divergências e, dentre elas, cabe aqui mencionar uma: a definição de hegemonia. Wallerstein impõe limites à definição de hegemonia, não ultrapassando sua dimensão econômica. No entanto, para Giovanni Arrighi (1996, p. 27-29), o conceito de hegemonia “refere-se especificamente à capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações soberanas”, aduzindo, ainda, que esse tipo de poder sempre implicou em algum tipo de ação transformadora que alterou o modo de funcionamento do sistema, isto porque ele está associado à dominação, ampliada pelo exercício da liderança intelectual e moral. Por fim, Arrighi afirma ainda que “um Estado dominante exerce uma função hegemônica quando lidera o sistema de Estados numa direção desejada e, como isso, é percebido como buscando um interesse geral. É esse tipo de liderança que torna hegemônico o Estado dominante”. Este é um conceito mais amplo, o qual será utilizado nas considerações seguintes.

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de riquezas por meio da competição intercapitalista. A inovação dava ao lucro

extraordinário ou a uma renda diferencial que eram ameaçados pela difusão das

inovações. (...) O lucro extraordinário não dará lugar a uma onda longa expansiva

se não estiver associado à elevação da taxa média de lucro”.

Carlos Eduardo Martins (2005, p. 89-90), aponta que Mandel situou a

taxa de lucro como elemento central da análise das ondas longas e com isso,

afirma ele, “a fase de ascensão da onda longa é determinada por inovações

radicais que: desvalorizam substancialmente o capital fixo e o capital circulante

(matérias-primas e insumos produtivos de baixo valor agregado); aumentam a

taxa de mais-valia e, conseqüentemente, a massa de mais-valia, ao reorganizar o

processo do trabalho; intensificar a rotação do capital; e derrubam as taxas de

juros ao centralizar o capital e disponibilizar o crédito abundante”.

Entretanto, afirma ele (2005, p. 90),

a partir de meados do desenvolvimento da fase expansiva da onda longa, a taxa de lucro entra em declínio. Isso ocorre em razão da elevação da composição orgânica do capital, do emprego e da demanda por matérias-primas. A pressão sobre os custos aumenta a demanda por créditos e impulsiona taxas de juros e inflação. O resultado é uma intensificação das lutas de classes e da competição intercapitalista que, em aproximadamente dez anos, derruba a taxa de lucro para níveis de recessão. A fase recessiva da onda longa se caracteriza por uma primeira parte, em que as taxas de juros permanecem elevadas e as lutas de classes intensificadas. Isso se deve à demanda de crédito para pagamento de dívidas e às resistências dos trabalhadores à racionalização e reorganização do processo do trabalho sob o comando do capital. Na segunda fase da recessão, o capital centraliza as finanças, derruba as taxas de juros e vence as resistências dos trabalhadores para introduzir inovações tecnológicas e racionalizar o processo de trabalho com inovações organizacionais. A fase recessiva geraria um subinvestimento crônico que permite disponibilizar os recursos necessários para desenvolver outra onda longa expansiva.

Carlos Eduardo Martins (2005, p. 90-92) desenvolve também uma

importante consideração sobre a relação entre os aspectos tecnológicos e

organizacionais, dentro da análise do desenvolvimento das ondas longas. Utiliza-

se, para tanto, o suporte teórico dos neo-schumpeterianos, os quais afirmam que o

paradigma tecnológico que entrelaça e impulsiona as inovações de uma onda

expansiva será estabelecido na fase final da onda expansiva anterior, citando

como exemplos que a introdução da ferrovia, do aço barato, da linha de montagem

e do chip microeletrônico, ocorram no final da onda longa expansiva ou, no mais

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tardar, nos primeiros anos da recessiva. Este desenho do desenvolvimento é

importante pois é a partir de então que se verificará que o atraso das inovações

tecnológicas em se transformar em um novo paradigma tecno-econômico ocorrerá

em função da falta organizacional e gerencial em níveis empresariais, políticos,

sociais e ideológicos, o que deverá reduzir custos de produção e elevar a

produtividade e os lucros, bem como pode ser associada à concepção marxista da

inclusão da taxa de lucro na análise das ondas longas.

Outra importante análise dos ciclos de Kondratieff, lembrada por

Carlos Eduardo Martins (2005, p. 91) foi realizada por Theotônio dos Santos em

“La crisis norte americana y América Latina”. Para este autor (Theotônio dos

Santos), “os ciclos longos são observados a partir de inovações tecnológicas

radicais que provoquem mudanças significativas na composição orgânica do

capital, no exército industrial de reserva, nos níveis salariais, nas formas

institucionais – concentração empresarial, centralização financeira,

internacionalização do capital e intervenção estatal – e, em conseqüência disso, na

taxa de lucro”.

Theotônio dos Santos em “Os elos perdidos de uma teoria elegante”,

novamente referido por Carlos Eduardo Martins (2005, p. 92-93), afirma que a

crise de longo prazo do ciclo de Kondratieff representa, na verdade, uma

conjunção de diversas crises: a) a crise de acumulação, que está ligada ao auge

econômico, no qual a difusão de tecnologias atinge seu limite máximo, resultando

numa forte pressão competitiva sobre o consumo da força de trabalho, matérias-

primas, maquinarias e crédito, no aumento de preço e taxa de juros e queda do

lucro; b) a crise da tendência decrescente da taxa de lucro está ligada ao aumento

da composição orgânica do capital para aumentar as inovações, necessitando,

pois, elevar a produtividade do trabalho, acumular e centralizar capitais, surgindo

a necessidade de se construir novos padrões de gestão empresarial, intervenção

estatal e internacionalização do capital; c) a crise de realização está ligada ao fato

de que a produção de mercadorias ultrapassa a demanda para consumi-las; d) a

crise de desproporção está ligada aos desequilíbrios entre volume de produção e

demanda de insumos dos setores de produção de bens de capital e de produção de

bens de consumo. As crises, ou fases recessivas dos ciclos, significam, então, a

convergência das diversas crises e sua superação exige uma nova interpretação

institucional e organizacional.

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É importante, portanto, perceber que a baixa demanda faz aumentar a

cumulação em favor dos segmentos da produção de maquinarias, que se desvia do

dinamismo dos bens de consumo, exigindo do Estado maior intervenção e,

conseqüentemente articula-se um desenvolvimento da dívida pública. O que

surge, novamente, de forma bastante clara, é o debate sobre a intervenção do

Estado na economia, na tentativa de evitar a eclosão de crises sistêmicas, isto

porque os ciclos de expansão e contração da atividade econômica parecem seguir,

coincidentemente, aos períodos de intervenção do Estado, bastando lembrar as

políticas liberais do final do século XIX e início dos século XX, as políticas

anticíclicas de teorização keynesiana, implementadas no período compreendido

entre meados dos 1930 e início dos anos 1970 e as políticas neoliberais

implementadas a partir dos anos 1980, estando, pois, diretamente vinculadas à

sobrevivência do capitalismo, a intervenção do Estado.

Toda esta análise foi possível em função, preponderantemente, da

teorização dos ciclos de Kondratieff, a qual fornece um excelente instrumental

analítico às considerações da conjuntura, isto porque está ligada a uma mudança

de paradigma tecnológico de um determinado modo de produção, resultando,

consequentemente, em uma enorme alteração dos modos de vida institucional,

político, ideológico e econômico pois, como afirma Carlos Eduardo Martins

(2005, p. 93), “os ciclos de Kondratieff são oscilações em torno das tendências

seculares do capitalismo histórico, marcadas pela acumulação ilimitada”, ou seja,

estes ciclos – marcados, como se viu, por expansões e recessões e medidos pelas

oscilações do PIB per capita e da taxa de lucro – caracterizam-se por uma

primeira fase expansiva de inovações tecnológicas e uma fase seguinte recessiva,

marcada pela convergência das crises de acumulação, desproporção, realização e

da tendência da baixa da taxa de lucro.

Cabe verificar contudo, o enorme poder de recuperação da economia

capitalista que, mesmo diante das recessões provocadas, consegue reverter a

situação. Como afirma István Mészáros (2002, p. 696-697), o capitalismo sempre

se comportou conforme seus mecanismos de auto-regulação os quais são

inseparáveis de sua formação socioeconômica e “constitui uma de suas

características definidoras mais importantes como forma específica de controle

social”. Esta capacidade do capital pode ser sentida na alteração do padrão

tradicional de consumo para outro onde predominam os interesses do complexo

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militar-industrial, o qual é fundado pela subutilização institucionalizada tanto das

forças produtivas como de produtos e também pela crescente e constante

dissipação ou destruição dos resultados da superprodução por meio da redefinição

prática da relação oferta/demanda no próprio processo produtivo

convenientemente reestruturado.

Ainda conforme István Mészáros (2002, p. 697) é a partir dessa

alteração da relação entre produção e consumo que será possível ao capital livrar-

se dos colapsos do passado, isto porque enquanto a relação atual entre os

interesses dominantes e o Estado capitalista prevalecer e impuser com sucesso

suas demandas à sociedade não haverá grandes tempestades, mas pequenas e

crescentes crises em todos os lugares, possibilitando que os longos períodos de

desenvolvimento produtivos fulminados (de forma anormal) por estrondosas

crises (a exemplo do que ocorreu em 1929) sejam, gradativamente, alternados pela

normalidade de pequenos mas lineares movimentos de crises.

3.3.3. Espaço e tempo à reprodução do capital

Diante desse cenário ocorrido a partir dos anos 1970, mais

especificamente a partir do início dos anos 1980, quando a dinâmica do capital

encontrou sérios problemas na continuidade da acumulação por meio da

reprodução expandida28, é que é possível fazer uma análise estrutural melhor do

capitalismo organizado, indicando, sobretudo, que a nova redefinição espaço-

temporal proporcionou, de maneira que o processo de acumulação do capital teve

que encontrar novos mecanismos à sua reprodução.

Fazendo-se, então, uma pequena retrospectiva, são preciosos os

elementos trazidos por Arcary (2004, p. 153-155) em um subtítulo bastante

sugestivo – “O prognóstico da ‘crise final’ não passou na prova da história” –

quando aponta que os limites do capital revelaram-se extremamente elásticos,

principalmente pela aplicação das políticas de inspiração keynesiana que alargou

o acesso ao crédito e, conseqüentemente, ao consumo de massa e garantiram o

crescimento econômico com baixas pressões inflacionárias. Entretanto, a ordem

28 A reprodução expandida ocorre mediante a apropriação de mais-valia e sua valorização na circulação

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econômica construída, após Bretton Woods29, com mecanismos de regulação

estatal preventivos não foram suficientes a impedir que a sociedade mergulhasse

em crises regulares. Entretanto, estas crises tinham uma nova fisionomia,

principalmente após o início da depressão do final do século XX, porque a fase de

crescimento tinha se esgotado. Com crises menos graves, todavia, mais

constantes, o cenário econômico era bastante instável, especialmente em função

do endividamento público e privado e a volta das pressões inflacionárias. Para

Arcary (2004, p. 156),

Destruição menos abrupta, recuperações menos vigorosas, uma longa e quase ininterrupta depressão, mas sem formas catastróficas ou seqüelas explosivas. E uma introdução mais acelerada de novas tecnologias, diminuindo o tempo de vida útil das máquinas, pela substituição dos equipamentos obsoletos, reduzindo a média decenal dos ciclos. Parecia que o capital tinha encontrado um movimento de rotação mais rápido. Mas o seu sociometabolismo perdia vitalidade e era menos intenso. Um estágio de crise crônica. Uma valorização de capitais sem nenhuma correspondência com a capacidade de realização de lucros no mundo material de venda de bens e serviços. Uma especulação febril com expectativa de ampliação dos mercados que não poderá se verificar. Em suma, uma sobreacumulação30 de capitais de tal dimensão que seria inevitável a queda da taxa média de lucro.

Portanto o que se verifica, novamente, é a grande importância da

posição em que se encontra o Estado, ou seja, é fundamental ao capital que o

Estado esteja preparado, com os instrumentos capazes de minimizar os riscos de

grandes e explosivas depressões. De certa maneira, como se percebe, o problema é

gerado não tanto pela força de trabalho excedente (crescente desemprego), mas

sim, e especialmente pelo capital excedente, ou seja, uma sobreacumulação,

gerada por uma grande quantidade de mercadorias que não são absorvidas pelo

mercado, em função de uma capacidade produtiva ociosa e a impossibilidade de

que os excedentes de capital estejam investidos produtiva e lucrativamente. Neste

sentido é que David Harvey (2003) aponta que este final do último século pode

29 A Conferência de Bretton Woods é “o nome pelo qual ficou conhecida a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, realizada em julho de 1944, em Bretton Woods (New Hampshire, Estados Unidos), com representantes de 44 países, para planejar a estabilização da economia internacional e das moedas nacionais prejudicadas pela Segunda Guerra Mundial. Os acordos assinados em Bretton Woods tiveram validade para o conjunto das nações capitalistas lideradas pelos Estados Unidos, resultando na criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)” (Cf. SANDRONI, 2005, p. 176). 30 A sobreacumulação ocorre, por exemplo, quando há, num determinado território, um crescente desemprego e excedente de capital

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ser comparado aos anos 1930, quando os excedentes de mercadorias não podiam

ser vendidos e o desemprego atingia níveis muito elevados.

Para István Mészáros (2002, p. 675), a expansão do consumo no modo

de produção capitalista é um dos aspectos mais significativos e uma conquista real

da vitória civilizadora da propriedade mobiliária, uma vez que é o próprio capital

que impulsiona o trabalhador ao consumo, criando e instigando-os a novas

necessidades, demonstrando todo seu poder. Com isto e a partir da idéia de que o

capital é, endêmica e permanentemente destrutivo, István Mészáros desenvolve a

tese da “taxa de utilização decrescente no capitalismo”31 do valor de uso32 das

coisas. Para ele, “no curso da história, avanços na produtividade inevitavelmente

alteram o padrão de consumo, bem como a maneira pela qual serão utilizados

tanto os bens a serem consumidos como os instrumentos com os quais serão

produzidos”, ou seja, estes avanços “afetam a própria natureza produtiva,

determinando, ao mesmo tempo, a proporção segundo a qual o tempo disponível

total de uma dada sociedade será distribuído entre a atividade necessária para o

seu intercâmbio metabólico básico com a natureza e todas as outras funções e

atividades nas quais se engajam os indivíduos da sociedade em questão” (2002, p.

639).

Esta taxa de utilização decrescente, como Mészáros explica, está

implícita nos avanços realizados pela própria produtividade, manifestando-se na

proporção variável segundo a qual uma sociedade tem que alocar quantidades

determinadas de seu tempo disponível total para a produção de bens de consumo

rápido (por exemplo, produtos alimentícios), em contraponto aos que continuam

31 Esta tese está desenvolvida no Capítulo 15 da obra “Para além do Capital” (2002, p. 634). 32 Sandroni (2005, p. 874) afirma que, para Marx, diferentemente de Adam Smith que via no valor de uso como a utilidade de um objeto, “o valor de uso não é concebido como uma categoria natural, mas como uma categoria específica da economia política. No âmbito da produção capitalista o valor de uso assume determinações sociais específicas, que configuram sua função no interior da produção e da circulação do próprio valor de troca. A relação entre o valor de uso e o valor de troca é uma relação de subordinação. O valor de uso constitui o ‘suporte material’ do valor de troca. O valor criado no processo produtivo deve transformar-se em valor de troca mediante sua realização no mercado. Isso, no entanto, só é possível se o valor produzido estiver incorporado num conjunto de valores de uso que correspondam à necessidade social. No caso da produção capitalista, necessidade social quer dizer necessidade do capital, que é o conjunto dos valores de uso que servem para reconstituir os elementos materiais do capital constante (meios de produção) e do capital variável (meios de subsistência) que foram consumidos na produção. Além disso, deve permitir o alargamento da própria produção, mediante a transformação de uma parte da mais-valia em capital constante acrescentado e capital variável acrescentado. Isso demonstra que, no modo de produção capitalista, o produto social não se destina às necessidade do homem, mas corresponde às necessidades do capital”.

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utilizáveis (isto é, reutilizáveis) por um período de tempo maior: uma proporção

que obviamente tende a se alterar em favor dos últimos (2002, p. 639-640).

Contudo, a tese de Mészáros sobre a taxa de utilização decrescente é

desenvolvida, como ele mesmo aponta (2002, p. 640), no sentido de que este

processo, típico do avanço produtivo, seja revertido na forma “em que a

‘sociedade dos descartáveis’ encontre equilíbrio entre produção e consumo,

necessário para a sua contínua reprodução, somente se ela puder ‘consumir’

artificialmente e em grande velocidade (isto é, descartar prematuramente) imensas

quantidades de mercadorias que anteriormente pertenciam à categoria de bens

relativamente duráveis”.

Desse modo, a sociedade se mantém como um sistema produtivo manipulando até mesmo a aquisição dos chamados ‘bens de consumo duráveis’ que necessariamente são lançados ao lixo (ou enviados a gigantescos ferros-velhos, como os ‘cemitérios de automóveis’ etc.) muito antes de esgotada sua vida útil. (Cf. MÉSZÁROS, 2002, p. 640)

É neste sentido que esta tendência da taxa de utilização decrescente foi

incorporada ao sistema produtivo do “capitalismo avançado” através, sobretudo,

do chamado consumo destrutivo, especialmente, pelo complexo industrial-militar,

em função do limitado tempo de vida útil das mercadorias as quais, para tanto,

necessitam da criação de guerras para serem consumidas e isto expõe uma das

faces mais impressionantes do capital pois se, de um lado, há uma enorme

produção, de outro, se não houver consumo (demanda suficiente) o próprio capital

põe em movimento forças produtivas33 e destrutivas capazes de superar crises em

função da criação de locais de expansão à superação dos impedimentos que

surgem.

A visão que devemos ter (ou que somos levados a ter) é sempre no

sentido de que este crescimento da produção e do consumo poderia significar

desenvolvimento, entretanto, seguindo a orientação de Marx, a retirada de mais-

33 Sandroni (2005, p. 352) explica que forças produtivas são “forças naturais (inclusive o próprio homem) apropriadas pelo homem para a produção e reprodução de sua vida social. A parte material das forças produtivas, isto é, os instrumentos e os objetos de trabalho, constituem a base material e técnica da sociedade. A principal força produtiva, no entanto, é o próprio homem, que cria instrumentos de trabalho cada vez mais poderosos, aperfeiçoa seus objetos de trabalho e combina ambos no sentido de ampliar constantemente a produção. Isso significa que as forças produtivas tendem a crescer constantemente. Essa expansão opera modificações nas relações de produção e no modo de produção. Assim, a determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas correspondem determinadas relações de produção”.

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valia está ancorada no desenvolvimento das forças produtivas e exige uma

correspondente ampliação no círculo de consumo, ampliando a quantidade de

consumo, criando e produzindo novas necessidades e criando novos valores de

uso, entretanto, como diz Mészáros (2002, p. 677) “o resultado positivo dessa

interação dialética entre produção e consumo está muito longe de estar

assegurado, já que o impulso capitalista para a expansão da produção não está de

modo algum necessariamente ligado à necessidade humana como tal, mas

somente ao imperativo abstrato da ‘realização’ do capital” (grifo no original).

Logo em seguida, Mészáros 2002, p. 677-678) faz um longa citação

de Marx explicando seu modo de ver a “realização” do capital, ou o modo pelo

qual o capital se auto-realiza, especificamente pela interação dinâmica entre

produção e consumo. Ao interpretar a citação de Marx, Mészáros entende que do

ponto de vista do valor de troca em auto-expansão, a alternativa seria abortá-la

antes que debilite de forma irremediável o poder de controle global do capital,

implicando na necessidade do capital encontrar estratégias de realização que não

só superem as limitações imediatas da demanda flutuante do mercado, mas

também tenham êxito em se desembaraçar radicalmente dos constrangimentos

estruturais do valor de uso como algo subordinado à necessidade humana e ao

consumo real.

Alcançado este objetivo, ou seja, assegurado o desenvolvimento às

custas das grandes contradições internas do capital, “este tipo de mudança

estrutural no ciclo de reprodução capitalista, não prevista por Marx, é realizado

pelo deslocamento radical da produção genuinamente orientada para o consumo

destrutivo”. Fica nítida a posição de Mészáros quando afirma que, no nível do

sistema produtivo capitalista, consumo e destruição são equivalentes funcionais

no processo de ‘realização’ capitalista (Cf. Mészáros, 2002, pp. 678-679).

Neste sentido, portanto, o modo de produção capitalista dá mostras de

ser um sistema ilimitado e incontrolável à sua expansão, isto porque o capital ao

encontrar um equivalente funcional que melhor lhe assegure sua expansão, deverá

optar por aquela que melhor se adeqüe à sua configuração estrutural34.

34 Mészáros (2002, p. 679) diz que o capital sempre segue a linha de menor resistência, ou seja, ao encontrar uma linha de ação que lhe seja mais favorável à sua expansão, “o capital deve optar por aquela que esteja mais obviamente de acordo com sua configuração estrutural global, mantendo o controle que já exerce, em vez de perseguir alguma estratégia alternativa que necessitaria o abandono de práticas bem estabelecidas”, assim, é que o caminho do capital à sua expansão e

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3.3.4. A produção industrial militar e a necessidade do “consumo destrutivo.

Diante de todas estas circunstâncias, surgem questionamentos sobre as

possibilidades de realização do capital, é dizer, da necessidade da discussão

transitar sobre o modelo capitalista de produção e duas conseqüentes frentes de

atuação: de um lado, com criação de novos espaços à reprodução do capital e, de

outro, nos mecanismos estruturais (políticas públicas na busca de melhores

condições de trabalho, alimentação, saúde, habitação, educação, etc.) e

institucionais (polícia e parlamento) do Estado no controle social.

Com isto, objetiva-se compreender como as novas diretrizes globais

de política econômica podem compor um cenário de acumulação e expansão do

capital, controle, exclusão e barbárie social, isto porque, como se viu, o Estado,

tão necessário às consecuções e interesses do capital, principalmente para manter

a ordem e garantir o pressuposto da constante acumulação, assume sua posição de

garante com todo o aparato repressivo, utilizando-se do monopólio do uso da

força e violências (institucional e estrutural) para manter as desigualdades, o

controle social do desvio e as relações de subordinação, provocadas às camadas

mais vulneráveis da sociedade.

Alguns questionamentos já puderam ser respondidos, entretanto outros

ainda não, especialmente como e por que o capital se utiliza das crises de

sobreacumulação a fim de realizar seus propósitos, ou seja, diante das diversas

crises provocadas pelas próprias contradições internas do modo capitalista de

produção, qual (ou quais) a(s) verdadeira(s) necessidade(s) de se ter um aparato

policial-militar cada vez maior e quais são as formas de interferência no sistema

político ao aumento, ou ao crescimento do complexo militar-industrial, sabendo-

se, entretanto, da característica fundamental do capital, qual seja, sua ilimitada e

incontrolável tendência de expansão em função do que Mészáros denomina de

“linha de menor resistência”.

necessidade de constante acumulação, sempre procurará um caminho onde ele encontre menos resistência.

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Rosa Luxemburgo, antes mesmo de eclodir a Primeira Guerra

Mundial, em 1913, percebeu o significado e a tendência preponderante do

consumo pela destruição através da produção militarista35, isto porque, à

realização capitalista importa a forma como são implementados os procedimentos,

ou seja, não em função de qualquer alteração do modo de produção mas porque,

como afirma Mészáros (2002, p. 679), se torna economicamente mais flexível e

dinâmica a produção, “assim como ideologicamente menos transparente” e ao

mesmo tempo, “politicamente menos vulnerável”. Esta “produção destrutiva”

permite uma maior agilidade na circulação do capital e, conseqüentemente, uma

continuidade na acumulação, especialmente pela redução do limite na utilização

(ou vida útil) das mercadorias, ou seja, no seu valor de uso.

(...) em princípio, enquanto for verdade que o desenvolvimento da produção capitalista “exige que o círculo de consumo, no interior da circulação se expanda como o fez previamente o círculo produtivo”, um equivalente funcional preferível estará à disposição do capital na forma de aceleração da velocidade de circulação dentro do próprio círculo de consumo (aumentando o número de transações no círculo já existente), em vez de embarcar na aventura mais complicada e arriscada de alargar o próprio círculo. (Cf. MÉSZÁROS, 2002, p. 680)

Assim é que, diante do aumento da velocidade da circulação do capital

através desse tipo de consumo (destrutivo) e diante da formulação de Karl Marx

sobre a composição orgânica do capital (relação entre o valor do capital constante

e do capital variável, ou seja, quanto maior a composição orgânica do capital

menor será a taxa de lucro), pode-se dizer que a taxa de lucro varia na razão direta

da taxa de mais valia e da rotação do capital. Percebe-se, pois, que há uma

ampliação das possibilidades de acumulação e expansão do capital em função,

inexoravelmente, das redefinições temporais do capital.

Foi o complexo militar-industrial o instrumento que conseguiu romper

com a suposta impossibilidade de combinar a máxima expansão possível com a

taxa de utilização mínima. As estratégias adotadas pelas políticas anticíclicas de

teorização keynesiana figuram apenas como complementares ao dinamismo

expansionista. Mészáros (2002, p. 686) nos prodigaliza que não há qualquer

uniformização no desenvolvimento do complexo militar-industrial dos países de

capitalismo avançado, por duas razões: a primeira porque persiste a chamada lei 35 Ver: LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital. Volume II, São Paulo: Abril, 1984.

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de desenvolvimento desigual e, a segunda, porque algumas condições extra-

econômicas foram impostas pelos países vitoriosos da Segunda Guerra Mundial,

ao Japão e à Alemanha, pelo menos por algum tempo, ficando (estes países)

limitados pelos tratados de paz por eles firmados, em suas possibilidades de

rearmamento36. Contudo, afirma Mészáros (2002, p. 687), estas considerações

também servem a todos os países capitalistas, pois há uma grande dependência

dos países capitalistas no desenvolvimento e na contínua expansão do complexo

militar-industrial estadunidense.

David Harvey (2003) analisa este fato a partir da idéia de capital

excedente e a necessária destinação (consumo ou destruição) desse capital, ou

seja, tudo isso decorre de uma grande necessidade do capital buscar espaços à sua

expansão, tendo o Estado como um parceiro da acumulação capitalista

(especialmente na acumulação originária). Explica ele que, desde dos anos 1970,

o capitalismo globalizado produziu o problema da sobreacumulação e, a partir daí

seguiu na tentativa de absorver esses excedentes, evitando as já referidas

desvalorizações (ou destruições) de capital, bem como o excesso de trabalhadores

(força de trabalho), necessitando do que ele chamou de ordenação espaço-

temporal37, ou seja, a expansão geográfica e a organização temporal, uma vez que

os investimentos (infra-estrutura física, redes de transporte, comunicação,

educação, pesquisa, etc.) são de retorno de longo prazo, isto porque levam muito

tempo para voltarem à circulação inicial.

De uma forma geral esta idéia de Harvey significa que o capitalismo

tenta encontrar mecanismos de absorção dos excedentes através de grandes

36 Istvnán Mészáros (2002, p. 686) afirma que, na verdade, após o domínio norte-americano na posição hegemônica do complexo militar-industrial, o qual foi seguido pela Grã-Bretanha, França e Itália, o desenvolvimento econômico de Japão e Alemanha no pós-guerra dependeu do desenvolvimento da atividade industrial bélica. Ele menciona três fatores que favoreceram esta expansão: a) pelas novas alianças militares, Japão e Alemanha puderam expandir sua indústria bélica em quase todos os setores, exceto em relação às armas nucleares; b) Japão e Alemanha participaram direta e indiretamente do desenvolvimento da indústria bélica norte americana através das pesquisas científicas e desenvolvimento tecnológico, fundamentalmente pela modernização da indústria e encomendas militares diretas (especialmente para utilização durante a Guerra da Coréia); e c) diante da interligação entre as economia capitalistas ocidentais e os Estados Unidos e em função da enorme dependência que foi criada pela complexo militar-industrial, várias economias dependem do orçamento norte-americano e de sua capacidade de sustentar um grande nível de produção de armamentos. 37 Harvey (2003, p. 98/99) utiliza a expressão “ordenação” em dois sentidos: primeiro, num sentido material no qual “certa parcela do capital total fica literalmente ordenada/fixada em termos de terra e na terra em alguma forma física por um período de tempo relativamente longo” e, segundo, num sentido metafórico, ou seja, “um tipo particular de solução de crises capitalistas por meio do adiamento do tempo e da expansão geográfica”.

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investimentos em projetos de capital de longo prazo ou pelo deslocamento

espacial com a abertura de novos mercados. Entretanto, explica Harvey (2003, p.

99), esta ordenação espaço-temporal gera uma incontornável e constante

contradição em função de que esta produção de espaço, esta nova organização de

divisões territoriais do trabalho, a criação de recursos novos e mais baratos, de

novas regiões como espaços dinâmicos de acumulação do capital e a penetração

de formações sociais preexistentes por relações sociais e arranjos institucionais

capitalistas, apesar de proporcionarem importantes maneiras de absorção de

excedentes de capital e de trabalho, ameaçam os valores já fixados no lugar que

ainda não foram realizados. Assim é que a chamada ordenação espaço-temporal

serve exatamente para que os excedentes (de capital) de um determinado local,

que não possam ser absorvidos internamente – através de ajustes geográficos ou

gastos sociais – sejam remetidos a lugares que possam ser realizados.

Há, entretanto, uma nova série de contradições com a adoção destas

transformações espaço-temporais, como explica Harvey (2003, p. 100), pois com

o intuito de evitar a desvalorização, determinado território envia seus excedentes

(de capital e de trabalho), que não puderam ser absorvidos internamente, a outros

mercados, os quais deverão possuir meios de pagamento (como ouro, reserva de

moeda ou mercadorias negociáveis) e o problema da sobreacumulação está

solucionado apenas a curto prazo, pois o que houve foi apenas substituição de

mercadoria por dinheiro38. Cabe aqui, por longo que possa parecer, uma

diagnóstica consideração de David Harvey (2003, p. 112-113):

O quadro geral que surge, por conseguinte, é de um mundo espaço-temporal entrelaçado de fluxos financeiros de capital excedente com conglomerados de poder político e econômico em pontos nodais chave (Nova York, Londres, Tóquio) que buscam seja desembolsar e absorver os excedentes de maneiras produtivas, o mais das vezes em projetos de longo prazo numa variedade de espaços (de Bangladesh ao Brasil ou à China), seja usar o poder especulativo para livrar o sistema da sobreacumulação mediante a promoção

38 David Harvey (2003) explica, no Capítulo 3 “A opressão via capital” – como ocorre esta ordenação espaço-temporal e suas contradições, ou seja, suas conseqüências destrutivas (típicas do modo de produção capitalista), trazendo, inclusive, exemplos de ordenação espaço-temporais ocorridas nos séculos XIX envolvendo países como a Inglaterra, a Índia e a China, ou ainda nas transações entre a Inglaterra e a Argentina, também no século XIX, e os excedentes do comércio japonês que, durante os anos 1990 foram absorvidos por meio de empréstimos aos Estados Unidos para apoiar o consumismo de bens japoneses. Entretanto, para os fins de nossa pesquisa é importante fixarmo-nos nas saídas da situação de sobreacumulação dada pelo capital, razão pela qual utilizaremos a exposição de Harvey no Capítulo 4 da mesma obra. Ver, portanto, Harvey (2003, pp. 98-105) e (2003, pp. 115-149).

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de crises de desvalorização em territórios vulneráveis. São sem dúvida as populações desses territórios vulneráveis que têm de pagar o preço inevitável em termos de perda de ativos, perda de empregos e perda de segurança econômica, para não mencionar perda de dignidade e de esperança. E por meio da mesma lógica que requer que os territórios vulneráveis sejam os primeiros a ser atingidos, assim também são tipicamente as populações mais vulneráveis desses territórios que suportam o principal ônus que sobre eles recair. Foram os pobres das regiões rurais do México, da Tailândia e do Brasil que mais sofreram com as depreciações causadas pelas crises financeiras dos anos 1980 e 1990. Conclui-se, pois, que o capitalismo sobrevive não apenas por meio de uma série de ordenações espaço-temporais que absorvem os excedentes de capital de maneiras produtivas e construtivas, mas também por meio da desvalorização e da destruição administradas como remédio corretivo daquilo que é em geral descrito como o descontrole fiscal dos países que contraem empréstimos. (...) Mas, como Joseph Chamberlain descobriu, é politicamente muito mais fácil pilhar e degradar populações distantes (em particular as que são diferentes em termos raciais, étnicos ou culturais) do que enfrentar no plano doméstico o avassalador poder da classe capitalista. O lado sinistro e destrutivo da ordenação espaço-temporal como remédio para o problema da sobreacumulação torna-se um elemento tão crucial na geografia histórica do capitalismo quanto sua contraparte criativa de construção de uma nova paisagem para acomodar tanto a acumulação interminável do capital como a acumulação interminável do poder político.

Para superar tudo isso Harvey lembra, primeiramente, como Marx

descreveu os processos de acumulação primitiva (ou originária) através, é claro,

do amplo apoio do Estado, em função do seu monopólio do uso da força

(violência institucional) e de suas definições da legalidade (violência estrutural) e,

depois, aponta suas conseqüências de homogeneidade (similaridade) de como está

acontecendo hoje. Afirma ele (2003, p. 121):

Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados, como a água, têm sido privatizados (com freqüência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação; formas alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substituiu a agropecuária familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio sexual).

Vê-se, com isso, as conseqüências desse processo de proletarização,

caracterizado pela “necessária” imposição de compatibilidade entre trabalho e

capital, ou seja, os mecanismos à reprodução do capital permanecem como antes

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(a mais importante foi a privatização das terras e a expulsão violenta dos

camponeses, com a conseqüente formação do proletariado sem terra), muito

embora tenham sido criados alguns mecanismos de acumulação inovadores,

especialmente o domínio pelo capital financeiro ou no que François Chesnais

(2003) vai denominar de “regime de acumulação com dominância financeira”, no

qual vai predominar a acumulação significativa de capital fictício.

Os efeitos deste novo regime de acumulação39 continuam muito

semelhantes àqueles preconizados por Marx, sobretudo porque o sistema de

crédito e o capital financeiro se tornaram grandes trampolins de predação, fraude e

roubo. Para Harvey (2003, p. 122) “a forte onda de financialização, domínio do

capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por

seu estilo especulativo e predatório”. Muito embora a existência das crises que

ocorreram a partir dos anos 1970, que se prolongaram nas décadas subseqüentes,

tenham sacudido muito mais a periferia mundial e poupado o centro do

capitalismo (especialmente Estados Unidos e os países ocidentais da Europa),

verifica-se uma aparente nova fase desse capitalismo a partir do desenvolvimento

e evolução tecnológica daquilo que se convencionou chamar de nova economia,

marcando também a retomada e o desenvolvimento das instituições financeiras

(Gérard Duménil e Dominique Lévy (2003, p. 15).

Os objetivos da nova economia foram alcançados através de diversas

medidas econômicas nada convencionais: “valorizações fraudulentas de ações,

falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição estruturada de ativos

por meio da inflação, a dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a

promoção de níveis de encargos de dívida que reduzem populações inteiras,

mesmo nos países capitalistas avançados, prisioneiros da dívida, para não dizer

nada a respeito da fraude corporativa e do desvio de fundos (a dilapidação de

recursos de fundos de pensão e sua dizimação por colapsos de ações e

corporações) decorrente de manipulações de crédito e das ações” (CF. HARVEY,

2003, p. 123).

Harvey (2003, p. 123) cita ainda diversos mecanismos

contemporâneos de “acumulação por espoliação” que, como no passado, se

utilizam do Estado para impor esses processos, como: o patenteamento e

39 Para David Harvey, como o processo de acumulação “primitivo” ou “originário” está em andamento, ele prefere chamá-lo de “acumulação por espoliação”.

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109

licenciamento de material genético, do plasma de sementes e de outros materiais

que foram utilizados por populações inteiras no desenvolvimento desses materiais;

a biopirataria e a pilhagem de estoques de recursos genéticos em benefício das

grandes indústrias farmacêuticas; a destruição de recursos ambientais globais e a

degradação de vários hábitats, resultando na mercadificação da natureza; a

transformação em mercadoria de formas culturais, históricas e da criatividade

intelectual; a corporativização e privatização de bens públicos como as

universidades ou as águas (como novas formas de privatização das “terras

comuns”); a flexibilização dos direitos trabalhistas, etc.

É de se pensar, portanto, como a chamada crise de sobreacumulação

se relaciona com a acumulação por espoliação. Ocorre que este tipo de

acumulação faz liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo

baixo, favorecendo aos excedentes de capital (característicos da sobreacumulação)

apossar-se desses ativos. Uma dessas formas de apossamento é a privatização40.

Foi a partir de 1979, com a chegada ao poder na Inglaterra da Primeira Ministra

Margaret Thatcher e, logo depois, com a eleição de Ronald Reagan nos Estados

Unidos, que a versão político-econômica neoliberal iniciou sua orientação estatal

no sentido de abandonar o estado de bem-estar social e ingressar, definitivamente,

na lógica do mercado e da acumulação de capital, especialmente com os dois

ícones mandamentais neoliberais: as privatizações e a liberalização do mercado.

Fazendo uma relação entre as posições neoliberais e a chamada

“acumulação por espoliação”, percebe-se que a expropriação das terras comuns se

deu, agora, através da apropriação dos ativos pelo capital sobreacumulado, ou

seja, conforme orienta Harvey (2003, pp. 130-131) os “ativos de propriedade do

Estado ou destinados ao uso partilhado da população em geral foram entregues ao

mercado para que o capital sobreacumulado pudesse investir neles, valorizá-los e

especular com eles. Novos campos de atividade lucrativa foram abertos e isso

ajudou a sanar o problema da sobreacumulação, ao menos por algum tempo.”

A partir dessas apropriações de ativos de propriedade do Estado pela

iniciativa privada, foi desencadeado um grande movimento de descobertas de

40 Harvey (2003, p. 124) cita várias formas, além das privatizações, dentre elas: o colapso da União Soviética e a abertura da China; injetar matérias-primas baratas (como o petróleo) no sistema a fim de que os custos dos insumos sejam reduzidos e os lucros aumentados; a desvalorização dos ativos de capital e da força de trabalho, os quais podem ser vendidos a preço baixo e reciclado com lucro no circuito de circulação do capital pelo capital sobreacumulado.

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110

lugares próprios à acumulação via espoliação no mundo inteiro (inclusive no

Brasil), desde a liquidação de empresas públicas, passando pela reprogramação de

instituições, como as universidades, chegando à privatização de serviços

essenciais como da água, energia elétrica, telecomunicações, transporte, etc., bem

como na transformação em ativos dos próprios recursos naturais, como as

florestas, matas, as águas, as terras, que, simbolicamente, parecem utilizar-se dos

mesmos mecanismos mais predatórios das origens do capitalismo.

Partindo-se, portanto, da produção industrial militar e da necessidade

do “consumo destrutivo”, passando pelas estratégias de realização do capital

(especialmente na busca de arenas próprias à sua expansão) especificamente pela

interação dinâmica entre produção e consumo, surge uma das mais

impressionantes facetas do movimento neoliberal: a privatização do controle da

violência. Os nichos desse mercado são os mais variados possíveis: desde a

privatização dos presídios, passando pelo comércio de utensílios de controle de

pessoas (há, em vários locais e em anúncios de jornais, instrumentos como

algemas com rastreadores, chips identificadores, etc.), de ambiente (celas móveis

– “conteiners”), de monitoramento, etc. que, pelo avanço tecnológico e pela

corrida contra o denominado crime organizado, foram necessários o

aparelhamento das polícias (computadores, veículos, armamentos, treinamento de

pessoal, câmeras de vigilância, etc.), chegando à venda dos órgãos daqueles

condenados à morte.

Mesmo sendo o Estado, supostamente, o detentor do monopólio do

uso da força como capacidade punitiva, o que se vê, em realidade, é um aumento

(expansão) das formas de controle privado na gestão da violência e a necessidade

de se ter matéria-prima (e o cárcere cumpre fielmente esta função) para este

mercado do controle. De certo modo, há uma camada de excluídos que servem,

primordialmente a esta finalidade. É a nova descoberta: os presos, ou aqueles que

estão submetidos ao “olho vivo” do Estado, por meio de medidas de

acompanhamento judicial penal41, tornam-se verdadeiros ativos de propriedade do

Estado que podem ser (e estão sendo) submetidos à apropriação por espoliação,

através do capital sobreacumulado.

41 No Brasil, por exemplo, há alguns sistemas como o chamado “período de prova” no caso dos crimes de menor potencial ofensivo, em que o indivíduo fica sujeito a uma fiscalização do Estado. Ver artigo 89, parágrafos 10, 20 e 30 da Lei no 9.099/95, que tratam, exatamente, das condições à suspensão do processo ante a fiscalização do Estado.

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111

3.4 O mercado da violência

O que se viu, até aqui, foram as conseqüências dos processos de

globalização do capital42 em especial aquelas resultantes dos mecanismos das

políticas macro-econômicas dos Estados, as quais proporcionaram (e continuam

proporcionando), cada vez mais, a exclusão social de grandes camadas da

população, ou seja, isto foi possível em função da deflagração do fenômeno da

mercantilização dos direitos sociais e que tem reflexos diretos na estrutura da

Segurança Pública das sociedades.

Como fazer e qual relação é possível ser feita entre os efeitos das

políticas econômicas neoliberais (a sobreacumulação de capital e a criação de

novos espaços à acumulação de capital, etc.) como o desemprego em massa, a

pobreza, as privatizações com o encarceramento de grandes massas

populacionais? As conseqüências desses processos estarão alinhadas nos

próximos capítulos, entretanto é possível perceber que diante das contradições

internas do modo de produção capitalista (tendente a gerar crises com resultados

predatórios) o próprio sistema, a partir dos anos 1990, conseguiu impor um

sentimento, relativamente homogêneo, que tomou conta do mundo ocidental, no

sentido de terem triunfados os pressupostos políticos e econômicos liberais.

A busca do capital por espaços próprios à sua reprodução – diante da

crise de sobreacumulação – foi encontrado, além de outros, nas privatizações dos

ativos públicos, isto porque a acumulação por espoliação possibilitou o

surgimento de um conjunto de ativos a custo muito baixo, favorecendo, assim,

que os excedentes do capital (sobreacumulação) de um lugar pudessem se apossar

desses ativos e encontrar emprego lucrativo onde estas possibilidades ainda não

tinham se exaurido.

É exatamente desta forma – privatizações e liberalização do mercado

– que o sistema penal, sob a proteção do Estado43, ingressa na lógica do mercado e

42 No dizer de François Chesnais (1996), pela “mundialização do capital”, que usa esta terminologia para evitar a idéia de homogeneidade dos processos de reprodução ampliada. 43 É bom lembrar aqui que apesar da propositura neoliberal em diminuir as fronteiras do Estado moderno, “o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte apoio do Estado

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da acumulação do capital, num ciclo interminável de violência estrutural (pelo

capitalismo globalizado), institucional (pela violência policial e legal) e a

conseqüente violência social (pela exclusão social, pela exclusão ao mercado de

trabalho, pela impossibilidade de aderir ao mercado de consumo, etc.). Assim,

quando o Estado entrelaça suas ações com interesses privados favorece ao

surgimento da acumulação por ele subsidiada, pois:

a) de um lado, o Estado capitalista, principalmente a partir dos anos

1973, inicia uma longa caminhada às crises de sobreacumulação e a solução foi, a

partir do final da década de 1980, permitir o surgimento da privatização dos ativos

públicos e a descoberta de novos nichos (locais) de aplicação dos excedentes de

capital, submetendo os interesses públicos às perversidades da acumulação

capitalista.

b) de outro, as estruturas econômicas impostas pelo capital, induzem e

remetem grandes massas da população à proletarização, “obrigando” o Estado,

enquanto produtor de violência (tanto estrutural – pela reprodução da

desigualdade social – como institucional – pela atuação do aparato repressivo

estatal), lançar mão de seu mecanismo de controle social mais violento: o sistema

penal.

A contrapartida oferecida pelo Estado ao mercado é o oferecimento da

matéria-prima essencial à exploração da indústria da violência: o ser humano

excluído. Fomentada por duas vertentes, uma pública, outra privada, a indústria da

violência possibilita, através dos mais diversos e modernos mecanismos de

controle (como as câmeras de vídeo, privatização dos presídios, informatização do

controle prisional, aquisição de veículos – motos, carros, caminhões, helicópteros,

aviões – armamentos, suprimentos, investimento tecnológico, treinamento e

contratação de pessoal, etc.) um enorme investimento público no setor,

significando que realmente há uma grande tendência de que a taxa de utilização

das mercadorias seja decrescente sobretudo do chamado capital destrutivo,

oportunizado pelo complexo industrial-militar.

Os investimentos em Segurança Pública44, especificamente aqueles

destinados a conter a violência (neste caso a violência é aquela produzida pelas

(Cf. MÉSZÁROS, 2003, p. 29), comprovando a necessidade da chamada “ajuda externa” para a reprodução do capital. 44 É bom ressaltar, neste instante, que o Brasil, apesar de não ter qualquer tradição em participar de guerras internacionais, promove, na relação interna, algumas guerras como, por exemplo, contra o

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classes sociais não desejadas e não a violência estrutural ou institucional do

Estado), gera um maior aparato instrumental do sistema penal de controle,

proporcionando a captação de um enorme contingente de pessoas submetidas ao

sistema, o qual servirá como matéria-prima à produção.

Sob o signo da iniciativa privada, o controle da violência mostra-se

extremamente sedutor e lucrativo como novo espaço à expansão do capital,

especialmente pela possibilidade do surgimento de empresas que prestam serviços

de segurança. Não se pode afirmar que exista uma relação direta entre o aumento

da exclusão social com o crescimento da população carcerária, entretanto, é

perfeitamente possível relacionar as dinâmicas das relações de produção

influenciando a produção normativa de combate a violência, ou seja,

ultrapassando a lógica do internamento e do disciplinamento para a lógica de um

controle e proletarização das classes excluídas, o sistema penal dá mostras de que

o controle da violência torna-se, a passos largos, um grande negócio, desde o

ponto de vista da acumulação por espoliação (pela utilização do capital excedente

através do consumo destrutivo), como também do ponto de vista da violência

estatal em produzir matéria-prima ao sistema.

Por fim, o sistema de controle da violência atinge um outro objetivo,

qual seja, a criminalização das condutas, possibilitando o controle e a exclusão

dos excedentes, dos consumidores falhos, daqueles que não fazem diferença à

produção econômica, isto porque, a partir do momento que estes estão excluídos

do sistema econômico (social) estarão possivelmente incluídos no sistema de

controle de violência global e poderão se tornar humanos úteis sob o ponto de

vista do capital: podem gerar lucros e expandir o capital.

tráfico ilícito de entorpecentes, contra os movimentos sociais (especialmente os MST), contra a violência urbana, especialmente aquela produzida por ações típicas da chamada criminalidade juvenil (crimes patrimoniais contra residências, automóveis, “arrastões nas praias do Rio de Janeiro”, etc., ou seja, as guerras contra os chamados inimigos comuns internos) e utiliza-se destes fatos e movimentos para, com isso, terem o discurso próprio para equipar a polícia e as estruturas de poder responsáveis ao combate ao crime (normalmente dito “crime organizado), gerando um enorme contingente de pessoas presas. É a partir desse mercado (o da violência) que o Estado distribui recursos públicos e cria novas condições (locais) à apropriação dos ativos públicos pelo capital privado, especialmente à aplicação dos excedentes de capital, tais como: treinamento de pessoal, compra de equipamentos (viaturas, armamentos, etc.), privatizando presídios (hoje a privatização do sistema prisional ocorre de diversas formas, das quais pode-se destacar duas: uma com a privatização de toda a estrutura carcerária e outra possibilitando que empresas privadas exerçam funções públicas dentro dos presídios – vigias, revistadores, administrativos, etc.).

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4 CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE DE CONTROLE

4.1 O mundo do trabalho: do “grande internamento” à normalização do proletariado no regime de acumulação flexível. 4.1.1 O proletariado no período fordista e sua relação com o cárcere. 4.1.2 O proletariado no regime de acumulação flexível e sua relação com sistema punitivo. 4.2 A economia política da pena: a relação entre sistema prisional, fábrica e controle social. 4.3 A sociedade contemporânea como sociedade de controle. 4.3.1. A legitimação da dominação pelo controle. 4.3.2. As tecnologias de poder e as formas de controle. 4.4 A cultura do medo como legitimadora do controle social: a divulgação da violência e a banalização dos direitos e garantias fundamentais. 4.4.1 O discurso do medo e as práticas de segurança. 4.5 O controle total da vida dos corpos (ou dos corpos vivos)

Observou-se no primeiro e segundo capítulos, principalmente, os

mecanismos pelos quais a sociedade contemporânea se utiliza da coerção estatal

para empreender seus objetivos estruturais de produção e acumulação de capital

demonstrando, em conseqüência, como se dá a banalização do cidadão (direitos),

do indivíduo (social) e do sujeito (desejo). Importante, também, foi analisar a

formação do pensamento político-econômico contemporâneo em relação ao

desenvolvimento da democracia e da globalização, especialmente a partir da

lógica da preservação dos direitos individuais e seu funcionamento sob a lógica

capitalista globalizada.

Neste capítulo, entretanto, pretende-se estudar o contexto da sociedade

analisado sob o ponto de vista das estratégias e tecnologias de poder da

contemporaneidade, identificadas por Gilles Deleuze como sociedades de controle

diante de um mundo flexibilizado. É preciso, portanto, entender a transição do

regime de poder soberano (definido por Foucault) para a sociedade disciplinar e,

agora, designada sociedade de controle.

Historicamente, as grandes mudanças sociais ocorridas nos séculos

XVIII e XIX, mudam as estratégias de poder, passando de sua função destrutiva e

de eliminação física do desvio (e do desviante) para uma função de recuperação e

disciplinamento dos “excedentes”, quando se inicia, então, a era das grandes

internações através das prisões e manicômios.

No momento atual, encontramo-nos num estágio intermediário,

novamente, num estágio de transição, ou seja, no momento de ultrapassar a lógica

das tecnologias disciplinares, nas quais podiam transformar sujeitos indóceis em

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115

sujeitos úteis, forjando a mão-de-obra necessária à acumulação e reprodução do

capital, estabelecendo uma nova lógica: a inscrição da vida numa sociedade de

controle, isto porque, a partir das idéias, principalmente, de Hannah Arendt,

Michel Foucault e Giorgio Agamben, o que está em jogo é a nova relação de

biopolítica entre os indivíduos e o Estado, pois o que se pretendia nas sociedades

disciplinares, através do total encarceramento, era a tentativa e necessidade de

“induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que

assegura o funcionamento automático do poder” (Cf. Foucault, 1996, p. 177),

entretanto, na contemporaneidade, o novo controle é aberto, exercido da mesma

forma permanente e, no mais das vezes, através de mecanismos extremamente

sofisticados e de alta tecnologia (câmeras de vigilância, rastreadores de pessoas,

etc.), mas delimitando a configuração entre incluídos e excluídos os quais serão

tematizados a partir de sua vinculação ou não ao consumo.

Esta é a análise que será feita agora. Partindo dos pressupostos

apresentados nos capítulos anteriores (especialmente o segundo), quando foi

estabelecida a íntima relação entre a estrutura política econômica e os vínculos

muito próximos entre as situações produzidas pela globalização do capital e pelo

cárcere, tais como a polarização social (ricos e pobres, criminosos e não

criminosos), a intolerância social, a estigmatização de classes e pessoas

encarceradas, a exclusão social produzida pela impossibilidade do consumo,

seletividade criminal, etc., e passando pela economia política da pena (onde será

visto como a estrutura social, ao impor penas, estabelece situações análogas

àquelas vistas na política econômica), pretende-se chegar, enfim, nas

conseqüências da adoção de políticas de segurança pública de cariz autoritário

cuja determinação foi herdada de um sistema de reprodução de valores impostos

por segmentos da sociedade burguesa que exerce influência na determinação das

políticas penais, sugerindo, sem dúvida, a necessidade da construção de mais

presídios destinados àqueles destituídos das características de consumidor e

indumentarizados com o estigma do marginal, aumentando, pois, as taxas de

encarceramento.

A discussão estará transitando, necessariamente, entre os mecanismos

estruturais (políticas públicas que buscam melhores condições de trabalho,

alimentação, saúde, habitação, educação, etc.) e institucionais (polícia e

parlamento) do Estado, objetivando-se, com isso, compreender como as novas

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116

diretrizes do mercado1 podem compor um cenário de controle, exclusão e barbárie

social. Será preciso, portanto, discutir as políticas públicas (sociais e econômicas)

vinculadas ao Estado, especialmente as políticas de segurança, as quais estão

diretamente vinculadas aos pressupostos de violência institucional (pela atuação

repressiva do Estado e do parlamento) e estrutural (impondo a produção e

reprodução da desigualdade social) desse mesmo Estado.

Analisando a articulação dos antagonismos existentes entre as atuais

políticas de segurança pública e as políticas públicas de segurança (Direitos

Humanos), é possível vislumbrar, a partir de uma abordagem interdisciplinar

(através da sociologia e da filosofia política), que os reflexos proporcionados

pelas políticas neoliberais (capitalismo globalizado ou de mercado) na efetivação

das políticas sociais tencionam a mais um modelo que, apresentado como solução

aos graves problemas da contemporaneidade, perpassa, obrigatoriamente, pela

exclusão e hierarquização da sociedade.

As referidas políticas públicas, que deveriam ter como destinatários

todas as classes sociais, inclusive as menos favorecidas, possuindo, portanto, um

caráter universalizante e de perfil progressista, protagoniza, ao revés, uma

constante exclusão social a partir de dois mecanismos de controle: através do

sistema penal (eficientismo penal), como um controle fechado, exercido pelas

diversas instâncias de poder (Estado, família, igreja, polícias, etc.) e através do

controle social do mercado consumidor, como um controle aberto, exercido por

outras instâncias de controle, outros poderes, outros mecanismos, contribuindo à

lógica maniqueísta entre bons e maus.

Neste ponto é fundamental perceber que o fortalecimento dos direitos

do homem, que nasceu de uma concepção histórica, a partir de lutas que

buscavam novas liberdades, marca os limites desse antagonismo. Através da

utilização do referencial dos Direitos Humanos, procurar-se-á entender como o

direito à segurança é, nos moldes das primeiras reivindicações dos setecentos, em 1 Para Paulo Sandroni (2005, pp. 528 e 529), concretamente, o mercado “é formado pelo conjunto de instituições em que são realizadas transações comerciais. Ele se expressa, entretanto, sobretudo na maneira como se organizam as trocas realizadas em determinados universos por indivíduos, empresas e governo”. Dentro deste aspecto econômico, especialmente nas atuais sociedades capitalistas, diz-se haver três tipos de mercados: ‘mercado de trabalho’, ‘mercado de capitais’ e mercado de bens de consumo’ (Cf. Reich, 1985, p. 276-277). No contexto da pesquisa, a expressão ‘mercado’ (utilizada isoladamente) será mencionada em sentido mais restrito, ou seja, delimitado como órgão de decisão política e centro de produção normativa. Muito embora isto deva ficar

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especial pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (como

também o foram o Bill of Rights das colônias norte-americanas, de 1776, e do Bill

of Rights inglês, de 1689), um direito fundamental justaposto a outros direitos

como a liberdade, a propriedade e a resistência à opressão.

O que se busca é, portanto, através de uma intensa conceitualização,

delimitar e demonstrar diferenças entre as necessárias políticas públicas de

segurança (alimentar, moradia, educacional, institucional, estrutural, etc.), as quais

estão diretamente relacionadas a diversos direitos – individuais e coletivos – e

objetivam a inclusão social, e as políticas de segurança pública, relacionadas à

proteção do indivíduo pelo Estado por meio de ações repressivas – preventivas e

punitivas – através dos “instrumentos destinados ao combate da violência criminal

e à manutenção da ordem pública, centrando a sua ação, principalmente, no

aparato policial” (DORNELLES, 2003, p. 6, nota de rodapé no 7).

O Estado, tão necessário às consecuções e interesses do capitalismo,

principalmente para manter a ordem e garantir o pressuposto da constante

acumulação, assume esta posição com todo o aparato repressivo, utilizando-se do

monopólio do uso da força para manter as desigualdades, o controle social do

desvio, as relações de subordinação às camadas mais vulneráveis da sociedade e,

agora, como será visto, utilizando-se da laboriosa mão-de-obra humana (matéria-

prima) permite cumprir outros grandes objetivos fundamentais à economia

política: o surgimento do mercado prisional, ou seja, desde o ponto de vista do

inconsciente (através da análise da economia política da pena) à acumulação do

capital, através da destinação do capital sobreacumulado às privatizações, tanto do

sistema carcerário como também proporcionando a privatização da segurança

pública, o Estado contribui para o surgimento e à manutenção de um mercado

prisional o qual está sendo configurado a partir da mesma lógica da acumulação.

Portanto, neste espaço, o objetivo é estabelecer uma relação (ato-

conseqüência) entre a maximização da divulgação do crescimento da violência –

atos terroristas internacionais, guerras internacionais, violência urbana, tráfico de

drogas, lavagem de dinheiro, etc. – e a criação do sentimento social de

necessidade de combatê-la através de políticas de segurança pública

conservadoras, em especial através da inscrição da vida numa sociedade de

claro no contexto, importante fazer referência à metáfora “mercado” que se notabilizou como signo de referência à legitimidade de utilização de mecanismos de controle social.

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controle, a fim de compreender as implicações das economias de mercado na

conjuntura contemporânea, absolutamente polarizada e marcada pela exclusão

social, isto porque as conseqüências da adoção de políticas públicas neoliberais,

especificamente em relação à segurança pública, aos moldes dos modelos

denominados como “políticas de tolerância zero”, “movimentos de lei e ordem”,

etc., tem como resultado a “alienação social”2 causada pela criação de inimigos

comuns (especialmente o tráfico ilícito de drogas, armas e o terrorismo) e

divulgação da multiplicação de atos violentos, possibilitando a inserção de novos

mecanismos de exploração (econômica) e de controle.

4.1. O mundo do trabalho: do “grande internamento” à normalização do proletariado no regime de acumulação flexível

Na perspectiva (e obra) de Foucault é possível mostrar como foi o

processo, principalmente no contexto Europeu, de como as diferentes formas de

discursos e saberes (medicina, psiquiatria, etc.) contribuíram e foram capazes de,

na constituição do sujeito (pelo discurso, pelas práticas divisoras e pelos processos

de subjetivação), perceber como foram sendo constituídos e transformados os

locais em mecanismos específicos ao disciplinamento dos corpos e suas

conseqüências.

Em “História da Loucura” (2004, pp. 45-78), Foucault percebeu como

foram acontecendo as transformações das instituições e, ao mesmo tempo, a

relação dessa transformação com as alterações nos mecanismos de punição,

especialmente a partir do final do século XVIII e início do século XIX, quando os

suplícios, praticamente, são eliminados e o espetáculo punitivo dá lugar à parte

mais velada do processo penal.

A partir da metade do século XVII, na Europa, foi criada uma grande

quantidade de casas de internamento como resultado das importantes

2 O termo é empregado aqui para representar “a alienação social, na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural, divino ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando que, por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que a realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o outro (alienus), algo externo a nós, separado de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós”. In: Chauí, Marilena. Convite à filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p.172.

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transformações ocorridas, especialmente pela substituição do poder soberano pelo

poder disciplinar, ou seja, a sociedade monárquica se transformando em sociedade

disciplinar, na qual é possível perceber, que é através do poder/saber que Foucault

identifica em diversas instituições disciplinares (fábricas, escolas, prisões,

manicômios, etc.) a nova forma de controle da sociedade.

São os Hospitais Gerais na França (a partir de 1656), as casas de

correção nos países de língua alemã, as Zuchhäusern (por volta de 1620), na

Inglaterra são também chamadas de “casas de correção” (por volta de 1575) e

mais tarde as workhouses, na Holanda as Zuchtaus e Spinhaus, como também

aparecem as casas de correção na Itália, na Espanha, etc., enfim, em vários locais

da Europa o internamento se espalha e, aos poucos, o propósito inicial de

segregação (internamento) dos doentes (loucos e leprosos, em sua maioria) como

lugar natural à sua existência, vai se transformando: não mais em um

estabelecimento médico mas uma estrutura de poder construída e constituída para

colocar e impor a ordem e ‘em seu devido lugar’ à crescente pobreza.

A criação do Hospital Geral de Paris (criado pelo Édito real de 27 de

abril de 1656) retrata bem essa realidade. A ‘reforma’ ocorrida serviu para agrupar

– sob única administração – diversos estabelecimentos já existentes com a

finalidade expressa3 de correção e punição de todos os pobres de Paris. A

proibição da mendicância era para todos, independente do sexo, lugares, idades,

de toda qualidade de nascimento, válidos e inválidos, doentes ou convalescentes,

curáveis ou incuráveis4. O que se vê, portanto, é uma atitude de troca, pois o

Estado traz para si a responsabilidade de cuidar dos miseráveis (basicamente

alimentá-los) em troca do internado aceitar a coação moral e física.

Foucault descreve, ainda, a participação e influência da Igreja na

maneira de encarar a miséria na consolidação da pobreza como predestinação

individual e como castigo, mas é importante perceber como o Estado substituiu a

Igreja nessa tarefa caritativa, pois “colocando sob seus cuidados toda essa

população de pobres e incapazes, o Estado ou a cidade preparam uma forma nova

de sensibilidade à miséria: iria nascer uma experiência do patético, que não falaria 3 Diz o artigo XIII do Édito de 1656, decreto de fundação do Hospital Geral de Paris: Têm todos os poderes de autoridade, direção, administração, comércio, polícia, jurisdição, correção e punição sobre todos os pobres de Paris, tanto no interior quanto no exterior do Hospital Geral” (Cf. FOUCAULT, 2004, p. 49).

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mais da glorificação da dor, nem de uma salvação comum à Pobreza e à Caridade,

mas que faz com que o homem se ocupe de seus deveres para com a sociedade e

mostra no miserável, ao mesmo tempo, um efeito da desordem e um obstáculo à

ordem” (2004, p. 58). É o primeiro passo à constituição da miséria como causa da

desordem.

Em sua minuciosa pesquisa, Foucault (2004, pp. 60-61) revela, nas

análises de correspondências de São Vicente de Paula (de 1657), que a igreja

católica aprovava o grande internamento dos pobres, como forma de deixá-los em

um mesmo lugar a fim de dar-lhes manutenção, instrução e ocupação, quando

então os miseráveis são vistos não mais como pretexto enviado por Deus à

exaltação e demonstração da caridade do bom cristão, mas uma verdadeira divisão

de mundos: haverá, desde então, o mundo dos bons pobres – daqueles submissos à

ordem que lhe foi imposta – e o mundo dos maus pobres – aqueles que não se

submetem à necessária ordem. Àqueles, do primeiro mundo, o internamento é o

descanso, aos do segundo, o internamento é o que merece, ou seja, o internamento

se justifica, tanto no sentido do benefício como no da punição.

Foucault (1996, p. 207), de forma bastante clara mostra que a prisão

veio, no tempo, com finalidade não judicial, pois se constituiu fora do aparelho

judiciário, ou seja, passou a existir no momento em que foram elaborados os

processos para repartir os indivíduos (e o grande internamento cumpriu

exatamente esta função), fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los,

tirar-lhes o máximo de tempo e forças, treinar seus corpos, codificar seu

comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em

torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir

sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma

aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho

preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como

a pena por excelência.

Isto aparece de maneira muito explícita em diversos Estados europeus

e, mais precisamente, a utilização desta estratégia de disciplinamento e controle

das grandes massas (pobres, miseráveis, prostitutas, vagabundos) encontra

fundamento e utilidade, justamente, na atuação do controle dos corpos

4 Conforme aponta Foucault (2004, p. 65), transcrevendo o parágrafo 9 do citado Édito real de 1656.

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‘condenados’, por estes representarem, no modo de produção que se anuncia, o

maior potencial produtivo, ou seja, é nesta passagem de súdito (baseado nos laços

de servidão) a cidadão (baseado nas relações de direito) que caracteriza o

indivíduo moderno, que se inicia a proletarização através dos processos de

organização e divisão do trabalho.

Desaparece, portanto, a caracterização do poder do soberano, dando

lugar ao poder da disciplina e seus efeitos: diante da impossibilidade da

apropriação dos bens e riquezas dos súditos pelos mecanismos até então

realizados, do nascente modo de produção econômico e da legitimação da

apropriação dos meios de produção5, esse poder disciplinar consegue realizar

diversos objetivos, dentre eles a criação de uma classe de trabalhadores (que

venderão sua força de trabalho) que serão sujeitados à total exploração e

dominação. Nasce, daí, a necessidade de transformar os grandes internamentos em

punições (nasce, deste pensamento, a necessária crítica materialista às concepções

das instituições prisionais).

O nascimento da prisão remonta, então, exatamente neste momento

histórico, ou seja, a instituição carcerária aparece no momento em que a punição,

que partia do poder do soberano e atuava diretamente nos suplícios impostos aos

corpos dos condenados, passa a atuar na medida da produtividade,

proporcionando uma nova leitura e efeitos da sentença penal. É, neste sentido, e

ante as limitações propostas pela correntes interacionistas6 à criminologia

tradicional, que foi muito importante a entrada do marxismo – especificamente

pela abordagem dialética do seu objeto – no estudo da criminologia crítica, isto 5 Faz-se necessidade, aqui, uma preciosa lembrança da análise da acumulação originária realizada por Marx em “O Capital”, especialmente pela forma com que os camponeses foram expulsos de suas terras (por imposição legal, muitas vezes), dirigindo-se às cidades, transformando-os em indesejáveis “miseráveis e vagabundos”, potencializando a criminalização da miséria. Tornam-se, fundamentalmente, uma força de trabalho excedente, uma força produtiva que deveria ser disciplinadas: as fábricas e as prisões cumpriram, exemplarmente esta função. 6 Do ponto de vista da epistemologia, é de se salientar que a matriz da criminologia crítica é designada na literatura alternativa e sinonimamente por enfoque, perspectiva ou teoria do interacionismo simbólico, labelling approach, etiquetamento, rotulação ou ainda por paradigma da “reação social”, do controle, ou da definição. Assim, é importante saber que o labelling explica a conduta humana a partir do interacionismo simbólico e da etnometodologia, duas correntes fenomenológicas da sociologia americana, as quais orientam no sentido de que a sociedade não é uma realidade que pode ser conhecida como algo em si, mas a partir de uma construção social. Aniyar de Castro (1983, p. 6) identifica que para o construtivismo social as observações estão baseadas em construções mentais, ou seja, a realidade só existe na medida em que é interpretada e em conseqüência apreendida. Outro aspecto importante é que o processo cognoscitivo é construído a partir da subjetividade do observador, sendo, portanto, uma realidade variável. O construtivismo

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porque foi possível, assim, investigar historicamente as relações de punição no

modo de produção capitalista com as transformações ocorridas nos mecanismos e

formas de repressão e controle social baseados na disciplina da fábrica. É esta

configuração que será feita a seguir.

4.1.1. O proletariado no período fordista e sua relação com o cárcere

Antes mesmo de proceder a análise da relação existente entre o

“grande internamento” e disciplinamento dos corpos com a formação do

proletariado no período fordista, é preciso, em primeiro lugar, estabelecer uma

premissa metodológica e, em segundo lugar, a partir dessa premissa, estabelecer a

terminologia que corresponderá a análise posterior, especificamente termos como

“fordismo” e “regime de acumulação flexível”, este também chamado, como

aponta De Giorgi (2002), “pós-fordismo”7.

A premissa metodológica cinge-se à necessidade de identificar dois

grandes períodos de transformações econômicas ocorridas, que serão marcantes

na configuração de seus respectivos modelos socio-políticos no período que vai,

aproximadamente, da metade do século XVIII até a metade do século XX e

caracterizado tanto pelos conflitos sociais (os grandes conflitos sociais ocorridos

que resultaram nas lutas e conquistas historicamente determinadas) como também

marcados pelas alterações nos modos de produção que, de forma bastante clara,

afetaram os mecanismos de controle social. É preciso identificar, também, o

período compreendido entre 1945 e 1973, caracterizado pela grande expansão do

modelo capitalista de produção com marcante utilização das políticas keynesianas.

Como base e sinais das grandes transformações ocorridas, podem ser vistos, não

só no conjunto de práticas de controle e relações de trabalho, mas também nos

hábitos de consumo, nas configurações políticas internacionais (geográfica e

geopolítica), enfim, em diversas práticas que marcam a sociedade (tanto do ponto

de vista social como político) da metade do século XX em diante (especialmente

no pós-segunda grande guerra).

opõe-se ao positivismo, ao ver o mundo como uma realidade em si, cognoscível independentemente da pessoa que o observa, ou seja, uma realidade estática. 7 A expressão “regime de acumulação flexível” será examinada, por questões didáticas, no próximo item (3.2.2).

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123

A segunda premissa pretende limitar a significação terminológica da

expressão “fordismo” no contexto da presente pesquisa. Assim, a expressão

“fordismo” origina-se das concepções administrativas inovadoras implantadas

pelo empresário norte-americano Henry Ford no início do século XX (1914) em

sua fábrica de automóveis em Michigan (Estados Unidos da América). Pode-se

dizer, resumidamente, que o fordismo corresponde ao conjunto de técnicas de

racionalização administrativa da produção, as quais visavam uma maior

lucratividade8. O que passou a atuar a partir das formulações de Henry Ford9 foi o

“reconhecimento explícito, de que produção de massa significava consumo de

massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de

controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em

suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e

populista” (Cf. HARVEY, 2004, p. 121), ou seja, o fordismo proporcionou uma

nova consciência coletiva no modo de produzir, pensar e agir.

Aliás, este foi um dos grandes desafios e uma grande dificuldade

enfrentados pelo modo de produção capitalista, qual seja, a capacidade de explorar

e fazer com que o explorado não se sinta, de modo algum, nesta condição, isto

porque o controle sobre o trabalho deve ser exercido de tal forma que se imprima

tanto a coerção como a associação ao disciplinamento da força de trabalho à

acumulação e isto deve ser realizado não só no ambiente de trabalho, mas também

adotado pela própria sociedade como o modo correto de atuação nos campos

estético, ético, político e econômico.

Assim, foi necessário um conjunto de profundas alterações

(individuais, coletivas, institucionais, etc.) que suscitaram a materialização do

modo de produção capitalista em todos os movimentos diários das pessoas (tanto

das capacidades físicas como mentais), garantindo o pleno desenvolvimento dos

pressupostos da acumulação. Neste sentido, o lapso temporal compreendido entre

o segundo pós-guerra até os anos 1973, é entendido, e denominado, de período 8 Dentre as técnicas de racionalização implantadas por Henry Ford estava o conhecimento verticalizado da produção, a redução dos custos com a produção em massa, aumento da tecnologia da produção com a finalidade de extrair de cada trabalhador o máximo de sua produtividade, trabalho especializado (cada trabalhador realizaria apenas uma atividade), a jornada de 8 horas diárias, boa remuneração e, fundamentalmente, horário livre para o laser e consumo. 9 Henry Ford desenvolveu, em seu livro My life and work, três princípios básicos da administração científica: da intensificação (agilidade na produção com o intuito de venda no mercado); da economicidade (redução dos estoques de matéria-prima em transformação e vendas rápidas, com a

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fordista-keynesiano, porque não só ficou marcado por um período socialmente

regido pelas inovações administrativas implementadas por Henry Ford, mas

também pela adoção das políticas econômicas keynesianas as quais, unidas,

permitiram que o capitalismo tivesse o grande período de expansão, especialmente

pela ascensão das indústrias com alto poder tecnológico (desenvolvidas no

período compreendido entre as duas grandes guerras mundiais) e o Estado tendo

que assumir novos papéis.

Para David Harvey (2004, p. 129) “na medida em que a produção de

massa, que envolvia pesados investimentos em capital fixo, requeria condições de

demanda relativamente estáveis para ser lucrativa, o Estado se esforçava por

controlar ciclos econômicos com uma combinação apropriada de políticas fiscais

e monetárias no período pós-guerra” dirigidas aos investimentos públicos com a

finalidade do crescimento da produção e do consumo de massa, garantindo,

relativamente, o pleno emprego.

Sem dúvida, ultrapassando a historiografia apresentada por Karl Marx

sobre a acumulação primitiva, está no centro da análise da constituição do

proletariado fordista exatamente este conjunto de transformações que teve na

prisão o ideal de controle social, isto porque ela se manteve como o local

apropriado, não só à produção de uma subjetividade, diretamente vinculada à

disciplina, mas também a determinar que os indivíduos “insurgentes” tivessem

destino pouco digno, ou seja, àqueles não dispostos a ver a exploração

(despojamento total de seus meios de produção e obrigados a vender sua força de

trabalho) como algo natural, nada mais justo do que sua naturalização coercitiva

empregada pelo cárcere, a qual deveria resultar na normalização capitalista do

indivíduo: a necessidade de internalizar a relação existente entre os detentores dos

meios de produção e o nascente proletariado.

Assim, deveria estar normalizado que o novo modo de produção

conseguira extinguir as relações servis de produção, mas, em troca, haveria a

necessidade deste novo sujeito estar subordinado pelas novas relações sociais de

produção, a um contrato de trabalho que lhe permita um correspondente

(equivalente) pagamento (salário), ou seja, são processos de subjetivações que

permitem e admitem a normalidade da troca de equivalência, como situações

finalidade de pagamento de matéria-prima e salários); e da produtividade (aumento da produtividade individual do trabalhador através da especificidade laboral e da linha de montagem).

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análogas do crime, com o tempo de permanência na prisão: a pena é – no sistema

de controle punitivo capitalista – a representação da mais-valia10.

É importante, pois, estar presente em nosso pensamento, que todas as

transformações históricas das penas e dos sistemas punitivos surgidos a partir do

iluminismo – especialmente a idéia de humanização das penas – representaram

(por isso a importância desse estudo sob o enfoque da criminologia de viés

marxista, como crítica materialista das instituições penais) novas estratégias para

“melhor punir” e com o objetivo principal de disciplinar os corpos como adequada

estratégia repressiva da classe dominante àqueles que, primeiro, estiverem

excluídos no sistema e, segundo, àqueles que não concordarem com o sistema.

Significa dizer, como condição evidente, que numa economia capitalista o ideal de

recuperação do indivíduo no sistema prisional fica reservado, apenas, ao discurso

oficial, uma vez que este (sistema) somente será utilizado – com toda força e vigor

– quando a classe social menos favorecida (os excluídos por excelência) não se

adequar ao modelo de exploração imposto pelo modo de produção. Como afirma

De Giorgi (2002, p. 48):

Do ponto de vista da economia política da pena, a contribuição das instituições e das tecnologias da pena foi, nesse sentido, fundamental: a penitenciária nasce e se consolida como instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender as exigências do nascente sistema de produção industrial. A estrutura da penitenciária, tanto sob o perfil organizativo quanto sob o ideológico, não pode ser compreendida se, paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o conceito de disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como termo que faz a mediação entre cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão que tomam forma no final do século XVIII co-dividem uma idêntica lógica disciplinar que as torna complementares à fábrica.11

Ademais, além da consolidação da prisão como mecanismo adequado

ao surgimento e efetivação subjetiva análogo à produção fabril, em função da

relação servil e desigual existente em ambas instituições, De Giorgi (2002, p. 50) 10 No item 3.3. deste capítulo será tratado o tema da economia política da pena. 11 Il punto di vista dell’economia politica della pena è che l’apporto delle istituzioni e delle tecnologie della pena sai stato in questo senso fondamentale: il penitenziario nasce e si consolida come instituzione ancillare alla fabrica, como meccanismo posto a presidio delle esigenze del nascente sistema di produzione industriale. La struttura del penitenziario, tanto sotto il profilo organizzativo che ideologico, non può essere compresa se non si osserva parallelamente la struttura dei luoghi di produzione, ed è il concetto di disciplina del lavoro a proporsi Qui como termine medio fra carcere e fabbrica. Tutte le instituzioni di reclusione che prendono forma alla

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refere-se também aos efeitos do cárcere como dispositivo de controle

desenvolvido na reprodução da força de trabalho assalariada, isto porque, segundo

ele, é preciso considerar as dimensões instrumental e simbólica da instituição

carcerária. A dimensão instrumental permite relacionar cárcere e função

econômica, encontrando na produção de uma força de trabalho disciplinada e

disponível à valorização capitalista sua principal função. A dimensão simbólica

permite entender o aparente “sucesso histórico” da prisão, especialmente como

modelo ideal da sociedade capitalista industrial que se consolida através do

processo de “desconstrução” e “reconstrução” contínua dos indivíduos: “o pobre

se torna criminoso, o criminoso se torna prisioneiro e, enfim, o prisioneiro se

transforma em proletário”.

É preciso que todos se sintam muito mais que dominados, pois diante

de uma instituição tecnologicamente repressiva que impõe ao indivíduo a total

privação dos desejos, os indivíduos devem manter-se não só obedientes e

disciplinados mas também sujeitados, evitando-se a criação de desejos, deixando-

os aprisionados aos desejos permitidos, criando-se um imaginário próprio

conforme determinadas circunstâncias já estabelecidas, ou seja, para a existência

da dominação total é necessário não mais (ou não só) a violência física, mas que a

produção dos desejos esteja controlada e direcionada aos objetivos estruturais das

sociedades. Para De Giorgi (2002, p. 51) “a prisão cria o status de detento e, ao

mesmo tempo, impõe ao indivíduo trabalho, obediência e disciplina (elementos

constitutivos desse status) como condições que devem ser satisfeitas, a fim de que

possa, no futuro, livrar-se delas”12.

Sustenta, ainda, De Giorgi (2002, p. 52) existir uma contradição

estrutural na sociedade capitalista, ou seja, a contradição entre uma igualdade

formal e uma desigualdade fundamental que repousa tanto no universo econômico

– que se verifica tanto na lógica da circulação (igualdade) quanto na produção

(desigualdade) – como também no universo do cárcere – que se verifica no

conflito entre princípio da retribuição e as práticas disciplinares. Para ele, “a

ideologia retributiva-legalista oculta a realidade de disciplina e violência que se

fine del XVIII secolo condividono una identica logica disciplinare che le rende complementari alla fabbrica. 12 La prigione crea lo status di carcerato e allo stesso tempo impone all’individuo lavoro, obbedienza e disciplina (elementi in realtà costitutivi di questo status) como condizioni da soddisfare affinché questi possa infuturo sottarvisi.

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produz no interior da instituição penitenciária, assim como a ideologia contratual-

igualitária esconde a realidade de exploração e subordinação que se produz na

fábrica. O objetivo, coerentemente, é de reproduzir um proletariado que considere

“o salário como justa retribuição do próprio trabalho e a pena como justa

medida dos seus próprios crimes”13.

Entretanto, De Giorgi percebe que os conceitos e análises

efetivamente utilizados no final da década de 1930, prodigalizados especialmente

pela obra de George Rusche e Otto Kirchheimer14 são revisitados, isto porque a

partir do final dos anos 60 (mais precisamente em 1969 com a reedição de “Pena e

estrutura social”), houve uma retomada das análises do cárcere à luz das

categorias da economia política (o que De Giorgi vai denominar de “economia

política da pena”). Ele aponta que a obra de Rusche e Kirchheimer foi concebida,

historicamente, analisando o processo de transição ocorrido no período situado

entre o feudalismo e o capitalismo, o que poderia significar insuficiência

conceitual, prejudicando a análise pretendida das estratégias repressivas

contemporâneas. Portanto, as interrogações lançadas por De Giorgi são no sentido

de encontrar matrizes que sejam suficientes a descrever a relação entre a situação

econômica atual e as estratégias repressivas contemporâneas.

O que se viu, de fato, foram duas situações importantes: a primeira é

que na tentativa de reconstrução do modo de produção capitalista (e que está em

curso até hoje) o resultado foi, especialmente, o crescente índice do desemprego15

e, a segunda é que, contrariando as tendências, das décadas de 1930 a 1960, de

redução das taxas de encarceramento, principalmente nos Estados Unidos, a partir 13 L’ideologia retributiva-legalistica cculta cioè la realtà di disciplina e sopraffazione che si produce dentro l’istituzione penitenziaria, così di sfruttamento e subordinazione che si produce nella fabbrica. L’obiettivo, coerentemente, è di riprodurre un proletariato che consideri il salario come giusta retribuzione del proprio lavoro e la pena come giusta misura dei propri crimini. 14 A obra, aqui referida, é “Punishment and Social Structure” (Edição brasileira: Pena e estrutura social. Tradução e apresentação de Gislene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999), editada pela primeira vez em 1939. Os autores, originários da Escola de Frankfurt, fizeram uma abordagem materialista do sistema penal, analisando, sobretudo, as origens do sistema carcerário e a relação entre desemprego e encarceramento. A obra foi reeditada em 1968 nos Estados Unidos, justamente no período em que surge também os primeiros estudos sobre a criminologia crítica, especialmente com a introdução do marxismo na sociologia criminal e de diversas teorias da sociologia como a do etiquetamento, e construtivistas (interacionismo simbólico e o construtivismo), ocorrida entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970. “Pena e estrutura social”, juntamente com “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault (1977) e “Cárcere e Fábrica: As origens do sistema penitenciário” de Dario Melossi e Massimo Pavarini (1977), sem dúvida contribuíram à formação do pensamento crítico, de viés marxista, à análise da relação existente entre sistema produtivo e cárcere.

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do início da década de 1970, houve um significativo aumento dos índices de

encarceramento, o que será interpretado de forma bastante interessante por alguns

teóricos como Ivan Jankovic, T. Sellin e L. T. Stern16, dentre outros.

Jankovic (citado por De Giorgi), por exemplo, um dos primeiros

teóricos a relacionar o modelo apresentado por George Rusche e Otto

Kirchheimer da década de 1930 à condição norte-americana da década de 1970,

parte de duas hipóteses: a primeira diz respeito a “severidade” das penas17, ou

seja, o agravamento da situação econômica (desemprego) corresponderia a um

aumento nos índices de encarceramento; a segunda hipótese é no sentido da

“utilidade” da pena, ou seja, a função da pena seria uma espécie de regulação do

excedente de mão-de-obra e o objetivo implícito seria o de consolidar o “exército

industrial de reserva” a fim de que o aumento do encarceramento servisse à

redução do desemprego. Ambas as hipóteses objetivavam estabelecer o

relacionamento com o princípio de less eligibility, ou seja, legitimar os efeitos

dissuasórios da punição, isto porque ainda que fossem péssimas as condições

oferecidas ao trabalhador, estas seriam melhores do que aquelas impostas no

cárcere ao indivíduo, o qual daria maior preferência a determinada situação fora

do cárcere.

A análise da situação norte-americana possibilitou a Jankovic (sua

obra é de 1977) concluir, entretanto, que se por um lado encarceramento e

desemprego seguem a mesma direção (ainda que não influenciada pelas taxas de

criminalidade), a hipótese de “utilidade” da pena em relação ao mercado de

trabalho é desmentida. De Giorgi aponta, também, que outras pesquisas realizadas

15 Os efeitos e características contemporâneos do capitalismo, chamado “regime de acumulação flexível” serão analisados, mais detidamente, no próximo item. 16 Todas estas contribuições estão descritas na obra de De Giorgi (2002, pp. 54-60), inclusive em notas de rodapé. 17 A hipótese da “severidade da pena” está consubstanciada no princípio less eligibility, proposto na obra “Pena e estrutura social”, de George Rusche e Otto Kirchheimer, os quais analisam o surgimento da instituição “prisão” através de uma vasta pesquisa bibliográfica “percorrendo vários países europeus, de fins da Idade Média até o século XIX”. A análise que fizeram das prisões ficou situada na transição do modo de produção feudal ao capitalismo, vinculando as condições de vida do mercado de trabalho e a vida no interior do cárcere, ou seja, relacionando ambas situações (mercado de trabalho e cárcere) no interior do princípio de less eligibility, segundo o qual o indivíduo será constrangido ao trabalho em função “de que o nível de existência garantido dentro do cárcere e aquelas oferecidas pelas instituições assistenciais deve ser mais baixo do que o das categorias mais baixas dos trabalhadores livres, salvaguardando os efeitos dissuasivos da pena” (destaques retirados da nota introdutória à edição brasileira, da Prof. Dra. Gizlene Neder, da referida obra, pp. 14 e 15).

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foram sistematicamente confirmando a hipótese de “severidade” das penas, porém

a da “utilidade” não.

De Giorgi (2002, p. 56) sugere, entretanto, o significado disso, no

sentido de que o “Estado social e medidas repressivas concorrem, nessa fase, para

a gestão do excesso de força de trabalho, dividindo, em certa medida, as

tarefas”18, ou seja, na “administração” dessa grande massa de trabalhadores

desempregados foi preciso estar presente, de um lado, o chamado Estado

Providência (welfare state) para alguns – especialmente àqueles naturalmente

submetidos à exclusão social (pela exclusão do trabalho) e que não ofereciam

perigo à ordem – e de outro, o sistema repressivo, representado pela chamado

Estado Penitência – especialmente àqueles “perturbadores e perigosos à ordem”,

causadores de distúrbios, que não estavam dispostos a atender a moral oficial de

ser um trabalhador. Na verdade o que se pretendia era uma indução de práticas à

determinada conduta, na tentativa de consolidar, através de processos de

subjetivação, a sujeição do indivíduo aos objetivos estruturais do modo de

produção vigente: a disciplina ao trabalho.

Assim é que o Estado social dá lugar a uma total desregulamentação

da economia (o que será abordado no item seguinte, sob o título de economia

flexível) e, em contra partida, alcança um alto índice de quantidade de leis

criminalizantes possibilitando, em certa medida, o controle social através desses

dispositivos legais, e o sistema penal surge então como seu principal instrumento.

Os dispositivos aqui referidos surgem de forma difusa no seio da sociedade e

aparecem com um discurso elaborado nos moldes a sustentar e fundamentar as

políticas econômicas neoliberais de contenção das massas problemáticas,

especialmente as minorias étnicas, os negros, os pobres, os imigrantes, os

desempregados, enfim, todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se

encontram nos estratos mais baixos da sociedade.

Entretanto, da mesma forma como apresenta De Giorgi, é possível

avançar no argumento, a fim de entender que diante das perspectivas e das

transformações ocorridas a partir dos anos 1973 em diante, especificamente do

modo como se constituíram as novas relações sociais, suas formas de organização

e produção, o encarceramento (prisão) não consegue mais responder (ou, pelo

18 Questo significa che stato sociale e misure repressive in questa fase concorrono alla gestione della forza lavoro in eccesso, dividendosi in certa misura i compiti.

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menos, nem tanto) pelas novas estratégias contemporâneas de controle social, isto

porque, diante do processo de transição fordista, ao modo de produção flexível,

delineado pelo que se convencionou denominar de “pós-fordismo”, o controle e

disciplinamento das massas foram deslocados, e a prisão, gradativamente,

perdendo sua função original (disciplinamento dos corpos) passando a ter novas e

estratégicas funções.

Ainda que seja pouco provável conseguir relacionar diretamente

índices de desemprego com encarceramento, há sim, uma íntima relação entre os

processos de mudança da economia em seu conjunto e seus efeitos, às estratégias

de controle das massas, isto porque durante os chamados ciclos recessivos da

economia o discurso político de uma nova moralidade contra o desvio (e o

desviante) constitui o tema preponderante e fértil às campanhas de discussões

públicas do fenômeno criminal como a necessidade de discursos de

ressocialização e integração do indivíduo criminoso, de políticas públicas

tematizadas à revitalização da lei e da ordem, de práticas de ausência de tolerância

ao desvio, enfim, um conjunto de ações necessárias a estabelecer as condições

mínimas à manutenção e imposição das excludentes relações sociais.

O desafio, agora, é entender as novas relações e formas de produção

econômicas contemporâneas a fim de poder, à luz da economia política da pena,

analisar suas conseqüências e mecanismos de controle das camadas excluídas do

processo produtivo (os excluídos).

4.1.2. O proletariado no regime de acumulação flexível e sua relação com sistema punitivo

É preciso, preliminarmente, por razões didáticas limitar a significação

terminológica da expressão “regime de acumulação flexível” no contexto da

presente pesquisa. Assim, e diante dos fatos até aqui apresentados, faz-se

necessário, portanto, uma análise das profundas transformações ocorridas tanto no

mundo do trabalho como suas conseqüências na estrutura produtiva (significou

um esgotamento do modelo fordista de produção), para depois relacionar as

dimensões e significados destas manifestações, na tentativa de responder a alguns

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interrogantes importantes, especialmente aqueles relacionados com a exclusão

social, o controle dos excluídos e o novos mecanismos de acumulação.

Antes mesmo de prosseguir no tema, é preciso ponderar que conceitos

como fordismo e pós-fordismo, desenvolvidos em linhas originais por teóricos da

Escola Regulacionista Européia, como Michel Aglieta, Alan Lipietz e Benko,

devem ser observados de forma reservada na literatura econômica e social, isto

porque não é pacífica, por exemplo, esta transição do fordismo ao pós-fordismo

no debate social. Somente para se ter idéia, a expressão “fordismo” utilizada

inicialmente para designar este processo mais racionalizado de capitalismo

corporativo, principalmente no ocidente, depois da primeira guerra mundial, mais

precisamente no final da década de 1970, é novamente utilizada pela referida

escola da regulação.

Harvey (2004, p. 117) utiliza-se dos argumentos básicos dos

representantes europeus da Escola da Regulação para estabelecer e representar

esse período de transi ção, isto porque para ele “um regime de acumulação

descreve a estabilização, por um longo período, da alocação do produto líquido

entre consumo e acumulação; ele implica alguma correspondência entre a

transformação tanto das condições de produção como das condições de

reprodução de assalariados”. Este debate conduzido por esta escola de

pensamento, portanto, merece maior atenção uma vez que segundo seus teóricos,

cada período histórico estabelece a transição de um regime de acumulação e de

um modo de regulamentação social e político a ele associado.

Harvey (2004, p. 117) aponta ainda que um sistema de acumulação

pode existir a partir do momento em que seu “esquema seja coerente”, entretanto

o problema, afirma ele, é fazer com que os comportamentos dos indivíduos

assumam esta postura e permitam que o sistema, como um todo, continue a

funcionar em razão da idéia de sintonia necessária entre o regime de acumulação e

o modo de regulação de um sistema econômico, ou seja, enquanto há

correspondência, o sistema econômico apresenta estabilidade, caso contrário, o

mesmo entra em crise. O sentido desta crise e, por sua vez, as supostas soluções

que o sistema oferece, é objeto de diversas divergências teóricas. É preciso,

portanto, conforme os teóricos da “Escola da Regulamentação”, uma

materialização do regime de acumulação através de normas, instituições, hábitos,

redes de regulamentação que permitam, ao comportamento individual, condições

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favoráveis à acumulação e reprodução do capital. Este conjunto de regras e

processos sociais interiorizados é denominado “modo de regulamentação”.

As contradições internas do capitalismo nunca permitiram longos

períodos de estabilidade e crescimento, ao contrário, demonstrou, principalmente

em duas grandes áreas, dificuldades para seu sucesso e viabilidade, como aponta

Harvey (2004, p. 117-118): a primeira advém da fixação de preços e, a segunda,

deriva da necessidade de exercer controle sobre o emprego da força de trabalho

para garantir a agregação de valor na produção e, conseqüentemente, lucros

positivos para o maior número de capitalistas.

Sobre o primeiro problema (fixação de preços) é necessária uma

pequena digressão para melhor entender o pensamento da “Escola da

Regulamentação”. Segundo Harvey (2004, p. 118), os mercados de fixação de

preços fornecem inúmeros sinais de que são os produtores que coordenam as

decisões de produção com as necessidades, vontades e desejos dos consumidores,

entretanto, em vários momentos é necessário algum grau de ação coletiva através

da regulamentação e intervenção do Estado, para compensar, por exemplo, falhas

de mercado, evitar excessivas concentrações de poder de mercado ou combater o

abuso do privilégio do monopólio, quando este não pode ser evitado, fornecer

bens coletivos (defesa, educação, infra-estrutura sociais e físicas), etc. Na prática,

as pressões direta (como a imposição de controles de preços e salários) e indireta

(como a propaganda subliminar que persuade os indivíduos a incorporar novas

necessidades e desejos de consumo) exercidas pelo Estado ou por instituições

religiosas, políticas, sociais, etc., aliadas ao exercício do poder de domínio do

mercado pelas grandes corporações, afetam a dinâmica do capitalismo, moldando

sua trajetória e forma de desenvolvimento.

Para Harvey (2004, p. 118) é importante visualizar este pensamento da

“Escola da Regulamentação” pelo fato de que ela leva em “conta o conjunto das

relações e arranjos que contribuem para a estabilização do crescimento do produto

e da distribuição agregada de renda e de consumo num período histórico e num

lugar particulares”. É a partir dessa visão regulacionista que se torna possível

identificar, no aumento dos custos de produção e salários e no declínio da

produtividade, os fatores que proporcionaram o chamado fim do fordismo e o

surgimento do pós-fordismo, regime caracterizado pela flexibilização de que

falaremos mais adiante.

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133

Neste sentido é possível, portanto, caracterizar o período entre 1945 e

1973, demarcado por um conjunto de práticas de controle do trabalho,

tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, de

fordismo-keynesiano. Harvey (2004, p. 119) pondera, entretanto, que não está

claro “se os novos sistemas de produção e de marketing, caracterizados por

processos de trabalho e mercados mais flexíveis, de mobilidade geográfica e de

rápidas mudanças práticas de consumo” podem ser caracterizados como um novo

regime de acumulação, mas é certo que há significativos contrastes entre as

práticas atuais e aquelas realizadas no período de expansão do pós-guerra o que

justifica a hipótese de uma passagem do fordismo a um regime de acumulação

flexível.

Assim, do ponto de vista histórico, o esgotamento do modelo fordista-

keynesiano já dava mostras de problemas em meados dos anos 60 e em 1973

consolida sua insuficiência para conter as contradições do capitalismo. Pode-se

afirmar que um dos vértices dos problemas enfrentados pelo capitalismo foi a

organização sindical da classe trabalhadora, isto porque, como afirma David

Harvey (2004, p. 135), a rigidez dos investimentos de capital fixo em larga escala

e a longo prazo, em sistemas de produção em massa, impediam a flexibilidade de

planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo

invariantes, havendo, portanto, problemas com a rigidez nos mercados, na

alocação e nos contratos de trabalho em função, exatamente, das organizações

trabalhistas de classe.

David Harvey (2004, p. 137-141) aponta ainda, dentre outras razões

da instabilidade econômica desse período, que as corporações possuíam grandes

excedentes inutilizáveis, principalmente fábricas e equipamentos, obrigando-as a

entrar em um período de racionalização, reestruturação e intensificação do

controle do trabalho, a fim de que pudessem ultrapassar o período de crise. Como

conseqüência da destruição do compromisso fordista, as décadas de 70 e 80

representaram um período de reestruturação econômica e reajustamento social e

político, o que sugeriu o aparecimento de um novo regime de acumulação (que

convencionou-se chamar, por alguns autores, de acumulação flexível). Este novo

regime de acumulação associado a novas regulamentações políticas e sociais,

implicou, aparentemente, no aumento das taxas de inflação e desemprego

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estrutural19 (em oposição à “friccional”), tanto na Europa como nos Estados

Unidos, e uma rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos

de salários reais e o retrocesso do poder sindical (um dos maiores óbices ao

regime de acumulação capitalista do regime fordista).

O que caracteriza a acumulação flexível, para David Harvey (2004, p.

140) é a:

(...) flexiblidade dos processo de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas20.

A constituição do novo proletariado está intimamente associada à

radical reestruturação do regime de trabalho, isto porque além da volatilidade do

mercado, do aumento da competição, do avanço tecnológico (robótica,

microeletrônica, etc.), da diminuição dos lucros e os trabalhadores perdendo seu

poder de força em função da enorme desmobilização político-sindical e pelo

excedente de mão-de-obra, há uma profunda alteração no padrão de

comportamento dos empregos, passando de empregos regulares e estáveis às

subcontratações temporárias e em tempo parcial.

A década de 1980 marca, portanto, nos países de capitalismo

avançado, uma radical alteração no mundo do trabalho, na qual, especialmente, a

produção em série (marca fordista) é substituída pela flexibilização da produção e

19 De um modo geral, “desemprego” refere-se a uma situação na qual uma pessoa se encontra ociosa involuntariamente. Para Marx esta massa de trabalhadores (população execedente relativa) estaria sempre desempregada em função das inovações tecnológicas, ocorrendo, também, ante a disputa pelo emprego e em função do próprio processo de acumulação, uma tendência à baixa dos salários, o que permite pensar que a idéia keynesiana do pleno emprego não seria viável à acumulação capitalista em função de que este (pleno emprego) elevaria os salários provocando a alta nas taxas de inflação. O desemprego é classificado de várias maneiras conforme sua causa: dentre outras classificações há o desemprego friccional ou normal, que ocorre em detrimento da transição entre oferta e procura (ou o desempregado não sabe da existência de vagas no mercado ou os empregadores não sabem da existência de desempregados). Há também o desemprego estrutural, originado pelo avanço tecnológico ou ainda pelas alterações da demanda de determinada profissão (obsolescência da indústria ou da profissão). 20 David Harvey se refere a chamada “Terceira Itália”, Flandres, o chamado “Vale do silício”, e países recém industrializados.

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por novos padrões de busca de produtividade nas formas de inserção na estrutura

produtiva, política e sindical, permitindo, com isto, o surgimento de

conseqüências do ponto de vista material das relações trabalhistas – tais como os

direitos trabalhistas strictu sensu, o nível dos salários, segurança no emprego,

seguridade social (previdência – aposentadoria e seguro por acidentes, por

exemplo), seguro-desemprego, etc. – como também do ponto de vista da produção

de subjetividades – tais como, a procura por mais de um emprego, métodos

simbólicos de participação ativa nas empresas, sem entretanto representar divisão

de lucros (qualidade total, eliminação do desperdício, gerência participativa, etc.)

e, especialmente, adequação às necessidades da produção de subjetividades de

consumo (indução de necessidades e transformação cultural) – pois de certa

forma, como aponta Ricardo Antunes (2005, p. 24) vivem-se formas transitórias

de produção, com significativas repercussões no direito do trabalho uma vez que

há uma desregulamentação e flexibilização de modo a dotar e permitir ao capital

adequar-se a sua nova fase.

É preciso, pois, fazer uma pequena revisão teórica (histórica) para

entender a produção das novas subjetividades alcançadas pela indução de práticas

dos indivíduos e criação de necessidades, isto porque as formas contemporâneas

de poder utilizam-se de novas tecnologias a fim de produzir desejos coincidentes

com o modelo estrutural de produção, ou seja, à produção no modo capitalista são

utilizadas necessidades indispensáveis à sua manutenção, as quais são atingidas

pela flexibilização das subjetividades.

Para compreender, portanto, as condições atuais impostas pela

produção capitalista e suas diversas mutabilidades é preciso, então, apontar os

elementos materiais que resultaram da transição de uma ordem econômica e social

orientada à produção para uma economia da informação, bem como de uma força

de trabalho global e flexível, enfim, entender “como”, “porque” e as

“conseqüências” entre estas dinâmicas e as formas de controle, isto porque não só

há uma redução brutal da quantidade de postos de trabalho (resultando em um

aumento do desemprego estrutural e não mais conjuntural), mas também porque

as características da força de trabalho estão alteradas em função das

flexibilizações impostas pelo capital nessa nova fase.

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136

É importante, pois, destacar e identificar uma relação que chama

atenção: nesse interessante período de transição, entre imperialismo21 e império22,

que tem como característica marcante a ausência de fronteiras, (tanto aquelas

típicas do período das soberanias dos Estados-Nação, das fronteiras territoriais,

como também pela ausência de limites do poder), passa-se a ter, como

pressuposto à produção, uma nova conjuntura econômica e social (econômica e

das subjetividades), conforme Hardt e Negri (2004, pp. 266-268), intensos

processos de descolonização, que gradualmente recompôs o mercado mundial em

linhas hierárquicas a partir dos Estados Unidos, de descentralização gradual dos

locais e dos fluxos de produção e, também, a construção de uma estrutura de

relações internacionais que espalhou pelo globo o regime produtivo disciplinar e a

sociedade disciplinar em suas sucessivas evoluções.

Estes três processos (descolonização, descentralização da produção e

disciplinamento) permitiram identificar o rompimento de práticas imperialistas

tradicionais (fundamentalmente de dominação) e o surgimento de um novo

modelo de política econômica e social, cujo principal objetivo era, sob o manto do

desenvolvimento e modernização, criar novas modalidades de dominação. Para

Hardt e Negri (2004, p. 272-274) foi o mercado mundial, como estrutura de

hierarquia e comando, que apareceu como um importante aparelho a regular redes

globais de circulação, entretanto, ainda que esta unificação tendencial do mercado

mundial não tenha ocorrido de forma compatível ou tranqüila ante os conflitos e

lutas de libertação (descolonização) e circulação capitalista, este processo

21 Conforme aponta Castor Ruiz (2004, p. 97) “o imperialismo é um modo de dominação entre Estados ou de um Estado sobre um território específico; ele se impõe pela guerra e se sustenta pela força. O imperialismo é o modelo político vigente durante o século XIX e até metade do XX, e que em parte continua vigente em atuações “imperialistas” como as guerras de invasão dos EUA contra o Iraque, Afeganistão e outros países. Mas o modelo imperialista remete ao conceito hobbesiano de submissão pela guerra; ele é instável, gera muitas resistências, tem pouca legitimação social e só se sustenta enquanto houver uma força superior que submeta o medo dos oprimidos”. 22 Michael Hardt e Antonio Negri (2004, p. 14-15) apontam, basicamente, quatro características do conceito de Império: primeiro ele é marcado pela ausência de fronteiras, pois o poder é exercido sem fronteiras, postulando um regime que abranja a totalidade do espaço; segundo, apresenta-se não como um regime histórico nascido da conquista, mas como uma ordem que suspende a história e determina o estado de coisas existente, ou seja, o Império se apresenta, em seu modo de governo, não como um momento transitório, mas como um regime sem fronteiras temporais e, neste sentido, fora da História ou no fim da História; terceiro, o poder de mando do Império funciona em todos os registros da ordem social, não só administrando o território com sua população mas também criando esse mesmo mundo regendo diretamente a vida humana; quarto, o conceito é sempre dedicado à paz, ainda que a prática assim não demonstre.

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137

resultou, em diversas partes do globo, de maneira desigual e em diferentes

velocidades, surgindo diversos efeitos:

a) “a ampla difusão do modelo disciplinar da organização de trabalho

e da sociedade para fora das regiões dominantes produziu no resto do mundo um

estranho efeito de proximidade, simultaneamente tornando-o mais próximo e

isolando-o num gueto” (2004, p. 273);

b) enormes populações passaram pela emancipação salarial, ou seja,

“a entrada de grandes massas de trabalhadores no regime disciplinar da moderna

produção capitalista”, as quais após “libertadas” da semi-escravidão,

determinando, entretanto, novas necessidades, novos desejos e demandas,

sujeitando os novos trabalhadores à disciplina da nova organização do trabalho,

criando, contudo, novas formas de “aprisionamento” (2004, p. 273);

c) o novo regime disciplinar, ao criar a tendência ao mercado de

trabalho global, constrói, também, a possibilidade do “desejo de escapar desse

regime e, tendencialmente, uma multidão indisciplinada de operários que querem

ser livres” (2004, p. 273-274);

d) cresce a mobilidade transversal da força de trabalho disciplinada,

indicando a “busca real da liberdade” e a “formação de desejos novos e nômades,

que não podem ser contidos e controlados dentro do regime disciplinar”, gerando,

na maioria das vezes, uma diminuição do custo da força de trabalho, fazendo

crescer a competição entre os trabalhadores (2004, p. 274);

e) há efeitos macroeconômicos dessa mobilidade, como a dificuldade

em “administrar mercados nacionais, individualmente”, como ocorre na fuga de

trabalhadores do terceiro mundo em direção ao primeiro mundo, estabelecendo-se

este terceiro mundo, no primeiro, como guetos, comunidades de favelas, barracos,

etc. De forma inversa, há uma penetração do primeiro mundo no terceiro, através

de bolsas de valores, bancos, corporações transnacionais, etc. (2004, p. 274);

f) As geografias econômica e política são desestabilizadas

proporcionando fronteiras fluidas e móveis, fazendo com que o mercado mundial,

principal e mais claramente a partir da década de 1980, passe a ser um órgão de

decisão política e um centro de produção normativa (2004, p. 275).

É preciso, aqui, novamente fazer uma pequena digressão a fim de

entender este momento de transição. Primeiro é bom lembrar que a passagem de

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uma produção artesanal23 para uma produção manufatureira é marcada pela

valorização do capital, isto porque a mercadoria produzida no modo artesanal não

é produzida para o uso do artesão, mas sim com características sociais, pois está

servindo como mercadoria de troca que possui seu valor de uso, caracterizando,

de certa forma, uma espécie de divisão do trabalho (cada artesão produzindo e

trocando suas mercadorias, com o desenvolvimento do comércio e das cidades,

especialmente a partir do século XII). A partir do século XVIII (especificamente

em 1776 – com o advento da Revolução Industrial), entra em cena a manufatura e

o artesão torna-se apenas um operário que realiza uma etapa no processo

produtivo, ou seja, a manufatura representa um processo de trabalho que

decompõe o trabalho artesanal e é, segundo Marx, neste momento que há a

subordinação formal do trabalho ao capital, isto porque o capital ainda depende

das habilidades que estavam presas ao homem artesanal, pois o capital ainda não

havia encontrado seu modo de produção mais adequado à valorização das

riquezas, dependendo, ainda, do artesanato.

A subordinação real do trabalho ao capital ocorre, no entanto, com a

introdução da maquinaria e do avanço tecnológico no processo de produção que,

até então, ainda estava limitado às condições físico-biológicas do trabalhador

(habilidades individuais de cada trabalhador), ou seja, houve uma revolução no

modo de produzir pela emancipação da produção da riqueza da natureza físico-

biológica dos homens, fazendo com que as referidas habilidades, destreza e força

fossem transferidas a um objeto externo, proporcionando (ou possibilitando) um

aumento da produção com o aumento da intensidade (quantidade, velocidade) do

trabalho produzido em função de que é o objeto externo, que define o ritmo da

produção (não depende mais do trabalhador individual, mas sim do objeto

externo) estendendo a massa trabalhadora explorada e, conseqüentemente, o

aumento da jornada de trabalho (mais-valia absoluta).

Ocorre, em verdade, que no modo de produção capitalista,

característico daquele período do nascimento da instituição carcerária, bem como

no momento posterior caracterizado e denominado de fordismo, utilizava-se de

23 Artesanato é atividade realizada pelo artesão – homem livre (do senhor feudal), independente (pois não está vinculado aos outros artesãos) e autônomo (proprietário privado de seu próprio trabalho) – ou de pequenas sociedades de pessoas livres, tendo como característica principal a propriedade dos meios de produção, não havendo (ou havendo de forma muito precária) divisão do trabalho, isto porque o artesão executa todas (ou quase todas) as fases da produção.

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toda mão-de-obra disponível (homens, mulheres, crianças) aos fins propostos pelo

modo de produção (aumento da jornada de trabalho – mais-valia absoluta – ou

diminuindo o tempo que a sociedade gasta para manter viva a capacidade de

trabalho – mais-valia relativa), entretanto era a própria sociedade que estava

disciplinada a este modo de produção, ou seja, a prisão ocupou um espaço

“privilegiado”: o disciplinamento dos excedentes necessários, ou seja, uma mão-

de-obra abundante que precisava ser adestrada. Portanto, é o que se poderia

chamar de uma sociedade capitalista cujo critério de produção determinante24 é

organizado pelo tempo excedente, proporcionando uma maior fragmentação do

indivíduo, isto é, a transformação do trabalho em capital produtivo excedente.

Cumpre entender, então, que se o modo de produção capitalista tem,

em seu processo produtivo (D-M {força de trabalho e modo de produção} -P-M´-

D´) a saída de mercadoria (já diferenciada e, por isso vivemos num mundo de

aparência de produção de mercadoria) tem também a produção de relações

capitalistas burguesas (isto porque há uma expansão da classe assalariada, mas

também um alargamento da classe burguesa) e com isso é possível perceber uma

constante reconfiguração das fronteiras dentro e fora do capital e, por fim, sai

também a negação das próprias relações burguesas, ou seja, o mais importante

aqui é notar a impossibilidade de viver dentro das relações produtivas capitalistas,

tanto como assalariado, quanto capitalista, isto porque há um aumento da

composição orgânica do capital (relação Máquina X Homem) impedindo ao

indivíduo de viver como assalariado25, uma vez que a mecanização produz o

desemprego, impossibilitando ao indivíduo viver dentro das relações capitalistas

provocando uma formação degenerativa da própria sociedade, ou seja, com a

subordinação real do trabalho ao capital, a própria sociedade produz mais negação

(exclusão) do que afirmação (inclusão) produzindo cada vez mais a exclusão

social.

24 Apesar das análises de Michael Foucault com a “disciplina” estarem relacionadas com a arquitetura institucional e a localização do seu poder (para ele não há uma fonte central mas formações capilares em seu ponto de exercício e as subjetividades são produzidas internalizando-a e realizando-a em suas práticas), elas tem íntimo vínculo com as preocupação de Michael Hardt e Antonio Negri (2004, p. 476), isto porque para eles é importante saber como as práticas e relações de disciplinaridade que se originam no regime fabril chegaram a cobrir todo o terreno social como mecanismo de produção e de governo, ou seja, como regime de produção social. 25 Analisando os clássicos da economia política, Adam Smith dizia que a pessoa somente poderia viver a partir do salário, lucro ou renda da terra. David Ricardo dizia que o indivíduo somente poderia viver a partir do salário ou do lucro e Marx confirma essa hipótese, aditando, entretanto, que estas condições vão causando a impossibilidade de viver.

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É exatamente neste processo (contraditório) de expansão que o capital

buscará ultrapassar novas fronteiras, constituindo a tendência de que fala Marx do

mercado mundial. Para Hardt e Negri (2004, p. 276) “a realização do mercado

mundial e da equiparação real, ou pelo menos da administração de margens de

lucro em escala mundial, não pode, simplesmente, resultar de fatores financeiros

ou monetários, mas precisa ser conseguida pela transformação das relações sociais

e de produção. A disciplina é o mecanismo central dessa transformação”, ou seja,

para se diminuir o tempo que a sociedade gasta para manter viva a capacidade de

trabalho de um indivíduo trabalhador assalariado (mais-valia relativa) é necessário

um intenso processo de subjetivação que é encontrado, fortemente, na disciplina

dos modelos fordista e taylorista de produção.

Ademais, no processo de desenvolvimento do capital, da expansão e

busca de mercados globais (mundiais), o que se encontra são resultados da

fragmentação de diversas etapas do processo do trabalho (etapas do processo de

produção) separadas geograficamente. São processos de trabalho fundamentais

para produzir riquezas que articulam diversas atividades geograficamente

distintas, conforme as características locais e que determinam um mesmo produto,

ou seja, a localidade passa a ser uma singularidade de uma universalidade imposta

pelo capital (na China e em países do terceiro mundo, por exemplo, busca-se a

alta exploração do trabalho, enquanto na Alemanha e outros países de capitalismo

avançado, a alta tecnologia) gerando nessas localidades uma necessidade de um

tipo de trabalho e de controle diferenciados. Quais são, portanto, as conseqüências

da adoção dos novos processos de produção do trabalho e dos novos mecanismos

de controle?

Ricardo Antunes aponta sete importantes conseqüências dessas

transformações nos processos de produção e de trabalho:

- primeiro, “há uma crescente redução do proletariado fabril, que se

desenvolveu na vigência do binômio taylorismo/fordismo e que permanece

diminuindo com a reestruturação, flexibilização e desconcentração do espaço

físico produtivo” (2005, p. 169)

- segundo, “há um incremento do subproletariado fabril e de serviços”

(trabalho precarizado, como os terceirizados, subcontratados, part-time) em

diversas partes do mundo. Inicialmente estes trabalhadores eram imigrantes, mas

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hoje atinge também aqueles especializados e remanescentes da era taylorista-

fordista (2005, p. 169);

- terceiro, aumento do trabalho feminino, absorvido,

preferencialmente, pelo trabalho precarizado e desregulamentado (2005, p. 169);

- quarto, “incremento dos assalariados médios e de serviços” e, em

conseqüência, “um aumento no sindicalismo desses setores” (2005, p. 169);

- quinto, exclusão de jovens e daqueles com idade a partir de 40 anos:

os jovens aderindo aos movimentos neonazistas e os “velhos”, uma vez excluídos

do trabalho, dificilmente conseguem requalificar-se e reingressar-se (2005, p.

169/170);

- sexto, “inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de

trabalho” (2005, p. 170);

- sétimo, expansão, do que Marx denominou de trabalho social

combinado, no qual “os trabalhadores de diversas partes do mundo participam do

processo de produção e de serviços”, contribuindo à intensa utilização do trabalho

precarizado (2005, p. 170).

Por outro lado, os novos métodos de controle e a prisão por

excelência26 – que teve sua função plenamente delimitada, principalmente pelas

historiografias de autores como Michael Foucault (Vigiar e Punir), Dario Melossi

e Massimo Pavarini (Cárcere e Fábrica), George Rusche e Otto Kirchheimer

(Pena e estrutura social), fundamentalmente pela imposição do disciplinamento

como critério de subjetivação à produção e reprodução do capital, tornando-se

funcionalmente aptos no momento em que havia corpos a serem ‘docilizados’ –

perdem, de certa forma, sua missão originária na contemporaneidade flexível a

partir do momento da subordinação real do trabalho ao capital.

A dimensão política dos sistemas de controle podem ser

caracterizadas em dois momentos distintos:

a) aquele do disciplinamento (adestramento) dos corpos na fábrica, no

momento de reprodução ampliada (do incipiente modo de produção capitalista),

26 É bom lembrar que a prisão (não só, mas principalmente), como tecnologia de repressão e dispositivo ideológico, à semelhança da fábrica – esta como mecanismo mais adequado à realização do capital, tanto em razão de sua capacidade de subordinar realmente o trabalho ao capital, como também porque pressupõe intensos processos de subjetivação e imposição de desejos – foi capaz de exercer e se apresentar historicamente como principal instrumento à finalidade de controle social.

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142

que eram necessários ao trabalho, produzindo, portanto, o proletariado (uma

classe de assalariados) e;

b) este, da contemporaneidade, pois recordando a linha de pesquisa

utilizada por George Rusche e Otto Kirchheimer em 1929, em que demonstraram

a relação entre cárcere e fábrica e propuseram a tese (do ponto de vista

criminológico crítico) de que cada sistema de produção descobre o sistema de

punição que corresponde às suas relações produtivas (1999, p. 18), é preciso

analisar os processos de transformação da produção, especialmente com o

aparecimento do novo proletariado e os processos de subjetivação para entender

seus relacionamentos com o funcionamento seletivo do sistema punitivo e sua

afetação nas estratégias de controle social, presentes ao período da acumulação

flexível, bem como os mecanismos pelos quais se busca o controle total da vida

dos corpos.

Os sistemas repressivos, a partir das estratégias de controle da vida

dos corpos, passam a determinar, através da constituição do medo e da indução de

práticas, a necessidade de um sistema penal cada vez mais efetivo (leia-se

autoritário), de mecanismos produtivos específicos, como as privatizações dos

presídios, a venda de equipamentos policiais (armamentos – armas, munições,

treinamento, coletes – veículos, etc.), informatização, tecnologia de busca e

identificação de pessoas (banco de DNA, por exemplo)27, blindagem de carros,

câmeras de segurança, e os lucros a partir da venda de instrumentos de segurança

(empresas de segurança privada, equipamentos de vigilância e controle tais como

pulseiras, chips de controle, rastreadores, etc.), configurando-se um dos

fenômenos mais impressionantes à expansão do capital.

É exatamente este o sentido em que o cárcere permanece vivo, pois

ainda que as características da força de trabalho tenham mudado tão radicalmente

(não havendo mais a grande necessidade do adestramento dos corpos), as

condições econômico-sociais sofreram profundas metamorfoses, chegando-se ao

ponto da imposição de um controle mais intenso e efetivo da vida, alterando 27 A identificação via DNA das pessoas também pode ser objeto de outra análise bem interessante, como aquelas que apontam como um dos mais notáveis mecanismos de controle social, especialmente aqueles dotados de interesses financeiros como, por exemplo, a identificação de pessoas com deficiências genéticas que possam representar prejuízos aos empregadores (as empresas negam um posto de trabalho àqueles que possuem defeitos genéticos) ou de empresas de seguro (as quais negam seguro àqueles que possuem doenças geneticamente identificáveis), etc.,

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também a função das estratégias de controle, isto porque agora o capital além de

utilizar os instrumentos proporcionados pela nova soberania28 (em função das

alterações do modo de produção capitalista), se relaciona perfeitamente à nova

realidade do mercado de trabalho, utilizando-se dos dispositivos e tecnologias de

controle para, não mais (ou, não somente) disciplinar corpos, mas, principalmente

em função da produção de uma enorme massa de excluídos, revitalizar-se em

razão das condições de exploração da mão-de-obra, da precariedade e insegurança

impostas à força de trabalho na nova economia flexível, possibilitando assim, o

direcionamento de políticas penais cada vez mais de caráter excepcional,

estabelecendo íntima relação entre sistema penal e o modo de produção

capitalista.

4.2 A economia política da pena: a relação entre sistema prisional, fábrica e controle social

Com o desenvolvimento das teorias críticas da sociologia,

principalmente norte-americanas, a partir dos anos 60 do século XX –

especialmente a “Teoria do Etiquetamento”29, fundada a partir de duas correntes

fenomenológicas, o interacionismo simbólico e da etnometodologia30 –

representando as novas formas de eugenia, potencializando o surgimento de classes (ou subclasses) discriminadas. 28 Avaliando as transformações e a transição da modernidade ao pós-modernismo, Hardt e Negri (2004, p. 12-15) partem da constatação de que a globalização, por ter proporcionado uma diminuição gradual da soberania dos Estados-Nação, faz com que estes tenham também perdido sua capacidade de regular os fluxos de produção e troca (econômicas e culturais) e sua autoridade sobre a economia. Entretanto, dizem que (como hipótese básica), na verdade, “a soberania tomou nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma lógica ou regra única” que chamaram de Império, ou seja, para eles não há um lugar definido como centro do poder mas, ao contrário, a característica fundamental que é a ausência de fronteiras determina, também, a inexistência de limites ao exercício do poder. Assim, o objeto do governo do Império “é a própria vida social como um todo” e assim ele “se apresenta como forma paradigmática de biopoder”. 29 É de se salientar que esta matriz criminológica é designada na literatura alternativa e sinonimamente por enfoque, perspectiva ou teoria do interacionismo simbólico, labelling approach, etiquetamento, rotulação ou ainda por paradigma da “reação social”, do controle, ou da definição. 30 ANIYAR DE CASTRO (1983, p. 6) identifica que para o construtivismo social as observações estão baseadas em construções mentais, ou seja, a realidade só existe na medida em que é interpretada e em conseqüência apreendida. Outro aspecto importante é que o processo cognoscitivo é construído a partir da subjetividade do observador, sendo, portanto, uma realidade variável. O construtivismo opõe-se ao positivismo, ao ver o mundo como uma realidade em si, cognoscível independentemente da pessoa que o observa, ou seja, uma realidade estática.

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144

desenvolvem-se novas formas de conhecimento criminológico com a finalidade de

explicar os problemas sociais de maneira diferente daquelas apresentadas pelo

paradigma etiológico-determinista, promovendo a negação da ideologia da defesa

social31, o que produz uma ruptura metodológica e epistemológica com a

criminologia tradicional, essencialmente em função da incapacidade desta em

explicar o fenômeno criminal, o que dificultou “por longo tempo a elaboração de

uma teoria do controle social, ou seja, a formação de paradigmas de análises

capazes de interrogar criticamente a dinâmica da reação social e institucional no

confronto em relação ao desvio” (Cf. DE GIORGI, 2002, p. 38)32

A criminologia crítica inicia, então, a partir desse momento – com a

recepção do labelling approach e das teorias do conflito, no âmbito da sociologia

criminal – o desenvolvimento da dimensão do poder, numa perspectiva

materialista da análise dos processos institucionais de controle do desvio, isto é,

de “uma análise capaz de examinar criticamente os labellers (as instituições e as

estratégias do poder punitivo) e também os labelled (aqueles que são os

destinatários imediatos dos labellers)33 (Cf. DE GIORGI, 2002, p. 38).

Partindo do pressuposto materialista é que, a partir do final da década

de 60 e início dos 70, a análise teórica da criminologia crítica (de cunho

materialista) pretendeu examinar, sim, a origem do sistema de controle, sua

estrutura, seus mecanismos de seleção ou, em outras palavras, suas reais funções,

seus mecanismos de criminalização, os quais negam o mito do direito penal

igualitário, pretendendo construir uma teoria econômico-social dos

comportamentos socialmente negativos e da criminalização.

Para De Giorgi (2002, p. 39) a investigação da criminologia crítica

segue em duas direções:

a primeira é constituída por um estudos históricos que descrevem o papel exercido pelos sistemas produtivos na afirmação histórica das relações de produção capitalistas. Uma história da pena, que até aquele momento era representada como um progresso contínuo da civilização jurídica em direção

31 As teorias fundadas no paradigma da reação social promovem a reconstrução dos diversos princípios da ideologia da defesa social, como o ‘princípio da legitimidade’, ‘princípio do bem e do mal’, etc. Para entender os argumentos, importante observar Andrade (1997, pp. 200 – 202). 32 “(...) per lungo tempo lélaborazione di reorie del controllo sociale, ossia la formazione di paradigmi di analisi capaci di interrogare criticamente le dinamiche di reazione sociale e instituzionale nei confronti della devianza.” 33 “(...)di un’analisi capace cioè de isaminare criticamente i labellers( le instituzioni e le strategie del potere punitivo) oltre che i labelled (coloro che ne sono i destinatari immediati)."

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à racionalidade e à humanização da punição, agora é descrita como uma concatenação de estratégias com as quais a ordem capitalista impôs, no tempo, suas formas peculiares de subordinação e repressão de classe. Já a segunda direção de investigação se orienta para as práticas contemporâneas dos sistemas de controle e, sobretudo, do dispositivo carcerário. A análise se concentra, aqui, no papel desempenhado pelos aparelhos repressivos em relação às dinâmicas econômicas atuais e, em particular, em relação ao funcionamento do mercado de trabalho nas sociedades industrializadas.34

Sob este novo enfoque, toda caracterização trazida pela criminologia

clássica fica à deriva, pois seu objeto, caracteristicamente baseado num modelo

estático e descontínuo de abordagem do comportamento desviante, é substituído

por um modelo dinâmico e contínuo que busca, através da análise das

transformações econômicas, entender os mecanismos de controle social. Para De

Giorgi (2202, p. 40) “a penalidade se inscreve num conjunto de instituições

jurídicas, políticas e sociais (o direito, o Estado, a família), que se consolidam

historicamente em função da manutenção das relações de classe dominantes”35, ou

seja, seria preciso, para preservação das bases materiais à dominação, a

cientifização do conhecimento do controle do desvio. O Direito Penal, como

poder de classe e instituição de controle, contribui para ocultar as contradições

internas ao sistema de produção capitalista.

Esta leitura da “economia política da pena” tem importância

fundamental para entender o motivo “jurídico” da proporcionalidade entre dano

ao bem tutelado e pena (punição medida em tempo) aplicada. Esta orientação,

inaugurada pelo pensamento de E. B. Pasukanis, sobre a identidade da pena com o

mercado de trabalho, é trazida com a análise do entendimento sobre o direito,

mais especificamente sobre o direito como forma necessária à consecução dos

objetivos da sociedade capitalista, especialmente pelo desenvolvimento das forças

produtivas e as relações dali originadas. Assim é que, para Pasukanis, o direito

34 “La prima à constituita da un insieme di studi storici che descrivono il ruolo esercitato daí sistemi punitivi dell`affermazione storica dei rapporti di produzione capitalistici. Una storia della pena che sino a quel momento veniva rappresentata come un progresso continuo della civiltà giuridica verso la razionalità e l’umanizzazione della punizione, ora viene descritta come una concatenazione di strategie com le quali ‘ordine capitalistico há imposto nel tempo le proprie peculiari forme di subordinazione e repressine di classe. La secontda direzione di indagine si orienta invece verso le pratriche contemporanee dei sistemi di controlle e soprattutto del dispositivo carcerario: ‘analise si concentra Qui sul ruolo esecitato dagli apparati repressivi rispetto alle dinamiche economiche attuali e in particolare rispetto al funzionamento del mercato del lavoro nelle società industrializzate.” 35 “La penalità si inscrive cioè in un complesso di istituzioni giuridiche, politiche e sociali (il diritto, lo stato, la famiglia) che si consolidano stocicamente in funzione della conservazione dei rapporti di classe dominanti”.

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penal (e a pena) deve ser, primeiramente, visto sobre o pano de fundo da

equivalência, ou seja, a idéia puramente jurídica, é dizer, suas fontes são

encontradas na forma mercantil das relações sociais. Para ele, o delito pode ser

considerado como um contrato mercantil, ou “uma variedade particular de

circulação, na qual a relação de troca, a relação contratual, é fixada pela ação

arbitrária de uma das partes. A proporção entre delito e separação igualmente se

reduz a uma proporção de troca” (1989, p. 146).

Pasukanis (1989, p. 146 e segs.) parte da elaboração teórica de

Aristóteles sobre a “igualitarização na troca” para chegar ao princípio de

retribuição de equivalentes. É necessário fazer, então, uma distinção inicial entre

igualitarizações voluntárias e involuntárias: enquanto as primeiras envolvem as

relações de compra, venda, etc., as segundas abrangem “as diferentes modalidades

de delito, que acarretam sanções a título de equivalentes específicos”.

A contribuição de maior relevância trazida neste texto de Pasukanis é

sua percepção e análise que faz da relação entre equivalente e valor, precisamente

no momento em que relaciona a idéia jurídica de equivalência, como a

possibilidade de realizar a troca, sem que esta (troca) esteja absolutamente

suplantada pela reparação. Isto é possível ser visto no sistema penal quando o

elemento de troca equivalente do dano produzido à vítima é a vingança, ou seja,

“de fenômeno puramente biológico, a vingança se transforma em instituição

jurídica desde que se liga à forma de troca equivalente, da troca mensurada por

valores” (Cf. PASUKANIS, 1989, p. 147). Não é preciso, portanto, o exato

equivalente ao dano produzido, ou melhor, basta à consecução da vingança, à

satisfação do desejo para que a vítima (direta, familiares ou mesmo a sociedade)

sinta-se correspondida. Esta é a medida imposta pelo sistema penal à sociedade, o

qual servirá como autêntico mecanismo de repressão e contenção das massas

excluídas e revoltosas.

Esta representação fixa, portanto, os limites do sistema penal, isto

porque se é verdade que este sistema nada mais é do que um aparelho reprodutor

das desigualdades sociais, conseqüência direta das políticas penais impostas à

garantia do modo de produção, de controle e de exclusão social, sem dúvida isso é

resultado do tipo de sociedade produzida pelo modo de produção capitalista, ou

seja, uma sociedade de classes que, em sua essência, produz desigualdades e

exploração ou, como diz Menegat (2003, p. 219) “a barbárie não é inevitável, mas

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é a conseqüência lógico-histórica do livre desenvolvimento do capital”. É

exatamente neste sentido que Pasukanis diz que “somente o desaparecimento

completo das classes permitirá criar um sistema penal do qual será excluído

qualquer elemento de antagonismo de classe” (1989, p. 153).

Pasukanis mostra que a luta pela sobrevivência (ele traz o exemplo da

legítima defesa) assume a condição jurídica quando se introduz o princípio da

equivalência, isto porque esta troca está encoberta sob o pano de fundo dos

contratos, ganhando, pois, a conformação jurídica. Fazendo parte da

superestrutura jurídica, o Direito Penal submete à sociedade a esta forma de troca

de equivalentes, resultando na idéia de responsabilidade penal como meio de

reparação ao dano provocado. Neste sentido é que Pasukanis afirma (1989, p.

158):

A pena proporcional à culpa representa fundamentalmente o mesmo que a reparação proporcional ao dano. (...) A privação da liberdade, ditada pela sentença do tribunal, por um certo período de tempo é a forma específica pela qual o direito penal moderno, burguês-capitalista, realiza o princípio da reparação equivalente. Esta forma está inconscientemente, embora profundamente, ligada à representação do homem abstrato e do trabalho humano abstrato avaliados em tempo.

Assim é que a relação entre reparação do dano e tempo do indivíduo

pode influenciar, diretamente, as relações sociais existentes sendo, portanto

“necessário que todas as formas concretas de riqueza social estivessem reduzidas

à forma mais abstrata e mais simples – o trabalho humano medido em tempo” (Cf.

PASUKANIS, 1989, p. 159).

Importante contribuição é dada por Dario Melossi e Juarez Cirino dos

Santos ao interpretarem a análise feita por Pasukanis sobre a identidade da pena

com o mercado de trabalho. Para Cirino dos Santos (2005, p. 22), “a importância

da teoria de PASUKANIS está em situar a retribuição equivalente no fecho da

transição histórica do ‘sujeito zoológico’ da vingança de sangue para o ‘sujeito

jurídico’ da pena proporcional: a troca igual exclui a vingança posterior, primeiro

pelo talião, mais tarde pela composição e, finalmente, se consolida como

retribuição equivalente medida pelo tempo de liberdade suprimida – conforme o

critério de valor da sociedade capitalista” (grifos no original).

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Aqui reside outro ponto fundamental na discussão da “economia

política da pena”, qual seja, a relação entre punição e mercadoria como

fenômenos de troca de equivalências. É muito interessante perceber, sob o ponto

de vista da dialética marxista, a correspondência entre, de um lado, a análise

econômica da extração da mais-valia, como fundamento do modo de produção

capitalista, representando a valoração da força de trabalho, medido pelo tempo, e

recomposta (como equivalente) pelo salário recebido pelo trabalhador e, de outro,

a análise jurídica da pena como correspondência entre o dano praticado e o tempo

de permanência na prisão.

A conseqüência dessa análise é, conforme Juarez Cirino dos Santos

(2005, p. 22) a percepção da “pena como retribuição equivalente da sociedade

capitalista, no sentido de valor de troca que realiza o princípio da igualdade do

Direito, corresponde à troca de força de trabalho pelo equivalente salarial no

mercado, que reduz toda riqueza social ao trabalho abstrato medido pelo tempo, o

critério geral do valor na economia e no Direito”. Assim é que o sistema penal

(em especial a instituição da prisão) revela seu viés ideológico ao demonstrar seu

objetivo, na maioria das vezes oculto, de produzir uma massa de excluídos e

marginalizados do sistema, permitindo, contudo, configurar a imagem necessária

da exata equivalência da pena – medida pelo tempo de liberdade suprimido do

indivíduo – com o dano produzido ao “bem jurídico tutelado”, deixando-se

velada, portanto, tanto a noção de prisão como instituição total, apta a produzir

“corpos dóceis e úteis” – para utilizar a linguagem de Michael Foucault – como

também o sistema de produção capitalista (no qual a fábrica é a referência mais

contundente) e a idéia de salário como compensação exata e equivalente do

trabalho realizado, ocultando (mais uma vez) o caráter instrumental da prisão e o

falso pressuposto da existência de sujeitos livres, deixando velada a expropriação

da mais-valia e a subordinação e dependência do trabalhador ao sistema

produtivo, resultando, na verdade, no aprisionamento do trabalhador à fábrica, aos

moldes do condenado aos estigmas da prisão.

Neste momento histórico, a função desempenhada pela prisão foi, sem

dúvida, ao produzir as desigualdades, fomentar a constituição e manutenção

estrutural da escala vertical da sociedade, criando os sujeitos desta relação, isto

porque as relações existentes no modo de produção capitalista evidenciam esta

desigualdade porque está, de um lado, “ligada estruturalmente à separação entre

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propriedade da força de trabalho e dos meios de produção e, de outro lado, à

disciplina, ao controle total do indivíduo requerido pelo regime de trabalho na

fábrica e, ademais, pela estrutura de poder que assumiu o modelo da fábrica” (Cf.

BARATTA, 1993 a, p. 741)36.

4.3. A sociedade contemporânea como sociedade de controle

É perfeitamente possível, em uma brevíssima referência histórica,

identificar, dentro dos propósitos da pesquisa, as estratégias de poder da

contemporaneidade como sociedades de controle, relacionando-as ao modo de

produção vigente e à idéia de disciplina. Esta relação é possível, ao conectar os

processos de produção fabril e a finalidade de coisificar o indivíduo, através da

docilização e adestramento dos corpos, tendo como um de seus marcos mais

importantes, como visto, a relação entre cárcere e fábrica.

Através de diversas pesquisas realizadas com este objetivo (relação

entre cárcere e fábrica), foi possível dar uma explicação materialista da origem da

prisão, relacionando o surgimento do capitalismo com as penas privativas de

liberdade, pois a partir do nascimento da burguesia do Estado monárquico

absolutista – e o surgimento, em toda a Europa, durante os séculos XV e XVI, de

uma legislação extremamente cruel, que proporcionou o aparecimento da

‘vagabundagem’ – constatou-se que a pena serviu, no mais das vezes, ao

disciplinamento à nova condição que se apresentava aos proletários emergentes

(aqueles camponeses expulsos de suas terras, que nada mais tinham a não ser sua

força de trabalho).

Rusche e Kirchheimeir (1984, p. 46) afirmam que a adoção de um

método mais humano de repressão e a instituição das casas de correção

constituíram o resultado de uma mudança das condições econômicas e, com a

ajuda da máquina legislativa e administrativa, o Estado utilizou os contingentes de

força de trabalho, que encontrou à sua disposição, para a realização de seus

objetivos. No mesmo sentido Dario Melossi e Massimo Pavarini (1987, p. 19)

36 Tradução livre do autor da presente pesquisa: “(...) ligada estructuralmente a la separación de la propiedad de la fuerza de trabajo de la de los medios de producción, y de otra parte, a la disciplina, al control total del individuo requerido por el régimen de trabajo en la fábrica y más de la estructura de poder, en una sociedad que ha asumido el modelo de la fábrica.”

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fizeram a análise também a partir da relação capital/trabalho, ou seja, a

investigação apontou que tais transformações ocorreram a partir da mudança do

modo de produção feudal para o modo de produção capitalista. A análise é muito

mais funcional do que física/estrutural, ou seja, eles buscaram não a primeira

construção física de privação de liberdade, mas a origem da instituição carcerária,

encontrando-a no capitalismo e na conseqüente aparição do proletariado.

Como visto, a prisão surgiu no tempo com finalidade não judicial,

contribuindo, sobremaneira, aos postulados já levantados nas obras de Rusche e

Kirchheimer, e de Melossi e Pavarini e de Michael Foucault, segundo o qual a

prisão se constituiu fora do aparelho judiciário, ou seja, passou a existir no

momento em que foram elaborados os processos para repartir os indivíduos, fixá-

los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar-lhes o máximo de tempo e

forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los

numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de

observação, registro e anotações, constituir sobre eles um saber que se acumula e

se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis

e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão,

antes que a lei a definisse como pena, por excelência.

Assim é que, em Vigiar e Punir, Foucault enaltece o valor da pesquisa

de Rusche e Kircheimer, uma vez que a mesma é lídima para exortar a tradicional

ilusão de que a penalidade seria uma modalidade de reprimir os delitos, pois os

autores conseguiram estabelecer “a relação entre os vários regimes punitivos e os

sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa economia servil, os

mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-obra suplementar – e

constituir uma escravidão ‘civil’ ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo

comércio” (Cf. Foucault, 1987, p. 27).

É diante do modo de produção capitalista e da “fabricação” de

indivíduos desiguais que resulta, no recrutamento de indivíduos marginalizados

(excluídos e diferenciados) pelo sistema penal tem propósitos determinados,

dentro e fora da lógica do mercado de trabalho, pois, de certa forma, como afirma

Alessandro Baratta (1983 a, p. 743; 1987, p. 626), o cárcere representa a

consagração definitiva de uma carreira criminal e, muito mais do que isso,

supostamente, a resposta de uma sociedade honesta a uma minoria criminosa, é

dizer, a criação de situações de fato que disciplina e obriga os incluídos no sistema

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151

penal a se programar, viver, e, mais importante, sentirem-se pertencerem à

situação de desigualdade que lhes é apresentada, isto porque é o próprio sistema

punitivo que se apresenta como violência útil do ponto de vista da reprodução do

sistema social existente e, portanto, do interesse dos detentores do poder, com a

finalidade de manutenção das relações de produção e distribuição desigual de

recursos.

O funcionar do sistema penal tem sua lógica social invertida a partir

do momento em que não cumpre as suas determinações prometidas (pois sua

estrutura e modo de funcionamento são inadequados para desenvolver as funções

declaradas pela ideologia da defesa social e utilitárias da pena), mas cumpre,

exemplarmente, o disciplinamento das subjetividades, uma vez que o indivíduo,

ao ingressar na prisão, torna-se mais vulnerável aos efeitos da estigmatização,

contribuindo, sensivelmente, à fabricação de novos sujeitos mais flexíveis, menos

desejosos e muito mais que disciplinados.

O questionamento, que deve nos nortear de agora em diante, está

muito além da lógica da disciplina: o que se pode esperar, na contemporaneidade,

da relação entre modo de produção e sistema penal (Políticas de Segurança

Pública, sistema carcerário, opressão e dominação via capital, etc.), em função das

características pretensamente universais das globalizações (econômicas, políticas,

culturais, etc.) e suas conseqüências, ou seja, da ocorrência de todos os tipos de

violência, tanto material quanto simbólica, que atravessam nossa sociedade?

É possível, portanto, através de Foucault, analisar e circunscrever as

sociedades disciplinares dos séculos XVIII e XIX e verificar sua origem dos

meios de confinamento (hospitais, prisões, fábricas, asilos, escolas, família), e

perceber também que este modelo de sociedade (disciplinar) teria sido sucessora

de uma sociedade de soberania e que, em função de encontrarmo-nos numa “crise

generalizada de todos os meios de confinamento”, como descreve Deleuze (1992,

pp. 220), estaríamos em um momento de instalação de novas forças denominadas

sociedades de controle, as quais “substituiriam” aquelas.

Para Deleuze (1990, p. 222), as sociedades disciplinares são

caracterizadas por dois pólos: a “assinatura que indica o indivíduo, e o número de

matrícula que indica sua posição numa massa”, permitindo ao poder ser, ao

mesmo tempo, massificante e individuante, enquanto nas sociedades de controle o

essencial é a cifra, que marca o acesso ou a rejeição à informação. As

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conseqüências são marcantes, isto porque deixa de existir o indivíduo para realizar

o dado. O indivíduo é apenas um (indivisível) na estatística, e a massa passa a ser

uma amostra. Em sua análise, Deleuze mostra que a transição capitalista do século

XIX à contemporaneidade também corresponde (como não poderia deixar de ser)

ao modelo de sociedade vigente, não porque as máquinas sejam determinantes,

mas sim em função de que é a própria forma social que faz refletir o modo pelo

qual ela será desenvolvida.

Diferentemente das antigas sociedades (com maquinaria mais

simples), as sociedades disciplinares dispunham de “equipamentos máquinas

energéticas” enquanto nas sociedade de controle os computadores estão em

evidência. Isto reflete que “não é uma evolução tecnológica sem ser, mais

profundamente, uma mutação do capitalismo” (Cf. DELEUZE, 1990, p. 223), ou

seja, uma verdadeira adequação do modo de produção às novas necessidades.

Continua Deleuze dizendo que, enquanto o capitalismo do século XIX era de

concentração, voltado à produção e de propriedade, a fábrica erigida como o

instrumento adequado à realização do capital, tinha o capitalista como proprietário

dos meios de produção e o mercado conquistado por especialização, colonização

ou por redução dos custos de produção; no capitalismo contemporâneo a produção

é relegada ao Terceiro Mundo, ou seja, é um capitalismo de sobre-produção (não

há compra de matéria-prima para vender o produto acabado, mas a compra é do

próprio produto acabado ou de forma fragmentada para montá-lo), no qual o que

se pretende é vender serviços e o que se quer comprar são ações.

Para Deleuze (1990, p. 224-225), diante da lógica da sociedade

contemporânea de controle, o capitalismo conseguiu produzir e “manter como

constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a

dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que

enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e

favelas”. A crise da sociedade disciplinar permitiu antever (e hoje isto é uma

realidade) a substituição dos mecanismos disciplinares – especialmente o

confinamento – pela implantação dos instrumentos controladores: no regime do

sistema penal e nas prisões (mais ainda), por exemplo, as penas são substituídas

pela utilização de chips e coleiras de localização, pelo monitoramento das cidades

com câmeras de grande amplitude (o mesmo ocorrendo nos regimes das escolas,

dos hospitais, de empresas, etc.), o que nos permite compreender e perceber a

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razão da “necessidade” de se ter crises nas instituições: “implantação progressiva

e dispersa de um novo paradigma de dominação”.

4.3.1. A legitimação da dominação pelo controle

Assim, antes mesmo de proceder a análise da legitimação da

dominação pelo controle e investigar sua conseqüências (no próximo ponto), é

preciso fazer uma pequena ponderação de ordem metodológica em relação ao uso

do termo “legitimação”, isto porque é preciso definir seu conceito a fim de

introduzir o tema da dominação.

Deixaremos de lado o conceito de “legitimação” em seu sentido

jurídico e nos fixaremos, como apresenta Castor Ruiz (2004 b, p. 44), numa

linguagem própria das ciências sociais, “no sentido de uma aceitação social de

uma determinada ordem vigente que gera um alto grau de consenso e

consentimento”, assegurando a obediência dos indivíduos sem a utilização da

força, uma vez que o “sinuoso do poder manifesta-se na potencialidade que ele

tem de imbricar-se com a dominação e desenvolver-se como dominação legítima”

e este poder de controle, hoje, se dá, não mais pela força, autoritarismo ou pela

violência, mas sim pela indução das práticas individuais.

Como visto, não é possível compreender o tema da legitimidade sem

levar em consideração o fundamento do poder e ultrapassar as concepções

tradicionais sobre a origem do poder: o pensamento naturalista grego (poder de

origem natural), a concepção teológica medieval (o poder emana de Deus) e a

concepção moderna contratual (principalmente em Hobbes e Rousseau), isto

porque “as múltiplas faces do poder lhe permitem inserir-se coativamente nas

práticas de dominação sem ser percebido como coação” demonstrando a

capacidade de transmutação que o poder tem e que lhe confere um roupagem de

legitimidade (Cf. RUIZ, 2004 b, p. 44). O controle, como dominação legítima,

deve ser melhor analisado.

Diante da fluidez proporcionada pela fragmentação dos indivíduos e

flexibilização do sistema produtivo na contemporaneidade, torna-se muito difícil o

controle das massas, tornando-o cada vez mais difuso e intenso (ao contrário de

extenso) ou seja, as pessoas sentem-se controlados pela possibilidade de estarem

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sendo vigiadas continua e permanentemente, uma vez que este controle não

projeta sombras definidas pois seu espectro está muito disseminado nos diversos

dispositivos de controle e poder.

Assim, o que se percebe é a alteração que ocorre na sociedade

contemporânea, especialmente em relação às tecnologias de poder, uma vez que

estamos presenciando uma nova revolução copernicana, permitindo que estes

dispositivos produzam necessidades as quais equivalem aos objetivos estruturais

do modo de produção da sociedade, ou seja, os pressupostos de produção e

reprodução do capital (que levam à busca do mercado mundial global) é o

responsável pela busca incessante, e a criação dos modos, pelos quais os

indivíduos realizam suas necessidades.

É exatamente esta busca que determina os parâmetros legais (de

legitimação) das proibições e das permissões, do reconhecimento da existência

(ou não) de outra cultura, de outro lugar e outras pessoas. É esta instância – o

domínio do mercado – que terá o monopólio da produção normativa e o centro das

decisões políticas que determinará a existência ou não, a necessidade ou não, a

possibilidade ou não, do certo e do errado, de se reconhecer ou não a exclusão, a

pobreza, a indiferença, a violência, a injustiça, o dano ambiental, a exploração do

trabalho, exploração sexual, exploração infantil, etc. Afinal, qual é o limite desse

controle? Serve a quem este controle? Tentemos responder estas perguntas.

Definitivamente, estamos vivendo um paradigma cuja dominação é

exercida, no mais das vezes, não pelo autoritarismo, pela força ou violência física,

mas se implementa pela tentativa de indução da produção dos desejos, pela

produção de subjetividades, pela destruição da divulgação dos conflitos. É preciso

que todos se sintam muito mais que dominados, mas pensando que fazem parte do

sistema e pensando conforme o sistema.

4.3.2. As tecnologias de poder e as formas de controle

Para Foucault (1999, pp. 297/299) são duas tecnologias de poder –

tecnologia disciplinar do corpo e tecnologia regulamentadora da vida – que,

apesar da defasagem cronológica (século XVIII e XIX respectivamente), são

categorias sobrepostas, pois como não estão no mesmo nível (são dois conjuntos

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de mecanismos, um disciplinar e outro regulamentador), não se excluem e podem

ser articuladas uma a outra, ou seja, num primeiro momento (final do século XVII

e início do XVIII) uma tecnologia disciplinar que cumpre a função de assegurar a

distribuição espacial dos corpos individuais e a organização, em torno desses

corpos individuais, de todo um campo de visibilidade e, num segundo momento (a

partir da segunda metade do século XVIII), sem excluir a tecnologia disciplinar,

essa técnica de poder passa, cada vez mais, a incluir a vida dos homens aos

cálculos de poder e a política se transforma em biopolítica e biopoder37.

A utilização das novas técnicas de poder, acentuadamente analisada

por Giogio Agamben, está diretamente relacionada com as novas formas de

controle e indiferenciação do sujeito, ou seja, está relacionada com os mecanismos

estatais de violência (estrutural e institucional), os quais desempenham

fundamental papel nos objetivos de controle e dominação.

Este estratagema interfere, substancialmente, na condição de vida da

população, em especial à vida política. Giorgio Agamben (2004, p. 12/13) afirma,

tomando-se como exemplo o caso do Estado nazista, que “Hitler promulgou, no

dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que

suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades

individuais”, demonstrando que este modelo de interferência Estatal tende, cada

vez mais, a se tornar como modelo de governo. Para Agamben isto pode ser

definido como a instauração, por meio do “estado de exceção” de uma “guerra

civil legal”, podendo ser caracterizado como o totalitarismo38 moderno. Agamben

aponta como característica principal dessa guerra civil legal, a possibilidade de 37 No item 4.2.1 do Capítulo IV da presente pesquisa (Os novos espaços e as novas estratégias de poder: o biopoder), o tema “biopoder” terá um maior detalhamento e um cuidadoso relacionamento com uma genealogia dos poderes na sociedade contemporânea. 38 Cabe aqui uma breve reflexão sobre a categoria “totalitarismo”, isto porque é possível dar a ela diversas definições como o faz Domenico Losurdo em uma importante crítica, aduzindo ser uma categoria polissêmica, razão pela qual propõe sua redefinição, tendo em vista que seu defeito fundamental seria o de “transformar uma descrição empírica, relativa a certas categorias determinadas, numa redução lógica de caráter geral” (2003, p. 76). Por isso, sua crítica reside na forma que se pretende disseminar o conceito de “totalitarismo”, questionando se a “teoria costumeira do totalitarismo não terá se transformado ela própria numa ideologia de guerra, e da guerra total, contribuindo a alimentar ulteriormente os horrores que pretende, no entanto, denunciar e caindo assim numa trágica contradição performativa” (2003, p. 79). Assim, pretendendo dar significado mais preciso ao termo, especialmente quando a referência estiver sendo tratada do “domínio totalitário”, este significará, aos propósitos da presente pesquisa, o poder pelo qual a legitimada instância terá condições de decidir sobre direitos fundamentais do indivíduo, especificamente o direito sobre a vida e a liberdade, utilizando-se da violência, da força e do medo, mas sempre através dos processos de subjetivação na tentativa da indução das práticas

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eliminar, não só, os inimigos políticos mas também categorias inteiras de cidadãos

que não estejam integrados (ou não sejam integráveis) no sistema. O significado

biopolítico do estado de exceção é a anulação radical do status jurídico do

indivíduo, “produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e

inclassificável” (AGAMBEN, 2004, p. 14).

A situação ocorrida na Alemanha nazista durante 12 anos – vigência

do Decreto para a proteção do povo e do Estado, o qual suspendia por tempo

indeterminado os artigos da constituição de Weimar relativos às liberdades

individuais (pessoal, de expressão e de reunião), baseado implicitamente no artigo

48 da Constituição Alemã – é exemplificativa, pois “o estado de exceção cessa,

assim, de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo factício e

tende a confundir-se com a própria norma” o que levou alguns juristas a dizer que

era uma situação desejada, pois seria necessário, através da suspensão dos direitos

fundamentais, a existência do estado de exceção, com vistas à instauração do

Estado nacional-socialista (AGAMBEN, 2002, p. 175).

Na medida que o estado de exceção é, de fato, “desejado”, ele inaugura um novo paradigma jurídico-político no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente. O soberano não se limita mais a decidir sobre a exceção, como estava no espírito da constituição de Weimar, com base no reconhecimento de uma dada situação factícia (o perigo para a segurança pública) (Cf. Agamben (2002, p. 177)

Hannah Arendt, ao observar os campos de concentração, reconheceu

que lá vige o princípio que rege o domínio totalitário, isto “somente porque os

campos constituem, no sentido que se viu, um espaço de exceção, no qual não

apenas a lei é integralmente suspensa, mas, além disso, fato e direito se

confundem sem resíduos, neles tudo é verdadeiramente possível” (AGAMBEN,

2002, p. 177). O campo é o local da materialização e realização do estado de

exceção de forma normalizada, isto é, se lá tudo é possível, não há lugar para

distinções: certo do errado, lícito do ilícito, exceção e regra, etc. Portanto, no dizer

de Agamben (2002, p. 178), “na medida que os seus habitantes foram despojados

de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também

sociais. Na contemporaneidade é possível dizer que o “mercado” é a instância legítima de decisão política da vida dos indivíduos, ou seja, é a instância que possui o “domínio totalitário”.

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o mais absoluto espaço biopolíco que jamais tenha sido realizado, no qual o poder

não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação”. Da mesma forma

que os judeus em Auschwitz, os prisioneiros de Guantánamo39 perderam

totalmente sua condição humana. Esta é a importância de estudar as condições

biopolíticas em Auschwitz, a fim de analisar o que e como vivemos atualmente.

Este domínio totalitário revela-se assustador. Isto porque o discurso à

imposição de práticas totalitárias repetem-se. Para enfrentar e superar crises

econômicas e políticas, nada melhor que suprimir direitos e garantias: o resultado

pode ser a necessidade do controle da vida. Este controle revela-se em diferentes

estágios e meios. O discurso “em defesa do povo e do Estado” pode,

tranqüilamente, impor condições de controle que escapam da noção de

anormalidade, tais como os novos chips que são inoculados nos selecionados pelo

sistema penal, marcas como as pulseiras eletrônicas de hoje ou as tatuagens dos

39 A Baía de Guantánamo é um território cubano (localizado ao sul da ilha), mas desde 1903 é alugada pelo governo dos Estados Unidos. Desde janeiro de 2002 o Centro de Detenção recebe pessoas acusadas (na sua maioria, não formalmente) de estarem envolvidas com práticas terroristas. Já passaram, nesse período, aproximadamente 770 pessoas. Hoje o Centro de Detenção de Guantánamo tem, pelo menos, 395 pessoas presas indefinidamente, sendo que destas, entre 60 a 80 estão sendo processadas por um Tribunal Militar, 85 serão, provavelmente, enviados aos seus países de origem e outros 200 estão numa situação ainda mais delicada, uma vez que não sabem, sequer, por exemplo, qual acusação que lhes é imputada, qual a corte que os julgará, qual lei lhes será aplicada e norteará o julgamento (se houver), nem mesmo qual o tratamento que lhes será dado (inimigo, criminoso inimigo, combatente inimigo, prisioneiro de guerra, ou ainda de “combatentes inimigos ilegais”, termo pelo qual impede o acesso a qualquer tribunal e aos preceitos da Convenção de Genebra), situando-os, verdadeiramente, num “limbo existencial”, à imagem e semelhança do que Giorgio Agamben fala: verdadeiros homo sacer, absolutamente indefinidos e indeterminados. No dia 02 de abril de 2007 a Suprema Corte americana rejeitou recurso de prisioneiros de Guantánamo que requeriam o direito de apresentar seu caso ante um Tribunal Federal para apelar de sua detenção sem acusação judicial formal. Mesmo não sendo uma decisão definitiva, a decisão foi considerada uma vitória do governo norte americano. Toda celeuma está centrada na possibilidade, ou não, desses seres humanos lá detidos (pessoas, cidadãos, sujeitos, homo sacer, etc.) serem julgados por uma Corte Federal antes do julgamento de uma Corte Militar de exceção. A classificação dada pelo governo norte americano de “combatentes inimigos” impede que eles sejam julgados pelas corte federais. Frise-se, por oportuno, que o julgamento dos presos ocorrerão conforme um novo “Manual para Comissões Militares” que prevê liberdade à valoração de provas, ainda que colhidas por meio de coação ou especulação. Na luta do governo norte americano para restringir aos prisioneiros de Guantánamo o acesso à Justiça, em outubro o Presidente George Bush assinou uma lei que suspende o direito dos prisioneiros de pedir o Habeas Corpus, para que o governo tenha que apresentar provas que justifiquem sua prisão. Estas informações foram capturadas a partir de leituras em diversos jornais de circulação nacional, bem como jornais virtuais, especialmente as seguintes reportagens: Prisão de Guantánamo completa cinco anos em meio a protestos. Caderno Mundo de 11 jan. 2007. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u103691.shtml. Acessado em 04 de abril de 2007; Pentágono aceitará depoimentos obtidos sob coação em Guantánamo. Caderno Mundo de 18 de janeiro de 2007. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u103906.shtml. Acessado em 04 de abril de 2007 e EUA impedem presos de Guantánamo de apelar em tribunais federais. Caderno Mundo de 04 de abril de 2007. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u106105.shtml. Acessado em 04 de abril de 2007.

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campos de concentração, etc., controle de identificação da retina, banco de DNA,

câmeras de vigilância, etc., ainda que estas práticas privem o sujeito de seus

direitos. É o controle total dos corpos.

Houve alguma coisa além da margem do rio que devemos observar

cuidadosamente. Algo está muito próximo, mas também, muito bem camuflado. O

discurso mais recente sobre a eficácia das medidas punitivas, efetivadas pelo

sistema penal, em especial aquelas com finalidade de prevenir a transgressão da

norma, transitam pela necessidade de dar maior eficácia ao cumprimento das

penas privativas de liberdade, ainda que para isso haja supressão de direitos e

garantias individuais.

Será que a análise materialista da prisão – formulada especialmente

por Foucault, George Rusch e Otto Kirchherimer, Dario Melossi e Maximo

Pavarini – demonstrando a estreita vinculação do surgimento da prisão à alteração

do modo de produção (do modo de produção feudal para o modo de produção

capitalista) teria hoje perdido sua finalidade, mesmo porque a classe operária

(trabalhadores braçais) está cada vez mais levantando os braços e implorando para

que sejam explorados? Perdeu a prisão, em tempos de globalização, de políticas

de tolerância zero, sua função?

Verdade e mentira (ou engano). Ora! Da mesma forma que o cárcere

cumpriu, exemplarmente, sua função, hoje, também, permanece a serviço do

poder: agora não mais adestrando os corpos, disciplinando-os mas,

simbolicamente, a prisão realiza a necessária transformação do preso em fera

indomável, que habita as ruas, não sendo estas (as ruas) local seguro para o

trânsito de pessoas de bem. O ideal (tipo de sociedade) é ficar em casa, diante das

telas do computador, vivendo a vida virtual, especialmente consumindo. É a nova

relação biopolítica do indivíduo com o Estado. O cidadão ideal é aquele que

consome.

Para Bauman (1998, p. 22/25) da mesma forma que o sonho da pureza

circulou os ares do nazismo e do comunismo pois “primaram por impelir a

tendência totalitária a seu extremo radical – o primeiro, condensando a

complexidade do problema da “pureza”, em sua forma moderna, no da pureza da

raça, o segundo no da pureza de classe”, no mundo atual há outra prova de pureza,

qual seja, a capacidade de ser seduzido pelo mercado consumidor. Aqueles que

não conseguem entrar no jogo devem ser eliminados e a melhor forma de resolver

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os problemas socialmente produzidos é criminalizá-los. A busca de pureza social

é alcançada com eficientes métodos totalitários, especialmente tentando controlar

determinadas classes sociais, denominadas perigosas.

A reflexão, dentro de perspectivas muito precisas, especificamente no

núcleo da relação vinculante entre democracia, direitos humanos e

desenvolvimento humano, deve demonstrar profundos laços existentes ante o

compartilhamento de posturas éticas e políticas comuns. O centro é a idéia de

sujeito livre, ou seja, a idéia de autonomia, estreitamente vinculada à “capacidade

de direito”, não somente ser titular da ação, mas também ser responsável por suas

conseqüências.

A idéia de cidadania está vinculada a este sujeito livre (autônomo) que

encontra na democracia seu maior referencial, pois este sujeito (não em uma visão

individual, mas inseridos em comunidades – grupos, nações, etc.) que delibera e

participa é, ao mesmo tempo, consciente e responsável pelas conseqüências de

suas decisões, sobretudo políticas (não de um cidadão passivo, mas um cidadão

ativo).

As constantes demonstrações do individualismo exacerbado – e seu

alcance egoístico – o que se vê é o fruto entre as perversas e complexas relações

intersubjetivas da contemporaneidade com o universo dos direitos humanos.

Contudo, o paradoxo é assustador, pois ao mesmo tempo em que o

desenvolvimento econômico das sociedades capitalistas produziu um mundo

capaz de gerar riquezas sem precedentes na história, a sociedade, estruturada em

classes, não conhece os resultados e as promessas de uma vida melhor, mas, ao

contrário, lhe é negada e sonegada todas as possibilidades de participação,

provocando uma estrutura de terrível desigualdade e polarização social, com o

conseqüente empobrecimento e exclusão de camadas cada vez maiores da

população, causando um progressivo e constante esgarçamento da tecitura social.

As constantes práticas de intolerância – tanto derivada da concepção

de possuir a verdade, como daquela derivada de um preconceito (BOBBIO, 1992.

p. 204) – vivificada pela atuação passiva das instituições do Estado, fincadas na

separação entre sociedade civil e sociedade política, hermética condição das

políticas liberais, a qual exorta ações repressivas cada vez maiores, bem como a

constante e crescente erosão dos afetos e das solidariedades sociais, abalam a

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garantia dos direitos individuais e coletivos, com suas conseqüentes

flexibilizações.

O discurso do medo40 – importante e eficiente tecnologia de controle e

de indução de práticas individuais e coletivas – serve para controlar as pessoas e, a

partir de então, torna-se possível o acesso à vida das pessoas. São as pessoas que

fazem parte desse poder (mesmo que não saibam). Seria melhor dizer: é a

politização do poder da vida, ou ainda, politização do poder de controlar a vida.

Para Bauman (1999, p. 73) “a ‘globalização’ nada mais é que a extensão totalitária

de sua lógica a todos os aspectos da vida” uma vez que os atuais Estados não

possuem liberdade suficiente (entenda-se, neste caso, economia forte, soberania,

etc.) para impor suas condições.

Este sentimento de insegurança e seus consectários, como o pânico,

tem suas raízes cravadas no excesso de individualismo provocado pelo novo

sujeito – ou pelas novas relações intersubjetivas – pois favorece o distanciamento

cada vez maior entre os indivíduos causando-lhes um profundo sentimento de

vazio e solidão. A exacerbada divulgação da violência e, conseqüentemente, do

medo, realiza papel importante nos atuais mecanismos de intervenção estatal, com

a finalidade clara de controle e dominação.

Como se vê, com a utilização dos mecanismos políticos totalitários de

dominação é possível perceber a interferência estatal das práticas políticas em

busca da sociedade ideal, ou seja, limpa de toda sujeira: a partir do controle total

dos corpos é possível eliminar os “consumidores falhos”, restando, tão só, aqueles

aptos a permanecer no jogo. Este é o campo moderno, onde tudo é possível, onde

não há limites: basta ser consumidor. Esta é a sociedade desejada, a sociedade de

consumo.

A violência estatal consubstancia-se, neste momento, com este novo

“contrato social”, não aos moldes de Rousseau nem de Hegel (como tradução da

vontade divina), mas em termos marxianos sobrepondo-se à vontade dos

indivíduos, ancorado na utilização dos instrumentos violentos de dominação, em

detrimento da vontade de uma classe social. O domínio totalitário contemporâneo

pertence ao mercado, que reconhece apenas a linguagem do consumo, não mais a

multifacetada democracia mas o unívoco sentido da mercadoria, não mais a

pluralidade de desejos mas apenas consumidores e não consumidores.

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4.4. A cultura do medo como legitimadora do controle social: a divulgação da violência e a banalização dos direitos e garantias fundamentais

A partir da filosofia política de Thomas Hobbes (1588-1679), é

possível entender como o discurso do medo pode ser identificado e legitimado à

utilização racional do poder repressivo do Estado para conseguir atingir suas

diversas finalidades. A utilização de Hobbes se justifica, pois é com sua obra mais

conhecida – Leviatã, a qual representa a metáfora do grande monstro bíblico que

sufoca o mal com sua cauda – que, na maioria da vezes se fundamenta o discurso

opressivo e autoritário do Estado.

O pensamento de Hobbes, caracterizado pela idéia de ordem na

política, fundado a partir do contrato, é resultado, segundo seus intérpretes, do

destino que foi reservado em sua própria vida. É de notar, em Thomas Hobbes,

que o problema da unidade do Estado é o que mais o incomoda. Partindo desse

ponto (a unidade do Estado), em especial pelo fato da ameaça que as discórdias

religiosas representa e pela disputa pelo controle do poder existente entre a Coroa

e o parlamento, percebe-se, no Leviatã, o constante interesse em mostrar que a

tendência geral de todos os homens é um perpétuo e irrequieto desejo de poder

que cessa apenas com a morte.

Segundo Bobbio (1991, p. 26), Hobbes está aliado a corrente do

pensamento político dominado pela antítese anarquia-liberdade, ou seja, defende a

idéia da unidade contra a anarquia, já que tem receio da dissolução da autoridade,

da desordem que resulta da liberdade de discordar, etc. Bobbio esclarece, sobre T.

Hobbes, que:

O mal que mais teme – e contra o qual se sente chamado a erigir o supremo e inseparável dique de seu sistema filosófico – não é a opressão que deriva do excesso de poder, mas a insegurança que resulta, ao contrário, da escassez de poder. Insegurança, antes de mais nada, da vida, que é o primum bonum, depois dos bens materiais e, finalmente, também daquela pouca ou muita liberdade que a um homem vivendo em sociedade é consentido desfrutar (1991, p. 26).

40 O discurso do medo será analisado, mais detidamente, no próximo ponto deste capítulo.

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Neste sentido, Hobbes (2003, p. 86) sustenta que “o desejo de

conforto e deleite sensual predispõe os homens para a obediência ao poder

comum” e que o “medo da morte e dos ferimentos produz a mesma tendência, e

pela mesma razão”. Assim, com o nascimento dessa racionalidade, é que se dá

através do medo. Para Hobbes (1998, p. 28) se a vaidade faz dos homens

eternamente competirem por precedência, glória e amor próprio, nenhum tipo de

associação pode prosperar e se fosse removido todo o medo a natureza humana

voltar-se-ia muito mais ávida para a dominação do que para a construção de uma

sociedade. Segundo ele, ao receber algum benefício de alguém, de quem

consideramos nosso igual, faz tender para o amor fingido, e na realidade para o

ódio secreto, pois nos coloca em situação de devedor e esta nos obriga, e a

obrigação é servidão. Para ele, a obrigação que não se pode compensar é servidão

perpétua; e perante um igual é odiosa. Entretanto, “ter recebido benefícios de

alguém a quem se considera superior faz tender para o amor, porque a obrigação

não é uma nova degradação, e alegre aceitação, a que se dá o nome de gratidão”

(2003, p. 87). Assim é que o medo da opressão predispõe os homens para

antecipar-se, procurando ajuda na associação, pois não há outra maneira de

assegurar a vida e a liberdade.

Entretanto o que vai, mais tarde, fundamentar a necessidade de

confiança no outro é a ignorância, a qual será observada na existência de alguém

que detenha o poder: o soberano para Hobbes. Para tanto, Hobbes (2003, p. 89)

afirma que a falta de ciência (conhecimento válido), isto é, a ignorância das

causas, obriga os homens a confiar na opinião e autoridade alheia, mesmo porque

todos os homens preocupados com a verdade, se não confiarem em sua própria

opinião deverão confiar na de alguma outra pessoa, a quem considerem mais sábia

que eles próprios, e não considerem provável que queira enganá-los.

Renato Janine Ribeiro (1978, p. 54) afirma que a seqüência teórica de

Hobbes se rompe quando entra em cena a religião, pois apesar de carecer de

ciência, ela é a principal obsessão de Hobbes. Segundo Ribeiro, o Estado dispõe

de duas ordens de explicação diferentes que repousam sobre o medo:

Medo de Deus: os mandamentos obrigam os homens à busca da paz durável e, portanto, à submissão ao Leviatã, sob pena de castigo eterno. Medo dos

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homens, medo do outro: desta vez os mesmos mandamentos se encadeiam como teoremas, que apelam aos interesses mediatos dos homens, e a permanente expectativa da agressão força o homem a submeter-se ao Estado. Quando a razão concatena os seus teoremas, o axioma é sempre o medo (1978, p. 54).

Hobbes (2003, p. 92/93) diz que é só no homem que se encontra

sinais, ou frutos da religião, a qual consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo

menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras

criaturas vivas. Hobbes traz três motivos. O primeiro: é peculiar à natureza do

homem investigar as causas dos eventos a que assiste, o que ele chama de

curiosidade de procurar as causas de sua própria boa ou má fortuna; o segundo: é

peculiar ao homem, perante toda e qualquer coisa que tenha tido um começo,

pensar que ela teve também uma causa, que determinou esse começo no momento

em que o fez; o terceiro: diferente dos animais, pois a única felicidade é o gozo de

seus alimentos, repouso e prazeres cotidianos, o homem observa como um evento

foi produzido por outro, e recorda seus antecedentes e conseqüências.

Conforme Hobbes (2003, p. 94), o que faz o homem temer é o

desconhecido, pois este medo perpétuo que acompanha os homens ignorantes das

causas, como se estivessem no escuro, deve necessariamente ter um objeto. A

ignorância leva, portanto, o homem a calar quando portanto não há nada que possa

ser visto, nada acusam, quer da boa quer da má sorte, a não ser algum poder ou

agente invisível.

É de notar, portanto, que o objetivo era apenas manter o povo em

obediência e paz, atentando para incutir nas mentes a crença de que os preceitos

que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como

provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou

outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos

simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceitas, bem como

de fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram

proibidas pelas leis e, por último, o de prescrever cerimônias, suplicações,

sacrifícios e festivais, os quais se devia acreditar capazes de aplacar a ira dos

deuses, razões pelas quais deveriam (os Deuses) ser venerados (Hobbes, 2003, pp.

100-101).

Hobbes aduz, ainda, que de todas as paixões, a que menos faz os

homens tenderem a violar as leis é o medo e, mesmo assim, esse medo pode levar

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a cometer um crime. Neste sentido é que Ribeiro (1978, p. 14) afirma que “o

discurso científico de Hobbes, centrado na função referencial da linguagem, abre

caminho – para ceder-lhe o seu lugar – à fala conativa do soberano-pedagogo. A

ciência é o anticorpo criado pela organização da humanidade contra a guerra

civil”.

Conforme Santos (2000, p. 70), “o sujeito hobbesiano universalizado

estará pronto para receber todo benefício possível para a segurança e comodidade

de sua vida, a partir da compreensão e internalização dos princípios científicos da

política”. A idéia de Hobbes é mostrar que para impedir a insegurança nas

conturbadas relações de poder, é necessário o Estado. Parece evidente que o

sentimento de insegurança da sociedade esteja umbilicalmente ligado à divulgação

do aumento da criminalidade, a qual fornece os subsídios necessários – políticos,

sociais e psíquicos – para o enaltecimento do medo.

4.4.1. O discurso do medo e as práticas de segurança

É preciso entender que este discurso do medo – com o qual é definido

a “cultura do medo”41 – produz a imagem necessária do terror social e como isto é

transferido de uma forma tão natural e espontânea ao senso comum42, exigindo

uma ação estatal cada vez mais disciplinadora e emergencial, típica dos estados

totalitários. Como conseqüência “natural”, há uma ideologização que garante uma

organização social rígida e hierarquizada, na qual “as classes subalternas, mais

que compreender em nível da razão, foram (e seguem sendo) levadas a ver e a

sentir seu lugar na estrutura social” (NEDER, 1993, p. 9.). 41 O termo “cultura do medo” é aqui empregado não a partir de uma conceitualização de “medo individual”, ou seja, o medo resultante de uma perturbação de um perigo real, aparente ou algo estranho ou desconhecido, mas o medo socialmente partilhado o qual corrompe (ou fabrica) o senso comum, tornando propícia a dominação mediante a manipulação do imaginário. 42 O sentido de senso comum aqui referido, diferentemente de conhecimento científico, significa os saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade com as seguintes características: a) é subjetivo, exprimindo sentimentos e opiniões individuais e de grupos; b) é qualitativo; c) heterogêneo, pois se refere a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos entre si; d) é individualizador, por serem qualitativos e heterogêneos; e) é generalizador, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes; f) tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos; g) procuram projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido; h) cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os

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Assim é que a referida retomada do chamado “Estado punitivo”

acontece no instante e diante do novo “mal-estar na cultura”, entendido agora não

só como Freud explicou, mas no predomínio do vazio e da indiferença em relação

ao “outro”. A cultura do medo, enfaticamente enraizada em nossa civilização,

reflete exatamente a produção do imaginário social ideologicamente43 efetivado e

amplamente divulgado, especialmente, mas não só, pela mídia, mas também pela

família e religião. A certeza (ainda que ilusória) de que estamos vivendo no caos,

aumenta a sensação de insegurança, entretanto é de se perceber que o dito

aumento da criminalidade não é um produto (resultado) do péssimo

funcionamento da sociedade, nem circunstâncias externas a ela, mas a

demonstração, irremediável, de que a “nossa sociedade está doente” (PLASTINO,

2001, p. 10).

Qual é o motivo dessa doença? Como, sob o ponto de vista sócio-

político, a violência e a cultura do medo podem ser caracterizados como forma de

dominação?; Como, sob o ponto de vista da psicologia profunda, podemos

entender a interferência do medo na vida social da contemporaneidade?

Sob o primeiro ponto de vista, a violência e a cultura do medo

exercem papel fundamental em nossa sociedade. Fundada a partir da lógica da

dominação44, a sociedade interpreta determinados fatos, conforme a ideologia

vigente naquele momento histórico, ou seja, a lógica hegemônica do grupo

dominante deve prevalecer, difundindo a idéia principal através de pequenas

justificações, as quais permitirão, ante a presença do fato indesejado, mas real,

acontecimentos. In: CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p. 174/175. 43 Para alcançar determinados objetivos, a ideologia pode trabalhar conforme três procedimentos, a saber: a) pela inversão, quando coloca os efeitos no lugar das causas e transforma estas últimas em efeitos, operando como o inconsciente, o qual fabrica imagens e sintomas, enquanto a ideologia fabrica idéias e falsas causalidades; b) pela produção do imaginário social, através da imaginação reprodutora. Recolhendo as imagens diretas e imediatas da experiência social, a ideologia as reproduz, mas transformando-as num conjunto coerente, lógico e sistemático de idéias que funcionam como representações da realidade e como normas e regras de conduta e comportamento, formando um tecido de imagens que explicam toda a realidade e prescrevem para toda a sociedade o que ela deve e como deve pensar, falar, sentir e agir; c) pelo silêncio, a coerência e a unidade do imaginário social ou ideologia vêm do que é silenciado, operando exatamente como o inconsciente descrito pela psicanálise. In: CHAUI, op. cit. pp. 174/175. 44 “Platão, no Político, ao dividir o reino animal em bestas mansas e selvagens – ou seja, entre aqueles que, em função de sua natureza, se deixam dominar e os que resistem ao comando – esclarece que o campo de atuação da ciência destinado a estabelecer os parâmetros para a condução da polis possui, desde sempre, como referência, os animais mansos, e por isso deve ser compreendida a partir do paradigma oferecido pela arte dos cuidados dos seres que vivem em hordas ou grupos”, in: PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A lei: uma abordagem a partir da leitura cruzada entre direito e psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p 139.

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que parcelas de sua liberdade sejam reprimidas a fim de manter (ou restaurar) a

ordem, ainda que em troca de arbitrariedade ou opressão. Diante disso, é notável o

tratamento político a ser evidenciado nesta co-relação de forças, visto que o medo

é traduzido como mecanismo de dominação política e social, tolhendo a liberdade

do indivíduo e reduzindo direitos dos cidadãos.

As razões de instalar o medo nas camadas mais baixas da população é

justificável ante a necessidade de implementação do Estado autoritário, ou seja,

quanto maior for o medo social maior será a carga de legitimação do Estado para

ter uma postura autoritária, surgindo, semelhante à ótica maquiaveliana, o

paradoxo no qual o medo social é necessário para que o Estado seja realmente

uma estrutura de poder.

Ao desenhar esse fenômeno, Baratta (1999, pp. 206/207) adverte que

sendo a sociedade capitalista baseada na desigualdade e subordinação, é

necessário um sistema de controle social do desvio altamente repressivo, através

de um sistema penal forte, típico do direito burguês, vez que o direito penal é um

instrumento precípuo de produção e reprodução das relações de desigualdade, de

conservação da escala social vertical e das relações de subordinação e exploração

do homem pelo homem.

Sob o segundo ponto de vista – o da psicologia profunda – conforme Freud, o “mal-estar na cultura”, resultado da ambivalência afetiva originária, seria o resultado da confluência do movimento de expansão de Eros (pulsão da vida), acompanhado do movimento agressivo de Tânatos (pulsão de morte). Entretanto este movimento ambivalente não ocorreu como anunciava Freud, mas ante os pressupostos da modernidade, em especial a exacerbação e glorificação do indivíduo – enquanto ser egoísta, dominador e onipotente, caracterizando a condição narcísica da sociedade contemporânea – significou uma grande perda ao sujeito, em especial a negação da existência do outro. Esta dificuldade de lidar com as fantasia em relação ao gozo do outro é que Slavo Zizek identifica como a matriz da intolerância social. Para este autor esloveno aquilo que é desconhecido é fantasticamente aprisionado pelo imaginário (CERQUEIRA FILHO, 1996, p. 90).

Débora Regina Pastana diz que “É desta forma que posturas

autoritárias se consolidam em nossa sociedade e a cultura do medo nos mostra

como o autoritarismo é interpretado e reproduzido” e, citando Marilena Chauí,

afirma que “a permanência das explicações antigas, apesar de seus enganos agora

percebidos, não resulta da obstinação, mas indica a emergência de uma figura que,

prometendo a paz e a segurança, tangerá o rebanho amedrontado: a autoridade

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nascida da ambição e das cisões do corpo social [...] Transformando a explicação

imaginativa em doutrina e esta em ortodoxia, punindo com morte e exclusão toda

tentativa para substitui-la ou modificá-la, os que são movidos por ambição

dominam os que são movidos pelo medo” (PASTANA, 2003, p. 95).

Esta função é exercida, de forma invulgar, pela ideologia, ou seja,

opera dissuadindo e impedindo a visão do mais importante e prendendo ao

supérfluo. Sua função é assegurar igualdade de interpretação, ou seja, “modos de

entender a realidade e de se comportar nela ou diante dela, eliminando dúvidas,

ansiedades, angústias, admirações, ocultando as contradições da vida social, bem

como as contradições entre esta e as idéias que supostamente a explicam e

controlam” (CHAUÍ, 1996, p. 175).

Conforme Marilena Chauí (1996, p. 176), “ideologia e inconsciente

operam através do imaginário (as representações e regras saídas da experiência

imediata) e do silêncio, realizando-se indiretamente perante a consciência”. Se,

por um lado, o inconsciente necessita de imagens, substitutos, sonhos, lapsos, atos

falhos, sintomas, sublimação para manifestar-se, por outro, a ideologia necessita

de idéias-imagens, da inversão das causas e efeitos, do silêncio para manifestar os

interesses da classe dominante e escondê-los como interesse de uma única classe

social, sendo, portanto, o efeito necessário da existência social da exploração e

dominação, é a interpretação imaginária da sociedade do ponto de vista de uma

única classe social (CHAUÍ, 1996, p. 176).

Em termos psicanalíticos, o indivíduo está cada vez mais sozinho e

isolado45 (conseqüentemente, vazio), enaltecendo cada vez mais o conteúdo

narcísico da sociedade. A cultura do medo, provocada pela moderna sociedade

globalizada (de consumo, de mercado, da competição, da atomização, etc.) está

causando o novo “mal-estar na sociedade”, ou seja, está minando as subjetivações

(as quais caminham em sentido contrário), não permitindo a conjunta expansão

das pulsões de vida e de morte.

45 Este isolamento é causado por diversas razões, mas, especialmente, pode-se dizer que o argumento principal é o da segurança e comodidade ou, no mais das vezes, inversamente, é dizer, o isolamento é a forma pela qual o indivíduo procura comodidade e segurança fazendo, por exemplo suas atividades diárias, tais como ginástica, compras, estudos, etc., sem sair de casa. Isto é possível verificar a partir das opções de vida das pessoas. Veja-se, por exemplo, os grandes muros que são construídos para proteção das casas, as pessoas cada vez mais fazendo suas atividades loborativas (trabalhos escritos, consultorias, vendas, etc.) e domésticas (lazer, compras, estudos, passeios virtuais, etc.) de dentro de casa, as inovações tecnológicas a serviço da comodidade e isolamento, etc.

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A partir da conjuntura contemporânea do pânico, o medo não deve ser

entendido como uma conseqüência dos tempos difíceis, mas como uma opção

ideológica e estética, uma maneira de interpretar a realidade, o qual é retomado a

cada ameaça de tomada de espaço pelas forças populares. A difusão do medo do

caos e da desordem tem servido para justificar estratégias de exclusão e

disciplinamento planejado das massas empobrecidas (BATISTA, 2002, p 205.).

O medo invade, por não se saber medo de que, o imaginário do

indivíduo de forma tão voraz que não se percebe, verdadeiramente, suas profundas

razões. Este sentimento de insegurança e de medo é que justifica ao Estado tomar

medidas simbólicas cada vez mais autoritárias, fortalecendo o imaginário da

ordem, causando uma diminuição dos espaços sociais, o isolamento gradativo e

voluntário das vítimas (qualquer um pode ser vítima, ou seja, medo de tudo e de

todos – nisso reside a impossibilidade de ver o outro e, mais especificamente,

como um inimigo que devemos excluir ou, na maioria das vezes, destruir),

exacerbando o individualismo, característicos da sociedade contemporânea.

É grande o interesse na exploração da violência, e o medo exerce uma

função exemplar a estes propósitos, permitindo a indução de práticas necessárias

ao cumprimento da função velada do cárcere: a formação do proletariado

industrial e desenvolvido no controle da reprodução da força de trabalho

assalariada.

Como visto, considerando-se as origens do sistema prisional e suas

funções econômicas que ele assume, em especial pelas idéias protagonizadas por

diversos autores de matiz marxista, o cárcere exerce esse perverso fascínio de

poder, pois ao mesmo tempo que possibilita o caráter repressivo através de suas

técnicas de poder (de disciplinamento dos corpos e controle), é possível

vislumbrar que o sistema penal (especialmente a prisão) exerça outros importantes

papéis na sociedade contemporânea por exemplo, atuando como um poderoso

regulador do valor do capital variável (valor da força de trabalho – salário), isto

porque estes trabalhadores, expulsos do mercado de trabalho pela sua abundância,

tornam-se fatores determinantes à desvalorização da mão-de-obra.

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Em função dessa população excedente – explorada e criminalizada46 –

mantém-se uma estreita relação entre a precarização do estado social, o

agravamento da situação econômica (desemprego) com crescimento da população

marginalizada – excluída – e o recrudescimento das políticas penais de

encarceramento (principalmente sobre a população pobre, tóxico-dependentes e

imigrantes), estabelecendo-se um relacionamento com o princípio de less

eligibility, ou seja, ainda que fossem péssimas as condições oferecidas ao

trabalhador estas seriam melhores do que aquelas impostas no cárcere ao

indivíduo, o qual daria maior preferência a determinada situação fora do cárcere,

sujeitando-o àquelas condições determinadas pelo sistema produtivo.

Os dados levantados por Loïc Wacquant (2001, p. 28), indicando a

vulgarização dos direitos sociais são estarrecedores. Só para se ter idéia, Nova

York, cidade símbolo mundial da segurança pública, fruto da divulgação das

políticas de “tolerância zero”, registra uma extraordinária expansão dos recursos

destinados à manutenção da ordem, aumentando seu orçamento para a polícia em

40%, ou seja, quatro vezes mais que as verbas destinadas aos serviços públicos de

saúde. No mesmo sentido, houve um corte de 30% nos gastos com os serviços

sociais da cidade, resultando em uma perda de 8.000 postos de trabalho.

Ao ser questionado sobre o desaparecimento do Estado Econômico,

diminuição do Estado social, reforço e glorificação do Estado penal, Wacquant

(2001a, p. 135), afirma que “esta fórmula tem por fim indicar que hoje não se

pode compreender as políticas policiais e penitenciárias nas sociedades avançadas

sem recolocá-las no quadro de transformação mais ampla do Estado,

transformação que é, ela mesma, ligada às mutações do emprego e à oscilação da

relação de forças entre as classes e grupos que lutam por seu controle”, o que

caracteriza o conteúdo da violência estrutural e institucional do Estado,

possibilitando estabelecer a conexão entre o modelo econômico neoliberal, a

desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas e a retomada do Estado

punitivo.

46 Há estudos recentes que procuram relacionar índices de desemprego com taxas de encarceramento. Entre os autores, destacam-se, Stevem Box e Chis Hale que analisam a realidade européia da década de 1970 e 1980, Bruce Western e Katherine Beckett, que analisam a relação de funcionalidade das políticas penais e desemprego, nos Estados Unidos, nas décadas de 1980 e 1990 e, mais recentemente, Loïc Wacquant, que analisa a ação do neoliberalismo no Estado de bem-estar social e sua profundas conseqüências, em especial a substituição do Estado social pelo Estado penal.

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4.5. O controle total da vida dos corpos (ou dos corpos vivos)

Do que foi visto até agora, é possível identificar uma certa tendência

na sociedade contemporânea em apresentar conseqüências devastadoras, do ponto

de vista do pleno desenvolvimento das condições humanas, em função das novas

tecnologias e da imposição e implementação das políticas econômicas neoliberais,

isto porque, do que se tem mostrado até então, as gritantes desigualdades e a

polarização social são marcantes. A governabilidade é o tema central do

pensamento político conservador e o que se vê é o reforço dos poderes autoritários

dos estados na utilização dos avanços tecnológicos para o controle social das

massas e das mentes dos indivíduos.

É importante, portanto, começar a perceber que a elaboração de um

saber que busca a verdade através de técnicas específicas de dominação

alcançadas por diversos meios como as técnicas de produção de objetos

(mercadorias) e pelos dispositivos racionais de práticas governamentais próprios

de uma população (saúde, natalidade, etc.) e destinados a dirigir suas condutas

(seu querer e seus desejos) estabelece a possibilidade do entendimento da relação

da violência perpetrada pelos órgãos de governo em detrimento da população, seja

ela estrutural, institucional ou social, permitindo-se o controle social através das

políticas públicas (políticas econômicas, políticas sociais, políticas penais

encarceradoras e criminalizadoras, etc).

É possível, por exemplo, testemunhar diversos acontecimentos no

último quarto de século XX e início do século XXI que demonstram toda

dramatização e conseqüências da implementação das políticas de que falamos

acima, especialmente o aumento da miséria e exclusão social, o aumento das taxas

de encarceramento e da criminalização e os danos ambientais – que sugere, por

exemplo, o progresso pelo progresso numa alegoria infundada de que os recursos

naturais são inesgotáveis. Quero, entretanto, chamar atenção para o consenso

ideológico neoliberal do qual nos alerta Mészáros (2004, p. 14), isto porque de

certo modo, com a implosão do sistema soviético os fatos foram relegados ao

esquecimento para se criar a “aparência de um consenso ideológico racional

dominante”. Chegou-se a falar em “fim da história”. Há diversos consensos que

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ressaltam essa lógica, por exemplo, a necessidade de privilegiar a segurança

pública em detrimento de outros direitos como a saúde, educação, moradia, etc.

Cumpre lembrar, também, como exemplo desse consenso ideológico

racional dominante – e pano de fundo da relação entre a aparência e essência do

capital –, o resultado histórico social da adoção do avanço tecnológico e da

produção automatizada (que significa economia da força de trabalho) como

necessidade de se dar maior eficiência ao processo produtivo em detrimento das

contradições orientadas dentro do paradigma neoconservador, de viés liberal,

fazendo com que não se perceba que o aumento do tempo livre do trabalhador não

significará, simultânea e conjuntamente, seu pleno desenvolvimento, isto porque é

dentro do próprio sistema que reside a impossibilidade de se usufruir esse tempo

plenamente e, igualmente, sobreviver.

Não é possível, portanto, o desenvolvimento conjunto do capital e do

indivíduo, em função de que a violência é estrutural aos propósitos do capitalismo

uma vez que no processo “capitalista civilizatório”, baseado no valor de troca e

tendo como meta a acumulação e expansão do capital, está implícito um intenso

processo de expropriação, isto é, a violência é tanto maximizada pela divulgação

e, portanto manipulada pelas redes de poder da “subjetividade” dos indivíduos,

como ela está, propriamente, nas relações sociais, na sociedade civil – para usar

uma expressão hegeliana.

É preciso identificar esta pequena e importante diferença e perceber a

relação que há entre elas, pois se por um lado há violência nas relações de

trabalho e suas mutações, bem como em diversas relações com o Estado, por outro

há a manipulação dos desejos como mecanismos pelos quais se busca o controle

total da vida dos corpos.

As estratégias para tudo isso são muito importantes e na maioria das

vezes passam despercebidas: são os discursos e as práticas que viabilizam todo

esse processo de subjetivação. O conteúdo da violência, entretanto, independente

de sua origem (institucional ou estrutural), produz a necessidade do indivíduo em

se proteger, é dizer, estas situações desembocam na constituição do medo e na

indução de práticas, requerendo a efetividade dos sistemas de proteção estatal.

Esta idéia está clara na introdução da tese de doutorado da Professora Vera

Malaguti Batista (2003, p. 23) quando ela abre a hipótese central de seu trabalho

afirmando que “a hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a

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difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias

de controle social”, permitindo, com isso, legitimar a tomada de posição nos

diversos campos de atuação estatal: econômico, social e político.

Em sua pesquisa, Malaguti Batista (2003, p. 28) observa que no Brasil

imperial, mesmo diante da perspectiva de uma grande rebelião escrava, não houve

qualquer manifestação no sentido de se debater mudanças na própria sociedade

violentamente hierarquizada, especialmente em função da instituição da

escravidão. A interessante observação (pesquisa) de Vera Malaguti revela ainda

que havia denúncias de uma articulação internacional envolvendo malês, haitianos

e abolicionistas ingleses, ou seja, havia a tentativa de se colocar os problemas dos

conflitos sociais para fora da própria sociedade imperial (não se poderia

questionar a escravidão), jogando a responsabilidade ao inimigo de fora, ao outro,

àquele desconhecido, a fim de estabelecer (e de fato foram estabelecidas) severas

estratégias de controle social. Este interessante exemplo do século XIX pode ser

fielmente equiparado com a situação contemporânea (veja-se, por exemplo, “a

guerra contra o terrorismo” ou o discurso do “aumento da criminalidade”).

Esta pesquisa histórica mostrou que na sociedade do Brasil colônia e

imperial a “evangelização era o suporte superestrutural da conquista, através da

pedagogia do pecado, da morte e da culpabilização; era o universo penitencial que

tratava de ser interiorizado individualmente através da experiência subjetiva”, pois

era preciso “um medo desproporcional à realidade para manter violentas políticas

de controle sobre aqueles setores que estavam potencialmente a ponto de rebelar-

se e implantar a ‘desordem e o caos’” (Cf. Malaguti Batista, 2003, p. 30).

Assim, numa sociedade forjada a partir de um referencial econômico,

de viés neoliberal, travestida pela metáfora do mercado, induzida a determinados

desejos, diretamente vinculados aos pressupostos de realização e expansão do

capital, buscará implantar, igualmente aos moldes históricos, estratégias de

políticas de segurança pública estatal que contam com um novo modelo de

dominação, não mais exercido pelo autoritarismo, mas pela tentativa de indução

das práticas dos indivíduos (produção dos desejos) e produções de subjetividades,

o que corresponde hoje à busca incontrolada pelo consumo. É exatamente nestes

processos de subjetivação que se pretende o controle social das massas, porque a

procura do consumidor é incessante e, especialmente deve-se mantê-los

“permanetemente insatisfeitos”. Para Vera Malaguti (2003, p. 79) os

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consumidores falhos – os que não conseguem ser consumidores – são os novos

impuros, portanto, como o novo critério de pureza, ou de reordenamento, é a

aptidão e a capacidade de consumo, àqueles que não se inscrevem nesta nova

ordem estarão submetidos às estratégias de privatização, desregulamentação e

controle da vida, isto porque “o ideal de pureza da pós-modernidade passa pela

criminalização dos problemas sociais”.

É aqui que reside a grande importância de se entender essa passagem,

pois se de um lado havia a disposição sobre a vida, agora é a vida “dos

condenados” – impuros e os não consumidores – que se pretende controlar com a

adoção das políticas econômicas e penais cada vez mais severas.

Significativamente em relação as políticas de segurança pública e, em função do

exacerbado sentimento de medo instalado, na sociedade contemporânea,

umbilicalmente vinculado com um sentimento de insegurança, em detrimento da

implementação de políticas públicas de segurança (moradia, saúde, educação,

etc.), é possível verificar seus efeitos devastadores – a progressiva pauperização

da população, às devastações ambientais, a destruição das instâncias coletivas e,

em conseqüência, a destruição do indivíduo e dos processos de subjetivações, etc.

– em relação aos indivíduos que ficam “sujeitados” a um violento e funcional

processo de anulação do seu status jurídico, o que proporciona o espaço próprio

da biopolítica (seu significado é o estado de exceção), fomentando, cada vez mais,

novas formas de controle e de reprodução do capital.

Estes temas serão debatidos no próximo capítulo.

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5 MERCADO E PRODUÇÃO NORMATIVA DA DECISÃO POLÍTICA 5.1. A biopolítica e os Direitos Humanos. 5.1.1 Os novos espaços e as novas estratégias de poder: o biopoder. 5.1.1.1 Um primeiro significado: economia e biopolítica como estratégia de poder. 5.1.1.2 Um segundo significado: o biopoder, Direitos Humanos e a guerra perpétua. 5.1.1.3 Um terceiro significado: exclusão social, excesso de biopoder e violação dos Direitos Humanos. 5.2 O mercado como centro de produção normativa e de decisão política. 5.2.1 A exacerbação da divulgação de atos de violência como mecanismos de controle. 5.3 O estado de exceção. 5.4 Controle social e reprodução do capital: a face oculta da mesma “moeda”. 5.4.1. O controle social na ordem capitalista globalizada. 5.4.2 A gestão política de Segurança Pública conservadora: “eficientismo penal”, “tolerância zero” e “teoria das janelas quebradas” como controle social de classe. 5.4.3 A privatização das prisões: retirada da “sujeira” pelo controle social. 5.4.4 O controle social privatizado: a exploração econômica do medo

Chegamos neste último capítulo com o propósito delineado:

estabelecer a relação entre a maximização da divulgação do crescimento da

violência – atos terroristas internacionais, guerras internacionais, violência urbana,

tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, etc. – e a criação do sentimento social de

necessidade de combatê-la através de políticas de segurança pública

conservadoras, em especial através da inscrição da vida numa sociedade de

controle, a fim de compreender as implicações das economias de mercado na

conjuntura contemporânea, especialmente a brasileira, absolutamente polarizada e

marcada pela exclusão social.

Muito embora seja um caminho muito longo – pois deverá,

necessariamente, transitar e aprofundar determinados conceitos importantes como

“biopoder”, biopolítica”, “Direitos Humanos”, “produção de subjetividade”,

dentre outros – por certo, o objetivo não é “dizer a verdade” mas estabelecer

pontos de partida para o entendimento da relação entre políticas públicas, controle

social e conflitos sociais.

Considerando os objetivos da pesquisa e os três primeiros capítulos

apresentados foi possível entender, de certa forma e a partir de alguns autores de

viés crítico, o funcionamento do sistema econômico neoliberal – as chamadas

economias de mercado – mas sobretudo questionar: o problema da segurança

pública é prioritário em detrimento aos direitos sociais? O incremento às relações

típicas desse modelo econômico globalizado favorece ao aparecimento de novas

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formas de controle? Quais os interesses na exploração e divulgação da violência

(por exemplo, as guerras internacionais, combate ao tráfico ilícito de

entorpecentes e armas, guerra contra o terrorismo, etc.), à consecução das

finalidades resultantes da lógica de mercado em detrimento aos direitos e

garantias fundamentais? Os modos de subjetivação, a sobreposição das novas

tecnologias de poder, disciplinar e de controle, têm efeitos sobre os Direitos

Humanos? Quais conseqüências resultam com a adoção de políticas públicas

neoliberais, especificamente em relação à segurança pública, a partir dos modelos

denominados como “políticas de tolerância zero”, “movimentos de lei e ordem”?

Os resultados causados pela criação de inimigos comuns (especialmente o tráfico

ilícito de drogas, armas e o terrorismo) e divulgação da multiplicação de atos

violentos, possibilita a inserção de novos mecanismos de exploração (econômica)

e de controle?

Estas são as questões que pretendo discutir a partir de agora.

5.1. A biopolítica e os Direitos Humanos

5.1.1. Os novos espaços e as novas estratégias de poder: o biopoder

Michel Foucault1 quando inicia suas análises colocando no centro da

discussão o problema da “verdade”2, faz também um descortinamento dos

dispositivos de poder. Para ele (Foucault, 2002b, p. 28-29) nas sociedades 1 Michel Foucault nasceu em Poitiers, em 15 de outubro de 1926 e faleceu em Paris em 26 de junho de 1984. Foi professor da cátedra “História dos Sistemas de Pensamento” no Collège de France de 1970 a 1984. Apesar não ser aqui a primeira vez que cito o nome de Michel Foucault, entendo ser importante esclarecer, agora, alguns pontos da vida do autor, especialmente o fato de que ele estudou, dentro da filosofia do conhecimento, temas importantes como o “saber”, o “poder” e o “sujeito”. Esta relação permitiu que Foucault, ao estudar o tema do “poder”, rompesse algumas concepções, especialmente indicando que ele (o poder) não estava situado no Estado ou instituição, mas perpassava diversas instâncias e estratégias produzindo diversos saberes e verdades. 2 Castor Ruiz (2004 b, p. 20) afirma que a verdade passa por uma construção histórica e situa-se em relação a um discurso, ou seja, ela sempre se encontra atravessada pelos interesses de quem a formula, isto porque “nela interferem o conjunto de saberes que, de modo integrado, a produzem como a sustentação e a legitimação do ser e do fazer de uma determinada prática”. Ainda conforme Ruiz é a partir da constituição da verdade que se estrutura a dicotomia dos conhecimentos verdadeiros e falsos e ela se “auto-institui como ponto arquimédico em torno do qual se articulam as redes dos saberes e das práticas. É deste modo que ela se torna o eixo do poder”.

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contemporâneas ocidentais as relações de poder constituem o corpo social e elas

não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção,

uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro,

possibilitando uma particular relação entre poder, direito e verdade, isto porque

para ele temos que produzir verdades para produzir riquezas.

É preciso, neste momento, portanto, estabelecer a razão (fio condutor)

entre as análises de Foucault em relação ao poder e suas pesquisas iniciais sobre a

história das penalidades, porque a investigação empreendida por ele estabelecerá

as conexões entre este tipo específico de poder (que ele chamou de poder

disciplinar) e os cálculos e mecanismos de poder nas relações com a vida dos

homens (biopolítica). A realização dessa genealogia do poder (não histórica, mas

um estudo das multiplicidades de lutas) tem lugar a partir do momento que ele

interpreta o poder não como uma concessão individual ao soberano em função do

contrato social estabelecido, mas como relação de forças que sempre permeiam a

atividade social.

Quando sua pesquisa penetra nas relações institucionais,

especificamente nos hospitais psiquiátricos e nas prisões, Foucault (1987, p.

27/29) pondera que “os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa

‘economia política’ do corpo, ou seja, sua investigação já pretendia estudar a

relação da tomada do poder sobre os corpos, pois entendia que este (o corpo)

estava “mergulhado num campo político” e que “as relações de poder têm alcance

imediato sobre ele”. Foucault chama de “tecnologia política do corpo” a este

‘saber’ do corpo e ao controle de suas forças de forma estratégica, com a

finalidade de dominação através de manobras, técnicas e táticas.

É a partir desse momento que Foucault analisa as técnicas de poder

centradas no corpo, com o propósito de demonstrar que essa nova tecnologia seria

utilizada para discipliná-lo, adestrando-o ao modo de produção econômico e

político que estava sendo estabelecido a partir do início do século XVIII.

As pesquisas realizadas por Foucault mostram, então, que nos séculos

XVII e XVIII aparece esta nova mecânica do poder que incide diretamente sobre

os corpos e sobre o que eles fazem. Para Foucault (2002b, p. 42-43) este tipo de

poder se opõe à mecânica que a teoria da soberania estabelecia, pois esta é

vinculada a uma forma de poder que se exerce sobre a terra e seus produtos muito

mais que nos corpos.

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177

Este poder não soberano, que Foucault denomina “poder disciplinar”,

possui uma enorme eficácia produtiva, sendo, portanto um dos elementos

fundamentais à implantação do capitalismo industrial e da sua correspondente

sociedade, isto porque “é um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos

tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce

continuamente por vigilância e não de forma descontínua por sistemas de tributos

e obrigações crônicas. É um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama

cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define

uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo

fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e eficácia daquilo que as sujeita”

(Cf. Foucault, 2002b, p. 42). Ao desenvolvimento do capitalismo foi essencial o

controle dos corpos, não só com o fim de treiná-los e docilizá-los, mas permitir

uma adequada relação corpo-produção, ou seja, foram necessários mecanismos e

processos que se desenvolveram através dos aparelhos de Estado e instituições de

poder que garantiram as relações de produção, mas também estratégias

biopolíticas foram fundamentais. Conforme Foucault (2005, pp. 132-133),

(...) os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou administração das coletividades), agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam; operaram também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento.

Com estas estratégias de poder incidindo diretamente sobre os corpos

(podendo ser chamada de dispositivo ou mecanismo de poder) foi possível atingir

dois grandes objetivos utilitários: um econômico e outro político. Do ponto de

vista econômico foi possível extrair o máximo de força de trabalho e, do ponto de

vista político, a diminuição da capacidade de organizar uma força política apta a

enfrentar as ordens do poder. Efetivamente, é o domínio econômico e político dos

corpos.

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178

Nos estudos sobre a história da repressão (que se inicia com “História

da Loucura” e em “Vigiar e Punir”) Foucault consegue relacionar a passagem da

punição à vigilância, justamente no momento que corresponde à formação de um

novo tipo de exercício do poder, isto porque se percebe ser mais eficaz vigiar do

que punir. Neste momento, entretanto, esta mecânica do poder aliada ao

disciplinamento dos corpos foi extremamente necessária ao funcionamento do

modelo de sociedade (capitalista e industrial) que surgia por dois motivos:

primeiro porque a disciplina é o mecanismo por excelência de controle do corpo

pelo tempo (máxima produtividade, máxima exploração, no menor tempo

possível) e, segundo, porque a vigilância exercida de forma contínua permite o

melhor controle.

Assim, importante assinalar uma das principais análises que as

pesquisas de Foucault proporciona entender: a importância da disciplina na

constituição do indivíduo, uma vez que foi a partir das separações, divisões,

hierarquizações e classificações, que surgiu a possibilidade de identificar o

indivíduo como louco, delinqüente, excluído, etc., permitindo com isso um efetivo

controle social dos sujeitos agora individualizados, separados, classificados.

A prisão e o trabalho realizado dentro dos estabelecimentos penais

cumprem, fielmente, esta função de controle social pela disciplina

individualizante e classificatória, pois como analisa Foucault (2002b, p. 131-133),

o trabalho realizado nos estabelecimentos penais jamais teve o fim ressocializador

ou de permitir o aprendizado de um ofício, mas sim o aprendizado da própria

“virtude do trabalho”, ou seja, a realização de um trabalho qualquer, “de trabalhar

por trabalhar, deveria dar aos indivíduos a forma ideal do trabalhador”.

De forma semelhante, conforme relata Foucault, desde 1820 se

percebeu que a prisão serviu para criar ou incrementar a quantidade de criminosos

(ou aumentar a quantidade de crimes praticados), sendo “que houve, como sempre

acontece nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um

inconveniente. A prisão fabrica delinqüentes, mas os delinqüentes são úteis tanto

no domínio econômico como no político” (2002b, p. 132). Foi a partir do

momento que se necessitou da proteção da riqueza que iniciou uma grande

campanha de moralização sobre a população do século XIX permitindo-se, no

sentimento popular, a necessidade da separação entre um sujeito honesto e o

delinqüente e, conforme Foucault (2002b, p. 133) “separando nitidamente o grupo

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179

de delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas

também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e

responsáveis pelos maiores perigos. Donde o nascimento da literatura policial e da

importância, nos jornais, das páginas, das horríveis narrativas de crimes”.

Para este fim – controle social – surge o que Foucault denominou

como sendo a biopolitização ou a estatização do biológico, “um dos fenômenos

fundamentais do século XIX” que foi “o que se poderia denominar a assunção da

vida pelo poder” (Foucault, 2002b, p. 286), ou seja, “uma tomada de poder sobre

o homem enquanto ser vivo”, o que ele denominou de estatização do biológico e,

a partir de então, tornou-se possível o acesso à vida das pessoas. São as pessoas

que fazem parte desse poder (mesmo que não saibam). Seria melhor dizer: é a

politização do poder da vida, ou ainda, politização do poder de controlar a vida.

Diferentemente da disciplina que era dirigida ao corpo, na tentativa de

treiná-los, vigiá-los e puni-los, Foucault (2002b, pp. 289) afirma que:

a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana”.

Foucault aplica a noção de biopolítica sempre à população, é dizer, o

modo pelo qual o poder passa a gerir os agrupamentos humanos de modo a extrair

deles a maior força produtiva e evitar inconvenientes políticos, chegando-se ao

indivíduo pela população. As tecnologias de poder – disciplinar do corpo e

regulamentadora da vida – por serem, como visto, categorias sobrepostas e não se

excluírem, podem ser articuladas uma a outra e passam, cada vez mais, a incluir a

vida dos homens nos cálculos de poder, transformando a política em biopolítica.

É possível, então, a partir de Foucault, perceber um relativo

desenvolvimento nas estratégias de poder, porque desde a Idade Média,

principalmente nas sociedades ocidentais, a elaboração do pensamento jurídico

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180

estará a serviço do poder real. Assim, é exatamente quando o poder real se esvazia

que serão discutidos, do ponto de vista jurídico, seus limites, direitos e poderes

para afirmar a exata adequação do seu poder ao direito fundamental ou, ao

contrário, para mostrar a necessidade da limitação ao poder do soberano, as regras

a que ele deveria submeter-se e os limites do exercício do poder para que este

conservasse sua legitimidade. A teoria do direito, da Idade Média em diante, tem

o papel essencial de estabelecer a legitimidade do poder, ou seja, retirar o

elemento de dominação do poder fazendo aparecer os direitos legítimos da

soberania e obrigação legal da obediência. (Cf. Foucault, 2002a, pp. 180-181).

Entretanto o que se verifica é que o direito (aqui entendido em sentido

amplo, como as normas, instituições, regulamentos, etc.) se constituiu como um

importante mecanismo de dominação – realizada através dos múltiplos e

microscópicos poderes – e técnica de sujeição, o que possibilitará, em função da

íntima relação estabelecida entre discurso da verdade, direito e poder, controlar

tanto a ordem disciplinar do corpo quanto a regulamentação de uma população.

A partir do século XVII desenvolvem-se as estratégias políticas do

corpo – primeiro anatômicas – como as disciplinares, de adestramento, de

aumento de suas aptidões na retirada de suas forças, sempre levando-se em conta

o binômio docilidade e utilidade e, depois, a partir da metade do século XVIII,

desenvolvem-se as estratégias em função do corpo-espécie – como as técnicas

regulamentadoras e os processos biológicos da população como as intervenções

nas condições de vida de todos e estratégias individualizantes e especificantes –

voltadas ao desempenho do corpo, que se inicia, então, o desenvolvimento da

organização dos poderes sobre a vida, os quais permitem caracterizar a função de

gerir a vida e não mais de causar a morte, ou seja, não mais o direito do soberano

de causar a morte mas, agora, um poder de causar a vida.

Este novo mecanismo de poder, centrado no corpo (biopoder) e não na

terra (soberania), permite extrair a força de trabalho necessária à produção e a

constituição do capitalismo industrial. O controle, portanto, não precisa ser

exercido diretamente pelo soberano, mas por inúmeros mecanismos de poder

responsáveis pela normalização disciplinar e regulamentadora.

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5.1.1.1. Um primeiro significado: economia e biopolítica como estratégia de poder

Hannah Arendt (1994, p. 20) destaca a impossibilidade do diálogo

entre passado e futuro nas experiências políticas e progressos tecnológicos da

ciência, vez que o século XX foi pródigo ao encontrar na violência e nas diversas

possibilidades de destruição em massa formas de controle, significando a

intromissão massiva da violência criminosa na política, indicando, ainda, que as

novas gerações cresceram sob a cumplicidade dos massacres como os campos de

concentração, o terrorismo, o genocídio, guerras civis, etc.

Em contrapartida, ou seja, ante a complexa relação do indivíduo-

sujeito e o mundo dos direitos humanos, entre situações de conflito social e

agressão aos direitos individuais e coletivos, percebe-se que o discurso da

igualdade, da paz e da solidariedade, está de mãos dadas com o egoísmo, a

opressão, o xenofobismo, o acúmulo de capitais, em resumo, as “democracias de

mercado”.

Surge, então, o paradoxo entre racionalidades: se, por um lado,

pretende-se um mundo melhor e mais digno, por outro encontramos a barbárie das

guerras, da exploração do trabalho infantil, da exploração sexual, a precarização à

relação e aos direitos trabalhistas, o “falecimento” do estado de bem estar social, a

exploração dos países de primeiro mundo em relação aos países

subdesenvolvidos, etc., surgindo com mais intensidade um estado policial e não

mais social.

Importante assinalar e trazer as informações da pesquisa realizada por

Agamben, na qual ele aponta que o referido artigo 483 da Constituição de Weimar

fora utilizado em diversas oportunidades, declarando o estado de exceção e

promulgando decretos de urgência em mais de 250 ocasiões4. Os governos da

República de Weimar, de 1919 a 1924 e especialmente depois de 1929, 3 Dizia o art. 48 da Constituição Alemã: “O presidente do Reich pode, caso a segurança pública e a ordem sejam gravemente perturbadas ou ameaçadas, tomar as decisões necessárias para o restabelecimento da segurança pública, se necessário com o auxílio das forças armadas. Com este fim pode provisoriamente suspender os direitos fundamentais contidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153”. 4 Em algumas ocasiões o decreto que determinava o estado de exceção se prolongou por 5 meses, como foi o caso do decreto de setembro de 1923 que vigeu até fevereiro de 1924 (Cf. Agamben, 2002, p. 174-175).

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utilizaram-se do artigo 48 para “prender militantes comunistas e para instruir

tribunais especiais habilitados e decretar condenações à pena de morte. Em várias

oportunidades, especialmente em outubro de 1923, o governo usou o art. 48 para

enfrentar a queda do marco, confirmando a tendência moderna de fazer

coincidirem emergência político-militar e crise econômica” (Agamben, 2004, p.

29).

Importante assinalar a análise realizada por Michael Hardt e Antônio

Negri (2005) sobre o estado de guerra global que estamos envolvidos, isto porque,

partindo-se da fórmula de Clausewitz (a guerra é uma extensão da política por

outros meios), de certa forma, hoje é difícil fazer uma leitura correta e distinguir

entre guerra e política, significando, pois, que a guerra tornou-se o princípio da

organização da sociedade, transformando-se “na matriz geral de todas as relações

de poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de

sangue”, transformando-se também num regime de biopoder destinado a controlar

a população, mas também a produzir e reproduzir todos os aspectos da vida social

(2005, p. 34).

Assim é que a “metáfora” da guerra é utilizada para combater diversos

inimigos, tanto do ponto de vista das políticas sociais como também das guerras

propriamente ditas, isto porque a alteração no conceito e na forma como as

guerras são combatidas possibilita um perpétuo estado de beligerância. Veja-se,

por exemplo, os discursos de combate à pobreza, à fome, à erradicação de

determinadas doenças (dengue, AIDS, pólio, etc.) que envolve intensas políticas

sociais, bem como aquelas ações que pretendem combater as drogas e o

terrorismo, que envolvem, também, discursos e políticas públicas aptas a

realizarem a guerra.

Para Hardt e Negri (2005, p. 35-37) estes novos tipos de guerras

(guerras contra as drogas e contra o terrorismo) têm conseqüências importantes no

contexto da vida social: primeiro, por serem inimigos indefinidos e imateriais, não

há limites em termos espaciais e temporais, ou seja, como há um necessário e

ininterrupto exercício do poder e da violência, ela deve ser combatida diariamente,

tornando-se difícil a distinção entre a guerra e atividade policial; segundo, como

conseqüência da dificuldade de distinção entre guerra e atividade policial, as

relações internacionais e a política interna tornam-se cada vez mais parecidas, ou

seja, atividade militar (inimigo externo) e policial (classes perigosas como inimigo

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interno) se confundem e; terceiro, é a reorientação da concepção de aliança, isto

porque na medida em que o inimigo é abstrato e ilimitado, as alianças se tornam,

potencialmente, universais.

Em relação a esta última conseqüência, importante ressaltar a

necessidade de hoje estar ganhando espaço (principalmente pela mídia) o conceito

de “guerra justa”, no sentido de legitimar ações militares (internacionais ou

nacionais, na guerra contra o terrorismo ou contra as drogas, contra o “crime

organizado”, etc.) a fim de proporcionar um interesse universal de determinadas

ações (interesse humanitário) e, no mais das vezes, em nome da proteção dos

Direitos Humanos. Muito mais do que ignorar séculos de lutas pela emancipação

humana, esta nova concepção de poder (biopoder) proporciona reflexos

contundentes sobre os Direitos Humanos. Importante, portanto, estabelecer as

conexões entre biopoder, Direitos Humanos e a atual tendência de permitir o

constante (e perpétuo) estado de guerras.

5.1.1.2 Um segundo significado: o biopoder, Direitos Humanos e a guerra perpétua

Apesar, e ao mesmo tempo, das ponderações feitas aos trabalhos de

Foucault e Hannah Arendt5 sobre biopolítica, Giorgio Agamben reconhece que

ambos os pensadores foram importantes na trajetória do entendimento entre o

modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico de poder, isto porque a pesar

de não ter havido um desenvolvimento conceitual de biopolítica, foi suficiente

para perceber que “o ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua

como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma

transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico”

(Agamben, 2002, p. 11).

Esta falta de desenvolvimento conceitual da biopolítica fez com que

Hannah Arendt não percebesse que foi a radical transformação da política em 5 Para Agamben (2002, pp. 125/126), tanto Hannah Arendt quanto Foucault, não conseguiram perceber que a “radical transformação da política em espaço da vida nua (ou seja, em campo) legitimou e tornou necessário o domínio total. Somente porque em nosso tempo a política se tornou integralmente biopolítica, ela pôde constituir-se em uma proporção antes desconhecida como política totalitária”. Para Agamben, Hannah Arendt dedicou-se, no segundo pós-guerra, à estrutura dos Estados totalitários limitada, entretanto, pela falta de uma perspectiva biopolítica.

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espaço da vida (ingresso da zóe na vida pública) que possibilitou o domínio

através dos Estados totalitários e não o contrário, como ela havia percebido em

suas pesquisas.

A partir do pensamento de Karl Löwith, Agamben (2002, p. 126/127)

consegue explicar o fenômeno da “politização da vida” como o caráter

fundamental da política dos Estados totalitários, relacionando democracia e

totalitarismo, isto porque a cada movimento político das massas (conquistas de

direitos, liberdades, espaços, etc.) resultaria numa “crescente inscrição de suas

vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao

poder soberano do qual desejariam liberar-se”.

Para Agamben (2002, p. 127)

O fato é que uma mesma reivindicação da vida nua conduz, nas democracias burguesas, a uma primazia do privado sobre o público e das liberdades individuais sobre os deveres coletivos, e torna-se, ao contrário, nos Estados totalitários, o critério político decisivo e o local por excelência das decisões soberanas. E apenas porque a vida biológica, com as suas necessidades, tornara-se por toda parte o fato politicamente decisivo, é possível compreender a rapidez, de outra forma inexplicável, com a qual no nosso século (século XX) as democracias parlamentares puderam virar Estados totalitários, e os Estados totalitários converter-se quase sem solução de continuidade em democracias parlamentares.

Isto ocorreu pois a política já estava transformada em biopolítica,

sendo agora necessário determinar qual a melhor forma de organização do Estado

para tornar mais eficaz o controle sobre a vida. Esta é a razão, conforme

Agamben, da indeterminação dos tradicionais conceitos políticos (público e

privado, liberalismo e totalitarismo, direita e esquerda), ou seja, o novo referencial

político.

A constatação mais contudente de Agamben (2002, p. 128) é que “no

mesmo passo em que se afirma a biopolítica, assiste-se, de fato, a um

deslocamento e a um progressivo alargamento, para além dos limites do estado de

exceção, da decisão sobre a vida nua na qual consistia a soberania”.

Este é o sinal. O cidadão se torna, assim, o suspeito por definição. O

significado jurídico dessa enigmática situação é a inclusão de todos os indivíduos

no limiar entre os não suspeitos e os indiferentes. Vale dizer: todos pertencem a

uma mesma ordem, absolutamente indeterminada e profundamente desigual, a

qual ignora todo e qualquer estatuto jurídico, pois o cidadão pode, a qualquer

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momento, estar totalmente desprovido de seus direitos, permitindo, com isto, uma

total indefinição do conceito de cidadão ou, em outros termos, sua significação

estar na dependência de uma ação política.

É nesta exata configuração que Giorgio Agamben trabalha o tema do

estado de exceção e a perda dos direitos sagrados e inalienáveis do homem,

mostrando que em determinados momentos o indivíduo pode estar totalmente

desprovido de qualquer tutela ao tempo em que perde seus direitos de cidadão de

um Estado, isto porque “o estado de exceção não é um direito especial (como

direito da guerra), mas, enquanto suspensão da própria ordem jurídica, define seu

patamar ou seu conceito limite” (Cf. Agamben, 2004, p. 15).

Estas violações de direitos (sagrados e inalienáveis) de que fala

Agamben estão nesta condição de vulnerabilidade em função do permanente

estado de guerra produzido por diversos fatores, especialmente aqueles

relacionados com a produção de biopoder e sua conseqüência nos campos

econômicos e políticos, possibilitando, contudo, que esta situação de aparente

anormalidade torne-se, com o passar do tempo, a regra.

As guerras, de que é exemplo não só aquelas ditas convencionais –

comumente protagonizadas pelos Estados Unidos – como aquelas realizadas

contra inimigos abstratos (drogas, terrorismo, degradação ambiental, etc.), os

regimes totalitários, os atuais campos de concentração, como as mais diversas

modalidades de segregação que se disseminam em escala nunca vista, expõem as

marcas desse novo poder. Ocorre que, com esta situação de indeterminação e

indiferenciação entre regra e exceção e, mais especificamente, diante da

possibilidade da exceção se tornar a regra é que ocorrem as maiores violações de

direitos, especialmente quando se proclama, continuamente, um estado de guerra,

seja ela no plano externo quanto no plano interno.

Entretanto, pergunta Domenico Losurdo (2003, p. 79): “a teoria

costumeira do totalitarismo não terá se transformado ela própria numa ideologia

da guerra, e da guerra total, contribuindo a alimentar ulteriormente os horrores

que pretende, no entanto, denunciar e caindo assim numa trágica contradição

performativa?”

Sem dúvida o que ocorre hoje é uma alteração do foco de atuação dos

discursos legitimadores de ações militares e “a luta contra o totalitarismo serve

para legitimar e transfigurar a guerra total contra os “bárbaros” estrangeiros ao

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Ocidente” (CF. Losurdo, 2003, p. 79), pois como se pode perceber especialmente

com as constantes denúncias do chamado “totalitarismo religioso” do Islã ou

mesmo do terrorismo (principalmente depois de 11 de setembro de 2001), bem

como, no caso brasileiro, com o “bombardeio” de informações sobre a

maximização do aumento da violência e sua conseqüente necessidade de combatê-

la.

Estas denúncias continuam a funcionar como ideologias da guerra

contra os inimigos do Ocidente e, em nome desta ideologia, são justificadas as

violações da Convenção de Genebra e o tratamento desumano reservado aos

detentos na baía de Guantánamo, o embargo e a punição coletiva impostos ao

povo iraquiano (e mais recentemente ao povo iraniano) e a outros povos. No

Brasil, o exemplo claro desse tratamento são as constantes alterações das leis

penais – processuais, penais e de execução penal – no sentido de recrudescimento

da norma, das penas e dos regimes de cumprimento6. A lógica do poder

disciplinar em estabelecer a ordem através da generalização, classificação e

separação de categorias, existe de forma diferenciada: a necessidade agora é outra,

não mais corpos dóceis e treinados, mas o total controle da vida.

Este controle da vida passa a ser alcançado quando o estado de guerra

se torna um elemento natural da vida social, ou seja, se torna perpétuo. O domínio

total da vida passa a ser a produção de morte. Para Hardt e Negri (2005, p. 41) “a

guerra só se torna efetivamente absoluta com o desenvolvimento tecnológico de

armas que pela primeira vez tornaram possível a destruição em massa e mesmo a

destruição global”, ou seja, a produção de morte que, simbolicamente, pode ser

representada por Hiroshima e Auschwitz, é uma forma de biopoder. Importante

aqui perceber que as guerras tomam o perfil de ação policial bem como de 6 Faço aqui, especificamente, alusão ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). O chamado RDD foi regulamentado pela Lei Federal no 10.792, de 10 de dezembro de 2003, que alterou o artigo 52 da Lei de Execuções Penais. Cabe aqui destacar, para os propósitos da presente pesquisa, que no final de 2005 a aplicação do novo dispositivo legal, que autorizava a inclusão, permanência ou exclusão do preso no sistema do RDD tornou-se ato exclusivo do Poder Judiciário, entretanto, por conta disso, a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo publicou a Resolução 59 estabelecendo o Regime Disciplinar Especial (RDE), o qual passava a competência administrativa da execução penal àquela secretaria, violando princípios penais constitucionais (em especial a impossibilidade do estado-membro legislar em matéria penal). Registre-se, por oportuno, que as ilegalidades perpetradas pelas diversas instâncias do Poder Executivo foram diluídas pelo discurso da eventualidade e da primazia da realidade fática, típica dos estados de exceção. Conforme aponta e orienta Rogério Dultra dos Santos (2006, p. 3), “a excepcionalidade da situação, isto é, a recorrência discursiva à necessidade do momento (por conta de rebeliões, fugas e/ou assassinatos de autoridades), estabeleceu a supressão consciente dos limites jurídicos pela autoridade administrativa”.

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destruição global, ou seja, esse biopoder realiza tanto a destruição em massa como

a ação individual.

Além desse caráter destrutivo, Hardt e Negri (2005, p. 42-43) apontam

para um novo caráter “ativo e constituinte” da guerra, que é uma grande alteração

do discurso: da política de defesa para a de segurança, o que fundamenta a guerra

preventiva, ou seja, uma “atitude de guerra reativa, ante ataques externos, para

uma atitude ativa destinada a prevenir um ataque”. Ainda que o direito

internacional sempre tenha repudiado a guerra preventiva, em função da agressão

à soberania dos Estados, o discurso da segurança pressupõe e permite a

manutenção da ordem através do condicionamento do ambiente com constantes

ações militares e policiais – um ambiente de vida social constantemente vigiado e

controlado tem a tendência, pelo menos na retórica, de ser mais seguro.

Destaque-se, contudo, que a esse perpétuo estado de guerra impõe-se

um reforço constante da necessidade de segurança global, ou seja, imperiosa

vinculação entre os resultados causados pela criação dos inimigos comuns –

especialmente do tráfico ilícito de drogas, armas e do terrorismo – e a divulgação

da multiplicação de atos violentos, possibilitando a inserção de novos mecanismos

de exploração (econômica e política) e de controle e a necessidade do

estabelecimento e manutenção da ordem global, sem o que se tornariam difíceis à

perpetuação da necessidade de segurança e, em conseqüência, a disciplina e o

controle.

Portanto, a “guerra deixou de ser o elemento final das seqüências de

poder – a força letal como último recurso – para se tornar o primeiro e

fundamental elemento, constituindo-se a base da própria política” (Cf. Hartd e

Negri, 2005, p. 44) deixando de ser regulada por estruturas jurídicas para

desempenhar uma função constituinte e tornar-se uma instância reguladora,

potencializando a constituição de uma estrutura produtora e intimamente

relacional entre biopoder e guerra7. Para tanto é fundamental a permanente

existência do inimigo e da ameaça da desordem para justificar e legitimar a

7 Hartd e Negri (2005, p. 46) apontam o programa político de reconstrução de países devastados como o Iraque como exemplo desse projeto. Para os efeitos dessa pesquisa é imprescindível relacionar essa condição de produção com a necessidade de procura de outros espaços geográficos à reprodução do capital especialmente, no caso do Brasil, da guerra interna proporcionada pelo combate ao “crime organizado”, ao “tráfico de drogas”, à proteção do meio ambiente, etc.

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violência estatal, mesmo porque é necessário que os resultados da violência

praticada tenham efeitos suficientes a legitimá-los.

Para Hardt e Negri (2005, p. 67 e segs.), esta alteração de forma e

finalidades da guerra ocorrida no início da década de 1970 tem íntima relação com

a produção econômica, pois basta ver (apenas como exemplo) que o Tratado de

Mísseis Antibalísticos, assinado entre os Estados Unidos e a União Soviética em

26 de maio de 1972, tenha ocorrido justamente entre dois momentos importantes

da economia mundial: em 1971 houve a desvinculação do dólar americano do

padrão ouro e, em 1973, a primeira crise do petróleo. É também neste período que

se caracteriza, para os economistas, a produção pós-fordista (já refenciada no

capítulo II da presente pesquisa), a qual “baseia-se na mobilidade e na

flexibilidade; integra vetores de inteligência, informação e trabalho imaterial;

potencializa a força, ampliando a militarização aos limites do espaço sideral, sobre

todas as superfícies do planeta e até o fundo dos oceanos” (2005, p. 68), ou seja, o

movimento do poder é no sentido de ultrapassar a lógica da disciplina ao controle

extremo e vital de todos.

5.1.1.3. Um terceiro significado: exclusão social, excesso de biopoder e violação dos Direitos Humanos

É preciso, neste instante, descrever outra tendência proporcionada

pelo pós-fordismo, estimulando uma caracterização de novas exclusões sociais. A

produção pós-fordista é marcada, a partir do início dos anos 1970, pela

diminuição da quantidade de força de trabalho necessária ao processo produtivo,

prioritariamente, pelo desenvolvimento das novas tecnologias requerido pela

estrutura de produção capitalista que procurava mecanismos alternativos em

função das constantes e cada vez maiores reivindicações dos trabalhadores

assalariados, buscando-se, pois, uma maior valorização do capital, ou seja, não

ampliar a produção, mas tão somente modificá-la, proporcionando, já na década

de 1980, uma crescente destruição dos postos de trabalho vivo.

As grandes atrocidades contemporâneas – desde as inimagináveis

agressões e destruição do meio ambiente, o crescente distanciamento e

desigualdades entre pobres e ricos, o aumento em escalas cada vez maiores do

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número de pessoas que vivem abaixo da linha da miséria (estima-se, hoje, que

mais de 1 bilhão e 100 milhões de pessoas estão nesta condição) – devem ser

analisadas a partir da crítica aos resultados apresentados pela liberalização e

financeirização do capitalismo pós-fordista, isto porque o parque fabril fordista é,

gradativamente substituído por um maquinário de alta tecnologia e de alta

produtividade, necessitando de menos trabalhadores com uma produção maior.

Ainda que possamos identificar no pós-fordismo a emancipação da rigidez

fordista, tanto em relação ao processo produtivo, que gradativamante é superado

por processos flexíveis através da incorporação da alta tecnologia, como também

nas relações “contratuais” coletivas (sindicais, por exemplo), uma vez que, de

certa forma, houve ganhos ao indivíduo trabalhador ao libertá-lo das jornadas

fixas e rotineiras características do “acordo fordista”, outro não foi o resultado

senão um enorme e crescente aumento de grandes parcelas da população em

situação pouco confortável – desempregados ou subempregados – permitindo,

então, que a relação existente no núcleo do próprio sistema produtivo fosse

flexibilizada, tornando-as cada vez mais precárias, permitindo o desaparecimento

de direitos conquistados via longas e dolorosas lutas sociais8.

Dá-se, portanto, uma completa desestruturação da força de trabalho,

forjando, por seu turno, uma nova classe de trabalhadores, destituídos dos mais

elementares direitos, ou seja, a produção pós-fordista conseguiu em pouco tempo

transformar o trabalho regulamentado, constante, estável, no qual o trabalhador

era legitimamente possuidor de direitos, em uma situação de difícil definição, mas

substancialmente caracterizada pelo desespero de não se ter o que fazer e, nesta

situação, submetendo-se a qualquer condição laboral – seja ela precária,

fragmentada, servil – que se lhe oferecesse.

8 Vale lembrar, contudo, que apesar do fordismo ter representado um modo amplo de reorganização sistêmica universal (como diriam David Ricardo e Marx), ele jamais foi homogêneo, bastando verificar a periferia do sistema – pense-se no caso brasileiro – e sua singular dinâmica, na qual os acordos corporativos não atingem mais do que uma parcela da classe trabalhadora, bem como há uma simbiose entre velhas e novas tecnologias dentro do mesmo processo produtivo, naturalmente associada a níveis salariais mais baixos que limitam o uso lucrativo de tecnologias de ponta, mesmo porque há aqueles, e são muitos, que sempre estiveram à margem desta suposta “estabilidade” (por isso se falar em fordismo periférico). É possível observar hoje que a velha “sorte da classe trabalhadora” está diretamente relacionada com os “acordos” corporativos de lá, e, claro, sua não “precarizacao”, que se articulam e se sustentam na ‘precariedade’ daqui. (nota de rodapé elaborada a partir de discussões realizadas durante as aulas de “Economia Política”, na UNESC, ministradas pelo Prof. Msc. Sandro Grisa).

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É este o sentido que se quer demonstrar à nova configuração da

relação entre capital e trabalho, isto é, a exclusão dos indivíduos do mercado de

trabalho corresponde, no mesmo sentido e ao mesmo tempo, à total exclusão dos

direitos sociais, à banalização da relação do indivíduo com o Estado, permitindo,

todavia, estabelecer, na contra-mão da história, a trágica situação de milhares de

pessoas sem qualquer expectativa de vida, isto porque a dinâmica da situação está

permitindo aprofundar o déficit social em razão direta à inadequação dos

instrumentos políticos institucionais que no período fordista de produção permitia,

especialmente os instrumentos de inclusão cidadã típicos que o Estado

keynesiano, de certa forma, proporcionava.

Conforme analisa Alessandro De Giorgi (2002, p. 69), “Delineia-se,

nesse momento, uma profunda contradição: o reconhecimento do direito à

cidadania, à inclusão social e ao rendimento é subordinado a um trabalho,

entendido como emprego, que não tem mais uma referência material. Se até a

segunda metade do século XX foi possível construir a cidadania como conjunto de

direitos do trabalho mediados pelo direito ao trabalho, direitos que o compromisso

fordista podia garantir mediante a reprodução do ciclo trabalho-salário-consumo-

cidadania, agora esta dinâmica não é mais imaginável”9.

A conseqüência mais marcante é a forma que foi alterada a relação

social entre capital e força de trabalho, isto porque aquela força de trabalho do

período fordista que necessitava disciplina e controle está flexibilizada, móvel,

fluida, provocando uma negação dos direitos sociais e de cidadania. Agora a

“preocupação” é o que fazer para controlar a multidão10, ou seja, um grande e

9 “Si delínea a questo punto uma profonda contraddizione: il riconoscimento Del diritto allá cittadinanza all´inclusione sociale e al reddito è subordinato a un lavoro, inteso come impiego, que non ha più un referente materiale. Se fino alla seconda metà del Nocento è stato possibile costruire la cittadinanza come complesso di diritti del lavoro mediati dal diritto al lavoro, diritti che il compromesso fordista poteva garantire mediante la riproduzione del ciclo lavoro-salario-consumo-cittadinanza, ora questa dinamica non è più immaginabile”. 10 Na obra “Multidão: guerra e democracia na era do Império” (Tradução Clóvis marques. Rio de Janeiro: Record, 2005), Hardt e Negri, abrem a possibilidade da democracia estabelecer os parâmetros para alcançar os desejos de um mundo mais igual e livre e a “multidão” é a “alternativa viva que vem se constituindo dentro do Império”, isto porque globalização é também a “criação de novos circuitos de cooperação e colaboração que se alargam pelas nações e os continentes, facultando uma quantidade infinita de encontros”, possibilitando a manutenção das diferenças aproximando os pontos em comum e o agir conjunto (p. 12). Para eles, a “multidão” diferencia-se de outros sujeitos sociais como “povo”, as “massas” e a “classe operária”. Se “povo” tem uma concepção unitária a “multidão” é múltipla – composta de inúmeras diferenças internas (culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais), diferentes formas de trabalho, diferentes desejos e maneiras de viver. Em relação às massas, compostas de todos os tipos e espécies, não se pode dizer que diferentes sujeitos sociais as formam, pois sua essência é a indiferença, entretanto na

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fértil campo a imperar a lógica da ausência de regras e, conseqüentemente,

facilitar e assegurar a intervenção, ainda que violenta, do Estado.

Isto tudo é importante para demonstrar que a cena contemporânea

mudou, isto porque a tendência das novas formas da produção está em constante

transformação, na qual o motor de propulsão é, sem dúvida, a nova forma global

de soberania11, ou a nova ordem política: o Império, isto é, ultrapassando a lógica

do imperialismo moderno – caracterizado pela centralidade do poder e o

monopólio sobre o território – de domínio europeu e da expansão capitalista dos

séculos passados (caracterizados, principalmente, pela conquista territorial

estrangeira), surge um poder em rede, fundado principalmente no poder dos

Estados-nação dominantes e das grandes corporações multinacionais.

É preciso, todavia, delinear as novas configurações da produção da

nova ordem política e econômica global, não mais da força de trabalho do período

fordista, mas a partir de uma lógica da multidão (da composição social da

multidão – características culturais, de raças, etnias, gêneros e orientações

sexuais), a partir das diferentes formas de trabalho, desejos e maneiras de viver,

saberes, imagens, afetos, etc., não mais do trabalho sob o domínio do capital, mas

através da composição social do trabalho, ou seja, ultrapassar os limites do

domínio do poder disciplinar sobre o corpo e entender as transformações sob a

hegemonia do trabalho imaterial, isto porque diante da tendência da

“multidão” as diferenças sociais mantêm-se diferentes. Neste sentido o desafio da “multidão” é possuir um movimento comum, respeitada a diversidade. Os autores também fazem a distinção de “multidão” e “classe operária”, pois para eles o conceito de “classe operária” serve, num primeiro momento para distinguir os trabalhadores dos proprietários dos meios de produção, bem como (em sentido mais estreito) separando a classe operária (trabalhadores industriais) de outros trabalhadores (agricultura, serviços, etc.). Num segundo momento, “classe operária” refere-se a todos aqueles trabalhadores assalariados. Para os autores (Hardt e Negri), “multidão” é um conceito aberto e abrangente em função das transformações ocorridas na esfera da economia global, pois se de um lado a classe operária industrial não desempenha um papel hegemônico na economia global (ainda que, quantitativamente, não tenha diminuído), “a produção já não pode ser concebida apenas em termos econômicos, devendo ser encarada de maneira mais ampla como produção social – não apenas a produção de bens materiais, mas também a produção de comunicações, relações e formas de vida” (p. 13), constituindo-se, pois, de diferentes configurações da produção social. 11 Michael Hardt e Antonio Negri desenvolvem a idéia de uma nova soberania a partir da categoria “império” (Império. Tradução de Berilo Vargas. 6a ed., Rio de Janeiro: Record, 2004), aduzindo substancialmente que é preciso reconhecer que a ordem global contemporânea não pode ser entendida somente no mesmo sentido atribuído pela soberania do Estado-nação, mas por uma nova forma de soberania, agora um poder em rede que possui como elementos fundamentais, além dos Estados-nação, uma ordem destituída de um centro de comando e coordenada por corporações multinacionais e instituições supranacionais.

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desmaterialização do trabalho não só surgem novas formas de trabalho como

também outras formas tendem a se transformar.

Cristian Marazzi ao analisar a crise do que chama de new economy12,

reforça a idéia de que a mesma revolução tecnológica que foi responsável pela

produção pós-fordista e redução do tempo improdutivo, também foi capaz de

possibilitar o maior acesso social às informações, contribuindo, porém, com o

aumento do tempo de trabalho, reduzindo o “tempo de atenção que somos capazes

de dedicar a nós mesmos e às pessoas com quem trabalhamos e convivemos”

(2002, p. 35-36).

Entretanto, Marazzi (2002, p. 36) compreende que esta sobrecarga de

informações, resultado do crescimento de dispositivos tecnológicos de acesso às

informações, proporcionou na nova economia, do lado da oferta, “rendimentos

crescentes em virtude da desmaterialização e reprodução dos bens instrumentais”,

entretanto, pelo lado da procura de bens e serviços, a atenção tem rendimentos

decrescentes, “porque a atenção é um bem fugaz, facilmente perecível”.

Como visto, a produção pós-fordista intentou superar os mecanismos

protagonizados pela produção fordista-taylorista, resultando no “trabalho

reflexivo, cognitivo e comunicativo, o trabalho vivo do general intellect

centralizado na cooperação lingüística de homens e mulheres, na circulação

produtiva de conceitos e de esquemas lógicos inseparáveis da interação viva dos

homens” (Cf. Marazzi, 2002, p. 37).

As transformações proporcionadas pela produção da nova economia

estão voltadas à capacidade e quantidade de informações, mobilizando e

otimizando os mecanismos externos ao trabalho (especialmente pela revolução

tecnológica) permitindo a eliminação do tempo improdutivo do trabalhador,

aumentando-se o valor de uso das mercadorias e, conseqüentemente, o lucro, isto 12 A discussão que Cristian Marazzi (2002) faz neste artigo é muito interessante, especialmente porque ele diagnostica através de análises dos movimentos antiglobalização (de Seattle a Gênova em julho de 2001), o problema da relação da produção pós-industrial e a capacidade dos mercados e das empresas se moldarem às novas expectativas, ou seja, “de emancipar-se da fábrica e das fronteiras nacionais para comercializar desejos, imaginários, estilos de vida, para capitalizar o imaterial” (p. 32), isto porque, de certa forma, as lutas dos movimentos sociais antiglobalização se constituíram contra a utilização privada do espaço público, bem como contra a “comercialização simbólica operada pelas multinacionais produtoras de bens de consumo” (p. 33). Para ele “a luta contra a logomarca e o circuito mundial de exploração da mão-de-obra funcionou como alavanca no crescimento global de um movimento ´antiglobal´” (p. 33). Esta é a razão de identificar a origem da crise da new economy e entendê-la como um “modo de produção capitalista atravessado pela comunicação, pela força produtiva da linguagem, seja na esfera diretamente produtiva de mercadorias, seja na monetária e financeira” (p. 35).

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porque tais transformações reduziram “a quantidade de tempo de atenção

necessária para absorver a oferta total de bens informativos” (Cf. Marazzi, 2002,

p. 37).

Marazzi vê, ainda, que neste contexto a crise gerada pela

desproporção entre a oferta de informações e a procura de atenção conduza a

processos de monopolização da produção e da distribuição da informação, mas

não de sua procura, pois apesar de ser necessário o aumento de investimento para

controlar a atenção é necessário também, do lado da procura (do lado do consumo

da atenção), um rendimento suficiente para adquirir os bens informativos

oferecidos no mercado.

Trata-se de uma contradição capitalista, contradição interna à forma de valor, ao seu ser simultaneamente mercadoria e dinheiro, mercadoria cada vez mais guarnecida de informações (necessárias para ganhar um pedaço de mercado) e dinheiro-rendimento sempre mais distribuído de modo a não aumentar a procura efetiva. A financeirização da década de 1990 de fato gerou rendimentos somadores, mas, além de os ter distribuído de modo desigual, criou-os destruindo salário e estabilidade ocupacional. A destruição da estabilidade ocupacional e da regularidade salarial contribuiu para agravar o déficit de atenção dos trabalhadores-consumidores, obrigando-os a dedicar mais atenção à busca de trabalho que ao consumo de bens e serviços imateriais (grifo nosso). (Cf. Marazzi, 2002, p. 38).

Este excesso de inovações tecnológicas proporcionou uma alta

produção sem a devida correspondência da capacidade de absorção do mercado à

demanda efetiva, ou seja, superando a capacidade dos indivíduos de consumir,

sejam livros, internet ou via televisão, produzindo uma espécie de recessão

econômica. As conseqüências dessa crise apontadas por Marazzi (2002, p. 41) são

importantes especialmente quando se percebe a destruição de toneladas de

equipamentos eletrônicos que o mercado não absorveu, destruindo

sistematicamente milhares de postos de trabalho no mundo inteiro: desde grandes

cidades inglesas como Liverpool e Coventry, como no chamado Vale do Silício13

ou nas zonas industriais de exportações das Filipinas e da Indonésia. Estes novos

processos protagonizados pela nova economia são os resultados “da determinação

com a qual o capital destruiu a fábrica fordista; é fruto da violência com a qual o

capital aterrorizou o trabalho cognitivo, exatamente como colonizou 13 O Vale do silício ou Silicon Valley está situado na Califórnia, Estados Unidos, e corresponde a um conjunto de empresas produtoras de chips, implantadas na década de 50 do século XX, com o objetivo de aumentar e inovar suas capacidades científicas e tecnológicas.

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simbolicamente o espaço público, enxertando no trabalho competências, saberes,

conhecimentos, paixões, afetos, capacidade de relação e de comunicação da mão-

de-obra” (Cf. Marazzi, 2002, p. 41).

Não se está falando da perda da centralidade do trabalho vivo, mas

uma tendência do mercado de trabalho de um modo geral, mesmo porque, como

afirmam Hardt e Negri isto significa que a cena contemporânea do trabalho e da

produção está “sendo transformada sob a hegemonia do trabalho imaterial, ou

seja, trabalho que produz produtos imateriais, como a informação, o

conhecimento, idéias, imagens, relacionamentos e afetos”, é dizer, não significa

que não existam mais trabalhadores na indústria, comércio ou na agricultura, ou

mesmo tenha diminuído a quantidade desses trabalhadores, mas tão somente que

“as qualidades da produção imaterial tendem hoje a transformar as outras formas

de trabalho e mesmo a sociedade como um todo” (2005, p. 100), mesmo porque,

conforme afirma Ricardo Antunes (2005, p. 161) vários experimentos de

automação dos processos de produção que ignoraram (desconsideraram) o

trabalho vivo fracassaram, demonstrando claramente que mesmo com todo o

aparato tecnológico não se pode prescindir da mão-de-obra viva.

Ocorre, em verdade, que “o sistema de metabolismo social do capital

necessita cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais das diversificadas

formas de trabalho parcial”, ou seja, “como o capital não pode eliminar o trabalho

vivo do processo de mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais, ele deve,

além de incrementar sem limites o trabalho morto corporificado no maquinário

tecno-científico, aumentar a produtividade do trabalho de modo a intensificar as

formas de extração do sobretralho em tempo cada vez mais reduzido”, produzindo

a redução do proletariado taylorizado, ampliando o trabalho intelectual abstrato

bem como aumentando a quantidade de trabalhadores precarizados (Cf. Antunes,

2005, 160), resultando no aumento da quantidade de trabalhadores que vivem em

condições precárias.

Isto tudo pode ser considerado uma enorme extensão do poder sobre a

vida, é dizer, um excesso de biopoder que provoca uma infinidade de problemas

(já conhecidos), não só na organização da vida social – exclusão social,

desemprego em massa, criminalização da miséria, banalização da vida, etc. –

como também problemas relacionados com a própria dimensão da vida em si

(aqueles ainda não são conhecidos concretamente) – e que de alguma maneira

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deverão ser enfrentados nas próximas décadas, especialmente sobre as

conseqüências deste excesso em relação à soberania humana sobre si mesma, ou

seja, o domínio do ser humano diante dessa multidão.

5.2. O mercado como centro de produção normativa e de decisão política

Como foi mencionado no capítulo anterior, no contexto da presente

pesquisa a expressão “mercado” terá seu sentido delimitado como órgão de

decisão política e centro de produção normativa, devendo, entretanto, o mercado

referenciar a necessidade e a legitimação da utilização de mecanismos de controle

social, como passaremos a analisar doravante, isto porque, se partindo da análise

do tópico anterior foi possível contemplar e analisar o desenvolvimento da intensa

peculiar relação entre as novas tecnologias e o mundo do trabalho, é necessário

entender agora que, se há a tendência do mercado de trabalho ser transformado

sob a hegemonia do trabalho imaterial, o deslocamento da soberania do Estado-

nação ao mercado permitirá dizer que haverá um maior controle da

disponibilidade da vida dos cidadãos.

É preciso, então, relacionar o conteúdo da violência estrutural e

institucional do Estado a fim de estabelecer conexão entre o modelo econômico

neoliberal com o fenômeno da desregulamentação dos direitos sociais e

trabalhistas e a retomada do Estado punitivo, uma vez que a “ascensão do

salariado precário (sobre um fundo de desemprego de massa na Europa e de

“miséria laboriosa” na América) e retomada do Estado punitivo seguem juntos: a

“mão invisível” do mercado de trabalho precarizado encontra seu complemento

institucional no “punho de ferro” do Estado que se reorganiza de maneira a

estrangular as desordens geradas pela difusão da insegurança social.

(WACQUANT, 2001 a, p. 135), ou seja, duas caras da mesma realidade.

Existe uma íntima relação entre economia e sociedade de controle, isto

porque na contemporaneidade ambas representam racionalidades do modelo

liberal de desenvolvimento, em função de permitirem um discurso plasmado na

minimização (redução) do distanciamento social entre os indivíduos, pois, se de

um lado temos a possibilidade de todos participarem ativamente das relações de

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produção e de consumo, de outro temos o controle estatal garantindo que aqueles

que não estiverem aptos a estas circunstâncias serão absorvidos pelo poder penal.

Entra em cena uma importante face da centralidade do mercado como

órgão de decisão política e centro de produção normativa, isto porque é a ordem

mercadológica que proporciona a tomada de decisão política mais adequada, é

dizer, é a estrutura sócio-econômica que determina a exata dimensão e proporção

da atuação estatal na produção de leis – sejam elas de origem do poder executivo

ou do poder legislativo. Sob um enfoque metafórico, é possível, de forma

analógica, estabelecer a relação entre a categoria schmittiana de “soberano” (como

aquele que decide sobre o estado de exceção) e o mercado.

Ocorre que se no período das políticas keynesianas era possível

minimizar as conseqüências do desemprego e da exclusão social com políticas de

mediação entre poder público e população carente, hoje o cenário é outro, pois os

instrumentos compensadores, típicos do Estado de bem-estar social, não podem

mais ser utilizados, impossibilitando também a satisfação das carências

proporcionadas criando um enorme desequilíbrio social incapaz de ser resolvido

pelo Estado. Para Bauman (1998, p. 34):

A desregulação universal – a inquestionável e irrestrita prioridade outorgada à irracionalidade e à cegueira moral da competição de mercado –, a desatada liberdade concedida ao capital e às finanças à custa de todas as outras liberdades, o despedaçamento das redes de segurança socialmente tecidas e societariamente sustentadas, e o repúdio a todas as razões que não econômicas, deram um novo impulso ao implacável processo de polarização, outrora detido (apenas temporariamente, como agora se percebe) pelas estruturas legais do estado do bem-estar, dos direitos de negociação dos sindicatos, da legislação do trabalho e – numa escala global (embora, neste caso, de modo muito menos convincente) – pelos primeiros efeitos dos órgãos internacionais encarregados da redistribuição do capital. A desigualdade – intercontinental, entre os estados e, mais fundamentalmente, dentro da mesma sociedade (sem levar em conta o nível do PNB exaltado ou lastimado pelo país) – atinge uma vez mais proporções que o mundo de há muito pouco tempo, confiante em sua habilidade de auto-regular-se e autocorrigir-se, parecia ter deixado para trás uma vez por todas.

Para Agamben “o totalitarismo moderno pode ser definido, nesse

sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil

legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas

também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não

integráveis ao sistema político” (2004, p. 13).

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5.2.1. A exacerbação da divulgação de atos de violência como mecanismos de controle

O mercado funciona, dentro de uma lógica globalizada, como órgão

de decisão política e centro de produção normativa, mas também revela outras

importantes facetas, como sua impressionante mobilidade e adequação à

realidade, isto porque na conquista de novos mercados, vale tudo, inclusive a

inserção, no inconsciente, de discursos velados e falaciosos, como a geração de

empregos e renda e arrecadação de impostos. Enfim, qual a importância,

econômica e social, de haver, cada vez mais, um aumento da criminalização de

condutas? A partir da proposição feita pela criminologia crítica (a observação é

proporcionada a partir da análise materialista dos processos institucionais e

estruturais do controle do desvio, tanto do ponto de vista das estratégias de poder

como da análise dos seus receptores – criminalização primária e secundária) é

possível diagnosticar que diante de um Estado inerte de políticas públicas, sociais

e econômicas sérias14, a perspectiva contemporânea frente ao atual quadro de

polarização social15, fomentado pelas políticas sócio-econômicas propostas pelo

neoliberalismo é preocupante.

A forma encontrada para administrar e conter massas de insatisfeitos e

excluídos pelo mercado, é a utilização do sistema de controle social, do tipo penal,

isto porque a sociedade capitalista (na versão neoliberal ‘capitalismo de mercado’)

está baseada na desigualdade e subordinação, necessitando, pois, de um sistema

de controle social do desvio do tipo repressivo, através do aparato do sistema

penal do direito burguês, pois este (direito penal) “é um instrumento precípuo de

produção e de reprodução de relações de desigualdade, de conservação da escala

14 É bom deixar claro que a afirmação de que o Estado está inerte de “políticas públicas, sociais e econômicas sérias” está relacionado com a orientação liberal que procura transformá-las em programas “focados”, isto é, sem o caráter de universalidade que caracteriza as chamadas políticas públicas keynesianas, ou seja, estão orientadas dentro de uma lógica neo-conservadora, para usar uma expressão do D. Harvey. 15 A polarização social está definida sob o ponto de vista econômico. Ela ocorre ante a desigual distribuição da riqueza, observando-se o abismo existente entre os poucos que tem muito e os muitos que tem pouco, caracterizado pelo aumento da quantidade de desempregados formais, pelo sub-emprego, pela existência do trabalho ilegal (trabalho escravo, trabalho informal e trabalho ilícito. Este último realizado pelo recrutamento de pessoas – jovens, na sua maioria – para execução de atividades ligadas ao tráfico ilícito de drogas, armas, etc).

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social vertical e das relações de subordinação e de exploração do homem pelo

homem” (Cf. BARATTA, 1999, p. 206/207).

O Estado, enquanto produtor de violência, tanto estrutural (pela

reprodução da desigualdade social) como institucional (pela atuação do aparato

repressivo estatal), juntamente às transformações efetivas dos processos de

produção – como do fordismo ao pós-fordismo – corroboram à consecução de

dois objetivos fundamentais à economia política das penas, os quais devem ser

analisados16:

a) a exploração da indústria do crime, fomentada por duas vertentes,

uma pública, outra privada. A indústria do crime, usando a expressão de Nils

Christie, possibilita, através dos mais diversos e modernos mecanismos de

controle (como as câmeras de vídeo, privatização dos presídios, informatização do

controle prisional, aquisição de veículos – motos, carros, caminhões, helicópteros,

aviões – armamentos, suprimentos, investimento tecnológico, treinamento e

contratação de pessoal, etc.) um enorme investimento público no setor. Sob o

signo da iniciativa privada, o controle do crime mostra-se extremamente sedutor

como novo nicho de mercado, especialmente pela possibilidade do surgimento de

empresas que prestam serviços de segurança.

b) de outro lado, há também, como segundo objetivo da

criminalização das condutas, a possibilidade de controle e exclusão dos

excedentes, dos consumidores falhos, daqueles que não fazem diferença à

produção econômica.

É possível dizer, assim, que o mercado, da mesma forma que os

campos de concentração, consegue demonstrar qual a vida que é indigna de ser

vivida. É neste sentido que nos interessa a perspectiva biopolítica diante da lógica

neoliberal de mercado, ou seja, a interação das relações sociais e políticas

contemporâneas diante do fato do homem perder sua condição de vivente: é a vida

nua. É a total indiferença em relação à existência do outro, é a criação do inimigo

diante de sua impossibilidade de ser um consumidor (o consumidor falho, que nos

fala Bauman), é aquele destituído de seus direitos sobre a própria vida, é a

possibilidade de morrer sem estar morto, sem que se cometa contra ele um 16 É bom lembrar aqui que apesar da propositura neoliberal em diminuir as fronteiras do Estado moderno, “o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte apoio do Estado” (MÉSZÁROS, 2003, p. 29), comprovando a necessidade da chamada “ajuda externa” para a reprodução do capital.

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homicídio, ou, no dizer exato de Agamben (2002, p. 146), como característica do

homo sacer, “o fato de que à soberania do homem vivente sobre a sua vida

corresponda imediatamente a fixação de um limiar além do qual a vida cessa de

ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta sem que se cometa homicídio”.

O atual quadro demonstra que este é o sentido e a tendência que se

mostram ao adotar políticas de segurança pública conservadoras nas sociedades

contemporâneas. É preciso, neste momento, entender a relação e as conseqüências

entre a adoção das atuais políticas de segurança públicas e o mercado como

espaço soberano. Esta é uma importante relação que deve estar perfeitamente

delimitada, isto porque parte-se do pressuposto de que há sérias conseqüências na

adoção de políticas públicas neoliberais, em relação à segurança pública,

especialmente pelo deslocamento da soberania do Estado para o mercado.

A partir do paradoxo da soberania estabelecido por Giorgio Agamben,

quando delimita que a vida do homo sacer não pode ser sacrificada, mas pode ser

morta, ele estabelece o limite entre a violência da ordem legal sem significado, ou

seja, a cristalização do código a decifrar: a intromissão da política na vida ou, em

outras palavras, a vertente mais moderna da vulnerabilidade da vida, o que hoje

poderíamos dizer dos não consumidores, aqueles excluídos pelo mercado. Para

Agamben (2002, p. 67),

Se o ser nada mais é, neste sentido, que o ser a-bandonado17 do ente, então aqui a estrutura ontológica da soberania põe a nu o seu paradoxo. É a relação de abandono que agora deve ser pesada de modo novo. Ler esta relação como vigência sem significado, ou seja, como o ser abandonado a e por uma lei que não prescreve nada além de si mesma, significa permanecer dentro do niilismo, ou seja, não levar ao extremo a experiência do abandono.

Para entender a condição de exclusão e abandono, é necessário

ultrapassar o paradoxo da soberania (lei com vigência, sem significado), em

direção ao entendimento de que a soberania é a ‘lei além da lei à qual estamos

17 Cabe aqui uma breve inscrição. Para Agamben (2002, p. 36/37), “se a exceção é a estrutura da soberania, a soberania não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão”. “(...) chamemos de bando a esta potência da lei de manter-se na própria privação, de aplicar-se desaplicando-se. A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto de fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem”.

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200

abandonados’, ou seja, ser excluído (banido) significa estar em um lugar

indefinível entre a lei e a vida, num verdadeiro ‘estado de exceção’ (Cf. Agamben,

2002, p. 66). A condição de consumidor, imposta pelo mercado é, hoje, a

exposição da vida a uma brutal violência, pois impõe ao sujeito, sob a

identificação perniciosa da liberdade, condições insustentáveis e inatingíveis. Está

implícita nesta condição imposta pelo mercado uma criação de subjetivação, ou

seja, a venda de valores, crenças, posição social e estilo de vida, contribuem ao

sentido angustiante de frustração e violência associada à necessidade (e

impossibilidade) de consumo na fase atual.

A condição do povo hebreu não foi um sacrifício (pois Hitler aludia

que eles foram mortos “como piolhos”), disfarçado pelo véu do holocausto, mas a

realização de uma mera matabilidade. De forma idêntica, não há sacrifício em

excluir do mercado os consumidores e trabalhadores falhos, apenas mera

matabilidade. Nos dois casos, do consumidor pela impossibilidade de consumir

(ou consumir sem liberdade) e do trabalhador por não conseguir vender sua força

de trabalho (alienação18), especialmente pela cruel imposição do sistema penal e

do processo de acumulação do capital, ocorre o abandono desse indivíduo.

A exclusão pelo mercado se dá pela adoção de políticas públicas,

valores e idéias de viés neoliberal, segundo as quais estruturam-se em práticas

ideológicas mercantilistas e privatistas pela diminuição do tamanho do Estado,

garantidor da liberdade de escolha e da regulação pelo mercado. Bauman (1998, p.

23), afirma, entretanto, que no mundo pós-moderno, da vida livre e da

concorrência, o indivíduo é analisado pelo severo teste de pureza que necessita ser

transposto por aquele que pretenda ser incluído socialmente, sob pena de ser

considerado ‘diferente’ pela exigente lógica do mercado consumidor. “Nem todos

podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a ‘sujeira’ da pureza pós-

moderna”. Este é o mecanismo de exclusão social mais comum.

18 Alienação, aqui, é tratada em termos marxistas, ou seja, o que determina a alienação é a oportunidade de determinado indivíduo vender ou não sua força de trabalho, o que não significa que ele vai vender. Os alienados são aqueles que não têm mais sentido para o Modo de Produção Capitalista e assim, mesmo que queiram, não conseguem vender sua força de trabalho. Cabe, porém, para uma melhor percepção da relação que se pretende estabelecer, ou seja, a caracterização do “abandono”, entender que é no seccionamento que configura o processo de produção em geral, e o processo de produção capitalista em particular, que se aprofunda e, ao mesmo tempo, se revela a alienação do processo produtivo, mas, diga-se, traz consigo, dialeticamente, a necessidade de resolução da alienação. A alienação se caracteriza, assim, como o total abandono no processo de produção capitalista.b

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201

De forma semelhante ocorre com o trabalhador que, por diversas

razões, não consegue mais vender sua força de trabalho19, esta combinação de

fatores fomenta o aparecimento, cada vez maior e de forma permanente, de um

exército de reserva responsável pela maior relação de excesso, sobra e desprezível

força de trabalho, a qual não consegue mais ser vendida. Assim é que, o

indivíduo, ao perder a possibilidade de permanecer dentro de uma relação social

de compra e venda de força de trabalho, deixa de pertencer a ela, caracterizando o

abandono no processo produtivo capitalista.

É preciso perceber a dimensão dessa terrível exclusão (nos dois casos,

tanto pelo mercado como pelo sistema de produção econômica), ou seja, ela não é

operada pelo sistema legal, mas pela biopolítica. Neste sentido, o novo homo

sacer é delimitado pelo mercado, tanto pelo mercado consumidor como pelo

mercado de trabalho, constituindo-se, portanto – tanto o mercado consumidor

como o mercado de trabalho – como “legítimos” espaços biopolíticos da

contemporaneidade.

A aura sacrificável de hoje, são os excluídos (encarcerados, não

consumidores, não-trabalhadores, etc.), pois tutelados por organizações que

buscam satisfazer suas condições básicas de sobrevivência, mascaram, entretanto,

sua condição biopolítica. É um caso flagrante de vidas matáveis e insacrificáveis.

5.3. O estado de exceção

Sob este ponto de vista, é necessário demonstrar algumas

características da exploração e divulgação da violência e os efeitos perversos

proporcionados pelo sentimento de insegurança. Para esta dilucidação, duas

ponderações devem ser enfrentadas: a primeira está diretamente relacionada com

os efeitos instituídos pela adoção de políticas de segurança pública neoliberais,

ditas conservadoras, como as políticas de “tolerância zero” e o movimento de “lei

e ordem” e, a segunda, está relacionada com os pressupostos econômicos que 19 Poderíamos elencar diversos motivos, dentre os quais: a) a abundância de mão-de-obra pouco ou nada qualificada que, pelo avanço tecnológico e possibilidade de escolha, há a necessidade do trabalhador possuir alto nível de qualificação técnica; b) com o aumento da composição orgânica do capital, cada vez menos força de trabalho é necessária para empregar os meios de produção; c) necessidade de mão-de-obra excedente para funcionar como regulador de reivindicações salariais; etc.

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202

impõe estas políticas. Estas duas ponderações serão objeto de análise das

hipóteses seguintes.

Cabe aqui mostrar as características e efeitos proporcionados pelo

sentimento de insegurança. Para tanto, é preciso analisar “como” o Estado

contribui e se esforça para inculcar no imaginário popular (senso comum), sob

vários aspectos, que a exclusão social (pobreza em geral) não ultrapassa a órbita

individual, responsabilizando cada indivíduo pelo seu fracasso pessoal.

Foi, prioritariamente, mediante o positivismo jurídico,

especificamente pelo princípio da igualdade e, mais adiante convertido de

igualdade jurídica (pois todos são iguais perante a lei), que todos teriam iguais

oportunidades para, num sistema de liberdades, serem responsáveis. Diante dessa

responsabilização pessoal o indivíduo reconhece a possibilidade e necessidade de

delegar a outros que obtiveram sucesso (quem vence é o mais apto – seleção

natural), a administração dos conflitos sociais, privatizando-os, isto porque as

políticas econômicas neoliberais, em especial os processos de globalização,

conduziram à atual crise de identidade da civilização, pois os interesses do grande

capital – traduzida na militarização e hierarquização das potências hegemônicas –

intensificaram a perversa e excludente política social e humanitária.

Ocorre que, neste momento de democracias liberais ou de mercado,

tudo está centralizado no sujeito, desde sua autonomia econômica, política,

jurídica, até simbólica. Para além das mais enfáticas demonstrações narcísicas da

sociedade, há uma perfeita criação e destruição (ambivalência das pulsões) pois

“as formas de destituição subjetiva que invadem as nossas sociedades revelam-se

através de múltiplos sintomas: os colapsos psíquicos, o mal-estar no campo

cultural, a multiplicação de atos de violência e a emergência de formas de

exploração em vasta escala – como a destruição ambiental. Todos estes elementos

são vetores de novas formas de alienação e desigualdade” (Cf. Dufour, 2001, p.

1).

A multiplicação dos atos de violência e as novas formas de exploração

estão caracterizadas a partir do desaparecimento das instâncias coletivas de

resolução dos conflitos em detrimento do surgimento das organizações privadas.

Assim é que a dinâmica social contemporânea, essencialmente individualista da

vida, não se limita à reclusão dos sujeitos ao espaço privado, mas, se caracteriza,

aprisionando-os na solidão radical de seu narcisismo, provocando um sentimento

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203

de vazio e uma atitude em relação ao outro, muito mais próxima da indiferença

que da culpa, e este (outro), diante de uma sociedade hegemonicamente de

consumo, é tido apenas como um objeto de consumo.

O resultado dos desvios do projeto de universalização dos direitos

(dignidade, por excelência) a um projeto voltado à promoção do mercado aguça

cada vez mais o drama da polarização social, aumenta o sofrimento dos muitos e

potencializa a inclusão de outros tantos na miséria, pobreza e a não decência de

vida. Contudo, este interessante cenário sugere como e porque o sistema sócio-

econômico está a operar o controle dessa população, isto porque, as políticas de

segurança públicas implementadas, trabalham sob a lógica da guerra civil legal

ou, se preferir, sob o perpétuo estado de exceção, no qual as regras apenas

proporcionam sua atuação diante da normalidade social, é dizer, é possível

suspender – via decisão soberana – os direitos individuais e coletivos com a

finalidade de manutenção e (ou) recomposição da ordem, ainda que estes atos

sejam atentatórios a direitos mas que, prioritariamente, possam, apesar de suprimir

liberdades, qualificar positivamente a decisão.

Para Giorgio Agamben “a criação voluntária de um estado de

emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido

técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos,

inclusive dos chamados democráticos”, cuja tendência é a de apresentar-se como

“paradigma de governo na política contemporânea” num patamar de

“indeterminação entre democracia e absolutismo” (2004, p. 13).

Estas políticas de exceção têm gerado conseqüências importantes em

todo o mundo, inclusive no Brasil. As condições dos prisioneiros na Baía de

Guantánamo imposta pela legislação norte-americana, por exemplo, mostram a

lógica do estado de exceção vigente nos Estados Unidos, especialmente depois

dos atentados de 11 de setembro de 2001 ao impor a determinados indivíduos uma

indefinite detentios (suspeitos de terrorismo, principalmente). Para Agamben

(2004, p. 14) esta military order promulgada pelo presidente dos Estados Unidos

em 13 de novembro de 2001 referenda o significado biopolítico do estado

exceção.

Alguns dias antes desta military order ser promulgada, mais

exatamente no dia 26 de outubro de 2001, o Senado norte-americano promulga o

chamado USA Patriot Act (Lei Patriótica, ou a abreviação de "Provide

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204

Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism")20 com

finalidade de proteger a sociedade contra ataques terroristas possibilitando

aumentar a segurança interna e declarar guerra contra o terror, eliminando as

barreiras da privacidade (uso de e.mails, internet, ligações telefônicas,

informações pessoais em bibliotecas sobre livros buscados, etc.) dos cidadãos

suspeitos21.

Para Agamben o USA Patriot Act permite ao attorney general manter

preso o estrangeiro (“alien”), pelo prazo de 7 dias (quando deverá ser expulso ou

acusado, formalmente, de violação da lei de imigração, ou outro delito), suspeito

de atividades que ponham em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.

Entretanto, continua Agamben “a novidade da “ordem” do presidente Bush está

em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa

forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”. Argumenta Agamben,

ainda, que os prisioneiros, por exemplo, os “talibãs capturados no Afeganistão,

além de não gozarem do estatuto de POW (prisioneiro de guerra), segundo a

Convenção de Genebra, tampouco gozam daquele de acusado segundo as leis

norte-americanas. Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas “detainees”, são

objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no

sentido temporal, mas também quanto à sua própria natureza, porque totalmente

fora da lei e do controle judiciário”, situação esta comparável àquela

protagonizada pelos nazistas, em relação aos judeus presos nos campos de

concentração22.

20 Tradução livre do autor da tese: “prover ferramentas necessárias para interceptar e obstruir atos terroristas”. 21 O referido USA PATRIOT ACT (H.R. 3162) foi publicado no dia 24 de outubro de 2001, pelo Senado dos Estados Unidos, o qual referencia que estabelecerá normas para deter e punir atos terroristas dentro dos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como tratará de mecanismos investigatórios para esta finalidade. Trata-se, portanto, de uma lei muito ampla (342 páginas) e que propõe, especialmente nos Títulos II e III, a quem estão direcionadas as novas regras (árabes e mulçumanos) e os mecanismos investigatórios possíveis (fundamentalmente autorizações para acessar e interceptar comunicações eletrônicas, orais ou virtuais que tratem de terrorismo, possibilitando abertura de investigação criminal para obtenção de informações). Disponível em http://www.epic.org/privacy/terrorism/hr3162.html. Acesso em 18 fev 2007. 22 Conforme Martins, Luciano (2002, p. 3, nota de rodapé no 4) “Além das absurdas regras de funcionamento desses tribunais de exceção, criados por Bush em 13 de Novembro de 2001, o Pentágono já admite que mesmo que um prisioneiro seja julgado inocente isso não implica na sua libertação. Nas palavras do Advogado-Chefe do Pentágono, William Haynes: “If we had a trial right this minute, its is conceived that somebody could be tried and acquited of that charge but may not necessarily automatically be released”. Tais regras, aliás, suscitaram o seguinte comentário de Don Rehkopft, Co-Presidente da National Association of Criminal Defense Lawyers: “If I came out of the woods after 20 years and saw these rules, I’d think Adolf Hitler or Joseph Stalin wrote them”. Cf. The New York Times, 22/03/02. A Comissão de Direitos Humanos

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205

No Brasil, sob os auspícios da imprensa, a produção normativa tem

sido alterada profundamente e as condições de atuação do sistema penal vêm se

mostrando cada vez mais rigorosa, protagonizando a disseminação, também, de

uma legislação de exceção. O sistema carcerário é um dos que mais sofrem

ataques protagonizados pela legislação cada vez mais rigorosa, mas não é só, pois

a legislação penal brasileira também contribui ao atual modelo de regras baseadas

na excepcionalidade.

A criação do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é característico

dessa realidade. O chamado RDD deu-se, primeiramente, por determinação

contida na Resolução 26, de 04 de maio de 2001, da Secretaria de Administração

Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP/SP) que dispunha sobre a necessidade

da regulamentação de um regime diferenciado dentre os estabelecimentos

penitenciários. Assim, criou-se o Regime Disciplinar Diferenciado “destinado a

receber presos cuja conduta aconselhe tratamento específico, a fim de fixar

claramente as obrigações e as faculdades desses reeducandos”, e com objetivo

declarado de reintegração do preso ao sistema comum, o qual deveria ser

alcançado pelo equilíbrio entre a disciplina severa e as oportunidades de

aperfeiçoamento da conduta carcerária (SAP/SP, 2003, p. 9).

Ocorre, entretanto, que a resultante dessas ações excepcionais –

marcadas principalmente pela substituição da ação normativa democrática por

uma ação arbitrária do Poder Executivo, ou seja, uma troca que justifica a

violação de direitos pela garantia de segurança – tem demonstrado o descompasso

entre o recurso retórico (discursos declarados) e seus verdadeiros efeitos

(discursos velados), isto porque, como bem demonstra Rogério Dultra dos Santos

(2006, p. 5), “Os dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de

São Paulo, em comparação com os índices de criminalidade violenta da Secretaria

de Segurança Pública do mesmo Estado, apontam claramente não haver relação

entre a ampliação do número de vagas no sistema carcerário e a diminuição da

criminalidade violenta”, é dizer, as medidas e métodos emergenciais de caráter

“excepcional” tão somente proporcionaram uma atuação não só de maior

intensidade qualitativa (na rigidez do processo) mas também uma majoração

quantitativa da população encarcerada.

da OEA, aliás, propôs a constituição de um tribunal independente para definir o status dos prisioneiros de Guantánamo”.

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Apesar do discurso oficial (declarado) estar sempre fundado na

punição e ressocialização, percebe-se que a opção (escolha) feita em busca da

segurança reduziu as chances da sociedade contemporânea encontrar seu ideal de

liberdade, mesmo porque esta matriz teórica contribuiu apenas para aumentar o

número de encarceramento e está muito mais voltada, portanto, às políticas que

buscam cada vez mais o controle social. Este controle, diga-se, existe, agora, não

mais (ou não somente) no sentido de um disciplinamento de corpos, em função do

excesso de mão-de-obra e falta de qualificação, mas, principalmente, pela

produção de uma enorme massa de excluídos em função das renovadas condições

de exploração da mão-de-obra, da precariedade e insegurança impostas à força de

trabalho na nova economia flexível, permitindo, às políticas penais, tomar

medidas de caráter de exceção.

A partir de vários discursos – especialmente o da pureza, da beleza

estética e o da ordem – agregados às conseqüências do modelo de produção pós-

fordista, é permitida à grande massa da população a total exclusão, seja ela do

ponto de vista social, seja ela do ponto de vista do processo produtivo, mas,

fundamentalmente, é através de uma rica história inquisitorial que nas sociedades

ocidentais contemporâneas o discurso punitivo entra em cena com maior vigor,

isto porque o discurso penal da virtude – cada vez mais centrado na separação

entre os bons, puros e virtuosos e os maus (população favelizada, encarcerada,

etc.) – permite a desumanização das classes, das populações, das gentes, das

massas, as quais precisam ser ‘apenas’ controladas, potencializando o ideal de

perversidade do outro. É neste ponto que Slavoj Zizek (2003, p. 47) remete à

noção, recém criada, de Homo sacer proposta por Giogio Agamben:

(...) a distinção entre os que se incluem na ordem legal e o Homo sacer não é apenas horizontal, uma distinção entre dois grupos de pessoas, mas, cada vez mais, também a distinção vertical entre as duas formas (superpostas) como se pode tratar as mesmas pessoas – resumidamente: perante a lei, somos tratados como cidadãos, sujeitos legais, enquanto, no plano do obsceno supereu complementar dessa lei incondicional vazia, somos tratados como Homo sacer.

Assim é que o resultado desse incremento da conflitividade social e

sua conseqüente criminalização são as formas de controle social, do tipo penal –

maior severidade nas penas, aumento do número de vagas em presídios, criação

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207

dos tipos penais à criminalização dos pequenos conflitos, controle seletivo das

pessoas, etc. – as quais puderam e estão possibilitando algo até então

inimaginável, ou seja, extrair lucro unindo dois pólos da mesma realidade:

controle social e exploração da miséria.

5.4. O controle social e reprodução do capital: a face oculta da mesma “moeda”

Creio que aqui esteja um dos pontos principais da presente tese, isto

porque dentre os problemas a serem resolvidos, propostos inicialmente, dois ainda

não foram discutidos ou, na melhor hipótese, não encontramos respostas

suficientes e adequadas.

O primeiro problema que ainda precisa ser analisado é a afirmação do

fomento ao aparecimento de novas formas de controle social em função da longa

sobrevivência e superação do capitalismo às crises e reorganizações em alegorias

que promovem e deixam rastros de devastação em várias ordens, mas,

principalmente, em relação aos danos produzidos ao meio-ambiente, bem como as

conseqüências sociais – polarização social –, econômicas – exclusão sócio-

econômica – e a deterioração da relação política em detrimento do poder do

capital, isto porque, diante das determinações totalitárias do capitalismo

contemporâneo – que pretende relacionar, indevidamente, signos contraditórios,

como “guerra e democracia”, “liberdade e necessidade de consumo”,

“desenvolvimento econômico numa economia pós-fordista e inclusão social”, ou

ainda entre “democracia e capitalismo” – é perceptível a necessidade do capital se

reproduzir buscando cada vez mais espaço.

O segundo problema a ser enfrentado é justamente uma conseqüência

do primeiro, ou seja, quais estão sendo as formas que o capital encontra (ou

encontrou) à sua reprodução diante da realidade de exclusão criada por ela própria

e sua relação com o controle social? Quais as conseqüências da adoção de

políticas públicas neoliberais, especificamente em relação à segurança pública,

aos moldes daqueles denominados como “políticas de tolerância zero”,

“movimentos de lei e ordem”, etc.? Quais são os resultados da “alienação

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208

social”23 causados pela criação de inimigos comuns – como os traficantes de

drogas ilícitas e armas, o terrorismo, negros, minorias, favelados, pobres, etc. – e a

divulgação da multiplicação de atos violentos, e a possibilidade da inserção de

novos mecanismos de exploração (econômica) e de controle social?

Como visto até agora, com a adoção das políticas econômicas

neoliberais, foi possível verificar seus efeitos devastadores como a progressiva

pauperização e polarização da população24, as devastações ambientais, a

destruição das instâncias coletivas de resolução dos conflitos e, em conseqüência,

a destruição do indivíduo e a intensificação de processos de subjetivações

voltados à lógica do consumo e do mercado – em relação aos indivíduos que

ficam “sujeitados” a um violento e funcional processo de anulação do seu status

jurídico, o que proporciona o espaço próprio da biopolítica (seu significado é o

estado de exceção), fomentando novas formas de controle e de reprodução do

capital.

Para David Harvey (2004, p. 78) a sobrevivência do capitalismo se dá

– ainda que em meio a diversas crises – mediante à produção de novos espaços à

sua reprodução. Para ele, a sobrevivência do capitalismo está vinculada à sua

tendência de produzir crises de sobreacumulação, caracterizadas pela existência

simultânea de excesso de capital – “acúmulo de mercadorias no mercado que não

pode ser dissolvido sem uma perda, como capacidade produtiva ociosa e/ou como

excedentes de capital monetário a que faltam oportunidades de investimento

produtivo e lucrativo” (Cf. Harvey, 2004, p. 93) – de um lado e, de outro, pelo

excedente de mão-de-obra – desemprego em elevação (Cf. Harvey, 2004, p. 93),

sem que haja, pelo menos aparentemente, uma maneira de conjugar os excessos

lucrativamente, a fim de realizar tarefas socialmente úteis.

Na contemporaneidade, por exemplo, ou na atual fase da new

economy, a crise “revela a existência de uma superprodução digital, um excesso

23 O termo é empregado aqui para representar “a alienação social, na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural, divino ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando que, por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que a realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o outro (alienus), algo externo a nós, separado de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós”. In: Chauí, Marilena. Convite à filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p.172. 24 A reportagem de Helena Celestino mostra que o número de favelas no Brasil cresceu 150% entre 1999 e 2001. Esta informação foi dada pelo então Ministro das Cidades, Olívio Dutra, no plenário da reunião da Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Ainda segundo o Ministro Olívio Dutra, no Brasil há um déficit habitacional de 6,6 milhões de moradias.

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209

de inovações tecnológicas e comunicativas em relação à capacidade de absorção

do mercado, à sua demanda efetiva” (Cf. Marazzi, 2002, pp. 38-39), isto é, a

condição básica à desvalorização e destruição dos excedentes de capitais e a

conseqüente pulverização da excedente mão-de-obra colocando-a numa situação

de total exclusão.

É preciso, no entanto, encontrar maneiras lucrativas e criativas para

absorver os excessos de capital e impedir a impossibilidade do consumo, sendo

necessário o rápido deslocamento do capital a outras regiões ou, no dizer de

Harvey (2004, p. 78), a expansão geográfica e a reorganização espacial

proporcionam esta absorção. Contudo, é necessário relacionar as novas

necessidades que estão sendo criadas com os propósitos da presente pesquisa, ou

seja, é preciso, então, relacionar a exacerbada divulgação da violência, o

sentimento de medo criado e a imposição social de se ter segurança, seja ela

pública ou privada, com a necessidade de expansão do capital.

Nos termos de David Harvey, o que ocorre é uma verdadeira

acumulação via espoliação, isto porque os excedentes de capital são capazes de

liberar “um conjunto de ativos a custo muito baixo” (2004, p. 124). É preciso,

para o enfrentamento desta questão, lembrar que a formação do sistema capitalista

tornou-se viabilizada em função, principalmente, da utilização do padrão de

financiamento público do chamado Estado-providência, é dizer, uma esfera

pública institucionalmente regulada, revelando-se, portanto, a transferência para o

capital, tanto do ponto de vista estrutural como funcional, da reprodução da força

de trabalho e dos gastos sociais públicos. Trazendo a discussão para o momento

atual, a “ajuda externa” de que fala Mészáros, pode ser entendida pelas políticas

de privatizações adotadas pelos Estados e, especialmente em relação ao conteúdo

das políticas de segurança públicas, elas têm implementado um vasto campo para

investimentos de capitais sobreacumulados. Este é o sentido de se poder afirmar

que a violência está se tornando um grande e lucrativo negócio.

Como se verá mais adiante, não só as privatizações têm este caráter,

mas sem dúvida, são as grandes responsáveis pela nova acumulação (nos termos

de David Harvey, as privatizações funcionam como o ‘braço armado’ da

acumulação por espoliação). Para ele, como visto no capítulo II da presente tese, a

privatização e a liberalização dos mercados foram o mantra do movimento

neoliberal e o resultado foi transformar em objetivo das políticas do Estado a

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210

‘expropriação das terras comuns’ através da entrega de ativos de propriedade do

Estado ao mercado para que o capital sobreacumulado pudesse ali ser investido,

abrindo-se, portanto, novos campos de atividade lucrativa.

São exemplos dessa abertura de novos mercados à apropriação dos

ativos pela iniciativa privada na busca de arenas próprias à expansão do capital

não só a privatização dos presídios, mas, partindo-se também da produção

industrial militar e da necessidade do “consumo destrutivo”, estratégias

específicas de privatização do controle público da violência, como a utilização de

câmeras de vídeo, as empresas de segurança privada, o controle social de alta

tecnologia, etc., as quais passaremos a fazer uma pequena análise.

5.4.1. O controle social na ordem capitalista globalizada

A partir da idéia de criação de uma subjetividade flexível, fruto de um

evidente e contemporâneo mecanismo de controle, o qual é exercido, no mais das

vezes, por intensos processos de subjetivação – pela atuação conjunta, constante e

direta, de dispositivos de controle e disciplina (como estudados no final do

capítulo III da presente tese) – permite uma atuação administrativa suficiente para,

a partir de conflitos e consensos existentes em determinadas situações, viabilizar

uma efetiva estratégia de políticas públicas concretas, em função da realidade

social.

Esta realidade será observada diante do modelo de ordem social que

se pretende atingir, isto é, se estamos vivenciando uma realidade fundada em

princípios neoliberais – a saber: não mais na lógica regida pelo paradigma da

segurança social, mas o da insegurança coletiva – o modelo social estará orientado

e, por certo, estrategicamente posicionado para o controle social a partir de

políticas públicas singularmente voltadas a um modelo social que utiliza

mecanismos defensivos da ordem, “resultando em um modelo desintegrador que

produz uma sensação de insegurança e medo” (Cf. Dornelles, 2003, p. 19).

Assim é que o discurso produzido pelo paradigma neoliberal, ou

conservador, permite alterar a visão do respeito à dignidade e aos direitos

humanos, sendo gradativamente referendado pela lógica da defesa social através

da exclusão total de classes inteiras e tolerar, cada vez menos, as diferenças, o

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crime e o criminoso. A disciplina das fábricas não é mais necessária, afinal a

massa de excluídos, de braços erguidos, reclama: “estamos a esperar a

exploração!!”, ou seja, as transformações programáticas neoliberais promoveram,

conforme aponta João Ricardo Dornelles (2003, p. 27-28), além da flexibilização

e precarização das relações de trabalho, do aumento crescente do desemprego em

função da implantação dos mecanismos de aumento de produtividade, a

marginalização e exclusão social, não mais em razão das crises cíclicas do

capitalismo, mas com características estruturais, isto porque afasta

definitivamente enormes contingentes de trabalhadores do mercado formal.

É possível perceber, em função do contexto histórico destas relações,

que é exatamente neste cenário que são formalizadas as políticas de controle

social a partir da necessidade de se estabelecer a ordem e a legitimidade da lei,

isto porque as contradições impostas pelo modelo neoliberal estão a proporcionar

significativas e crescentes desigualdades25 e é, conforme aponta Dornelles (2003,

p. 33), “sob esses segmentos sociais que se concentra o foco da ação repressiva de

controle e vigilância”, principalmente os mecanismos repressivos de controle

penal, tendo como conseqüência evidente uma maior criminalização das classes

sociais ditas “perigosas”, o que já havia sido insistentemente denunciado pelas

diversas correntes da criminologia crítica.

Ao estabelecer este diálogo, João Ricardo Dornelles apresenta, na

verdade, de forma bastante evidente, toda fundamentação aos procedimentos cada

vez mais rigorosos das políticas sociais de controle de viés neoliberal, isto é, a

forma de resposta estatal para resolver o problema da violência e da delinqüência

foi sempre a utilização de métodos que viabilizaram a guetificação das massas

urbanas – excluídos de modo geral, como as massas negras, do final do século

XIX, que foram sendo criadas nas cidades brasileiras com os grandes contingentes

de homens negros, escravos e libertos, bem como os pobres e favelizados da

contemporaneidade – o que permanece proporcionando a constante apartação

dessas massas da cadeia produtiva e da possibilidade de consumo.

Como mostra Vera Malaguti Batista (2003, p. 57), de forma

semelhante, em diversos períodos da história brasileira, especialmente na

implantação da ordem burguesa do final do século XIX (o Brasil escravocrata

25 Interessante exposição de dados nos oferece João Ricardo Dornelles (2003, p. 32), em notas de rodapé nos 38 e 39.

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212

permanece até 1888), na recepção da doutrina de segurança nacional do século

XX, nas políticas urbanas de apartação (no Rio de Janeiro do final do século XIX,

como apontou Vera Batista (2003, p. 39), as concepções higienistas de

intervenção urbana propuseram, através de Pereira Rego, “uma cirurgia na cidade

com esvaziamento do centro e remoção dos bairros pobres para áreas

periféricas”), ou ainda entre os anos 1968 e 1988 – época da ditadura militar até a

transição ao governo democrático constitucional – quando se percebe que houve

uma transferência da busca pelo inimigo externo, ou seja, do terrorista para o

traficante (2003, p. 40), houve a perseguição às classes supostamente perigosas

demonstrando, claramente, a íntima relação, que sempre houve, no Brasil e nos

países centrais de capitalismo avançado, entre liberalismo (ou neoliberalismo) e as

políticas penais mais conservadoras e violentas.

Dornelles (2003, p. 33-34), então, apresenta algumas características e

conseqüências das ‘respostas estatais’ que visam estabelecer a ordem, as quais

podem ser resumidas em 4 posições, da seguinte forma:

a) políticas de segurança públicas militarizadas, com base na repressão

ao crime, publicizado através dos discursos denominados ‘lei e ordem’, com

objetivos definidos na manutenção da ordem pública, penalização dos conflitos

sociais, construção de presídios, aumento da quantidade de tipificação legal

(criminal) das condutas, aumento das penas e impossibilidade de supostos

benefícios aos condenados (liberdade condicional, progressão de regime, etc.),

estabelecendo campanhas de combate ao inimigo (hoje o traficante, ontem o

terrorista político, um pouco antes os negros, etc., etc.), espalhando um clima de

medo na população;

b) a adoção das políticas de segurança públicas mais conservadoras

tem elevado o número de mortes de pessoas suspeitas (supostos delinqüentes) nos

enfrentamentos com a polícia. Neste sentido, Dornelles indica (nota 42, p. 34) a

pesquisa realizada pelo ISER, coordenada por Inácio Cano, referente às mortes

produzidas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro entre os anos 1993 e 199626;

26 Além da pesquisa apresentada pelo ISER cabe observar, somente a título de ilustração, a reportagem apresentada no jornal Folha de São Paulo, de 18 de outubro de 1999, (FS, 1999, p. 1) na qual soldados da Polícia Militar de São Paulo descrevem os métodos de tortura, julgamento e execução de suspeitos de terem cometido delito. Conforme relatado na reportagem, aqueles supostos criminosos são julgados dentro da viatura, durante o trajeto do local do incidente até o hospital. Os relatos dos policiais são no sentido de que a análise do caso e “visual”, ou seja, para eles o bandido se “conhece pelas tatuagens e pela roupa que ele usa. É só bater o olho e eu sei se o

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213

c) há uma tendência ao armamentismo particular, em função da

necessidade de proteção particular (pessoal e patrimonial) e descrédito das

instituições. Esta conclusão pode ser compreendida a partir do resultado do

plebiscito (“referendo das armas”), ocorrido em 2005, no Brasil, quando houve

uma consulta popular sobre a possibilidade da venda legal de armas à

população27;

d) o estímulo ao encarceramento pela criação de tipos penais e o

aumento de penas, o fomento ao surgimento de empresas de segurança privadas,

empregando-se integrantes ou ex-integrantes das polícias ou forças armadas e a

veiculação de propostas de privatização do sistema penitenciário. Esta

característica revela, na verdade, não só uma tendência liberal de diminuição do

tamanho do Estado, mas sua própria definição (weberiana) como detentor do

monopólio do uso legítimo da força, sofre abalo significativo.

Os dados coletados e divulgados no site da Federação Nacional das

Empresas de Segurança e Transporte de Valores confirmam estas características28.

O total de empresas de segurança privada no país, regularmente instaladas –

mediante autorização do Departamento da Polícia Federal – em 2001 eram 1300

empresas legalizadas (aproximadamente, 4.500 clandestinas), em 2004 passou

para 1.884 empresas legalizadas, um crescimento de 44,92%. Esta tendência – o

crescimento dos serviços de segurança privada – revela, entretanto, um fenômeno

que atinge outros países e que vem ocorrendo desde a década de 1970.

Outro exemplo revelador é o trazido por Leonarda Musumeci (1998)

sobre a expansão do setor de segurança privada a partir de dados colhidos pela

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (1985-1995). Sua verificação

(1998, p. 23) permite apontar que o total de pessoas ocupadas na atividade de

cara deve ou não”. Para se identificar quem são aqueles que não podem chegar com vida no hospital, os policiais escolhem pessoas que trocaram tiros com policiais e outras encontradas feridas. Em outra reportagem, do mesmo jornal e na mesma data (FS, 1999, p. 3), os relatos dos policiais são mais específicos. A ação policial, na investigação dos fatos é, na maioria das vezes, cercadas por graves sessões de tortura, desde palmatória, choques elétricos e espancamento. 27 Muito embora haja outros fatores que determinaram o resultado das urnas, o medo e a insegurança foram o mote principal da campanha pelo “não”. Como se sabe, os eleitores foram às urnas para responder à seguinte pergunta: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". A decisão, por ampla maioria (63,94% dos votos válidos) foi pelo “não”, ou seja, representou a suposta necessidade que as pessoas vislumbraram de obter segurança particular com a aquisição de armas. 28 Estes dados podem ser vistos em http://www.fenavist.org.br/site/internas.asp?area=874&id=19. Acessado em 23/03/07. Os dados de 2001 foram coletados do jornal Diário Catarinense, de 26 de outubro de 2003, Caderno Especial sobre segurança, p. 3.

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vigilância e guarda saltou de 199.137 em 1985 para 422.057 em 1995, ou seja, um

crescimento de 112%. Esse crescimento é superior ao do conjunto do setor

serviços (43%) e dos subsetores que o compõem: comércio (54%); transportes

(33%); comunicações (24%); instituições financeiras (-29%); administração

pública (12%) e outros serviços (56%).

Estas contribuições nos permitem formular algumas hipóteses de

resposta: é o próprio Estado, através de seu modelo de políticas de controle social

– cada vez mais rigoroso e de viés neoliberal, conservador e autoritário – que

permite a gestão violenta da população excluída (dos meios produtivos e do

consumo) da maneira mais perversa possível, é dizer, no Brasil e no mundo as

taxas de encarceramento estão aumentando e são exatamente as camadas mais

carentes da população que sofrem a atuação da mão de ferro do Estado ou, nas

palavras de Dornelles (2003, p. 35-36), essa política criminal neoliberal ao

elaborar um discurso de combate à delinqüência, o faz a partir de um modelo que

proporciona uma maior desumanização dos supostos delinqüentes, estratégia pela

qual os torna cada vez menos aptos ao competitivo mercado.

Aqueles não adaptados e incapacitados tecnicamente estarão

automaticamente selecionados e condenados à exclusão. Serão, também,

potencialmente, os mais prováveis selecionados ao rígido controle sócio-

econômico e penal, ou seja, o excesso de indivíduos excluídos e que não serão

absorvidos (ou literalmente aproveitados) pelo mercado, potencializam, não mais

o treinamento e docilização de seus corpos, mas antes, a neutralização pelo

excesso.

Este controle social do excesso se traduz pelas intensas políticas

penais ditas eficientistas, ou seja, não se trata mais de tentar corrigir os problemas

de ordem social, mas sim efetivamente neutralizar exatamente aqueles que

provocam a desordem com repressão.

Poder-se-ia acrescentar, para análise de mais um dado importante, de

outro efeito do encarceramento de massa. Uma vez que a privatização do sistema

prisional é um fenômeno bem consolidado em diversos países, bem como o

surgimento de empresas de segurança privada também está se tornando uma

tendência mundial, é interessante perceber que (pelo menos no Brasil é possível

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215

afirmar) há um crescimento do número de trabalhadores nesse setor até o ano de

2003, quando começou a ocorrer uma pequena diminuição de postos de trabalho29.

Conforme se verifica pelos dados apresentados pelo estudo

encomendado pela Federação Nacional da Empresas de Vigilância e Transporte

de Valores (conforme tabela abaixo), havia em 2002 um vigilante para 552

habitantes no Brasil, em 2005 há um para cada 482 habitantes, ou seja, representa

um significativo aumento da “necessidade” de se buscar segurança.

Ano Quantidade vigilantes por habitantes

2002 1/552

2003 1/529

2004 1/504

2005 1/482

Esta mesma pesquisa apontou que havia uma projeção de empregos

gerados no setor de 424.800 vagas no Brasil em 2005 e que o piso salarial da

categoria seria em 16 de maio de 2006 entre R$ 347,34 em Sergipe e R$ 962,37

no Distrito Federal. Três características podem ser observadas a partir dos dados

até aqui apresentados:

a) a evolução tecnológica novamente fazendo desaparecer postos de

trabalho mas, ainda assim, como acontece no capitalismo contemporâneo, há um

29 Em sua pesquisa de doutorado, Fortes de Oliveira (2004, p. 12) aponta que a “participação da segurança privada nos serviços não-financeiros, em termos de empregados, é mais que o dobro da participação em termos de receita operacional líquida. Isto significa que para o volume de recursos apropriados, as empresas de segurança privada estariam garantindo mais postos de trabalho que a grande maioria das outras atividades de serviços não-financeiros”. A diminuição da quantidade de postos de trabalho deve-se, principalmente, a quantidade de empresas que existem clandestinamente – ou seja, sem licença oficial do Departamento da Polícia Federal – bem como pelo fato de que há muitos “seguranças particulares” que são, na verdade, policiais (normalmente militares, civis) que fazem esse “bico” para complementar renda, mas que não divulgam oficialmente essa condição. Como alerta Leonarda Musumeci (1998, p. 20): “Os números da PNAD, ao que tudo indica, não contemplam essa atividade paralela, já que a maior parte das perguntas sobre emprego refere-se à ocupação única ou principal e é pouco provável que policiais na ativa declarem como seu trabalho principal a vigilância privada exercida ilegalmente, ainda que a renda ganha nesta última possa ser superior à que obtêm no serviço público. Duas perguntas sobre outras ocupações — se o entrevistado possuía mais de um trabalho na semana de referência e que função exercia no segundo trabalho [IBGE (1993a)] — poderiam fornecer uma idéia aproximada do número de agentes que fazem “bico”, mas o total de respostas positivas, em confronto com estimativas da mídia, sugere que, por se tratar, nesse caso, de uma prática ilícita, o segundo emprego é omitido pela maior parte dos entrevistados. Em 1995, no país como um todo, só 10% das pessoas com ocupação principal em atividades de segurança pública reconheceram possuir outro trabalho e apenas 1,5% declarou como trabalho secundário a ocupação de vigilante ou vigia”. Merecem atenção, pela riqueza de dados, os trabalhos de Aryeverton Fortes de Oliveira e Leonarda Musumeci acima referenciados.

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216

visível aumento do faturamento do setor de vigilância e transporte de segurança

privada (pessoal e patrimonial), bem como há um crescimento na proporção de

vigilante por habitante no Brasil;

b) o piso salarial da categoria é de certa forma baixo, pois a média

nacional é de R$ 558, 65, ou seja, aproximadamente 1,5 salários mínimo;

c) são as classes populares que estão servindo nesse nicho de mercado

em duas frentes bem definidas: como força de trabalho e como matéria prima. É

exatamente esta conjugação – exploração da mão-de-obra e utilização do sistema

penal como controle, exclusão e aniquilamento dos excessos – que permite a

potencial exploração do medo e da abundante força de trabalho a ser apropriada

permitindo a ampliação (reprodução) do capital. Um dado é bastante

representativo: no ano de 2002 o faturamento do setor de segurança privada foi de

R$ 7.000.000,00 e em 2005 houve um enorme salto para R$11.800.000,00, ou

seja, um crescimento de 68,57%30.

Ficam evidentes os motivos pelos quais os investimentos em

segurança vêm aumentando, desde a privatização de presídios até a segurança

privada. O sonho (ou a promessa) moderno de pureza (limpeza) e ordem31 foi

colocado de tal forma que, hoje, na pós-modernidade só podemos pensar em

civilização, a partir de um princípio e lógica do economicamente correto, sem o

que o indivíduo seja considerado fora do contexto social. É exatamente a lógica da

exclusão que o sistema de controle penal representa, pois é lá que estarão,

potencialmente, aqueles que não possuírem, minimamente, condições de

permanecer no mercado consumidor.

30 Um dado, no mínimo curioso, é revelado pela pesquisa: o faturamento do setor é maior justamente na região sudeste, na qual são veiculadas as notícias de maior impacto sobre a violência, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. 31 Para Zygmunt Bauman beleza, limpeza e ordem são promessas da modernidade. A partir da análise de Freud em “Mal estar na civilização”, Bauman afirma que na modernidade o sonho de perfeição pela beleza (prazer da harmonia e perfeição da forma), limpeza (pois a sujeira seria incompatível com a civilização) e ordem (compulsão à repetição que dá segurança, evitando a hesitação ou indecisão), são ganhos que não devem ser desprezados, entretanto o preço pago é muito alto, pois deve existir um responsável controle da liberdade e os impulsos devem estar preparados e reprimidos, se for o caso. Lembrando Freud, diz Bauman sobre o mal-estar da modernidade: “A civilização se constrói sobre uma renúncia ao instinto”, é dizer o excesso de ordem que leva, necessariamente, à escassez de liberdade. Para ele (1998, p. 10) “os homens e mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais”.

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217

O dado revelador é a necessidade de se criar “necessidades”, é dizer: é

absolutamente necessário estabelecer, primeiramente, uma classe de excluídos e,

posteriormente, que esses estejam prontos a serem selecionados pelo sistema

penal através de um poderoso sistema de controle. Para tanto, é preciso permitir

que o cidadão seja motivado (subjetivado) a uma sensação de insegurança, com

um conjunto de circunstâncias capazes de criar a necessidade de se ter segurança,

que possibilitará um aumento do sistema penal, seja ele público ou privado, mas,

em qualquer caso, apto a municiar (incrementar) a indústria do controle penal

(prisões e sistemas privados de segurança), cumprindo duas principais funções:

controle social e reprodução do capital.

Os dilemas envolvendo segurança pública iniciam com a divulgação

da violência e a banalização dos direitos e garantias fundamentais. Entretanto, da

mesma forma que à ampliação do capital é necessário que o consumo esteja em

crescimento, o que representaria um dado absolutamente positivo, caso,

evidentemente, este consumo não tivesse sido criado pela necessidade da

descoberta de novos valores de uso, mas, sim, pela necessidade humana.

Como afirma Mészáros (2002, p. 677), “o resultado positivo dessa

interação dialética entre produção e consumo está muito longe de estar

assegurado, já que o impulso capitalista para a expansão da produção não está de

modo algum necessariamente ligado à necessidade humana como tal, mas

somente ao imperativo abstrato da ‘realização’ do capital”, o aumento da

divulgação da violência cumpre também idêntico papel.

De forma muito semelhante, então, a busca pela segurança, não foi (e

não é) produzida pela necessidade humana ante a crescente violência urbana, mas

tão só (e da mesma forma que se faz à expansão do capital) pela necessidade de

realização do capital. Sob este ponto de vista, é necessário demonstrar algumas

características da exploração e divulgação da violência e os efeitos

proporcionados pelo sentimento de insegurança. Para esta dilucidação, duas

ponderações devem ser enfrentadas: a primeira, está diretamente relacionada com

os efeitos instituídos pela adoção de políticas de segurança pública neoliberais,

ditas conservadoras, como as políticas de “tolerância zero” e o movimento de “lei

e ordem” e, a segunda, está relacionada com os pressupostos econômicos que

impõem estas políticas.

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218

5.4.2. A gestão política de Segurança Pública conservadora: “eficientismo penal”, “tolerância zero” e “teoria das janelas quebradas” como controle social de classe

Os modelos de políticas de Segurança Pública apresentados no mundo

contemporâneo estão diretamente vinculados aos resultados das enormes

transformações políticas e econômicas efetivadas nos últimos 30 anos, mais

precisamente a partir dos anos 1970 e a intervenção dos pressupostos neoliberias

dos anos 1990. Como visto no final do segundo capítulo, um dos resultados destas

transformações políticas e econômicas, as quais resultaram num abismo entre

pobres e ricos ou, mais precisamente, entre incluídos e excluídos (polarização

social), foi a possibilidade destes (mais pobres e excluídos) se tornarem matéria-

prima abundante do grande negócio envolvendo a segurança pública e,

diretamente, sua privatização.

Assim, para responder ao problema do interesse e da exploração da

violência, é necessário analisar o cumprimento da função do cárcere na formação

do proletariado industrial, bem como no papel que é desenvolvido no controle da

reprodução da força de trabalho assalariada, devendo-se, para tanto, considerar as

origens do sistema prisional e suas funções econômicas que ele assumia, em

especial pelas idéias protagonizadas por diversos autores de matiz marxista, como

Alessandro Baratta, Dario Melossi, George Rusche, Otto Kirchheimer, Maximo

Pavarini e, mais recentemente, Alessandro De Giorgi, dentre outros.

Através das análises acima indicadas – tanto das origens e funções

econômicas do sistema prisional como suas funções aparentes e veladas – é

possível perceber que o cárcere exerce esse fascínio de poder, pois ao mesmo

tempo que possibilita o caráter repressivo, através de suas técnicas de poder (de

disciplinamento dos corpos e controle), é possível vislumbrar que o sistema penal

(especialmente a prisão) exerce um importante papel na sociedade

contemporânea, que é exatamente um poderoso regulador do valor do capital

variável (valor da força de trabalho – salário), isto porque estes trabalhadores,

expulsos do mercado de trabalho pela sua abundância, tornaram-se fatores

determinantes à valorização da mão-de-obra, em função dessa população

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excedente que deve ser explorada e criminalizada32, mantendo-se, portanto uma

estreita relação entre a precarização do estado social, crescimento da população

marginalizada – excluída – e o recrudescimento das políticas penais de

encarceramento (principalmente sobre a população pobre, tóxico-dependentes e

imigrantes).

A vulgarização dos direitos sociais denunciada por Loïc Wacquant

com o corte no orçamento dos gastos com serviços sociais em detrimento do

aumento do orçamento destinado à polícia (já referenciado no Capítulo III, da

presente tese), é impressionante. Isto apenas representa o incremento às políticas

chamadas de “tolerância zero” ou do “eficientismo penal”.

a) As políticas públicas criminais denominadas de “eficientismo

penal”

Antes mesmo de falarmos sobre eficientismo penal ou “tolerância

zero” é preciso estabelecer nosso local de fala sobre as políticas públicas criminais

e de segurança. Primeiramente, cabe entender o conceito de política criminal, não

restrito à justiça criminal, como parte da política social e, portanto, como parte de

um sistema de controle social que integra outras agências públicas e também as

policiais que se encarregam tanto da implementação dos critérios normativos

quanto daqueles critérios silenciados ou negados pelo discurso jurídico, porém

legitimados socialmente pela recorrência e acatamento de sua aplicação

(Dornelles, 2003, p. 39; Batista, 1998, p. 77).

Partindo da idéia de que o conceito de política criminal é, também,

ideológico e que se constitui num poderoso instrumento de controle social, de

legitimação e reprodução da realidade social, Dornelles (2003, p. 40-41) aponta o

modelo neoliberal de políticas públicas como responsável pela atuação do Estado

como facilitador das idéias e “condições à acumulação ampliada do capital sem a

ameaça dos setores da sociedade considerados perturbadores da ordem”, traçando,

32 Há estudos recentes que procuram relacionar índices de desemprego com taxas de encarceramento. Entre os autores, destacam-se, Stevem Box e Chis Hale que analisam a realidade européia da década de 1970 e 1980, Bruce Western e Katherine Beckett, que analisam a relação de funcionalidade das políticas penais e desemprego, nos Estados Unidos, nas décadas de 1980 e 1990 e, mais recentemente, Loïc Wacquant, que analisa a ação do neoliberalismo no Estado de bem-estar social e sua profundas conseqüências, em especial a substituição do Estado social pelo Estado penal.

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220

como características desse modelo de política criminal, a íntima relação de

interesses entre poder econômico e Estado, uma ação repressiva e autoritária no

tratamento da ‘criminalidade de rua’, tipicamente pelas chamadas políticas de

tolerância zero, diversificando e aumentando o tipo de sanções penais e

extrapenais, transformando as políticas criminais em políticas de segurança, “onde

prevalecem os fins puramente repressivos, não mais visando identificar o

responsável penal, mas sim a demonstração de efetividade do sistema”, ou seja, é

o “eficientismo penal como política de resultados”.

Esta eficiência, fundada num procedimento consubstanciado no

movimento moderno de busca pela ordem, que buscaria atender uma ampla

camada da população destituída de seus direitos civis, sociais, econômicos,

políticos, culturais, caracterizou-se na contemporaneidade reveladora, no sentido

de implicar em políticas públicas que passaram a penalizar grupos de pessoas já

excluídos do processo produtivo e estigmatizados pela simples suspeição de

pertencerem a grupos produtores da desordem social, ou seja, houve uma

ocupação dos espaços públicos, anteriormente destinados à inclusão e integração

social, por políticas penais criminalizadoras e, cada vez mais, encarceradoras.

Surge, no entanto, uma situação, no mínimo, curiosa, pois se estamos

vivendo um momento de políticas neoliberais, de mínima participação

(intervenção) do Estado na gestão da economia, na privatização das relações de

mercado e financeirização do capital, de flexibilidazação das relações trabalhistas,

também vivemos o outro lado da moeda, é dizer, sob o ponto de vista da

intervenção estatal no controle social, ela é mais intensa e atua, no mais das vezes,

através de seus órgãos (Polícias, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, etc.)

de forma autoritária e a produzir um sistema penal (Direito Penal, Processo Penal

e Execução Penal) seletivo, estigmatizador e cada vez mais rígido, sempre com o

discurso da eficiência ao controle.

Contudo, é exatamente este sistema penal que produz políticas

públicas (em sentido amplo) que visam, além de criminalizar os conflitos sociais e

não resolvê-los, ao mesmo tempo, imunizar determinadas classes sociais33.

Para Dornelles (2003, p. 49-53), são características desse eficientismo

penal, no processo de criminalização dos conflitos sociais: o fundamentalismo

33 Veja, por exemplo, as inúmeras hipóteses de exclusão de ilicitude existente nos crimes contra o sistema financeiro, crimes tributários, crimes previdenciários, etc.

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penal, ou seja, a “polarização ideológica entre as forças do bem e forças do mal”

no combate à criminalidade; sua expressão é o direito penal máximo, “cujos

resultados, mesmo quando aparentemente positivos na diminuição da

criminalidade, não são compensadores, pois não conseguem demonstrar que

outras formas de tratamento da questão não alcançariam maior eficiência no

controle penal e na segurança pessoal”; há uma despolitização e

descontextualização dos conflitos sociais, o que permite aumentar os níveis de

impunidade e de imunidade de certos grupos sociais, aumentando-se, entretanto, a

criminalização de condutas e a seletividade criminal em função da inadequação

dos programas de repressão penal com a expansão dos meios a atingir todos os

setores sociais.

É exatamente a consolidação do projeto tipicamente de cariz

neoliberal – eficiência, individualismo, contração do Estado nas políticas públicas

sociais e ampliação do Estado penal – que este modelo de combate (no sentido

específico de guerra), não da pobreza, mas contra os pobres e sua máxima

criminalização, a partir das políticas penais de “tolerância zero”, que vai viabilizar

o controle social e os ajustes estruturais econômicos impostos pelos diversos

organismos institucionais e financeiros (FMI, Banco Mundial, etc.).

b) Controle social, repressão e intolerância: do controle da pobreza ao

encarceramento dos pobres

Como aponta Bauman, diante da conjuntura de nossa sociedade

contemporânea (de extremos), em que o medo de não se alcançar a felicidade é

imenso – o que torna ainda maior a incerteza – e ultrapassando a lógica moderna

da regulamentação, pois hoje (na contemporaneidade) tudo é possível diante da

flexibilização dos procedimentos, a insegurança é plena. A ordem, como analisa

Zygmunt Bauman (1999a), é um ideal da modernidade que é buscado em função

de nossos medos diante de uma situação de desordem, isto é, numa situação em

que estamos, incompreensivelmente, incertos do que fazer ante as alternativas que

nos são colocadas. A ordem é estabelecida para apontar o caminho ideal (ou os

caminhos ideais) e é exatamente a incerteza de saber qual é o melhor caminho que

faz com que nos esforçamos à sua busca.

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222

É possível dizer que, muito além do medo do inimigo conhecido, a

insegurança existe em relação ao estranho. É esta insegurança que se tornou

intolerável. O discurso público contra determinadas classes sociais, etnias,

minorias, gênero, por exemplo, passou a cumprir um papel fundamental na

produção das políticas públicas de combate. Não é difícil entender o “porque” que

durante as crises dos ciclos econômicos – ou diante das recessões de determinados

períodos, especialmente a partir da metade dos anos 1970 – determinados

segmentos sociais são, providencialmente selecionados pelo sistema penal,

fazendo com que a população encarcerada – ou sob algum tipo de controle penal –

aumente vertiginosamente como aconteceu nos Estados Unidos e Inglaterra34.

É preciso perceber, neste instante, as diversas composições que

resultaram na atual configuração das relações e controles sociais, isto porque

como afirma Alessandro De Giorgi (2002, p. 75) a transição do fordismo ao pós-

fordismo é caracterizada pela passagem de um regime de carência e,

conseqüentemente, o desenvolvimento de um conjunto de estratégias orientadas

para a disciplina da carência, para um regime produtivo definido pelo excesso e,

conseqüentemente, pela emergência de estratégias orientadas para o controle do

excesso35.

Partindo-se, então, da idéia trazida por De Giorgi, no sentido de

superação ou aparente esgotamento da função de racionalização disciplinar da

produção e da alienação da força de trabalho à acumulação capitalista, própria do

regime fordista, é possível pensar em novas tendências e estratégias de controle

34 Neste sentido, importante verificar os dados trazidos por Loïc Wacquant (2001a, p. 28). Ele mostra que o recurso de encarceramento foi utilizado de forma progressiva a partir dos anos 1970. Segundo ele, depois de 1960, quando a população carcerária tinha diminuído em 12%, a partir de 1970 houve um aumento significativo na população encarcerada nos Estados Unidos, passando dos, aproximadamente, 200 mil detentos para 825 mil em 1991. Os quadros apresentados por Loïc Wacquant sobre a população encarcerada em prisões federais e em casa de correção (2001a, p. 29) entre 1970 e 1991 são reveladores. 35 Se por um lado temos a partir da segunda metade dos anos 1970 um regime caracterizado pelo controle dos excessos, antes disso poderíamos dizer que tínhamos um regime disciplinar das faltas. Lembrando as origens da instituição carcerária (séculos XV, XVI e XVII), quando se falava em carência de mão-de-obra, impôs-se a privação da liberdade e o trabalho assalariado como dispositivos ideológicos aptos a impor a condição de cidadania, exatamente no sentido de que ambas as situações provocam as mais variadas maneiras de privação e carência. De Giorgi (2002, p. 75) analisando as tendências entre as dinâmicas da produção e as formas do controle neste período de transição entre fordismo e pós-fordismo, chama atenção para a progressiva redução do nível de “emprego” da força de trabalho e a diminuição da demanda do trabalho vivo ocorrida a partir da metade dos anos 1970 e também para as mudanças nas condições da composição da força de trabalho, nos processos de constituição das subjetividades produtivas e nas dinâmicas de valorização capitalista.

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social e, mais adequadamente, estabelecer uma relação própria entre elas com a

automação da produção com sua conseqüente redução do trabalho humano vivo36,

a hiperatividade legislativa e do discurso policial repressivo e encarcerador, o

embrutecimento e a intolerância das relações e conflitos sociais, com os atuais

mecanismos de reprodução do capital.

Este modelo sócio-político de atuação das instâncias estatais,

poderíamos dizer, mais conservador, centrado na manutenção da ordem pública,

com políticas repressivas extremamente ostensivas e diretas, cuja divulgação está

prioritariamente condicionada e atrelada ao discurso de “lei e ordem”,

criminalizando os conflitos sociais e as camadas mais vulneráveis da sociedade –

corresponde a um modelo de práticas de violência estrutural e institucional,

principalmente dos órgãos policiais encarregados da segurança pública, muitas

vezes autoritária e ilegal.

A partir do final da década de 1970 toma grande fôlego o projeto

neoliberal com a eleição de Margareth Thatcher, na Inglaterra, em 1979 e, em

1980, com Ronald Reagan, nos Estados Unidos. A partir da metade dos anos 1980

os efeitos políticos e econômicos do projeto neoliberal se tornam uma realidade

muito visível, especialmente com a explosão do desemprego e o aumento

significativo da exclusão social em conseqüência do declínio do estado social (ou

estado caritativo norte americano ou estado de bem-estar europeu, como chama

Loïc Wacquant) 37.

Segundo Dornelles (2003, p. 54), houve a partir desse momento um

verdadeiro tráfico de idéias e valores que reforçaram a criminalização da miséria

como eficiente mecanismo de controle dos conflitos sociais com a finalidade de

“regular o trabalho assalariado precário em sociedades capitalistas neoliberais”.

Interessante notar, a partir dos dados trazidos por Loïc Wacquant, o grande salto

36 Como alerta De Giorgi, não é pacífica a idéia de que a automação da produção determinaria um processo de redução do trabalho humano, com vistas à valorização do capital, isto porque é necessário considerar que ela também proporciona a emergência de setores complementares, como é o caso dos setores terciários desqualificado, ou mesmo a emergência de sistemas de produção inteiros, como é o caso existente no sudeste asiático em que a automação é quase inexistente (2002, p. 81. Ver especialmente nota de rodapé no 13). 37 A partir dos dados e análises, sobre os Estados Unidos da América, apresentados por Loïc Wacquant (2001a, p. 23-27) é possível perceber o que ele chama de ‘declínio do Estado caritativo’. Mais especificamente, afirma ele que nas décadas de 1970 a 1990 houve uma visível e progressiva substituição de um Estado caritativo por um Estado penal, caracterizado pela criminalização dos indivíduos das classes mais baixas da população e, conseqüentemente mais vulneráveis.

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quantitativo do número dos encarceramentos ocorridos, principalmente, nos

Estados Unidos, fundamentalmente pela atuação cada vez mais rigorosa das

políticas penais, ainda que os dados demonstrassem que estava havendo uma

diminuição da criminalidade em décadas anteriores – dos anos 1960 a meados de

1970.

A chamada “nova direita” passa a atuar através de instituições

formadoras de opinião e financiadoras de intelectuais de perfil neoliberal,

conseguindo estabelecer uma espécie de senso comum sobre a violência e a

desordem, responsabilizando os próprios indivíduos carentes (vendedores

ambulantes, os sem teto, os que pedem esmola, mendigos, prostitutas, os que

cometem atentados à moral e aos bons costumes, etc.) pela sua própria desgraça.

Deixa-se de pensar a questão social, a partir da política e da economia, para entrar

no campo do biológico, é dizer, para autores como Charles Murray e Richard

Herrnstein, o desemprego e a pobreza seriam o resultado de uma menor

capacidade intelectual e moral de um determinado indivíduo, o que lhe

proporcionaria uma maior propensão ao crime e a comportamentos desviantes

(Dornelles, 2003, p. 56-57).

Neste contexto, as políticas públicas de segurança preconizam um

maior rigor e uma intolerância cada vez maior aos pequenos infratores devendo

ser vigiados, controlados e, se necessário, eliminados. Era preciso, portanto, um

efetivo e direto controle das ações dos pobres nos espaços públicos através do

aumento do patrulhamento policial, da redefinição das responsabilidades

operacionais dos policiais, levantamento permanente dos resultados do

policiamento e informatização geral para que a ação policial fosse a mais precisa,

imediata e inflexível contra os pequenos infratores (Cf. Dornelles, 2003, p. 61).

Este discurso criminalizante, norte-americano, proporcionou uma

grande transformação no modelo de gestão da segurança pública, exportando-se e

incrementando a agenda política sobre segurança pública para diversos países da

Europa e América Latina. No Brasil, a administração do Presidente Fernando

Henrique Cardoso – que iniciou seu primeiro mandato em 1995 e finalizou em

2002– foi marcada pelo tratamento da questão social através de políticas

criminalizadoras, despolitizando a questão social, tratando-a como se fossem

práticas criminosas comuns e, como se não bastasse, por exemplo, enfatizando a

qualificação de criminosos e desordeiros os integrantes dos movimentos sociais,

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especialmente dos trabalhadores do MST (Movimento Sem Terra), permitindo,

com isso, o encobrimento da realidade econômica e social, excessivamente

concentradora de riqueza e excludente (Cf. Dornelles, 2003, p. 65 e nota de

rodapé no 75).

O resultado desse intenso processo de criminalização, conseqüência

direta das políticas públicas de caráter neoliberal, evidencia, cada vez mais, um

aumento no grau de violência, em particular realizada por dois importantes eixos:

a violência estrutural e a violência institucional38 do Estado. Com o encolhimento

do estado de bem-estar social e o crescimento do estado punitivo39, ocorrem dois

fenômenos que podem ser visualizados da seguinte maneira: em primeiro lugar e

atrelado diretamente às políticas de segurança pública, está o aumento

significativo da quantidade de pessoas encarceradas ou submetidas ao controle

penal e, em segundo lugar, como conseqüência do primeiro e vinculado à

incidência de intensos processos de subjetivação que visam criar a necessidade de

se ter segurança, está a nova função social dos mecanismos de controle social,

qual seja, não mais (ou não só) disciplinar, controlar, classificar ou excluir, mas

reproduzir e expandir o capital por meio das privatizações das prisões, pelas

empresas de segurança privada, pela instalação de câmeras de vídeo e outros

equipamentos de segurança, os quais fundamentam a exploração econômica do

medo e do controle penal.

38 Estas formas de violência são analisadas no Capítulo 1 da presente tese. Como visto, os mecanismos estatais de coerção, capazes de realizar os pressupostos do capitalismo globalizado, necessários à acumulação do capital, utilizam-se da profusão do medo, produzindo a imagem necessária do terror social, e da violência tanto institucional – pela atuação repressiva do Estado e do parlamento – como estrutural – impondo a produção e reprodução da desigualdade social – para submeter determinadas classes sociais, especialmente estratos sociais mais baixos a todos os tipos de violência, fazendo-se compreender, diante do ponto de vista da subjetivação de condutas, o lugar de cada um na estrutura social, isto é, além de estabelecer e reproduzir a propriedade privada dos meios de produção, fornece também os meios necessários à contenção da grande massa de excluídos, a fim de manter a ordem social necessária ao processo de reprodução do capital. 39 Este discurso punitivo pode ser caracterizado, principalmente, através da violência institucional, materializada pela a) maior quantidade de tipificação legal de condutas; b) pelo aumento do aparato policial; c) pelo surgimento de regras mais duras, tanto no encarceramento quando na sua manutenção (no Brasil, por exemplo, pode-se pensar nas regras de criminalização dos crimes hediondos, ou ainda no chamado RDD – Regime Disciplinar Diferenciado – e nos Estado Unidos, por exemplo, pode-se citar as detenções de meros suspeitos, como está acontecendo na Base Militar de Guantánamo); d) nos processos de criminalização dos delitos denominados de menor potencial ofensivo, como acontece, por exemplo, com as leis ditas descriminalizadoras, despenalizadoras ou, ainda, desencarceradoras, quando na verdade permitem que um maior número de pessoas esteja submetido a algum tipo de controle penal; e) com um discurso criminalizante diretamente vinculado aos conflitos sociais; etc.

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226

5.4.3. A privatização das prisões: retirada da “sujeira” pelo controle social

A análise até aqui desenvolvida somada às pesquisas realizadas em

diversos países, inclusive no Brasil, demonstra, efetivamente, um enorme

crescimento da população marginalizada retratada, no mais das vezes, de forma

padronizada como se fosse real e, especificamente, um mesmo tipo de gente: uma

classe social destituída de desejos próprios, perigosa, suja, inferior,

monocromática (escura, por excelência) e excluída do processo produtivo, logo

descartáveis, recuperando-se, pois, a lógica da demonização das classes populares

do século XIX, uma vez que eles mesmos seriam os responsáveis pelas próprias

condições, ou seja, “é tentar responsabilizar as próprias classes subalternas, menos

favorecidas, pelos conflitos sociais e a fronteira que se estabeleceu na sociedade

brasileira entre os mais privilegiados e os muitos despossuídos” (Cf. Dornelles,

2003, p. 14).

Este tipo de comportamento social impediu, a partir de um olhar mais

atento, a observação da alteridade e os mais diferentes modos de viver e

fundamentou, de um modo geral, o aparecimento de políticas de segurança

públicas muito mais voltadas ao recrudescimento do sistema penal – sistema

carcerário, sistema judicial-legal (processo penal, direito penal e execução penal)

– proporcionando conseqüências que apontam, cada vez mais, às práticas de

intolerância e polarização social.

Löic Wacquant (2005, p. 10) ao analisar as conseqüências da

dominação neoliberal, afirma que os países desenvolvidos são incapazes de

perceber a privação econômica e grandes massas populacionais, a desafiliação

social e a desonra cultural produzidas. Para ele, a desestruturação das condições

de cidadania está diretamente relacionada com a deterioração da classe

trabalhadora e dos enclaves etnorraciais da metrópole dual e “trata-se de uma das

maiores forças que alimentam a rápida expansão e o endurecimento uniforme da

polícia e das políticas penais armadas contra a pobreza urbana nos Estados Unidos

e na União Européia”.

No Brasil a situação não é diferente, aliás, esta situação toma rumos,

talvez, ainda piores, uma vez que é exatamente em função de todas as

circunstâncias proporcionadas pelas políticas econômicas neoliberais e pelos

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227

intensos processos de subjetivações – na maioria das vezes ignoradas – que

sufragaram os projetos de acesso à justiça, distribuição eqüitativa de cidadania e

implementação e respeito aos Direitos Humanos.

A dimensão que se pretende traçar, portanto, é a que leva em

consideração uma grande diversidade de aspectos – sociais, econômicos, culturais

e político-institucionais – evitando-se a fragmentação da realidade, observando a

avalanche de exclusão social por elas provocadas, isto porque, como aponta João

Ricardo W. Dornelles (2003, p. 14), “quando se afasta os aspectos

socioeconômicos da análise, mantendo apenas as variáveis socioculturais, é como

se houvesse uma imputação da responsabilidade pela violência generalizada aos

próprios segmentos sociais mais pobres e vulneráveis, que na verdade são aqueles

mais atingidos e ameaçados pelo crescimento do fenômeno da violência e pela

generalização das ilegalidades”. Importante salientar, entretanto, como a

polarização social, a intolerância à diferença (soropositivos, negros, pobres,

homossexuais, estrangeiros, etc.) fomentam um alto grau de determinação nas

políticas de segurança pública mais autoritárias, proporcionando um direto

aumento nas taxas de encarceramento.

Esta idéia é trazida de forma bastante clara por Minhotto (2000, p.

153) ao afirmar que não há relação direta e unívoca possível entre violência,

punição e degradação das condições de existência dos estratos mais baixos da

população, entretanto, diz ele, “a conjugação de fatores como o aumento da

polarização entre as classes sociais, um clima de intolerância por parte de certos

segmentos da população, especialmente os que exercem maior influência na

definição de políticas penais, e a agenda política dos governos conservadores, tem

um claro impacto no aumento das taxas de encarceramento”.

Assim, são exatamente estas políticas penais mais rigorosas que

possibilitam fazer uma relação não causal e definida, mas conseqüente e paralela

entre o modelo econômico vigente, a ‘necessidade’ de um aumento do controle

social e o aumento das taxas de encarceramento. Aliado a estes fatores é possível

perceber também uma tendencial relação dos hábitos sociais preponderantes,

favorecendo uma correspondência entre o sistema de produção e formas de punir,

apontando circunstâncias sociais definidoras das políticas penais.

A relação possível que deve apresentar-se como tendencial em tempos

de crise econômica está diretamente relacionada, então, à construção social do

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228

tipo de desvio que se deve combater, é dizer, proporcionar uma demanda social

capaz de subjetivar o cenário político e social de forma a aumentar o anseio à

severidade das penas, à criminalização de condutas e à intolerância ao desvio,

permitindo a instalação de uma nova moralidade – de concepção conservadora –

induzindo consensos sociais em busca da ordem e do controle social via políticas

de segurança públicas40 cujo ‘pano de fundo’ estabelecido é o estado de exceção.

Há fatores, portanto, que delineiam um cenário no qual: a) a criminalidade e a

violência tomam conta da agenda política; b) as garantias constitucionais não são

levadas em consideração (princípio da presunção da inocência, do devido

processo legal, do contraditório, etc.); c) o medo e a insegurança são responsáveis

e capazes de impor à população uma troca simbólica entre ‘segurança’ ou

‘liberdade’, permitindo que haja um condicionamento da população em legitimar

e definir ações e políticas penais conservadoras que aumentem,

significativamente, as taxas de encarceramento41.

São estas as condições que permitem a confluência de diversos fatores

à expansão das privatizações dos presídios, especialmente sob o argumento da

necessidade de se obter eficiência, segurança e redução dos custos na execução

das penas privativas de liberdade. Na verdade, as privatizações têm encontrado

lugar de destaque à necessidade de se buscar, nos termos de David Harvey, a

abertura de novos espaços a serem apropriados pelo capital sobreacumulado (o

excedente de capital que não encontra escoador do excedente de capital). A

privatização dos presídios (como em outros setores da economia) exerce, na

contemporaneidade, papel semelhante à acumulação primitiva que Marx

descreveu, é dizer, a tomada das terras, via violência física, que fundamentava a 40 O controle social do desvio – como mecanismo de resposta da sociedade ao indivíduo ou grupo determinado – é exercido por meios públicos ou privados, individuais ou coletivos, e visa adequar o indivíduo ou grupo ao modelo pressuposto de sociedade apresentada, isto porque a definição do desvio – e seu controle por conseqüência – acompanha e muda em função da perspectiva de se estabelecer a garantia da ordem. A definição, portanto, tanto do desvio (crime ou pecado) como da ação das agências de controle (polícia, Poder Judiciário, igreja, família) se dá a partir de mecanismos políticos, econômicos e sociais. Por estas razões e em função desses mecanismos se afirma que o controle social é seletivo, podendo, portanto, diante da capilaridade dos micropoderes, ser exercido à formatação e docilização de corpos e mentes. 41 Interessante verificar site: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2007/04/10/295296751.asp, acessado em 11 abr. 2007, no qual trata de uma pesquisa realizada pela CNT/Sensus, na qual constata um índice de aprovação de 81,5% para redução da idade à responsabilidade penal. Os dados apresentados pela reportagem (pesquisa) são significativos, entretanto, para o interesse da presente tese é fundamental atentar-se à declaração do Cientista Político Ricardo Guedes, do Instituto Sensus, entrevistado na reportagem, segundo o qual o resultado da pesquisa mostra que a percepção da violência é maior do que o problema em si, afirma ele que: “a pesquisa revela que a percepção da violência é maior que a violência”.

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acumulação é hoje realizada pela apropriação de ativos financeiros

sobreacumulados visando a obtenção do lucro.

As privatizações do sistema penitenciário ocorridas no mundo, bem

como aquelas ocorridas no Brasil42, são exemplos claros da dupla necessidade

imposta pelo capital: a abertura de novos espaços a serem apropriados pelo capital

sobreacumulado e a busca da ordem e do controle social via políticas de segurança

públicas, ou seja, a privatização do sistema penitenciário permite a realização e a

expansão do capital e potencializa a limpeza social dos excluídos.

O significado biopolítico dessa privatização é o exercício de uma

função de confinamento e classificação espacial, isto porque, como enfatiza

Bauman (1999, 114), a prisão e o isolamento proporcionam, além do tradicional

método para lidar com setores problemáticos e de difícil controle da população,

uma separação espacial forçada como forma de reagir à intolerância da diferença,

perpetuando a diminuição da visão do outro, ou seja, “as qualidades e

circunstâncias individuais que tendem a se tornar bem visíveis graças à

experiência acumulada do relacionamento diário raramente são vistas quando o

intercâmbio definha ou é proibido – a caracterização toma então o lugar da

intimidade pessoal e as categorias legais que visam subjugar a disparidade e

permitir que seja desconsiderada, tornam irrelevante a singularidade das pessoas e

dos casos”.

Somente para se ter idéia, conforme demonstra a pesquisa realizada

por Sandro Cabral (2005, p. 123), há tendência, no Brasil, de crescimento da

população carcerária acima dos patamares do crescimento vegetativo43 da

população, uma vez que a quantidade de presos nos últimos 12 anos aumentou

42 Estas acompanharam a tendência nacional de privatizações, as quais iniciaram a partir do Programa Nacional de Desestatização - PND, instituído pela Lei no 8.031, de 12.04.90, quando a privatização tornou-se parte integrante das reformas econômicas iniciadas pelo Governo Federal. No primeiro período analisado pela pesquisa (1990 – 1994) foram privatizadas 33 empresas. No segundo período (1995 – 2002) iniciou-se a fase da privatização dos serviços públicos, sendo incluídos o setor elétrico, financeiro e as concessões das áreas de transporte, rodovias, saneamento, portos e telecomunicações. Laurindo Dias Minhoto (2000, p. 168) lembra que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) propôs em janeiro de 1992 a adoção da privatização no Brasil. Interessante leitura pode ser feita da nota de rodapé no 210 dessa mesma obra, na qual o autor aponta curioso neologismo criado a partir das propostas de regras básicas para o programa de privatização do sistema penitenciário no Brasil, do tipo “parque penitenciário nacional”, fazendo-se clara alusão ao discurso contemporâneo do mercado uma vez que este aparece à legitimar o procedimento sob o argumento de proporcionar a melhoria na qualidade dos serviços prestados através do aumento de investimentos a serem realizados pela iniciativa privada. 43 Crescimento vegetativo é a diferença entre a taxa de natalidade e a de mortalidade (http://pt.wikipedia.org/wiki/Crescimento_vegetativo, acessado em 20 de março de 2007).

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mais de 130% em relação à população. Os dados apresentados pelos censos

penitenciários revelaram que houve um extraordinário salto quantitativo, passando

de 129.169 presos em 1994 – equivalente a 84 presos por 100.000 habitantes –

para 361.402 presos44, em 2005 – equivalente a 195 presos por 100.000

habitantes. Na verdade os dados informativos colhidos no site do Ministério da

Justiça indicam que havia, em junho de 2006, 371.482 presos45 para uma

população de 186.770.56246, ou seja, o equivalente a 199 presos por 100.000

habitantes47.

Ano Quantidade de presos Taxa de encarceramento

Presos/100.000 hab.

1994 129.169 84

1995 148.760 95

1997 170.602 108

2002 240.107 141

2005 361.402 195

2006 371.482 199

É possível perceber, com estes dados, que o crescimento da população

carcerária aumentou significativamente, entretanto, para os objetivos da presente

pesquisa é importante perceber, também, a partir do cruzamento de dados

apresentados pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN – e Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – que esta população carcerária

representa um nicho de mercado excepcional e em crescimento. Veja-se, além

disso, que os indicadores apresentados por Sandro Cabral (2005, p. 125)

44 Dados capturados no site http://www.mj.gov.br/depen/sistema/CONSOLIDADO%202006.pdf, acessado em 19 de março de 2007. 45 Dados capturados no site http://www.mj.gov.br/depen/sistema/2006_junho.pdf, acessado em 07 de março de 2007, e estão atualizados com data de junho de 2006. Os dados dos anos anteriores foram colhidos nos Censos penitenciários de 1995, 1997 e 2002. Saliente-se e adite-se que a população carcerária no final de 2006 já havia atingido 401.236 presos, conforme se vê no site http://www.mj.gov.br/depen/sistema/Pesquisa%20(Desembro-2006).pdf, acessado em 19 de março de 2007. 46 Este dado está atualizado até julho de 2006 e foi capturado no site http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2006/POP_2006_DOU.pdf, acessado em 19 de março de 2007. 47 Uma ponderação deve ser levada em consideração: a população carcerária em dezembro de 2006, com visto, chegou aos 401.236 presos, entretanto não foi possível fazer uma relação entre presos e quantidade de habitantes (100.000) em função de que até o presente momento o IBGE não havia disponibilizado estatísticas suficientes, assim, considerando-se esse fato, chega ao número apontado de 199 presos por 100.000 habitantes em junho de 2006 através da seguinte fórmula: total de presos / (total da população/100.000) = 371.482 / (186.770.562/100.000) = 371.482/1867,70562 = 198,89 presos por 100.000 habitantes.

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demonstram haver um déficit no ano de 2005 de, aproximadamente, 145.482

vagas, mas acrescenta que há um déficit potencial de 345 mil vagas no país, em

função, principalmente, dos mandados de prisão expedidos e ainda não

cumpridos.

Esta mesma pesquisa aponta ainda dois dados importantes que

merecem destaque: primeiro, o custo estimado à absorção desse déficit oficial de

vagas no Brasil é, conforme dados disponibilizados pelo DEPEN, de R$ 1,4

bilhão de reais e; segundo, dos 361.402 que formavam, em dezembro de 2005, a

população carcerária brasileira, 5.346 (1,48% do total de presos) estavam reclusos

em estabelecimentos prisionais com operações terceirizadas48.

Este crescimento da população carcerária no Brasil, frise-se, não é

privilégio exclusivo, isto porque há tendência em diversos países, em função de

fatores relativamente conhecidos, especialmente pelas recentes transformações da

economia capitalista, como a mundialização e financeirização do capital – vistas

nos capítulos II e III da presente tese – que proporcionam um aumento

significativo de possibilidades lucrativas em função da criação de espaços

próprios à reprodução do capital, notadamente pelo surgimento de lugares e

momentos propícios à exclusão social, isto é, à gestão penal dos excessos

populacionais.

Recorrendo novamente à pesquisa de Sandro Cabral (2005, p.

123/124), é possível perceber o aumento da população submetida ao sistema penal

em diversos países. Comparativamente o Brasil está entre os países que possuem

uma população carcerária no nível inferior a 200 presos por 100.000 habitantes,

entretanto, os dados revelam que já estamos bem à frente de países europeus

desenvolvidos como a Itália, França, Alemanha e Reino Unido49. Como já foi

mostrado, em junho de 2006 o Brasil já possuía 199 presos por 100.000

habitantes, entretanto não foram levados em consideração, por exemplo, os dados

relativos ao número de pessoas submetidas às medidas chamadas

“despenalizadoras” como aquelas previstas na Lei no 9,099/95, que possibilitaram 48 Sandro Cabral (2005, p. 187) revela que o Paraná, mesmo tendo sido o primeiro estado brasileiro a adotar a terceirização dos serviços prisionais, em 2006 reverteu o processo e passou a administrar os seis estabelecimentos que haviam sido operadas por empresas privadas. Caso esta retomada das seis unidades pela administração pública não tivesse ocorrido, o percentual de presos custodiados por operações terceirizadas seria de 2,1% do total de presos no Brasil. 49 Os dados da pesquisa correspondem ao ano de 2003. A proporção de presos por 100.000 habitantes era de 96 presos no Reino Unido, 102 presos na Alemanha, 118 presos na França e 134 presos na Itália.

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ao suposto autor de um fato delituoso, fazer um acordo judicial que o submete a

um período de prova por um determinado tempo em troca de não ser processado

criminalmente50. Levou-se em consideração para o cálculo das pessoas presas no

Brasil, portanto, somente a quantidade de indivíduos que, apenas e tão só, estavam

custodiados em penitenciárias, presídios51 e delegacias, estaduais e federais,

públicas ou terceirizadas.

A importância de se falar nestes números não contabilizados é, na

verdade, mostrar que há uma quantidade imensa de pessoas que estão submetidas

de alguma forma ao sistema penal e que são, potencialmente, clientes ou

mercadorias aptas a serem reificadas e fetichizadas pelo capital. Veja-se, por

exemplo, que nos EUA o número de pessoas submetidas ao regime de controle

penal, fora das prisões, é significativamente maior que o número de presos

efetivos. Conforme se vê nos dados trazidos pelo Bureau of Justice Statistics, no

final de 2005 havia, aproximadamente, 4.162.500 pessoas submetidas à chamada

probation e outras 784.400 sob o regime da parole (totalizando,

aproximadamente, 4.946.900 pessoas), enquanto havia 2.193.798 pessoas

custodiadas em prisões federais, estaduais e locais, nos Estados Unidos.

Os dados apresentados pelo Bureau of Justice Statistics do ano de

2005 revelam, por exemplo, que apesar do número de pessoas encarceradas ter

aumentado significativamente nos últimos 25 anos52, o sistema penal tem atuado

com maior rigor nas situações que permitem um controle social fora dos limites 50 São chamadas leis despenalizadoras no Brasil, por exemplo, a Lei no 9.099/95 e a Lei no 10.259/01, as quais dispõem sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estadual e federal, respectivamente. No que concerne ao procedimento criminal ambas legislações tratam dos crimes de menor potencial ofensivo, ou seja, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa (artigo 61 da Lei no 9.099/95). Nesta circunstância e havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta (art. 76 da Lei no 9.099/95). Conforme artigo 89 da Lei no 9.099/95, nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). 51 Somente a título de esclarecimento, o artigo 87 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execuções Penais) dispoõe que a penitenciária “destina-se ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado”. Ressalte-se, por oportuno, que a expressão “presídio” foi utilizada para refenciar o estabelecimento penal que abriga os presos provisórios (prisões em flagrante, prisão provisória, prisão temporária, etc.), o que corresponde, entretanto, ao estabelecido no artigo 102 da referida Lei de Execução Penal, sendo denominada de “Cadeia Pública”. 52 Em relação ao final do ano de 2004, a população encarcerada no final de 2005 tinha aumentado 2,7% e, em relação à população encarcerada em 1980, que era de, aproximadamente, 498.262 pessoas, havia aumentado mais de 4 vezes.

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233

estabelecidos pelas prisões (mais de 2 vezes o número de encarcerados), é dizer, o

sistema penal levando e desenvolvendo seus enormes braços às mais longínquas

pradarias.

Diante desses dados, é possível extrair quatro considerações

importantes: primeiro, há tendência de crescimento da população encarcerada, não

só nos Estados Unidos, mas também no Brasil, como uma espécie de

conseqüência das políticas públicas penais mais rigorosas; segundo, os dados

confirmam um aumento significativo do número de pessoas submetidas ao

sistema penal extramuros nos Estados Unidos; terceiro, muito embora não se

tenha dados suficientemente confiáveis, é possível afirmar que há também uma

tendência de se aumentar a população submetida ao sistema penal extramuro no

Brasil, em função das inovações legislativas (com as chamadas lei

despenalizadoras, como a dos Juizados Especiais Estaduais e Federais – Lei no

9.099/95 e Lei no 10.259/01) e, por fim; quarto, este crescente número de pessoas

submetidas às condições de monitoramento judicial (parole e probation nos

Estados Unidos e a suspensão condicional do processo, penas alternativas no

Brasil, por exemplo) significam, na verdade, um enorme potencial à exploração

econômica e a expansão populacional muito grande a ser submetida ao tratamento

mercadológico penal.

É exatamente esta ampliação e desenvolvimento dos enlaces possíveis

do sistema penal que permite o surgimento de novos lugares à expansão do

capital, especialmente a prisão e outros mecanismos de controle, isto porque os

dados apontam elementos que favorecem legalmente (o que dá uma face de

legitimidade ao sistema) a criação de instrumentos de agenciamento de uma

potencial clientela – que nos Estados Unidos corresponde a mais que o dobro de

pessoas encarceradas em relação àquelas submetidas à probation ou à parole – o

que significa um mercado de reprodução do capital extraordinário, ou seja, a

atuação do sistema penal, na contemporaneidade, é exercida não só na prisão mas

também fora dela. Aliás, nestes termos, é possível ainda afirmar que o mercado de

controle penal fora das instituições prisionais é igual ou mais atrativo que a

privatização das prisões, isto porque além da necessidade do controle daqueles

submetidos aos regimes condicionais há outra indústria que é alimentada pelo

fomento e divulgação da violência: a indústria do medo que viabiliza a

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‘necessidade’ de se procurar segurança (privada) ante a inércia e ineficiência do

Estado, abrindo-se um mercado pouco explorado, mas em franca expansão.

5.4.4. O controle social privatizado: a exploração econômica do medo53

Há um espetacular cenário de guerras, amplamente divulgado pelos

meios de comunicação: há as guerras contra o tráfico ilícito de entorpecentes,

guerra contra o terrorismo, guerra contra a violência, etc. Entretanto, esse difuso

cenário de práticas violentas, além do fomento à privatização dos presídios para

reproduzir o capital, conter e aprisionar as massas de excluídos, proporciona

também um intenso movimento favorecendo a constituição de, pelo menos, outras

duas situações: a) o surgimento de diversos mecanismos à reprodução do capital,

e b) técnicas, tecnologias e instrumentos erguidos à proteção dos indivíduos

através da guetificação e aprisionamento das diversas classes sociais.

A primeira situação pode ser vista a partir das empresas de segurança

privada, mas é possível encontrar outros mecanismos de reprodução do capital

que utilizam o discurso do medo e a necessidade de se ter segurança, tais como o

crescimento da quantidade de seguros de proteção ao patrimônio (residências,

automóveis, etc.), empresas que realizam a blindagem de automóveis, a venda de

armamentos destinados à segurança (pública e privada), treinamento de pessoal

especializado, investimentos em alta tecnologia (principalmente em software e

chips de monitoramento, etc.), investimentos em tecnologia genética para

desenvolvimento de sistemas de identificação por DNA, investimentos em

equipamentos (automóveis, computadores), etc.

53 Neste ponto da tese é importante estabelecer e informar que alguns dados levantados aqui foram “capturados” em diversos sites do Governo Federal, de empresas privadas de vigilância e segurança eletrônica, de associações de empresas de equipamentos (desde tecnologias, pesquisas, e equipamentos propriamente ditos) de monitoramento – como é o caso da ABINEE (Associação Brasileira da Idústria Elétrica e Eletrônica) – ou ainda sites de informações técnicas sobre monitoramento como é o caso do site do Guia do CFTV. Entendo relevante estar fazendo este pequeno alerta, pois as informações trazidas não devem ser consideradas de forma absoluta, pois não há base de dados para confrontação, apenas a informação dada. Entretanto, aos fins da presente pesquisa, os dados referenciados podem prestar informações sobre o tema, porque elas demonstram, em primeiro lugar, que o desenvolvimento do setor parte da idéia da existência de insegurança social – consubstanciada, especialmente, no discurso do medo, do aumento da criminalidade e do terrorismo – e, em segundo lugar, que este é um lugar próprio à expansão do capital.

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235

A segunda situação – guetificação das classes – pode ser observada

pelo processo de crescimento do encarceramento e divulgação incessante dos atos

de violência ocorridos nas sociedades contemporâneas, isto porque este processo é

imanente ao conjunto de práticas que tendem a proporcionar aos indivíduos a

busca de instrumentos que os protejam, ou seja, muito mais que a concretização

de mecanismos disciplinares – como o fez a instituição carcerária – as tecnologias

e instrumentos de proteção contribuem, significativamente, à guetificação das

massas urbanas, seja ela voluntária – como os grandes condomínios fechados

(vertical e horizontal), os centros comerciais, o gradeamento de casas, vigilantes

privados, presídios, etc. – ou involuntária – os guetos resultantes da apartação

social, como as favelas.

A instalação de câmeras de vigilância, como instrumento criado para

proporcionar maior segurança à população, tem como propósito principal

(declarado) o monitoramento eletrônico da sociedade, tanto nas vias públicas

(ruas, logradouros, avenidas, etc.) como em locais privados (lojas, restaurantes,

etc.). Muito embora se discuta, nesta quadra de argumentações, aspectos

destacados da sua constitucionalidade ou não, da invasão da privacidade ou não,

da violação da intimidade ou não, da efetividade da segurança proporcionada

pelas câmeras ou não, os argumentos aqui estudados estarão centrados na

utilização desse instrumento para viabilizar o controle da sociedade e, mais

significativamente, explorar economicamente o medo em função da divulgação do

aumento da violência e a necessidade de se ter mais segurança. É o controle penal

que não mais disciplina, mas produz uma linguagem classificatória que permite a

inclusão e a exclusão, permite a distinção entre classes perigosas e pessoas

honestas. Em tempos de economia flexível e desemprego em massa, é bom pensar

numa difícil e contundente realidade: se os termos da cidadania estão diretamente

relacionados com a possibilidade de se ter um trabalho (ainda que seja precário)

entretanto, como não há espaço para todos, quem será o cidadão contemporâneo?

A quem é permitido estar dentro? A quem não é permitida a entrada?

Há um fluxo migratório em direção à insegurança, isto porque as

classificações, separações e controles disciplinares assim o permitem, por isso a

necessidade dos rótulos, dos chips, pulseiras e braceletes de monitoramento. Se o

sistema penal não conseguir dar a identidade de criminoso, sua identidade de

excluído será dada pela própria condição étnica, de imigrante, de desempregado, e

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esta violência ser-lhe-á imposta sem que seja minimamente percebida através do

seu monitoramento: o monitoramento das classes perigosas. Se, por um lado, a

segurança pública está cada vez mais truculenta e disposta a atacar, como se

estivéssemos num permanente estado de guerra, por outro a segurança privada

aproveita para alcançar seu desenvolvimento pleno. Esta postura de enfrentamento

que caracteriza a passagem do modelo sanitário para um modelo bélico de política

criminal, é apontada por Nilo Batista (1998) quando analisou as características das

políticas criminais de drogas instaladas no Brasil, durante grande parte do século

XX54.

Esta é a tendência contemporânea de transformação do modelo e das

estratégias de controle social, porque a expansão da necessidade de se ter

segurança e, conseqüentemente, o avanço possibilitado às empresas de segurança

favorece o desenvolvimento e utilização de diversos mecanismos e instrumentos

de segurança (como visto acima), os quais permitem a consolidação da hipótese

de existir, pelo menos, dois sistemas de segurança: a) um sistema caracterizado

por serviços privados de segurança de alta tecnologia utilizados, em sua ampla

maioria, por classes sociais melhor estabelecidas economicamente e, b) um

sistema caracterizado por um serviço de segurança público, truculento, autoritário

e seletivo.

Lembremo-nos que na contemporaneidade o controle social exercido

pelo capital e pelo sistema penal, conjuntamente, realiza outras diferentes funções,

distintas daquelas típicas do período fordista. Muito embora esta relação não seja

exaustiva, cito quatro importantes funções exercidas pelo sistema de controle

econômico-penal: a) a consolidação de um modelo que prioriza a repressão, o

autoritarismo e a guerra contra determinados inimigos (terroristas, classes sociais,

determinadas etnias, minorias, ambulantes, combate às drogas, etc.); b) aumento

quantitativo dos encarceramentos e dos vínculos com sistema penal, permitindo a

captação de matéria prima (pessoas presas) necessária ao desenvolvimento do

negócio carcerário; c) a expansão do capital via desenvolvimento de novos

espaços à sua reprodução e; d) a reprodução do capital através do chamado capital

54 A minuciosa análise de Nilo Batista foi realizada com o objetivo de compreender a política criminal para drogas no Brasil e seus reflexos no direito e processo penal. Ele denomina o período compreendido entre os anos de 1914 e 1964 de modelo sanitário e a partir de 1964 de modelo bélico.

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destrutivo. As duas primeiras funções já foram analisadas anteriormente, cabendo

agora uma análise nas duas outras funções.

Sob o ponto de vista da procura de espaços à expansão do capital,

foram encontrados, não só na privatização dos presídios, mas também nos

equipamentos de busca de segurança e do controle do crime como a instalação das

câmeras de vigilância, aquisição de veículos, armamentos e informatização dos

mecanismos de controle, treinamento de pessoal, etc. Um dos papéis exercidos

pela criminalização da miséria – produto da enorme exclusão social – é a criação

de espaços à expansão do capital e o apelo para se conseguir fomentar a indústria

da segurança que potencializa a criação das empresas de segurança privada e

implementa outros meios destinados à expansão do capital, é o discurso do medo.

Foi exatamente este discurso o responsável pela implementação, por exemplo, das

políticas de segurança públicas baseadas no eficientismo penal, conhecidas como

de “tolerância zero” ou “teoria das janelas quebradas”, que nada mais são do que

políticas que proporcionam uma maior “penalização da miséria”, para ficarmos na

terminologia de Löic Wacquant.

O sistemático mecanismo de encarceramento tornou-se um grande

negócio, mas há também outras conseqüências da alteração – ou do foco de

atuação do estado de bem-estar para o estado penal – das políticas públicas dos

estados. Para Loïc Wacquant (2001a, p. 27-28) houve uma transformação dos

serviços sociais em instrumentos de vigilância e controle das populações

excluídas, vulnerabilizadas (também chamadas de classes perigosas). Nos Estados

Unidos o acesso à assistência social fica condicionado ao cumprimento de certos

critérios objetivos e obrigações burocráticas, onerosas ou humilhantes, como por

exemplo a assistência às famílias condicionando-a a assiduidade escolar de seus

filhos. No Brasil esta situação é bem semelhante, basta imaginar, nos últimos

anos, os programas de transferência de renda do Governo Federal como o “bolsa-

família”55 ou ‘bolsa-escola”56.

55 O Programa Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda. Podem ser incluídas no programa as famílias com renda mensal de até R$ 60,00 por pessoa, independentemente de sua composição. Por sua vez, as famílias com renda mensal entre R$ 60,01 e R$ 120,00 por pessoa podem ingressar no Programa desde que tenham gestantes, nutrizes e crianças e adolescentes entre 0 a 15 anos, conforme o site http://www.mds.gov.br/programas/transferencia-de-renda/programa-bolsa-familia. Para entrar no Programa Bolsa Família, as famílias com renda mensal por pessoa de até R$ 120,00 devem fazer o cadastro no Cadastro Único dos Programas Sociais. 56 A Bolsa Escola é outro programa de transferência de renda do Governo Federal que dá uma ajuda mensal de R$ 15,00 para as crianças de 6 a 15 anos, que freqüentam e assistem às aulas e

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Todos estes dados levantados e apontados anteriormente, os quais

mostram um crescimento das taxas de encarceramento, tanto nos Estados Unidos

como também no Brasil – diga-se, um encarceramento seletivo, classista e étnico

– especialmente aqueles dados que revelam que o crescimento das taxas de

encarceramento passaram a ocorrer quando, e ao mesmo momento em que havia

uma tendência de queda da população carcerária, demonstram uma significativa

mudança nas estratégias de controle social via políticas repressivas e, mais

precisamente, através de tecnologias e estratégias de controle mais presentes o que

correspondeu, historicamente, ao o momento da destruição do estado de bem-estar

a partir de meados dos anos 1970, ou seja, o controle social, as práticas e

estratégias de evitação da exclusão social – pobreza, desemprego, subemprego, é

dizer, os excedentes da força de trabalho, criados pela condição de produção pós-

fordista – deixaram de ser um problema solucionável pelos instrumentos de

políticas públicas inclusivas, para ser alvo dos instrumentos, tecnologias e

tendências de resolução via penalidade, via controle social do desvio.

O olhar eficiente e garantista da governabilidade está, definitivamente,

atrelado à maximização econômica, ou seja, o controle disciplinar e a economia

política da pena estão diretamente vinculados à ordem produtiva, nisso resulta a

transição de que fala Wacquant de um Estado social ao Estado penal, controlando

não mais a pobreza (conseqüência da imposição do modelo econômico neoliberal)

mas reprimindo os pobres (controle social das massas).

As câmeras de monitoramento surgem no momento em que todos são

suspeitos. Não há como definir, identificar ou diferenciar a classe dos perigosos,

ou melhor, todos são iguais: igualmente perigosos e, por conseqüência, suspeitos.

Como afirma De Giorgi (2002, p. 116) “é exatamente a dificuldade crescente em

distinguir o desviante do precário, o criminoso do irregular, o trabalhador da

economia ilegal do trabalhador da economia informal que determina o

reagrupamento da diversidade em classe perigosa”57.

cobre no máximo 3 crianças por família, sendo que a renda familiar, dividida pelo número de pessoas que a compõem, não pode ser superior a R$ 90,00, conforme o site http://www.caixa.gov.br/Cidadao/produtos/asp/bolsa_escola.asp. 57 Proprio la difficoltà crescente di distinguere il deviante dal precario, il criminale dall´irregolare, il lavoratore dell´economia illegale da quello dell´economia informale, determina il raggruppamento della diversità in classe pericolosa.

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É na expressão da suspeição de todos que é possível legitimar uma

atuação que busca, no discurso, dar ao princípio da segurança maior

preponderância ao princípio da liberdade. Este “olhar” que pode ser refletido na

busca da segurança e também na conservação da ordem, é captado pelas lentes

mais ousadas e ávidas à reprodução do capital58. Além das câmeras de

monitoramento eletrônico de pessoas, o controle social está, também, em outros

mecanismos, novas práticas de governo, novos instrumentos de controle e

identificação. É possível, por exemplo, falar em práticas de controle como a

obrigatoriedade de instalação de chips de identificação nos automóveis59 e de

58 Sobre o crescimento das empresas especializadas em equipamentos eletrônicos de vigilância, interessante matéria pode ser encontrada no site da Abinee (http://www.abinee.org.br/). A referida matéria traz números e perspectivas de crescimento do setor afirmando que o cenário de guerra criado em grandes capitais brasileiras – em especial São Paulo e Rio de Janeiro – é um “prato cheio para as empresas que fornecem serviços de segurança eletrônica no Brasil”. São quase 7 mil empresas na área que esperavam crescer entre 10% e 15% no ano de 2006, devendo faturar U$S 1,1 bilhão de faturamento. Segundo a reportagem, Paulo Alvarenga, diretor da Abinee, diz que a alta na procura pelos produtos e serviços do setor nessa época foi também um reflexo da insegurança mundial generalizada, decorrente do episódio de 11 de setembro de 2001. A atividade financeira (bancária) é responsável por R$ 19,6 bilhões de investimentos entre automação, softwares para aumentar a segurança nas transações bancárias, novos terminais de auto-atendimento e linhas e equipamentos de telecomunicações. Outra tendência apontada é a da atuação de empresas que integrem os sistemas de segurança, como a Siemens, que obteve 50% do faturamento com serviços de monitoramento, o que significa, aproximadamente, R$ 7 bilhões em 2005. A matéria informa ainda que a “empresa ampliou seu mix de serviços com o desenvolvimento de uma tecnologia de monitoramento de condomínios verticais e com a entrada na prestação de serviços de rastreamento de veículos”. A mesma reportagem traz também algumas informações sobre as câmeras de monitoramento, sensores e alarmes para locais públicos e privados. Segundo ela, a partir dos ataques divulgados pela mídia do grupo chamado PCC em São Paulo – Primeiro Comando da Capital – o interesse da população pelo setor aumentou. A expectativa é que o setor deva movimentar US$ 1,1 bilhão em 2006, trazendo novidades “que podem complementar as ações de combate à criminalidade”, sendo uma das principais um “software que, integrado a uma central de câmeras de monitoramento público, pode controlar o comportamento de pedestres e veículos e identificar infrações ou situações suspeitas sem que o operador esteja necessariamente olhando para a tela". Interessante verificar que o discurso está direcionado para uma sociedade que vive atenta e suspeitando de todos. Um dos atrativos que chama atenção são os mecanismos de controle da população pois, segundo a reportagem estas câmeras de monitoramento, pode-se configurar a câmera para disparar um alarme quando um carro estaciona em local proibido ou um pedestre começa a correr em um calçadão de intenso movimento, ou seja, “capazes de detectar situações típicas de um ataque criminoso, como carros ou motos em alta velocidade ou na contramão”. O software pode também armazenar informações como fluxo de carros em uma rua, formando um banco de dados. O lançamento mundial desse sistema ocorreu em julho de 2006 e a cidade de Campinas (SP) foi a primeira a adotar em 8 câmeras de rua. Para adaptar este programa nas câmeras já existentes, o custo é de US$ 1.600 por câmera. Muito interessante para avaliação no presente estudo a chamada “nova atração”: é uma arma não letal que imobiliza uma pessoa a uma distância de 10 metros por meio do disparo de uma corrente elétrica de 50 mil volts. Lembremos que a identificação é feita por visualização direta do operador, ou seja, aliada à possibilidade do erro (do ponto de vista objetivo é possível haver erro do sistema no momento do disparo, na identificação e seleção da ocorrência, na seleção da vítima do disparo) ficará ao encargo do operador (critério subjetivo) eleger as infrações, desvios e desviantes que serão atingidos. 59 A partir da Resolução 212 do Contran, a qual criou SINAV – Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos – foi regulamentada as regras para implementação obrigatória da

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monitoramento de presos60 e também chips de identificação nas cédulas de

identidade61.

É bom lembrar que todos estes mecanismos – câmeras de

monitoramento, chips de identificação e monitoramento, etc. – que hoje garantem

sua legitimidade em face do discurso da segurança contra o crime, amanhã podem

estar a serviço da ordem (ou da lei e ordem), podendo ser usados para verificações

de greves, repressão às manifestações políticas e ideológicas, por exemplo, e todo

tipo de controle possível das massas indesejadas (hoje classes perigosas). Por fim,

cabe lembrar que há sistemas disponíveis, por exemplo o programa “Google

Earth”, que permite uma incrível aproximação de imagens via satélite,

localizando ruas e casas em qualquer parte do mundo, e isto ao alcance de todos,

mas, é de se perguntar: se isto está absolutamente disponível a todos o que é

possível saber e que ainda não está disponível? É o controle total de tudo e de

todos.

Independente das questões até aqui levantadas, é importante relembrar

que estes mecanismos, seguramente, utilizam-se do discurso do medo e da

colocação de ‘chips’ de identificação nos veículos nos próximos cinco anos. A Resolução estabelece, ainda, que após o prazo de implantação, quem não estiver com o ‘chip’ no veículo estará cometendo infração do Art. 237 do CTB por não ter inscrições e simbologia necessária a sua identificação o que implicará em multa e pontos na Carteira Nacional de Habilitação. 60 O monitoramento de presos é utilizado nos Estados Unidos e em vários países da Europa e pode ser realizado via implantação de chips na pele de presos como também com um acessório acoplado ao corpo, como uma pulseira ou tornozeleira, que manda mensagens a uma central sobre a localização da pessoa monitorada. A discussão que está sendo travada transita, de um modo geral, sob dois aspectos: a) uma maior humanização das penas e da diminuição da quantidade de presos e, b) a violação à privacidade e intimidade das pessoas submetidas a este tratamento, bem como a produção de estigmas em função das marcas ou acessórios que permitiriam maior visibilidade da condição de estar preso. Uma outra possibilidade seria permitir que a pessoa condenada pudesse optar em utilizar ou não o equipamento, ou seja, não de forma impositiva mas facultando-lhe esta possibilidade. Assim, concordando com o monitoramento, o indivíduo seria vigiado pelo equipamento sendo que não se sabe se o monitoramento seria realizado por um órgão público ou privado. No Brasil o monitoramento de presos é um assunto que está sendo discutido no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A proposta foi feita pelo Deputado Federal Carlos Manato (PDT-ES) e a idéia é implantar um microchip sob a pele dos presos e monitorá-los durante 24 horas por dia, via satélite, para diminuir a superlotação das penitenciárias, melhorar a gestão carcerária no País e monitorar presos que estejam cumprindo pena fora do estabelecimento prisional. Ver Projeto de Lei no 510/07. Acrescente-se, ainda, que no dia 18 de abril de 2007, o Governador do Estado de São Paulo entregou ao Presidente do Senado um projeto destinado a regulamentar o uso de instrumentos de monitoramento (pulseiras e tornozeleiras) nos presos que estejam em liberdade condicional. 61 Há, no Brasil, tramitando na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei proposto pelo Deputado Federal Félix Mendonça, prevendo que a Carteira de Identidade nacional receba um chip com todos os dados individuais do cidadão, bem como seu mapeamento genético (DNA). Este projeto recebeu o número PL 5.520/05 e atualmente está sob análise na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. O referido Projeto de Lei já foi aprovado pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.

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necessidade de se ter segurança para subjetivar as condutas dos indivíduos,

forçando-os a consentir e permitir investimentos em segurança pública ou privada.

É o mais completo controle sócio-penal e a plena e irrefreável exploração

econômica do medo. Os nichos desse mercado são os mais variados possíveis:

como visto, é possível realizar o capital na privatização dos presídios, no

comércio de utensílios de controles de pessoas, de ambiente (celas móveis –

“conteiners”), de monitoramento, etc. que, pelo avanço tecnológico e pela corrida

contra o denominado crime organizado, foram necessários ao aparelhamento das

polícias (computadores, veículos, armamentos, treinamento de pessoal, câmeras

de vigilância, etc.), chegando, até mesmo, à venda dos órgãos daqueles

condenados à morte. Parecem ser infinitas as hipóteses à reprodução do capital.

Na Inglaterra, por exemplo, há 4,2 milhões de câmeras de circuito de

televisão, aproximadamente uma câmera para cada 14 pessoas, sendo considerado

o pais mais vigiado do mundo. O monitoramento inclui o acompanhamento, por

parte da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, de todo o tráfego de

telecomunicações que passa pela Inglaterra. A reportagem afirma que um relatório

da Rede de Estudos sobre a Vigilância na Inglaterra aponta que a “combinação de

câmeras de CFTV, biometria, bancos de dados e outras tecnologias faz parte de

uma rede muito mais ampla de sistemas inteligentes interligados que permitem

acompanhar detalhadamente o comportamento de milhões de pessoas”. Esta

severa intervenção na vida íntima das pessoas é fruto, segundo a reportagem, da

luta contra o terrorismo62.

Veja-se, somente para esclarecer, que este discurso realmente serve

para legitimar o controle total dos corpos vivos e isto possibilita um controle

estatal, restringindo a liberdade e privilegiando a segurança, entretanto a tendência

não é apenas ficar no âmbito do controle público, mas sim controlar a vida privada

das pessoas, uma vez que é perfeitamente possível coletar dados pessoais a partir

de informações dos cartões de crédito, telefones celulares, sites e outras

informações de utilidade comercial.

No ano de 2004, as empresas de segurança eletrônica movimentaram,

aproximadamente, 900 milhões de reais, entretanto se forem consideradas as

instalações de infra-estrutura, como cabeamento de fibra ótica, esse valor pode

62 A referida reportagem pode ser vista em http://www.guiadocftv.com.br/modules/news/article.php?storyid=23.

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chegar a 4 bilhões de reais. Multinacionais como a alemã Bosch, as americanas

GE e Honeywell e empresas locais como a Comtex disputam o promissor

mercado de instalação de sistemas públicos de vigilância. A multinacional Bosch

equipa cerca de 80% dos aeroportos do País e ainda é responsável pelas câmeras

do sistema de vigilância instalado no centro de Curitiba. Somente para se ter idéia,

as 1.200 câmeras de segurança instaladas em prédios públicos e na orla marítima

da cidade de Praia Grande – litoral de São Paulo –– custaram aos cofres públicos

R$ 6,5 milhões63.

A reportagem informa ainda que a concorrência no setor é muito

grande uma vez que, segundo apontam os especialistas, este é um tipo de

tecnologia que necessita constante atualização, ou seja, independentemente dos

dados efetivos divulgados estarem corretos, é possível perceber que há uma

tendência para que os investimentos em segurança pública ou privada, não só se

perpetuem, mas cresçam. Utiliza-se, neste setor, a obsolescência como forma de

expansão do capital e, através desta, a chamada taxa decrescente de utilização de

bens e serviços socialmente produzidos.

No Rio de Janeiro as 220 câmeras instaladas em 2006, mais a

estrutura de apoio interligando Polícias Militar e Civil, Corpo de Bombeiros e

Defesa Civil, custaram aos cofres públicos R$ 52 milhões. As câmeras foram

instaladas, principalmente em bairros nobres da cidade como Copacabana, Leblon

e Ilha do Governador. Este fato chama a atenção quando é associado a outro fato

ocorrido na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2001, a construção de uma piscina

em um bairro da periferia da capital carioca, isto porque há no Brasil a guerra

contra a mistura entre classes sociais – uma outra espécie de guetificação das

massas urbanas: se por um lado é construída uma área de lazer para evitar que

determinadas classes sociais deixem seus locais de origem e se dirijam às zonas

nobres da cidade, nestas instalam-se o monitoramento eletrônico para coibir,

evitar e separar os indesejados (as classes ditas perigosas). Estas, então, são outras

63 Esta reportagem pode ser capturada no site http://www.link.estadao.com.br/index.cfm?id_conteudo=6206. Outros dados informativos passados pela reportagem merecem destaque: há uma previsão, por exemplo, de que as empresas que fornecem sistemas eletrônicos de vigilância atenderão apenas 5% da demanda existente. Somente para se ter idéia do potencial do setor no Brasil, estima-se que menos de 10% (460 mil) dos prédios em São Paulo são monitorados por sistemas de vigilância com câmeras e alarmes. Da mesma forma, no setor bancário foram investidos no ano de 2005, R$ 400 milhões só em segurança eletrônica. No Rio de Janeiro, no setor de comércio (supermercados, armazéns lojas, etc.) estima-se que tenham sido gastos em segurança eletrônica em 2005 de 2,5% do total faturado.

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243

funções dos instrumentos de vigilância eletrônica e de outros equipamentos, é

dizer: não só monitorar, mas expandir o capital, apartar (ou eliminar) as classes

perigosas, evitando-se o contato com elas (como se fossem portadores de doenças

contagiosas) isto porque serão identificados como perturbadores da ordem pois a

diferença denota a desordem intolerável.

Por fim, cabe ainda uma pequena análise da última função exercida

pelo sistema de controle econômico-penal (acima enumerada pela letra “d”): a

reprodução do capital através do capital destrutivo. Como dito anteriormente

(Capítulo II, itens 2.4.3 e 2.4.4), esta tendência da taxa de utilização decrescente –

incorporada ao sistema produtivo do “capitalismo avançado” através do chamado

consumo destrutivo, especialmente, pelo complexo industrial-militar – exerce uma

função importante no desenvolvimento do capital. Para que a vida útil da

mercadoria seja uma realidade e possibilite a expansão do capital, é preciso que

esta tenha seu tempo de vida limitado, o que é realizado pela sua destruição. É

bom lembrar que para Mészáros, no nível do sistema produtivo capitalista,

consumo e destruição são equivalentes funcionais no processo de realização do

capital, ou seja, se à reprodução do capital é necessário uma demanda efetiva,

também é necessário – e o capital assim o faz – colocar em movimento forças

produtivas e destrutivas.

É exatamente neste sentido – do movimento de forças produtivas e

destrutivas – que as guerras ocupam um lucus privilegiado. Muito embora, hoje,

Mészáros (2002, p. 1002) indique que os desafios internos obrigam o capitalismo

a se confrontar com seus próprios problemas não permitindo que o futuro do seu

desenvolvimento possa agora ser adiado por muito tempo, nem transferido para o

plano militar, o fato é que os gastos militares (complexo industrial militar, como

denomina Mészáros) não param de crescer. Para justificar a necessidade dos

Estados se defenderem e criarem guerras, são utilizadas diversas orientações,

especialmente após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001. É possível

proclamar guerra contra o terrorismo (desde o “totalitarismo” religioso, ao

terrorismo praticado pelos movimentos sociais como o MST, por exemplo), contra

as drogas, contra as destruições ambientais, à implementação da democracia, etc.

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244

Os dados observados pelo relatório anual do SIPRI64 (Stockholm

International Peace Research Institute) mostram que os gastos militares em

diversas partes do mundo estão em franco crescimento e apontam os Estados

Unidos como o maior “investidor”. Do total dos gastos com a indústria bélica no

ano de 2004, os Estados Unidos gastaram 47% dos custos mundiais, ou seja, 455

bilhões de dólares de um total de mais de 1 trilhão de dólares (1,035 trilhão de

dólares). Em 2004, a média global dos gastos militares correspondeu a 162

dólares per capita e 2,6% do produto interno bruto mundial.

O complexo militar-industrial facilita a circulação e expansão do

capital, isto porque há um equivalente funcional à sua disposição do capital, ou

seja, como afirma Mészáros (2002, p. 687), na prática, não havendo distinção

entre consumo e destruição, o capital pode circular com maior velocidade dentro

do próprio círculo do consumo. É o que ele chama de linha de menor resistência

do capital, do ponto de vista do capital. Para Mészáros o complexo militar-

industrial resolve, com sucesso, duas restrições fundamentais: os recursos

limitados da sociedade e a constituição do próprio consumidor.

Assim, se por um lado ele consegue legitimar o desperdício sob o

argumento da necessidade patriótica, por outro, ele remove as restrições

tradicionais do círculo de consumo, definido pelas limitações do apetite dos

consumidores, ou seja, ele reestrutura a produção e o consumo de maneira a torná-

lo desnecessário. Esta é a contribuição que o complexo militar-industrial

proporciona, isto é, assegura a maior expansão em suas operações, permitindo

altos índices de lucratividade em função de que o consumidor (diante da lógica do

capital) passa a ser o próprio Estado, é dizer, as necessidades passam a ter uma

conotação ideológica e a necessidade de intervenção do Estado capitalista passa a

ser fundamental.

Não se trata, pois, de uma remilitarização do mundo na guerra contra

o terrorismo, contra o tráfico ilícito de drogas, contra o mal, ou coisas do gênero,

mas mecanismos de controle social via expansão do capital. O aparelhamento, ou

a militarização dos diversos estados latino americanos corresponde, na verdade,

aos pressupostos de estabilização do capital via acordos de livre comércio na

região, e que apontam para esta necessidade (remilitarização da América Latina)

64 Os dados podem ser observados no site http://www.yearbook2005.sipri.org/ch8/ch8.

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sob o preocupante argumento de que a polarização social, os altos índices de

desemprego, os conflitos sociais e a violência urbana, podem causar insegurança

social capaz de impedir investimentos privados (e conseqüentemente o

“desenvolvimento” da região), justificando a) a implantação de todas as políticas

tradicionais de segurança pública (a “teoria das janelas quebradas”, políticas de

“tolerância zero”, “eficientismo penal” e “penalização da miséria”); b) a

relativização dos Direitos Sociais e dos Direitos Humanos; c) a privatização dos

presídios; d) o aumento dos encarceramentos, e) uma maior criminalização

(seletividade primária e secundária); e) criação de mecanismos que aumentem os

vínculos com o sistema penal e; f) o aumento do controle social via instrumentos,

técnicas e tecnologias de monitoramento.

São estas situações de exploração econômica do medo que

proporcionam a busca e o encontro dos espaços necessários à expansão do capital.

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6 Considerações Finais EM BUSCA DO CONTROLE TOTAL DOS CORPOS: LIMPEZA, ANIQUILAMENTO E EXCLUSÃO À ACUMULAÇÃO CAPITALISTA EM TEMPOS CONTEMPORÂNEOS

Considerando os objetivos e hipóteses levantadas na introdução da

presente pesquisa, procurou-se responder algumas importantes indagações, mas

prioritariamente sobre a tendência contemporânea de uma possível relação entre a

lógica do sistema econômico neoliberal – as chamadas economias de mercado –,

as contradições das políticas de segurança pública e o aparecimento de novas

formas de controle da população, com vistas à reprodução e acumulação do

capital. Esta tendência acontece, notadamente, pela profunda e preocupante

polarização econômica da sociedade, mas também pela implementação de

políticas públicas atentatórias aos direitos humanos, especialmente contra as

camadas sociais mais vulneráveis.

Substancialmente o trabalho procurou investigar quais os interesses na

exploração e divulgação da violência (por exemplo, as guerras internacionais, o

combate ao tráfico ilícito de entorpecentes), à consecução das finalidades

resultantes da lógica de mercado em detrimento aos direitos e garantias

fundamentais. Partiu-se, portanto, de alguns pressupostos levantados nos dois

primeiros capítulos.

Ao analisar o liberalismo econômico no contexto da democracia e da

globalização, pode-se perceber que a sociedade capitalista está marcada pelo

confronto e pela violência, não tanto por aquela violência prodigalizada pelos

estéricos meios de comunicação, que apenas proporciona o aumento da sensação

de insegurança, mas marcada por uma violência estrutural (econômica e social) e

institucional (especialmente utilizando-se do aparato policial para selecionar os

indivíduos, criminalizando muitos e imunizando alguns), que barbariza e ataca,

num constante procedimento de combate à dita criminalidade.

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249

As conseqüências políticas dos processos de globalização conduziram

à atual “crise de identidade” da civilização, no sentido que Bauman (2000, p. 12)

empresta a expressão. Para ele as instituições políticas sucumbiram ante a força e

a imposição ao conformismo realizado pelo liberalismo, isto porque somente são

colocados poucos caminhos a percorrer, como se não existisse outra “opção entre

ditadura do mercado e a do governo sobre as nossas necessidades, como se não

houvesse lugar para a cidadania fora do consumismo”.

Neste sentido é que foi discutida a questão da liberdade e suas

implicações na contemporaneidade, especialmente neste contexto de intensa

exclusão social e de políticas de segurança pública calcadas na intolerância e no

discurso autoritário da “lei e da ordem”, demonstrando que as pretensões

modernas de igualdade e liberdade não foram alcançadas. É a partir desse ponto

que começa a ser discutida e questionada a liberdade de cada indivíduo, isto

porque cada um passa a sentir-se livre no momento em que o sentimento de

igualdade também perpassa a todos, ainda que estejamos tratando de uma

igualdade formal.

Os vínculos estabelecidos entre liberdade e desejo – “eu posso

desejar” – enfeixam uma relação de esgotamento, no sentimento individual e

coletivo, que permite ao sujeito estabelecer as pontes necessárias às suas

realizações – “se posso desejar, sou livre”. Entretanto, estes mesmos desejos, cujo

referencial se transfere ao símbolo da liberdade – “não serei reprimido, pois se

desejar é possível não perverto a ordem pública” – são intensamente reproduzidos

por diversos mecanismos sociais. Ocorre “que o aumento da liberdade individual

pode coincidir com o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes

da vida pública e privada são destruídas” (Bauman, 2000, p. 10).

Pavimenta-se o caminho à utilização da violência como mecanismo de

estabilização política e social, tendo como conseqüências as constantes agressões

aos direitos fundamentais, isto porque a crise de identidade representada pelo

sentimento de insegurança1 impede a utilização de instrumentos coletivos de

resolução dos conflitos sociais, a qual pode ser representada pelos inúmeros atos

de violência (público e privado), pela destruição ambiental, pela exploração em

vasta escala, etc. Interessante perceber que o campo da insegurança é o único

1 Bauman (2000, p. 13), refere-se a “Unsicherheit”, como o termo alemão que melhor traduz esse sentimento de insegurança, muito embora possa também significar incerteza e falta de garantia.

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passível de alterações, exigindo-se ações coletivas, contudo “a maioria das

medidas empreendidas sob a bandeira da segurança são divisórias, semeiam a

desconfiança mútua, separam as pessoas, dispondo-as a farejar inimigos e

conspiradores por trás de toda discordância e divergência, tornando por fim ainda

mais solitários os que se isolam (Bauman, 2000, 13).

Foi percebido, principalmente focando a literatura de Hannah Arendt,

de que forma a busca pela autoridade política guarda íntima relação com todo o

problema levantado na pesquisa: ‘curiosamente’ o sentimento de liberdade

permite que se deseje aquilo que for suficiente para atingir a plenitude da

Unsicherheit, ou seja, a busca da autoridade é feita pela profusão da violência e do

medo, como instrumentos necessários à realização dos pressupostos do

capitalismo liberal. A mínima intervenção estatal na regulação econômica permite

a plena liberdade do mercado para controlar e administrar as atividades

econômicas, o que é necessário para controlar as massas, isto porque para garantir

a ordem – segurança, garantia e certeza – o Estado fica legitimado a utilizar-se da

violência (ainda que com isso perca poder, no sentido arendtiano) – tanto

estrutural como institucional.

É necessário que o indivíduo possua o “sentimento de pertencimento”

e evite a criação dos desejos, deixando que apenas deseje o que for permitido ao

cumprimento dos objetivos estruturais da sociedade liberal, de capitalismo

globalizado (de mercado, sem intervenção estatal), em que a produção das

subjetividades condicionará os desejos de consumo. Por certo, esta é a razão para

se falar em crise de identidade ou, como diz Bauman, no mal-estar da pós-

modernidade, pois a destruição da instância política ocorre justamente em função

da supressão da liberdade. Este é o sentido da liberdade no contexto da estrutura

social capitalista.

Impondo-se como a única “alternativa” possível e produzindo um

sentimento de terem triunfado seus pressupostos políticos (democracia liberal) e

econômicos (capitalismo globalizado), o capital e sua acumulação se

desenvolvem, de forma insidiosa, através de intensos processos de subjetivação,

na produção e satisfação dos desejos, marcados pelo princípio de mercado que

impõe o padrão de consumo, bem como determina quem são os incluídos e

excluídos. A conseqüência é a determinação do mercado como centro de produção

normativa e de decisão política.

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251

Identificadas as constantes tensões sociais, provocadas pelas

profundas contradições estruturais e endêmicas ao modo de produção capitalista e

sua relação com os processos de subjetivação, é fundamental compreender que

estas contradições revelaram a dificuldade da reprodução do capital e a

necessidade de se achar novos espaços próprios a esta finalidade. Na onda da

liberdade, o capital também buscou livrar-se das amarras impostas pelas barreiras

da soberania dos Estados-nação, e a “mundialização do capital2” ocupou a

centralidade dessa operação. Entretanto, os resultados da financeirização do

capital e o ressurgimento de formas agressivas e brutais de aumento da

produtividade do capital, baseado na combinação de apropriação da mais-valia

absoluta e relativa, tiveram como resultado um ‘espetacular’ aumento do

desemprego (Chesnais, 1996, p. 16-17).

Dois problemas foram revelados: primeiro, o dito aumento das taxas

de desemprego, o que representará menos pessoas consumindo e,

simultaneamente, o aumento dos excluídos; segundo, como conseqüência do

primeiro, e diante da transição e tendência da produção, notadamente do modelo

fordista ao atual momento de flexibilização da produção permite concluir que a

condição do novo proletariado e as dinâmicas das relações de produção estão a

influenciar o novo encarceramento, mas, atente-se, não mais para disciplinamento

dos corpos, mas para o controle das classes excluídas e à reprodução do capital.

a) Para o controle social surge a estatização do biológico, “o que se

poderia denominar a assunção da vida pelo poder” (Foucault, 1999, p. 286)

tornando-se possível o acesso à vida das pessoas. É a politização do poder de

controlar a vida, pois as necessidades agora não são corpos dóceis e treinados,

mas o total controle da vida. Com o deslocamento da soberania do Estado para o

mercado, a condição de consumidor imposta por este, representa a exposição da

vida à violência, pois impõe ao sujeito, sob a identificação perniciosa da

liberdade, condições inatingíveis, permitindo que os não consumidores (ou

“consumidores falhos”, no dizer de Bauman) ou os trabalhadores que não

conseguem vender sua força de trabalho tenham tratamento “diferenciado”:

exclusão social e abandono. 2 Chesnais (1996, p. 17) diz: “a Expressão ‘mundialização do capital’ é a que corresponde mais exatamente à substância do termo inglês ‘globalização’, que traduz a capacidade estratégica de todo grande grupo oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais atividades de serviços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta ‘globais’”.

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252

b) Para a acumulação do capital o caminho é um pouco mais velado.

Como se viu, a exclusão pelo mercado se dá pela adoção de políticas públicas de

viés neoliberal, as quais diminuem o tamanho do Estado, não permitindo que se

tenha espaço para todos. Aqueles que ficam “de fora” têm o tratamento

diferenciado: indiferença, exclusão e controle total. De forma semelhante ocorre

com o trabalhador que não consegue mais vender sua força de trabalho. Em ambas

as situações, a exclusão (pelo mercado ou pelo sistema de produção econômico)

não é realizada legalmente, mas pela biopolítica. Qual ou quais os caminhos que

devem ser percorridos à acumulação do capital utilizando-se o ‘lixo desprezado’?

Na busca por novos espaços à reprodução do capital, Harvey apontou

para as privatizações. Mészaros para o capital destrutivo e para as taxas

decrescentes de utilização. Bauman para a utilização dos excluídos. Orientando-

nos pela leitura da criminologia crítica, Baratta apontou para a contenção das

massas de insatisfeitos pela exploração do trabalho precário, pela ausência de

proteção social do Estado e excluídos do mercado de trabalho, a utilização do

sistema de controle social, do tipo penal, justamente para manter a ordem e as

condições da precarização das relações sociais.

Isto ocorre, pois a busca pela segurança não é uma necessidade, mas

tão somente um elemento à realização do capital e a adoção de políticas de

segurança pública neoliberais, como as políticas de “tolerância zero” e o

movimento de “lei e ordem”, cumprem esse papel e contribuem ao

encarceramento em massa, seguindo uma lição norte-americana, que está sendo

aplicada também em diversos países da Europa e da América Latina, inclusive no

Brasil. Assim é que a exploração da indústria do crime entra em cena. Através dos

mais diversos mecanismos de controle como as câmeras de vídeo, a privatização

dos presídios, a informatização do controle prisional, a aquisição de veículos –

motos, carros, caminhões, helicópteros, aviões – armamentos, suprimentos,

investimento tecnológico, treinamento e contratação de pessoal, etc., há um

enorme investimento público e privado no setor e, conseqüentemente, a

possibilidade da reprodução do capital.

Veja-se aqui, contudo, a confirmação da hipótese apresentada: num

primeiro momento, o sistema penal, através da criminalização das condutas, do

aumento do aparato repressivo e das inúmeras hipóteses de controle penal fora do

sistema carcerário (probation, parole, suspensão condicional do processo,

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transação penal, etc.), exerce o controle e a exclusão dos excedentes, dos

consumidores falhos e daqueles que não fazem diferença à produção econômica e,

num segundo momento, alimenta o sistema fornecendo matéria prima abundante

ao grande negócio envolvendo a segurança pública e, diretamente, sua

privatização.

As atitudes políticas ao adotarem medidas penalizadoras cada vez

mais rigorosas, tanto nos Estados Unidos como em países da América Latina ou

Europa, apenas refletem o sentimento social de insegurança reinante, que clama

por ações repressoras cada vez mais intensas (aumento das penas, pena de morte,

tipificação de condutas3, recrudescimento do regime prisional de cumprimento de

penas privativas de liberdade, etc.). Exatamente nesta perspectiva, que programas

de políticas de segurança pública, como o ‘tolerância zero’, são sacralizados como

suficientes à resolução dos conflitos sociais4.

Basta dizer, somente a título de exemplo, que nos Estados Unidos, a

adoção das políticas de segurança, fundadas no discurso de Lei e Ordem, resultou

num aumento significativo na quantidade de pessoas submetidas ao sistema penal,

sendo considerado o responsável pela diminuição dos índices de criminalidade na

cidade de Nova York, entretanto, não é dito nem divulgado, que cidades como

Boston e Chicago já haviam registrado a diminuição das taxas de criminalidade

três anos antes da implementação das referidas políticas de tolerância zero

(Wacquant, 2001, p. 28). 3 No momento da realização dessas considerações finais da presente pesquisa, recebi o Boletim Informativo do Congresso Nacional, noticiando que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) estará votando, nos próximos dias, projeto de lei que estabelece um aumento de pena para crimes contra a honra praticados pela Internet. O projeto (PLS 398/07) é do Senador Expedito Júnior (PR-RO). Ressalte-se, por oportuno, que o número de projetos de lei que são criados, tipificando novas condutas, aumentando penas de crimes já existentes, ou ainda aumentando o rigor no cumprimento das penas é, de forma impressionante, muito grande, como, por exemplo, o ‘pacote antiviolência’, aprovado pelo Senado Federal, no dia 31 de agosto de 2007. O projeto é da autoria dos Senadores Magno Malta (PR-ES) e Aloizio Mercadante (PT-SP). No referido ‘pacote’, destaca-se a introdução do monitoramento eletrônico por meio de pulseiras ou tornozeleiras, a fim de realizar o rastreamento de presos que estão em liberdade condicional, regime semi-aberto ou saída temporária das penitenciárias, além de presos de alta periculosidade que ainda cumprem regime fechado. A idéia central (declarada) é que a utilização destes mecanismos para ‘evitar a superlotação’ do sistema penitenciário nacional. Caberá aos Estados a definição se os presos utilizarão tornozeleiras ou pulseiras. 4 Somente para lembrar, no terceiro capítulo da presente tese, trouxemos dados estatísticos importantes levantados por Loïc Wacquant. Naquele momento indicamos que Wacquant (2001, p. 28), demonstra que Nova York, cidade símbolo mundial da segurança pública, fruto da divulgação das políticas de “tolerância zero”, registrou um aumento dos gastos destinados à manutenção da ordem, no orçamento para a polícia em 40%, ou seja, quatro vezes mais que as verbas destinadas aos serviços públicos de saúde, no momento em que cortou 30% nos gastos com os serviços sociais da cidade, resultando em uma perda de 8.000 postos de trabalho.

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Como se viu, principalmente no quarto capítulo, os dados revelam,

empiricamente, o que a criminologia crítica já havia levantado, é dizer, o aumento

da população submetida ao sistema penal (cárcere e outras medidas ‘extramuros’5,

como as liberdades vigiadas, sursis processual, etc.) não representa, ou não

significa, diretamente que haja um aumento da criminalidade, mas sim, a adoção

de tais políticas pelo poder de polícia do Estado, notadamente contra determinadas

camadas da população, coincidentemente contra os mais vulneráveis (pobres,

imigrantes, negros, minorias, “não consumidores”, etc.), aponta e identifica a cifra

oculta da criminalidade, fornecendo ao mesmo tempo a matéria prima necessária à

reprodução do capital.

O resultado dessa perversa relação pode ser assustador. Vejamos por

que: nos Estados Unidos a população carcerária aumentou em 20 anos (de 1970 a

1991) quatro vezes – de 200 mil detentos para 895 mil. Hoje, o equivalente a

2,5% da população dos Estados Unidos está submetida a alguma situação de

controle penal. No Brasil a situação não é muito diferente, isto porque, conforme a

pesquisa realizada por Sandro Cabral (2005, p.123), o crescimento da população

carcerária está acima dos patamares do crescimento vegetativo da população e os

dados apresentados pelos censos penitenciários revelaram que em 1994 havia o

equivalente a 84 presos por 100.000 habitantes e em 2006 o equivalente a 199

presos por 100.000 habitantes.

Estes índices são alcançados pela implementação ‘justificada’ de

políticas penais cada vez mais rígidas, pela indiferenciação (ou relativização) dos

Direitos Humanos, pela seletividade primária e secundária, pelo aumento dos

vínculos com o sistema penal, enfim, por diversos instrumentos que visam não só

o controle social (através de técnicas e tecnologias de monitoramento), mas, sem

dúvida, à exploração econômica do medo ao encontro de espaços à expansão e

acumulação do capital.

A relação perversa e assustadora acima referida confirma, entretanto,

uma das hipóteses da presente pesquisa, isto porque ao ser constatado o

crescimento exponencial das empresas de segurança (desde empresas

especializadas em privatizações de presídios, como de segurança privada), bem 5 Nos EUA o número de pessoas submetidas ao regime de controle penal, fora das prisões, é significativamente maior que o número de presos efetivos. Ver item “4.5.2. A privatização das prisões: um nicho de mercado e a retirada da “sujeira” pelo controle social”, no Capítulo IV, da presente tese.

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como da população submetida a algum sistema de controle, isto representa a

tendência da possibilidade ao surgimento de novos lugares à expansão do capital.

No Brasil, por exemplo, em apenas três anos, houve um crescimento de 44,92%

dessas empresas (legalizadas).

No mesmo sentido, a prisão e outros mecanismos de controle,

apontam elementos que favorecem legalmente (o que dá uma face de legitimidade

ao sistema) a criação de instrumentos de agenciamento de uma potencial clientela

e até mesmo à possibilidade da legalização do trabalho escravo. Com tudo isso

verifica-se, pois, um significativo mercado de reprodução do capital, ou seja, a

atuação do sistema penal é exercida na prisão e fora dela, sendo aqui,

possivelmente, um lugar igual ou mais atrativo que a privatização das prisões.

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