glimmerglass o encontro de dois mundos

6
Glimmerglass – O encontro de dois mundos Jenna Black –Universo dos Livros CAPÍTULO 1 Minhas palmas suavam e meu coração estava preso na garganta enquanto o avião aterrissava em Londres. Mal podia acreditar que estava fazendo aquilo, que tive a coragem de fugir de casa. Enxuguei as mãos nos jeans e me perguntei se mamãe já havia descoberto. Ela estava dormindo, curando uma ressaca, quando saí de casa e, por vezes, ela dormia vinte e quatro horas seguidas em situações como aquela. Eu queria ser uma mosca na parede quando ela encontrasse o bilhete que deixei. Talvez o fato de me perder finalmente a sacudisse a ponto de parar de beber. Mas eu não prendia o fôlego esperando. Não tive problemas para localizar meu pai. Mamãe nunca sonhou em me contar seu nome estando sóbria e ele não constava na minha certidão de nascimento, mas tudo o que precisei foi fazer algumas perguntas investigatórias quando ela estava embriagada e contente para descobrir que o nome dele era Seamus Stuart. Os feéricos, ela confidenciou, não usavam sobrenomes em Faerie, mas aqueles que moravam em Avalon os adotaram, pelo bem da população humana. De modo geral, Avalon era minúscula, com uma população com menos de 10 mil habitantes, por isso, quando chequei a lista telefônica pela Internet, não tive problemas para localizar meu pai; ele era o único Seamus Stuart listado. E quando liguei para perguntar se ele conhecia alguém com o nome da minha mãe, ele prontamente admitiu ter tido uma namorada com aquele nome no passado, e eu logo concluí ter encontrado o cara certo. Antes de a primeira conversa terminar, ele já havia me convidado para visitá-lo em Avalon. Até mesmo me ofereceu uma passagem de primeira classe para Londres. Sem nunca pedir para falar com minha mãe, nem mesmo perguntar se eu tinha permissão para ir visitá-lo. Fiquei surpresa com isso, a princípio, mas logo concluí que ela esteve certa ao pensar que se ele tivesse sabido de mim, teria me levado para Avalon sem pestanejar. Não olhe os dentes do cavalo dado, procurei me lembrar. O avião tocou na pista com um baque. Respirei fundo para me acalmar. Ainda levaria horas para que eu me encontrasse com meu pai. Sendo nativo de Faerie, ele não podia pôr os pés no mundo mortal. (Caso quisesse me raptar, precisaria de cúmplices mortais para ajudá-lo.) A magia singular de Avalon era a de que a cidade

Upload: alexandrina-oliveira

Post on 10-Jul-2015

1.748 views

Category:

Education


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: Glimmerglass   o encontro de dois mundos

Glimmerglass – O encontro de dois mundos

Jenna Black –Universo dos Livros

CAPÍTULO 1

Minhas palmas suavam e meu coração estava preso na

garganta enquanto o avião aterrissava em Londres. Mal podia

acreditar que estava fazendo aquilo, que tive a coragem de fugir

de casa. Enxuguei as mãos nos jeans e me perguntei se mamãe já

havia descoberto. Ela estava dormindo, curando uma ressaca,

quando saí de casa e, por vezes, ela dormia vinte e quatro horas

seguidas em situações como aquela. Eu queria ser uma mosca

na parede quando ela encontrasse o bilhete que deixei. Talvez o

fato de me perder finalmente a sacudisse a ponto de parar de beber. Mas eu não prendia o fôlego

esperando.

Não tive problemas para localizar meu pai. Mamãe nunca sonhou em me contar seu nome estando

sóbria e ele não constava na minha certidão de nascimento, mas tudo o que precisei foi fazer

algumas perguntas investigatórias quando ela estava embriagada e contente para descobrir que o

nome dele era Seamus Stuart. Os feéricos, ela confidenciou, não usavam sobrenomes em Faerie,

mas aqueles que moravam em Avalon os adotaram, pelo bem da população humana.

De modo geral, Avalon era minúscula, com uma população com menos de 10 mil habitantes, por

isso, quando chequei a lista telefônica pela Internet, não tive problemas para localizar meu pai; ele

era o único Seamus Stuart listado. E quando liguei para perguntar se ele conhecia alguém com o

nome da minha mãe, ele prontamente admitiu ter tido uma namorada com aquele nome no

passado, e eu logo concluí ter encontrado o cara certo.

Antes de a primeira conversa terminar, ele já havia me convidado para visitá-lo em Avalon. Até

mesmo me ofereceu uma passagem de primeira classe para Londres. Sem nunca pedir para falar

com minha mãe, nem mesmo perguntar se eu tinha permissão para ir visitá-lo. Fiquei surpresa

com isso, a princípio, mas logo concluí que ela esteve certa ao pensar que se ele tivesse sabido de

mim, teria me levado para Avalon sem pestanejar.

Não olhe os dentes do cavalo dado, procurei me lembrar. O avião tocou na pista com um baque.

Respirei fundo para me acalmar. Ainda levaria horas para que eu me encontrasse com meu pai.

Sendo nativo de Faerie, ele não podia pôr os pés no mundo mortal. (Caso quisesse me raptar,

precisaria de cúmplices mortais para ajudá-lo.) A magia singular de Avalon era a de que a cidade

Page 2: Glimmerglass   o encontro de dois mundos

existia tanto em Faerie como no mundo mortal – era o único local em que os dois planos de

existência se sobrepunham. Quando meu pai ficava no limite da cidade e olhava para fora, tudo o

que ele via era Faerie e, se ele cruzasse a fronteira, nós do mundo mortal não conseguiríamos mais

vê-lo. Ele providenciou para que um amigo mortal me recebesse no aeroporto de Londres e me

levasse para Avalon. Só quando eu passasse pela imigração de Avalon, eu poderia me encontrar

com ele.

Passei pela imigração e alfândega de Londres meio que entorpecida. Estive excitada e nervosa

demais para dormir no avião, e isso agora começava a me afetar. Segui a multidão e comecei a

perscrutar a vastidão de placas à procura do meu nome. Não encontrei. Olhei de novo,

examinando cada placa com cuidado, só para me certificar de que meu nome não tivesse sido

escrito errado e, por isso, eu não o tivesse notado. Mordi o lábio e consultei o relógio, já ajustado

para o horário local. Eram 8h23 da manhã, e da última vez em que conversei com meu pai, ele

calculou que, se o avião chegasse no horário, eu seria liberada pela imigração por volta das 8h15. O

amigo dele já deveria ter chegado. Respirei fundo mais algumas vezes, procurando manter a

calma. Ele só estava oito minutos atrasado. Não valia a pena entrar em pânico. Encontrei uma

confortável cadeira perto das portas, com meu olhar seguindo todas as direções à procura de

alguém que se apressasse pelo terminal. Vi várias pessoas assim, mas nenhuma carregava uma

placa com meu nome.

Quando, às 8h45, o meu motorista ainda não havia dado as caras, resolvi que poderia começar a

sentir um pouquinho de pânico. Abri o celular, resolvendo ligar para o meu pai, só para descobrir

que eu não tinha sinal. Com certo atraso, me perguntei se os celulares americanos funcionavam em

Londres. Engoli mais uma pontada de nervoso. Papai me enviara um adorável presente pelo nosso

encontro, um camafeu branco-rosado, e eu me vi tocando nele ansiosamente. Passei boa parte de

minha vida entrando e saindo de aeroportos, e, se o voo fosse longo o bastante, mamãe estaria

largada na hora da aterrissagem. Mesmo aos oito anos, eu era capaz de guiá-la pelo aeroporto,

encontrar nossa bagagem e conseguir um táxi que nos levasse ao nosso destino. Tudo bem, o lugar

mais exótico em que estivemos foi o Canadá, mas caramba, aquilo era a Inglaterra, não a Índia.

Tentando me convencer de que não precisava me preocupar, encontrei uma fileira de telefones

públicos. Já que minha mãe era incapaz de controlar as contas e as compras, eu tinha meu próprio

cartão de crédito, que logo usei para fazer a ligação à longa distância para Avalon. Deixei o

telefone tocar umas dez vezes, mas ninguém respondeu. Desliguei e mordi o lábio.

Eu já estava nervosa o bastante, quanto a toda esta aventura. Agora eu estava abandonada no

aeroporto de Heathrow e meu pai não atendia ao telefone. Acrescente a isso um caso severo de

fadiga de voo, e tudo o que eu queria fazer era me enroscar numa cama quentinha e macia e

dormir. Sufoquei um bocejo. Se eu começasse, não haveria como parar.

Page 3: Glimmerglass   o encontro de dois mundos

Às 9h15 tive de admitir que as chances de o amigo do meu pai aparecer eram ínfimas. Meu pai não

devia estar atendendo ao telefone porque estava me esperando na fronteira de Avalon, conforme

prometido. Tudo bem, só o que eu precisava fazer era pegar um táxi que me levasse até a fronteira.

Seria uma viagem de quarenta quilômetros para fora de Londres. Nada demais, certo? Troquei um

pouco de dinheiro, depois entrei num daqueles enormes táxis pretos ingleses. Achei estranho ver o

motorista do lado errado, e ainda mais esquisito quando ele começou a dirigir do outro lado da

pista.

O taxista dirigia como um maníaco e falou o tempo inteiro até o Portão Sul de Avalon. Não

distingui seu sotaque, mas só compreendi um terço do que ele disse. A sorte foi que ele não

pareceu precisar de respostas, aparte um sorriso e um aceno ocasional. Só espero que ele não tenha

notado que me retraí todas as vezes em que ele esteve prestes a atropelar alguém.

Como todas as outras pessoas do Universo, vi diversas fotos de Avalon. Havia milhares delas nos

guias de turismo dedicados à cidade (eu tinha dois em minha bagagem), e praticamente todos os

filmes de fantasia tinham uma ou duas cenas rodadas em Avalon, já que era o único lugar do

mundo mortal em que a magia, de fato, funcionava. Porém, ver Avalon pessoalmente me lembrou

a experiência de ver o Grand Canyon pela primeira vez: nenhuma fotografia no mundo lhe fazia

justiça. Avalon se situava numa montanha. Sim, uma montanha de verdade. Aquela coisa

apontava para o céu no meio de uma planície verdejante cheia de ovelhas, dando a impressão de

que alguém pegara um pedaço dos Alpes e o deixara cair num lugar a que não pertencia.

Casas, lojas e prédios comerciais foram construídos em cada metro quadrado dos declives, e uma

única estrada pavimentada circundava a montanha desde a base até o castelo fincado no topo.

Havia outras estradinhas de pedra que partiam dessa principal, mas essa era a única larga o

bastante para o tráfego de carros.

A base da montanha era completamente circundada por um fosso escuro de água espessa, também

circundado por uma alta cerca elétrica. Só havia quatro entradas para a cidade, uma para cada

ponto cardeal. Meu pai deveria me encontrar no

Portão Sul. O motorista me deixou na portaria, uma construção de três andares do tamanho de um

quarteirão, e eu senti uma pontada renovada de apreensão quando ele se afastou. A entrada de

carros era permitida em Avalon, mas o motorista precisaria ter um visto para poder entrar. De

mochila nas costas, arrastei a mala por um labirinto, seguindo as placas para os visitantes. Claro

que a fila para os residentes era muito menor. Quando cheguei ao início da fila, praticamente

dormia em pé, apesar da ansiedade. Havia um pequeno estacionamento logo depois do ponto de

inspeção e, tal qual no aeroporto, vi pessoas paradas com placas. Contudo, enquanto esperava que

o guarda da alfândega carimbasse meu passaporte, não vi meu nome em nenhuma delas.

Page 4: Glimmerglass   o encontro de dois mundos

– Um minuto, senhorita – o guarda disse, depois de ter examinado meu passaporte, por, pelo que

pareceu, dez anos. Fiquei confusa quando o vi abandonar o posto, levando meu passaporte. Senti a

garganta secar quando o vi falar com uma mulher alta e imponente, vestindo um uniforme azul-

marinho... e com uma pistola e algemas no cinto. Ela ficou ainda mais seca quando o guarda

apontou na minha direção e ela olhou para mim.

Óbvio que em seguida ela se aproximou. Vi que o guarda entregara meu passaporte para ela.

Aquilo não parecia nada bom.

– Por favor, me acompanhe, Srta... – Ela abriu o passaporte para verificar. – Hathaway. – Ela tinha

um sotaque estranho, meio britânico, mas não exatamente. Nesse meio tempo, o guarda acenou

para o próximo da fila. Tive de me aproximar da mulher para não ser atropelada pela família de

cinco pessoas que me empurrava por trás.

– Algum problema? – perguntei; embora tentasse passar tranquilidade, acho que minha voz saiu

trêmula. Ela sorriu, apesar de a expressão não atingir os olhos. Ela também esticou a mão para me

puxar pelo braço, guiandome até uma porta que levava para o interior do edifício. Tentei pegar a

alça da mala, mas um homem chegou antes de mim, colocando uma tarja laranja fosforescente e

levando a para trás da mesa do guarda. Fiquei me perguntando se era o caso de fazer uma cena,

mas concluí que isso só pioraria minha situação.

– Não tenha medo – a mulher disse, rebocando-me até a porta. Bem, ela não me rebocava de fato. O

toque dela era bem leve, era como se estivesse somente me guiando. Mas tive a nítida impressão de

que se eu diminuísse o passo, ela não estaria mais me guiando. – Temos um procedimento padrão

de entrevistar determinado número de visitantes. – O sorriso se alargou quando ela passou um

cartão pela porta.

– Hoje só é seu dia de sorte. Eu estava mais do que cansada e nervosa, e meus olhos começaram a

arder com o indício de lágrimas. Mordi o interior da bochecha para contê-las. Se aquilo era apenas

uma seleção aleatória, por que o guarda examinou meu passaporte por tanto tempo? E por que

meu pai não me contou sobre essa possibilidade? Eu, por certo, não li nada a respeito nos meus

guias de viagem.

Fui conduzida a um escritório cinzento estéril que se assemelhava aos restos de um dormitório de

faculdade com cheiro estranho como o de lã molhada. A mulher imponente apontou para uma

cadeira de metal dobrável, em seguida, se acomodou numa poltrona com rodinhas muito mais

confortável do outro lado da escrivaninha. E sorriu de novo.

– Meu nome é Grace – ela disse. Fiquei sem saber se era seu nome ou sobrenome. – Sou

comandante da patrulha de fronteira e preciso lhe fazer algumas perguntas sobre sua visita a

Avalon; depois disso pode seguir seu caminho. Eu engoli antes de responder:

Page 5: Glimmerglass   o encontro de dois mundos

– Está bem. – Como se eu tivesse escolha.

Grace se inclinou e pegou um caderno espiralado de uma das gavetas, depois posicionou uma

caneta de prata toda gravada. Imagino que os feéricos não sejam fãs das Bics.

– Qual o propósito de sua visita a Avalon? – ela perguntou.

Puxa, tendo dezesseis anos, não podia ser viagem de negócios, não?

– Vim para visitar minha família.

Ela escreveu, depois olhou para mim por sobre o topo do caderno.

– Não é jovem demais para viajar desacompanhada?

Eu me endireitei na cadeira. Sim, eu tinha dezesseis anos, mas não era tão jovem assim. Eu tinha

idade para conciliar as contas do banco, pagar contas, e dirigir pela minha mãe quando ela estava

embriagada demais para ficar atrás do volante.

Os olhos de Grace se iluminaram de diversão quando eu me mostrei indignada, por isso procurei

abafar minha reação antes de falar.

– Era para alguém ter ido até o aeroporto me encontrar – disse, apesar de isso não ser a resposta

para a pergunta dela.

– Ninguém apareceu, por isso peguei um táxi. Meu pai devia estar me esperando na alfândega.

Grace assentiu e escreveu um pouco mais.

– Qual o nome do seu pai?

– Seamus Stuart.

– Endereço?

– Hum... Ashley Lane, 25. – Fiquei feliz por ter perguntado o endereço antes de viajar. Nem sabia

que precisaria dele.

– Ele estava no estacionamento? Pode pedir para ele vir até aqui se preferir.

– Hum, na verdade, nunca o vi, por isso não sei se ele está lá ou não. – Só esperava não estar

corando. Não sei por que eu considerava o fato de nunca ter visto meu pai vergonhoso, mas era

isso que eu sentia.

Page 6: Glimmerglass   o encontro de dois mundos

Ela escreveu mais e, eu me perguntei como ela conseguia escrever tanto. Eu não estava exatamente

contando a história da minha vida. E por que a patrulha de fronteira precisava desse tipo de

informação? Tive de responder a maioria dessas perguntas ao solicitar o visto.

– Vou receber minha bagagem de volta? – perguntei, nervosa demais para ficar quieta só

esperando.

– Claro, querida – respondeu ela, com mais um daqueles sorrisos falsos.

Foi nessa hora que a porta se abriu. O homem que levara minha mala colocou a cabeça para dentro

e esperou que Grace o notasse. Ela olhou para ele com uma sobrancelha arqueada.

– Foi confirmado – ele disse.

Pela primeira vez o sorriso de Grace pareceu genuíno.

– O que foi confirmado? – perguntei; o sorriso genuíno,

por algum motivo, me enervando mais que o falso.

– Ora, querida, a sua identidade. Parece que você é mesmo filha de Seamus Stuart.

Meu queixo caiu.

– Como confirmaram isso?

– Permita que eu me apresente adequadamente – ela disse em vez de responder. – Meu nome

completo é Grace Stuart.

– O sorriso dela se tornou verdadeiramente endiabrado.

– Mas pode me chamar tia Grace.