gico - o capital jurídico e o ciclo da litigância

30
REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO 9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013 18 435 : RESUMO ESTE ARTIGO EXPLORA A POSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO COMO UM BEM DE CAPITAL E AS IMPLICAÇÕES DESSA INTERPRETAÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO COMPORTAMENTO AGREGADO DA LITIGIOSIDADE BRASILEIRA. A TEORIA INDICA QUE PODE HAVER UMA RELAÇÃO DIRETA ENTRE O ESTOQUE REAL DE CAPITAL JURÍDICO EM UM DETERMINADO ORDENAMENTO E O COMPORTAMENTO AGREGADO DE LITIGANTES, POIS UMA OFERTA SUBÓTIMA DE SEGURANÇA JURÍDICA GERA INCENTIVOS PRIVADOS AO LITÍGIO. ESSA INTER-RELAÇÃO DEVE GERAR UM COMPORTAMENTO CÍCLICO DE LITIGÂNCIA, NÃO OBSERVADO NO BRASIL. PALAVRAS-CHAVE JUDICIÁRIO; SEGURANÇA JURÍDICA; CAPITAL JURÍDICO; CICLO DA LITIGÂNCIA; BRASIL. Ivo Teixeira Gico Jr. O CAPITAL JURÍDICO E O CICLO DA LITIGÂNCIA ABSTRACT THIS PAPER EXPLORES THE INTERPRETATION OF LAW AS CAPI - TAL GOOD AND ITS IMPLICATIONS REGARDING THE AGGREGATE BEHAVIOR OF BRAZILIAN LITIGATION. THE THEORY INDICATES THAT THERE MAY BE A DIRECT LINK BETWEEN THE REAL STOCK OF LEGAL CAPITAL WITHIN A LEGAL ORDER AND THE AGGREGATE BEHAVIOR OF LITIGANTS, SINCE A SUBOPTIMAL OFFER OF LEGAL CERTAINTY CREATES INCENTIVES TO LITIGATE. THIS INTERRELATIONSHIP IS SUPPOSED TO GENERATE A CYCLI - CAL LITIGATION, WHICH IS NOT OBSERVED IN BRAZIL. KEYWORDS JUDICIARY; LEGAL CERTAINTY; LEGAL CAPITAL; LITIGATION CYCLE, BRAZIL. * THE LEGAL CAPITAL AND THE LITIGATION CYCLE INTRODUÇÃO Todas as sociedades modernas possuem um sistema jurídico que estabelece regras de convivência. Tais regras são restrições institucionais formais que restringem o con- junto de possibilidades de cada um de seus integrantes, sendo variável o grau de sucesso alcançado por cada civilização neste esforço. É lugar-comum a concepção de que, para alcançar o desenvolvimento sustentável, é necessário que uma dada socie- dade desenvolva e mantenha um sistema jurídico que funcione bem e dê sustentação a um bom sistema de governança (DAM, 2006). Nesse sentido, no início dos anos 1990, várias agências internacionais, como as Nações Unidas (COURT, HYDEN; MEASE, 2003) e o Banco Mundial (MESSICK, 1999; WORLD BANK, 2001), começaram a

Upload: lucas-nonato

Post on 11-Jan-2016

218 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

GICO - O Capital Jurídico e o Ciclo Da Litigância

TRANSCRIPT

  • REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18 435:

    RESUMOESTE ARTIGO EXPLORA A POSSIBILIDADE DE INTERPRETAO DODIREITO COMO UM BEM DE CAPITAL E AS IMPLICAES DESSA

    INTERPRETAO PARA A COMPREENSO DO COMPORTAMENTO

    AGREGADO DA LITIGIOSIDADE BRASILEIRA. A TEORIA INDICA QUEPODE HAVER UMA RELAO DIRETA ENTRE O ESTOQUE REAL DE

    CAPITAL JURDICO EM UM DETERMINADO ORDENAMENTO E O

    COMPORTAMENTO AGREGADO DE LITIGANTES, POIS UMA OFERTASUBTIMA DE SEGURANA JURDICA GERA INCENTIVOS PRIVADOS

    AO LITGIO. ESSA INTER-RELAO DEVE GERAR UM COMPORTAMENTOCCLICO DE LITIGNCIA, NO OBSERVADO NO BRASIL.

    PALAVRAS-CHAVEJUDICIRIO; SEGURANA JURDICA; CAPITAL JURDICO; CICLODA LITIGNCIA; BRASIL.

    Ivo Teixeira Gico Jr.

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA

    ABSTRACTTHIS PAPER EXPLORES THE INTERPRETATION OF LAW AS CAPI-TAL GOOD AND ITS IMPLICATIONS REGARDING THE AGGREGATE

    BEHAVIOR OF BRAZILIAN LITIGATION. THE THEORY INDICATESTHAT THERE MAY BE A DIRECT LINK BETWEEN THE REAL

    STOCK OF LEGAL CAPITAL WITHIN A LEGAL ORDER AND THE

    AGGREGATE BEHAVIOR OF LITIGANTS, SINCE A SUBOPTIMALOFFER OF LEGAL CERTAINTY CREATES INCENTIVES TO LITIGATE.THIS INTERRELATIONSHIP IS SUPPOSED TO GENERATE A CYCLI-CAL LITIGATION, WHICH IS NOT OBSERVED IN BRAZIL.

    KEYWORDSJUDICIARY; LEGAL CERTAINTY; LEGAL CAPITAL; LITIGATIONCYCLE, BRAZIL.

    *

    THE LEGAL CAPITAL AND THE LITIGATION CYCLE

    INTRODUOTodas as sociedades modernas possuem um sistema jurdico que estabelece regras deconvivncia. Tais regras so restries institucionais formais que restringem o con-junto de possibilidades de cada um de seus integrantes, sendo varivel o grau desucesso alcanado por cada civilizao neste esforo. lugar-comum a concepo deque, para alcanar o desenvolvimento sustentvel, necessrio que uma dada socie-dade desenvolva e mantenha um sistema jurdico que funcione bem e d sustentaoa um bom sistema de governana (DAM, 2006). Nesse sentido, no incio dos anos 1990,vrias agncias internacionais, como as Naes Unidas (COURT, HYDEN; MEASE,2003) e o Banco Mundial (MESSICK, 1999; WORLD BANK, 2001), comearam a

  • investir recursos na reforma de sistemas legais e judicirios de diversos pases, aindaque a importncia do sistema jurdico para o desenvolvimento fosse reconhecida hmuito tempo por pensadores como Max Weber (1999 [1920]), um jurista e econo-mista de formao, e tambm pelos participantes do movimento Law and Developmentda dcada de 1960 (BURG, 1997).

    No obstante, considerando que instituies formais e informais (cfr. NORTH,2007 [1990]) so em larga medida idiossincrticas a cada povo, no Brasil aindah pouca discusso acerca de como tais instituies so criadas e quais so maisbenficas ou prejudiciais a esse empreendimento coletivo que a busca pelo desen-volvimento. Do ponto de vista das instituies formais, h pouca pesquisa sobrecomo os agentes sociais se mobilizam para a criao de regras de direito (Rule ofLaw) e quais as estruturas de incentivos necessrias para que isso ocorra. Nesse con-texto, o Judicirio cumpre um papel fundamental, pois o sistema legal estruturado substancialmente sobre essa organizao, e seu desempenho pode deter-minar, em ltima instncia, quo bem funciona o sistema de governana dasociedade brasileira. H evidncias empricas persuasivas de que sistemas judiciaisbem estruturados contribuem para o crescimento econmico (SHERWOOD;SHEPHERD; SOUZA, 1994; PINHEIRO, 1996).

    A questo ainda mais relevante quando se reconhece que o Judicirio brasilei-ro est em crise h anos, passando pela CPI do Judicirio de 1999 at a recentedisputa acerca da competncia ou no do Conselho Nacional de Justia CNJ parainvestigar magistrados. Mas o principal aspecto do que informalmente se chama de aCrise do Judicirio a sua morosidade endmica e persistente em resolver deman-das judiciais. Desde a dcada de 1970, o Ministro do Supremo Tribunal Federal eautor do atual Cdigo de Processo Civil CPC, Alfredo Buzaid, j apontava para esteproblema (1972, p. 144 e ss.), decorrente de um descompasso entre a oferta e ademanda de servios pblicos adjudicatrios que impossibilitava o cumprimento deprazos judiciais.

    O objetivo do presente artigo propor uma teoria do comportamento doJudicirio enquanto organizao em um sistema jurdico romano-germnico como onosso, e investigar como os agentes sociais interagem para estabelecer o nvel timode utilizao dessa tecnologia jurdica. A compreenso da inter-relao entre a for-mao e a depreciao das regras jurdicas, aqui consideradas uma forma de bem decapital o capital jurdico e seu papel definidor no ciclo da litigncia, permitirum novo entendimento de como a organizao do prprio Judicirio pode contribuirpara o comportamento da litigiosidade.

    O texto est organizado da seguinte forma: aps esta introduo, no item 1, apre-sentamos um rascunho de uma teoria juseconmica do Estado para demonstrar afuno social do Judicirio e, em especial, sua capacidade de produzir regras jurdi-cas que limitem os espaos de atuao dos agentes pblicos e privados, i.e.,

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:436

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • determinem comportamentos. No item 2, discutimos como a segurana jurdica (esta-bilidade, uniformidade e coerncia do sistema de regras) pode ser compreendida comoum bem de capital, e em seguida, no item 3, discutimos os mecanismos sociais dedepreciao e reposio desse capital que dar origem ao ciclo da litigncia; depoisdesse item, seguem, ento, as concluses.

    1 A FUNO SOCIAL DO JUDICIRIOO problema fundamental do desenvolvimento econmico criar um ambiente institu-cional, dentro das possibilidades tecnolgicas e das dotaes disponveis, que fomente acooperao, aqui entendida como a coordenao de atividades produtivas entre os agen-tes e trocas voluntrias. Essa abordagem possui um aspecto privado e outro pblico.

    Do ponto de vista privado, os agentes precisam desenvolver regras que os per-mitam migrar do estado da natureza para a sociedade civil. No estado da natureza cadaagente deve estabelecer continuamente a alocao dos recursos disponveis entre ati-vidades produtivas (e.g. caa, coleta, plantio) e atividades distributivas (e.g. doar, roubar,matar). A alocao tima de recursos depender das caractersticas pessoais (e.g. fora,agilidade, altura, sade) e ambientais (e.g. fartura, famlia, presena de predadores)de cada agente.

    No estado da natureza, recursos escassos devem, portanto, ser alocados entre aproduo e predao (atividades distributivas involuntrias). Como as atividades preda-trias e de defesa no produzem qualquer riqueza, isto , so atividades meramenteredistributivas, todos os recursos a elas alocados so desperdiados do ponto de vistasocial, i.e., reduzem o bem-estar social.

    Teoricamente, possvel que uma troca coercitiva gere bem-estar social lquidopositivo, desde que o expropriador atribua mais utilidade ao bem que o expropriado.Todavia, se trocas coercitivas fossem permitidas, considerando que no possvel acomparao intersubjetiva de utilidade, mesmo aqueles que atribuem menor valor aobem que seu detentor original teriam incentivos para falsear sua valorizao dizendoque o valorizam mais, no intuito de adquiri-lo coercitivamente. Esse comportamen-to oportunista se repetiria, e ressurgiriam os incentivos para alocar recursos entreatividades predatrias e defensivas. Estaramos de volta ao estado da natureza. Assim, a limitao impositiva a trocas voluntrias (livres de ameaa e coero) que garan-te que ambos os agentes esto se beneficiando da troca e, portanto, que o bem-estarsocial aumenta.

    Em um cenrio de trocas voluntrias, produtores e predadores poderiam melho-rar sua situao se encontrassem uma forma crvel de cooperar e alocassem os recursosantes destinados predao e proteo s atividades produtivas. Tal alocao gerariaum excedente que poderia, ento, ser compartilhado entre ambos os grupos de acordocom alguma regra distributiva. Obviamente, a distribuio do excedente cooperativo

    437:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • dependeria do poder de barganha de cada agente, mas independentemente da distri-buio, essa cooperao seria Pareto-eficiente.

    Esse estado de cooperao o que se convencionou chamar de sociedade civil epressupe, necessariamente, a presena de regras impostas aos agentes por algumaorganizao. Nas sociedades modernas, a organizao que elabora e impe essas regras chamada Estado. No necessrio que essa organizao seja democrtica para gerarbem-estar social, basta que haja a converso do estado da natureza para a socieda-de civil. Uma abordagem da histria humana compatvel com essa breve descrioquase hobbesiana pode ser encontrada em Acemoglu e Robinson (2006) e em North,Wallis e Weingast (2009).

    A essas regras de convivncia que se diferenciam da moral e dos costumes e soimpostas pelo Estado se convencionou chamar direito (instituio formal). O pri-meiro instrumento para criar um compromisso crvel de cooperao e superar oestado de natureza foi o estabelecimento do direito de propriedade. Com o estabe-lecimento e reconhecimento desse direito, a cada agente informado de forma clarae precisa o que a coletividade reconhece como lhe pertencendo logo, sobre quaisrecursos pode exercer seu domnio.

    A definio clara do direito de propriedade de cada indivduo libera recursos dasatividades de predao e proteo e gera excedentes. Para maximizar a utilidade doagente produtor, esses excedentes precisam ser trocados com outros agentes possui-dores de excedentes de outros bens, funo para a qual o direito de propriedade condio necessria (para que no haja predao), mas no suficiente.

    Em trocas instantneas, em que cada lado apresenta simultaneamente o seu produ-to ao outro lado, basta o estabelecimento claro e preciso do direito de propriedade paraque as trocas ocorram. Estaramos no mundo do escambo. Todavia, medida que as tro-cas se tornam mais sofisticadas, as contraprestaes se tornam diferidas no tempo e onmero de agentes envolvidos cresce; o espao para comportamentos oportunistas tam-bm aumenta e surge uma crise de confiana recproca que no limite impede a troca(ou a expanso do mercado livre, em um vocabulrio smithiano). O escambo no maisum mecanismo suficiente e adequado para gerar a confiana mtua necessria para asuperao do problema de desconfiana recproca.

    Diversas estratgias foram utilizadas ao longo da histria humana para tentarsuperar o problema da desconfiana recproca (DIXIT, 2007), desde reputao, guil-das e controles informais at a restrio das trocas feita a membros de uma mesmaordem religiosa ou a troca de refns como arras (para alguns exemplos, ver GREIF,2006). Todavia, essas tecnologias negociais possuem claras limitaes, como a neces-sidade de mecanismos pessoais de retaliao (e.g. ficar com um parente em garantia)ou a presena de interaes reiteradas (e.g. reputao). Em uma sociedade moderna,na qual as interaes sociais em larga medida so annimas e uma parte substancialdelas depende da interao de agentes que no se conhecem e, provavelmente, nunca

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:438

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • se conhecero, tais mecanismos so precrios e insuficientes para dar sustentao ordem social tal como a conhecemos. Na presena de uma autoridade central impar-cial com poder de imposio sobre os agentes negociadores (coero), a utilizao dodireito contratual pode ser uma alternativa superior.

    O direito contratual uma tecnologia jurdica desenvolvida para permitir queagentes realizem promessas uns aos outros e impeam que suas contrapartes desviem-se das promessas feitas. A ideia bsica que se os agentes realizam trocas voluntrias,benficas ex ante para ambos (na opinio deles mesmos), e se um terceiro desinteres-sado pode impor tais obrigaes assumidas na presena de tentativas de burlar ocontrato (comportamento oportunista), ento a possibilidade de imposio do com-portamento acordado superaria o problema da desconfiana recproca, e as partescooperariam ex ante (confiariam). O direito contratual, portanto, um instrumento decoordenao de agentes que os impede de adotar comportamentos oportunistas ex post,gerando assim a confiana necessria para a realizao de investimento e de trocasdiferidas no tempo.

    O problema que uma organizao to forte a ponto de conseguir impedir quequalquer um usurpe a propriedade de outrem e de fazer cumprir obrigaes volunta-riamente assumidas tambm capaz de expropriar e impor obrigaes, razo pelaqual so necessrias limitaes ao prprio poder do Estado. Tais limitaes permeiamtodas as reas do direito, mas esto especialmente presentes no direito constitucional(lei fundamental que organiza o Estado), administrativo (regras sobre como procederperante o administrado), tributrio (regras sobre como expropriar para financiar) efinanceiro (regras sobre como gastar os recursos arrecadados).

    Alm de restries jurdicas, a estratgia organizacional adotada pela maioria dasnaes para limitar o poder estatal foi dividi-lo em entes relativamente autnomos,que seriam menos poderosos que o todo, os quais se controlariam e se contraporiamuns aos outros. o que se convencionou chamar de separao dos poderes. A formacomo cada sociedade escolheu para realizar tal diviso varia de pas para pas, mas adiviso enquanto estratgia quase universal, principalmente em democracias.

    No Brasil, a Constituio Federal estabelece que a Unio formada por Poderesindependentes: Art. 2 So Poderes da Unio, independentes e harmnicos entre si, oLegislativo, o Executivo e o Judicirio. Os detalhes de cada Poder esto previstos emseu Ttulo IV Da Organizao dos Poderes, sendo institudo um Poder Legislativo, aquem compete precipuamente o poder de elaborar as leis (art. 44 e ss. da CF), umPoder Executivo, a quem compete precipuamente executar as leis e implementar aspolticas pblicas (art. 76 e ss. da CF) e um Poder Judicirio, a quem compete preci-puamente aplicar as leis em casos de conflito (art. 92 e ss. da CF).

    Em nosso sistema, as regras a serem aplicadas so (ou deveriam ser) elaboradasmajoritariamente pelo Congresso Nacional, composto pela Cmara dos Deputados epelo Senado (art. 44 da CF), cujos membros so representantes eleitos do povo. J a

    439:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • execuo dessas regras e das polticas pblicas delas decorrentes fica preponderante-mente a cargo do Presidente da Repblica (art. 76 da CF), tambm eleito pelo povo(art. 77 da CF). Por fim, o Judicirio, a quem compete fazer valer as leis e aConstituio (art. 5, inc. XXXV da CF), no composto por representantes do povo,mas por bacharis em direito concursados (art. 93, inc. I da CF) ou advogados emembros do Ministrio Pblico, nomeados pelo Poder Executivo e aprovados peloSenado Federal (art. 94, 101, nico e 104, nico da CF).

    A explicao comumente oferecida para que os membros do Poder Judicirio nosejam polticos, mas burocratas, que seu papel seria de aplicao independente dasleis aprovadas pelo Poder Legislativo e pelo Executivo (veto) e, portanto, quanto maisdistantes do jogo poltico e de suas naturais flutuaes, melhor. Como a funo pre-ponderante do Judicirio tcnica, ou seja, aplicar a lei, no seria necessrio e muitomenos recomendvel que seus integrantes tivessem interesses polticos nas causas quejulgam. Os juseconomistas costumam chamar esse papel de fazer valer as regras(enforcement). O Judicirio tem, pois, um papel impositivo.

    No intuito de estruturar uma organizao o mais independente possvel do jogopoltico, o constituinte originrio no se limitou a estruturar um Judicirio formadopor burocratas; ele tambm estabeleceu garantias para que fosse externa e interna-mente difcil exercer presses polticas sobre seus membros, em especial:

    (i) a vitaliciedade (art. 95, inc. I da CF): um magistrado no pode ser demitidopelos demais Poderes, mas apenas pelo prprio Poder Judicirio em deciso defi-nitiva (transitada em julgado) e em casos muito restritos;

    (ii) a inamovibilidade (art. 95, inc. II da CF): um magistrado no pode ser reti-rado de sua rea de jurisdio, para que no se possa manipular o resultado dosjulgamentos trocando-o por magistrado que seja favorvel a uma determinadaposio; e

    (iii) a irredutibilidade de subsdios (art. 95, inc. III da CF): um magistrado nopode ter seu salrio, chamado subsdio, reduzido por seus superiores ou pelosdemais Poderes.

    Alm dessas garantias constitucionais, outras garantias esto previstas na LeiOrgnica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n. 35 de 1979).Independentemente dos possveis incentivos ao comportamento oportunista que talestrutura de proteo possa gerar, a organizao burocrtica e a concesso de inme-ras garantias aos membros da magistratura tm como finalidade principal a formaode uma organizao que possa desempenhar sua funo impositiva (fazer valer as leis)de forma independente dos demais Poderes.

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:440

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • Em termos juseconmicos, possvel se compreender a estrutura brasileira deseparao de poderes como um mecanismo desenhado para que o Judicirio seja umaorganizao em que a riqueza e o poder de seus membros (utilidade) no dependam doresultado de seus julgamentos e, portanto, que os magistrados no tenham interessepessoal em relao ao resultado das decises que prolatam.

    A ideia que, como a utilidade do magistrado no depende do resultado doprocesso, em tese os magistrados se comportariam como agentes desinteressados naimplementao e proteo de barganhas polticas realizadas pelos membros dosdemais Poderes convertidas em leis, bem como garantiriam que o acordo origin-rio sobre a estrutura do prprio Estado (Constituio) no fosse violado. Aexistncia de um terceiro desinteressado que faa valer no longo prazo as bar-ganhas polticas necessrias para acomodar os interesses de uma sociedade pluraltem funo semelhante para os grupos polticos e para os particulares: superar oproblema da desconfiana recproca. No primeiro caso, essas barganhas chamam-seleis, e no segundo, contratos.

    No esprito de proteo da sociedade civil e de limitao de poder e controlemtuo, em caso de divergncia de interesses entre agente (magistrado) e principal(Executivo e Legislativo), como os demais poderes podem alinhar o comportamentodos magistrados a seus interesses polticos? A resposta da teoria jurdica tradicional simples: o magistrado servo e no senhor da lei, ele deve se submeter ao seu coman-do quando agir. Por bvio, se a teoria jurdica tradicional funcionasse, bastaria mudara legislao, pois como a funo do Judicirio em tese apenas aplicar a lei, emalterando-se o parmetro (lei) o comportamento dos magistrados em cada julgamen-to tambm deveria ser alterado (deciso).

    Essa viso comum no meio jurdico quando se diz que, em um Estado de Direito,como o que o Estado brasileiro se prope a ser (art. 1 da CF), o magistrado servo eescravo da lei, e a sentena pronunciada seria fruto do silogismo desta com os fatos (sub-suno). O magistrado se limitaria aplicao e interpretao da lei (vontadepopular), independentemente de suas prprias convices (vontade pessoal).Obviamente, essa proposio, ainda ensinada nos bancos das faculdades, no parecemuito compatvel com um modelo de um agente racional maximizador. Essa questo foie tem sido debatida por inmeros estudiosos; destacamos o alerta de Carl Schmitt(1996 [1982]), a modelagem pioneira de Cooter (1983) e de Posner (1993) e o recen-te estudo emprico realizado por Danziger, Levav e Avnaim-Pesso (2011), a demonstrarque juzes so influenciados por outras questes que no apenas a lei no momento dedecidir.1

    Nos termos da literatura de agente-principal, na estrutura de incentivos brasileirah propenso ao surgimento de problemas de comportamento oportunista por partedos magistrados (agentes), pois, uma vez estabelecida a sua independncia, nada garan-te que o Judicirio se ater ao texto da lei em vez de simplesmente passar a elaborar

    441:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • regras que reflitam melhor as preferncias pessoais de cada magistrado.Uma primeira resposta a esse problema de agncia deveria ser a escolha pelos

    demais Poderes dos membros integrantes do Supremo Tribunal Federal STF (art. 101, nico da CF), responsvel pela ltima palavra em questes constitucionais, e doSuperior Tribunal de Justia STJ (art. 104, nico da CF), responsvel pela lti-ma palavra em questes de legalidade federal. Essa pr-seleo deveria ser suficientepara alinhar tais interesses. No entanto, como os Ministros so praticamente intocveis(vide garantias constitucionais), uma vez escolhidos, esse mecanismo de alinhamen-to ex ante (pr-seleo) claramente falho ex post.

    o que parece indicar a pouca evidncia emprica a respeito, como o estudo deJaroletto e Mueller (2011), a deciso do STF ao julgar a ADI n. 4277 e a ADPF n. 132,na qual foi reconhecida a unio estvel para casais do mesmo sexo, a despeito da lite-ralidade do art. 226, 3 da CF2 e do art. 1.723 do CC3 e outros casos, como o dademarcao de terras em Raposa Serra do Sol (Pet 3388), o da imposio de fidelida-de partidria (ADI n. 3.999 e ADI n. 4086), o da proibio de nepotismo (SmulaVinculante n. 13) e o do uso restrito de algemas (Smula Vinculante n. 11). Ao quetudo indica, na ausncia de outros mecanismos de controle, o ativismo judicial umresultado previsvel dessa estrutura de incentivos (o que no deixa de ser um exem-plo de problema agente-principal).

    Essa estrutura de incentivos gera efeitos indesejveis, tanto do ponto de vista dealinhamento entre o Executivo, o Legislativo e o Judicirio, que chamaremos de ali-nhamento entre poderes, quanto do ponto de vista de alinhamento de incentivosdentro do prprio Judicirio, que dividimos em alinhamento horizontal (den-tro de um mesmo nvel na organizao judiciria) e vertical (entre nveis diversosna organizao).

    Mas, deixando de lado, por ora, os problemas de incentivos gerados pela estrutu-ra organizacional do Judicirio brasileiro, fato que a criao de um Estado para darsuporte sociedade civil e a limitao do poder estatal para proteger e manter essamesma sociedade civil so os aspectos pblicos do problema fundamental de busca demecanismos para criao da cooperao entre os agentes, cerne do desafio de desen-volvimento de todas as naes.

    O Judicirio desempenha um papel central dentro desse arcabouo institucional.Do ponto de vista privado, a ele compete proteger os direitos atribudos a cada cidado,inclusive o direito de propriedade, bem como as alocaes de tais direitos realizadaspelo prprio agente na realizao de contratos. Enquanto o primeiro papel evita odesperdcio de recursos com atividades predatrias meramente redistributivas, o segun-do, ao eliminar ou mitigar a possibilidade de comportamentos oportunistas, permitea superao do problema de desconfiana recproca e viabiliza a realizao de contra-tos complexos.

    Alm disso, do ponto de vista pblico, as barganhas polticas negociadas entre os

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:442

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • vrios grupos integrantes do Legislativo e do Executivo materializam-se na forma delegislao, que depois deve ser aplicada (enforced). o Judicirio que ao aplic-la garante credibilidade aos acordos polticos consubstanciados em lei. Essa credibilidadepermite a cooperao de longo prazo entre grupos e reduz conflitos, comportamentosoportunistas e o emprego da violncia. Por outro lado, tal sistema s autossusten-tvel se o poder do prprio Estado for restringido, razo pela qual regras limitadorasdevem ser impostas a todos os entes componentes do Estado e compete precipua-mente ao Judicirio impor (enforce) tais regras em casos de conflito. Podemos, ento,ilustrar o papel central do Judicirio da seguinte forma:

    FIGURA 1 A FUNO SOCIAL DO JUDICIRIO

    A funo do Judicirio , pois, atuar como um terceiro desinteressado capaz deimpor s partes, ex post, as obrigaes pblicas (lei) e privadas (contrato) assumidas exante, fazendo com que o retorno esperado do comportamento desviante seja negati-vo. Como o comportamento desviante deixa de ser interessante para o agente social,as promessas realizadas por cidados e grupos polticos passam a ser crveis e supe-ra-se, assim, o problema da desconfiana recproca. O resultado a cooperao.

    Nesse sentido, podemos pensar no direito como um conjunto de regras fruto daexperincia humana que vo se acumulando com o tempo, e medida que a socieda-de avana e cria novas situaes, novas regras so criadas e antigas so reformuladasou, simplesmente, abandonadas. Esse conjunto de regras informam aes e permitem a

    443:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

    Negociao entre cidados

    Negociao entre polticos

    Contratos

    Leis

    Judicirio

    As garantias fazem comque a riqueza e o poderdo aplicador no variemcom a proteo dos contratose aplicao das leis

    Necessidadede um aplicador(enforcer)independente

  • cooperao impessoal, viabilizando a estrutura da sociedade moderna. Mas como esseconjunto de regra se forma e funciona? essa a pergunta que passamos a explorar noitem seguinte.

    2 O DIREITO COMO CAPITAL JURDICOA primeira referncia ao conjunto de regras jurdicas como um bem capital, comcaractersticas de bem pblico, o trabalho de Buchanan (2000 [1975]). ParaBuchanan, os benefcios decorrentes da criao de uma regra jurdica, isto , o retor-no (yield) esperado no auferido apenas em um perodo, como em um show defogos de artifcio, mas continuamente no futuro, como se viesse de um farol. O prin-cipal objetivo de se adotar leis seria restringir comportamentos em perodos futuros;restries que, por sua vez, quando impostas a toda a coletividade, permitiriam oplanejamento incorporador de previses mais acuradas. O direito seria, portanto,um bem durvel cuja utilidade se usufrui no decorrer do tempo (BUCHANAN, 2000[1975], p. 99 e ss.).

    No ano seguinte publicao do trabalho de Buchanan, outros dois autores, Landese Posner (1976), elaboraram um modelo juseconmico para a anlise de preceden-tes legais derivado da teoria de formao de capital e investimento. Considerando aorigem norte-americana dos autores, no modelo proposto foram consideradas apenasas regras jurdicas decorrentes de decises judiciais com fora vinculante, os chama-dos precedentes, tendo sido excludas as regras jurdicas oriundas de leis, constituioe regulao. No presente item e subitens, adaptamos este modelo para que seja apli-cvel a todo e qualquer tipo de regra jurdica e, assim, possa ser aplicado realidadede um sistema jurdico romano-germnico, como o brasileiro.

    2.1 A APLICAO E A CRIAO DE REGRAS JURDICAS PELO JUDICIRIODe incio importante chamar a ateno para o fato de no haver a figura dos prece-dentes no ordenamento jurdico brasileiro. O nosso sistema jurdico, de origemromano-germnica, baseado em leis e cdigos, isto , em normas escritas. Mesmo assmulas vinculantes, emitidas por Tribunais Superiores, funcionam mais como disposi-tivos de lei do que como precedentes propriamente ditos. Assim, quando as partes deuma disputa so incapazes de chegar a um acordo, elas levam sua questo (lide) paraser decidida por um magistrado. No curso do processo, para que possa tomar umadeciso sobre a lide, primeiro o magistrado deve decidir qual a legislao aplicvel aocaso concreto. Essa legislao normalmente estabelece uma regra de deciso, que omagistrado usar para analisar o caso. Uma vez identificada (ou decidida) qual a regraaplicvel, basta ao magistrado realizar um exerccio de subsuno entre a regra jurdi-ca escolhida e os fatos demonstrados no processo para decidir quem tem razo.

    Apenas na inexistncia de lei sobre a questo em juzo (lacuna jurdica) que

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:444

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • pode (ou deveria) um magistrado criar uma regra. Primeiro, consultando outras leispara casos parecidos (integrao por analogia); depois, se no houver lei passvel deanalogia para caso semelhante, buscando costumes sociais que estabeleam uma solu-o para a questo (integrao por costume); e, por fim, se no houver nem um nemoutro, o magistrado pode criar uma regra com base em um princpio jurdico, que nadamais que um padro jurdico extremamente amplo (integrao principiolgica). o que determina a Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lein. 4.657, de 4/7/42): Art. 4. Quando a lei for omissa, o juiz decidir o caso deacordo com a analogia, os costumes e os princpios gerais de direito. Como se podever, no Brasil, at a forma de se aplicar as leis est prevista em lei.

    Considerando-se que nesse sistema a regra aplicvel ao caso concreto aquela jprevista na legislao, o exerccio de subsuno realizado pelo magistrado em prin-cpio no seria relevante, pois tudo que o magistrado precisa saber para os prximoscasos a regra jurdica, que est contida na lei e no na deciso judicial anterior. por isso que no Brasil se diz que uma deciso judicial vincula apenas as partes envolvi-das no processo e no gera qualquer tipo de limitao ou vinculao para magistradosem outras decises futuras. O que vincula (ou seria) a regra estabelecida pela lei eno a interpretao da regra adotada por algum outro magistrado, ainda que de umainstncia superior. Em resumo, no Brasil, a jurisprudncia, conjunto de decisesanteriores, no tem fora vinculante, mas apenas persuasiva.

    J em sistemas consuetudinrios, como o norte-americano, uma parte substan-cial do direito e, em especial, o direito civil, em larga medida o resultado doconjunto de decises proferidas anteriormente por magistrados em casos iguais ousemelhantes.A pergunta acerca de qual a regra jurdica deve prevalecer em um dadocaso preponderantemente respondida no pela consulta a cdigos e leis, mas median-te a consulta s formulaes que algum magistrado criou para resolver casos anteriorescujos fatos so semelhantes aos do caso em anlise. Como normalmente essas formu-laes so restritas ao caso concreto, necessrio um conjunto de decises para definirum comando normativo genrico o bastante para ser aplicado a casos futuros. Essaformulao ou regra jurdica chamada de precedente.4 Se houver um caso anteriorsemelhante, aplica-se o precedente ( o que se chama de stare decisis, est decidido). Docontrrio, o magistrado cria uma regra nova para o caso em juzo, que poder se tor-nar um precedente para casos futuros, se seguido.

    Apesar dessa diferenciao tradicional entre o sistema romano-germnico e o sis-tema consuetudinrio, sob uma abordagem mais realista da dinmica processual nosistema brasileiro deve-se reconhecer que em muitos casos a legislao no estabele-ce uma regra clara a ser aplicada pelo magistrado. Essa falta de clareza pode decorrer daadoo de um padro em vez de uma regra, como a interpretao de boa-f dos con-tratos estabelecida pelo Cdigo Civil (Art. 113. Os negcios jurdicos devem serinterpretados conforme a boa-f e os usos do lugar de sua celebrao.) ou a impo-

    445:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • sio de responsabilidade civil em caso de negligncia (Art. 186. Aquele que, porao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causar danoa outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito.). Tanto boa-f quan-to negligncia so conceitos jurdicos indeterminados, cujos significados precisam serconstrudos pelo magistrado no caso concreto. Por isso, os referidos dispositivos legaisno constituem regras de comportamento, mas padres de julgamento a serem cons-trudos pelo Judicirio. J a contagem dos juros de mora desde o momento da citaoinicial (art. 405/CC) ou a vedao de contratos cujo objeto seja herana de pessoasvivas (art. 426/CC) so regras jurdicas claras que demandam pouca ou nenhuma inter-pretao. Logo, so regras legislativas de comportamento, no padres, que informamcomo as partes e o magistrado devem se comportar na presena de um litgio.

    Por outro lado, na prtica, mesmo regras jurdicas cujo contedo perfeitamen-te inteligvel podem ser alteradas pelo Judicirio guisa de uma interpretao maisadequada. Por exemplo, o art. 649, inc. IV do CPC estabelece que so absolutamen-te impenhorveis os vencimentos, subsdios, soldos, salrios, remuneraes, proventosde aposentadoria, [...], os ganhos de trabalhador autnomo e os honorrios de pro-fissional liberal, observado o disposto no 3 deste artigo. Em outras palavras, deacordo com a lei, um magistrado no pode determinar a penhora do salrio de um deve-dor para satisfazer o crdito de um credor. Para que no reste dvida acerca da clarezada lei, o 3 a que se refere o inciso estabelecia uma exceo regra de impenhora-bilidade do salrio, mas essa exceo foi vetada pelo Presidente Lula porque, naspalavras do prprio Presidente,5 uma tradio brasileira proteger devedores:

    3 Na hiptese do inciso IV do caput deste artigo, ser consideradopenhorvel at 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmenteacima de 20 (vinte) salrios mnimos, calculados aps efetuados os descontosde imposto de renda retido na fonte, contribuio previdenciria oficial eoutros descontos compulsrios.

    No obstante, no incomum encontrar decises de Tribunais de Justia permi-tindo a penhora legalmente proibida, desde que limitada a 30% da remunerao. ,por exemplo, a deciso unnime da 1 Turma Cvel do TJDFT adotada no Acrdon. 480791 de 9/2/11 (Rel. Des. Convocado Sandoval Gomes de Oliveira). Para umademonstrao cabal de que este exemplo de alterao jurisprudencial da regra jur-dica prevista em lei no se trata de um caso isolado, basta consultar a pgina criadapelo prprio TJDFT com uma lista dos acrdos favorveis e acrdos desfavorveis penhorabilidade de salrios.6

    possvel discutir se a modificao inserida pelo Judicirio adequada, legtima (ouno), mas independentemente disso, em uma descrio positiva da realidade judicial(GICO JR., 2010, p. 19 e ss.) necessrio reconhecer que no se trata de uma ques-

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:446

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • to de dvida interpretativa, mas sim de alterao judicial da regra jurdica legislati-va (interpretao contra legem). Note que a questo vem sendo decidida para um ladoe para outro h anos (h acrdos de 2006 a 2013 permitindo e proibindo), sem queo TJDFT adote uma posio nica. Assim como nesse caso, h inmeras outras questescujas regras jurdicas aplicadas pelo Judicirio so diferentes das legalmente previs-tas, como a imposio pela Justia do Trabalho de responsabilidade subsidiria do Estadoem questes trabalhistas envolvendo terceirizados (cfr. antiga e atual redao da Smula331 do Tribunal Superior do Trabalho).

    Se at a legislao, na prtica, pode ser alterada pelo Judicirio, ento, mesmo nosistema brasileiro, em que no h a figura do precedente, possvel se aplicar omodelo juseconmico de criao judicial de regras jurdicas, pois a regra de facto nonecessariamente a regra que est prevista em lei, mas sim o resultado da aplicao (ouno) dessa regra pelo prprio Judicirio. Note-se que o argumento no que oJudicirio nunca segue a lei e, por isso, a existncia de lei escrita pode ser ignorada parafins do modelo, ou seja, no se defende a equiparao do sistema brasileiro (romano-germnico) ao norte-americano (consuetudinrio). O que argumentamos que apesarde o nosso sistema ser preponderantemente baseado em leis e cdigos, no raras vezeso Judicirio cria regras jurdicas a despeito do que prev a legislao (mesmo na ausn-cia de lacuna jurdica) e, portanto, a prtica judicial para o bem ou para o mal nospermite considerar o direito que limita as aes dos agentes como o resultado das deci-ses judiciais para fins de anlise positiva.

    Obviamente, saber como funciona um sistema jurdico no vinculado pela lei eem que no h precedentes, isto , onde nem mesmo as decises de seus pares vincu-lam o magistrado na hora de decidir, questo diversa. Fon e Parisi (2006) tentamresponder a essa questo com um modelo dinmico para descrever a evoluo dedecises judiciais em sistemas civilistas, nos quais como dito a jurisprudncia meramente persuasiva. Na ausncia do mecanismo de uniformizao do stare decisis,em que basta uma nica deciso para gerar um precedente, Fon e Parisi consideramque a jurisprudncia tanto mais persuasiva quanto mais consolidada for, sendo pos-svel a existncia de tendncias e modismos. O mais interessante desse modelo queum choque pode produzir insegurana e jurisprudncia dividida que se perpetuamno tempo, em vez de se estabilizar em uma posio consolidada, ou seja, uma peque-na perturbao pode levar insegurana jurdica de longo prazo. Esse resultado compatvel com a discusso realizada anteriormente e refora a ideia aqui defendidade que, em um sistema sem mecanismo de uniformizao de jurisprudncia, possvele provvel que eventuais variaes de entendimentos judiciais no sejam uniformiza-das e o sistema permanea instvel, gerando insegurana.

    Explicado como o Judicirio brasileiro cria regras jurdicas por meio de inter-pretao da legislao, em casos de conceitos jurdicos indeterminados ou lacuna, oupela simples alterao da literalidade da lei (interpretao contra legem), analisemos

    447:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • como essa dinmica pode ser interpretada do ponto de vista juseconmico como ummecanismo de criao, depreciao e reposio de capital jurdico, a partir de umaabordagem da teoria capital-investimento.

    2.2 MODELANDO O DIREITO COMO UM BEM DE CAPITALO capital jurdico de uma sociedade o conjunto de regras jurdicas (original-mente legislativas ou no) que o Judicirio aplica para um certo tipo de caso em umdado momento. Pelo fato de o Judicirio aplicar tais regras quando surge um conflito,os agentes sociais podem realizar previses acerca de como um magistrado resolve-ria determinado tipo de problema. Essa previsibilidade, que chamaremos seguranajurdica, permite aos agentes saberem e negociarem ex ante a quem fica alocado orisco de um determinado evento ou os custos de um determinado sinistro. Alm disso,caso o risco de um determinado evento ou os custos de um determinado sinistro notenham sido expressamente previstos em um contrato, seja porque no h contrato (e.g.em um caso de responsabilidade civil extracontratual), seja porque as partes no ante-viram o evento ou preferiram no regul-lo (lacuna contratual), a previsibilidade daconduta do magistrado permite aos agentes que, na presena do evento conflituoso,emulem o resultado de um julgamento sem precisar recorrer ao Judicirio.

    Assim, por exemplo, em um acidente de trnsito em que uma das partes bate naoutra por trs, j sabendo que o Judicirio vai presumir sua culpa h uma maior proba-bilidade de o condutor que abalroou por trs concordar espontaneamente em indenizaro condutor do veculo da frente. Essa cooperao espontnea (autocomposio) alcanao mesmo resultado que seria alcanado por um julgamento (heterocomposio), semque se incorra nos custos de adjudicao; logo, mais eficiente.

    O capital jurdico de uma sociedade o fruto de suas experincias e valores nodecorrer do tempo. Quanto maior o capital jurdico de uma sociedade, maior o nme-ro de situaes em que os agentes podem antever o provvel resultado de umdeterminado conflito, caso esse fosse levado ao Judicirio; assim, mais fcil alocar ris-cos e custos ou celebrar um acordo extrajudicial. Essa segurana jurdica permite oplanejamento de longo prazo, a melhor alocao de riscos, o desestmulo a determina-dos comportamentos oportunistas e, em ltima anlise, a cooperao entre os agentes.

    A segurana extrada do capital jurdico no consumida em um nico perodo;ela usufruda continuamente enquanto aquelas regras forem aplicadas pelo Judicirio,razo pela qual o capital jurdico um bem durvel (BUCHANAN, 2000 [1975], p. 99e ss.). Nessa linha, seguindo Landes e Posner (1976), podemos model-lo da seguin-te forma. Seja J it o estoque de capital jurdico da sociedade em uma determinada reajurdica i (a i-sima rea do direito) no perodo t. O estoque de capital jurdico oconjunto de regras jurdicas previsivelmente aplicveis a um caso concreto que foramse acumulando no decorrer do tempo em perodos anteriores (t 1, t 2, t 3, etc.).A fim de formarem capital jurdico, essas regras devem ser necessariamente previs-

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:448

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • veis, para que possam gerar segurana jurdica aos agentes e, assim, permitir os ganhosde emulao e previso de uma sentena futura. Regras ambguas ou de difcil aplicabi-lidade no formam capital jurdico. Alm disso, ao contrrio do modelo de Landes ePosner, a origem dessas regras no precisa ser necessariamente judicial, podendo serlegislativa, constitucional ou mesmo administrativa ou regulatria; basta que o resul-tado de sua aplicao seja previsvel e a regra seja mantida pelo Judicirio (estvel),caso venha a ser contestada judicialmente.

    Assim, o estoque de capital jurdico em um perodo t pode ser definido como(LANDES; POSNER, 1976, p. 262 e ss.):

    onde I it-1 0 o investimento bruto em capital jurdico realizado no perodoanterior t 1 e i a taxa de depreciao do capital jurdico no intervalo t 1a t. Para fins de simplificao, pode-se considerar i constante.

    Agora J it pode ser expresso como uma funo dos investimentos e da deprecia-o ocorrida em todos os perodos anteriores. Substituindo J it-1 , J

    it-2 etc., possvel

    reescrever a Equao 3-1 da seguinte forma:

    onde I i0 0 o investimento bruto em capital jurdico realizado no perodo inicial 0.A Equao 3-2 ilustra o argumento de que o investimento em qualquer perodo incre-menta o capital jurdico nos perodos subsequentes, sendo que este incremento vaisendo consumido gradativamente a cada perodo na medida da taxa de depreciao. Em outras palavras, o direito o fruto da experincia acumulada do homem; partedele tambm envelhece, e precisa ser renovada de tempos em tempos.

    Mas como se explica a depreciao do capital jurdico que um capital inte-lectual semelhante ao contedo de um livro ou uma patente? Uma regra jurdicano se deteriora ou consumida no sentido fsico, ela se deprecia no sentido eco-nmico porque o valor social da informao que ela carrega pode declinar nodecorrer do tempo de acordo com as mudanas das circunstncias (LANDES;POSNER, 1976, p. 267 e ss.). Mudanas em condies econmicas ou sociais, nalegislao, nos integrantes do tribunal competente ou em outros parmetros jur-dicos constituem um choque externo que pode reduzir o valor das regras jurdicasem apreo para fins de segurana jurdica e, portanto, a utilidade extrada do capi-

    449:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

    = 1 + ( 1 ) 1 EQUAO 3-1

    = 1 + ( 1 ) 2 + ( 1 )2

    3 + ... + ( 1 ) 1

    0 EQUAO 3-2

  • tal jurdico.A ttulo de exemplo, considere o caso de casais homossexuais que desejavam

    compartilhar os frutos de uma unio civil (e.g. direito penso, seguro-sade, heran-a). At o dia 5 de maro de 2011, data do julgamento conjunto da ADI n. 4.277 eda ADPF n. 132 pelo STF, tendo em vista a interpretao dominante dos Tribunaisno sentido de que o art. 226, 3 da CF e o art. 1.723 do CC vedavam a unio est-vel entre pessoas do mesmo sexo, homossexuais que desejavam os efeitos jurdicosda unio estvel precisavam usar outros mecanismos mais custosos e menos eficazes,como a formao de empresas para aquisio de bens comuns, a criao de condo-mnios de imveis etc., para obter de forma imperfeita os efeitos civis de umaunio estvel, tecnologia jurdica disponvel aos heterossexuais. Independentementede seu juzo de valor com relao legitimidade ou adequao dessa vedao, parafins da anlise proposta aqui o que importa que a regra era clara e, portanto, osagentes sabiam quais direitos lhes eram atribudos ou negados (o que economistastradicionalmente chamariam de definio clara dos direitos de propriedade).Justamente por isso essa regra integrava o capital jurdico brasileiro no perodo atmaro de 2011.

    Com a mudana de entendimento do STF, essa regra foi alterada e passou a ser pos-svel a equiparao da unio homoafetiva entidade familiar, mas exatamente o que issosignificava do ponto de vista jurdico no ficou claro. Por exemplo, o STF reconheceua unio estvel, mas e o casamento? H uma diferena jurdica com algumas implica-es na vida civil entre unio estvel e casamento; no uma diferena meramentenominal. Em junho do mesmo ano, a prpria deciso do STF foi contestada por umjuiz da 1 Vara da Fazenda Pblica Municipal e Registros Pblicos de Goinia, JernymoPedro Villas Boas, que determinou de ofcio o cancelamento do contrato de unioestvel entre o jornalista Leorcino Mendes e o estudante Odlio Torres, que haviasido reconhecido pelo 4 Registro Civil e Tabelionato de Notas de Goinia, e proibiuque os cartrios de Gois reconhecessem outros contratos de unio estvel (cfr.Procedimento Ex-Officio art. 25, 4 do COJEG, TJGO e o Processo n. 3772527 daCorregedoria Geral de Justia do Estado de Gois). Independentemente da decisodesse magistrado, cartrios pelo Brasil afora ficaram na dvida se poderiam ou norealizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Vrias decises judiciais foramproferidas para autorizar ou mesmo comandar tal registro, mas essas decises s tmeficcia sobre os cartrios na jurisdio de cada magistrado ou Tribunal. Em outrascomarcas, magistrados reiteradamente bloqueiam o casamento homossexual.

    Para se ter uma ideia da dificuldade da questo, em 25 de outubro de 2011, aQuarta Turma do STJ, por maioria, reconheceu no REsp n. 118.337-8 / RS o direi-to de casar requerido por duas mulheres gachas. O fundamento foi justamente adeciso anterior do STF. No obstante, como essa deciso do STJ no vinculante (lem-bre-se, no existe precedente no Brasil), outros casais homossexuais interessados em

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:450

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • casar ainda esto merc do entendimento especfico dos cartrios e dos Tribunaisde cada regio. No Rio de Janeiro, por exemplo, todos os pedidos so negados por-que o juiz responsvel na 1 Vara de Registro Pblico do Rio entendia que h vedaolegal e que a deciso do STF no alcana o casamento, mas apenas a unio estvel(cfr. MIRANDA, 2012). No Distrito Federal, um cartrio aceita e o outro no. Comose pode ver, decorridos anos da mudana de posio do STF, no existe de facto umanica regra jurdica em vigor acerca da possibilidade ou no de casamento homos-sexual no Brasil.

    A vedao anterior e suas implicaes jurdicas foram construdas durante o tempoe geravam segurana jurdica, isto , integravam o capital jurdico. Com a mudanada regra, esse capital se depreciou e o Judicirio passou a ter de reconstruir nos pero-dos seguintes as regras associadas a essa nova possibilidade. Nesse sentido, o valorinformacional das regras anteriores se depreciou (as regras tornaram-se obsoletas),isto , ele diminuiu e precisou ser reposto por meio de novos investimentos em deci-ses judiciais, que ainda esto em andamento. Note-se que, dada a natureza civilistade nosso sistema, essa depreciao poderia ser rapidamente reposta pelo investimentolegislativo estabelecendo a regra jurdica para o casamento homossexual (permitindo-oou proibindo-o novamente), que por ser obrigatria em todo territrio nacional(fora cogente) tenderia a resolver a questo de forma unificada e rpida. Todavia, dadaa natureza emocional, poltica e religiosa da questo, os custos de transao associa-dos negociao poltica desse tema tornam a realizao do investimento jurdicoproibitiva naquele momento.

    De uma forma geral, a passagem do tempo tende a reduzir o valor informacio-nal das regras jurdicas acumuladas, e essa reduo representa a depreciao ouobsolescncia do capital jurdico. Tal qual ativos materiais, possvel cogitar quejurisprudncias ou institutos jurdicos inativos h muito tempo possam ser reativa-dos para orientar casos novos sobre questes semelhantes, como a utilizao doinstituto milenar da servido,7 que poderia ser usada para resolver casos de confli-tos sobre construes que obstruam a vista de uma outra propriedade. A soluojudicial: a criao da servido visual. Essa possibilidade semelhante a um maquin-rio que, desativado, por alguma razo passa a ser til novamente e volta a ser usado,no necessariamente para a exata mesma finalidade.

    Esclarecido o significado da depreciao ou da obsolescncia do capital jurdico,retomemos a construo do modelo com a discusso do valor por ele criado. Seja Uita utilidade do fluxo de informaes gerado pelo estoque de capital jurdico na i-simarea do direito no perodo t. Uit pode ser expressa em funo de Jt e do nmero Nt deagentes que integram uma determinada comunidade e que, potencialmente, usufruemdo valor informacional gerado por J t (e.g. consumidores, produtores, empresas, cida-dos, estados nacionais etc.). Logo, temos:

    451:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

    EQUAO 3-3

    = ( ; )

  • sendo que aqui se presume que Ut > 0 e 2Ut < 0, Jt Jt2

    isto , a utilidade marginal do estoque de capital jurdico em relao a J t positiva(quanto mais capital, maior o valor total do fluxo de informao), mas sua taxa deretorno decrescente. Os retornos decrescentes do aumento do capital jurdico tra-duzem a ideia de que cada nova regra jurdica traz uma nova informao, mas umnmero excessivo de regras comea a tornar cada vez mais difcil diferenciar uma regrada outra, reduzindo o valor informacional relacionado ao modo como uma determi-nada disputa ser decidida.

    Alm disso, deixando de lado o sobrescrito i para fins de simplificao da nota-o, Ut crescente em Nt, isto , como o consumo da informao gerada por umaregra jurdica no exclui o consumo da mesma informao por outra pessoa, quantomais pessoas integram uma determinada comunidade que pode usufruir da seguran-a jurdica gerada pelo capital jurdico, maior o valor total de Ut.

    Logo, Ut > 0.Nt

    Essa caracterstica o resultado direto do reconhecimento da natureza de bem pblicodo direito, e que j havia sido aventada sem formalizao matemtica por Buchanan(2000[1975]).

    A utilidade do fluxo de informaes gerado pelo estoque de capital jurdico decor-re da possibilidade de os agentes saberem ex ante quais comportamentos so permitidose quais so proibidos pelo direito, e as sanes jurdicas associadas a cada violao, inclu-sive sua magnitude. Nesse sentido, o valor do capital jurdico est intimamente ligado eficcia com que as regras jurdicas determinam comportamentos dos agentes. Umaregra jurdica meramente nominal (a famosa lei que no pegou) no constitui, portan-to, capital jurdico, ou, se constitui, sua utilidade nula ou, possivelmente, negativa.

    O investimento em capital jurdico em um perodo t 1 o conjunto de acr-dos, leis, decretos e regulaes administrativas produzido no perodo. E aqui valeuma observao: usa-se a expresso acrdo e no deciso judicial para diferenciarentre decises judiciais proferidas por um juiz singular de 1 instncia (sentena) deuma deciso judicial colegiada proferida por rgo de 2 instncia (acrdo). Comona sistemtica jurdica brasileira apenas as decises dos tribunais so consideradasformadoras de jurisprudncia,8 para fins da presente anlise as fontes de investimen-to devem ser consideradas, do ponto de vista judicial, preponderantemente comosendo a produo de acrdos, leis e regulaes.

    A elaborao de legislao e a produo de acrdos consomem recursos escassos,

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:452

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • como o tempo de congressistas, assessores, grupos polticos, magistrados, advogados,membros do Ministrio Pblico, analistas judicirios, tcnicos judicirios, testemu-nhas e partes, mais os recursos associados construo e manuteno do CongressoNacional, dos Tribunais de Justia, do STJ, do STF, ou seja, de toda a infraestruturaque lhes d suporte. Estes custos de investimento em capital jurdico no perodo tpodem ser representados da seguinte forma:

    onde se assume o custo marginal como positivo e no decrescente. O custo mar-ginal de investimento positivo significa que quanto maior o investimento realizado,maior o custo associado (C t > 0). Assim, por exemplo, supondo-se a ausncia decapacidade ociosa, o aumento do nmero de acrdos do STJ ou STF requereriaa contratao de mais assessores, a construo de novas salas, a aquisio de maisequipamentos, o aumento do nmero de Ministros etc. J o custo marginal de inves-timento no decrescente significa que ele pode at se manter estvel, mas nodiminuir (C t 0).

    Com base nesse modelo, podemos estabelecer a produo tima de capital jur-dico como o seguinte problema de maximizao: seja a diferena entre a utilidadedo fluxo de informao gerada pelo capital jurdico no perodo t e o custo do inves-timento em cada perodo, sujeita condio prevista na Equao 3-1, supondo-se constante e I t > 0, isto , no possvel alienar capital jurdico. Assim, temos:

    Resolvendo esse problema de maximizao da maneira proposta por Landes ePosner (1976, p. 265), obtemos as seguintes T condies de primeira ordem (de T=0a T-1):

    onde Rt+j a utilidade no comeo do perodo 0 do capital jurdico nos perodos t + j

    453:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

    EQUAO 3-4

    = ( )

    EQUAO 3-5

    Max> 0

    = s.a. 1 = ( 1 ) 1

    = +

    EQUAO 3-6

    = + 1 + 1 + + 2 + 2

    ( 1 ) + + 3 + 3 ( 1 ) 2 + ...

    + ( 1 ) 1 = 0

  • (R t+j = 1/ (1 + r)t+j, sendo a taxa de desconto por perodo r constante); U t+j o valor do produto marginal do capital jurdico em t + j e C t o custo marginaldo investimento. Note que a condio de otimalidade prevista na Equao 3-6 cons-titui justamente a igualdade entre retorno marginal e custo marginal em equilbriodecorrente de um investimento marginal no perodo t. Este equilbrio o que acon-teceria em condies de concorrncia perfeita; porm, na vida real, podem haverfalhas de mercado e h uma tendncia a isso que impedem o alcance do equil-brio timo.

    Enquanto Landes e Posner (1976, p. 265 e 266) avanam para discutir em quecondies existe um equilbrio de longo prazo e identificar a poltica de investimen-to tima em capital jurdico, vamos analisar justamente a possibilidade de existncia deum desequilbrio de curto prazo, isto , das consequncias de um descasamento entreo estoque real e o estoque socialmente desejvel de capital jurdico, assim como oinvestimento em sua formao e o impacto desse desequilbrio sobre a estrutura deincentivos dos agentes em litgio.

    3 O CICLO DA LITIGNCIAVamos investigar agora as consequncias de um desequilbrio de curto prazo entreo capital jurdico real em um determinado perodo t e o nvel timo de equilbriojurdico de longo prazo. Suponha que ocorra um choque que faa com que o esto-que de capital jurdico fique abaixo do seu nvel timo. Esse choque pode serdecorrente de uma mudana de posio no STF devido a uma nova composio, deuma mudana na legislao (como a introduo de um novo CPC), ou mesmo devi-do s mudanas inesperadas das condies socioeconmicas, como foi o caso damaxidesvalorizao do real em 1999. Qualquer um desses choques pode imediata-mente tornar obsoleta parte do estoque de capital jurdico existente. A presenade um estoque subtimo de capital jurdico gera insegurana jurdica. Essa insegu-rana faz com que aumente o nmero de casos perante o Judicirio, pois as partesconsideraro mais difcil antever qual seria a regra jurdica aplicvel ao caso con-creto (aumento do hiato de expectativas) e, portanto, qual o valor esperado de umdeterminado acordo extrajudicial. O resultado ser um incremento temporrio delitgios (investimento privado) at que a discrepncia entre o capital jurdico reale o timo desaparea.

    Entretanto, essa simples explicao oculta dois aspectos fundamentais da funode produo de capital jurdico: (i) os insumos oferecidos pelas partes litigantes noJudicirio (e.g. contratao de advogado, tempo, peritos etc.); e (ii) os insumos ofe-recidos pelo magistrado que escrever a deciso que poder se tornar jurisprudnciadominante no futuro para outros magistrados.9 Comecemos, ento, pela questolevantada por Landes e Posner (1976, p. 271): considerando que os particulares

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:454

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • se beneficiam apenas da resoluo da controvrsia, mas no inteiramente da seguranajurdica decorrente da criao de jurisprudncia (externalidade positiva), o que osinduz a alocar recursos na produo de capital jurdico at alcanar o nvel timo?

    A resposta aparece de uma anlise da estrutura de incentivos dos agentes priva-dos. Por que as partes litigam? Normalmente os juristas respondem a essa perguntanos livros de introduo ao processo civil afirmando que isso acontece porque umdireito foi violado (e.g. IHERING, 2003 [1872], p. 41; COUTURE, 2008 [1949], p. 45e ss.). Mas essa explicao no satisfatria. Se um direito vale R$ 10,00 para o ofen-dido e defend-lo na justia custar R$ 50,00, uma abordagem juseconmica nosinforma que o agente racional maximizador no lutar por aquele direito na justia,isto , ele no litigar. Assim, um agente racional litigar apenas quando o retorno dalitigncia for no-negativo (cfr. LANDES, 1971; GOULD, 1973; POSNER, 1973;BEBCHUK, 1984; REINGANUM;WILDE, 1986). Note que aqui no estamos falan-do necessariamente de custo ou retorno monetrio apenas. Uma pessoa profundamenteofendida pela conduta do ru pode litigar para receber apenas um pedido de desculpasou uma indenizao por danos morais de R$ 100,00, ainda que isso lhe custe R$ 500,00em tempo, custas processuais, advogado etc. Basta que o autor extraia do resultadoesperado da litigncia (o reconhecimento de seu direito) mais utilidade do que lhecusta em desutilidade. No obstante, se nesse caso o custo de litigar for R$ 100 mil,provavelmente essa pessoa pensar duas vezes antes de acionar o ofensor. Por outrolado, e to bvio quanto, um agente racional em condies normais no gastarR$ 100,00 em uma ao de cobrana de um cheque se o resultado esperado for cole-tar um crdito de R$ 20,00. De um jeito ou de outro, o litigante racional litiga apenasquando o resultado esperado da demanda for no-negativo.

    Uma pesquisa realizada recentemente por uma equipe de pesquisadores compos-ta por juristas, economistas, socilogos e administradores, predominantemente daPUC/RS e financiada pelo CNJ , encontrou evidncias empricas que corroborama concluso de que as partes litigam no apenas porque tiveram um direito violado,mas tambm por causa (a) dos baixos custos de acesso e baixo risco; (b) das perspec-tivas de ganho; e (c) do uso instrumental do Judicirio (PUCRS, 2011).

    Por outro lado, por que que um caso vai parar no Judicirio quando as partespoderiam cooperar, realizar um acordo e dividir entre si o excedente gerado com aeconomia de todos os custos associados a uma ao judicial? Se um acordo maisbarato, por que litigar? A teoria juseconmica sugere que o litgio o resultado daincapacidade das partes em alcanar um acordo, e essa incapacidade decorre de esti-mativas distintas de autor e ru sobre as reais chances de sucesso de cada um (hiatode expectativas) e, portanto, resulta de uma incapacidade em se concordar com oretorno esperado do litgio. Esse fenmeno especialmente forte na presena de umvis de otimismo natural das pessoas que pode levar ao exagero da avaliao da pro-babilidade subjetiva de xito e a aplicar um superdesconto s propostas de acordo

    455:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • oferecidas pela parte contrria (cfr., a ttulo de exemplo, SILVA, 2011).Nesse sentido, a razo entre aes judiciais e acordos uma funo do estoque

    de capital jurdico (nvel de incerteza jurdica) prevalecente em uma determinadarea do direito, o que por sua vez leva a estimativas divergentes do resultado pro-vvel do processo pelas partes. Nos termos aqui desenvolvidos, a segurana jurdica uma funo do estoque de capital jurdico composto majoritariamente pela juris-prudncia dominante. Para uma breve reviso da literatura sobre o aumento da taxade litigncia decorrente do aumento da incerteza devido insegurana jurdica, videDari-Mattiacci e Deffains (2007, p. 11 e ss.), e para uma demonstrao emprica dessarelao, vide Rezende e Zylbersztajn (2011). Neste estudo, os autores demonstramcomo a disperso entre decises no Tribunal de Justia de Gois sobre a validade decontratos de venda antecipada de soja elevou a insegurana jurdica, gerando aumen-to do nmero de litigncia e, posteriormente, aumento de custos de transao nanegociao de contratos futuros.

    A ligao direta entre o nvel de litigncia e o estoque de capital jurdico garanteque os particulares realizaro, ao menos em parte, o investimento necessrio (aloca-o de recursos privados) para a formao de novo capital jurdico e o deslocamentodo estoque de capital para obter o equilbrio jurdico de longo prazo. Se esse incen-tivo suficiente do ponto de vista das partes litigantes para alcanar esse equilbrio uma questo mais complexa.10

    Considerando que o ganho privado decorrente de um acrdo menor que o bene-fcio social resultante, existe uma externalidade positiva na oferta de jurisprudncia.Logo, provavelmente teremos um problema de suboferta de acrdos. Como as parteslitigantes no podem cobrar um preo pelo uso de jurisprudncia formada a partir deseu caso, internalizando a externalidade (como faria, por exemplo, o autor de um livroou o dono de uma patente), a presena de externalidades positivas parece justificar aomenos em parte a utilizao de subsdios pblicos litigncia, pelo menos em segun-da instncia. Esse argumento j foi usado por Shavell (1997).

    Subsidiar a litigncia justamente o que o Brasil vem fazendo nos ltimos anos,quando (a) criou os juizados especiais de pequenas causas, nos quais no necessrioum advogado e no h custas processuais; (b) criou a defensoria pblica (advogadospblicos pagos pelo contribuinte); (c) criou a assistncia judiciria gratuita AJG(possibilidade de no pagamento das custas processuais mesmo na justia comum, nem dos honorrios de sucumbncia); (d) manteve o sistema de custas processuaisabaixo do custo social de cada processo etc. Tudo isso significa que o contribuintequem arca com parte dos custos de cada processo, e no a parte litigante o que cla-ramente um subsdio ao litgio e parte da sociedade que litiga.

    A insegurana decorrente da falta de capital jurdico aumenta os custos privadosda celebrao de um acordo extrajudicial (autocomposio), pois as partes tm difi-culdades de estimar o resultado esperado, seja do ponto de vista da interpretao de

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:456

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • uma determinada lei, seja do ponto de vista de ausncia de uma jurisprudncia clarae dominante em uma rea envolvendo regras judiciais (e.g. conceitos jurdicos inde-terminados). Esse incentivo litigncia provocar manifestaes do Judicirio que, como tempo, se convertero em jurisprudncia que, se dominante, se transformar emcapital jurdico. O resultado ltimo uma maior segurana jurdica sobre qual regra aplicvel quele tipo de situao. Em outras palavras, o capital jurdico um sub-produto no intencional dos incentivos privados dos litigantes, uma externalidadepositiva. Mais um exemplo de como as pessoas podem gerar bem-estar social moti-vadas pela busca de seus prprios interesses.

    Por outro lado, vale lembrar que a insegurana jurdica como um todo nunca sereliminada, mas apenas mitigada, pois medida que novas leis so promulgadas ou halteraes nas condies socioeconmicas que estruturavam as relaes jurdicas,deprecia-se o capital jurdico existente, fazendo surgir novos surtos de litigiosidadeque, por sua vez, dispararo respostas legislativas e/ou a formao de nova jurispru-dncia que, se dominante, recompor ao menos em parte o capital jurdico depreciado.O investimento em capital jurdico, tanto por meio de alterao legislativa quantopor mudana de jurisprudncia, pode decorrer de uma srie de pequenos problemasque geram mudanas incrementais ou at de um nico problema, to relevante queseja capaz de atrair suficientemente a ateno de determinados grupos polticos paraque a mudana seja rpida e drstica, caso em que h uma recomposio quase ins-tantnea do capital.

    Com base na anlise juseconmica exposta anteriormente, considerando apenasa estrutura de incentivos aos litigantes, podemos resumir a dinmica decorrente deum desequilbrio de curto prazo entre Jt, o capital jurdico em um determinado pero-do t, e o nvel timo de equilbrio de longo prazo J * como um ciclo de expanso ede retrao das taxas de litigncia, que geram surtos e calmarias de processos demaneira cclica e contnua. Essa flutuao esperada na atividade litigiosa denomi-nada ciclo da litigncia, que pode ser resumido da seguinte forma:

    457:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • FIGURA 2 O CICLO DA LITIGNCIA

    De uma perspectiva geral, podemos encarar o comportamento da atividade liti-giosa na i-sima rea do direito no como um fenmeno isolado, mas como umconjunto de fenmenos. Nessa linha, o correto seria falar em ciclos de litigncia, pois um processo contnuo, mas no peridico, e cada ciclo pode variar em durao. Osciclos de litigncia seriam, ento, um tipo de flutuao na atividade litigiosa; cadaciclo composto por um perodo de expanso e um perodo de retrao das taxas delitigncia, ao que se seguiria uma nova fase de expanso. Note que h quem argumen-te que os sistemas jurdicos caminham inexoravelmente para uma maior inseguranajurdica (e.g. DAMATO, 1983).

    Considerando que a populao mundial tem aumentado, em que pese as taxasdecrescentes (UNITED NATIONS, 2004, p. 4); que a atividade migratria entre ospases e regies tem crescido, o que contribui para o multiculturalismo e para avariao de valores dentro de uma mesma sociedade; e que o nmero e a complexi-dade das interaes sociais tambm tem aumentado, espera-se que, em mdia, onmero total de litgios em uma determinada rea do direito aumente, sendo osciclos da litigncia meras flutuaes em torno dessa tendncia subjacente, ou seja,um desvio transitrio em relao a uma trajetria de longo prazo. O comportamen-to esperado dos ciclos de litigncia pode ser descrito da seguinte forma:

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:458

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    Expansoda litigncia

    Aumento dasdecises judiciais

    CapitalJurdico

    Seguranajurdica

    Retraoda litigncia

    Depreciao docapital jurdico

    Dvida ouausncia de regra

    Inseguranajurdica

  • FIGURA 3 A TENDNCIA SECULAR DA LITIGNCIA

    Pelo exposto, em um ordenamento jurdico balanceado de se esperar que o nvelde litigncia seja algo cclico, com expanses e retraes. A ausncia desses ciclos ouo crescimento montono ou quase-montono da litigiosidade, como parece acontecerno caso brasileiro, indica uma patologia no ordenamento jurdico que deve ser iden-tificada e tratada, pois, na linguagem juseconmica, no est havendo investimentosuficiente em capital jurdico.

    Nessa linha, considerando-se que a dinmica do sistema judicial decorre da intera-o estratgica de seus agentes componentes, a compreenso plena do comportamentoda litigiosidade brasileira requer uma investigao mais aprofundada da estrutura deincentivos, tanto das partes (autor e ru) quanto dos prprios magistrados (GICO JR.,2012). Enquanto no soubermos mais sobre a estrutura de incentivos de cada umdesses grupos, no seremos capazes de verdadeiramente compreender o Judicirio e,portanto, seremos incapazes de formular polticas pblicas adequadas.

    CONCLUSESO Judicirio tem uma funo estruturante fundamental na construo da sociedadecivil e no que se convencionou chamar Estado de Direito. Seu papel de garantidor dasbarganhas pblicas (leis) e privadas (contratos) permite a cooperao de grupos emuma sociedade cada vez mais plural e complexa. Em ltima instncia, no possvelconceber uma sociedade moderna sem a existncia de um Judicirio eficaz.

    No exerccio de garantidor ltimo das barganhas sociais, o Judicirio aplica ecria regras jurdicas que informam aos agentes como determinadas questes sero

    459:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

    TEMPO

    fase de expanso

    fase de contrao

    tendnciaN DE

    LITGIOS

  • resolvidas caso surjam conflitos e os Tribunais venham a ser invocados para resolv-los.Esse conjunto de regras, que podem ter origem legislativa ou judicial mas que, em lti-ma instncia, dependem sempre da atividade adjudicatria, o capital jurdico. Quantomaior o estoque de capital jurdico de uma sociedade, mais segurana sobre o resulta-do provvel de conflitos e, portanto, mais preparados estaro seus integrantes paraelaborar planejamentos de longo prazo e cooperar. O acmulo timo de capital jur-dico seria, ento, uma condio necessria para o desenvolvimento econmico.

    Analisando a funo de produo do capital jurdico apenas pelo lado de um de seusinsumos, isto , dos incentivos privados para litigar, conclui-se que a presena de umdesequilbrio de curto prazo entre o estoque real de capital jurdico e o ponto timosocialmente desejvel gera insegurana jurdica. Essa insegurana aumenta os custos detransao das partes para a realizao de acordos extrajudiciais (cooperao), aumentan-do assim a quantidade de litgios (investimento privado). Essa expanso da litigncia,por sua vez, tem como subproduto a gerao de jurisprudncia que, se dominante,transformar-se-ia em capital jurdico e geraria segurana jurdica (capital), o que desin-centivaria a litigncia. Esse movimento esperado de expanso e retrao da litignciapara a reposio do capital jurdico depreciado constitui um comportamento cclico quedenominamos o ciclo da litigncia.

    No entanto, essa discusso ilustra apenas os incentivos para que as partes em umconflito invistam em litgio e, assim, produzam capital jurdico, mas nada foi dito sobreos incentivos para que os magistrados invistam na mesma produo. As partes estosubmetidas a uma lgica de mercado, i. e., investiro na atividade litigiosa at que oseu benefcio marginal se iguale ao seu custo marginal e em perodos de inseguran-a (escassez de capital jurdico) essa lgica se converte em incentivo para investir(litigar). O mesmo no vale para os magistrados. Lembre-se que o investimento priva-do em litgio se converte em capital jurdico apenas se os magistrados investirem naconstruo e manuteno da jurisprudncia, o que no pode ser explicado somentecom a presena de escassez de capital, pois os magistrados so burocratas que possuemo quase-monoplio da atividade adjudicatria, e a insegurana jurdica no necessaria-mente gera incentivos para que invistam em capital jurdico. Nessa linha, necessrioexplicar o comportamento dos magistrados e como esse comportamento afeta a for-mao de capital jurdico, uma vez que as preferncias de cada magistrado so tovariveis quanto os interesses das partes litigantes. Mas essa resposta deixamos parapesquisas futuras.

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:460

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    : ARTIGO APROVADO (02/12/2013) : RECEBIDO EM 28/06/2013

  • NOTAS

    * O autor agradece aos comentrios e sugestes de Bernardo Pinheiro Machado Mueller, Maurcio SoaresBulgarin, Gicomo Balbinoto Neto, Danielle Cristina Lanius, Nicolau Dino de Castro e Costa Neto e do parecerista an-nimo. Este artigo foi parcialmente financiado com recursos da CAPES/CNPq.

    Danziger, Levav e Avnaim-Pesso (2011) demonstraram que a chance de um magistrado judeu conceder liberdadecondicional a um preso era diretamente proporcional ao tempo que o magistrado estava sem comer. Assim, logo aps oalmoo a chance de concesso era de cerca de 65%, que ia caindo com o passar do tempo at quase zero. Aps a pausapara o lanche, a probabilidade retornava abruptamente para os mesmos 65%, para voltar a cair gradativamente.

    Art. 226. A famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado. 1 - O casamento civil e gratuita a celebrao. 2 - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. 3 - Para efeito da proteo do Estado, reconhecida a unio estvel entre o homem e a mulher como entidade

    familiar, devendo a lei facilitar sua converso em casamento.

    Art. 1.723. reconhecida como entidade familiar a unio estvel entre o homem e a mulher, configurada na con-vivncia pblica, contnua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituio de famlia.

    Um precedente no a parte dispositiva do julgado, mas a menor regra lgica possvel necessria para explicar oresultado do julgamento (holding), ainda que implcito. Por isso, normalmente se diz que necessrio um conjunto dedecises sobre temas muito prximos para se ter uma regra geral o suficiente para formar um precedente. Enfim, umaregra de direito criada por um tribunal para um tipo de caso especfico e reiteradamente utilizada como autoridade (fontedo direito) para decidir casos futuros semelhantes.

    Mensagem n 1.047, de 6/12/06: [...] A proposta parece razovel porque difcil defender que um rendimento lqui-do de vinte vezes o salrio mnimo vigente no Pas seja considerado como integralmente de natureza alimentar. Contudo,pode ser contraposto que a tradio jurdica brasileira no sentido da impenhorabilidade, absoluta e ili-mitada, de remunerao. Dentro desse quadro, entendeu-se pela convenincia de opor veto ao dispositivo para que aquesto volte a ser debatida pela comunidade jurdica e pela sociedade em geral. [...] (destaque nosso).

    Disponvel em: . Acesso em: 27 jan. 2014.

    Servido uma restrio ao direito de propriedade de uma pessoa sobre um imvel que valoriza outro imvel. Oinstituto est previsto no CC: Art. 1.378. A servido proporciona utilidade para o prdio dominante, e grava o prdioserviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se mediante declarao expressa dos proprietrios, ou por testamen-to, e subseqente [sic] registro no Cartrio de Registro de Imveis. Note-se que nos termos do art. 1.379 do CC, possvel se adquirir esse direito real mesmo sem o consentimento da outra parte, se ela no se opuser por 10 anos.

    No por outro motivo, quando se pesquisa a jurisprudncia no stio de um Tribunal, normalmente as sentenas noesto disponveis para consulta, apenas os acrdos. A ttulo de exemplo, cfr. .

    Para uma discusso mais detalhada da funo de produo do capital jurdico, ver o Captulo 3 de (GICO JR.,2012).

    Para uma discusso mais detalhada da estrutura de incentivos dos litigantes, vide o Captulo 4 de (GICO JR.,2012).

    461:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ACEMOGLU, D.; ROBINSON, J. A. Economic Origins of Dictatorships and Democracy. New York, United States ofAmerica: Cambridge University, 2006.BEBCHUK, L. A. Litigation and Settlement Under Imperfect Information. RAND Journal of Economics, 15 (3),1984, pp. 404-415. BUCHANAN, J. M. The Limits of Liberty: Between Anarchy and Leviathan (Vol. 7). Indianapolis: Liberty Fund,2000 [1975].BURG, E. M. Law and Development: A Review of the Literature & a Critique of Scholars in Self-Estrangement.The American Journal of Comparative Law, 25 (3), 1997, pp. 492-530.BUZAID, A. Estudos de Direito. So Paulo, SP, Brasil: Saraiva, 1972.COOTER, R. D. The Objectives of Private and Public Judges. Public Choice , 41 (1), 1983, pp. 107-132.COURT, J.; HYDEN, G.; MEASE, K. The Judiciary and Governance in 16 Developing Countries. United Nations,United Nations University. United Nations, 2003.COUTURE, E. Introduo ao Estudo do Processo Civil: discursos, ensaios e conferncias. 2.ed. Belo Horizonte, MG,Brasil: Lder, 2008 [1949].DAM, K. W. The Law-Growth Nexus: The Rule of Law And Economic Development. Brookings Institution Press, 2006.DAMATO, A. Legal Uncertainty. California Law Review, 71, 1983, pp. 1-55.DANZIGERA, S.; LEVAVB, J.; AVNAIM-PESSOA, L. Extraneous factors in judicial decisions. PNAS, 108 (17),2011, pp. 6889-6892.DARI-MATTIACCI, G.; DEFFAINS, B. Uncertainty of Law and the Legal Process. Journal of Institutional andTheoretical Economics, 163 (4), 2007, pp. 627-656. DIXIT, A. K. Lawlessness and Economics: Alternative Modes ofGovernance. Princeton: Princeton University Press, 2007.FON, V.; PARISI, F. Judicial precedents in civil law systems: A dynamic analysis. International Review of Law andEconomics, 26, 2006, pp. 519-535.GICO JR., I. T. Metodologia e Epistemologia da Anlise Econmica do Direito, Economic Analysis of Law Review, 1,2010, pp. 7-32.______. I. T. A Tragdia do Judicirio: subinvestimento em capital jurdico e sobreutilizao do Judicirio. Faculdade deEconomia, Administrao, Contabilidade e Cincia da Informao e Documentao - FACE, Departamento deEconomia. Braslia: Universidade de Braslia UnB, 2012.GOULD, J. P. The Economics of Legal Conflicts. The Journal of Legal Studies, 2 (2), 1973, pp. 279-300.GREIF, A. Institutions and the Path to the Modern Economy: lessons from medieval trade. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2006.IHERING, R. V. A Luta pelo Direito. So Paulo, SP, Brasil: Martin Claret, 2003 [1872].JALORETTO, M. F.; MUELLER, B. P. O Procedimento de Escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal uma anlise emprica. Economic Analysis of Law Review, 2 (1), 2011, pp. 170-187.LANDES, W. M. An Economic Analysis of the Courts. Journal of Law and Economics, 14 (1), 1971, pp. 61-107.LANDES, W. M.; POSNER, R. A. Legal Precedent: A Theoretical and Empirical Analysis. Journal of Law andEconomics, 19 (2), 1976, pp. 249-307.MESSICK, R. E. Judicial Reform and Economic Development: A Survey of the Issues. The World Bank ResearchObserver, 14 (1), 1999, pp. 117-136.MIRANDA, A. Casamento gay: uma unio ainda difcil no Rio. O Globo. Disponvel em . Acesso em: 30 jan. 2014. NORTH, D. C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. New York, NY, EUA: CambridgeUniversity Press, 2007 [1990].______; WALLIS, J. J.; WEINGAST, B. R. Violence and Social Orders: A conceptual framwork for interpreting recordedhuman history. New York: Cambridge University Press, 2009.PINHEIRO, A. C. Judicial System Performance and Economic Development. Rio de Janeiro, RJ, Brasil: BNDES, 1996.POSNER, R. A An Economic Approach to Legal Procedure and Judicial Administration. The Journal of LegalStudies, 2 (2), 1973, pp. 399-458._______. What Do Judges and Justices Maximize? (The Same Thing Everybody Else Does). Supreme CourtEconomic Review, 3, 1993, pp. 1-41.PUCRS. Demandas Judiciais e Morosidade da Justia Civil - Relatrio Final Ajustado. Pontifcia Universidade Catlica doRio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. Porto Alegre: Conselho Nacional de Justia CNJ, 2011.REINGANUM, J. F.; WILDE, L. L. Settlement, Litigation, and the Allocation of Litigation Costs. The RANDJournal of Economics, 17 (4), 1986, pp. 557-566.

    O CAPITAL JURDICO E O CICLO DA LITIGNCIA:462

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

  • REZENDE, C. L.; ZYLBERSZTAJN, D. Quebras Contratuais e Dispreso de Sentenas. (F. SP, Ed.) Revista DireitoGV, 7(1), Jan.-Jun. 2011, pp. 155-176.SCHMITT, C. Teora de La Constitucin. (F. Ayala, Trad.) Madrid, Espanha: Alianza Universidad Textos,1996 [1982].SHAVELL, S. The Fundamental Divergence Between the Private and the Social Motive to Use the Legal System.Journal of Legal Studies, 1997, XXXVI, pp. 575-516.SHERWOOD, R. M.; SHEPHERD, G.; SOUZA, C. M. Judicial systems and economic performance. The QuarterlyReview of Economics and Finance, 34 (Supplement 1), 1994, pp. 101-116.SILVA, F. C. Conciliao Cvel em Primeira Instncia em So Paulo: Perspectiva da Anlise Econmica do Direito.(I. T. Junior, Ed.) Economic Analysis of Law Review, 2 (1), 2011, pp. 65-94.UNITED NATIONS. World Population to 2300. United Nations, Department of Economic and Social Affairs. NewYork: United Nations, 2004.WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (Vol. 2). (R. Barbosa, & K. E. Barbosa,Trads.) Braslia, DF, Brasil: Universidade de Braslia, 1999 [1920].WORLD BANK. World Development Report 2002: Building Institutions for Markets.Washington, DC: OxfordUniversity Press, 2001.

    463:IVO TEIXEIRA GICO JR.

    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO9(2) | P. 435-464 | JUL-DEZ 2013

    18

    SRTVS, Qd. 701, Bl. O, n. 110, Salas 563-566Ed. Centro Multiempresarial 70340000

    Braslia DF Brasil

    [email protected]

    Ivo Teixeira Gico Jr.PROFESSOR NO CENTRO UNIVERSITRIO DE BRASLIA (UNICEUB)

    DOUTOR EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE SO PAULO (USP)

    DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE BRASLIA (UNB)

    MESTRE COM HONRA MXIMA PELA COLUMBIA LAW SCHOOL