[giselle gubernikoff] o aparato cinematográfico_artigo

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167 O a pa ra t oci n e ma to g ráf i c o 1 The C in e matograph A ppa ra tu s Gi s e l l e GUBE RNIKOFF Professora Livre-Docente da ECA-USP.

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    O aparato cinematogrfico1

    The Cinematograph Apparatus

    Giselle GUBERNIKOFF

    Professora Livre-Docente da ECA-USP.

  • COMUNICAO: VEREDAS Ano III - N 03 - Novembro, 2004

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    RESUMO

    O cinema clssico americano serviu e serve de modelo para asindstrias cinematogrficas de todo o mundo, no s na sua formade produo, como na sua forma de representao, que transcendeas fronteiras e povoa o nosso Imaginrio. Breve, convencionouuma srie de cdigos de linguagem, sintetizados em um verdadeiromanual do discurso narrativo, que so aceitos plenamente pelopblico em geral, e cujo objetivo principal criar umaverossimilhana com a realidade. O que se discute aqui o fato deque, desde o incio da histria do cinema como espetculo, numsculo em que vimos crescer o domnio da imagem, o cinemaamericano foi conivente com a ideologia patriarcalista, originandoa representao de uma imagem da mulher cativa dentro dessemesmo contexto. No cinema clssico isso se d atravs de cdigosque constituem a especificidade do cinema como forma deconstrues de significados. No cinema narrativo clssico essaorientao se d com o prprio desenvolvimento da narrativa. Estaidentificao um sistema complexo, norteado pela direo do olhar:o olhar da cmera, o olhar do espectador, e os olhares dospersonagens entre si dentro do filme, e que muitas vezes seconfundem com o olhar do espectador.

    PALAVRAS-CHAVE: filmes americanos; imaginrio; olhar .

    ABSTRACT

    The classical American movie used to serve and still nowadays doesas a pattern to the cinematographic industry all over the world. Notonly in its production form but also in its representation style whichgoes over the minds boundaries and fulfill our imaginary. Thepurpose of this research is the study of this kind of films that gotoward the look: the cam look; the addresser look; and the look ofthe characters (each other) into the film which, several times, getmisplaced with the addresser look.

    KEY WORDS: American films; imaginary; look

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    Cinema e Imaginrio

    O cinema clssico americano serviu e serve de modelo para as indstriascinematogrficas de todo o mundo, no s na sua forma de produo, como na suaforma de representao, que transcende as fronteiras e povoa o nosso Imaginrio.

    O Imaginrio a ordem que governa a experincia (ou o auto-reconhecimento errneo) que tem o sujeito de si mesmo com a totalidade.Assim,[...] o Imaginrio o lugar das operaes ideolgicas. (KUHN,1991, p. 61)

    O especfico cinematogrfico montagem, iluminao, composio deimagens, movimento etc., o que se convencionou chamar de linguagemcinematogrfica, elaborado, durante a realizao de um filme, com a finalidadede construir significados. A construo da imagem cenrios, figurinos e cenrio a composio da imagem, o movimento dentro do enquadramento dos atores podemgerar significados referentes espacialidade do enredo. O enquadramento juntocom a movimentao da cmera pode conter uma significao especial para anarrativa. A importncia da decupagem, aprofundando psicologicamente umpersonagem, ressaltando detalhes de expresso... E principalmente a montagemem continuidade (institucionalizada pelo cinema clssico), cuja funo construiruma espacialidade e temporalidade invisveis para o espectador, representando ummundo coerente, onde se passa uma impresso de realidade:

    O cinema particularmente propenso a dar essa aparncia denaturalidade, devido suas especficas qualidades significantes, emespecial pelo fato de que a imagem filmica, ao fundamentar-se no potencialdo registro da fotografia unido a projeo de uma imagem aparentementemvel, apresenta toda a aparncia de ser uma mensagem sem cdigo,uma duplicao no mediatizada do mundo real. (KUHN, 1991, p. 99)

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    Enfim, o cinema clssico convencionou uma srie de cdigos de linguagem,sintetizados em um verdadeiro manual do discurso narrativo, que so aceitosplenamente pelo pblico em geral, e cujo objetivo principal criar umaverossimilhana com a realidade. Para termos uma idia sobre at que ponto somoscolonizados pelo cinema americano, o primeiro sucesso de bilheteria do cinemabrasileiro, depois de uma poca de estagnao de nossa cinematografia, foi CarlotaJoaquina, de Carla Camurati, narrado em ingls por um personagem que no temnada que ver com o enredo central da estria.

    Por outro lado, os significantes cinematogrficos podem ou no ser especficosao cinema, j que envolvem outros veculos ou cdigos. A prpria recepo dofilme em salas especiais, j pressupe algo socialmente aceitvel.

    *

    uma linguagem no sentido semiolgico, j que os signos no filme soorganizados a partir de cdigos especficos de representao articulados em umdiscurso narrativo. Se ligarmos esse discurso abordagem psicanaltica e vermos ocinema como uma representao simblica de uma subjetividade (o autor, pela qualpassa uma intencionalidade), e suas formas de exibio e distribuio, chegaremos idia de produo de Imaginrio.

    Tanto a semiologia como a teoria psicanaltica, mais especificamente alacaniana, tm sido as premissas bsicas a que a nova teoria feminista de cinematem recorrido para explicar a significao da mulher dentro do cinema narrativoclssico e dentro de nossa cultura. Ambas as teorias negam mulher o lugar desujeito e negam tambm mulher a possibilidade como produtora cultural, pois tmno homem o nico termo de referncia. (LAURENTIS, 1978, p. 4)

    A produo de uma linguagem est ligada ao trabalho e ao modo de produonela envolvidos. No caso do cinema, a produo de significado se d atravs deuma pluralidade de discursos. Devido ao monoplio que exerceu e ainda exerce nomercado de exibio, o cinema americano, e mais especificamente o cinema clssicoamericano, aquele ligado a ideologias dos grandes estdios, produz significados

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    que circulam e que se encontram presentes em toda a nossa formao social.Portanto, o cinema clssico no s disseminou uma forma de produo de filmes,mas principalmente de valores e ideologias enraizados socialmente e enraizados nonvel do sujeito, num processo contnuo desde sua instalao. fundamentalconsiderar sua importncia para a formao ideolgica do sujeito e nas construessociais:

    O cinema foi estudado como um aparato da representao, uma mquinade imagem desenvolvida para construir imagens ou vises da realidadesocial e o lugar do espectador nele. Mas, ... como o cinema est diretamenteimplicado a produo e reproduo de significados, valores e ideologia,tanto na sociabilidade quanto na subjetividade, melhor entend-lo comouma prtica significante, um trabalho de semiose: um trabalho que produzefeitos de significao e de percepo, auto-imagem e posies subjetivaspara todos aqueles envolvidos, realizadores e espectadores; e, portanto,um processo semitico no qual o sujeito continuamente engajado,representado e inscrito na ideologia. (LAURENTIS, 1978, p. 37)

    O que se discute aqui o fato de que desde o incio da histria do cinemacomo espetculo, num sculo em que vimos crescer o domnio da imagem, o cinemaamericano foi conivente com a ideologia patriarcalista, originando a representaode uma imagem da mulher cativa dentro desse mesmo contexto.

    *

    Esse aparato cinematogrfico acrescenta significados imagem e cria termosde identificao, conduzindo o espectador at eles. No cinema clssico isso se datravs de cdigos que constituem a especificidade do cinema como forma deconstrues de significados. No cinema narrativo clssico essa orientao se dcom o prprio desenvolvimento da narrativa.

    Essa identificao um sistema complexo norteado pela direo do olhar.No cinema, temos trs tipos de olhar: o olhar da cmera, o olhar do espectador, eos olhares dos personagens entre si dentro do filme e que muitas vezes se confundemcom o olhar do espectador. o caso do campo e contra-campo, por exemplo,

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    onde muitas vezes o espectador se encontra no lugar de um dos personagens ou,mesmo uma cmera subjetiva, que substitui o ponto de vista de um deles. atravsdo arrevezamento de olhares que se estrutura o significado, criando-se uma ouvrias identificaes. Para Metz (1980), essa identificao dupla: a identificaonarcisstica e a identificao prpria da fase do espelho da teoria freudiana. Da oaparato cinematogrfico criar uma viso total e integral da unidade do ser. Oespectador reconstri o filme, interligando texto, elipses, ausncias atravs de umsistema de costura, tornando-se parte do texto do filme.

    Segundo Mulney, uma das principais tericas do movimento feminista, olugar do olhar que define o cinema (apud LAURENTIS, 1978); e onde se situaa representao da mulher como objeto e como suporte da representao do homem:

    Se a posio da mulher fixada pelo mecanismo mtico em um certomomento do espao - enredo, no qual o heri atravessa ou atravessapara um efeito similar, (isto) acontece no cinema narrativo pelo aparatodo olhar convergindo sobre a figura feminina. A mulher enquadradapelo olhar da cmera como um cone, ou um objeto do olhar: uma imagemfeita para ser olhada pelo espectador, cujo olhar arrevesado pelo olhardo personagem masculino. Este ltimo no s controla os eventos e aoda narrativa, mas o suporte do olhar do espectador. O protagonistamasculino, ento, a figura na paisagem[...] livre para comandar o palco...da iluso espacial no qual articula o olhar e cria a ao. (LAURENTIS,1978, p.139, cita Mulvey)

    E se o filme afeta o espectador atravs de uma produo subjetiva, ento elerealmente orienta o desejo.

    Segundo a teoria lacaniana, socialmente, o sujeito construdo atravs dalinguagem e das representaes. As diferentes posies da cmera e o aparato daimagem flmica criam sucessivos significados. O ser humano mutante, e, portanto,o ponto de articulao de vrias posies ideolgicas. (LAURENTIS, 1978,p.14) Enquanto o cinema sugere/ coloca significados, os indivduos elaboram essasposies ao nvel pessoal, em diferentes estgios de conscincia.

    O cinema dominante envolve a espectadora feminina, que orientada em seudesejo em direo a uma ordem social e posio do significado de uma imagem.Representada no cinema como o prprio local da sexualidade, objeto fetichizado,

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    especifica a mulher nessa ordem social a partir do qual se cria a identificao. Nossacultura difundiu a idia de que o corpo da mulher um espetculo a ser olhado, eque a mulher deve conhecer o seu lugar. A teoria feminista de cinema, que surge nofinal de 1960 e incio de 1970 em diante, denunciou o fato de se aceitar essa visoda mulher proposta pelo cinema americano. Se realmente, como coloca Levi-Strauss,as mulheres so valores de troca, mas ao mesmo tempo signos que circulam, garantidoa comunicao social, a representao da mulher a partir de sua sexualidade fezdela o cenrio flico da representao. Principalmente a noo semitica dalinguagem, que criou condies de explicar, dentro dos cdigos de representao,a construo da imagem da mulher.

    A abordagem lacaniana tambm utilizada como referncia para uma releiturada produo do cinema clssico devido a sua idia de formao do sujeito dentroda linguagem, fundamenta-se no conceito da diferena sexual. Atravs dessa releitura,o que se constatou foi que a mulher se encontra num lugar no representado, ausentede significao, e cativo enquanto sujeito histrico. (LAURENTIS, 1978, p.14)

    A abordagem psicanaltica de extrema importncia para a teoria do cinema,pois fez emergir, no nvel do sujeito, sua representao e significao simblica e doinconsciente.

    Foi a partir das definies de Freud do autoertico: narcisismo, voyeurismoe exibicionismo, fundamentado no desejo, - desejo de olhar o prprio corpo, desejode olhar um objeto externo, ou pela introduo de um novo sujeito que devolve aoexibicionista sua prpria imagem , que fundamentado todo o processo deidentificao que ocorre ao assistir-se um filme. O estado flmico, tem semelhanacom os processos psicanalticos da construo do sujeito, pois evoca essas estruturaspsquicas, ou seja, uma tendncia observao prazerosa. (KUHN, 1991, p.71)

    E, soma-se ao fato de que, para Freud, o inconsciente sede das tensesque constituem o sujeito forma-se por meio de significaes.

    Portanto, o cinema constri imagens e vises da realidade e insere oespectador nele, atravs de cdigos especficos, que reforam a verossimilhanacom o mundo real.

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    O processo de identificao do espectador o que o motiva a ir ao cinema; a partir de alguma forma de interesse e de uma promessa de prazer que o filmedesperta que faz com que ele volte sempre ao cinema. O filme tem que ter umcompromisso com a subjetividade do espectador e uma possibilidade deidentificao. Na construo do filme, essa possibilidade deve ir ao encontro dosinteresses do indivduo, ou de um grupo social. No desenvolvimento de sua histria,o cinema apresentou diferentes formas de identificao, caminhando juntamentecom as mudanas sociais.

    As invenes sucessivas do cinema falado, da cor, da televiso, etc. [...],na medida em que enriquecem a possibilidade de expresso do desejo,levaram o poder a reforar seu controle sobre o cinema, e mesmo a servir-se dele como instrumento privilegiado. interessante, sob este ponto devista, constatar a que ponto a televiso no somente no absorveu ocinema, como ainda foi obrigada a sujeitar-se frmula do filme, cujapotncia, por consequncia, nunca foi to grande. (GUATARRI, O Divdo Pobre, in Psicanlise e Cinema)

    O cinema narrativo clssico criou uma identificao com a mulher atravsde uma seduo em direo a sua feminilidade. Ao produzir imagens, o cinemaproduziu imaginao, criando afetividade em relao a essas imagens, significao,e posicionando o espectador em relao ao seu desejo.

    *

    Psicologicamente falando, atravs de uma srie de identificaes que osujeito construdo. Identificao o processo psicolgico pelo qual o sujeitoassimila um aspecto, propriedade ou atributo do outro e o transforma, total ouparcialmente, aps o modelo que o fornece (LAURENTIS, 1978, p.141, citaode Laplanche e J-B Polinis), o que bastante semelhante relao com o olhar nocinema. No processo de identificao no cinema, o espectador se encontra envolvidocomo sujeito, passando por um processo de transformao.

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    Segundo Tereza de Laurentis (1978), o sistema do olhar no cinema estarticulado por duas formas de registro: o narrativo e o visual. A mulher se identificacom a imagem de feminilidade proposta pelo filme, governada pelo mecanismomtico de sua prpria histria. Isso quer dizer que cada um vai ao cinema com suaprpria histria, de sua prpria subjetividade, e que se identifica em relao aofilme impulsionado pelo desejo.

    Para a psicanlise, o sujeito inerentemente bissexual; e Masculino e Feminino,mais do que qualidades ou atributos, so posies no processo simblico deauto-representao. Ao aceitar a implicao ideolgica de um discurso, reconhece-se que o patriarcalismo trabalhou nas estruturas do discurso e da narrao, facilmentereconhecveis pelos estudos das tericas feministas.6363 A principal referncia paraessa abordagem do papel da mulher na histria do cinema americano o livro deMolly Haskel, From Reverence to Rape (de 1975).

    Feminilidade tornou-se sinnimo de atrao sexual, e, portanto, disponibilidadepara os homens. A mulher interiorizou os conceitos divulgados pelo cinema clssicocomo se fossem sua prpria identidade.

    O Texto no Cinema

    Outra questo abordada pelas feministas na teoria do cinema, em relao narrativa, baseada na anlise estrutural da narrativa de Propp e Barthes, e quetem reflexos, principalmente, sobre a construo do personagem e do seu papelsocial. Na verdade, segundo Kuhn, esta anlise textual da figura feminina nos filmesdo cinema americano, do perodo do star system, foi feita para se ter umacompreenso dos modos especficos que funciona o sexismo enquanto ideologia.(KUHN, 1991, p.109)

    Em funo de todo o aparto colocado na produo de filmes, cria-se umespao narrativo coerente que entretm o espectador atravs da viso. Comocolocamos anteriormente, o sujeito orientado durante a projeo pelodesenvolvimento da narrativa. O estado flmico remete, atravs da repetiomimtica de uma mesma histria, regresso como essncia do prazer, como uma

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    forma de antecipao da resoluo de uma histria anteriormente conhecida, ecomo forma de uma reintegrao social.

    No cinema narrativo clssico, as histrias ocorrem num tempoa-histrico:

    Sem dvida necessrio, no caso dos Estados Unidos, sublinhar aimportncia de seu carter a-histrico (ou transistrico) : o tempo no qualse situa o heri das comdias musicais relembram aqueles dos contos, deCendrillon a Peau dAne: porque ele se esfora aqui para manter de forada histria e de seus constrangimentos, um imenso pblico que entende,persistindo, (assim), no espao e na durao o sonho americano. Econtinuou o sucesso, at uma poca bastante recente, como a maiorparte dos heris dos westerns, que tm por misso fazer afastar-se daHistria em direo ao Mito, de converter o acontecimento em fbula.Tambm se repete, at a eternidade, a luta do homem branco contra osndios, o reencontro de Ado e Eva, o ato reparador do justiceiro, facesas inevitveis injustias da sociedade real.[...] (ASTRE, 1976, p. 19)

    A anlise estrutural da narrativa

    O modelo o texto realista clssico, organizado sobre uma estruturanarrativa que conduz o enredo por meio de significantes especficos. Existe umadiferena entre o argumento (que cronolgico) e a trama (que a forma em que seestrutura a ao). Enfim, a estrutura da narrativa so os fatos da narrao e suaordenao na trama. Para os formalistas, as narrativas so expresses de estruturassubjacentes limitadas em nmero. O movimento da trama se desloca de um estadode equilbrio, que quebrado por um acontecimento ou enigma, at um retorno aoequilbrio, que a sua resoluo e encerramento.

    Nesse caso, a mulher mais uma das estruturas que rege o argumento, numgrupo de outras estruturas narrativas. Dentro dessa perspectiva, o que se percebe que a estrutura- mulher dentro da trama, est sempre associada a uma funonarrativa ligada a algum elemento masculino. Se h alguma ruptura com o seu papeldurante o desenvolvimento, no final ela volta sempre para seu devido lugar social/

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    familiar. Caso isso no acontea no transcorrer do enredo, ser castigada por suatransgresso.

    Em uma narrativa, o discurso sempre se origina em algum, e pode ser feitoem dois nveis: o histrico ou o discursivo. O histrico no possui um narradorvisvel e, por isso mesmo, acredita-se que ele no exista, e os fatos chegam a nscomo se fossem verdadeiros. O discursivo j pressupe um enunciador, uma fonteidentificvel ou um ponto de vista assumido. Por exemplo: o personagem CidadoKane reconstrudo a partir de cinco pontos de vista narrativos diferentes, ouseja, a partir de depoimentos de pessoas relacionadas a ele durante a sua vida.

    Como no cinema clssico utilizado constantemente o nvel histrico,o espectador recebe as imagens como se fossem verdades, o que permite a instalaode uma ideologia mais facilmente.

    Dentro dessa perspectiva, existem trs maneiras de se contar uma histria,referentes aos trs pontos de vista narrativos, na argumentao de Todorov:

    Quando o narrador e o espectador sabem mais que os personagens (oponto de vista desde atrs)

    Quando o narrador e o espectador sabem tanto quanto os personagens (oponto de vista com)

    Quando o narrador e o espectador sabem menos que os personagens (oponto de vista externo) (KUHN, 1991, p. 61)

    Um sintoma bastante ntido da forma com que o star system representasuas personagens femininas encontra-se em Gilda, que imortalizou a atriz RitaHaywoorth, mas que narrado em off pelo personagem masculino principal datrama.

    No cinema, texto e aparato so uma coisa s. a partir da interconexodos dois que se cria o significado cinematogrfico. O que se percebe que o discurso reconstrudo na interao com o sujeito receptor, que vai ao cinema com suaprpria bagagem cultural. O espectador, assim, interage com o filme completando-o nas suas elipses e ausncias ou mesmo usurpando o ponto de vista do narradorna cmera subjetiva ou no campo e contra-campo. Ele reconstri o seu prpriofilme, atravs de um processo de identificao com aquilo que acontece na tela.

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    No cinema clssico, a posio da mulher na tela o de objeto do olhar, tantopara o espectador, como para os protagonistas do filme. H uma explorao dePrimeiros Planos da figura feminina, e seu prprio corpo proposto pela cmeracomo espetculo. Por outro lado, dentro do enredo, nunca surge como aprotagonista, e sim como mais um dos acontecimentos dentre outros que cercam opersonagem principal. Faz parte do cenrio deste protagonista, e assim que percebida pelo pblico. A ansiedade da castrao, dentro do histrico da famliapatriarcal e da teoria psicanaltica, faz com que se anulem os aspectos castradoresda imagem flmica da mulher, atravs do recalcamento de seu prprio papel sociale da fetichizao:

    Os roteiros, reiteradamente masoquistas, efetivamente imobilizam aespectadora feminina. O prazer lhe recusado, naquela identificaoimaginria, que [...] funciona para os homens como uma repetio da fasedo espelho. Os heris masculinos idealizados na tela devolvem aoespectador masculino seu ego mais perfeito espelhado, junto com umasensao de domnio e controle. Para a mulher, ao contrrio, so dadasapenas figuras vitimizadas e impotentes que, longe de serem perfeitas,ainda reforam um sentimento bsico preexistente de inutilidade[....](KAPLAN, 1995, p. 50)

    A teoria Lacania diz que, sexualmente, se vive uma relao especfica com alinguagem, o que vai ao encontro das formaes sociais do patriarcalismo. Devidoa abordagem feita pelo cinema narrativo clssico da figura da mulher, pode-se concluirque sua representao fruto do patriarcalismo, pois toma como nica subjetividadepossvel a masculina.

    Com a incorporao dos elementos do realismo construo da narrativaclssica, ou seja, com a impresso de realidade dada, o espectador acredita que ofilme seja o mundo real. A linguagem cinematogrfica, apoiada numa srie decodificaes para a produo de significados (montagem em continuidade,enquadramentos etc.), e que envolvem constantemente o espectador, transforma-os em consumidores passveis, identificando-os com o protagonista da ao. Todoo operacional cinematogrfico juntamente com a fico ajuda a reforar essaidentificao. Com a verossimilhana ao mundo real daquilo que projetado na

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    tela, suspende-se a incredibilidade. Aquilo que se v passa a ser a verdade,independentemente de ser ou no documental. Mesmo no documentrio, h umamanipulao do real.

    NOTAS

    1 Captulo do Texto de Livre-Docncia Imagem e Seduo.2 A principal referncia para essa abordagem do papel da mulher na histria do cinemaamericano o livro de Molly Haskel, From Reverence to Rape, (de 1975).

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    Giselle GUBERNIKOFF O Aparato Cinematogrfico

    DaltonTexto digitadoReferncia:GUBERNIKOFF, Giselle. O aparato cinematogrfico. Revista Comunicao: Veredas. Ano III - N 03 - Nov. 2004, p.167-181.