gestão democratica das ciidades e zeis_sabrina durigon marques
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Direito Urbanístico - ZEIsTRANSCRIPT
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
Sabrina Durigon Marques
A efetividade da gesto democrtica das cidades
nas Zonas Especiais de Interesse Social
Mestrado em Direito
So Paulo 2012
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
Sabrina Durigon Marques
A efetividade da gesto democrtica das cidades
nas Zonas Especiais de Interesse Social
Mestrado em Direito
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em Direito do Estado, sob a orientao do Prof. Dr. Nelson Saule Jnior.
So Paulo 2012
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Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
As marcas de muitas pessoas existem neste trabalho, tantas que cruzaram meu
caminho, outras que estiveram sempre ao meu lado, e especialmente aquelas a quem este
estudo se destina, todas elas me trazendo lies dirias.
Traduzir em palavras essa complexidade de problemas, relaes sociais, interpessoais,
sentimentos, sensaes difcil, ao mesmo tempo em que preciso manter o rigor da
pesquisa, no foi fcil conter as emoes que muitas vezes transbordavam. Quero dizer que
tentei transcrever da maneira mais fiel possvel o que vi, li, estudei, aprendi, senti desta cidade
e suas relaes. A cada pessoa que dividiu comigo qualquer desabafo neste perodo, meu
muito obrigada!
Agradeo ao meu professor e orientador, Nelson Saule Junior, pelo exemplo de
coerncia que representa na luta pelo direito cidade.
Agradeo aos professores Celso Campilongo e Daniela Librio, pela participao em
meu exame de qualificao, cujas contribuies trouxeram mais grandeza a este estudo.
A toda equipe do Escritrio Modelo Dom Paulo Evaristo Arns - PUC/SP, que me
ensinou como aliar teoria e prtica diariamente, fazendo com que cada tristeza vista durante o
rduo trabalho realizado, fosse mais combustvel para minha vontade de transformar. Aos
companheiros de trabalho que passaram a ser companheiros da vida, Gabriel Sampaio,
Delana Corazza, Cac Vazzoler, Rose Santos, Henrique Yasuda, Marcelo Elvira, Renata,
Irene, Stacy, Vanessa e tantos outros que por l passaram.
Aos movimentos sociais, s organizaes parceiras, aos Defensores Pblicos e a todos
aqueles que comigo dividiram, neste perodo, sonhos e lutas, derrotas e vitrias. Meus
agradecimentos por mostrar como podemos ser resistentes, mesmo quando, por alguns
minutos, achamos que no h mais sada.
Aos meus pais, pelo apoio dirio, emocional, material, incondicional. minha me,
que me olha por trs do ombro e me guia. Ao meu pai, que tem grande responsabilidade pelas
linhas e caminhos traados. Ao Fred, pelos 27 anos dividindo comigo emoes que s os
irmos so capazes de compreender.
A todos os colegas do Ministrio da Justia, ao secretrio Marivaldo Pereira, que
HQVLQDDWUDQVIRUPDURULEHLUmRHPEUDoRGHPDUWRGRPHXRUJXOKRHDGPLUDomR$RPatrick
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Mariano e Alessandro Soares, que, olhando na mesma direo, me fazem ver tambm o
outro lado. Pela grandeza do dia a dia ao Leandro Guedes, Priscila Spcie, Bruna Martins,
Vanessa Motta, Guilherme Almeida, Luiz Bressane.
Pela poesia da vida: Anamaria, Jaque, Karen, Thalita, Olivia, Natasha.
Aos entrevistados, que muito me ensinaram sobre as dificuldades concretas da relao
entre teoria e prtica.
A todos que, de alguma forma, mesmo que em pensamento, contriburam para a
materializao desta dissertao.
A todos aqueles que sofrem diariamente na pele as causas da indignao que me
motivaram a estudar o tema, dedico este trabalho.
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O comando das mos so os olhos.
Francisco Miranda, metalrgico, morador da Comunidade do Moinho, explicando a importncia da divulgao para a ao no combate s remoes foradas.
No vou parar de lutar, esta minha histria, minha raiz, minha vida.
Paula Ribas, moradora da Nova Luz, sobre a relao que estabeleceu com o bairro onde vive, cujos moradores sofrem com perigo de deslocamento forado.
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RESUMO
MARQUES, Sabrina Durigon. A efetividade da gesto democrtica das cidades nas Zonas Especiais de Interesse Social. So Paulo, 2012. 214 f. Dissertao de Mestrado Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.
Este trabalho pretende analisar os limites da efetividade dos instrumentos de gesto democrtica das Cidades nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) para a promoo da poltica urbana que vise construo de uma cidade plural, que contemple diferenas sociais, tnicas, de gnero, e que respeite o Direito Cidade. A ZEIS, que instrumento de poltica urbana e deve ser previsto no Plano Diretor ou em lei municipal, tem importante papel na construo de uma cidade mais democrtica, pois seu objetivo garantir que algumas regies admitam normas especiais de urbanizao a fim de contemplar usos que, a princpio, seriam irregulares, sobretudo quando se trata da populao de baixa renda, cuja ocupao dos terrenos em geral se faz de forma desordenada, sem observncia dos ditames legais. Isto ocorre como consequncia de uma poltica excludente, que baseia o planejamento da cidade nas leis de mercado. Desde o primeiro passo para sua delimitao no territrio at a urbanizao ou a regularizao fundiria de interesse social, h diversas situaes em que a gesto democrtica dessas zonas deve ser garantida, seja por meio da realizao de audincias pblicas, seja com a constituio do Conselho Gestor. Contudo, nem sempre estes espaos so respeitados, o que torna retrica toda previso legal que preveja a participao cidad na gesto da cidade. E este trabalho se prope a estudar o funcionamento dos instrumentos de gesto democrtica, como audincias pblicas, conselho gestor e associao de moradores, com foco na ZEIS, tentando identificar problemas e, eventualmente, apresentar propostas que contribuam com a efetividade da participao, sempre buscando consolidar a democratizao do acesso ao solo urbano e o direito cidade. Palavras-chave: ZEIS, Gesto Democrtica, Conselho Gestor, HIS, Populao de Baixa Renda.
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ABSTRACT
MARQUES, Sabrina Durigon. The effectiveness of democratic management of cities in Special Zones of Social Interests. So Paulo, 2012. 214 f. [Dissertation] Master of Law. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2012,
The aim of this study is to analyze the limits of effectiveness of the Special Zones of Social Interests (ZEIS) as an instrument for democratic management of cities to promote an urban policy that intends to build a plural city, covering both social, ethnic, genre differences, and respecting the right to the city. The ZEIS, which is an urban policy tool and must be provided in the Director Plan or the municipal law, holds an important role at the construction of a more democratic city, since its objective is to ensure that some regions of urbanization admit special rules to accommodate uses that would be irregular in principle, especially when it comes to low-income people, whose occupation of the land in generally performed in a disorderly way, without observing the legal dictates. This occurs as a result of an exclusionary policy whose city planning is based on market rules. From the first step in its territorial delimitation to the point of land urbanization or social interest regularization, there are several situations in which the democratic management of these areas must be granted, whether through public hearings, or through the constitution of an Steering Board. However, these spaces are not always respected, which renders rhetoric all legal provisions of citizen participation in city management. Finally, this paper intends to study the functioning of instruments for democratic management, as public hearing, management council and neighborhood association with a focus on the ZEIS, attempting to identify problems and eventually presenting proposals which contributes to the effectiveness of participation, always looking foward to consolidate the democratization of both access to urban land and the Right to the city. Keywords: ZEIS, Democratic Management, Steering Board, HIS, Low-income population.
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LISTA DE SIGLAS
AMOALUZ Associao dos Moradores e Amigos de Santa Ifignia e da Luz
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
CAEHIS Comisso de Anlise de Empreendimentos de Habitao de Interesse Social
CDHU Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano
CDL Cmara de Dirigentes Lojistas
COHAB Companhia Metropolitana de Habitao de So Paulo
EDEPE Escola da Defensoria Pblica
EIA/RIMA Estudo e Relatrio de Impacto Ambiental
FNRU Frum Nacional de Reforma Urbana
HABICENTRO Superintendncia da Habitao Popular, Regional Centro
HIS Habitao de Interesse Social
HMP Habitao de Mercado Popular
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
LOM Lei Orgnica Municipal
MNRU Movimento Nacional pela Reforma Urbana
OUC Operao Urbana Centro
PD Plano Diretor
PL Projeto de Lei
PLANASA Plano Nacional de Saneamento Bsico
PMSP Prefeitura Municipal de So Paulo
PRE Plano Regional Estratgico
PROCENTRO Programa de Reabilitao da rea Central da Cidade de So Paulo
PUZEIS Plano de Urbanizao de ZEIS
SABESP Saneamento Bsico do Estado de So Paulo
SEHAB Secretaria de Habitao
SEMPLA Secretaria Municipal de Planejamento
SIURB Secretaria de Infraestrutura Urbana
SMDU Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano
ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social
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SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................ 12
1 A EVOLUO DA GESTO DEMOCRTICA DAS CIDADES ...................... 14
1.1 A LEGISLAO COMO AGENTE DA (I)LEGALIDADE E DA
(IR)REGULARIDADE DA CIDADE ....................................................................... 14
1.1.1 Nas Tramas da Legislao uma avaliao crtica ............................................... 21
1.2 APROXIMANDO AS POLTICAS PBLICAS DAS DEMANDAS SOCIAIS: A
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ......................................................................... 29
1.2.1 A Democracia Participativa.................................................................................... 29
1.3 DESAFIOS DA GESTO DEMOCRTICA ........................................................... 34
1.4 OS NOVOS MARCOS DA GESTO DEMOCRTICA DAS CIDADES UMA
MUDANA DE PARADIGMA ............................................................................... 45
1.5 A TRAJETRIA DA REFORMA URBANA ........................................................... 49
2 INSTRUMENTOS PARA A CONSTRUO DE CIDADES DEMOCRTICAS E
SUA APLICABILIDADE NO CONTEXTO URBANO........................................ 52
2.1 RGOS COLEGIADOS DE POLTICA URBANA OS CONSELHOS .............. 53
2.2 O CONSELHO DAS CIDADES E O MINISTRIO DAS CIDADES ...................... 56
2.2.1 O Ministrio das Cidades ....................................................................................... 56
2.2.2 O Conselho das Cidades ......................................................................................... 57
2.3 OS CONSELHOS GESTORES ................................................................................ 59
2.4 AUDINCIAS PBLICAS ...................................................................................... 63
3 AS ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL ............................................ 66
3.1 ZEIS DEFINIO, CONCEITO E REGULAMENTAO.................................. 66
3.2 A GESTO DEMOCRTICA DAS ZEIS ............................................................... 71
3.3 CONSELHO GESTOR DAS ZEIS ........................................................................... 71
3.4 O PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E OS PLANOS REGIONAIS
ESTRATGICOS NA DELIMITAO DAS ZEIS EM SO PAULO .................... 72
4 NOVA LUZ ............................................................................................................. 81
4.1 PRESSUPOSTOS PARA O ESTUDO DE CASO .................................................... 81
4.2 6(50(60280$129$/8=" ..................................................................... 82
4.3 AUDINCIAS PBLICAS ...................................................................................... 84
4.4 A ASSOCIAO DE MORADORES ...................................................................... 86
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4.5 O CONSELHO GESTOR DA NOVA LUZ .............................................................. 88
4.5.1 O Funcionamento do Conselho Gestor (Anexo II) ................................................ 88
4.5.2 Projeto Nova Luz e a Produo de HIS ................................................................. 91
4.5.3 Plano de Urbanizao da ZEIS .............................................................................. 94
4.6 SNTESE E ANLISE DA EXPERINCIA ............................................................ 106
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 113
REFERNCIAS ............................................................................................................... 116
ANEXOS .......................................................................................................................... 122
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ENTREVISTAS REALIZADAS
Ana Lucia Ancona Arquiteta, Ex-coordenadora do Programa Guarapiranga (2001-2004),
Coordenadora do processo de criao das Zonas Especiais de Interesse Social pela Secretaria
de Habitao de So Paulo (SEHAB) para o Plano Diretor Estratgico de So Paulo
25/06/2009.
Helena Menna Barreto Arquiteta e Urbanista LAB/HAB (FAU-USP). Coordenadora do
programa "Morar no Centro", desenvolvido pela prefeitura de So Paulo, no perodo 2001-
2004.
Silvia Mariutti Arquiteta, Superintendncia de Habitao Popular SEHAB. Atuou pela
6(+$%jpSRFDGDLQFRUSRUDomRGDV=(,6QR3'HQRV35(V
Alonso Lopez Arquiteto, diretor de Hab Centro - SEHAB, conselheiro do Conselho Gestor
Nova Luz.
Paula Ribas jornalista, moradora da regio Nova Luz, Presidente da Associao
AMOALUZ.
Evaniza Rodrigues- Movimento Unio Nacional por Moradia Popular, atualmente trabalha
na Caixa Econmica Federal, atuou pelo movimento de moradia, poca da delimitao das
=(,6QR3'H35(V
Francisco Miranda metalrgico, morador da Comunidade do Moinho, localizada no centro
da cidade de So Paulo.
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INTRODUO
A Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), que instrumento de poltica urbana,
estabelecida e delimitada por lei. Sua previso no ordenamento foi um grande avano para a
reduo das desigualdades no contexto urbano, vez que se prope a reconhecer formas de uso
do solo pela populao de baixa renda que anteriormente poderiam ser considerados ilegais.
Contudo, nem sempre a legislao atuou de forma a mitigar disparidades. Assim, o
que este estudo demonstrar logo no primeiro captulo, o papel segregador que
historicamente a legislao urbanstica (mesmo quando ainda no era assim denominada)
produzida num contexto poltico elitista, contribuiu para a construo da cidade legal e da
cidade ilegal.
Para este estudo se faz necessrio um resgate histrico da ocupao desordenada de
terras no Brasil e de sua regulamentao legal, que ocorreu ao longo de um processo contnuo
de presso e organizao social.
Como ser demonstrado, nem sempre a irregularidade da ocupao do solo
decorrente da ausncia de previso legal, muitas vezes o que ocorre justamente o contrrio,
D OHJLVODomRPXLWDVYH]HVRULHQWDD LOHJDOLGDGH, e tem como consequncia a construo de
espaos elitizados nas cidades, onde quem pode pagar mora onde h ampla rede de
equipamentos urbanos, e quem no pode empurrado para a periferia dos grandes centros.
Uma das formas de reduzir esse distanciamento fsico e social por meio de
mecanismos que deem voz populao, para que se manifestem sobre seus anseios e
necessidades. E neste passo a democracia participativa tem importncia central, porque
poder ser a garantidora dos espaos pblicos que permitam que ocorra a participao popular
e que os frutos desta articulao com o Poder Pblico sejam convertidos em polticas pblicas
mais amplas e democrticas.
Pode-se dizer que o movimento neste sentido teve incio com a Assembleia Nacional
Constituinte, em que diversas organizaes sociais se uniram em torno de pautas comuns,
resultando e emendas frutferas Constituio Federal de 1988 (CF/88). Como consequncia
deste movimento, foi aprovado o Estatuto da Cidade, que a Lei n 10.257/2001, que
regulamenta o captulo Da Poltica Urbana da CF/88 e traz diversos instrumentos inovadores
na gesto democrtica das cidades, como audincias pblicas, conselhos, alm da ZEIS. Tais
instrumentos sero objeto de estudo do segundo captulo.
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O terceiro captulo ser integralmente dedicado ZEIS, ao seu papel no planejamento
urbano, efetividade e legitimao, desde sua delimitao no Plano Diretor, com destaque
especial ao Conselho Gestor, como espao de participao que deveria ser privilegiado. A
concepo das ZEIS um grande avano normativo, especialmente se considerar que nem
sempre a legislao atua de forma a contribuir com a reduo das desigualdades sociais no
Brasil. Contudo, preciso que se contemple o instrumento para alm de sua previso legal,
avaliando se os espaos de gesto democrtica previstos esto em pleno funcionamento,
garantindo a isonomia na participao e verificando a implementao das propostas
construdas nesses espaos.
Para embasar as avaliaes deste trabalho, no quarto captulo ser analisado um caso
concreto no municpio de So Paulo, cidade foco para todo este estudo. A escolha de So
Paulo se justifica especialmente por ser um local que resume muitas das contradies que
sero aqui expostas. A regio da Nova Luz est no centro da cidade de So Paulo, e contm,
em seu permetro, uma Zona Especial de Interesse Social, cujo Conselho Gestor est em pleno
funcionamento.
Assim, para que essa avaliao no seja meramente formal, este estudo dever
transcender a anlise jurdica, abarcando tambm aspectos polticos e histricos sobre como a
sociedade vem enfrentando os desafios da gesto democrtica nos espaos urbanos, que no
deixam de ser jurdicas, mas que esto mergulhadas num contexto poltico indissocivel.
Essa combinao da anlise legislativa, doutrinria, poltica e ftica permite que se
faa uma anlise global sobre a efetiva participao popular nos espaos previstos nos
instrumentos de regularizao fundiria, especificamente as ZEIS.
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1 A EVOLUO DA GESTO DEMOCRTICA DAS CIDADES
(...) E quem vende outro sonho feliz de cidade Aprende depressa a chamar-te de realidade Porque s o avesso do avesso do avesso do avesso (...) Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas Da fora da grana que ergue e destri coisas belas (...).
Sampa, Caetano Veloso
1.1 A LEGISLAO COMO AGENTE DA (I)LEGALIDADE E DA
(IR)REGULARIDADE DA CIDADE
H quem afirme que a irregularidade da ocupao do solo ocorra pela ausncia de
previso legal, mas o que se ver adiante justamente o contrrio, a legislao muitas vezes
RULHQWDQGRDLOHJDOLGDGH(DFRQVHTXrQFLa disso foi a construo de espaos elitizados nas
cidades, em que quem pode pagar mora onde h ampla rede de equipamentos urbanos, e quem
no pode empurrado para a periferia dos grandes centros, onde sequer o transporte pblico
funciona de maneira eficiente.
A legislao que protege e garante o direito cidade uma inovao em nosso
ordenamento, e foi construda em meio a muita disputa, foi uma dura conquista dos
movimentos sociais que, aps muita organizao e presso, conseguiram incluir algumas
garantias para a populao de renda mais baixa.
H muito tempo a habitao e a cidade so tratadas como mercadoria, que apenas pode
ter acesso quem por elas puder pagar. O mercado imobilirio atualmente grande fonte de
renda e lucro para os investidores; e, como diz Ermnia Maricato1, as leis que regulam a
habitao no pas so as leis de mercado. Desta forma, os interesses contemplados pela
legislao que produzida, garantem benefcios camada social privilegiada
economicamente, o que deixa desamparada a populao de baixa renda.
Como ser demonstrado durante todo este estudo, a legislao fruto de um contexto
poltico, fruto de muitas disputas, de muitas contradies. A depender da conjuntura, a
legislao poder beneficiar determinada camada social, mas sempre ser resultado de
arranjos e concesses.
1MARICATO, Ermnia. Nunca fomos to participativos. Carta Maior, 26 nov. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 8 abr. 2012.
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Entretanto, como se ver neste captulo, em geral, a atribuio de realizar a elaborao
normativa fica restrita a determinado grupo social ao passo que, a populao de baixa renda,
que sofre diretamente os efeitos de uma cidade elitizada, sequer participa deste processo de
construo.
A configurao do espao da cidade ocorre pela confluncia de diversos fatores. A
legislao e o alto custo da terra em regies centrais ou bem servidas de equipamentos
pblicos so aspectos que contribuem fortemente para sua organizao, como se ver.
A formao das cidades no Brasil ocorreu a partir da migrao do campo, e as
ocupaes foram se consolidando sem que, no entanto, houvesse legislao regulando esta
nova situao. Assim, a partir do momento em que a legislao foi sendo elaborada, era
necessrio que se observasse a realidade j consolidada, e partir dela se pensasse numa
elaborao normativa. Porm, diversos motivos contriburam para que este no fosse o
procedimento adotado, como se demonstrar.2
Nabil Bonduki3 identificou este momento de crescimento intenso da cidade de So
Paulo em meados de 1880, quando o complexo cafeeiro comeou a formar atividade urbana,
impulsionando o comrcio de produtos importados, o sistema bancrio, e o desenvolvimento
da indstria. Esse incremento fomentou a imigrao para So Paulo nesta poca, dando
origem ao primeiro dficit habitacional na cidade.
A precariedade das condies de moradia neste momento era imensa, inclusive nas
habitaes coletivas, os cortios, gerando pssimas condies de higiene, o que propiciou o
aparecimento de doenas e epidemias, e, diante deste quadro, o Estado decidiu interferir. A
primeira interveno estatal significativa no espao urbano ocorreu sob o fundamento da
necessidade de controle sanitrio! O governo providenciou ento diversas medidas de controle
KLJLrQLFR SDUD D FLGDGH LQFOXVLYH FRP D HGLomR GH XP &yGLJR 6DQLWiULR HP TXH
passou a proibir a existncia de cortios.4
2Boaventura Souza Santos define bem esta dualidade, que no se limita elaborao legislativa, mas HVSHFLDOPHQWHjVXDDSOLFDomR$FRQWUDGLomRSRGHHQWmRVXUJLUHQWUHRVWULEXQDLVRULHQWDGRVSDUDDGHIHVDlegalista da propriedade, e as agncias administrativas, orientadas para a resoluo dos problemas sociais. Mas a contradio pode existir no seio da mesma instituio. Por exemplo, os tribunais podem ser legalistas na defesa da propriedade ou pelo contrario dar cobertura legal a problemas sociais, consoante a presso poltica exercida sobre eles e o tipo de estratgia jurdica selecionada pelas partes em litgio. O recorte da dominao judicial retirar-se-iGRFRQMXQWRGDVDWXDo}HVGRVWULEXQDLVSHODSUHVHQoDGHVLJXDOGDVGXDVOLQKDVGHFLVyULDV2(VWDGRo direito e a questo urbana. In: FALCO, Joaquim de Arruda. (Org.). Invases Urbanas. Conflito de Direito de Propriedade. Rio de Janeiro: FGV, 2008. p. 82).
3BONDUKI, Nabil. Origens da habitao social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difuso da Casa Prpria. So Paulo: Estao Liberdade, 2011. p. 17.
4Ibid, p. 33.
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Outra medida tomada, esta relacionada diretamente aos cortios, foi a edio do
Cdigo de Posturas, que foi a primeira sistematizao de leis urbansticas da capital, em 1875,
e revisado em 1886. Foi tambm a primeira abordagem sobre os cortios, regulamentando e
restringindo sua edificao no centro de So Paulo. Com esta vedao, o que se evitava, direta
ou indiretamente, era a presena de pobres nas reas nobres da cidade.5
Tem-se, desde j, uma forma de, indiretamente, valorizar o espao central da cidade
retirando dele a populao de baixa renda, medida tomada por meio da legislao. E,
claramente, sem que tivesse a oitiva de qualquer representante do grupo prejudicado.
Com a nova organizao do centro os preos se elevaram, fazendo com que a nica
possibilidade de sobrevivncia dos pobres no centro fosse a diviso da moradia, os
conhecidos cortios, que, por lei, j estavam proibidos de existir naquele local, o que seria
uma grande contradio, como explica Bonduki6:
A construo barata era uma exigncia intrnseca ao negcio, pois os nveis de remunerao dos trabalhadores no permitiam alugueis elevados. Os cortios e as casa coletivas eram, portanto, essenciais para a reproduo da fora de trabalho a baixos custos e, enquanto tal, no podiam ser reprimidos e demolidos na escala prevista pela lei e desejada pelos higienistas. Esse conflito entre a legislao e a realidade, que nunca desapareceu, decorria do processo de explorao da fora de trabalho e permeou a produo de moradias populares em So Paulo (grifou-se).
Bonduki esclarece de maneira contundente que o conflito legislao versus realidade
sempre esteve no seio da produo e reproduo da vida na cidade, refletindo de forma direta
na produo de moradias populares, pois, ao mesmo tempo em que os trabalhadores
precisavam estar perto do centro para poder vender sua fora de trabalho e fazer girar a
cidade, a legislao no permitia habitao de baixo custo naquele local. Este problema, que
foi identificado em fins do sculo XIX, permanece vivo candente at hoje, incio do sculo
XXI.
Portanto, mesmo que a lei proibisse a existncia de cortios, o Poder Pblico no
poderia acabar com todos, pois isso representaria a ausncia completa de trabalhadores pelas
redondezas, o que encareceria a mo de obra para os empregadores, seja com transporte, seja
com um maior custo da habitao.
5ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999. p. 37.
6BONDUKI, Nabil. Origens da habitao social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difuso da Casa Prpria. So Paulo: Estao Liberdade, 2011. p. 39.
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Neste perodo o Estado brasileiro era liberal, de modo que sua interveno nas
questes sociais era mnima, e, portanto, planejar habitao no fazia parte de seu programa,
por isso a sada para este problema foi o incentivo aos particulares para que solucionassem
esta demanda.7 Tal medida agradou a todos, pois acabava com o problema que o Estado
deveria resolver, aumentava o lucro dos empreendedores, tranquilizava os higienistas e
atendia demanda dos trabalhadores por moradia, com forma e procedimentos questionveis,
mas teriam sua habitao a baixo custo, e, conforme preocupao do perodo, com adequadas
condies higinicas.
No foram apenas estes fatores que culminaram na proviso privada de habitao
popular. Somado s dificuldades acima, o transporte pblico poca era escasso e no atendia
s demandas dos trabalhadores nos sentidos casa-trabalho-casa. Os empreendedores da rea
fabril da Vila Prudente, no incio do sculo XX, muito interessados neste transporte,
solicitaram Light8 que os bondes trafegassem at a regio, facilitando o transporte dos
trabalhadores, porm, este pedido foi negado. Esta soma de fatores deu origem s primeiras
vilas operrias no Brasil.
Merece destaque neste trabalho o fato de que tanto o incentivo fiscal aos particulares
quanto o padro determinado pela prefeitura para construo destas casas operrias estavam
dispostas em leis municipais, respectivamente Lei n 493/1900 e Lei n 1098/1908, o que
demonstra o contorno que a lei j vinha fazendo da cidade. Assim, em 1900, foi aprovada a lei
498, que previa que as vilas poderiam ser construdas fora do limite urbano.9 Com esta
medida, duas situaes se tornavam mais convenientes: (i) era possvel controlar o preo dos
imveis contidos no permetro urbano, mantendo a segregao dos bairros valorizados, e (ii) o
aumento da lucratividade com a irregularidade legal do subrbio. Ao passo que a legislao
delimitava seu permetro de atuao, permitia que fora desse permetro tudo fosse possvel,
desde que conveniente e rentvel.10
7BONDUKI, Nabil. Origens da habitao social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difuso da Casa Prpria. So Paulo: Estao Liberdade, 2011. p. 40. 8A So Paulo Light Power & Cia era a empresa responsvel pela gerao e pela distribuio de energia eltrica na cidade de So Paulo e tambm pelo transporte por meio dos bondes.
9Lei Municipal n 498, de 14 de dezembro de 1900. 10ROLNIK, R. A cidade e a lei: legislao, poltica urbana e territrios na cidade de So Paulo. So Paulo:
StudiR 1REHO )DSHVS S FLWDQGR 6DUDK )HOGPDQ HP As segregaes espaciais da prostituio IHPLQLQDHP6mR3DXOR. In: Espao e Debates, n. 28, So Paulo, 1989, p. 63, traz alguns exemplos em que IRUDGDFLGDGHOHJDODLOHJDOLGDGHpSHUPLWLGDRXWRlerada, traz um exemplo emblemtico de como o irregular no ocorre pela ausncia da lei, mas pela prpria orientao do Poder Pblico neste sentido, ao relatar a criao GD]RQDVHJUHJDGDGHSURVWtEXORVFULDGDQR%RP5HWLURRQGHHVWHVHVWDEHOHFLPHQWRVHram permitidos dentro GDTXHOD ]RQD GH FRQILQDPHQWR (P VHJXQGR GHWHUPLQDomR GR LQWHUYHQWRU IHGHUDO HP 6mR 3DXOR
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A propriedade das casas pelos patres no s significava mais uma forma de
investimento financeiro, como tambm o aumento do controle sobre os funcionrios, ao passo
que, desagradando seu patro, seu desemprego viria seguido do despejo, configurao que
aumentava exponencialmente a relao de submisso.11
Este modelo refora a predominncia da elite organizando e gerindo a cidade, ao
mesmo tempo em que reflete a ausncia da populao de baixa renda atuando de forma ativa
nos rumos legais, em que pese esta forma de organizao urbana interferir direta e
negativamente sobre ela.
A construo e a locao de imveis foi se tornando, neste perodo, uma importante,
talvez a principal, forma de ascenso social. Como explica Rolnik12, os imigrantes e artesos
compravam terrenos prestao, aps o hipotecavam, e com este dinheiro construam novas
casas, e assim sucessivamente.
A partir de 1930, com a ditadura Vargas, a questo da habitao passa a ser central,
pois com o plano nacional-desenvolvimentista, ela passa a ser condio bsica de reproduo
da fora de trabalho.13 E justamente por isso, o entendimento era de que o setor privado no
poderia permanecer responsvel pela demanda, o Estado deveria atuar de forma direta.
Nesta poca a primeira interveno estatal foi por meio da Lei do Inquilinato,
congelando todos os aluguis, fato que significou perda de lucro considervel para os
proprietrios, situao que merece destaque, se considerar que 70%14 das moradias eram
alugadas na poca.
Adhemar de Barros, todos os estabelecimentos de prostituio deveriam se localizar no Bom Retiro, em um trecho do bairro composto por ruas sem sada, em funo da existncia da linha frrea, principalmente nas ruas Itaboca e Aimors e um trecho da rua Ribeiro de Lima. Criou-VHDVVLPXPD]RQDVHJUHJDGDFRPSRVWDSRUquase 150 prostbulos, abrigando 1400 mulheres, trs postos antivenreos e uma delegacia de polcia. A partir do estabelecimento da zona confinada, toda a prostituio exercida fora daquele espao SDVVRXDVHUFRQVLGHUDGDLOHJDO2XWURH[HPSORWUD]LGRSHODDXWRUDpGDSHUPLVVmRGRVFRUWLoRVQRBrs. A legislao proibiu a existncia de imveis multi familiares, porm, apenas na zona central, tolerando (diante da impossibilidade de proibir) que eles existissem nas reas fabris. Hoje em dia, um exemplo clssico desta tolerncia a ocupao das reas de mananciais, especialmente na zona sul de So Paulo, onde a legislao prev restries ocupao, porm, a moradia l permitida enquanto no ocorrer a valorizao do terreno. Assim que instado, Poder Pblico age para promover a remoo da populao, enquanto isso no ocorre, a populao vai chegando, se instalando e fazendo viagens que duram horas no transporte pblico aWpFKHJDUDRFHQWURGDFLGDGH
11ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999.p. 117-118.
12Ibid., p. 120. 13BONDUKI, Nabil. Origens da habitao social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difuso
da Casa Prpria. So Paulo: Estao Liberdade, 2011. p. 73. 14Ibid., p. 84.
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Reduzir os custos da habitao interessava no somente aos trabalhadores, mas
tambm aos industririos, que poderiam enxugar os salrios pagos, uma vez que a moradia
representava grande porcentagem dos gastos mensais. O Estado assume, ento, o
financiamento de moradias para os trabalhadores, momento em que a expanso para a
periferia toma maiores propores, pois seria a nica possibilidade de construo a baixo
custo, e, consequentemente, aumenta a necessidade de melhora nos transportes pblicos.
Este momento crucial para se entender qual a poltica adotada pelo Estado para
prover habitao populao que no podia pagar para morar perto do trabalho ou no centro
da cidade. O prprio Poder Pblico conduziu essa populao s periferias. E aqui vale uma
ressalva com relao ao objeto central deste estudo, que traz a ZEIS como uma das polticas
que garante a manuteno da populao de baixa renda no centro da cidade. Esse movimento
antagnico, em dois momentos distintos da histria do pas, demonstra a diferena de atuao
da poltica urbana neste perodo e aps o processo que demarcou a mudana de paradigma
ocorrido com a legislao urbanstica.
As medidas tomadas por Vargas alteraram a forma de produo da habitao para a
populao de baixa renda. Ao desestimular o mercado privado, formas alternativas de
moradia foram surgindo, incluindo a autoproduo. Embora o Estado no tenha conseguido
solucionar a demanda por habitao a baixo custo, cristalizou-se na sociedade a ideia de que
seria ele o responsvel por esta atribuio, e seria tambm o responsvel por regular a relao
entre inquilino e proprietrio.
Este ponto foi um dos problemas consolidados pela legislao que tratava da locao
de imveis. Locador e locatrio no estavam em p de igualdade, um era proprietrio e o
outro despendia grande parcela do seu salrio para pagar pela moradia, que seria forma de
investimento e obteno de lucros daquele. Contudo, novamente a lei simulava uma igualdade
inexistente. A Lei do Inquilinato, porm, agradou a todos a princpio -, pois, congelando os
alugueis era possvel aos empresrios que gastassem menos com o pagamento de salrio
classe trabalhadora.
Na dcada de 1940 acontece uma crise habitacional: a Lei do Inquilinato, ao congelar
os alugueis, desestimulou a produo privada de moradias; a autoconstruo pelos
trabalhadores no era capaz de abarcar toda a demanda, e a atuao do Estado para garantir a
habitao sempre foi insuficiente.15 Somado a isto, a rigidez e longa durao no tempo da Lei
15BONDUKI, Nabil. Origens da habitao social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difuso da Casa Prpria. So Paulo: Estao Liberdade, 2011. p. 248.
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do Inquilinato fez com que aumentassem os despejos, j que os proprietrios buscavam sadas
mais rentveis aos seus imveis, o que aumentou tambm a insegurana dos locatrios,
tornando mais segura e interessante a casa prpria, mesmo que irregular ou mais distante.
Simultaneamente, ocorre um processo de renovao do centro, com a construo de
grandes avenidas, com um embelezamento da cidade que s fazia aumentar a segregao
centro periferia.
As primeiras favelas em So Paulo surgiram neste perodo de crise habitacional. O
prefeito Abrao Ribeiro inovou ao tratar a questo da moradia como problema social, e
construiu alojamentos provisrios multi familiares para a populao que estava sendo
despejada diariamente e, constituindo as favelas na cidade.16
Neste perodo cresceu vertiginosamente a autoconstruo das moradias na periferia.
Embora este processo merea duras crticas por exigir que o trabalhador gaste seu tempo livre
trabalhando, alm de no garantir o efetivo direito moradia porque muitas vezes a
construo feita em terrenos cuja propriedade de terceiros, era a nica forma que o
trabalhador teria de pagar o preo real pela construo.
Essa situao aumentou a demanda de transporte pblico para a periferia, o problema
que teve incio no sculo XIX se agravava, j que a populao de baixa renda, que l residia,
teria que fazer grandes deslocamentos no sentido casa-trabalho. Estas questes esto
umbilicalmente ligadas:
O problema da habitao popular no final do sculo XIX concomitante aos primeiros indcios de segregao espacial. Se a expanso da cidade e a concentrao de trabalhadores ocasionou inmeros problemas, a segregao social do espao impedia que os diferentes estratos sociais sofressem da mesma maneira os efeitos da crise urbana, garantindo elite reas de uso exclusivo, livres da deteriorao, alem de uma apropriao diferenciada dos investimentos pblicos.17
Mas este no foi o nico fator que contribuiu para que a populao de baixa renda
fosse se direcionando para a periferia da cidade.
As chamadas obras de remodelao alargamento de vias, instalao de praas, bulevares e equipamentos pblicos -, ao ter como efeito o aumento do preo dos imveis, contriburam para acentuar o carter comercial e de servios ao Centro, na
16BONDUKI, Nabil. Origens da habitao social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difuso da Casa Prpria. So Paulo: Estao Liberdade, 2011. p. 263.
17Ibid., p. 20.
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medida em que apenas uma utilizao de alta rentabilidade poderia arcar com o pagamento da renda devida a tal localizao, valorizada pelo investimento pblico.18
Assim, novamente, os smbolos vo modelando o formato das cidades, alterando os
critrios de valores e inviabilizando o acesso aos imveis a determinadas faixas de renda.
Preos imobilirios altos significavam que os pobres s poderiam viver ali atravs da intensa subdiviso de casas e lotes. Isso, no entanto, estava banido por lei. Os ricos j haviam se mudado para outras regies. Nascia, desse modo, pela primeira YH] QDKLVWyULD GH6mR3DXORD FLGDGH OXJDU H[FOXVLYR GH FRPpUFLR H VHUYLoRVcaro e excludente smbolo da modernidade.19
Esta segregao e a precariedade da moradia para a populao de baixa renda
permanecem at hoje em dia. De acordo com levantamento realizado pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID)20 em 2012, 62% da populao paulistana no tem
condies de pagar por uma moradia. A cidade de So Paulo est em quinto lugar no estudo
realizado em dezoito pases da America Latina e do Caribe. A consequncia dos altos preos
dos imveis, regulados pelas leis de mercado, geram o crescimento da precariedade da
moradia, segundo dados do ltimo IBGE21 43% das moradias no Brasil so inadequadas, por
no terem acesso rede de gua e esgoto, e possurem piso de terra e, muitas vezes, paredes
edificadas por material reciclvel.
1.1.1 Nas Tramas da Legislao uma avaliao crtica
Esta a histria da formao e do crescimento das cidades, mais especificamente da
cidade de So Paulo, que se deu, como explica Rolnik, no apenas orientado pelo texto frio da
lei, tambm por todo o calor e contradio da realidade em que ela aplicada, que no linear
e esttica, tal qual previsto nos cdigos. Esta mesma autora, ao mencionar Victor Freire22, diz
que, para ele
18ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999. p. 106.
19Ibid., p. 107. 20CORREA, Vanessa. Mais de 60% das famlias no podem comprar casa em So Paulo. Folha de So Paulo on-
line, So Paulo,14 de maio de 2012. Cotidiano a pesquisa foi feita com base na porcentagem de domiclios que gastariam mais de 30% de sua renda para pagamento das parcelas de um financiamento.
21IBGE. Disponvel em: . Acesso em: 14 mai. 2012. 22Raquel Rolnik apud FREIRE, Victor da Silva. Cdigos sanitrios e posturas municipais sobre habitaes
(alturas e espaos). Um captulo de urbanismo e de economia nacional. Boletim do Instituto de Engenharia, p . 231, fev. 1918.
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(...) a legislao tem um papel positivo proteger os investimentos e outro negativo - evitar a ameaa representada pelo contato com usos e grupos sociais indecentes e insalubres foi introduzida desde cedo na legislao urbana em So Paulo, constituindo um de seus aspectos fundamentais. Apesar de no ter sido integralmente implantada atravs de um zoneamento para toda a cidade, foi expressa atravs da produo de cortios na zona urbana, e mais tarde, na zona central, e atravs de regulaes especficas para os loteamentos de alto padro.23
E esta demarcao tem sua funo bem evidenciada:
A chave da eficcia em demarcar um territrio social preciso reside evidentemente no preo. Lotes grandes, grandes recuos, nenhuma coabitao frmula para quem pode pagar. A lei, ao definir que num determinado espao pode ocorrer somente certo padro, opera o milagre de desenhar uma muralha invisvel e, ao mesmo tempo, criar uma mercadoria exclusiva no mercado de terras e imveis. Permite, assim, um alto retorno do investimento, mesmo considerando, como diria Freire, o baixssimo rendimento do lote.24
No preciso que haja demarcao ou separao formal para que seja notria a
divLVmR VRFLDO QD FLGDGH $SHQDV DOJXQV FyGLJRV FRPR R WDPDQKR GRV ORWHV GR UHFXR
EDVWDP SDUD IRUPDU D WDO PXUDOKD LQYLVtYHO TXH RULHQWD SDUD TXDO GLUHomR GHYHP LU DV
construes populares.
E a argamassa desta muralha a legislao. Por isso, no h que se falar em ausncia
de elaborao normativa que possa solucionar essas situaes, tornando-as legalmente
permitidas. Como explica Ermnia Maricato25, o problema no a ausncia de leis, mas sim a
sua forma de produo:
No foi por falta de leis que a maioria da populao brasileira foi excluda da propriedade formal da terra, durante toda a histria do Brasil, seja no campo ou na cidade. Um cipoal de leis, decretos, resolues, registros e cadastros seguiu-se instituio da propriedade privada da terra no Brasil, a partir da Lei de Terras de 1850. Muitas iniciativas e tambm a ausncia delas serviu para confirmar a relao entre poder e propriedade da terra ao longo dos ltimos 200 anos. At mesmo a gigantesca fraude que permitiu a apropriao privada das terras devolutas teve formatos institucionais variados. Os movimentos sociais devem lutar por novos marcos jurdicos, mas preciso ter em conta que isso est muito longe de assegurar conquistas reais, como estamos testemunhando com a quase nula aplicao dos instrumentos mais importantes do Estatuto da Cidade, seis anos aps sua promulgao. Apesar da fora e da unidade dos movimentos urbanos, o secularmente almejado acesso terra concretamente pouco avanou nesses anos de conquistas institucionais. Esse parece ser o ponto de honra da elite brasileira: conservar os pobres na ilegalidade quando ela mesma se apropriou ilegalmente da
23ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999. p. 46.
24Ibid., p. 47. 25MARICATO, Ermnia. Nunca fomos to participativos. Carta Maior, 26 nov. 2007. Disponvel em:
. Acesso em: 8 abr. 2012.
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maior parte do patrimnio em terras pblicas. As razes da explicao esto muito fundas.
Para a autora, no a ausncia de leis que gera a excluso, pois seu processo de
elaborao calcado numa poltica de estado que se orienta por diretrizes, dentre as quais est
a opo de manter ou no esta populao de baixa renda dentro dos quadros da legalidade, em
que pese grande parte da ilegalidade praticada pela populao de alta renda, como grilagem de
terras e a imensa polmica sobre os condomnios fechados, ser facilmente conduzida
legalidade.
Bassul, amparado por Ermnia Maricato, discorre como a ineficcia da legislao
apenas aparente, pois na prtica ela atinge o fim a que se destina:
Decorre dessa percepo o argumento de que no por falta de planos que as cidades brasileiras crescem de modo social e ambientalmente predatrio, mas, ao contrrio, pelo efeito, em grande medida, das prprias normas planificadoras. Para muitos pesquisadores, o aparato legal que regula a produo do espao urbano no Brasil (legislao exigente para o parcelamento do solo, normas rgidas de zoneamento e minudentes cdigos de obras, por exemplo) tem cumprido um papel oposto aos seus aparentes objetivos ordenadores.26
O que o autor defende, em outras palavras, que as prprias normas de planejamento
urbano orientam para um modelo de cidade excludente. Na realidade, o que no se pode
omitir o carter poltico e muitas vezes ideolgico da legislao, o que, muitas vezes pode
confundir, fazendo crer que a legislao no cumpre seu papel, quando na realidade cumpre,
mas de forma transversa do que deveria ser.
Pretende-se demonstrar aqui o consentimento tcito do Poder Pblico quando o ilegal
conveniente ou quando ainda no interfere nos interesses econmicos:
As caractersticas do ambiente construdo por uma sociedade marcada pela desigualdade e pela arbitrariedade no poderia neg-la. O paradoxo que articula legislao, arbitrariedade e excluso social explorado na segunda parte do livro. Destaca-se que a ocupao ilegal de terras informalmente consentida (ou por vezes at incentivada) pelo Estado que, entretanto, no admite o direito formal do acesso terra e cidade. Isso se d por conta da articulao entre legislao, mercado e renda imobiliria. A ocupao consentida inclusive em reas de proteo ambiental, mas raramente em reas valorizadas pelo mercado imobilirio calcado em relaes capitalistas.27
26BASSUL, Jos Roberto. Estatuto da Cidade quem ganhou, quem perdeu? Braslia, 2004. Disponvel em: . Acesso em: 08 abr. 2012.
27MARICATO, Ermnia. Metrpole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violncia. So Paulo, 1995. Disponvel em:
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Ento, o Poder Pblico muitas vezes tem conhecimento da ocorrncia de ocupao em
reas irregulares ou ambientalmente protegidas, o que deveria ser coibido por ele. Porm, h
um clculo poltico que envolve evitar a ocupao e dar quela populao pronto
atendimento. Com estes valores postos na balana, em geral a opo por consentir a
ocupao. E esperar at que o mercado determine a valorizao do terreno e inviabilize a
ocupao irregular pela baixa renda, como esclarece Maricato:
Enquanto os imveis no tm valor como mercadoria, ou tm valor irrisrio, a ocupao ilegal se desenvolve sem interferncias do Estado. A partir do momento em que os imveis adquirem valor de mercado (hegemnico) por sua localizao, as relaes passam a ser regidas pela legislao e pelo direito oficial. o que se depreende dos dados histricos e da experincia emprica atual. A lei do mercado mais efetiva do que a norma legal.
(...)
Ocupar, pode, voc vai ocupar rea de proteo de mananciais? A lei no permite, mas pode. Quero dizer que ningum vai tirar voc de l a no ser que seja uma coisa pontual. Mas vai ocupar um prdio na Prestes Maia que deve R$ 4 milhes de IPTU pra ver se consegue ficar... Ali, onde a lei permite, no se pode ficar; nas reas de mananciais, onde a lei no permite, pode. Qual a norma, a lei que existe neste pas? a de mercado, no a norma jurdica. L, no centro, voc no pode porque tem tudo l, um tesouro. o melhor lugar, no tem nenhum local em que o transporte pblico melhor, voc no precisa ter carro.28
So esses os agentes que conformam o espao urbano, regulado pelas leis e interesses
do mercado, e Maricato29 complementa: A ocupao ilegal como as favelas, so largamente
toleradas quando no interferem nos circuitos centrais da realizao do lucro imobilirio
privado.
A cidade autoconstruda est fora da previso legal, em consequncia disso, os
servios bsicos tambm, e os moradores de l so privados de seus direitos mais
fundamentais, como se a ilegalidade em relao posse da terra fosse justificativa para que a
H[FOXVmRVHUHDOL]HHPVXDJOREDOLGDGH&RPRDILUPD0DULFDWR$LOHJDOLGDGHHPUHODomRj
propriedade da terra, entretanto, tem sido o principal agente da segregao ambiental e da
Acesso em: 12 out. 2011. p. 5.
28MARICATO, Ermnia. Nunca fomos to participativos. Carta Maior, 26 nov. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 8 abr. 2012.
29Id. Metrpole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violncia. So Paulo, 1995. Disponvel em: Acesso em: 12 out. 2011. p. 35.
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excluso social, no campo ou na cidade.30 Da decorrem diversas outras relaes que vo se
estabelecendo no intuito de se prover de meios para a garantia desses direitos rechaados.
E justamente por isso que a populao residente em favelas que deveria ter papel
ativo e decisivo no planejamento urbano! Uma vez que no tm acesso moradia por meio do
mercado formal, so os responsveis pela criao de formas alternativas de ocupao e
reinveno do espao urbano, que do origem aos assentamentos precrios, cujo
reconhecimento formal no feito pelo Poder Pblico. Diante disso, indiscutvel a
importncia da participao desses grupos no planejamento.
Esta forma de legislar teve como consequncia a elaborao de leis em desacordo com
a situao ftica das ocupaes j consolidadas, o que transformou as reas ocupadas em reas
de ocupaes ilegais, desqualificando a moradia e desconsiderando, mesmo que
indiretamente, alguns dos direitos dos moradores. Nos dizeres de Raquel Rolnik31: Essa
delimitao tem consequncias polticas importantes, na medida em que pertencer a um
territrio fora da lei pode significar uma posio de cidadania limitada.
E assim a lei vai conduzindo e diferenciando o legal do ilegal, e por isso a grande
importncia de se garantir habitao adequada em reas servidas de equipamento pblico
populao que, historicamente, desprovida de direitos e garantias. Para ilustrar esta situao,
Boaventura Souza Santos, em seu texto Notas sobre a histria jurdico-social da
Pasrgada32, ao justificar as razes pelas quais os moradores de favelas no procuravam o
Poder Judicirio para dirimir suas contendas, aborda este assunto:
(...) (os moradores de Pasrgada sabiam) desde o incio que a comunidade era ilegal luz do direito oficial, quer quanto ocupao da terra, quer quanto aos barracos que nela se iam construindo. Na expresso perspicaz de um deles, ns ramos e somos ilegais. Recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitaes no s era intil como perigoso. Era intil porque os tribunais tm que seguir o cdigo e pelo cdigo ns no tnhamos nenhum direito. Era perigoso porque trazer a situao ilegal da comunidade ateno dos servios do Estado poderia lev-los a nos jogar na cadeia.
30MARICATO, Ermnia. Metrpole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violncia. So Paulo, 1995. Disponvel em: Acesso em: 12 out. 2011. p. 30.
31ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999. p. 2
32SANTOS, Boaventura de Souza. Notas sobre a histria jurdico-social de Pasrgada. In: SOUTO, Claudio; FALCO, Joaquim. (Orgs.). Sociologia e Direito. So Paulo: Livraria Pioneira, 1980. p.8
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Em outras palavras, mesmo que aos moradores de Pasrgada assistisse algum direito a
ser reivindicado, eles no se sentiam seguros para pleite-lo judicialmente, sob pena de
despontar uma questo maior, a ilegalidade da casa, da moradia, a qual eles perderiam caso o
(VWDGRGHVFREULVVHHVWDLlegalidade.Nesta perspectiva, pode-se dizer que a lei
(...) funciona, como uma espcie de molde da cidade ideal ou desejvel. Entretanto, isto poderosamente verdadeiro para o caso de So Paulo e provavelmente para a maior parte das cidades latino americanas, ela determina apenas a menor parte do espao construdo, uma vez que o produto cidade no fruto da aplicao inerte do prprio modelo contido na lei, mas da relao que esta estabelece com as formas concretas de produo imobiliria da cidade. Porm, ao estabelecer formas permitidas e proibidas, acaba por definir territrios dentro e fora da lei, ou seja, configura regies de plena cidadania e regies de cidadania limitada. Esse fato tem implicaes polticas bvias, pois, alm de demarcar as fronteiras da cidadania, h um importante mecanismo de mdia cultural envolvido, desde que as normas urbansticas funcionem exatamente como puro modelo. Com isso queremos dizer que, mesmo quando a lei no opera no sentido de determinar a forma da cidade, como o caso de nossas cidades de maioria clandestinas, a onde ela mais poderosa no sentido de relacionar diferenas culturais com sistemas hierrquicos.33
(VWD SUiWLFD p PXLWR YLYD DWp KRMH PRUDGRUHV GD FLGDGH LOHJDO WHPHP TXDQGR
precisam acessar algum servio pblico, pelo fato da insegurana na moradia ter efeito de se
estender sobre os demais direitos.
Exemplo concreto desta espcie de desrespeito aos direitos de moradores de
DVVHQWDPHQWRV LUUHJXODUHVFRWLGLDQDPHQWHYLYHQFLDGRpDQDWXUDOL]DomRGDUHYLVWDSROLFLDO
na entrada das casas. Fim do dia, trabalhadores cansados voltam s suas casas, local que
deveria servir de refgio e descanso. Contudo, costumeiramente, estes trabalhadores so
obrigados a se submeter aos desmandos injustificados das autoridades, e esta situao
tolerada porque a irregularidade da posse da terra transmite a sensao de inaplicabilidade dos
demais direitos fundamentais a esta populao. A sonora msica de MV Bill ilustra a
situao:
Celebrando a cada momento/ A noite, a noite onde tudo acontece/ Na sada da minha casa eu levo uma geral/ Pra no perder o costume natural/ Coisa normal no meu bolso tem nada/ A nego t liberado, rala!/ T acostumado isso no me abala/ Vou encontrar com os amigos l na praa/ A noite longa, ainda cedo/ A noite negra, escura como preto/ Com os amigos sentados a mesa.34
33ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999. 13-14.
34MV Bill, A Noite.
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As pessoas que vivem em moradias precrias e irregulares sofrem diariamente uma
srie de violaes em seus direitos que acabam por transferir a situao de ilegalidade
referente posse da terra para todas as demais condies. como se o descumprimento de
uma das situaes previstas no artigo 6 da Constituio Federal35 fosse justificativa
necessria e bastante para o desrespeito a todos os demais direitos sociais nele previstos.
Esta situao faz parecer que toda sua existncia ocorre na ilegalidade.
A sensaomR GH HVWDU j PDUJHP GR PHUHFLPHQWR GRV GLUHLWRV IXQGDPHQWDLV p
compreensvel, pois na prtica as condies no lhes so favorveis, ao passo que a
irregularidade da posse da terra a justificativa costumeiramente utilizada para no
implementar os demais servios bsicos residenciais:
Atravs deste mecanismo as formas de insero irregular so simultaneamente estigmatizadas e legitimadas numa escala micro, sem que as bases macro da legitimidade do direito de propriedade sejam colocadas em questo. O efeito urbanstico deste dispositivo jurdico-poltico impressionante: so milhares de hectares de terrenos e de quilmetros de vias pblicas que no se sabe, a princpio, se so ou no parte integrante da cidade, se devem ou no ser objeto de investimentos pblicos, se podem ou no ser integrados s redes de servios, infra-estrutura etc. A conseqncia inevitvel da posio extra legal uma espcie de imagem de provisoriedade, que ao contrrio do que a prpria noo de provisoriedade supe, permanente. A posio de provisoriedade funciona, a nvel da poltica urbana, como justificativa para o no investimento pblico, o que acaba reforando a precariedade urbanstica e sobretudo acentuando as diferenas em relao ao setor da cidade investido.36
A condio de suposta provisoriedade a justificativa para que no se faa o
investimento pblico, o que s aumenta a precariedade daquele assentamento, deixando-o
cada vez mais estanque do setor formal da cidade.
importante apenas mencionar a falsa polmica que se estabelece como justificativa
para a no regularizao de determinada rea, bem como para a no instalao dos
equipamentos e servios pblicos fundamentais. A alegao manifestada pelo Poder Pblico
de que a regularizao do terreno e a implantao dos servios seria uma importante forma de
incentivo para que a populao intensificasse a ocupao irregular, e muitas vezes em
desacordo com a lei. Esta afirmao uma falcia, pois a ocupao precria s ocorre por
ausncia de alternativa digna de moradia.
35Art. 6. So direitos sociais a educao, a sade, a alimentao, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta &RQVWLWXLomR
36ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999. p. 15-16.
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28
E o contraponto deste argumento que a regularizao e a instalao de servios de
saneamento bsico, por exemplo, seria bem mais eficaz, ao passo que no deixaria desprovida
de moradia aquela populao, e, no aspecto ambiental, impediria que os dejetos fossem
jogados diretamente em reas protegidas ambientalmente, dando a eles tratamento adequado.
Maricato37 traz um exemplo concreto desta falsa polmica:
Durante o regime militar, o PLANASA - Plano Nacional de Saneamento Bsico, abandonou os critrios legais de uso e ocupao do solo para estender o fornecimento de gua populao at ento no atendida em diversas reas metropolitanas. A SABESP, empresa pblica responsvel pelo saneamento bsico no estado de So Paulo, ampliou a rede de guas at os loteamentos ilegais, inclusive aqueles situados em rea de proteo dos mananciais, desenvolvendo para isso instalao leve e de baixo custo. Essa atitude teve repercusso direta na queda do ndice de mortalidade e infantil, objetivo do plano.
Assim, no se desconsidera a irregularidade daquela ocupao, ao contrrio, a partir
dela ponderam-se os valores envolvidos, e, por fim, o valor vida se sobressai, concluindo-se
pela necessidade de garantir a vida por meio de polticas que garantam sade adequada
populao. E a conteno da ocupao irregular no se faz pela privao dos servios
fundamentais, mas sim pela elaborao de polticas sociais que resguardem os direitos da
populao de baixa renda. Vale destacar que, paradoxalmente, esta regularizao tenha
ocorrido durante o perodo de ditadura militar no Brasil.
No data de hoje o direcionamento dos locais que sero servidos de infraestrutura.
Desde a Repblica Velha a orientao era implement-la onde o retorno pudesse ser lucrativo,
ento, com a transferncia para a iniciativa privada do monoplio da prestao de servios,
eram as empresas que definiam quais seriam as reas valorizadas do municpio.
Ao delimitar o permetro urbano, a Cmara definia o mbito de atuao das companhias provedoras de infraestrutura. As implicaes foram imediatas: o que estava dentro era rapidamente valorizado; o que estava fora, automaticamente excludo.
(...)
Esse monoplio simultneo prestao dos servios mais essenciais dotara a empresa de um grande poder de gerar valorizaes urbanas.38
37MARICATO, Ermnia. Metrpole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violncia. So Paulo, 1995. Disponvel em: Acesso em: 12 out. 2011. p. 31.
38ROLNIK, R. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania (So Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adlia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa. (Orgs.). Metrpole e globalizao. Conhecendo a cidade de So Paulo. So Paulo: CEDESP, 1999. p. 148.
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No se pode transferir ao particular funo que , sumariamente do Estado, sob pena
de ter-se a representatividade afetada, como na situao descrita acima. do Poder Pblico a
obrigao de atender de forma igualitria todas as camadas sociais, todos os interesses, e por
isso no pode repassar ao particular tarefa to central para a justa organizao do espao
urbano.
Dentro desta competncia do Estado deveria ser contemplada a garantia de espaos
centrais que pudessem ser destinados populao mais prejudicada pelas regras que foram
sendo delineadas, que a camada de baixa renda.
Verificou-se que a legislao urbanstica foi, paradoxalmente, desenhando o que seria
a cidade legal e contornando o que seria ilegal, e ficaria, por isso, na periferia. E os reflexos
desta poltica so sentidos at hoje, com a populao de baixa renda morando cada vez mais
distante do centro e tendo que enfrentar dificuldades constantes com a escassez e precariedade
do transporte pblico.
Como ficou demonstrado, a elaborao da legislao que segrega fruto de um
contexto poltico, faz parte das disputas e lutas sociais, cuja orientao determinada por
quem detm o poder poltico e econmico, de forma que a populao de baixa renda e
despojada de direitos no ouvida. Uma perspectiva de mudana deste panorama por meio
da democracia participativa, com iguais possibilidades de manifestao de todos os atores
sociais, inclusive participando da produo normativa, como ser demonstrado abaixo.
1.2 APROXIMANDO AS POLTICAS PBLICAS DAS DEMANDAS SOCIAIS: A
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
1.2.1 A Democracia Participativa
(...) A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar (...).
Chico Buarque, Roda Viva
vasto o debate sobre o significado de democracia no campo das Cincias Sociais, e
aqui no se adentrar aos meandros tericos destas divergncias. Seu conceito ser abordado a
partir da previso constitucional, contida no artigo 1, que dispe que o fundamento do Estado
Democrtico de Direito o exerccio do poder popular.
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O pargrafo primeiro deste mesmo artigo prev a possibilidade de exerccio direto ou
indireto do poder popular, e aqui caber aprofundar esta ltima previso, o exerccio direto do
poder, fundado no princpio da soberania popular, tal como previsto no artigo 14 da CF, que
trata a iniciativa popular como uma forma de exerccio dessa soberania.
A soberania popular, exercida de forma direta ou indireta, constitui o alicerce do
Estado Democrtico de Direito, o que, nos dizeres de Jos Afonso da Silva significa:
A democracia que o Estado Democrtico de Direito realiza h de ser um processo de convivncia social numa sociedade livre, justa e solidria (artigo 3, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (artigo 1, pargrafo nico); participativa, porque envolve a participao crescente do povo no processo decisrio e na formao dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupe assim o dilogo entre opinies e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivncia de formas de organizao e interesses diferentes da sociedade; h de ser um processo de liberao da pessoa humana das formas de opresso que no depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, polticos e sociais, mas especialmente da vigncia de condies econmicas suscetveis de favorecer o seu pleno exerccio.39
Este conceito de democracia, que envolve o convvio e o respeito com o diferente, o
respeito diversidade de ideias, culturas e etnias, a liberao de toda forma de opresso, corre
livremente ao encontro do conceito do Direito Cidade, como previsto na Carta Mundial do
Direito Cidade40, e relatado pelo professor Nelson Saule Jnior41:
So considerados como direitos relativos gesto da cidade, os seguintes: desenvolvimento urbano equitativo e sustentvel, participao no oramento da cidade, transparncia na gesto da cidade e direito informao pblica. Pela Carta, para o desenvolvimento urbano equitativo e sustentvel as cidades devem comprometer-se a regular e controlar o desenvolvimento urbano, mediante polticas territoriais que priorizem a produo de habitao de interesse social e o cumprimento da funo social da propriedade pblica e privada, em observncia aos interesses sociais, culturais e ambientais coletivos, sobre os individuais. Para tanto, as cidades obrigam-se a adotar medidas de desenvolvimento urbano, em especial a reabilitao das habitaes degradadas e marginais, promovendo uma cidade integrada e equitativa.
(...) a defesa do direito cidade, compreendido como um direito coletivo dos habitantes das cidades e povoados, em especial dos grupos vulnerveis e desfavorecidos, ao usufruto da riqueza e cultura das cidades, sem distines de gnero, nao, raa, linguagem e crenas. Inclui o direito terra, aos meios de subsistncia, moradia, ao saneamento, sade, educao, ao transporte pblico, alimentao, ao trabalho, ao lazer, informao, a preservao da herana histrica e cultural.
39SILVA, Jos Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. So Paulo: Malheiros, 2002. p. 112. 40CARTA Mundial do Direito Cidade. Instituto Plis. Disponvel em:
. Acesso em: 24 jun. 2012. 41SAULE JNIOR, Nelson. O Direito cidade como paradigma da governana urbana democrtica. Disponvel
em: . Acesso em: 24 jun. 2012.
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O direito cidade democrtica, equitativa e justa pressupe o exerccio pleno dos
direitos sociais, econmicos, culturais, civis e polticos previstos em Pactos e Convenes
internalizados pelo Brasil, que garantam o direito a um adequado padro de vida; o direito ao
trabalho; sade; gua; educao; participao poltica; segurana; convivncia
diversa e pacfica; moradia digna e adequada.
O convvio entre toda esta diversidade nas cidades s poder ser harmnico se os
valores democrticos acima mencionados forem respeitados. So, portanto, confluentes as
garantias previstas para constituio do Estado Democrtico de Direito e para o Direito
Cidade, ao passo em que ambas prezam pelo respeito e pelo contato com o diferente, pelo fim
da opresso, com a diviso equitativa dos benefcios ao povo, sem distino de raa, gnero e
etnia. E por meio dos mecanismos de gesto democrtica que sero construdas cidades
plurais, como se ver mais frente.
Para Jos Afonso da Silva, como j mencionado, a efetividade da democracia est
condicionada ao reconhecimento de direitos individuais, bem como existncia de condies
econmicas favorveis para que o exerccio do convvio entre o diferente seja exercido. E
neste passo a democrtica participativa elemento central para que estas condies sejam
criadas, j que a ampla participao popular visa contemplar diversos olhares e percepes.
E este um ciclo que se retroalimenta, pois so estas diferenas que fortalecem a
prpria democracia e enriquecem a construo coletiva, permitindo o aprendizado. Para
Marilena Chau, esta uma das caractersticas da democracia, que ela define como:
Forma poltica na qual, ao contrrio de todas as outras, o conflito considerado legtimo e necessrio, buscando mediaes institucionais para que possa exprimir-se. A democracia no o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrtica nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradio e no a da mera oposio? Ou seja, a oposio significa que o conflito se resolve sem modificao da estrutura da sociedade, mas uma contradio s se resolve com a mudana estrutural da sociedade.42
Pelo pensamento acima, pode-se arriscar dizer que as democracias so to mais
democrticas quanto mais intensa a participao poltica e, consequentemente, quanto maior
o confronto entre opinies divergentes. Essa caracterstica merece destaque, pois o dissenso
no pode ser tomado como crtica ao processo democrtico. No o consenso que se busca
com o aperfeioamento dos instrumentos de gesto democrtica, mas sim trazer tona as
42CHAU, Marilena. Consideraes sobre a democracia e os obstculos sua concretizao. In: TEIXEIRA, Ana Cludia Chaves. (Org.). Os sentidos da democracia e da participao. So Paulo: Instituto Polis, 2005. p. 24.
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diferentes opinies sobre o tema, como defendeu neste ms no Senado Federal o filsofo
Girard.43 Para ele, o silncio da minoria poderia aparentar falso consenso, quando na verdade
poderia ser uma forma de opresso perante a opinio dominante ou ento uma forma da voz
dissonante no se envolver no embate. Para ele o consenso, que representaria um dogma,
poderia ser uma ameaa democracia, cuja essncia seria o convvio e o respeito ao diferente.
Este embate entre vozes dissonantes traz grandes contribuies sociedade. A
participao cidad, que traz custos aos cofres pblicos, traz tambm como retorno uma
legitimao das polticas implantadas, que acaba tornando mais eficiente, e,
consequentemente, esse custo acaba sendo revertido de forma positiva Administrao:
(...) a participao do cidado qualifica os processos decisrios, tornando-os mais legtimos e, principalmente, aumenta a eficincia administrativa do prprio Estado. O processo tem como resultado uma transformao do cidado que participa dos espaos institucionais, que passa a lidar com especificidades da gesto pblica que eles at ento desconheciam, bem como dos quadros tcnicos e administrativos envolvidos, que tem que adaptar suas formas de comunicao para transmitir as informaes necessrias aos leigos que participam do processo.44
Tornar legtimos os processos decisrios para aumentar a eficincia administrativa do
Estado um dos interesses do Poder Pblico. Vale fazer breve comentrio ao conceito de
legitimidade, aqui explanado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto45:
Sob esse referencial, contrasta-se a ao com a vontade dominante na sociedade e retira-se a concluso: legtima, se concorda, ou ilegtima, se no com ela concordante. Essa vontade dominante recebe outras denominaes, como vontade da maioria, communis opinio, interesse coletivo, etc., mas embora todas essas expresses espelhem um valor social qualquer, no o valor, em si, que se quer realizar atravs do poder, mas um desejo, afinal, que se pretende satisfazer. A base do poder poltico a legitimidade tanto das opes quanto de quem as faz.
Para o autor, a legitimidade est na identidade entre a vontade do povo e ao do
Poder Pblico. nesta confluncia de interesses que reside a legitimidade. E para ele o que
importa no o valor em si que se torna legtimo por meio desta sinergia, mas o processo para
se chegar deciso coletiva.
A participao social, portanto, alm de ser um dos instrumentos de consolidao da
democracia, tambm um valor em si mesma, pois uma importante ao pedaggica capaz
de formar agentes crticos:
43Charles Girard professor da Universidade de Paris-Sorbonne. Jornal do Senado, 25 de junho de 2012. p. 4. 44SILVA, Eduardo Moreira da; CUNHA, Eleonora Schettini Martins. (Orgs.). Experincias internacionais de
participao. So Paulo: Cortez, 2010. p. 17. 45MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participao poltica: legislativa, administrativa e
judicial: fundamentos e tcnicas constitucionais da democracia. [S.l.]: Renovar, 1992. p. 25-26.
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A participao como maneira de fortalecimento da democracia uma importante base para buscar resolver os conflitos e mesmo preveni-los. Os espaos da participao constituem uma grande rede entre indivduos, suas organizaes, movimentos sociais e o Estado. por meio dela que, em boa medida, os atores sociais formam opinio, se expressam, fazem sua vontade ganhar poder coletivo e, assim, interferem nos destinos do pas.46
Os espaos de participao seriam, assim, tambm espaos de formao da populao,
onde o exerccio do debate, do contato com opinies divergentes e a consequente influncia
nos destinos do governo podem ser realizados. E, mais do que isso, Maria da Glria Gohn
pondera que, em que pese a dificuldade de mensurar os efeitos da participao, o efeito
inclusivo destes novos atores como gestores da coisa pblica inegvel:
Seu impacto na sociedade no ser dado por ndices estatsticos, mas por uma nova qualidade exercitada na gesto da coisa pblica ao tratar o tema da excluso social no meramente como incluso em redes compensatrias destinadas a clientes/consumidores de servios sociais.47
Esta nova qualidade na gesto democrtica da coisa pblica um longo processo que
exige muita prtica para seu aprimoramento. Contudo, no apenas a sociedade que precisa
se preparar para o processo participativo, mas a mesma importncia ter a dimenso que ser
atribuda pelo Poder Pblico a esta participao e destinao que ele dar a seus frutos.
A participao da populao busca reduzir as distores de poder e de erro na tomada
de decises, pois aproximam as decises polticas das necessidades reais da populao e de
seus interesses, tornando-as mais legtimas; alm de fazer com que o cidado se torne
corresponsvel pelos seus resultados, implicando em seu amadurecimento poltico e
conferindo-lhe maior autonomia e maior capacidade de se autodeterminar.
46LAMBERTUCCI, Antonio Roberto. A participao social no governo Lula. In: AVRITZER, Leonardo. (Org.). Experincias nacionais de participao social. So Paulo: Cortez, 2009. p. 82.
47GOHN, Maria da Glria. Conselhos gestores e participao sociopoltica. So Paulo: Cortez, 2011. p. 48.
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1.3 DESAFIOS DA GESTO DEMOCRTICA
Democracia? dar, a todos, o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um.
Mrio Quintana
preciso que se identifique, no mbito da gesto democrtica, que h dificuldades de
vrias ordens que precisam ser enfrentadas; seja no mbito da Sociedade Civil, seja no mbito
do Poder Pblico, e especialmente com relao forma de aplicao e utilizao dos
mecanismos.
No que se refere Sociedade Civil, a maior dificuldade possibilitar que haja
igualdade de condies na participao. Para que esta participao social seja efetiva, deve ser
considerado o pressuposto da desigualdade social. Ao contrrio de algumas teorias, que
defendem a participao individual como acesso de todos gesto coletiva, aqui se defende
que h desigualdades materiais, alm de dficits de formao, o que pressupe que haja
diferentes tratamentos para as diversas situaes. Marcos Nobre explica:
(...) o mercado capitalista cristaliza desigualdades anteriormente produzidas, sendo a mais importante dentre elas aquela entre os detentores dos meios de produo e aqueles obrigados a vender sua fora de trabalho. Nesse sentido, de fundamental importncia superar no apenas as desigualdades materiais que impedem a efetiva realizao das liberdades apenas prometidas pelo direito sob o capitalismo, mas tambm os dficits de formao poltica da opinio e da vontade que da resultam, o que significa antes de mais nada ampliar a participao nos processos decisrios.48
Esta teoria aborda a diferena material de condies para viabilizar a participao, seja
pela precariedade de formao desses agentes, seja pelo tempo disponvel para exercer outras
atividades alm do trabalho efetivo de cada um, entre outros fatores dificultadores. Esta a
premissa bsica para se compreender a importncia da participao no Estado Democrtico,
a certeza de que no existe igualdade real na sociedade.
Hoje em dia os interesses empresariais e corporativos so facilmente sustentados e
defendidos pelas grandes empresas, que, detendo o poder econmico, dispem de melhores
condies para seu exerccio; enquanto os interesses populares ficam prejudicados em razo
da dificuldade de interveno social e de utilizao dos mecanismos adequados, como fazem
48NOBRE, Marcos. Participao e deliberao na teoria democrtica: uma introduo. In: COELHO, Vera Schattan P.; NOBRE Marcos. (Orgs.). Participao e deliberao: teoria democrtica e experincias institucionais no Brasil contemporneo. So Paulo: Editora 34, 2004. p. 33.
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hoje os representantes do mercado imobilirio, que orientam a valorizao do espao urbano,
determinando reas onde o preo da terra ser maior ou menor.
Partindo-se deste pressuposto, cumpre apontar algumas formas que podem ser
utilizadas para mitigar esta lacuna, tais como (i) a educao popular, (ii) a Assessoria
Jurdica Popular e (iii) a organizao da Sociedade Civil.
A professora Maria Victoria BeneYLGHV DSRQWD D HGXFDomR SROtWLFD FRPR IDWRU
fundamental para que se possa garantir igualdade de condies na gesto democrtica. Para
ela, tanto os processo deliberativos quanto as campanhas educativas prvias a estes processos,
fazem parte desta educao poltica.
Nesse sentido, vale fazer breve comentrio sobre a diferena entre participao e
deliberao; enquanto a participao identificada como o resultado, a deliberao o
processo para chegar a ele, e ambos so de grande importncia para a democracia
participativa. o exerccio constante de deliberao que contribuir com a efetiva
qualificao das decises, com o amadurecimento poltico dos atores e com a mitigao da
viso antagnica entre individual e coletivo e entre pblico e privado. Nesse sentido:
A dimenso subjetiva individual da experincia participativa enriquecida pela inter-relao entre o funcionamento das decises polticas e sua interao com as atitudes e valores individuais. Essa interao coloca a necessidade de que os indivduos ultrapassem as reivindicaes de seus interesses imediatos e passem a se interessar pelas questes globais que atingem a todos.
O processo participativo teria, nesse sentido, uma funo educativa, pois os indivduos aprenderiam a distinguir, mas tambm veriam a ligao entre os interesses pblicos e privados. Esse processo criaria uma relao de interdependncia e cooperao e uma sensao de pertencimento comunidade, pois cada cidado dependeria igualmente das decises dos outros (...).49
Essa passagem transmite a ideia de que o prprio processo participativo seria um dos
instrumentos que contribuiriam para a formao e amadurecimento social, fazendo com que a
participao avance no sentido de cada vez mais ser utilizada para a defesa dos interesses
coletivos.
A educao poltica pode ser proporcionada tambm outros meios, como a formao e
educao popular, que em geral fomentada por muitos movimentos sociais ou at por meio
do Estado50, mas que tambm pode ser oferecida pela Assessoria Jurdica Popular.
49DURIGUETTO, Maria Lcia. Sociedade civil e democracia um debate necessrio. So Paulo: Cortez, 2007. p. 41.
50Boaventura Sousa Santos, em seu livro Para uma revoluo democrtica da Justia. So Paulo: Cortez, 2007. p. 41, relata diversas experincias de educao popular via Assessoria Jurdica Popular ou promovidas pelo Estado, como a capacitao de integrantes da comunidade de baL[D UHQGD MXVWLoD FRPXQLWiULD SDUD
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A educao popular ttica central para que o povo adquira igualdades de condies
para manifestao por meio dos instrumentos de gesto democrtica. Para isso, ela deve ser
libertadora, rompendo com o mtodo tradicional de educar. Este tipo de educao deve
estimular a criao e libertao de foras adormecidas ou reprimidas, deve evitar a
hierarquizao entre quem ensina e quem aprende, j que o processo de aprendizagem
dialgico e caminha nos dois sentidos.
Para romper com o dogmatismo preciso aguar a anlise crtica dos educandos, para
que eles possam vislumbrar outros caminhos, para alm daqueles que lhes ensinado,
especialmente porque a estratgia deste tipo de educao a transformao social. Sendo
assim, ela tem um propsito, que aplicar s situaes concretas o que foi apreendido, com a
inteno de transformar. Na educao popular no existe uma tcnica, um mtodo hermtico
para ensino, o que ela prega que seja a expresso terica daquilo que se pratica, esta
conexo direta entre o que se aprende e a sua vida concreta o que define a educao popular.
No o discurso que julga a prtica, sempre a prtica que pode mostrar se o discurso ou
no vlido.
O educador deve partir do pressuposto de que o povo tem um conhecimento parcial e
IUDJPHQWDGR H SRU LVVR SUHFLVD UHIOHWLU VREUH R TXH VDEH jV YH]HV QmR VDEH TXH VDEH
.51 Sua atividade facilitar ao educando que seja feitas as correlaes entre o que aprende
nas aulas e as contradies vivenciadas no dia a dia, os conflitos que enfrenta com relao
moradia, trabalho, sua relao com o espao urbano e o que pode ser feito para afinar esta
relao. A formao poltica deve instrumentalizar o saber do povo.52
Merece um destaque especial uma inovadora atividade criada em So Paulo, o Curso
de Defensores Populares53, iniciativa de diversos parceiros, como Movimentos Populares de
Luta pela Moradia, Escritrio Modelo Dom Paulo Evaristo Arns PUC/SP54, Defensoria
realizao de mediao, realizadas pelo Judicirio, cuja extenso do programa foi apoiada pela Secretaria de Reforma do Judicirio/MJ.
51EDUCAO Popular. Cartilha CEPIS, So Paulo, p. 30. 52Corroborando com esse entendimento, o CEPIS, Centro de Educao Popular do Instituto Sedes Sapientiae, DSRLDGRUHRULHQWDGRUGRFXUVRGHILQHRWHUPRHGXFDomRSRSXODU(GXFDomR3RSXODUpXPDFULDomRODWLQR-americana. Objetiva mudanas sociais, participao popular consciente, organizada e crtica a conscientizao fator decisivo para esta forma de participao ; construo de um projeto popular de desenvolvimento; formulao de uma metodologia educativa, capaz de instrumentalizar o povo para a WUDQVIRUPDomRGDVHVWUXWXUDVGHGRPLQDomRHH[SORUDomR.
53Mais informaes sobre o curso disponveis em: . Acesso em: 1 jul. 2012.
54Durante 4 (quatro) anos trabalhei na equipe tcnica do Escritrio Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, onde pude acompanhar de perto muitos dos relatos transcritos neste trabalho.
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Pblica do Estado de So Paulo EDEPE (Escola da Defensoria Pblica), Defensoria Pblica
da Unio, entre outros. O curso foi criado a partir da necessidade percebida pelas lideranas
populares, que estavam na linha de frente dos processos organizativos, de que havia uma
carncia formativa que lhes possibilitasse a apreenso do conhecimento e tambm lhes
WURX[HVVH R FRQVHTXHQWH HPSRGHUDPHQWR TXH SXGHVVH IDFLOLWDU D QHJRFLDomR H R HPEDWH
perante os rgos pblicos e demais setores envolvidos.
Em suas duas primeiras edies, nos anos de 2009 e 2010, muitos dos educandos eram
oriundos dos processos de regularizao fundiria atendidos pelo Escritrio Modelo Dom
Paulo Evaristo Arns PUC/SP, e em razo disso foi notvel a percepo dos efeitos causados
pelo curso, tanto individualmente quanto coletivamente na organizao comunitria. Esse
aspecto multiplicador do curso fundamental, pois permite que o contedo seja replicado,
difundindo o saber, reinventando-o. Este poder trazido pelo conhecimento fortalece as
relaes na comunidade e possibilita que seus membros adquiram mais confiana na relao
com o Poder Pblico, na prtica, isto significa a diviso de responsabilidades com a equipe de
assessoria jurdica popular neste processo de regularizao fundiria.
Para o professor Saule Jnior55 este o papel da Assessoria Jurdica Popular, que no
deve se restringir atuao judicial:
O servio de assistncia jurdica tem uma dupla finalidade, a assistncia transcende o juzo, no se contenta em ser judiciria, efetiva-se onde estiver o Direito; sendo integral, no se esgota na parte, no indivduo, visa integrar os diversos grupos sociais desintegrados do conjunto da sociedade por sua marginalizao.
Para ele, a Assessoria deve cumprir tambm um papel potencializador, que pode ser
apresentado de duas formas:
O servio de assistncia jurdica ter duas funes em especial. A primeira de prestar a orientao jurdica, que significa um trabalho pedaggico de educao e informao a populao necessitada sobre os seus direitos, e as formas de alcan-los e conquist-los.
A segunda funo garantir o acesso dessa populao Justia, promovendo as aes cabveis para obteno de direitos ou na defesa de seus interesses.
Uma funo primordial da assessoria jurdica popular seria realizar um trabalho
pedaggico com a populao, de orientao, que permita compreender a origem dos
55SAULE JNIOR, Nelson. A Assistncia Jurdica como instrumento de garantia dos direitos urbanos e cidadania. In: DI GIORGI, Beatriz; CAMPILONGO, Celso Fernandes; PIOVESAN, Flvia. Direito, cidadania e justia: ensaios sobre lgica, interpretao, teoria, sociologia e filosofia jurdicas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p 161.
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problemas que a afetam, estudar os seus direitos, bem como quais so os mecanismos
disponveis para alcan-los.
Transpondo as fronteiras da assistncia jurdica tecnicista, que visa somente ao
atendimento das questes processuais, a assessoria jurdica popular se prope a trabalhar para
alm das causas imediatas do conflito, buscando tocar com maior profundidade as razes dos
problemas sociais. Especialmente porque em geral a assessoria contempla o atendimento de
uma coletividade que compartilha violaes de direitos, cuja soluo ou superao no poder
ser dirimida judicialmente, requerer outras formas de envolvimento para alm do processo
judicial.
A defesa destes in