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UFSM

Dissertao de Mestrado

EM BUSCA DA COMPLEXA SIMPLICIDADE: O CONSUMO NO DISCURSO JORNALSTICO DA REVISTA VIDA SIMPLES

Gisele Dotto Reginato

PPGCOM

Santa Maria, RS, Brasil

2011

GISELE DOTTO REGINATO

EM BUSCA DA COMPLEXA SIMPLICIDADE: O CONSUMO NO DISCURSO JORNALSTICO DA REVISTA VIDA SIMPLES

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao, linha de pesquisa Mdia e Identidades Contemporneas, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), para a obteno do grau de Mestre em Comunicao.

Orientadora: Prof. Dra. Mrcia Franz Amaral

Santa Maria, RS, Brasil

2011

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e Humanas Programa de Ps-Graduao em Comunicao rea de concentrao: Comunicao Miditica

A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a dissertao de Mestrado

EM BUSCA DA COMPLEXA SIMPLICIDADE: O CONSUMO NO DISCURSO JORNALSTICO DA REVISTA VIDA SIMPLES

elaborada por Gisele Dotto Reginato

Como requisito para obteno do grau de Mestre em Comunicao

COMISSO EXAMINADORA:

Mrcia Franz Amaral, Dra. (UFSM) (Presidente/Orientadora) Caciane Souza de Medeiros, Dra. (UFSM)

Marcia Benetti Machado, Dra. (UFRGS)

Santa Maria, 14 de maro de 2011.

Nunca sei ao certo se sou um menino de dvidas ou um homem de f certezas o vento leva s dvidas ficam de p. Paulo Leminski

Dedico este trabalho a todos os jornalistas e pesquisadores que no rejeitam suas dvidas e no cansam de transform-las em fonte de reflexes visando um jornalismo (e um tempo) mais crtico e mais humano.

AGRADECIMENTOS Diante da complexidade de colocar ordem no caos dos discursos, a nica certeza completa dos anos de mestrado a de que o sentido estava na convivncia com pessoas especiais. Agradeo a meus pais, Arlete e Luiz Flvio, por sempre valorizarem a educao, o dilogo e a formao de carter. Foi para eles que, em inmeras reunies do colgio, os professores disseram que eu no cansava de fazer perguntas; e foram meus pais que, incansavelmente, me ajudaram a encontrar muitas respostas. Nunca conseguirei agradecer suficientemente a eles pelo modo especial com que me ensinaram a aprender. Muito obrigada ao Luiz Gustavo, de quem sempre quero levar a inteligncia, o bom humor, o interesse e a competncia; esteve comigo em todos os projetos da minha vida e , sem dvida, o melhor irmo do mundo. Ao Alexandre, agradeo por me ajudar nas dvidas mnimas sobre computador e nas mximas crises sobre o meu trabalho e por ter sido meu norte sempre que me desnorteei com teorias e anlises. Muito obrigada pelo companheirismo, apoio e incentivo constantes, mesmo quando o volume de trabalho roubou nosso tempo juntos. Agradeo v Marlene e tia Lige, que tornaram os meus anos em Santa Maria infinitamente mais simples e cheios de amor. Vocs sempre sero minha maior saudade. minha orientadora, Dra. Mrcia Franz Amaral - a culpada pelo meu ingresso no mestrado e por eu ter tomado gosto pela vida acadmica, agradeo o incentivo, o olhar atento ao meu texto, o sorriso alentador e os e-mails eficientes. Com ela dividi minhas ansiedades e nela encontrei a serenidade e a competncia de que tanto precisei. Agradeo Laura Wottrich e Renata Crdova pela amizade no vai-e-vem de sentimentos ao longo desses dois anos e pelas interminveis (e teraputicas) conversas tambm sobre comunicao. Para elas liguei quando encontrei os sentidos nos meus textos e a elas recorri quando tudo parecia sem sentido. Obrigada de corao a todos os meus amigos por, cada um a seu modo, terem me incentivado a superar as dificuldades e terem sido uma companhia alegre na hora de comemorar os resultados positivos. Um agradecimento especial jornalista-amiga-irm Francine Cadore e aos amigos da 34 turma de Jornalismo da UFSM, pela unio que vai atravessar todos os anos e todas as distncias. Agradeo UFSM pela excelente possibilidade de formao, na graduao e no mestrado; aos professores, funcionrios e colegas do Poscom, pela busca contnua de aperfeioamento; aos colegas do Grupo de Estudos em Jornalismo, pelas (des)construes jornalsticas; e Capes, pela bolsa que viabilizou a dedicao integral pesquisa. Agradeo Dra. Beatriz Marocco pelas contribuies no exame de qualificao. Dra. Marcia Benetti, muito obrigada pelas sugestes na qualificao - que esto de uma forma ou de outra abarcadas neste trabalho - e por ter me dado a oportunidade de aprender mais sobre discurso na banca final. Dra. Caciane de Medeiros, agradeo pelo modo inspirador com que fala sobre discurso e por participar do momento de concluso desta jornada.

Por isso escrevo e escreverei: para instigar o meu leitor imaginrio substituto dos amigos imaginrios de infncia? a buscar em si e compartir comigo tantas inquietaes quanto ao que estamos fazendo com o tempo que nos dado. Lya Luft

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e Humanas Departamento de Cincias da Comunicao Programa de Ps-Graduao em Comunicao Ttulo: Em busca da complexa simplicidade: o consumo no discurso jornalstico da revista Vida Simples Autor: Gisele Dotto Reginato Orientador: Mrcia Franz Amaral RESUMO

Neste trabalho, analisamos a revista Vida Simples, da Editora Abril, publicao que se prope a divulgar um estilo de vida alternativo e mais simples. Entretanto, essa proposio tambm passa pela temtica do consumo e mais, articula as dimenses do individual e do coletivo num projeto que tem por base a reflexividade. Portanto, o objetivo geral desta dissertao compreender a articulao que se d entre simplicidade e consumo no discurso da revista Vida Simples. Para tanto, o mtodo adotado a Anlise de Discurso de linha francesa (AD), construo terico-metodolgica que apresenta o discurso como produtor de sentidos, a partir dos quais o sujeito significa a si mesmo e ao outro. Na anlise, encontramos 314 sequncias discursivas, recortadas de 114 textos, em que as reiteraes de sentido so agrupadas em oito famlias parafrsticas. Essas famlias parafrsticas indicam a constituio de trs formaes discursivas, que demonstram que os discursos da Vida Simples esto tensionados entre a incitao a um consumo individual, a um consumo que considera o ambiental e a um consumo politizado. Ou seja, as trs FDs representam formas de compreenso da simplicidade e do consumo mais ou menos politizadas, havendo disputas ideolgicas que se materializam no discurso. A partir da identificao dos sentidos, verificamos os aspectos socioculturais que constituem e atravessam esse discurso e contextualizamos os sentidos localizados na revista, inserindo o debate sobre a reflexividade e o indivduo na contemporaneidade. Atravs da anlise das reiteraes de sentido, e especialmente dos deslizamentos e entrecruzamento desses sentidos, entendemos haver uma formao ideolgica hegemnica na revista Vida Simples, que se ancora numa ideologia dominante na nossa poca: a de que o indivduo a medida de tudo. A temtica da dissertao pertinente linha de pesquisa Mdia e Identidades Contemporneas, do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFSM, visto que se trata de um estudo sobre o papel da Comunicao Miditica na construo de dinmicas sociais, e vice-versa. Palavras-chave: jornalismo; discurso; pedaggico; consumo; simplicidade; revista.

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e Humanas Departamento de Cincias da Comunicao Programa de Ps-Graduao em Comunicao Title: Searching the complex simplicity: consumption in journalistic discourse of Vida Simples magazine Author: Gisele Dotto Reginato Adviser: Mrcia Franz Amaral ABSTRACT

In this study, we analyse Vida Simples magazine - published monthly by Abril company -, a publication that intends to show an alternative and simpler lifestyle. However, this proposal also involves the issue of consumption and further articulates the dimensions of the individual and the collective in a project that is based on reflexivity. Therefore, the aim of this research is to understand the relationship between consumption and simplicity in the discourse of Vida Simples magazine. To this end, the method used is Discourse Analysis, a theoretical and methodological construction that presents speech as a producer of meanings, from which the subject means himself and others. In the analysis, we found 314 discursive sequences cut of 114 texts, where the reiterations of meaning are grouped into eight paraphrastic families. These paraphrastic families indicate the composition of three discursive formations, which demonstrate that the discourses of Vida Simples magazine are tensioned between the encouragement of individual consumption, of one that considers the environmental and of consumption politicized. That is, all three discursive formations represent ways more or less politicized of understanding the simplicity and consumption, with ideological disputes that are materialized in discourse. Based on the identification of meanings, we understand the ideological formations that discursive formations are linked to, we found the sociocultural aspects that constitute the discourse and we contextualize the meanings found in the magazine, entering the debate on reflexivity and on the individual in contemporary society. Through analysis of the reiterations of sense, especially landslides and interweaving of these senses, we understand there is a hegemonic ideological formation in Vida Simples magazine, which is based on a dominant ideology of our time: that the individual is the measure of everything. The theme of this work is relevant to the research line, Identities Contemporary Media, of the Graduate Program in Communication from UFSM, since it is a study on the role of mediated communication in the construction of social dynamics, and vice versa. Keywords: journalism; discourse; pedagogical; consumption; simplicity; magazine.

LISTA DE FIGURAS Figura 1: Capa Real Simple Dez 2007 ................................................................................ 58 Figura 2: Capa Real Simple Jan 2010 ................................................................................. 58 Figura 3: Capa Ago 2002 .................................................................................................... 61 Figura 4: Capa Nov 2002 .................................................................................................... 61 Figura 5: Capa Set 2003 ...................................................................................................... 62 Figura 6: Capa Nov 2003 .................................................................................................... 62 Figura 7: Capa Dez 2003 ..................................................................................................... 62 Figura 8: Capa Jan 2005 ...................................................................................................... 63 Figura 9: Capa Set 2006 ...................................................................................................... 63 Figura 10: Capa Mar 2008 ................................................................................................... 63 Figura 11: Capa Fev 2007 ................................................................................................... 73 Figura 12: Campanha da Philips........................................................................................ 100 Figura 13: Campanha 1 Citibank ....................................................................................... 102 Figura 14: Campanha 2 Citibank ....................................................................................... 103 Figura 15: Campanha 3 Citibank ....................................................................................... 103 Figura 16: Campanha Banco do Brasil .............................................................................. 104 Figura 17: Agenda 21 Empresarial BB.............................................................................. 104

LISTA DE TABELAS Tabela 1: Divises da 1 fase da revista .............................................................................. 62 Tabela 2: Resumo da anlise ............................................................................................. 112 Tabela 3: O consumo mapeado em Vida Simples ............................................................. 154

SUMRIO INTRODUO ................................................................................................................. 12 1 O JORNALISMO (IN)FORMA: DISCURSO PEDAGGICO, REVISTAS E SEGMENTAO ............................................................................................................. 23 1.1 O JORNALISMO COMO ESPAO SOCIAL DE PRODUO DE SIGNIFICADOS 23 1.1.1 O acontecimento jornalstico e o contrato de comunicao ............................ 25 1.2 JORNALISMO DE REVISTA .................................................................................. 27 1.2.1 Revistas especializadas .................................................................................... 28 1.3 A REVISTA REVISTANDO O LEITOR: A SEGMENTAO DO PBLICO ........ 30 1.4 DISPOSITIVO PEDAGGICO ............................................................................... 32 1.4.1 O discurso pedaggico do jornalismo de revista ......................................... 35 1.5 O CONTEXTO DA SOCIEDADE CONTEMPORNEA ........................................ 38 1.5.1 Os indivduos e o individualismo .................................................................... 40 1.5.2 O que fazer e como viver: a privatizao do bem-estar .................................. 43 1.5.3 Leia e fique de acordo com o seu tempo ......................................................... 45 2 COMO VIVER E ESTAR: CONSUMO E ESTILOS DE VIDA NA CONTEMPORANEIDADE ............................................................................................. 47 2.1 CONSUMO: CONCEITOS E APROPRIAES .................................................... 47 2.1.1 O consumo como forma de pertencimento ...................................................... 50 2.2 ESTILO DE VIDA: QUEM SER E COMO SER NO MUNDO ............................... 52 2.2.1 Estilo de vida e distino ................................................................................. 55 2.3 O ESTILO DE VIDA SIMPLES ............................................................................... 57 2.3.1 Um projeto editorial em busca da beleza e da gentileza.................................. 61 2.3.2 Estrutura de Vida Simples ............................................................................... 64 2.3.3 Ilha de simplicidade em um mar de complexidade ......................................... 69 2.3.4 Vida Simples e o contemporneo .................................................................... 71 2.3.5 O consumo na (e para a) Vida Simples: prvias .............................................. 72 3 DIZER E INTERPRETAR: MOVIMENTO DE CONSTRUO DE SENTIDOS SOBRE O CONSUMO NA REVISTA VIDA SIMPLES ......................... 76 3.1 ANLISE DE DISCURSO: AGENCIAMENTOS TERICOS ................................ 76 3.1.1 Formaes discursivas e ideolgicas: o necessrio imbricamento .................. 79 3.1.2 As Formaes Imaginrias e o jogo de imagens trabalhado no discurso ........ 83 3.1.3 Discurso: relaes de sentido e de poder ......................................................... 86 3.1.4 Explicaes das implicaes analticas ........................................................... 88 3.2 A SIMPLICIDADE: OUTRAS MEMRIAS DISCURSIVAS................................... 89 3.2.1 A vida (desnecessariamente) complexa ........................................................... 90 3.2.2 A simplicidade em suas diferentes maneiras de significar .............................. 94 3.2.3 Os sentidos anteriores da simplicidade ........................................................ 96 3.2.4 O jeito contemporneo de ser simples ............................................................. 98

3.2.5

O negcio ser verde ................................................................................. 100

4 FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DA VIDA SIMPLES: MOBILIZAO DOS CONCEITOS .......................................................................................................... 108 4.1 IDENTIFICAO DOS SENTIDOS ..................................................................... 108 4.2 CONSTRUO TERICO-METODOLGICA ................................................... 110 4.3 FD1: VISO INDIVIDUAL DO CONSUMO ........................................................ 113 4.3.1 FP1: Consumir sustentabilidade pelo estilo e pelo bem-estar ....................... 114 4.3.2 FP2: Consumir tendncias ............................................................................. 119 4.3.3 FP3: Escolha o estilo de vida que quer consumir .......................................... 124 4.3.4 FP4: Consumir o que traz vantagens econmicas individuais ...................... 130 4.4 FD2: VISO AMBIENTAL DO CONSUMO ......................................................... 131 4.4.1 FP5: Consumir pensando no meio ambiente ................................................. 133 4.4.2 FP6: Gente (in)comum .................................................................................. 141 4.5 FD3: VISO POLITIZADA DO CONSUMO ........................................................ 143 4.5.1 FP7: Projetos sustentveis ............................................................................. 145 4.5.2 FP8: Criticando o consumo ........................................................................... 148 5 TRAJETOS DE SENTIDOS E AS MARGENS DO DISCURSO: TENSIONAMENTOS E CRUZAMENTOS DA ANLISE ....................................... 152 5.1 DISCURSO E IDEOLOGIA: O JOGO DOS SENTIDOS ..................................... 152 5.1.1 Sentidos, muito aqum e alm da Vida Simples ........................................... 155 5.2 AS MONTAGENS DISCURSIVAS DA REVISTA .................................................. 159 5.3 ENTRE A POLTICA DO EU E O ESPAO PBLICO ....................................... 161 5.3.1 Pagando bem, consumo sustentvel tem ....................................................... 165 5.4 OS SENTIDOS CRISTALIZADOS E OS SENTIDOS POSSVEIS ........................ 167 CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 171 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................... 176 APNDICES .................................................................................................................... 191

INTRODUOO mundo vai girando Cada vez mais veloz A gente espera do mundo E o mundo espera de ns Um pouco mais de pacincia... Lenine Os versos do cantor Lenine, na msica Pacincia, tratam de uma caracterstica bem contempornea: a pressa. Essa palavra representa as exigncias que a sociedade faz s pessoas de ganhar mais, fazer tudo mais rpido e exercer muitos papis ao mesmo tempo, o que complexifica o cotidiano. Exigncias de um ritmo acelerado, em que tudo se usa muito depressa, tudo se substitui muito depressa, canes, filmes, geladeiras, amores, carros (MORIN, 1997, p. 177). Para burlar a pressa, os valores predominantes e a urgncia imposta pelo ritmo de vida nas cidades, essencial ter pacincia, ter um pouco mais de calma. Diante disso, torna-se recorrente a busca por simplificar o cotidiano e, acompanhando esse movimento, podemos observar o grande nmero de pautas jornalsticas visando a tratar das complicaes do nosso tempo. Atualmente, o bem-estar se tornou um discurso que atravessa veculos de diversos formatos, especialmente as revistas. Vida Simples, Viva mais!, Viver bem, Bons Fluidos, Ser Mais. O enfoque das pautas na espiritualidade, no autoconhecimento, no equilbrio, em como buscar resgatar ou manter - a felicidade plena. As revistas se apresentam como lugares em que os leitores iro encontrar informaes teis sobre como viver mais e melhor. Portanto, as pessoas devem comprar as publicaes no para se informar, mas sim para se enquadrar (PRADO, 2009b), para saber como viver neste mundo complicado e como estar in ou out do contexto contemporneo. Tais abordagens criam a necessidade de sabermos aquilo que no sabemos e o como, amplamente verificado nas formas jornalsticas que enunciam as maneiras de bem-viver, um indicador desse pacto firmado com o leitor. Benetti (2008b) entende que o jornalismo um discurso comprometido com o contemporneo - no apenas como lugar do atual, mas tambm e especialmente como lugar de objetivaes sobre o que importa saber agora e como deve agir o sujeito que est de 12

acordo com seu tempo (p. 1, grifos da autora). O jornalismo, ento, como um fenmeno discursivo, tem o poder de dizer, de acionar determinados discursos e de faz-los circular com bastante fora. Ao criar parmetros de estilo e de normalidade, o jornalismo adquire tom disciplinar atravs de uma linguagem performativa, fornecendo aos leitores mapas cognitivos para orientao social nos vrios espaos identitrios de pertencimento (PRADO, 2009a). Antes de explicar a problemtica desta pesquisa, utilizo esse espao introdutrio para resgatar, na primeira pessoa do singular, desde onde eu falo. A escolha por analisar o discurso jornalstico comprometido com o contemporneo surge de motivao e ansiedade por compreender os sentidos do jornalismo ao ofertar discursos que prometem artefatos para que o pblico busque simplificar seu cotidiano, busque a satisfao plena, busque a sintonia com o ambiente. E, atravs do discurso jornalstico, me instiga descobrir como as tenses e contradies que envolvem esse tema so conformadas socialmente. Minha curiosidade por analisar esse movimento se renova a cada ida em uma banca de revista, quando fico a observar as capas, numa constante busca pelos sentidos reiterados. O que parece nortear as publicaes, independente do enfoque, a utilizao de um aparato discursivo que atraia o leitor a partir da oferta de procedimentos que iro ajud-lo a encontrar a certeza de suas escolhas, a completude no seu estado de ser, saber e ter. E, apesar de a certeza e a completude nunca serem atingidas, difcil encontrar algum hoje em dia que no tenha, ao menos, o desejo de alcan-las. Afinal, como diz Bauman (2001), a partir de Albert Camus, as pessoas de nosso tempo sofrem por no serem capazes de possuir o mundo de maneira suficientemente completa. nessa promessa de fornecer a completude que as capas se baseiam e ensinam como viver mais e melhor, como educar os filhos, como ser autossustentvel, como estar de acordo com esse tempo em que vivemos. As publicaes encontram um nicho de pessoas ansiosas por reduzir a ansiedade e por ser algo que ainda no so. E eu, como sujeito desse contexto, tambm sou interpelada pelos discursos que oferecem convocaes narrativas para que o enunciatrio se transforme rumo a uma melhor situao de ser, de ter, de saber e de poder mais (PRADO, 2009b) e decidi, assim, me debruar sob esse discurso para compreend-lo. Ao mesmo tempo (afinal, como todo sujeito estou cindida em muitos papis1), falo do lugar de uma jornalista interessada em problematizar o ciclo em que a mdia1

Castells (2006) faz uma diferenciao entre identidade e papis. Identidade seria, para ele, o processo de construo de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais

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re(introduz) novos sentidos sociedade, contribuindo para a construo de imagens da realidade social, ao mesmo tempo em que sofre os efeitos da apreenso dos sentidos, do momento em que o discurso consumido, traduzido e articulado em nova prtica social. Pretendo compreender o papel do jornalismo diante de um segmento de mercado que busca uma vida mais simples e tambm os tensionamentos que circunscrevem essa temtica. Falo do lugar de uma jornalista interessada no compromisso social da profisso e preocupada com os rumos que o individualismo est tomando na sociedade e que vem estimulando pautas jornalsticas que tratam o sujeito apenas como consumidor e no como cidado. Quando interpreto, interpreto com sentidos j elaborados, sem nem saber como eles se formaram (ou se naturalizaram) em mim. Assim, o espao de onde falo toma forma, lentamente, no meu discurso, que est sendo e continuar a ser - lapidado: por ser discurso, ele no comea aqui e tambm no aqui que termina. Portanto, ao escrever, no estou isolada do meio em que vivo, das crenas que possuo, da cultura em que fui tecida, dos meus desejos e das minhas predisposies. No deixo de estar prescrita pela minha ideologia, ou seja, pelas ideias e representaes que indicam aos sujeitos o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar, o que devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer (CHAUI, 2001). No sou uma figura a-histrica e nem posso controlar o percurso do meu texto, o qual no pretende mostrar todos os sentidos possveis o que, alis, no pode ser pretenso de nenhum texto. No sou independente e destituda da realidade da qual escrevo. Formulaes feitas e esquecidas determinam o que eu digo, porque para que minhas palavras tenham sentido preciso que elas j faam sentido. Da mesma forma, os sujeitos a quem este discurso se dirige tambm no podero se desvincular, no ato da leitura e interpretao, das suas condies scio-histricas e ideolgicas. preciso que desfaamos essas iluses do texto transparente (ORLANDI, 1993, p. 11) para poder, de fato, falar em discurso. Meu discurso , pois, regulado por esses procedimentos, at porque o lugar de onde falo me assujeita e, como h representaes sociais de determinados lugares, no me permitido que eu diga algo que no se espera de algum que ocupa a posio-jornalista e a posiopesquisadora. Ao iniciar o processo de conhecimento dessas regulaes discursivas, comecei a ser interpelada pelo discurso da AD. Esse discurso dava conta da minha convico de que ointer-relacionados. O conjunto de papis (por exemplo, ser trabalhador, me, vizinho, militante, sindicalista, jogador de basquete, frequentador de determinada igreja e fumante, ao mesmo tempo) definido por normas estruturadas pelas instituies e organizaes da sociedade.

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sentido sempre pode ser outro e, ento, se outras palavras tivessem sido escolhidas para esta dissertao e o contexto de formulao do discurso fosse diferente, outros efeitos de sentido seriam produzidos. Assim, do mesmo modo que entendo a mdia dentro das bases do construtivismo social, entendo que pesquisar exige igualmente enquadramentos e construes, de forma que o texto do pesquisador tambm se trata de um recorte, no qual se inscrevem inmeras possibilidades de leitura. Ao escrever sobre a disperso dos discursos da revista, tambm deixo, no meu discurso, dispersa a minha subjetividade e a ideologia que a rege. Tendo como base essa reflexo sobre os aspectos discursivos e a discusso sobre a perspectiva jornalstica articulada com o contexto contemporneo, introduzimos - agora assumindo a terceira pessoa - o recorte desta pesquisa, cujo tema a relao entre consumo e simplicidade. A simplicidade comeou a entrar em pauta no incio da dcada de 1990 e a revista Time publicou uma pesquisa realizada com norte-americanos, na qual 69% dos entrevistados declararam que gostariam de diminuir o ritmo e levar uma vida mais calma; 71% concordaram que, hoje, ganhar a vida exige tal esforo que se torna difcil encontrar tempo para desfrut-la e 89% disseram que era mais importante estar com a famlia, quando questionadas a respeito de suas prioridades (ELGIN, 1993, p. 36). Observamos que as mensagens miditicas acerca da simplicidade so marcadas por uma oposio entre essa temtica e o consumo. No entanto, a prpria busca pela simplicidade passa pelo conceito de consumo consciente, o qual, segundo Santos, L. (2006), praticado pelo sujeito que tem conhecimento do impacto que seu estilo de vida causa e busca modificar parmetros de consumo. Ento, quando refletimos que no temos hoje a opo de no consumir (BAUMAN, 2008a), entendemos que a simplicidade e o consumo no so demarcados de forma opositiva, mas sim se interligam. A busca pela simplicidade implica inevitavelmente no equacionamento da questo do consumo. Afinal, o consumo parece determinar se o sujeito vai ou no levar uma vida mais simples, com todos os valores de sustentabilidade2 e de cuidado interior que esto associados a esse estilo de vida. At porque simplicidade, nesse caso, significa consumir sem excesso e sem ostentao, consumir de forma ecologicamente correta. Ento, para se viver de forma mais simples, preciso tambm consumir de forma mais simples.

2

Capra (2002) diz que o conceito de sustentabilidade foi criado no comeo da dcada de 1980 por Lester Brown, fundador do Instituto Worldwatch, que definiu a sociedade sustentvel como aquela que capaz de satisfazer suas necessidades sem comprometer as chances de sobrevivncia das geraes futuras.

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As editoras de revistas, inseridas no mercado de consumo, tambm editam publicaes que tentam se contrapor aos valores dominantes. Esta dissertao pretende analisar, nessa perspectiva, a Vida Simples - publicada mensalmente pela Editora Abril-, revista que se prope a divulgar um estilo de vida que tem como valores a alimentao frugal, a defesa do meio ambiente, a reflexividade permanente. A publicao aposta nos ideais de que possvel ter uma vida mais sbia, gentil e equilibrada; que todos podem ajudar a transformar o ambiente nas cidades, em lugares mais humanos, solidrios e menos poludos. Atuando como um dispositivo pedaggico (FISCHER, 2002a), a revista ensina o leitor a ter uma vida mais ecolgica, plena, consciente, enfim, uma vida mais simples pacto firmado com o leitor no prprio nome da publicao. A revista afirma ter chegado para falar com um pblico que se preocupa cada vez mais com qualidade de vida. Repleta de dicas sobre como morar, comer, comprar e, principalmente, se conhecer melhor, Vida Simples se tornou uma companheira para homens e mulheres acima dos 30 anos, que querem fazer do bem-estar uma prioridade em suas vidas. Assim, a proposio da revista de divulgar um estilo de vida alternativo e mais simples tambm passa pela temtica do consumo e mais, articula as dimenses do individual e do coletivo num projeto que tem por base a reflexividade. Nesse sentido, buscamos compreender a seguinte problemtica, que norteia a pesquisa: como se d a relao entre consumo e simplicidade no discurso pedaggico da revista Vida Simples? A opo por tratar do consumo em sua relao com a simplicidade surge a fim de delimitar o entendimento de consumo que, de forma isolada, pode ser interpretado por diversos vieses conceituais. Assim, tambm conseguimos abarcar o argumento de que hoje, alm de produtos, consumimos ideias e estilos de vida como o estilo de vida simples. O consumo , nessa perspectiva, uma via atravs da qual buscamos entender o discurso da simplicidade e, por conseguinte, entender como construdo o discurso jornalstico comprometido com o contemporneo. Portanto, o objetivo geral desta dissertao compreender a articulao que se d entre simplicidade e consumo no discurso da revista Vida Simples. Os objetivos especficos consistem em: a) mapear as formaes discursivas predominantes no discurso da revista; b) observar a que formaes ideolgicas as formaes discursivas esto ligadas; c) verificar os aspectos socioculturais que constituem e atravessam esse discurso; d) contextualizar os sentidos localizados na revista, inserindo o debate sobre a reflexividade e o indivduo na contemporaneidade.

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A fim de perceber como a Vida Simples constri discursivamente o consumo, em sua relao com a simplicidade, o mtodo adotado a Anlise de Discurso de linha francesa (que abreviaremos AD), construo terico-metodolgica que apresenta o discurso como produtor de sentidos, a partir dos quais o sujeito significa a si mesmo e ao outro. J que as revistas funcionam em perfeita sintonia com seu tempo (SCALZO, 2008) e o surgimento da Vida Simples tem peculiar relao com as mudanas culturais e sociais contemporneas, a AD se torna um mtodo interessante, na medida em que ajuda a compreender como o discurso funciona no seu contexto. Para a AD, a linguagem no neutra nem transparente, visto que o discurso o lugar em que o contato entre o ideolgico e o lingustico materializado: mesmo que no perceba, o sujeito sempre fala3 de um ponto de vista ideolgico4. Assim, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produo, o analista de discurso relaciona a linguagem sua exterioridade. Trabalhar com o funcionamento discursivo sob essa tica tambm d conta de entender que as imagens que temos do pblico constituem os discursos: a revista s fala de determinado modo porque h pessoas que buscam viver de forma mais simples e investem tempo e dinheiro nisso. Entendemos com Orlandi (2007a) que a leitura proposta pela AD procura ir alm do que se diz, buscando saber o que a mobilizao dessas ou daquelas palavras pode mostrar alm das aparncias, j que se outras palavras tivessem sido mobilizadas produziriam outros efeitos de sentido. o que buscamos aplicando tal ferramenta metodolgica nos textos5 de seis edies da revista Vida Simples, conscientes de que s uma parte do dizvel pode ser acessvel, pois o que no dito (e que pode ser at mesmo desconhecido) tambm significa nas palavras do sujeito. O presente trabalho se justifica pelos estudos iniciados no Trabalho de Concluso de Curso (REGINATO, 2008), sobre a anlise do enquadramento pedaggico da revista Vida Simples, que partiu das concepes de framing adotando principalmente Scheufele3

Compartilhamos a escolha de Benetti (2008a) de que o termo fala no se restringe expresso oral, mas contempla todo ato de enunciao discursiva, seja verbal ou no-verbal. 4 O significado do termo ideologia, ao longo do trabalho, no se reduz ao ponto de vista poltico, mas sim se refere ao modo de viver, ao lugar de fala do sujeito, nossa experincia simblica de mundo (ORLANDI, 2007a). Benetti (2008a), em seus estudos, tem problematizado o espao excessivamente determinista concedido ideologia na estrutura conceitual da AD, em detrimento do imaginrio. A partir disso, pontuamos com Benetti (2008a) que, para fins metodolgicos, o fundamental compreender que algo externo e anterior determina a produo do discurso. 5 Cabe destacar a diferenciao entre texto e discurso, proposta por Orlandi (2007a), a ser considerada durante este trabalho. Texto a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte; diante de um texto, o analista o remete a um discurso que se explicita em suas regularidades pela sua referncia a uma ou outra formao discursiva que, por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formao ideolgica dominante naquela conjuntura (p. 63). Assim, texto uma pea do processo discursivo, o qual, ento, muito mais amplo (ORLANDI, 2007b).

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(1999), McCombs (1997), Kosicki (1993) e da noo de dispositivo pedaggico da mdia (FISCHER, 2002a). A monografia articulou ainda, com os enquadramentos predominantes, noes como a de cuidado de si (FOUCAULT, 1985) e discusses sobre o indivduo na contemporaneidade (GIDDENS, 1991; BAUMAN, 1998, 2001) e sobre a literatura de autoajuda (RDIGER, 1996; CHAGAS, 2002). Essa pesquisa se estendeu em publicaes posteriores, proporcionando uma evoluo da perspectiva trabalhada. Alm disso, as discusses em torno do jornalismo, do discurso e da cultura, especialmente no que tange aos estilos de vida nas revistas, vo ao encontro das discusses realizadas no Grupo de Estudos em Jornalismo (UFSM/CNPq), desde 2007. A temtica da dissertao pertinente linha de pesquisa Mdia e Identidades Contemporneas, do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFSM, visto que se trata de um estudo sobre o papel da Comunicao Miditica na construo de dinmicas sociais, e vice-versa. A justificativa do trabalho centra-se ainda no fato de ser difcil encontrar no campo da comunicao trabalhos que versem sobre a articulao entre consumo e simplicidade, situando tal relao no contexto contemporneo, como estamos propondo6. Tambm so pouco frequentes os trabalhos sobre a Vida Simples, mas encontramos como referncia Tavares (2007, 2008a, 2008b, 2008c, 2009) que, para o desenvolvimento da tese de doutorado, pesquisa o tipo de jornalismo feito pela Vida Simples e, atravs desse objeto emprico, busca compreender como a temtica da qualidade de vida abordada pelo jornalismo especializado de revista ao mesmo tempo em que o caracteriza. A escolha pela revista Vida Simples se deve ao contato anterior com o objeto de estudo - que estimula maior possibilidade de reflexo e por ela se destacar e se diferenciar de outras publicaes que tratam da temtica da qualidade de vida: a temporalidade da Vida Simples diz muito mais de um esprito do tempo7 do que de um fato isolado, algo corrente no jornalismo (TAVARES, 2009, p. 89). Alm disso, as formas6

No encontramos trabalhos na rea da Comunicao com essa articulao, em busca realizada pela palavrachave consumo e simplicidade nas teses e dissertaes veiculadas no Portal Domnio Pblico da Capes (www.dominiopublico.gov.br), na biblioteca eletrnica The Scientific Electronic Library Online SciELO (www.scielo.br/), no Portal PORTCOM - Rede de Informao em Comunicao dos Pases de Lngua Portuguesa (www.portcom.intercom.org.br/), no Portal de Peridicos da Capes (www.periodicos.capes.gov.br/) e no Google acadmico (http://scholar.google.com.br/). Tambm pesquisamos os anais dos congressos nacionais da Intercom (www.intercom.org.br/papers/nacional.shtml), de 2003 a 2010, pela palavra-chave consumo e, a partir dos trabalhos apontados, pesquisamos nos ttulos e resumos se a questo da simplicidade se apresentava de alguma forma. Nos trabalhos da Intercom, alguns artigos se referem a prticas de bem-estar social e ambiental, mas no sentido do que as empresas adotam ou ainda relacionando com a questo da moda e, portanto, a simplicidade no enfocada e o consumo geralmente analisado somente a partir de estratgias de marketing das organizaes, se distanciando do nosso foco de anlise. 7 A expresso esprito do tempo usada por Morin (1997) para tratar da cultura de massa.

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discursivas da Vida Simples permeiam temporalidades sociais e individuais extensas, contribuindo para refletir acerca da relao do jornalismo com o contexto contemporneo movimento em sintonia com a prpria metodologia escolhida. Cabe destacar que, em funo do tempo de proximidade com o objeto emprico, um desafio da pesquisa foi manter a inquietude, mesmo diante de recortes ou agrupamentos que j nos eram familiares, necessidade para a qual aponta Foucault (2009b). Explorar o fenmeno que foco deste projeto torna-se necessrio e pertinente pela sua atualidade, visto que perceber o meio ambiente como algo a ser preservado, adotando a defesa de uma postura de autossustentabilidade, seguramente uma perspectiva contempornea, nunca antes vivida, em termos histricos e sociais, no mundo ocidental urbano (BENETTI, 2008b, p. 12). Alm disso, consideramos relevante trazer para reflexo os tpicos da problemtica ambiental porque hoje ela est sendo redefinida a partir de sua relao com os padres de consumo e com o estilo de vida, deslocando-se a preocupao inicial que definia a crise ambiental enquanto um problema relacionado ao modelo produtivo para uma preocupao atual com os problemas ambientais relacionados ao consumo das sociedades contemporneas. E, apesar da relevante correlao dessas duas temticas, Portilho (2010) avalia que a maioria dos estudos tem silenciado em relao aos aspectos ambientais do consumo8. Para justificar a escolha pela temtica do bem-viver contemporneo em revistas, interessante a constatao de Ali (2009) de que bem-estar, simplicidade e espiritualidade so as direes para onde apontam as revistas que mais crescem no incio deste novo milnio. A compreenso de Maffesoli (2007) vai a esse encontro, quando ele diz que a simplicidade uma importante referncia para entendermos as dinmicas da nossa poca: o apego s coisas simples uma sada para sobreviver ao caos contemporneo. A elaborao da problemtica desta dissertao est fundamentada a partir da confluncia de trs perspectivas tericas: o construcionismo (englobando contribuies das Teorias do Jornalismo), o contrato de comunicao e a Anlise de Discurso francesa. O que norteia as escolhas tericas do estudo o entendimento do jornalismo como um discurso dialgico, polifnico, opaco, ao mesmo tempo efeito e produtor de sentidos, elaborado segundo condies de produo e rotinas particulares; com um contrato de8

Segundo Portilho (2010), apenas recentemente verifica-se o surgimento de pesquisas associando a sociedade de consumo com os estudos ambientais, talvez como resultado da redefinio da crise ambiental como um problema relacionado aos estilos de vida e consumo e do surgimento das expresses como consumo verde e consumo sustentvel.

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leitura especfico, amparado na credibilidade de jornalistas e fontes (BENETTI, 2006, p. 23). A efetivao dessa investigao conta ainda com a reviso terica de alguns autores que tratam do consumo e da propagao dos estilos de vida na contemporaneidade, bem como so utilizados referenciais que problematizam o indivduo9 nesse contexto. Com base nesses pressupostos tericos, a dissertao est dividida em cinco captulos. No primeiro captulo, apresentamos o entendimento de que o jornalismo no reflete, mas constri a realidade, com base principalmente em Scheufele (1999) e em consideraes sobre o conceito de enquadramento. A partir disso, buscamos compreender as especificidades do meio revista e apresentar questes referentes ao processo de segmentao das publicaes, no sentido da aproximao crescente com o leitor, refletindo acerca da relao existente entre a segmentao de mercado e as mudanas societrias recentes. Esse trabalho ser feito com base especialmente em Mira (2001), Scalzo (2008) e Tavares (2007, 2008a, 2008b, 2008c, 2009). Tendo em vista a perspectiva de Foucault (1985) e as releituras (foucaultianas) de Fischer (2001, 2002a e 2002b), tratamos tambm no primeiro captulo da perspectiva de que a prtica jornalstica se torna, por vezes, pedaggica, na medida em que produz saberes e ensinamentos para os leitores. Apresentamos ainda a inteno de avanar na reflexo sobre os aspectos pedaggicos dos discursos, buscando criar condies tericas para desenvolver o conceito de discurso pedaggico do jornalismo de revista. Alm disso, tendo em vista principalmente as anlises de Bauman (1998, 1999, 2001, 2007, 2008a, 2008b, 2009) e de Giddens (1991, 1997, 2002), trabalhamos na tentativa de aplicar o debate da contemporaneidade no ambiente jornalstico, j que observamos que ele assume um papel diferenciado diante de um cenrio de fragmentao, ansiedade, incerteza e se torna uma referncia para os indivduos. No segundo captulo, tomando como base Bourdieu (1994, 1996, 2000), Slater (2002), Bauman (2008a) e Featherstone (1995), apresentamos estudos sobre o consumo e9

Em AD, o entendimento de que a ideologia interpela indivduos como sujeitos, os quais so cindidos, clivados, interpelados ideologicamente, resultados de uma estrutura complexa. Segundo Brando (2004), ser somente atravs do sujeito e no sujeito que a existncia da ideologia ser possvel: nesse processo de constituio, a interpelao e o (re)conhecimento exercem papel importante no funcionamento de toda ideologia. atravs desses mecanismos que a ideologia, funcionando nos sistemas rituais materiais da vida cotidiana, opera a transformao dos indivduos em sujeitos (p. 26). com base nesse entendimento de sujeito que conduzimos este trabalho; no entanto, optamos por manter a palavra indivduo em alguns momentos, em funo de ser esse o termo utilizado por autores que tratam da sociedade contempornea, causando estranhamento se simplesmente alterssemos para sujeitos em tais reflexes. Com isso, ressaltamos que, mesmo quando utilizamos indivduo, estamos entendendo a interpelao ideolgica do sujeito.

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as variveis envolvidas ao se tratar dessa questo, tentando compreender de forma crtica como se configura esse debate na atualidade. Tratamos ainda da relao da mdia com a propagao de estilos de vida na contemporaneidade, utilizando principalmente Bourdieu (1994, 2007), cuja perspectiva de correspondncia entre as posies sociais e o espao dos estilos de vida nos possibilita entender que os estilos de vida possuem caractersticas distintivas e articulam um senso de posio cultural e social. Tambm apresentamos a revista Vida Simples como objeto emprico, contextualizando o segmento para o qual se dirige e como ela se anuncia ao seu leitor, bem como explicamos a evoluo do seu projeto editorial e como ela se estrutura atualmente. Para isso, nos servem de referncia, entre outras, trechos de entrevista e de palestra com o redator-chefe da Vida Simples, Leandro Sarmatz (2008a, 2008b). Antecipando a anlise, nesse captulo tambm constam apontamentos sobre como a revista Vida Simples trata do consumo em suas pginas. No terceiro captulo, apresentamos a construo metodolgica que explica a produo de sentidos na AD, e seus conceitos fundamentais, com base principalmente em Foucault (2007, 2009a, 2009b), Pcheux (1993, 1999, 2007, 2008, 2009), Orlandi (1993, 1996a, 2001, 2003a, 2005, 2007a, 2007b, 2007c, 2008) e Benetti (2000, 2006, 2007a, 2007b, 2008a, 2008b). Nessa parte da dissertao, tambm tratamos de outras memrias discursivas referentes simplicidade, entendendo que os sentidos em torno dessa temtica, construdos ao longo do tempo, inclusive pela mdia, esto tambm inscritos no texto da Vida Simples. Afinal, posto que a discursividade tem uma espessura histrica (GREGOLIN, 2007, p. 15), analisar discursos significa tentar compreender a maneira como as verdades so produzidas e enunciadas. Para isso, fazemos, como acentua Benetti (2008a), o caminho inverso do discurso: partimos do texto para o que lhe anterior e exterior. referindo a linguagem sua exterioridade que podemos aprender seu funcionamento, enquanto processo significativo. No quarto captulo, desenvolvemos a anlise dos sentidos referentes ao consumo, em sua articulao com a simplicidade, na revista. Trabalhamos com seis edies da Vida Simples (janeiro, maro, maio, julho, setembro e novembro de 2009), das quais mapeamos 314 sequncias discursivas referentes nossa problemtica, em 114 textos. Essas reiteraes de sentido foram organizadas em oito famlias parafrsticas - as quais so redes de parfrase que englobam os recortes discursivos materializados nas sequncias que indicam a constituio de trs FDs: FD1: Viso individual do consumo, FD2: Viso ambiental do consumo e FD3: Viso politizada do consumo. Entendemos, assim, que os

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discursos da Vida Simples esto tensionados entre a incitao a um consumo individual, a um consumo que considera o ambiental e a um consumo politizado. Ou seja, as trs FDs representam formas de compreenso da simplicidade e do consumo mais ou menos politizadas, havendo disputas ideolgicas que se materializam no discurso. No quinto e ltimo captulo, buscamos compreender os sentidos desse tensionamento, descrevendo o contexto social - essencial da AD atravs da articulao do pensamento de autores sobre a contemporaneidade. As discusses so inseridas em um quadro de reflexes propostas por vrios estudos sobre meio ambiente, sustentabilidade e simplicidade, entre os quais destacamos Beck (1997), Orlandi (1996b, 2003b), Portilho (2010) e Carvalho, I. (2000).

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1

O JORNALISMO (IN)FORMA: DISCURSO PEDAGGICO, REVISTAS E SEGMENTAO

Voc acorda na quarta-feira com a maior vontade de fazer uma festinha em casa na sexta. No sabe como organizar tudo rapidamente? Vire a pgina e aprenda. Revista Vida Simples, julho de 2009

1.1

O

JORNALISMO COMO

ESPAO

SOCIAL

DE

PRODUO

DE

SIGNIFICADOS

Nesta pesquisa, o jornalismo entendido por uma abordagem construcionista, atravs da qual ele no reflexo, mas construo social de uma realidade especfica. Afinal, o jornalismo um fenmeno discursivo e a linguagem no neutra nem transparente, sendo sim um agente estruturador (HACKETT, 1999, p. 109). Segundo Genro Filho (1987), os fatos no existem previamente como tais, mas sim so recortados de um fluxo da realidade e so construdos com base em determinaes ao mesmo tempo objetivas e subjetivas. Ento, o discurso jornalstico tem um papel importante na construo social na medida em que constri verdades, determina modos de viver e organiza as relaes sociais. O discurso jornalstico revelador/plasmador da sociedade contempornea, produzido no interior de uma determinada e especfica instituio (a empresa jornalstica), cuja funo consiste em textualizar a realidade, diz Berger (1996, p. 188). Torna-se, assim, espao social de produo de significados (HALL, 1997), cujo poder no est apenas em declarar as coisas como sendo verdadeiras, mas sim de fornecer as formas nas quais as definies aparecem (SCHUDSON, 1999). dentro das bases do construtivismo social que situamos o conceito de enquadramento (framing), o qual ajuda a demarcar que a mdia fixa ativamente os quadros de referncia que o pblico usa para interpretar e discutir acontecimentos pblicos. Os frames podem ser pensados como um tipo de esquema, similar a scripts, prottipos, categorias, e assim por diante. Ou seja, eles ajudam a estruturar nossas experincias dirias e basicamente facilitam o processo de construo do significado (KOSICKI, 1993, p. 115,

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traduo nossa)10. O termo designa uma moldura de referncia, que construda para os temas e acontecimentos miditicos e tambm utilizada pela audincia para interpretar esses eventos. O frame seria justamente o quadro a partir do qual determinado tema pautado e, consequentemente, influencia (o que no significa determina) o processamento e a discusso das informaes na esfera pblica. Sendo assim, os frames devem ser considerados esquemas tanto para a apresentao, quanto para a compreenso das notcias. Por isso Scheufele (1999) especifica duas formas de concepo do enquadramento: o framing da mdia, que se refere aos enfoques apresentados pelos veculos de comunicao para um determinado tema, e o framing da audincia, que se relaciona ao modo como o pblico pode enquadrar certos assuntos a partir do que oferecido pelos meios. Ao pensarmos sobre esse conceito, no estamos desconsiderando a atuao da audincia, a qual faz a apropriao dos sentidos a partir das suas vivncias e seguindo mltiplos trajetos de leitura at porque o discurso no est no texto mas na prtica discursiva que se d entre o enunciador e o leitor. Trata-se, sim, de refletir sobre o fato de que os enquadramentos dados aos temas podem contribuir para moldar a forma como as pessoas veem e pensam o mundo cotidiano. Como defende Hall (2003), ao no querer um modelo determinista, mas tambm no buscar um modelo sem qualquer determinao, as decodificaes se do dentro do universo da codificao. Ento, os veculos no conseguem conter todas as leituras possveis de seus textos, mas tambm no se pode pensar que o texto no tenha elementos internos que direcionam sua apropriao. Nesse sentido, a discusso de enquadramento pode ser articulada de linguagem, porque ambas compreendem que o texto s se torna discurso quando interpretado. Consideramos importante retomar essas questes em torno do enquadramento, apesar de no trabalharmos na aplicao do conceito, em funo de ele ajudar a situar a perspectiva do jornalismo em uma abordagem construcionista. Ao usar a afirmao de que o jornalismo constri a realidade, to adotada nos estudos em comunicao, consideramos importante a ressalva de Meditsch (2010) de que o trabalho do jornalismo na construo social da realidade precisa ser relativizado e colocado em termos de mediao11, j que est articulado a muitas outras instituies que produzem sentido. O jornalismo, como10

Original: These frames may be thought of as a type of schema, similar to scripts, prototypes, categories, and so on. That is, they help structure our everyday experiences and basically facilitate the process of meaning construction. 11 Meditsch (2010) prope uma releitura da obra A construo social da realidade, de Peter Berger e Thomas Luckmann, e afirma que esses autores no colocam a mdia como protagonista na construo social da realidade, relativizando os seus efeitos no processo de socializao.

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instituio, e seus agentes participam de produo da realidade, especialmente no mbito simblico, mas nunca isoladamente, porm em dilogo permanente com os demais atores sociais (MEDITSCH, 2010, p. 40-41).

1.1.1 O acontecimento jornalstico e o contrato de comunicao

O jornalismo, enquanto forma de conhecimento (MEDITSCH, 1997), ao estabelecer um enquadramento de sua notcia, ajuda a construir a realidade social. McCombs (2009) ressalta que os enquadramentos chamam nossa ateno para as perspectivas dominantes de imagens pblicas e de objetos das notcias e no somente sugerem o que relevante e irrelevante, mas tambm regulam simbolicamente a estruturao significativa que fazemos do mundo social. A anlise dos enquadramentos permite compreender os princpios de organizao das informaes, que esto na base da seleo e definio dos acontecimentos noticiosos (TUCHMAN, 1999), porque, analisando a forma como os contedos so construdos e enquadrados, possvel identificar o julgamento noticioso, ou seja, que acontecimentos foram reconhecidos pelo jornalista como possuidores de valor-notcia. Os acontecimentos12, especialmente no que tangem s temticas do bem-viver contemporneo - como o caso da revista Vida Simples -, colocam um mundo nossa frente (TUCHMAN, 1999) e nos ajudam ativamente a construir esse mundo (HACKETT, 1999). Afinal, os acontecimentos inauguram novas formas de dizer, estabelecendo um marco de onde emerge uma nova rede de dizeres (FERREIRA, 2001). Ao transformar um fato sobre como viver mais e melhor em acontecimento, o prprio jornalismo se torna um acontecimento porque seu discurso acaba sendo um ndice dos valores hegemnicos de uma poca. Ento, quando os jornalistas selecionam os acontecimentos que organizam a experincia temporal do homem contemporneo (BENETTI, 2010, p. 154), esses12

O conceito de acontecimento pode ser trabalhado a partir de diversos vieses, em que, em noes gerais, feita a separao entre acontecimento amplo ou acontecimento jornalstico. Nas conceituaes do primeiro tipo esto as de acontecimentos legtimos, que tm sua fora prpria de afetao (VAZ; FRANA, 2009), acontecimentos sociais (MEDINA, 2008), acontecimentos puros (DELEUZE, 1975) ou acontecimentos brutos (CHARAUDEAU, 2007). Os acontecimentos jornalsticos so trabalhados, entre outros, a partir da noo de acontecimento legitimado (VAZ; FRANA, 2009), acontecimento noticioso/miditico (KATZ, 1999) ou acontecimento construdo (CHARAUDEAU, 2007). Algumas categorias definem se as ocorrncias iro se tornar acontecimentos noticiveis: atualidade (FONTCUBERTA 1993; CHARAUDEAU, 2007), pregnncia (REBELO, 2006), salincia e socialidade (CHARAUDEAU, 2007), previsibilidade e imprevisibilidade (RODRIGUES, 1999), utilidade (HACKETT, 1999), comunicabilidade e repercusso junto ao leitor (ALSINA, 1989).

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acontecimentos de que eles tratam inscrevem-se um contexto ou numa ordem de sentido que eles prprios ajudam a instaurar (BABO-LANA, 2005). Esta pesquisa tambm se guia nos princpios sobre o contrato de comunicao. Princpios que, conforme Charaudeau (2007), indicam que existe uma regulao dos discursos na situao de comunicao, prevendo que todo locutor e todo destinatrio deve conhecer e reconhecer as restries e convenes das trocas de linguagem. Nesse pacto entre produtores e receptores, necessria a constituio de cinco categorias: a) quem diz e para quem; b) para qu se diz; c) o que se diz; d) em que condies se diz; e) como se diz (CHARAUDEAU, 2007). O contrato de comunicao a condio para os parceiros de um ato de linguagem se compreenderem minimamente e poderem interagir, coconstruindo o sentido, que a meta de qualquer ato de comunicao (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 130). Esse ato de linguagem implica, como enumeram Charaudeau e Maingueneau (2008), a existncia de dois sujeitos em relao de intersubjetividade, a existncia de convenes, normas e acordos que regulamentam as trocas de linguagem, a existncia de saberes comuns que permitem que se estabelea uma intercompreenso em uma situao de comunicao. Segundo Charaudeau (2007, p. 72), a comunicao miditica pe em relao duas instncias: a de produo (que fornece a informao pois deve fazer saber e tambm propulsora do desejo de consumir tais informaes a fim de captar seu pblico) e a de recepo (que deveria manifestar seu interesse e/ou seu prazer em consumir tais informaes). Para Benetti (2009), o jornalismo uma prtica discursiva particular, que s se estabelece na relao entre sujeitos aptos a identificar os elementos do contrato de comunicao. Claro que essas relaes so bastante complexas, at porque a instncia da produo tem certa representao do pblico leitor, e o pblico pode no coincidir com tais representaes, reiterando que quem produz a informao tem apenas hipteses, uma imagem a respeito do pblico. De qualquer forma, instncia de produo no cabe apenas informar, mas sim pr ordem no caos de sentidos da sociedade moderna (MOTTA, 2000), ou seja, construir certo saber sobre o mundo, o qual pode ser usado pelo receptor para fazer a sua construo dos acontecimentos. Nesse contexto, cabe inserir a anlise de Moura (2006) de que a mesma moldura que enquadra a viso de mundo oferecida pela notcia enquadra os limites do conhecimento jornalstico, fazendo com que um meio seja tanto uma forma de conhecer como de desconhecer o que acontece no mundo, o que no se constitui em demrito. Esse

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o modo prprio do fazer jornalstico (p. 135-136). Diante desses trmites conceituais de entendimento do jornalismo, especificaremos as particularidades do meio revista.

1.2

JORNALISMO DE REVISTA difcil encontrar uma definio precisa do que seja revista, um conceito que

abranja o seu universo e o de seus leitores. No entanto, Scalzo (2008) nos d pistas: uma revista um veculo de comunicao, um produto, um negcio, uma marca, um objeto, um conjunto de servios, uma mistura de jornalismo e de entretenimento, um encontro entre um editor e um leitor, um fio invisvel que une um grupo de pessoas criando identificao e sensao de pertencimento. Hernandes (2004) tambm aponta caminhos: toda revista uma sofisticada engrenagem que transmite valores por meio de operaes racionais, emocionais e sensoriais; so escolhas de composio visual, de tipo de argumentao, de jogos entre elementos verbais e no-verbais entre inmeros outros recursos. As revistas pretendem falar diretamente com o leitor, o chamam por voc (SCALZO, 2008), e tal linguagem oralizada significa historicamente se entendermos que o oral da natureza da proximidade. Assim, os veculos impressos tm um carter mais intimista, se comparados aos meios de comunicao audiovisuais (CASTRO, 2007), pois o ato de leitura requer concentrao e tranquilidade. At porque as revistas englobam textos prazerosos de ler, rompendo as amarras da padronizao cotidiana (VILAS BOAS, 1996). Se olharmos o termo revista, assim como sugere Tavares (2008b), e o dividirmos (re-vista) ou o verbalizarmos (revistar), temos uma relao com o significado de ver de novo, de verificao, de exame, de interpretao, que remete origem do termo e possibilidade de interpretao tanto do leitor da revista, quanto de seu produtor. Para o leitor, que visualiza um suporte impresso, h possibilidade de permanncia e de retorno leitura (TAVARES; SCHWAAB, 2009). J os produtores, por trabalharem com um veculo cuja periodicidade varia entre semanal, quinzenal ou mensal, podem cobrir funes culturais mais complexas do que a simples transmisso de notcias (SCALZO, 2008) e, assim, tm mais condies de interpretar os fatos ao seu redor. Portanto, o leitor pode revistar e re-visitar o contedo j lido e o jornalista pode re-vistar e re-visitar os acontecimentos para trat-los com mais profundidade e detalhamento. Essas conotaes, que podem no ser percebidas no cotidiano, marcam pragmaticamente (mesmo que

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inconscientemente) a produo noticiosa e textual que a envolve (TAVARES, 2008b, p. 8). As revistas tm longevidade maior e, por isso, abarcam uma temporalidade especfica. Segundo Tavares e Schwaab (2009, p. 12), cada edio chega ao leitor com um passado de referncia e tambm com um futuro de permanncia (o qual infere a relao intrnseca entre o discurso da publicao e os enquadramentos que se reiteram, os ganchos da matria, enfim, in-formaes sobre os temas que movem a revista). O contexto de origem desse tipo de publicao j explica o seu carter: as revistas surgiram para complementar a educao e oferecer um servio utilitrio aos seus leitores, ao contrrio dos jornais, que nasceram com a marca explcita da poltica e do engajamento. Segundo Tavares (2008b), desde seu incio as revistas tm uma preocupao diferenciada com o leitor e com o visual, buscando dirigir-se a um pblico mais especfico, falando de temas mais triviais (banais) e menos factuais (extraordinrios), aliando o texto a uma significativa experincia imagtica (p. 2).Revista une e funde entretenimento, educao, servio e interpretao dos acontecimentos. Possui menos informao no sentido clssico (as notcias quentes) e mais informao pessoal (aquela que vai ajudar o leitor em seu cotidiano, em sua vida prtica). Isso no quer dizer que as revistas no busquem exclusividade no que vo apresentar a seus leitores. Ou que no faam jornalismo (SCALZO, 2008, p.14, grifos da autora).

O fazer revistativo (TAVARES, 2008a) volta-se principalmente para uma cobertura temtico-especializada sobre a vida social (TAVARES, 2009) e cada vez mais necessrio e imprescindvel atingir o pblico nos seus mais diferentes anseios e necessidades, buscando fornecer ao leitor o que ele no conhecia ou o que nem imaginava que quisesse saber (ALI, 2009). Nesse sentido, como lembra Tavares (2008b), apesar de historicamente serem caracterizadas por um meio segmentado, as revistas vivem hoje um processo de adensamento deste processo.

1.2.1 Revistas especializadas

As revistas especializadas tratam de diversos assuntos e talvez o que mais as diferencie de outras publicaes seja o estatuto de notcia ali encontrado que, para Tavares (2007), diferente do estatuto ligado produo noticiosa diria. Consequentemente,

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segundo o pesquisador, so estabelecidas nesses espaos miditicos novas ou especficas maneiras de se relacionar com o social e com aquilo que o envolve.[...] As revistas especializadas [...] voltam-se para certos acontecimentos invisveis que permeiam a vida cotidiana, que servem de base para a formao das diversas teias e tramas sociais e que passam a ganhar destaque no pela sua anormalidade frente ao pano de fundo da qual fazem parte, mas justamente por este pano de fundo ser considerado hoje um contexto de intensa instabilidade (TAVARES, 2007, p. 48, grifos do autor).

Segundo apresenta Gomes, I. (2006), no final dos anos 1980 e incio de 1990, aconteceu a exploso do jornalismo especializado, no porque os editores se cansaram de publicar revistas de variedades, mas porque o pblico passou a exigir publicaes de contedo mais direcionado a interesses especficos. A segmentao no jornalismo se consolida em dezenas de exemplares que tratam de assuntos como economia, informtica, meio rural, sade, beleza, celebridades, automveis, informao, quadrinhos. Nesse cenrio, h um nicho editorial que vem crescendo (no s no jornalismo de revista, mas tambm no mercado do jornal impresso dirio e no panorama televisivo): o do jornalismo especializado voltado para o bem viver e para a qualidade de vida13. Tavares (2007) nota que crescente o segmento de publicaes e subpublicaes (cadernos e suplementos) cuja grande temtica est voltada para uma leitura dos problemas que cercam o mundo atual e para as vrias maneiras de se lidar com isso. Os produtos se voltam para a busca pelo equilbrio mental, profissional, afetivo, principalmente daqueles que habitam o meio urbano. Como aponta Silva (2005), em uma pesquisa realizada nos Estados Unidos constatou-se que 40% das chamadas de primeira pgina em jornais americanos se referiam aos hbitos de vida e ao risco que se corre. Segundo Sodr (2009), cada veculo de comunicao desenvolve estratgias de distino, presumidamente capazes de lhe conceder uma identidade discursiva ou editorial, a qual tida como necessria para inculcar no pblico leitor a sua especificidade comercial, o seu ramo de especializao.Nas revistas especializadas h um ponto de partida editorial, atrelado ao perfil de um pblico, tal como mapeado por pesquisas de mercado e outros mecanismos e ndices de relacionamento entre publicaes e13

Essa temtica trabalhada em programas televisivos como Sade Alternativa (GNT) e tambm, na televiso aberta, em programas que mesclam jornalismo e entretenimento, como Globo Reprter (Rede Globo) e Reprter Record (Rede Record). Em veculos impressos, alm dos cadernos e suplementos de jornais voltados a esse nicho editorial, apontamos a revista Bons Fluidos (tambm da Editora Abril).

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consumidores. Nesse sentido, os temas encontram-se diversificados naquilo que se considera de interesse desse pblico, cabendo produo jornalstica responder a certas demandas. O tema, neste aspecto, reflete certas lgicas sociais e culturais e aponta, indiretamente, para determinados tpicos que permeiam a sociedade e seu ethos numa certa poca e local (TAVARES; SCHWAAB, 2009, p. 10, grifo dos autores).

1.3

A REVISTA REVISTANDO O LEITOR: A SEGMENTAO DO PBLICO Revistas masculinas, femininas e para adolescentes, dos mais variados tipos e

formatos, podem ser encontradas nas mais de 17 mil bancas e em outros 6,8 mil pontos de venda espalhados pelo Brasil. A distribuio, no entanto, no acontece de forma homognea, j que grande parte do mercado de revistas est concentrada na regio Sudeste: em 1996, 56% das revistas ficavam nessa parte do pas. Nesse mesmo ano, o nmero de ttulos em circulao era de 2,28 por habitante ao ano.14 Diversos ttulos disponveis, anunciantes interessados em veicular a marca nas pginas e um grande pblico para ler o seu contedo. Mas, afinal, quem esse pblico? Mira (2001) sugere que podemos ter apenas uma ideia aproximada do perfil do leitor de cada publicao. Dois dos motivos seriam a abrangncia das pesquisas somente nas grandes capitais e a superposio de leitura: pessoas que leem mais de uma revista e mais de uma pessoa lendo a mesma revista (cada exemplar passa pela mos, em mdia, de trs a quatro leitores). O processo de segmentao15 da mdia teve sua acelerao a partir dos anos 1980, principalmente no rdio, cujas emissoras praticamente se especializam num gnero musical em estreita relao com seu pblico. Na TV, a segmentao da programao nas redes se aprofunda na dcada de 1990 com a introduo dos canais pagos, que buscam captar pblicos especficos. Nos jornais, a segmentao aparece com os cadernos especializados. Nas revistas, meio segmentado por definio, esse processo ainda mais intenso. Em 1997, falava-se em 1130 ttulos diferentes de revistas no mercado brasileiro.

14

Esses dados, fornecidos pela Aner (Associao Nacional dos Editores de Revista), foram apresentados por Mira (2001). 15 Ao utilizar o termo segmentao, assim como lembra Mira (2001), no estamos focando em sua definio mercadolgica que diz que, por exemplo, no caso das revistas brasileiras, so consideradas segmentadas aquelas cujas tiragens so inferiores a 100 mil exemplares.

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Mira (2001, p. 148) pontua que segmentar16 a melhor maneira de se capacitar para descobrir rapidamente novos nichos de mercado e cita a definio que Thomaz Souto Corra, um dos diretores mais importantes da histria da Editora Abril, fez em 1985 de que segmentar o mercado identificar interesses e desejos do pblico leitor, sabendo detectar as tendncias de comportamento para dar ao mercado revistas sempre mais atualizadas, afinadas com a realidade, ou revistas novas, cada vez que uma nova tendncia sugerir a criao de um novo segmento. Vrias publicaes so, pois, criadas ou modificadas objetivando atingir ou fidelizar os consumidores especficos do seu segmento de mercado. Mira (2001) explica que quando novas condies de vida se instalam, alterando hbitos culturais, prticas sociais e o cotidiano desses segmentos, certas publicaes podem estabelecer com eles canais de comunicao: o caso de diversos modelos criados pela imprensa feminina em sua relao com a experincia das mulheres, da revista semanal de informao e a acelerao do tempo na modernidade, das revistas de negcios diante da nova ordem econmica mundial, das publicaes juvenis face ao envolvimento dos jovens com o universo pop e assim por diante. Mira (2001) acrescenta que existe uma relao entre o que os produtores do mercado chamam de segmentao e as mudanas societrias recentes. Segundo a autora, a segmentao da produo cultural nos ltimos anos parece ser o resultado de uma especificao maior das ofertas, cruzando-se as variveis de classe, gnero e gerao. Conforme as pesquisas de mercado, depois do sexo do leitor, a faixa etria e a classe socioeconmica so as mais importantes para traar o seu perfil.A segmentao uma estratgia atravs da qual se procura atingir novos nichos de mercado. Porm, revela com clareza que as variveis que recortam os nichos so sociais como, por exemplo, o gnero (mulher executiva), a gerao (gente aposentada) ou a questo tnica (executivo negro). Para tornarem-se segmentos de mercado, evidentemente, eles devem ter potencial de consumo (o que precisamos ter mercado de leitores e anunciantes). Mas, antes de serem mercado, onde estavam as mulheres, os negros, os aposentados? Naturalmente, eles j existiam, mas no haviam se manifestado como16

Ao buscar entender a questo da segmentao, Mira (2001) parte dos escritos da Escola de Frankfurt e apresenta uma questo: se a massa de consumidores a que a cultura se dirige homognea, como afirmam Adorno e Horkheimer, ento por que a indstria cultural diversificaria os seus produtos? A resposta vem dos prprios frankfurtianos, que afirmam que o mercado divide seus produtos em A, B ou C para melhor captar a todos e, novamente, dentro de cada segmento, transforma o indivduo num ser genrico. Nessa perspectiva, a segmentao faria parte do processo de pseudo-individuao promovido pela cultura de massa.

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alteridades, no haviam ganhado visibilidade, no haviam expressado sua diferena em relao a outros segmentos [...] (MIRA, 2001, p. 214, grifos da autora).

A revista um meio propcio para se tratar da segmentao, em funo da seletividade de sua audincia, possibilitada por seu custo de produo ser normalmente mais baixo do que o de outros veculos como o cinema e a televiso que, por exigirem investimentos mais elevados, so mais massivos. Segundo Mira (2001), na dinmica das revistas de grande circulao, o leitor passa a ser visto como consumidor em potencial e o editor torna-se um especialista em grupos de consumidores, que encontrou a frmula editorial capaz de atrair, no mercado nacional, o segmento que determinados anunciantes pretendem atingir. Essa frmula repetida ao longo do tempo e, ento, a grande questo para o editor no tanto como lanar uma revista, mas como mant-la viva (MIRA, 2001, p. 11). Conforme Amaral (2008), a segmentao uma estratgia de marketing que busca grupos de consumidores com caractersticas homogneas, ou com o mnimo de diferena entre si e o mximo de diferenas em relao aos outros. Autores da rea do marketing explicam que a segmentao auxilia a empresa a penetrar em focos escolhidos e um segmento de mercado consiste em um grande grupo que identificado a partir de suas preferncias, poder de compra, localizao geogrfica, atitude de compra e hbitos de compra similares (KOTLER, 2000, p. 278). Com base nos aspectos apresentados acerca da segmentao das publicaes, interessante pontuar que esse processo tem caractersticas que vo alm das mercadolgicas, porque entendemos com Elman (2008) que existe uma forte relao identitria entre os grupos que leem determinada revista, sendo que comum as pessoas se autodefinirem ou demarcarem o seu estilo de vida- pelas revistas que leem.

1.4

DISPOSITIVO PEDAGGICO

Entendendo que o jornalismo cumpre funo importante na modelizao social (GOMES, M., 2003), especificamos o papel pedaggico17 do seu discurso, na medida em que ensina modos de ser e estar para a audincia, orientando aes para os sujeitos que procuram respostas sobre como ter segurana em um mundo instvel. Nos textos17

Quando utilizamos o termo dispositivo pedaggico da mdia, no estamos nos referindo relao entre mdia e educao no sentido da apropriao da mdia como ferramenta pedaggica.

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jornalsticos, mais frequentemente nos das revistas, so recorrentes pautas que ensinam como viver, acompanhadas de verbos no imperativo: Descubra como ficar em dia com a sade, Aprenda a acalmar a mente. A base para o entendimento desse processo vem principalmente do conceito de dispositivo pedaggico da mdia, desenvolvido por Fischer (2001, 2002a, 2002b), com base nas concepes de dispositivo da sexualidade e de modos de subjetivao, de Michel Foucault. A autora trabalha na busca dos modos pelos quais a mdia opera na construo de sujeitos e subjetividades, na medida em que produz imagens, significaes, enfim, saberes que se dirigem educao das pessoas, constituindo-se no apenas como uma fonte de informao e lazer, mas como um lugar poderoso no que tange produo de valores acerca do mundo e dos outros, e atravs dos quais representamos o que (e quem) est ao nosso redor. A mdia, ento, nos ensina cotidianamente quem ns somos, como devemos cuidar do nosso corpo, dos nossos filhos, da nossa alimentao, e como os grupos sociais devem ser por ns vistos (FISCHER, 2002b). Nessa tica, Fausto Neto (1999) acrescenta que, mais do que um instrumento de representao, as mdias so verdadeiros nichos onde a realidade se estrutura como uma referncia. Segundo Silverstone (2002), por a mdia ter uma importncia fundamental em animar, refletir e exprimir nossa experincia que devemos estud-la: a mdia se faz, ns a fazemos, e ela feita para ns. Partindo da elaborao de que a mdia veicula e produz saberes sobre os sujeitos e seus modos de ser e estar na cultura em que vivem e acaba incitando o discurso sobre si mesmo-, pertinente falar do cuidado de si, de Foucault (1985), que se refere a regras de conduta que estimulam uma atitude constante com relao a si prprio. O autor ressalta que se ocupar de si exige trabalho porque existem os cuidados com o corpo, os regimes de sade, os exerccios fsicos, a satisfao das necessidades, as meditaes, as leituras, as anotaes sobre livros ou conversaes, e assim por diante. A partir disso, Foucault chega ao entendimento de que a atividade consagrada a si mesmo no constitui um exerccio de solido, mas sim uma verdadeira prtica social.A prtica de si implica que o sujeito se constitua face a si prprio, no como um simples indivduo imperfeito, ignorante e que tem necessidade de ser corrigido, formado e instrudo, mas sim como indivduo que sofre de certos males e que deve faz-los cuidar, seja por si mesmo, ou por algum que para isso tem competncia. Cada um deve descobrir que est em estado de necessidade, e que lhe necessrio receber medicao e socorro (FOUCAULT, 1985, p. 62-63).

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Falar do cuidado de si tratar de um sujeito que realiza operaes com seu corpo e sua alma, obtendo uma transformao de si mesmo, o que vai ao encontro da conceituao de Fischer (2002b) sobre as estratgias de a mdia ensinar como fazer determinadas tarefas cotidianas, determinadas operaes com o prprio corpo, determinadas mudanas no cotidiano familiar. Assim, a autora trabalha com a hiptese de que hoje no haveria praticamente um lugar, um dia de nossas vidas em que os imperativos da beleza e da juventude no nos chamem a ateno para a necessidade de cuidarmos do nosso corpo e da nossa sexualidade, especialmente atravs da mdia. E, como instrumento de tortura, corpos de outras pessoas nos so oferecidos para que operemos sobre nosso prprio corpo, para que o transformemos, para que atinjamos (ou que pelo menos desejemos muito) um modo determinado de sermos belos e belas, magros, atletas, saudveis, eternos (FISCHER, 2002b, p. 7). Ao construrem discursos sobre como devemos proceder no nosso cotidiano e ao dar voz a especialistas fornecendo dicas mdicas e psicolgicas, os espaos da mdia constituem-se como lugares de formao, ao lado da escola, da famlia, das instituies religiosas (FISCHER, 2002b). Assim, a mdia se constitui em uma pedagogia cultural, enquanto processo social que ensina. Segundo Kellner (2001), numa cultura contempornea dominada pela mdia, os meios dominantes de informao e entretenimento so uma fonte profunda, e muitas vezes no percebida, de pedagogia cultural, pois contribuem para nos ensinar como nos comportar e o que pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e desejar e o que no (p. 10). Essa didaticidade18 a respeito da qual nos referimos se mostra miditica, ou seja, no perde o seu objetivo final de informar e entreter. Salientamos essa questo com base em reflexo proposta por Charaudeau (2007), de que o jornalista no pode visar a um discurso perfeitamente didtico, mesmo que determinada inteno pedaggica o atravesse e que se possa encontrar grande quantidade de traos didticos em seu discurso, pois as exigncias de organizao do saber no discurso didtico, sua construo que prev provas de verificao e de avaliao so de fato incompatveis com uma informao que deve captar o pblico em geral a menos que se especifique o que didaticidade e que se conclua pela existncia de uma didaticidade miditica diferente da escolar, universitria, administrativa. Assim, entendemos que, sob a gide da informao, a mdia limita padres18

No fazemos diferenciao entre pedaggico e didtico, sendo usados neste texto como referentes ao mesmo processo.

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que so ressonantes de uma ordenao social pr-construda discursivamente e que pedagogizada. 1.4.1 O discurso pedaggico do jornalismo de revista

Buscando refletir sobre o que prope Charaudeau (2007), mas considerando a amplitude de se buscar os aspectos pedaggicos da mdia como um todo, optamos por focar particularmente no jornalismo de revista. Ento, pretendemos avanar na reflexo sobre os aspectos pedaggicos dos discursos, buscando criar condies tericas para desenvolver o conceito de discurso pedaggico do jornalismo de revista, tentando englobar as peculiaridades do jornalismo e tambm dar conta das especificidades das revistas. At porque as revistas, por serem segmentadas, no precisam visar a um pblico geral - como fala Charaudeau (2007) a respeito do discurso miditico-, o que torna mais compatvel a organizao de um saber didtico em seu contedo. Alm de os aportes que tratam do discurso estarem em maior sintonia com o vis terico adotado na pesquisa que guia este texto, a escolha por particularizar o aspecto pedaggico do discurso ao invs do uso de dispositivo- tambm surgiu da compreenso de que dispositivo19 contempla uma abordagem mais ampla, de natureza heterognea, porque trata tanto de discursos quanto de prticas, de instituies quanto de tticas moventes (REVEL, 2005). Portanto, ao refletir acerca da pedagogia cultural no jornalismo, pretendemos especificar sua abordagem discursiva, ou seja, os recursos discursivamente pedaggicos, considerados como pertinentes a tcnicas de subjetivao20 (FISCHER, 2002b). Ao entender o discurso jornalstico como pedaggico, cabe enfatizar de que discurso estamos falando. do discurso que se produz socialmente atravs de sua materialidade especfica (a lngua), a prtica social cuja regularidade s pode ser apreendida a partir da anlise dos processos de sua produo, no dos seus produtos. o discurso entendido considerando as condies de produo da linguagem, pela anlise da

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Dispositivo entendido pelo que Foucault designou inicialmente como operadores materiais do poder, isto , as tcnicas, as estratgias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder (REVEL, 2005, p. 39). assim que Foucault chega a falar de dispositivos de poder, dispositivos de saber, dispositivos disciplinares, dispositivos de sexualidade. 20 Por modos de subjetivao em uma determinada formao social, Fischer (2002b) considera todas as formas de se produzir uma volta sobre si mesmo.

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relao estabelecida pela lngua com os sujeitos que a falam e as situaes em que se produz o dizer (ORLANDI, 2007a). Orlandi (1996a) entende que o discurso pedaggico pode ser caracterizado como um discurso autoritrio21 porque, tratando do mtodo de ensino e do processo de aprendizagem, na comunicao pedaggica, o locutor uma imagem social do professor (aquele que possui o saber e est na escola para ensinar); o interlocutor, uma imagem idealizada de aluno (o que no sabe e est na escola para aprender) e o objeto (aquilo que est sendo ensinado) tem uma linguagem pedagogizada e aparece como algo que se deve saber. Nesse sentido, Orlandi (1996a) afirma que, mais do que informar, explicar, influenciar, ou mesmo persuadir, ensinar aparece como inculcar, ou seja, aconselhar, recomendar, indicar. Em termos semelhantes, Rodrigues (2001) elabora que a modalidade pedaggica do funcionamento de um campo consiste num processo contnuo de inculcao da sua ordem. Mais do que isso, o autor entende que a modalidade pedaggica a que melhor se adapta natureza do funcionamento do campo dos media, visto ser a que se presta composio com os restantes campos sociais, predominantemente regida pelo princpio da cooperao e da inculcao dos valores divergentes que tentam promover (p. 159). Ao tratar das modalidades de enunciao, cruciais na construo do contrato de leitura, Vern (2005) analisa que h um enunciador pedaggico que pr-ordena o universo do discurso visando guiar o leitor, orient-lo, inform-lo e responder-lhe questes. E se os discursos sobre como devemos proceder, como devemos ser e estar nesse mundo produzem-se e reproduzem-se nos diferentes campos de saber e prticas sociais, talvez se possa afirmar que adquirem fora particular quando acontecem no espao dos meios de comunicao, porque adquirem um poder de verdade, de cincia, de seriedade (FISCHER, 2001). Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008), a noo de didaticidade permite levar em conta momentos discursivos como os da imprensa cotidiana, produzidos, por exemplo, depois de catstrofes naturais, lugares potenciais de inscrio da didaticidade, quando o

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Orlandi (1996a) afirma que se pode distinguir, tomando como base o objeto do discurso e os interlocutores, trs tipos de discurso: ldico, polmico e autoritrio. O discurso ldico aquele em que o objeto se mantm presente e os interlocutores se expem a essa presena, resultando na polissemia aberta. O discurso polmico mantm a presena do seu objeto, mas os participantes no se expem e procuram dominar o seu referente, dando-lhe uma direo, indicando perspectivas particularizantes, o que resulta na polissemia controlada. No discurso autoritrio, o referente est ausente, oculto pelo dizer; no h realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida.

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discurso informativo muda dos modos descritivo e narrativo para o modo explicativo, assim como quando desliza para a generalizao ou ainda quando se misturam corpos de saberes reconhecidos de natureza enciclopdica ou emprestados dos saberes eruditos. A partir de estudo anterior (REGINATO, 2008), entendemos que a revista Vida Simples ajuda a construir discursos e a produzir significados, sendo um lugar de aprendizado sobre a vida que levamos, ou que deveramos levar. As expresses descubra como ou aprenda a so muito utilizadas nas chamadas de capa da revista, que costumam indicar que iro ensinar maneiras de o leitor lidar melhor consigo mesmo ou com as dificuldades do cotidiano. Na publicao o que pode ser estendido quase totalidade das revistas-, a apresentao das falas das fontes acompanhada por palavras que compem um currculo profissional bem-sucedido ou uma trajetria pessoal interessante, a fim de agregar mais credibilidade ao que est sendo dito, ampliando o potencial pedaggico do discurso. O aval de especialistas, alis, se torna uma das marcas do discurso pedaggico do jornalismo de revista, na medida em que busca orientar e aconselhar o leitor. Em tais casos, a didaticidade construda em funo de que um dos interlocutores possui um saber-fazer que o outro no tem, saber real ou suposto, que ele est em posio de fazer partilhar com o outro (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 165). um discurso autorizado, que tem uma relao muio ntima no somente com o imaginrio do saber, mas tambm com o imaginrio do poder (CHARAUDEAU, 2007). Essa relao saber/poder foi amalgamada por Foucault (1991), entendendo que o conhecimento era buscado por sua utilidade e era caracterizado por uma vontade de dominar ou apropriar (STRATHERN, 2003). Marocco e Berger (2006b) consideram que a notcia/discurso ser a conjuno do saber e do poder, ou seja, a forma atravs da qual o poder opera. A Vida Simples preza em suas linhas que o leitor tenha uma leitura agradvel 22 e repetidamente a revista sugere que ensina e que seu contedo trata de dicas, de um guia com respostas fundamentais. Esse tipo de linguagem favorecido por textos autorais, escritos em primeira pessoa. Assim como Rocha (2007) aponta em sua anlise sobre a construo dos sentidos das narradoras da revista TPM (Editora Trip), observamos em Vida Simples que quem narra no se limita a simular a intimidade chamando o leitor de22

Diante da convivncia cotidiana com a televiso, hoje vivemos a quase impossibilidade do silncio, como sugere Fischer (2001). A Vida Simples evolui nesse sentido, se anunciando como reflexiva ao prezar por certo silncio nas pginas atravs de imagens diferenciadas e de uma diagramao clean. O estilo individualizado da revista se estende tambm s pautas.

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voc, mas tambm se assume como eu ou como ns, fazendo confidncias, compartilhando experincias, fazendo juzos de valor, indicando caminhos. Vemos atravs da Vida Simples e aps visita a qualquer banca de revistas que o discurso pedaggico reiterado no ritual dos verbos imperativos, das dicas, dos guias, dos elementos que se repetem constantemente para trazer tranquilidade e identificao, dos artefatos de autoajuda, dos como das capas, das promessas das chamadas, das perguntas que buscam atrair o leitor e reafirmar o poder da revista em responder, das modalizaes em passos para seguir. Pensando a reiterao como estratgia de apreenso e fixao, as informaes apresentadas em todas edies ao longo de vrios textos acabam ensinando o leitor, no s em relao s maneiras de levar a sua vida, mas tambm quanto aos modos de se portar diante do texto das revistas. Esses rituais organizam um modo discursivo pedaggico, sob a gide da informao jornalstica, tomado por uma questo ordenativa e performativa, que constituem o que denominamos discurso pedaggico do jornalismo de revista. Notamos ainda que algumas reportagens e colunas apresentam lembretes que acabam impondo um limite ao prprio ensinamento que feito, o que vai ao encontro da anlise de Silva (2005) de que a mdia ao mesmo tempo em que estimula o desejo, por outro lado sugere o controle: Diz faa, mas mea as consequncias, criando dessa maneira estilos de vida, modelos de existncia a serem seguidos (p. 2, grifos da autora). Sempre h, pois, um no-deve para cada deve (BAUMAN, 2008a), acionado por verbos imperativos que determinam aes para ensinar o que o leitor deve seguir e o que deve evitar. O uso do imperativo, diga-se, pode ser verificado em muitas publicaes (GOMES, I., 2006) e uma marca do discurso pedaggico das revistas. Cabe ressaltar que, quando analisamos a posio de aconselhamento da mdia, no buscamos fechar os sentidos, como se o discurso fosse apenas pedaggico. Isso porque entendemos que o modo de construo discursiva do contedo pedaggico tomado por uma questo ordenativa-, mas h tambm a interpelao de outros discursos, de outros modos de discursivizar que no s o pedaggico.

1.5

O CONTEXTO DA SOCIEDADE CONTEMPORNEA J que no existe discurso que no seja contextualizado (CHARAUDEAU;

MAINGUENEAU, 2008), importante compreender alguns aspectos deste tempo em que

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afloram ttulos de revistas ensinando a audincia modos de proceder no cotidiano e fornecendo dicas sobre como a audincia deve administrar suas identidades muitas vezes deterioradas. Segundo Castells (2006), o fato de a mdia tratar de substncias prejudiciais sade ou do efeito do comprometimento do meio ambiente sobre a vida das pessoas traz para dentro de casa problemas sistmicos de um modo muito mais ostensivo do que qualquer outro tipo de discurso tradicional. Isso acontece principalmente nos discursos que tratam tanto da sade e do bem-estar quanto do meio ambiente, porque eles esto ancorados num imperativo contemporneo que coloca o indivduo como a medida de tudo. Se parece consenso evidenciar que o perodo atual possui caractersticas peculiares que o diferem de formas de vida precedentes, nome-lo parece estar longe de ser uma unanimidade. Harvey (2008) pontua que uma das incertezas que torna difcil avaliar e explicar a mudana que todos concordam ter ocorrido entre os tempos a de que os sentimentos modernistas podem ter sido desconstrudos ou ultrapassados, mas no se sabe a coerncia ou o significado dos sistemas de pensamento que os substituram. Entre alguns pesquisadores, parece consensual a aceitao do termo ps-moderno, no sentido de estabelecer um acordo sobre a natureza fundamental de certa ruptura decisiva entre o momento moderno e ps-moderno, seja qua