giumbelli - os azande e os outros, nos

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Os Azande e os outros: nós, por exemplo Emerson Giumbelli (versão provisória)* (IFSC/UFRJ) A bruxaria é uma noção tão estranha para nós que se torna muito difícil apreciarmos as convicções azande sobre sua realidade. Mas não podemos esquecer que tampouco é fácil para os Azande entenderem nossa ignorância e nossa descrença sobre o assunto. Certa vez, ouvi um deles dizer de nós: ‘Talvez lá na terra deles as pessoas não sejam assassinadas por bruxos, mas aqui elas são’” (Evans-Pritchard 1976: 492). Bruxaria, Magia e Oráculos entre os Azande está seguramente entre as mais fascinantes etnografias já escritas por um antropólogo. Publicado em 1937, o livro não teve na época o impacto de outra obra de Evans- Pritchard, Os Nuer, que saiu três anos depois. Só após a II Guerra, sobretudo na década de 1960, é que a etnografia sobre esse povo do então Sudão anglo-egípcio, enfocando situações que envolvem cupins e barracões caindo na cabeça de pessoas e divinações que consistem em administrar veneno a galinhas, se tornou uma referência para discussões que abordavam o papel social da bruxaria em sociedades africanas, mas também o tópico mais geral da racionalidade e dos modos de pensamento. Em 1976, aparece uma versão condensada, preparada por Eva Gillies, bastante próxima à original. É dessa versão a tradução para o português, que ganhou recentemente nova edição. Por estar disponível em português, trechos do livro são usados em disciplinas de antropologia oferecidas em nível de graduação. Afinal, a imagem de um povo africano que acredita em bruxos, e que dispõe de um curioso aparato para lidar com eles (oráculos, adivinhos e magos, ervas e medicamentos), parece bem se adequar ao que se espera da antropologia. Especialmente da antropologia clássica e de seu encontro reiterado com a alteridade. Eis então um povo que parece canibalizar o pensamento. É verdade que o próprio autor está empenhado em mostrar que esses azande, com seus bruxos e oráculos, são tão lógicos quanto nós. Além disso, é possível fazer conexões com o paradigma estrutural- funcionalista, dominante à época na antropologia britânica, de modo que a estranheza do pensamento fique domesticada pelas constantes da sociedade. Mesmo assim, em algum plano, preserva-se a distância entre “nós” e “eles” – e os Azande figuram como ilustração de um modo de

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Giumbelli - Os Azande e Os Outros, Nos

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Os Azande e os outros: ns, por exemplo

Emerson Giumbelli

(verso provisria)*

(IFSC/UFRJ)

A bruxaria uma noo to estranha para ns que se torna muito difcil apreciarmos as convices azande sobre sua realidade. Mas no podemos esquecer que tampouco fcil para os Azande entenderem nossa ignorncia e nossa descrena sobre o assunto. Certa vez, ouvi um deles dizer de ns: Talvez l na terra deles as pessoas no sejam assassinadas por bruxos, mas aqui elas so (Evans-Pritchard 1976: 492).

Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande est seguramente entre as mais fascinantes etnografias j escritas por um antroplogo. Publicado em 1937, o livro no teve na poca o impacto de outra obra de Evans-Pritchard, Os Nuer, que saiu trs anos depois. S aps a II Guerra, sobretudo na dcada de 1960, que a etnografia sobre esse povo do ento Sudo anglo-egpcio, enfocando situaes que envolvem cupins e barraces caindo na cabea de pessoas e divinaes que consistem em administrar veneno a galinhas, se tornou uma referncia para discusses que abordavam o papel social da bruxaria em sociedades africanas, mas tambm o tpico mais geral da racionalidade e dos modos de pensamento. Em 1976, aparece uma verso condensada, preparada por Eva Gillies, bastante prxima original. dessa verso a traduo para o portugus, que ganhou recentemente nova edio.

Por estar disponvel em portugus, trechos do livro so usados em disciplinas de antropologia oferecidas em nvel de graduao. Afinal, a imagem de um povo africano que acredita em bruxos, e que dispe de um curioso aparato para lidar com eles (orculos, adivinhos e magos, ervas e medicamentos), parece bem se adequar ao que se espera da antropologia. Especialmente da antropologia clssica e de seu encontro reiterado com a alteridade. Eis ento um povo que parece canibalizar o pensamento. verdade que o prprio autor est empenhado em mostrar que esses azande, com seus bruxos e orculos, so to lgicos quanto ns. Alm disso, possvel fazer conexes com o paradigma estrutural-funcionalista, dominante poca na antropologia britnica, de modo que a estranheza do pensamento fique domesticada pelas constantes da sociedade. Mesmo assim, em algum plano, preserva-se a distncia entre ns e eles e os Azande figuram como ilustrao de um modo de vida que revela uma humanidade diferente.

Este texto prope uma leitura do livro sobre os Azande que busca aproxim-los de ns. No se trata de negar as diferenas, ou de apag-las recorrendo a algum plano apriorstico de universalidade. Assume-se aqui um compromisso com o tropo das semelhanas e das aproximaes contingentes, que, como sugere Otvio Velho (1997), no elimina a diferena e sim a sua extica. Para Velho, a opo pelas aproximaes pode ser um modo interessante de reconceber o papel da antropologia, considerando os riscos da sua associao recente com discursos que elogiam a diferena apenas para reific-la, ou que a reconhecem apenas para constatar a impossibilidade do dilogo. Revisitar o livro de Evans-Pritchard dessa perspectiva equivaleria a afirmar a necessidade de exerccios que atualizem certos textos clssicos, explorando possibilidades que dialogam com as questes contemporneas. Outra referncia inspiradora Wittgenstein (1998), quando critica Frazer no em nome de uma reverncia diferena, mas por ter ele falhado em mostrar como os primitivos experienciam a realidade de forma to complexa quanto os civilizados.

Mas talvez a melhor noo para identificar meus propsitos seja a de simetria. Sugerida por Latour na forma do sintagma antropologia simtrica (1997, 1994, 1983), ela envolve uma concepo capaz de promover a compreenso aplicada tanto aos no-modernos quanto aos modernos. Trata-se, assim, no de concluir que tudo se iguala, mas de colocar as mesmas exigncias e de seguir os mesmos procedimentos quando se faz antropologia, sobre ns ou sobre eles. Entrar por esse caminho no deixa escolha: livrar os Azande do primitivismo implica automaticamente em abalar certas facetas de nossa auto-imagem. Da que este texto oscile sistematicamente entre ns e eles, na tentativa, s vezes com Evans-Pritchard, s vezes contra ele, aqui e ali recorrendo a comentrios de outros autores, de produzir um certo entendimento de alguns aspectos da vida zande e de alar algumas provocaes acerca de situaes que, de um modo ou de outro, esto prximas de ns. O mtodo pode no parecer o mais adequado, mas com ele o que se pretende livrar os Azande de ns: estabelecida a simetria, convertendo-nos em uma entre outras possibilidades, esto abertos os caminhos para outras aproximaes algumas das quais j aqui esboadas. Afinal, seria pouco sensato pensar que somente para ns os Azande tm algo a dizer.

1. Os Azande por um de ns

Na introduo de seu livro,(1)Evans-Pritchard declara: Meu objetivo (...) no descrever exaustivamente todas as situaes sociais nas quais a magia, os orculos e bruxaria se apresentam, mas estudar as relaes entre essas prticas e crenas entre si, mostrar como formam um sistema racional e investigar como este sistema racional se manifesta no comportamento social (:26). O volume passa em revista noes, especialistas e procedimentos, estritamente relacionados, que abrangem as diferenas entre bruxaria e feitiaria, a ao de adivinhos, o recurso a uma srie de orculos e a utilizao de drogas em rituais de magia. Ainda que Evans-Pritchard reconhea a conexo entre esse sistema e uma srie de atividades sociais, concebe sua anlise sobre a possibilidade de separ-las em domnios distintos. E no domnio que elege como objeto direto, embora encontre crenas e prticas, sobre as primeiras que concentra sua interpretao. Em outros trechos, o autor faz referncia a uma teia de aranha mental (:193 e 243) que articula a noo de realidade (:28) dos Azande.

Ou seja, Evans-Pritchard escreveu, no auge de um paradigma que privilegiava as relaes sociais, um livro sobre como os Azande pensam. Impossvel buscar a inspirao disso com a ajuda das referncias bibliogrficas, pois apenas so citadas obras sobre os prprios Azande. Mas algumas pistas aparecem em textos publicados pelo autor na dcada de 1930. Um deles trata da interpretao intelectualista da magia; outro dedicado a Lvy-Bruhl.(2)Embora nos textos Evans-Pritchard busque distanciar-se desses marcos tericos, parece ter preservado uma certa sintonia revelada, exatamente, no interesse pelo plano das crenas e do pensamento. O deslocamento produzido por essa sintonia em relao s principais balizas da antropologia britnica dos anos 30 de certo modo compensado pela aproximao que ocorre com as obras de Malinowski e Radcliffe-Brown. Como Malinowski, que dois anos antes publicara tambm um livro sobre magia, Evans-Pritchard compartilha, alm da imagem de um pragmatismo primitivo, um interesse em rituais que mantm uma relao imediata com outras atividades sociais.(3)A Radcliffe-Brown, pode-se associar um certo funcionalismo de Evans-Pritchard, que procura entender o papel da bruxaria para a manuteno das posies sociais e para a continuidade da sociedade Azande.

Creio que a maneira mais interessante de definir o livro de Evans-Pritchard no descrever a sntese que se teria operado a partir dessas vrias influncias, produzindo alguma coisa que o prprio autor no resolveu fazer. Melhor preservar o seu deslocamento, propiciado por um conjunto de distanciamentos e aproximaes que no encontra denominador comum e vale exatamente pelas indicaes das possibilidades de deslizamentos em relao a outros referenciais. Pode-se, assim, falar de Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande traando uma continuidade com os temas e os interesses intelectualistas, mas apenas para notar como eles esto imersos em uma etnografia riqussima do funcionamento da sociedade. E pode-se, com o mesmo direito, inserir o livro na linhagem funcionalista a que seu autor pertence, mas sem deixar de reconhecer que nele o pensamento ocupa o centro da anlise. Preservar o seu deslocamento, de todo modo, permite entender uma das razes pelas quais ele ser recuperado em outro momento e o que o torna instigante at hoje.

Isso no significa que no possamos encontrar um argumento central no livro. Ele aparece em diversos pontos, mas onde sua formulao ganha maiores implicaes no captulo IV da primeira parte: a noo de bruxaria como explicao de infortnios. Atravs de exemplos que j se tornaram clebres, como a da queda de um barraco corrodo por cupins sobre uma pessoa, Evans-Pritchard procura mostrar que causas empricas e causas msticas se complementam, em uma relao de superposio, para gerar uma explicao do infortnio pela bruxaria. Assim, por um lado, um azande, segundo o autor, descreveria como ns a corroso causada pelos cupins e o uso do barraco como abrigo pelas pessoas; mas ao acionar a noo de bruxaria, ele acrescentaria algo, com o qual daria conta do encontro dessas duas cadeias de eventos. Nas palavras de Evans-Pritchard: A crena azande na bruxaria no contradiz absolutamente o conhecimento emprico de causa e efeito. O mundo dos sentidos to real para eles quanto para ns (:91 [:55]). Assim: A bruxaria um fator causal de produo de infortnios em determinados lugares, em determinados momentos e em relao com determinadas pessoas. No o vnculo necessrio de uma seqncia de acontecimentos, mas algo externo a eles que deles participa e lhes confere um valor peculiar (:91).

Pode-se dizer que a ambiguidade contida nessa formulao do algo externo a eles que deles participa percorre todo o livro, a ponto de criar uma dupla leitura e mesmo uma dupla percepo do que seja a bruxaria zande. Essa tenso se revela, por exemplo, quando Evans-Pritchard tematiza a noo de experincia a propsito do uso dos orculos. Ora lemos que os azande no possuem como ns a idia de causas fsicas (:296), mas em seguida somos informados de que se pautam pela idia de causas misteriosas cuja definio as ope s causas fsicas. O autor nos diz que os Azande atuam de forma experimental dentro do marco de suas noes msticas (:313), o que vem a significar que carecem dos meios cientficos para faz-lo como ns (:314). Os orculos no so contrrios experincia (:318), mas captam apenas as foras misteriosas que interferem nos acontecimentos ordinrios (:317). J sobre as prticas curativas, Evans-Pritchard mostra como nelas se misturam o ritual e o emprico, mas para afirmar a preeminncia do mstico e do mgico (:451ss). Antes disso, j sabamos que no devemos qualificar o referente da noo de bruxaria como algo sobrenatural, pois afinal a prpria natureza que ela implica (:97), mas isso no faz com que a descrio dispense o conceito de causao mstica, que, se no explica sozinho a bruxaria, indispensvel para compreend-la (:87). E o mstico, por definio, atribui aos fenmenos qualidades supra-sensveis que, no procedendo da observao nem podendo se deduzir logicamente dela, tais fenmenos no possuem (:34-35 [:232]). Evans-Pritchard confessa no ter encontrado dificuldades em pensar como esses primitivos (:113, 493). Mas isso no o impede de afirmar: Uma concluso inescapvel das descries azande acerca da bruxaria que no se trata de uma realidade objetiva. (...) Os bruxos, tal como os concebem os azande, no podem existir (:83).(4)

A ambiguidade percebida em relao experincia reitera-se quando passamos ao domnio da sociedade se que possvel fazer tal distino. Por um lado, ao apontar que a bruxaria ao mesmo tempo uma filosofia natural e uma causa socialmente relevante, Evans-Pritchard pode estar sugerindo que estamos diante de uma cosmologia em que humano e no-humanos so definidos de uma forma que recorta as nossas noes de natureza e de sociedade. A bruxaria, algo que explica eventos que ns chamaramos de naturais, uma realidade social, uma pessoa (:91). Por outro lado, em vrios pontos a idia de tradio levantada para entender como os azande no percebem a futilidade e a ineficcia de suas concepes msticas e, nesse caso, a sociedade faz o papel de uma espcie de operador de elaboraes secundrias. Outro exemplo: Evans-Pritchard capaz de mostrar como um azande que jamais desconfiara de sua prpria bruxaria pode vir a admitir que a possui (:129ss) e ao mesmo tempo no se cansa de apontar os supostos truques e fraudes cometidos pelos adivinhos (:190ss).

Enfim, parece que o prprio Evans-Pritchard sofre do que tanto acusa os Azande: contradies. Este um ponto crucial da sua argumentao, algo que aparece logo no primeiro captulo, onde o autor nota que os Azande definem a bruxaria como orgnica e hereditria e, porm, no tiram as conseqncias lgicas disso, contentando-se em se ocupar dos bruxos apenas em quadros concretos e restritos. Outra contradio: a bruxaria no envolve ritos e age psiquicamente (portanto, pode ser involuntria), mas os Azande acreditam que os bruxos se renem e agem em grupo (e aqui ela se torna necessariamente voluntria). verdade que Evans-Pritchard atenua essas contradies com o recurso idia de situao, idia que explica o acesso dos atores s crenas que formam o sistema. Ao mesmo tempo, o texto no deixa de carregar um certo ar de denncia: Quando o pesquisador aproxima [as crenas zande] todas, e apresenta-as como um sistema conceitual, as insuficincias e contradies tornam-se evidentes (:492 [:225], tb. 299). Acerca de uma contradio especfica, Evans-Pritchard foi mais taxativo ao julg-la como falaciosa. No presente, diz ele, com a perda da autoridade real, que servia de instncia pblica decisiva, no h como saber se uma morte resultado de bruxaria ou resultado de uma vingana em funo de um ato de bruxaria anterior. Tudo nvoa e confuso, lamenta o antroplogo (:53, 138).

Fazemos todo esforo possvel para nos livrar ou escapar do infortnio por meio de nosso conhecimento das condies objetivas que o causam. O zande age de maneira semelhante, mas, como em seu modo de ver a causa principal de todo infortnio a bruxaria, ele concentra sua ateno nesse fator de suprema importncia (:155 [:90]). Eis um trecho, no qual se observa a oposio ns / eles estruturada sobre o acesso ou no s condies objetivas, que escancara uma das possveis leituras sobre Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande. Nela, a diferena entre ns e eles se assenta na relao com a natureza, que entre os Azande seria enviesada pelo misticismo socialmente compartilhado da bruxaria. Sendo assim, no surpreende que encontremos no texto de Evans-Pritchard as marcas tpicas dos argumentos intelectualistas: a magia como trapaa e a sociedade como engano coletivo (Tambiah 1990). a tambm que Evans-Pritchard parece mais prximo do que reprova em Levy-Bruhl, ou seja, a determinncia das noes msticas, o que explicaria a distncia do pensamento primitivo em relao ao civilizado. Assim, o livro s reconhece que a bruxaria comporta uma filosofia natural, desde que se acrescente que se trata de uma filosofia que gira sobre algo que no existe. Em suma: os Azande so razoveis, mesmo equivocados (:294).

Nesse caso, temos que dar razo a Latour (1994, 1997), quando este encontra a razo da dificuldade em se constituir uma antropologia da cincia, no simplesmente em uma opo por objetos mais interessantes, mas em uma incapacidade mais geral da disciplina. Ou seja, uma caracterstica da antropologia dedicada s sociedades complexas constituiria uma espcie de revelador de algo construdo na observao de sociedades tradicionais. Evans-Pritchard, ao fundamentar a diferena entre ns / eles na possibilidade de acesso realidade objetiva, conta com a cincia ocidental para fazer essa avaliao e, nesse movimento, a elimina de seu campo de problematizao. No se poderia ser mais explcito: a categoria [de noes cientficas] foi aqui introduzida por ser necessrio um critrio que decida se uma determinada noo mstica ou do senso comum; e nosso conhecimento cientfico acumulado e a lgica so os nicos rbitros capazes de decidir o que so noes msticas, cientficas e de senso comum (:35 [:233]). Por conta dessa perspectiva, podemos entender que Evans-Pritchard, aqui e ali, traia seus maiores propsitos. O que pretendia fazer mostrar a coerncia intelectual dos Azande, expressas na sua lgica e racionalidade (:493, 114). E, no entanto, ele mesmo chega a confundir emprico e racional (excluindo disso o mstico) (:96) e a descrever sua convivncia com o pensamento azande como uma queda no irracional (:113).

Ocorre que Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande no , lembremos, um livro sobre crenas apenas. o que sugere este outro trecho: Pois se os adivinhos so incompreensveis sem a crena na bruxaria, tambm a crena na bruxaria depende dos adivinhos, dos orculos e da magia (...). Os Azande aprendem a amplitude e a natureza da magia assistindo s sesses dos adivinhos, utilizando a magia e consultando os orculos (:244). Ou seja, no se trata meramente de descrever noes, mas de apontar o que as suporta e como elas funcionam na vida social. Os adivinhos, os rituais mgicos e, sobretudo, os orculos so a maquinaria das noes ligadas bruxaria. Ao estender sobre elas sua etnografia, Evans-Pritchard nos oferece uma viso ampla o suficiente para concedermos bruxaria um estatuto mais claramente positivo. E mesmo quando descreve as crenas, como o faz na primeira parte do livro, o antroplogo ingls consegue apresent-las de uma forma que torna problemtica a totalizao do sistema. A bruxaria , sob certos aspectos, orgnica; sob outros, algo detectado por um orculo. A bruxaria pode ser inconsciente, mas no deixa de possuir um carter volitivo. Ainda que sua inteno com isso fosse talvez denunciar as contradies, Evans-Pritchard contribui para termos sobre as crenas uma perspectiva que considera sua plasticidade de acordo com as situaes concretas em que so enunciadas.(5)

2. Dos Azande a ns

Ainda que funcione apenas como cenrio para evocar a diferena, o prprio Evans-Pritchard sugere uma aproximao entre os Azande e a nossa sociedade. Talvez tenha ocorrido ao leitor que h uma analogia entre o conceito zande de bruxaria e nosso conceito de azar. Quando, apesar do seu conhecimento, previdncia e eficincia tcnica, um homem sofre um revs, dizemos que isso se deve m sorte, enquanto os Azande dizem que ele foi embruxado. As situaes que evocam essas duas categorias so similares (:155 [:90]). Evans-Pritchard poderia ter ainda lembrado da noo de destino, outra forma de agncia que compartilha de duas caractersticas encontradas na lgica da bruxaria. A primeira delas podemos chamar de hiperdeterminismo, atributo das narrativas que procuram explicar o mximo de circunstncias em um evento. Assim, a bruxaria encontraria uma causa e uma responsabilidade onde outras explicaes s veriam coincidncia ou acaso. A segunda exatamente a ao por meios no materiais. Para os azande, a bruxaria atua animicamente: a alma do bruxo se destaca do corpo dele para devorar aos poucos a alma dos rgos de sua vtima. As nossas noes de sorte / azar e de destino podem ser caracterizadas de forma semelhante.

Durante as discusses em aulas de graduao sobre Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande, seus leitores muito freqentemente fazem uma aproximao que no ocorreu a Evans-Pritchard. Lembram que no Brasil convivemos com noes como a de olho grande e a de mau-olhado e mesmo a de feitio. Nesse caso, a aproximao seria ainda maior, uma vez que olho grande e mau-olhado no apenas explicam o infortnio produzido por meios no materiais, coisa que o azar e o destino tambm fazem, mas ainda apontam para um autor, ou seja, outra pessoa que por alguma razo inveja ou odeia a quem sofre o olho grande ou o mau-olhado. Assim, encontra-se nessas noes a outra caracterstica da bruxaria zande: a articulao entre juzos morais e a atribuio de responsabilidade pessoal. Para um azande, afirma Evans-Pritchard, quase todo acontecimento que lhe prejudica se deve s ms intenes de outrem (:125 [:79]). As noes de olho grande e de mau-olhado so diferentes das de azar ou destino no s por se aproximarem mais da lgica da bruxaria, mas tambm por evocarem um universo religioso mais especfico, aquele que remete no Brasil aos cultos de possesso. E quando se l a descrio de Evans-Pritchard das sesses em que os adivinhos danam as perguntas, difcil no imaginar uma sesso de umbanda, com sua msica, seus passos e suas consultas.

At que ponto tais aproximaes so pertinentes? No restam dvidas de que estejam bem fundamentadas e que apontem para semelhanas efetivas. Mas seriam elas a nica maneira de transpor para nossa sociedade o que Evans-Pritchard afirmou a propsito dos Azande? Lembremos como ele os descreveu: A bruxaria onipresente. Ela desempenha um papel em todas as atividades da vida zande (...). um tpico importante de vida mental (...); sua influncia est claramente estampada na lei e na moral, na etiqueta e na religio; ela sobressai na tecnologia e na linguagem. No existe nicho ou recanto da cultura zande em que no se insinue (:83 [:49]). Aproximar a bruxaria zande com o olho grande ou mesmo com o feitio entre ns no significa deslocar o foco de um ponto nevrlgico de toda uma sociedade para considerar apenas o que est no nicho e no recanto de outra? No significa tambm provocar uma falsa analogia, fazendo uma correspondncia entre bruxaria zande e noes que remetem magia e religio entre ns? Esse modo de proceder busca semelhanas entre elaboraes culturais sem se importar com sua insero em contextos sociais mais amplos. Por que no procurar uma analogia com algo que em nossa sociedade, exatamente por no pertencer ao terreno da magia e da religio, tambm seja to onipresente e nevrlgico quanto a bruxaria entre os Azande?

A cincia, por exemplo. Com isso, e fao questo de esclarecer, no pretendo assumir uma posio intelectualista. Nessa vertente, que tem muitas variantes, a racionalidade reconhecida a um povo como os azande traando uma equivalncia entre bruxos, de um lado, e, de outro, tomos, molculas e ondas todas essas so entidades voltadas para a explicao, previso e controle do mundo observvel (Horton 1993). Assim, o pensamento cientfico pode suceder ao pensamento tradicional porque cumprem o mesmo papel e geram os mesmos resultados. Estou entre aqueles que consideram esse tipo de analogia ilusria (ver Winch 1987). Em nosso favor, posso citar os prprios Azande, que desconfiavam que os mdicos europeus criavam as doenas que vinham curar e que tinham a sensao de que os remdios europeus s serviam aos europeus, no podendo nada contra doenas causadas por feitiaria e bruxaria nativas (:449-50). Se as entidades cientficas fossem do mesmo tipo que as entidades azande, elas seriam facilmente intercambiveis. O que os intelectualistas chamam de cincia supe todo um jogo de linguagem que no se reduz as suas entidades e se associa a papis e resultados muito diferentes daqueles desempenhados e produzidos pela bruxaria na sociedade azande.

Enfim, bruxaria e cincia esto a servio de ontologias e sociologias bem distintas. Mas isso no impede que nos sirvamos das caractersticas que marcam a bruxaria para pensar a cincia. Iniciemos com o hiperdeterminismo e veremos que no se trata de algo exclusivo da bruxaria. De jure, a cincia pode tudo explicar, nas mnimas e mximas circunstncias, e s de facto que renuncia a alguns domnios ou a algumas conexes da realidade. Acerca da ao distncia, trata-se de um tema perene da Fsica, que no fez mais do que ampliar a escala em que se coloca. Mas Latour (1993, 2001) ainda o amplia em outro sentido, quando sugere que a ao distncia seja um dos principais efeitos da prtica cientfica em geral. Uma cadeia de mediadores, que intervm na prtica cientfica (instrumentos, ferramentas, procedimentos), manejada de tal forma a permitir que algo permanea constante ao longo de uma srie de transformaes. A relao de representao que se estabelece entre realidade e discurso instaura simultaneamente a possibilidade de uma ao distncia. Mas falta ainda mostrar como a cincia pode tambm conjugar juzo moral e responsabilizao pessoal. Como algo que se pronuncia sobre a natureza pode envolver moralidade e responsabilidade?

A maneira que encontrei para discorrer sobre isso assume a forma de um comentrio acerca da narrativa contida em uma reportagem. Ainda que contemplada a partir de uma descrio pouco densa, essa situao tem a vantagem de envolver os destinos da pessoa mais importante em um certo momento da histria brasileira, quando o cume de uma trajetria poltica se cruza com os sortilgios da cincia mdica. A reportagem foi exibida pela Rede Globo no programa Fantstico do dia 17.04.2005 e se prolongou em alguns esclarecimentos feitos no Jornal Nacional na noite seguinte. Teve como ttulo A verdade sobre a morte de Tancredo e se refere aos acontecimentos que cercam o adoecimento de Tancredo Neves em 1985, no momento em que j estava eleito Presidente da Repblica e prestes a assumir o cargo. A reportagem tem como guia uma narrao que costura imagens e depoimentos, alguns deles divulgados h 20 anos e outros colhidos recentemente. O foco, no entanto, recai sobre os mdicos, tanto os que cuidaram de Tancredo em Braslia desde o dia 12 de maro, quanto os que o receberam em So Paulo, onde ele veio a falecer em 21 de abril. A reportagem anuncia trazer revelaes sobre as verdadeiras causas mdicas da morte de Tancredo. Gostaria de mostrar como a mesma reportagem articula elementos que inserem a medicina e seu discurso sobre a natureza em diferentes contextos que tm como ponto comum a implicao da sociedade.(6)

A narrativa, aps discorrer sobre a trajetria poltica de Tancredo, se concentra sobre sua doena algo que aparece primeiro nessa formulao genrica e depois ser especificada atravs de renomeaes sucessivas. Dividida em duas partes, a histria tem como primeiro cenrio a cidade de Braslia. Trs dias antes da posse, o mdico do presidente chamado. Ele e um cirurgio examinam Tancredo e recomendam a internao. Segundo o mdico do presidente, Tancredo se ops terminantemente a ir para o hospital antes de tomar posse. Nesse ponto da reportagem, dois depoimentos (o de um historiador e o de um poltico) ajudam a fundamentar os temores do presidente, referindo-se a possveis complicaes polticas caso fosse o cargo transmitido ao vice-presidente. Nas palavras do poltico, tambm integrante da famlia de Tancredo: Tancredo sempre trabalhou com os riscos de setores mais radicais das Foras Armadas, minoritrios certamente, que poderiam, de alguma forma, encontrar algum pretexto para um retrocesso. Vemos ento que a doena do presidente se vinculava aos destinos da transio democrtica no pas.

Na vspera da posse, Tancredo volta a passar mal e momentos depois conduzido pelos dois mdicos j mencionados ao Hospital de Base, o maior hospital pblico de Braslia. Ali ele imediatamente operado. O primeiro boletim mdico divulga o diagnstico de apendicite aguda, logo alterado, continua a narrativa, para divertculo de Meckel. O novo diagnstico anunciado pelo neto do presidente, juntamente com a previso de que o presidente Tancredo Neves deve tomar posse amanh na presidncia: o Brasil pode suspirar aliviado. Depois de lembrar que isso no aconteceu, a reportagem proclama sua primeira grande revelao:

Agora, 20 anos depois, o patologista E.M. admite que escondeu o diagnstico: Eu, disse: Eu posso fazer uma coisa, que contraria o cdigo de tica mdica. Mas, considerando a situao atual, com o medo de que ns no tenhamos a posse do presidente... Porque se for divulgado que ele tem um tumor, e no importa naquele momento se um tumor benigno ou maligno, basta dizer para o pblico que um tumor, ento vo dizer que o homem est com cncer, e ele vai morrer. Ento eu fao o seguinte: eu fao um outro laudo. Esse outro laudo eu fao um laudo igualzinho a esse, s que, ao invs de eu colocar: leiomioma infectado etc. e tal, eu vou colocar diverticulite aguda perfurada.

V-se como, at aqui, a narrativa sugere que uma leitura poltica (a expresso aparece em um depoimento exibido na prpria reportagem) explica a ocultao do verdadeiro diagnstico da doena que acometia o corpo do presidente. Reforando essa verso, h uma observao sobre as condies em que ocorreu a primeira cirurgia: muitas pessoas ocupavam a sala, a maioria delas, segundo o filho do presidente, polticos paramentados com roupa de mdico para assistir operao. Note-se que em torno da leitura poltica a reportagem indica que convergem diferentes personagens: o prprio presidente, a sua famlia e o mdico que assinou o diagnstico falso, segundo este, tendo comunicado o diagnstico verdadeiro equipe mdica, aos familiares e ao porta-voz do presidente. Como no lembrar dos Azande (embora, nesse caso ao menos, por uma coincidncia...) quando se encontra uma narrativa que vincula os destinos da poltica nacional com a situao do intestino de um indivduo?

A reportagem continua, mencionando as complicaes que surgem aps a primeira cirurgia. Isso leva a uma segunda cirurgia, com a participao de mdicos vindos de outros estados. So os seus depoimentos que conduziro da por diante a narrativa. O cenrio muda: estamos agora em So Paulo, para onde Tancredo foi transferido aps sofrer uma hemorragia. Eis a narrao: a primeira vez que estes mdicos se renem desde que Tancredo Neves cruzou suas vidas. So 11 especialistas, que cuidaram do presidente durante os 27 dias em que ele ficou no Instituto do Corao, em So Paulo. E eles afirmam: desde a primeira internao, em Braslia, o presidente tinha poucas chances de sobreviver. Somem os polticos e os familiares. Os depoimentos contestam a causa da morte de Tancredo, na poca anunciada como infeco generalizada. A opinio do grupo de mdicos sintetizada em quatro frases da reportagem: Tancredo Neves foi vtima de um quadro que a medicina desconhecia na poca: a sndrome da resposta inflamatria sistmica. Atacado por um agente infeccioso, o organismo cerca o invasor com uma inflamao. H casos em que o corpo perde o controle desse contra-ataque. A inflamao se espalha e atinge outros rgos.

Mas houve ainda outra revelao, fundamentada na mesma condio de que o avano da pesquisa mdica permitiria um diagnstico mais adequado da sade do presidente. Um dos mdicos sugere que Tancredo j estava doente h mais tempo, sofrendo do que um colega chama de crises de bacteremia, que so bactrias circulantes. Seus sintomas seriam febre e tremores. O mesmo mdico afirma que Tancredo se automedicava, algo que detalhado por um colega farmacutico: Ele (Tancredo) tomava seis medicamentos, por conta dos calafrios e da bacteremia. H mais de um ano ele vinha tomando, sempre sob a superviso do balconista da Farmcia de So Joo Del Rey. Nesse segundo cenrio, a reportagem, portanto, se concentra sobre outra nova verdade, que vem substituir as deficincias dos diagnsticos de 20 anos atrs. Essa verdade no trazida pelos mesmos mdicos que trataram de Tancredo em Braslia, mas por outros cuja leitura parece ser puramente cientfica. preciso notar, porm, que essa cincia pura traz consigo um deslocamento da responsabilidade. O grupo de mdicos reunidos em So Paulo enftico em desculpabilizar toda a sua classe: A despeito da qualidade da cirurgia e do cirurgio, ele tinha uma possibilidade de sobrevida muito limitada, mesmo antes da cirurgia. Um paciente com mais de 70 anos, onde voc tem esse fato vindo, ao longo de meses, o ndice de mortalidade, hoje, altssimo. Ele (Tancredo) era um paciente j de alto risco ao chegar ao Hospital de Base de Braslia. O que o diagnstico suplementar da bacteremia implica a responsabilizao do prprio Tancredo e das pessoas que lhe eram prximas incluindo a o farmacutico do interior que supostamente supervisionava a automedicao.

Mesmo quando a cincia quer ser puramente natural, ela implica a agncia humana e se mistura com a sociedade. Embora o deslocamento da responsabilidade proposto na reportagem no seja reconhecido na narrativa, ele se torna evidente na reao dos familiares. Essa reao vem atravs de uma nota divulgada pelo Jornal Nacional do dia seguinte. Nela, os filhos de Tancredo lembram que dois mdicos que o trataram em Braslia foram condenados pelo Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal pela alterao de diagnstico. Procuram assim desfazer uma das revelaes. Quanto outra, declaram desconhecer os mdicos de So Paulo que aparecem na reportagem e lembram que na ocasio do tratamento tinham recebido sempre prognsticos positivos. Ainda contestam a informao de que o ex-presidente sofria de crises de bacteremia e asseveram que, portanto, no tomava quaisquer medicamentos. Desautorizam as suposies dos mdicos que citavam conversas com a famlia para firmar seu diagnstico. Na verso desses familiares, surge uma medicina culpada por pouca tica e pela incapacidade de manter o presidente vivo.

No precisa existir nenhuma semelhana entre a sociedade brasileira e a sociedade azande, nem entre as categorias de pensamento que so acionadas em uma situao de bruxaria e na situao que envolveu a morte de Tancredo Neves. De fato, a cadeia de agentes nos dois casos bem diferente. Entre os Azande, encontramos, em torno das vtimas, telhados, cupins, orculos, adivinhos e pessoas com substncia-bruxaria em seus ventres. No episdio que acompanhamos, temos, em volta do presidente eleito, inflamaes, tumores, bactrias, familiares, polticos e mdicos de vrios tipos. Mas saber como os Azande lidam com as situaes de bruxaria pode ajudar a entender o que est acontecendo nesse combate de verses sobre os motivos que levaram morte de Tancredo Neves. Como eles, ns tambm forjamos explicaes que mobilizam tanto a natureza quanto a sociedade.

3. De ns aos Azande

Proponho que retomemos a questo das contradies que tanto incomodam Evans-Pritchard quando trata do sistema que nos Azande interliga as noes de bruxaria e as intervenes de adivinhos, orculos e rituais mgicos. Isso ser feito em dois movimentos, ambos amparados em sugestes que partem de textos de Latour. No primeiro desses movimentos, as contradies zande so redefinidas como efeito de um olhar externo; ou seja, eles mesmos no se importam com as tais contradies. Mas possvel fazer uma outra leitura, que considera as contradies derivadas da bruxaria zande como reveladoras de um jogo de tenses que serve para sustentar e movimentar a ao social que lhe est atrelada.

Em um texto publicado originalmente em 1983, no qual Latour j apresenta as provocaes desenvolvidas a propsito de uma antropologia das cincias, h um comentrio direto a Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande, ainda que inspirado na crtica a Evans-Pritchard elaborada por D. Bloor. O comentrio incide sobre a j mencionada contradio azande entre, de um lado, a aceitao da transmisso hereditria da bruxaria e, de outro, a recusa da concluso de que os parentes do bruxo so tambm bruxos. Enunciado o problema, Latour acompanha Bloor na anedota que imagina um observador azande notando que em muitas sociedades ocidentais acredita-se, ao mesmo tempo, que toda pessoa que mata outra voluntariamente culpada de assassinato e que os pilotos de guerra so inocentes de suas aes mortferas. Eis o comentrio de Latour:

O etnlogo azande ao nos acusar de ilogismo se engana, como ns bem percebemos (...). Jamais para ns, nativos, a noo de assassinato inclui ou deveria incluir o piloto de guerra, exceto nos rarssimos casos de crime contra a humanidade. Ao nos acusar de ilogismo, o etngrafo azande evidencia somente sua ignorncia de nossa cultura e sua crena ingnua em uma lgica que seria mais forte que as associaes estabelecidas pela sociedade. (...) Ao se enganar tanto, o etnlogo inventado por Bloor demonstra o erro monumental cometido por Evans-Pritchard (1983:210).

O interesse de Latour exatamente produzir a simetria entre os Azande e ns. Para isso preciso que corrijamos o artifcio de Bloor, cultivando as condies que permitem eliminar os mal-entendidos mtuos. Ele procura reforar seu argumento fazendo em seguida uma discusso de classificaes zoolgicas que visa colocar os mesmos problemas no exame de etnoclassificaes e de controvrsias cientficas. Nos dois casos, argumenta Latour, possvel encontrar incongruncias e falhas lgicas, mas que s aparecem como tal para um olhar que no tenha compreendido as condies sociais em que o pensamento opera. Toda lgica uma sociolgica (:211) e sua compreenso requer um conhecimento preciso da sociedade e das associaes que ela estabelece para se construir (:215). Sugesto muito semelhante feita pelo filsofo Peter Winch no texto que foi republicado na coletnea, dedicada ao tema da racionalidade, que traz os Azande em vrios de seus captulos. Para Winch, as noes zande de bruxaria no constituem um sistema terico em termos dos quais os Azande buscam obter um entendimento quase-cientfico do mundo. (...) o europeu, obcecado em conduzir o pensamento zande aonde ele no iria naturalmente para uma contradio , que comete um mal-entendido (1970:93).(7)

Latour e Winch concordam, portanto, em localizar o problema, vazado no incmodo ou mesmo na denncia da contradio, na observao e no no observado. Um olhar limitado ou conduzido por erros de analogia que gera o problema. Eles estariam sugerindo, quanto ao observado, que as contradies no fazem parte da vida social? Em se tratando dos Azande, a admisso de que Evans-Pritchard colocava exigncias que no faziam parte de sua lgica no nos leva necessariamente a anular a questo das contradies. O seu livro que reconhece que a mentalidade zande seja lgica e inquisitiva dentro da trama de sua cultura e que insiste na coerncia de sua prpria linguagem (:66) contm vrias passagens nas quais os Azande procuram lidar com suas contradies. Ora resolvendo-as, como no exemplo dos familiares que renegam o parentesco biolgico com algum cuja autpsia encontrou a substncia-bruxaria (:50). Outro exemplo surge quando procuram justificar a lgica do sistema nos casos em que uma morte pode ser atribuda bruxaria e vingana mgica, apelando para a honestidade do prncipe ou para uma possvel sobreposio de processos (:53). Ora reconhecendo a possibilidade de contradies, mas sem acusarem incmodo por elas, confiando que o sistema possa funcionar a contento sem ter de enfrent-las. Assim, Evans-Pritchard sugere que as contradies seriam aparentes se todas as mortes fossem levadas em considerao, e no apenas uma morte em particular (:53). Ocorre que, como ele mesmo aponta, os Azande interessam-se apenas pela dinmica da bruxaria em situaes particulares (:51).

o prprio Latour, desde que mudemos de texto, que nos indica um outro modo de considerar essas contradies. Na caracterizao que elabora sobre o que chama de constituio dos modernos (Latour 1994), ele sugere que esta tem na natureza e na sociedade as suas noes centrais. primeira vista, a modernidade estabelece a natureza como transcendente (independente dos humanos) e a sociedade como imanente (construo dos humanos). Mas, embora isso seja bem menos admitido, na modernidade a natureza construda no laboratrio e a sociedade se emancipa em relao aos indivduos.(8)Ou seja, essas duas noes fazem apelo ao mesmo tempo transcendncia e imanncia, e sua manifestao sob uma ou outra forma depende da situao em que ocorrem. Isso permite que os modernos joguem com suas contradies, resolvendo-as ou no. Em suma, permite que se faa tudo e tambm o contrrio (1994:43). O mesmo acontece em outro plano, em que se articulam princpios possivelmente contraditrios. Por um lado, a modernidade supe uma distino clara e radical entre humano e no-humano; por outro, como mostra Latour, produz a hibridao em uma escala indita, mobilizando a natureza no seio das relaes sociais e concebendo a sociedade com base em propriedades naturais.(9)

Coisa semelhante parece ocorrer entre os Azande a propsito da noo de bruxaria. Se lhes dissermos que qualquer pessoa pode ser bruxa (:126), iro retrucar que apenas o so aquelas que possuem substncia-bruxaria em sua barriga (:47). Mas se dissermos somente que bruxos entre os Azande so aqueles que possuem substncia-bruxaria em sua barriga, discordaro tambm: por um lado, reclamaro que no se pode esperar pela confirmao de uma autpsia e que devemos confiar nas indicaes dos orculos; por outro, lamentaro que presumamos a culpabilidade de pessoas cuja bruxaria pode estar fria (isto , inativa e incua). Por isso no se deve excluir categoricamente nenhum nome diante do orculo (:269) e faz parte da etiqueta sugerir em primeiro lugar o prprio nome em certas consultas (:136). As noes de bruxaria zande tambm permitem fazer tudo e qualquer coisa (Latour 1994:45). Mais um exemplo? Se lhes dissermos que, dado que o bruxo no escolheu nascer com a substncia-bruxaria em seu ventre, pode estar prejudicando outra pessoa sem quer-lo (:132), os Azande respondero que algum s prejudicado pela bruxaria quando aqueles que a possuem cultivam ou se deixam levar por sentimentos de dio, inveja ou cimes (:121). Ento vocs, Azande, concordam com a idia de que a bruxaria algo intencional, e por isso exigem que os acusados pelos orculos soprem gua como sinal da interrupo de suas aes malvolas (:111)! Nada disso, retrucaro, pois quando algum sopra gua no significa que admite sua culpabilidade; pode estar simplesmente afirmando Se sou bruxo, no sei. (:133).(10)

Evans-Pritchard insiste que um zande se interessa pela bruxaria apenas enquanto um poder em ocasies definidas, e apenas em relao a seus prprios interesses [quando se vtima], e no como uma condio permanente de alguns indivduos (:51 [:36]; v. tb. p. 120, 137). Coerentemente com isso, atribuem bruxaria apenas aos parentes paternos mais prximos de um bruxo reconhecido. Ademais, no costumam banir ou ostracizar os acusados de bruxaria. Mas ele tambm registra que sobre certos cls pesa a reputao de bruxaria (:51) e que as acusaes recaem com mais frequncia sobre certas classes de pessoas (:55ss, 118ss, 126ss). Reconhece ainda que, nos velhos tempos, quando as acusaes aos bruxos eram oficialmente confirmadas, seus parentes deviam aceitar o estigma que caa, ao menos durante algum tempo, sobre seu nome (:137). Pode-se ento concluir que a bruxaria oscila entre ser uma situao e uma condio e que esse estatuto possibilita outras contradies. Talvez compreendamos melhor o que se passa entre os Azande se lembrarmos que, entre ns, as designaes que se referem cor da pele das pessoas mudam de acordo com os contextos sociais e que no nos surpreende o contraste entre o resultado de pesquisas de opinio que perguntam voc racista? e o daquelas que perguntam, s mesmas pessoas, voc considera o brasileiro racista?. Algum j disse que no se morre de contradies; mas tampouco se vive sem elas. E h quem sofra por sua conta.

4. O que fazemos deles

O pensamento moderno, comenta Latour (2001, 2002), sofre de uma ciso entre exterioridade e interioridade. De um lado, supe que existam objetos inumanos, com os quais povoa a natureza. De outro, confunde os sujeitos com a humanidade, eles, por sua vez, povoados de idias. Ocorre, entretanto, um movimento de projeo dos sujeitos sobre os objetos, e com isso se criam representaes ou crenas humanas acerca da natureza. Que essas representaes ou crenas sejam sociologizadas ou antropologizadas no modifica sua condio essencial, a lacuna que por princpio as separa da natureza. Partindo desse comentrio, penso ser possvel encontrar duas verses do discurso moderno travestido em anlises antropolgicas sobre os Azande. Ambas se recusam a falar sobre a natureza; em um caso, reduzindo a anlise esfera da sociedade; em outro, concentrando o problema em uma anlise da linguagem. Gostaria de mostrar como ambas so insuficientes e limitadoras e que apenas uma abordagem voltada para captar a ontologia que se articula com a sociedade e a linguagem pode nos levar a uma compreenso mais adequada do que os Azande tm a dizer.

Nas dcada de 1950 e 60, pululam textos vindos de antroplogos formados ou radicados na Gr-Bretanha a propsito de bruxaria e feitiaria. A produo, que comea com artigos e monografias, culmina nas coletneas organizadas por J. Middleton (1967), Marwick (1970) e M. Douglas (1970). Se Lvi-Strauss (1975), em seu texto sobre o tema, apontava para uma direo que destacava de seu contexto semntico e sociolgico o tringulo formado pelo curandeiro, o paciente e o pblico, o tom que predomina naquela literatura acompanha e alimenta o interesse pela dimenso dos conflitos e tenses sociais e pelo campo do simbolismo. As noes de bruxaria e de feitiaria, em seus processos de acusaes e suas repercusses cosmolgicas, abriram um terreno inestimvel para isso. Curiosamente, porque pareciam permitir um novo sopro ao funcionalismo, que quela altura j dava sinais de agonia. So os pressupostos funcionalistas da estabilidade social que tornavam to interessantes crenas, como as de bruxaria e feitiaria, que pareciam socialmente destrutivas (Beidelman 1970). Para explic-las, predominou o acionamento de argumentos que procuravam mostrar a dependncia das crenas em relao estrutura social. Crick (1982) caricaturou esses argumentos, apontando o contraste entre Evans-Pritchard, cuja idia era que a bruxaria explicava a noo de infortnio, e a literatura funcionalista mais recente, em que prevalecia a idia de ser o infortnio social o que explica a bruxaria e a feitiaria.

Isso no significa que tenha havido qualquer levante contra o livro de Evans-Pritchard. Muito ao contrrio, ele sempre aparece reverenciado como referncia fundamental e inspiradora e tudo se passa como se tivesse feito o que seus seguidores estavam propondo. Manteve-se ainda o tom ctico que via nas noes de bruxaria e feitiaria pouca correspondncia com a realidade objetiva. Se elas tinham algo a nos revelar, isso tinha a ver com a sociedade, nunca com a natureza. Neste ponto, restrinjo minhas citaes aos mais ilustres. Gluckman: Crenas na magia e bruxaria ajudam a desviar a ateno das causas reais de infortnio natural. Elas tambm ajudam os homens a evitarem ver a natureza real dos conflitos entre pertencimentos sociais (1970: 108). E M. Douglas: Em uma investigao sobre a bruxaria como princpio de causalidade, no se postulam seres espirituais e misteriosos de nenhuma classe, apenas os poderes misteriosos dos seres humanos. Essa crena tem o mesmo tipo de fundamento que a crena (...) em qualquer proposio que se apresente em forma no verificvel (1976:36).

Mas apesar dessa continuidade com a postura de Evans-Pritchard e da reverncia a sua obra, impossvel no notar que Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande, publicada no perodo ureo do funcionalismo, parece menos funcionalista que a literatura elaborada 20 ou 30 anos depois. Claro, existem marcas funcionalistas no livro sobre os Azande, expressas sobretudo nos argumentos de que a bruxaria um meio pacfico para a resoluo de tenses e de que as suas noes e o seu acionamento respeitam e preservam o status social. No entanto, em suas linhas gerais, no se trata de uma obra funcionalista. Isso se evidencia claramente quando ele comparado com o modo como o mesmo autor tratou dos Nuer (Evans-Pritchard 1940, 1951, 1956). Nesse caso, apresentou primeiro a dimenso ecolgica, as noes de tempo e de espao, passando em seguida poltica e ao parentesco, terminando com a religio. Na introduo ao seu nico livro sobre os Azande, Evans-Pritchard se justifica: reconhece que seria prefervel seguir a arquitetura funcionalista e chega a prometer obras sobre vida familiar e instituies polticas. De todo modo, conseguiu escrever aproximadamente 500 pginas sem precisar respeitar essa seqncia. Alm disso, dedica apenas alguns pargrafos para descrever as caractersticas gerais da sociedade azande. E no d nfase aos argumentos funcionalistas mencionados acima, que se dissolvem em uma etnografia que demonstra muitas outras preocupaes.

Neste ponto, torna-se interessante mencionar o texto de McLeod (1972). Recorrendo a Bruxaria, Magia e Orculos entre os Azande e a outros escritos de Evans-Pritchard sobre os azande, McLeod pretende exatamente deixar mais sistemticas as relaes entre aes e crenas da bruxaria e as estruturas sociais (:160). O resultado ser surpreendente. McLeod rene elementos que esclarecem muito sobre a vida dos plebeus azande. Ao contrrio dos nobres, os plebeus no tm sua vida organizada pela diviso em linhagens ou cls. Entre eles, formam-se ncleos maiores ou menores de parentes paternos que administram propriedades, cultuam ancestrais e assumem os arranjos matrimoniais. Esses ncleos tm como referncia um chefe-de-famlia, adulto de certa idade que geralmente possui vrias mulheres e que atravs de alianas pode se destacar como foco de influncia poltica. Para isso ele deve lutar constantemente com rivais, sejam estes homens mais jovens que buscam suas esposas, sejam estes outros seniors com quem medem poder e riquezas. A cadeia de autoridade que leva dos delegados aos governadores e aos prncipes tem na sua base esses plebeus influentes e por esse caminho um plebeu pode chegar a ser governador. No alto da cadeia, a necessidade de alianas no menor, o que torna a vida da corte bastante tensa e instvel. Conclui McLeod: Portanto, a vida zande parece estar tomada por uma atmosfera altamente competitiva, quase atomstica (:176).

Os mesmos ncleos de parentes paternos possuem ainda a atribuio de intervirem nas disputas que envolvem bruxaria e adultrio. Isso inclui o controle do principal orculo zande, que funciona pela administrao de veneno a galinhas. O custo, as regras e a parafernlia implicados no acionamento desse orculo restringem a sua posse, entre os plebeus, praticamente aos chefes-de-famlia. McLeod procura mostrar que o impacto de uma atribuio de bruxaria a um desses chefes poderia ter implicaes graves: exposto a uma vingana ou obrigado a uma reparao, a sua influncia poltica seria certamente afetada. Alm disso, a construo e a manuteno de alianas, constitudas por casamento ou expedientes estranhos ao parentesco, estavam atreladas a decises que precisavam ser tomadas em casos de bruxaria. Especula McLeod: Parece improvvel que os acusados fossem pessoas que eram aliadas aos acusadores atravs de casamento ou de irmandade de sangue caso estes ainda achassem que teriam algo a ganhar dessas alianas ou que estivessem em uma posio [social] inferior (:177).

Ou seja, possvel de fato traar uma associao entre bruxaria e ordem social, como sugere o argumento funcionalista. No entanto, os elementos reunidos por McLeod lembremos: todos derivados de textos escritos por Evans-Pritchard alimentam a idia de que no h como traar claramente uma linha entre a estrutura social azande e suas noes de bruxaria. A bruxaria participa, de forma intrnseca, da sociedade azande, como um de seus idiomas privilegiados. Quanto estrutura social, alis, considerada a exposio de McLeod, ela pouco lembra a imagem sugerida pelo sistema de grupos corporados organizados em torno do princpio de descendncia, imagem consagrada pelos estudos funcionalistas das sociedades africanas. Tentar enquadr-la nessa imagem produziria impresso semelhante com aquela que se gerou a propsito sociedades amerndias, nas quais os grupos de parentesco no definem por si s as relaes sociais e a cosmologia, vazada na centralidade do corpo e de seus idiomas, parecia essencial organizao social (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro 1987). Em suma, talvez no devamos culpar Evans-Pritchard por seu livro ter sado menos funcionalista, no contedo e na arquitetura, do que se poderia esperar. A explicao pode ser encontrada entre os prprios Azande.

A aproximao com a etnologia sul-americanista sugere ainda um outro comentrio sobre a relao entre bruxaria e sociedade azande. Como j foi mencionado, para Evans-Pritchard, h um comprometimento da lgica do sistema da bruxaria depois que os prncipes perderam autoridade. Sendo deles a atribuio, atravs de seu orculo de veneno, de confirmar as revelaes dos demais orculos, eles que garantiam que uma morte derivara de um ataque de bruxaria, permitindo que ento as devidas providncias fossem tomadas a execuo do acusado ou o pagamento de compensaes aos parentes da vtima. No momento em que Evans-Pritchard fazia sua pesquisa, com a proibio de processos legais por bruxaria, mesmo que o orculo do prncipe fosse consultado visando as devidas confirmaes, tudo se passava em segredo. Assim, no havia nenhuma instncia que assegurasse que uma morte resultara de bruxaria ou de vingana obtida por magia. A propsito disso, o autor faz um comentrio muito interessante:

(...) apesar das muitas maneiras pelas quais a crena no orculo de veneno se sustenta, poder-se-ia duvidar de que mantivesse seu prestgio numa comunidade democrtica. No pas zande seus veredictos tm uma sano histrica pelo fato de que eram tradicionalmente sustentados pela plena autoridade do rei. (...) Se pudesse caber qualquer recurso contra [as decises reais] dirigido aos orculos privados, ocorreria uma confuso generalizada, j que todo mundo poderia produzir veredictos oraculares para apoiar seu prprio ponto de vista, e no haveria como decidir entre eles. (:319 [:173]).

V-se como, para Evans-Pritchard, o orculo real constitui a garantia contra uma confuso generalizada, no vendo como os Azande poderiam sem ele subsistir como uma comunidade democrtica. Mas e se encarssemos essa distino entre os azande inspirados pelas anlises de Clastres (1978) sobre os dispositivos que em sociedades amerndias impedem a concentrao e a estabilizao do poder? Desse modo, o que Evans-Pritchard considera um comprometimento lgico ou um sinal de desordem social viria a representar um outro regime micro-poltico, que passa a predominar com o enfraquecimento do poder real. Pois de poder que se trata: para garantir silncio sobre os assuntos de seu senhor costuma-se executar os operadores dos orculos reais (:273); os prncipes no disfaravam sua oposio s autpsias (:64), j que seus resultados poderiam contrariar as decises dos orculos deles. Com esse poder real enfraquecido, as disputas de bruxaria no deixam de seguir os trmites socialmente estabelecidos, mas as decises sobre culpados e vtimas ocorrem em meio a uma batalha de verses que buscam, cada qual, um maior respaldo. Por exemplo: pode-se buscar um acordo entre os envolvidos com a ajuda dos prprios orculos ou apelar para orculos privados com maior reputao (:319-21). De todo modo, o resultado o seguinte: Em casos que no sejam de morte, possvel para um grupo de pessoas dizer que o seu orculo denunciou um homem por embruxar seus parentes, enquanto os amigos e parentes do acusado podem facilmente negar a imputao e dizer que ele soprou gua por simples formalidade, porque no h certeza de que o orculo tenha falado a verdade, ou mesmo que tenha sido consultado pois no o orculo de um prncipe (:138 [:89]).

Diante disso, preciso mencionar outra observao do autor: o orculo de veneno escuta como uma pessoa e resolve os casos como rei (...) (:301). Nesse sentido, torna-se possvel dizer que a suprema autoridade reside nas revelaes oraculares, sendo o poder real derivado e garantido pelos cuidados extraordinrios que cercam o seu orculo. Mas h ainda outra implicao: a bruxaria no depende do prncipe para existir. Tendo o prncipe poderes efetivos, seu orculo desponta como instncia privilegiada. Sem o orculo real, porm, a bruxaria no menos real; ela passa a funcionar em outro regime poltico, que desloca a deciso sobre a atribuio de bruxaria para o combate de verses com as quais se enfrentam os grupos familiares. Talvez no nos deparemos propriamente com uma comunidade democrtica, mas o resultado certamente menos autocrtico do que aquele vigente nos tempos passados. Resta, contudo, ainda um ponto, que se revela na continuidade do trecho j transcrito: (...) mas no pessoa, nem rei, sendo simplesmente p vermelho (:301). Ou seja, o orculo de veneno introduz-se na sociedade azande como um elemento no-humano. O que isso nos diz sobre a sua ontologia?

Os Azande ressurgem em um texto primeiramente publicado em 1973, momento em que j havia sinais claros do esgotamento do paradigma funcionalista, ao mesmo tempo em que assistimos a proposio de enfoques semnticos sobre a bruxaria (Crick 1972). Seu autor Stanley Tambiah, que em 1968 j publicara uma reanlise da magia trobriand tal como registrada por Malinowski. O texto de 1973 volta-se para os dados e as reflexes de Evans-Pritchard sobre os Azande. Para Tambiah, a anlise de Evans-Pritchard fica prejudicada pelo uso da distino entre emprico e mstico, em detrimento da compreenso da semntica da magia e do curandeirismo azande, que acabam sendo vistas segundo critrios ocidentais de induo e verificao. Os rituais azande s poderiam ser devidamente compreendidos quando considerados como aes performativas conceito tomado das teorias lingsticas de Austin. Calcadas em raciocnios analgicos, que fazem uso de metforas e metonmias, os ritos transferem propriedades de uma relao para outra. Uma ilustrao de seu mtodo se utiliza da prtica zande de prender uma pedra nos galhos de uma rvore, acompanhada do desejo expresso de que a pedra retenha o sol para que o viajante que a colocou possa chegar em casa antes do anoitecer. A analogia, explica Tambiah, ocorre entre o sol viajando no cu e uma pessoa retornando sua casa. Prender a pedra na rvore representa o efeito positivo desejado de retardar o sol e o contra-efeito implcito (...) de apressar o passo, o que na realidade o viajante efetivamente faz ao encenar esse rito (1985:74-75).

O trabalho de Tambiah chama a ateno, sobretudo, pela tentativa de reabilitar a noo de magia livrando-a dos pressupostos intelectualistas com os quais ela adentra na antropologia. Entre esses pressupostos, a recorrente idia de que a magia deve ser avaliada com os parmetros da cincia. No texto de 1968, Tambiah prope uma interpretao no literalista para salvar os trobriandeses de uma suposta confuso entre palavras e coisas. Da a nfase sobre os procedimentos que envolvem metforas e metonmias, o que permite aos trobriandeses agirem sobre si quando declaram agir sobre as coisas. No texto de 1973, mesmo com a introduo das noes derivadas de Austin, a concluso se reitera. Considerando que nas sociedades primitivas melhor assimilar a bruxaria e a magia a ritual do que a cincia aplicada, Tambiah prope: atravs do ritual, o homem impe significado ao mundo, antecipa o futuro, retrospectivamente racionaliza o passado e obtm resultados (:84). O exemplo da pedra na rvore para reter o sol confirma o argumento de que esses resultados se do sobre os homens, ficando a natureza, por assim dizer, entre parnteses. Livrada dos parmetros da cincia, a magia ficaria, em compensao, trancafiada na linguagem. No haveria outras possibilidades que contemplassem tanto as declaraes literais dos Azande quanto a idia, apresentada pelo prprio Tambiah, de que os ritos funcionam em outro comprimento de onda de que a tecnologia cientfica (:84)?

Voltemos ento aos Azande. No trecho em que comenta o curioso ritual para retardar o sol, Evans-Pritchard esclarece que um azande diria que a pedra nele utilizada ngua uru, uma droga do sol. Ngua o termo que designa as drogas, geralmente de origem vegetal, que so usadas em diversos rituais. Evans-Pritchard sugere ento que ela pode significar tambm curandeirismo e mesmo magia, empregada como parte de diversas atividades econmicas e para proteo pessoal. De fato, a concepo zande de magia a associa crucialmente a certas drogas. Essa associao, no entanto, a coloca em um campo ambguo e delicado. Afinal, drogas tambm so empregadas pelos feiticeiros, sempre com o fito de prejudicar a algum. Em princpio, haveria uma distino entre drogas boas e drogas ms, que corresponderia disjuno entre magia socialmente aprovada, que se faz em concordncia com regras morais e legais, e a feitiaria. Na prtica, porm, ningum capaz de produzir em todos os casos essa distino (:373-390). Deve-se ainda lembrar que a magia pode ser usada com fins punitivos. Nos casos de bruxaria, drogas so usadas para tratamento de doenas, para a proteo da vtima e tambm para a vingana contra o bruxo. Em situaes nas quais famlias reivindicam estar vingando um parente por bruxaria, outros podem aventar que se trata na verdade de feitiaria. Outro campo de ambigidades ocorre em torno dos adivinhos que so consultados em casos de bruxaria e feitiaria. Eles dependem de drogas para fazerem suas revelaes (pa ngua) e sobre eles paira a suspeita, s vezes transformada em opinio, de que sejam eles mesmos bruxos (:170, 180, 186-192). Ou seja, entre os Azande, embora se parta do pressuposto de que bondade e maldade, justia e injustia sejam claramente distintos, os modos de se garantir essas distines produzem ambigidades crnicas.

Isso nos leva ao orculo de veneno, que tambm envolve o emprego de uma droga. Os Azande, no entanto, no se referem aos orculos como magia e no designam o veneno com o mesmo termo que aplicam s drogas. Parece haver a inteno de distinguir o orculo de veneno, compatvel com a posio que lhe atribuem de autoridade mxima em assuntos de bruxaria. Evans-Pritchard afirma que os Azande possuem uma f cega no orculo de veneno (:249), mas admite ao mesmo tempo que ele pode ser usado pelos indivduos para justificar seus projetos e interesses (:325). Estamos diante, como no caso do orculo de If usado na santeria cubana (Holbraad 2003), de uma situao em que infalibilidade e interpretao no se contrapem. Seja atravs do veneno administrado a galinhas, seja atravs do jogo de nozes, trata-se de relacionar acontecimentos com histrias pessoais, produzindo uma confluncia entre a resposta oracular e a demanda do consulente, de modo que cadeias causais fiquem articuladas a dados que esto fora delas. No h nisso nada de anti- ou de no-emprico, uma vez que o orculo contempla uma certa dimenso da realidade, que em certas situaes vista como absolutamente necessria. No caso dos Azande, importante lembrar que o orculo de veneno tambm a autoridade mxima em casos de adultrio (:254-5), algo de cuja existncia Evans-Pritchard jamais duvida. Mas como a bruxaria, o adultrio ocorre em geral de forma oculta, e os Azande preferem os veredictos do orculo s alegaes, sempre interessadas e divergentes, dos envolvidos.

Holbraad (2003) sugere que para compreendermos o orculo de If cubano a noo fundamental seria a de movimento, capaz de dar conta tanto das caractersticas do jogo e de sua interpretao, quanto de uma concepo de verdade dinmica e no representacionista. Creio que, para os Azande, a noo correspondente seria a de discriminao. Como vimos, Evans-Pritchard prefere conceber a explicao pela bruxaria como algo que suplementa a explicao emprica. Mas, em um certo sentido, tudo se passa como se a bruxaria delimitasse entre muitas possibilidades a que efetivamente provocou determinado infortnio. Assim, quando consideradas as cadeias causais entre os eventos, sobram hipteses; os orculos, ao mesmo tempo em que fazem intervir outra dimenso da realidade, definem os fatores determinantes para aquela pessoa naquela ocasio. A afinidade com uma concepo no representacionista da verdade se afirma, dessa vez, por conta de uma recusa ao princpio da arbitrariedade: as relaes entre os eventos so motivadas, sendo preciso descobrir, em cada situao, o encadeamento efetivo. preciso ainda notar que a noo de discriminao capta bem o procedimento oracular, baseado na eliminao sucessiva de possibilidades. Enfim, a discriminao uma interpretao plausvel para a aproximao sugerida pelos prprios azande: O orculo de veneno no se engana, o nosso papel. O que o papel para vocs o orculo de veneno para ns, pois vem na arte de escrever a fonte de conhecimento, a exatido, a memria dos acontecimentos e a predio do futuro dos europeus (:250-1).

Considerando o que vimos sobre o campo de ambigidades derivado das noes morais zande, pode-se compreender o sentido dessa operao de discriminao. Em cada vez que acionado, o orculo deliberando, lembremos, como um rei revalida as distines entre bom e mau, ao menos dentro de determinada situao e segundo o ponto de vista de um certo ator social. Se um bruxo pode no querer mal a ningum, por outro lado no basta a constatao de sentimentos reprovveis para que se aplique a algum a condenao prpria bruxaria. Evans-Pritchard observa que na vida cotidiana zande h amplo campo para os atritos (:121-23). Por conta disso, os impulsos no caridosos so constitutivos da existncia social. Ao invs de simplesmente estar a seu servio, a bruxaria funciona como um discriminador, permitindo a interpretao de certas tenses como motivao para infortnios e prescrevendo uma reao condizente com a sua gravidade. A malevolncia no importa enquanto a bruxaria no a respalde, constata Evans-Pritchard (:55), e s o orculo poder dizer se um sentimento negativo est associado com a bruxaria (:121). A noo de discriminao continua a valer para se entender como propriamente funciona o orculo de veneno. Note-se que, em contraste com o que fala sobre os adivinhos, quando se trata do orculo de veneno Evans-Pritchard desconsidera cuidadosamente a hiptese de manipulao dos resultados pelo operador (:302ss). Isso no nos impede de aplicar ao orculo um tipo de observao elaborada a propsito dos adivinhos: o consulente ajuda a encontrar as respostas para as suas perguntas. Diante do orculo de veneno, todas as circunstncias do caso em julgamento devem ser esclarecidas e apenas certos tipos e formas de perguntas so formulados. Mesmo assim, o prprio Evans-Pritchard que reconhece que cada sesso deve ser experimentalmente consistente (:313). H regras tcnicas para o nmero e o volume das doses de veneno. E vrios fatores sustentam a aleatoriedade do procedimento, de forma que os Azande podem confiar na imparcialidade das respostas do orculo (:303-306). Para garanti-lo, existe um sistema de aferio da eficcia do veneno (:282). Testes com as galinhas permitem saber se o veneno em uso bom ou mau. Um veneno que mata sempre considerado estpido, designao que sobrepe um sentido moral a uma propriedade lgica, ou seja, a capacidade de discriminao. Assim, o mesmo Evans-Pritchard que junta o orculo de veneno srie de noes msticas dos azande obrigado a reconhecer que ele opera pela produo de provas (:253, 254), tanto no seu sentido jurdico (:280), quanto na sua conotao cientfica (:313).

A maior confiabilidade atribuda ao orculo de veneno deve-se, em boa parte, ausncia de interferncia humana na revelao. O contraste dado pelo orculo de atrito, cujo funcionamento envolve diretamente uma agncia humana. Evans-Pritchard, como vimos, toma o cuidado de precisar que o veneno no concebido como pessoa (:300ss). Ao mesmo tempo, ele tambm no propriamente natureza, pois os Azande no confundem o veneno com a substncia de que feito, dada as transformaes introduzidas pela sua manipulao, e no lhe atribuem eficcia fora de um contexto ritual, que, alis, envolve a observncia de tabus (:295ss). Ou seja, sem ser humano ou natural, o veneno oracular enreda na mesma trama circunstncias humanas e agncias naturais. Algo parecido pode ser dito dos adivinhos, os quais, como j disse, devem seus poderes de revelao s drogas que ingerem, devidamente preparadas e consumidas. Na magia, as drogas s agem quando corretamente manipuladas e sob a observncia de tabus; mas depois de cumprido seu objetivo, devem ser destrudas para que cesse a sua eficcia (:413, 422ss). Sendo assim, a ngua uru, a pedra empregada para atrasar o sol, ganha um sentido que vai alm do efeito de apressar o passo do viajante. Se a humanidade est aberta interveno de agentes no humanos, a natureza pode ser igualmente mobilizada pelos agentes humanos.

Quando ouviu dos piaroa que a anta nosso av, Overing (1985) no buscou a compreenso dessa afirmao apenas na sociedade ou na linguagem. Foi procurar entender a cosmologia e a sua relao com os arranjos de parentesco, encontrando uma noo de temporalidade correspondente. Nos termos de Holbraad (2003): descreveu sua ontografia. Talvez devssemos fazer o mesmo diante da prtica zande de atrasar o sol. Se a resposta envolve tambm noes de temporalidade, de novo no significado do orculo de veneno que elas surgem com mais clareza. No seu emprego pelos Azande, nota Evans-Pritchard, o presente participa do futuro, de modo que a sade e a felicidade futuras do indivduo dependem das foras misteriosas que podem ser abordadas aqui e agora (:322) com o auxlio dos orculos. Estes, no entanto, mobilizam menos foras misteriosas do que processos de validao. Tal noo proposta por Hirst (1985) para refutar que os discursos sobre bruxaria na Europa moderna possam ser tratados meramente como fenmeno de credulidade. Processos especficos de validao decorrem das conseqncias lgicas dos discursos e remetem para um campo codificado de produo de evidncias. Ontografia e processos de validao ficam assim necessariamente associados para dar conta das formas particulares de existncia supostas em algo como a bruxaria zande seu caderno de encargos, como diria Latour (2002:86, 99).

5. Todos enredados

A referncia com que concluirei bvia: trata-se do comentrio que Alfred Gell (1996) dedicou a uma exposio ocorrida em 1988 no Centro de Arte Africana em Nova Iorque, na qual foi includa uma rede de caa zande. Um dos textos integrantes do catlogo da exposio, intitulada Arte / Artefato, foi elaborado por Arthur Danto, um renomado filsofo e crtico de arte vanguardista, elaborao que serve de base para muitos dos comentrios de Gell, este, por sua vez, interessado em uma antropologia da arte. Antes de passarmos a eles, importante notar que a rede zande foi colocada na seo Galeria de Arte Contempornea, seguindo as intenes da curadora (Susan Vogel, uma antroploga) de sugerir certas aproximaes. Gell esclarece: o que Vogel queria era romper a associao entre arte africana e arte moderna primitivista (...), sugerindo que objetos africanos mereciam uma apreciao em uma perspectiva mais ampla, incluindo o estilo dominante na Nova Iorque dos anos 80, ou seja, arte conceitual (:17-18). Feito o esclarecimento, torna-se fcil entender a sua meno neste texto, igualmente a propsito dos Azande e igualmente preocupado em fazer aproximaes.

Segundo Gell, Danto adota uma teoria interpretativista em sua concepo de arte. Nela, um objeto considerado artstico quando elaborado e apreciado dentro de uma interpretao que o articula a uma tradio, cujos caminhos, repletos de passagens, bifurcaes e curvas bruscas, se confundem com a histria da arte no Ocidente. Assim, depois do dadasmo e do surrealismo, depois dos ready-made de Duchamp, mesmo objetos triviais podem ser artsticos. Mas como considerar objetos elaborados em outras tradies, em outras culturas? Para Danto, possvel incorpor-los ao nosso conceito de arte desde que se atente para uma distino crucial, a qual operaria em contextos no ocidentais. De acordo com essa distino, alguns objetos so produzidos para expressar dimenses importantes de uma cosmologia, enquanto outros so produzidos como parte de um sistema tcnico. Em outras palavras, os objetos que incorporam significados podem ser acolhidos como arte; no o caso dos demais, indissociveis de uma finalidade utilitria. Baseado nisso, Danto discorda de Vogel, recusando rede zande, um instrumento de caa, um estatuto artstico.

Gell, ao contrrio, vai propor que devemos considerar a rede zande como uma obra de arte. Para comear, lembra que as atividades de caa em muitas culturas no ocidentais so elas mesmas parte de rituais e que seus objetos so a ritualmente concebidos o que mina a distino que Danto pretende ver entre o expressivo e o instrumental, entre a arte e o artefato. Os Azande certamente sustentariam o argumento de Gell, pois usam suas drogas para produzir efeitos em vrias atividades econmicas, inclusive a caa. A noo que adotam para explicar a ao da magia a mesma a que recorrem para explicar o que ocorre entre a semeadura e a germinao de uma planta (:426). Sobre as plantas s quais a magia no se aplica, argumentam: suas drogas so apenas a terra (:403). Gell, porm, que no se refere a Evans-Pritchard e no se preocupa em saber como os Azande usam sua rede, desenvolve mais um segundo ponto, construdo com a ajuda de uma exposio imaginria que rene armadilhas registradas por antroplogos entre vrios povos do mundo e obras de arte cuja concepo e interpretao esto pautadas tambm pela idia de armadilha. A armadilha, como idia e como objeto, tomada como uma elaborao complexa e irnica de um jogo ele mesmo intricado de intencionalidades, que envolve o caador e a sua vtima, e tambm o mundo em que vivem. Isso vale seja para o tubaro aprisionado em um tanque de formol, obra de Damien Hirst, seja para a armadilha dos pigmeus projetada especificamente para apanhar chimpanzs, considerando nesse caso a sua semelhana com o comportamento humano. Da a concluso: (...) essa evocao de intencionalidades complexas o que serve de fato para definir objetos de arte, e (...) adequadamente concebidas, armadilhas animais poderiam fazer evocar intuies complexas de ser, alteridade, relacionalidade (:29).

Na minha leitura, o mais interessante do texto de Gell no propriamente essa redefinio da arte, mas o modo como chega at ela, que reitera e elabora a sugesto de Vogel quando montou a exposio em que se podia ver a rede zande. Trata-se, como j se notou, de uma aproximao no caso, entre obras de arte conceituais feitas de objetos comuns e armadilhas animais que evocam filosofias inteiras. crucial perceber que essa aproximao depende de dois movimentos simtricos. No primeiro deles, acompanha-se o conjunto de concepes que permitiu que ns consegussemos enxergar arte na disposio de objetos triviais. O mundo no deixou de ser o mesmo quando Duchamp fez uma Fonte de um urinol? J o segundo movimento remete aos mundos outros criados com a indistino entre ritual e tcnica, o que permite, por exemplo, ver magia na ao de ferramentas. Pois esse mesmo o tema de um outro texto do mesmo Gell (1992), cujo ttulo e estilo evocam este que acabamos de acompanhar.

Nele, Gell est tambm ocupado em redefinir o que seja arte, atribuindo lugar central para a noo de transformao (fazer o que no do que e fazer o que do que no ) e para a produo de competncia (em jogos de analogias entre uma atividade artstica e uma atividade social), atravs das quais magia e tcnica so aproximadas. Mas igualmente possvel argumentar que o texto dissolve a arte em tcnica e magia, que se tornam ento os focos centrais. E, nesse caso, o que Gell faz tornar ambas indissociveis. Pois, de um certo ponto de vista, toda tcnica mgica: ela aparece, a quem a contempla ou a sofre, como evocando uma super agncia. Por outro lado, toda magia tcnica, pois ambas participam do mesmo clculo que torna a primeira mais vantajosa que a segunda. Com isso, a discusso sobre eficcia mgica passa por um deslocamento. Isso fica claro quando comparamos a abordagem de Gell (1992) com a de Tambiah (1968), comparao facilitada pelo fato de ambos analisarem os trobriandeses. Enquanto Tambiah enfoca a relao entre tcnica e magia organizando o seu sequenciamento dentro de uma mesma atividade, Gell ilumina a relao necessria entre ambas: a magia no s operao, mas a forma idealizada de produo; a tcnica (o que inclui a linguagem) no est separada, mas penetra a magia.

Esse, evidentemente, no o nico caminho para conciliar tcnica e magia. Outras tentativas incluem abordagens da cincia em ao e esforos para livrar a magia de conotaes primitivistas. Mas a conciliao, de todo modo, integra o prprio movimento de aproximao. Finalizo retornando ao texto sobre a rede de Vogel, para destacar uma passagem que corresponde ao ponto que privilegiei em meu comentrio: No que eu insistiria que uma armadilha africana e o ltimo trabalho de Damien Hirst sejam exemplos do mesmo tipo de coisa, mas apenas que cada uma capaz, no contexto de uma exposio, de dar sinergia ao / extrair definio do significado da outra (Gell 1992:32). Ao invs, porm, do significado e de suas armadilhas, talvez seja mais produtivo fazer as aproximaes recorrendo noo de rede (Latour 1983, 1994), buscando as associaes que diferentes situaes sociais (os Azande e quaisquer outras) produzem atravs de suas prticas e de suas categorias. Afinal, na exposio de Vogel (cf. Gell), o artefato zande no estava disposto no modo como entra em ao, mas no formato para transporte, uma rede enredada em si mesma. Feita para viajar.

NOTAS

Favor no citar sem consulta ao autor. Boa parte dos argumentos desse texto foi desenvolvida, com a participao dos alunos, em leituras e discusses durante o curso Cincia, religio, magia, oferecido no primeiro semestre de 2005 no PPGSA/IFCS/UFRJ.

1. Utilizei a verso integral, em traduo espanhola. Nos trechos que foram mantidos na verso condensada, transcrevo a traduo da edio brasileira. Nos demais, a traduo minha, procurando manter a terminologia adotada na edio brasileira.

2. Esses textos foram publicados no Bulletin of the Faculty of Arts (Universidade do Egito), mas seus argumentos reaparecem em Evans-Pritchard (1965).

3. O livro de Malinowski Coral Gardens and their Magic. Para um comentrio sobre a abordagem malinowskiana da magia, ver Tambiah (1968, 1990). Note-se ainda que o prprio Evans-Pritchard procurou aproximar as magias zande e trobriandesa em um artigo de 1929, republicado em Middleton (1967).

4. O termo sobrenatural no totalmente relegado; ele usado em algumas passagens na parte sobre magia.

5. Pode-se ver nisso um ponto de contato com a perspectiva adotada por E. Claverie (2003) em seu estudo sobre aparies marianas.

6. O texto das duas reportagens pode ser acessado em[1]e[2].

7. Ver ainda Winch (1987:201).

8. A convivncia na modernidade entre imanncia e transcendncia da sociedade pode ser tambm enfocada na perspectiva elaborada por Negri e Hardt (2001: 87-109).

9. Toulmin (1990) oferece outra via para se chegar a constatao semelhante, sugerindo que tambm a modernidade produz suas verses de cosmpolis, ou seja, de atrelamento entre ordem natural e ordem social.

10. O pargrafo foi construdo de modo a constituir uma parfrase da anlise de Latour sobre os modernos (:43).

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