gestÃo das polÍticas educacionais e as repercussÕes para …. gestÃo das polÍticas... ·...

21
GESTÃO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E AS REPERCUSSÕES PARA O TRABALHO DOCENTE Alda Maria Duarte Araújo Castro 1 A discussão acerca da gestão das políticas educacionais na atualidade e a forma como as elas têm influenciado e modificado o trabalho docente não pode ser realizada de forma descontextualizada. Os estudos mostram que a política educacional brasileira, na sua evolução, tem-se articulado com o modelo econômico vigente em cada época fato esse que tem repercutido nos sistemas educacionais e, consequentemente, nas formas de organização escolar. Neste capítulo, parte-se do pressuposto de que as organizações educacionais são conduzidas e orientadas por um processo que se consubstancia em um determinado momento histórico e contemplam vários elementos, por vezes, contraditórios, mas que, de modo geral, respondem ao ritmo e à direção impostos pelo processo produtivo. Na atualidade, esse cenário tem sido influenciado por diferentes fatores, entre eles, os processos de globalização, da reestruturação produtiva e do desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação. O texto discute, em primeiro plano, o redimensionamento do papel do estado, enquanto instituição responsável pela organização da sociedade em todas as suas dimensões, evidenciando o modelo de gestão gerencial adotado na atualidade para a condução das políticas sociais; em segundo plano, o texto aborda a incorporação das diretrizes gerenciais na política educacional brasileira, ressaltando os principais programas implementados a partir da década de 1990, com características do modelo gerencial. Por fim, analisa as repercussões que o modelo gerencial traz para o o trabalho docente, acentuando características da intensificação, da precarização e da flexibilização do trabalho. 1 Professora Doutora do Departamento de Fundamentos e Política Educacional do Centro de Educação e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade EdUECE - Livro 4 01005

Upload: dotruc

Post on 16-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

GESTÃO DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E AS REPERCUSSÕES PARA O

TRABALHO DOCENTE

Alda Maria Duarte Araújo Castro1

A discussão acerca da gestão das políticas educacionais na atualidade e a

forma como as elas têm influenciado e modificado o trabalho docente não pode ser

realizada de forma descontextualizada. Os estudos mostram que a política educacional

brasileira, na sua evolução, tem-se articulado com o modelo econômico vigente em cada

época fato esse que tem repercutido nos sistemas educacionais e, consequentemente, nas

formas de organização escolar. Neste capítulo, parte-se do pressuposto de que as

organizações educacionais são conduzidas e orientadas por um processo que se

consubstancia em um determinado momento histórico e contemplam vários elementos,

por vezes, contraditórios, mas que, de modo geral, respondem ao ritmo e à direção

impostos pelo processo produtivo. Na atualidade, esse cenário tem sido influenciado por

diferentes fatores, entre eles, os processos de globalização, da reestruturação produtiva e

do desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação.

O texto discute, em primeiro plano, o redimensionamento do papel do estado,

enquanto instituição responsável pela organização da sociedade em todas as suas

dimensões, evidenciando o modelo de gestão gerencial adotado na atualidade para a

condução das políticas sociais; em segundo plano, o texto aborda a incorporação das

diretrizes gerenciais na política educacional brasileira, ressaltando os principais

programas implementados a partir da década de 1990, com características do modelo

gerencial. Por fim, analisa as repercussões que o modelo gerencial traz para o o trabalho

docente, acentuando características da intensificação, da precarização e da flexibilização

do trabalho.

1 Professora Doutora do Departamento de Fundamentos e Política Educacional do Centro de Educação eCoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande doNorte.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401005

1. O papel do Estado na condução das atuais políticas públicas: A gestão

gerencial em foco

No atual debate sobre o processo de globalização na sociedade contemporânea,

emerge uma discussão que busca caracterizar a complexa relação existente entre as

transformações econômicas, sociais, culturais e políticas ocorridas em âmbito mundial e

seus desdobramentos no plano da educação em todos os seus níveis. A ideia de

globalização, eventualmente também denominada de mundialização, vem tornando-se

uma evidência axiomática, já que é considerada, via de regra, um processo político

hegemônico e que não pode ser revertido. Para essa defesa, têm contribuído,

substancialmente, o desenvolvimento das tecnologias e da informação em nível global,

modificando as relações de afiliação, de identidade e interação dentro e através dos

cenários culturais locais.

A readequação das sociedades contemporâneas às novas exigências do mundo

globalizado e a opção política pelo ideário neoliberal de reorganização do estado

impuseram a adoção de reformas que implicaram a reestruturação do Estado e a

redefinição de seu papel em relação ao mercado, às políticas sociais, bem como

alteraram a lógica até então prevalecente na administração pública, no sentido de

articular um novo padrão das relações público-privado tomando como referência os

critérios de mercado.

No que se refere ao papel do estado é válido demarcar que, ao longo da sua

evolução histórica, o estado Liberal tem sofrido transformações e assumido diferentes

funções, isso porque o Estado não é um ente monolítico, mas, uma organização que

existe em função de prioridades e interesses de grupos sociais que compõem a

sociedade. O Estado capitalista exerce um papel organizativo, na medida em que

representa e materializa os interesses de classe e da acumulação do capital, sem,

contudo, aparentar compromissos com interesses particulares, tampouco com grupos

específicos, deixando transparecer uma noção de neutralidade. Sua função, portanto,

vem se modificando articulada às necessidades do capital, ora desempenhando um papel

de interventor, ora se retraindo para uma função mais controladora e avaliadora do que

executora. Em quaisquer circunstâncias, é importante entender que o estado permanece

como categoria analítica para uma melhor compreensão das políticas educacionais.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401006

Na atualidade, o papel do estado baseado em uma ideologia neoliberal, de corte

nos gastos sociais e na redução do seu papel adota uma posição mais privatista e uma

concepção gerencial na organização do aparelho administrativo do estado, que passa a

desempenhar a função de coordenar, controlar e avaliar as políticas públicas, em

detrimento de seu papel de executor. Nesse sentido, o Estado – enquanto instituição

responsável pelo controle e pela regulamentação das políticas públicas – deverá assumir

um novo perfil: tornar-se uma instituição mais ágil, mais enxuta e flexível no

gerenciamento das políticas públicas, voltada, essencialmente, para promover o

desenvolvimento econômico. Para isso, se faz necessário utilizar mais o controle do

mercado do que os administrativos reforçando assim, a ideia de que era preciso reformar

o contexto institucional, melhorar a qualidade da administração, o sistema judicial e

político. Essas reformas visavam reformar a legislação, a administração pública e a

estrutura do governo central para imprimir maior governabilidade ao Estado.

O modelo gerencial para o serviço público foi importado da iniciativa privada e

a Grã-Bretanha pode ser considerada o laboratório das técnicas gerenciais aplicadas ao

setor público. Esse novo modelo de administração caracterizado pela busca da

eficiência, da qualidade, da produtividade, da avaliação de desempenho, pela

flexibilidade gerencial e pelo planejamento estratégico, vem configurar a nova gestão

pública. Exigem-se dos gerentes habilidades e criatividade para encontrar novas

soluções, sobretudo para aumentar a eficiência, utilizando, (entre outras estratégias), a

avaliação do desempenho. Há preocupação, portanto, com o produto em detrimento dos

processos.

Na visão de Gete (2001), a Nova Gestão Pública não é um conjunto sistemático

e ordenado de propostas que deve ser utilizado de acordo com problemas específicos ou

com os objetivos a serem alcançados; ela atuaria sobretudo como um depósito de

orientações, métodos e técnicas. Algumas características permitem uma melhor

compreensão da reforma gerencial, tais como: a) a descentralização/desconcentração

das atividades centrais para as unidades subnacionais; b) a separação dos órgãos

formuladores e executores de políticas públicas; c) o controle gerencial das agências

autônomas, que passa a ser realizado levando em consideração quatro tipos de controle:

controle dos resultados, a partir de indicadores de desempenhos estabelecidos nos

contratos de gestão, controle contábil de custos, controle por quase-mercados ou

competição administrada, e controle social; d) a distinção de dois tipos de unidades

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401007

descentralizadas ou desconcentradas: as agências que realizam atividades exclusivas do

estado, e os serviços sociais e científicos de caráter competitivo; e) a terceirização dos

serviços; f) e o fortalecimento da alta burocracia.

Segundo Gete (2001), a gestão gerencial trouxe uma nova visão dos usuários

do serviço público, o que significa uma mudança radical nas orientações desses

serviços, ou a ideia de que o cliente não é alguém sobre quem se exerce um determinado

poder; pelo contrário, é alguém a quem se serve. Assim, a mudança do conceito de

usuário para o conceito de cliente significa converter o serviço público em serviço ao

público. Dessa forma, cada cidadão pode transmitir sua própria visão da prestação dos

serviços que recebe, de sua utilidade e sua preferência. A autora questiona essa visão

pelas suas conotações instrumentais e mercantis.

Analisando as características da Nova Gestão Pública, Lima (2002) entende

que ela se apresenta, de modo geral, como politicamente neutra, privilegia a lógica de

ações do tipo empresarial, as quais promovem o privado como política pública e

subordinam a educação a objetivos econômicos, de empregabilidade, produtividade e

competitividade, por meio dos discursos de qualidade e da excelência. Esse também é o

entendimento de Gete (2001) para quem essa neutralidade é baseada no pressuposto de

que a sua hegemonia, sua ampla difusão deve-se à sua capacidade de responder aos

dilemas do mundo atual. Essa é uma visão asséptica e técnica; na verdade, a adoção do

novo modelo de gestão pública está associada a uma inspiração do pensamento

neoliberal com vistas à redimensão do papel do estado nos serviços públicos.

No entanto, o Documento do Centro Latino-Americano para o

Desenvolvimento - CLAD (1998), ao discutir sobre a necessidade de uma mudança na

gestão dos serviços públicos na América Latina, apresenta o modelo gerencial como

altamente positivo, ressaltando as inúmeras possibilidade de formas de

responsabilização que ele permite, destacando: a) a responsabilização pelos controles

clássicos; b) a responsabilização pelo controle parlamentar; c) a responsabilização pelo

controle social; d) a responsabilização pela introdução da lógica dos resultados; e e) a

responsabilização pela competição administrada. As três últimas se inserem no

contexto mais atual, e, combinada com as anteriores, complementam-se em busca das

transformações necessárias ao capital.

O uso do modelo de gestão gerencial, segundo Lima ( 2002) estaria induzindo

a uma hiperburocratização das instituições e a um excessivo controle do processo de

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401008

trabalho. Concordando com Lima (2002) é fundamental ressaltar neste capítulo duas

formas de responsabilização, por entender que elas demonstram de forma mais

consistente as idéias do autor e favorecem o processo de hiperburocratização das

instituições: a responsabilização pela introdução da lógica dos resultados e a

responsabilização pela competição administrada,

Concernente à responsabilização pela introdução da lógica dos resultados,

orienta-se pelo constante monitoramento e controle desses resultados, sendo necessário,

torná-los quantificáveis para assim auferir os ganhos de eficiência e efetividade das

políticas. Isso permite que essas normas sejam elevadas e controladas ao extremo o que,

na prática, torna-se excessivo o controle, as normas e as regras. Como parte da

estratégia para promover a modernização do Estado, pressupõe a comparação entre

“metas” e “resultados” o que implica uma organização hierárquica que cria uma cadeia

de responsabilização desde o Governo Central até os diretores, gerentes e funcionários

públicos nos diferentes níveis subnacionais e locais conduzidos pela busca da

adequação entre as metas e os resultados. A profissionalização desses gerentes se

constitui numa das principais medidas para as capacidades institucionais do Estado não

mais executor, mas regulador das políticas. A função da alta e profissionalizada

burocracia reside em elaborar as grandes linhas da política nacional; supervisionar o

processo de descentralização e fiscalizar os vários provedores dos serviços públicos,

ajudando a montar as redes de cooperação entre os diversos agentes sociais envolvidos

nas políticas.

Os gerentes ou gestores atuam dentro de um sistema descentralizado, flexível,

com liberdade para tomar decisões e administrar recursos, em contrapartida, com maior

responsabilidade pessoal em relação aos resultados, podendo inclusive ter sua

remuneração (por meio de gratificações e premiações) e a remuneração dos demais

funcionários, condicionado aos resultados. Essa forma de autocontrole por parte dos

gestores públicos, faz com que eles assumam para si o ônus do sucesso da sua missão.

Outra forma de verificar o excessivo controle do atual modelo de gestão é a

incorporação da avaliação como forma de promover a consciência tanto por parte dos

avaliadores quanto dos avaliados, em relação aos critérios e às metas que servem de

referência para medir o desempenho em cada instituição. A avaliação implica em

mecanismo de formação constante de todos os envolvidos na gestão, de tal forma que,

em um processo de prestação de contas, os gerentes responsáveis pela execução dos

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401009

programas devem ser capazes não, apenas, de reconhecer os acertos e desacertos da sua

gestão, mas também de prestar explicações conscientes e racionais sobre os fatores que

determinaram o sucesso ou o fracasso .

De igual modo, desempenham papel preponderante os mecanismos de

acompanhamento da execução como indutor do ajuste entre metas e resultados, em

oposição ao modelo anterior cuja preocupação central voltava-se para a fiscalização da

legalidade e cumprimento de horários, rotinas, sem a preocupação com a satisfação dos

usuários. Por meio do acompanhamento, os gerentes responsáveis procuram manter o

controle dos programas e dos recursos, incorporando a autoavaliação como prática

interna de cada órgão executor, e estabelecendo controles seletivos e estratégicos para

garantir o uso racional dos recursos.

No que se refere à responsabilização pela competição administrada, essa

provocou as transformações mais significativas, quanto à redefinição do Estado e à

relação deste com a sociedade. Essa forma de responsabilização parte do princípio de

que a falta de concorrência no interior do serviço público é um fator impeditivo da

eficácia, eficiência e qualidade deste, apontando, como solução, formas de diversificar

os provedores dos serviços e ações públicas, para que em meio à pluralidade de atores,

se instaurem diferentes formas de competição. Se a competição acontece entre órgãos

governamentais, o Estado deve se fortalecer para acompanhar e avaliar a execução das

ações descentralizadas. Se ocorrer entre empresas privadas que prestem serviço público

por meio de concessões, é necessária a criação de agências reguladoras independentes

do Executivo e Legislativo, cuja tarefa é fiscalizar os setores privados. E ainda, no caso

da prestação de serviços pelo terceiro-setor (entidades públicas não-estatais), deve haver

uma constante fiscalização por meio do acompanhamento dos contratos obedecendo à

lógica dos resultados.

A implementação e o sucesso dos métodos gerenciais de controle, a posteriori,

propiciaram os parâmetros para que se estabelecessem as primeiras formas de

competição administrada; dentre as principais, destacam-se: adoção de índices e

avaliações de resultados como parâmetros básicos para a ação administrativa; a

flexibilização na gestão de pessoal, inclusive em termos de pagamento; o repasse de

poderes de órgãos centrais às unidades descentralizadas e do topo da organização às

gerências intermediárias; a introdução de uma cultura mais voltada à satisfação de metas

públicas que à observância de regras ensimesmadas; e, especialmente, a

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401010

contratualização da administração pública, definida pela autonomia e pelo aumento da

responsabilidade de cada agência segundo objetivos claramente definidos (ABRÚCIO,

2003, p. 231).

No discurso, a obtenção desses objetivos, estaria condicionada à

desburocratização e flexibilização das regras; e à fiscalização e acompanhamentos dos

contratos, incluindo-se, no segundo condicionante, a transparência e publicização das

informações para possibilitar o controle social. Na prática, o que se verifica é um

controle exarcebado, permitido pelas tecnologias da comunicação e da informação que

possibilitam acompanhar a vida de todos e em todos os momentos. Dessa forma, se está

de acordo com o que Weber (1994) concebia como burocracia: um sistema racional em

que a divisão de trabalho ocorre, racionalmente, visando a um determinado fim. Isso

implica o predomínio do formalismo da existência de normas escritas, estrutura

hierárquica, divisão horizontal e vertical do trabalho e impessoalidade no recrutamento

dos quadros. A ação é orientada para um forte planejamento e controle. É o que Licínio

Lima defende como uma hiperburocratização dos processos com sérias repercussões

para a gestão dos sistemas educacionais e para o trabalho dos docentes.

2. A política educacional brasileira e a operacionalização da gestão gerencial

Com as mudanças advindas da reestruturação produtiva e da adoção do ideário

neoliberal, o modelo burocrático de gestão sinaliza esgotamento a partir da década de

1970. Dessa forma, o campo das organizações é impelido a adotar uma nova concepção de

gestão mais flexível próprio das empresas privadas. Nesse sentido, a nova Gestão pública

foi adotada enquanto modelo administrativo para todas as vertentes sociais, contemplando

também o sistema educacional. Com as reformas educacionais, a gestão descentralizada

passa a ser o eixo da política educacional brasileira, redesenhada pela influência das

estratégias neoliberais que imprimem o reordenamento das relações entre o Estado e

sociedade. Nesse cenário, ganha destaque a descentralização das responsabilidades

materiais, com incentivo a parcerias com as empresas, organizações não-governamentais.

Dois conceitos sobressaem nesse modelo de gestão, ainda que de forma ressignificada: a

descentralização e autonomia.

Ainda no que se refere ao conceito de descentralização, essa passou a ser a

estratégia de gestão utilizada, segundo o discurso oficial para propiciar a democratização

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401011

do Estado e a busca de maior justiça social. Apesar de as propostas de descentralização

não serem novidades na administração pública, no contexto atual ela é indicada como uma

das alternativas de solução para o impasse em que se encontra o sistema educacional

verificada pela incapacidade do Estado em responder às mais urgentes demandas da

população, principalmente no que diz respeito ao atendimento de necessidades sociais

básicas.

Quanto à autonomia da escola, essa é bastante questionada por Lima (2011), para

quem o conceito de autonomia, nessa forma de gestão, assume um significado

instrumental e técnico, apenas devolvendo alguns encargos e responsabilidades de

execução das políticas educativas, definidas em nível central e regional. Assim, o autor

infere que essa forma de entender a autonomia se articula com políticas mais amplas de

redefinição do aparelho de Estado. A autonomia é decidida por meio de conjunto de

normas definidas por órgãos da administração pública que reconhece a autonomia das

escolas de forma restrita, dentro dos limites estabelecidos, de decidir sobre o planejamento

pedagógico, disciplinar, estatutário e financeiro, o que a caracteriza como “autonomia

decretada”. Dessa forma, a autonomia não passa de retórica oficial e é insuficiente para

instituir formas de autogoverno das escolas, uma vez que a autonomia não se dá por

outorga, mas por processo de construção na relação entre os atores.

No campo educacional brasileiro, uma das primeiras iniciativas de implantação da

gestão gerencial nas escolas foi a implantação do Plano de Desenvolvimento da Escola

– (PDE-Escola), que visava à modernização da gestão e ao fortalecimento da autonomia

da escola, mediante a adoção do modelo de planejamento estratégico, apoiado na

racionalização e na eficiência administrativa. Ao aderir ao PDE, as escolas firmam um

contrato com a União responsabilizando-se a cumprir as metas que foram estabelecidas.

A gestão gerencial é fortemente induzida pela lógica do controle dos resultados, em

detrimento do controle dos processos organizacionais. Para a sua operacionalização, foi

instituída uma nova lógica na cultura organizativa das escolas brasileiras, entre elas: a

reformulação no sistema de avaliação nacional e o uso da tecnologia a favor da

informatização/centralização das informações referente ao desempenho de todas as

redes e escolas.

Concernente ao uso das tecnologias da comunicação e da informação, que

permitem à gestão armazenar grandes quantidades de informações, de naturezas

diversas, pode-se dizer que elas propiciaram uma mudança profunda nas formas de

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401012

gestão e controle dos órgãos centrais com repercussão na cultura organizacional das

unidades escolares. A esse respeito, Lima (2011, p. 16) destaca que,

As próprias relações estabelecidas entre a administração central e adesconcentrada do Ministério da Educação e as escolas, em termos deinformação, de processos de gestão diversos e de disseminação de circularese diretivas são atualmente mediadas por complexos processos de informaçãoe comunicação e por plataformas informáticas de diversos tipo, amplificando,sem precedentes a capacidade de controlo do centro sobre as periferias esobre o trabalho, pedagógico e administrativo dos professores. Este tende aser subordinado a uma vigilância sistemática, sob categorias tipificadas apriori e que modelam a representação das realidades escolares, controlam ostempos e os espaços, generalizam metodologias e processos de trabalho,favorecem a padronização e permitem a mensuração detalhada e acomparação automática.

No campo da avaliação educacional, foram criados sistemas de avaliação

educacional em todos os níveis da educação nacional. Quanto à educação básica,

merece destaque o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb)

implementado, em 1990 e aperfeiçoado a partir de 2005, com a aplicação da Prova

Brasil. O Governo Federal utiliza os dados do Ideb para estimular a competição entre as

redes e escolas; para distribuir os recursos dos vários programas da União,

principalmente os que têm um caráter (re) distributivo e complementar, evidenciando

assim, o controle dos resultados pela competição administrada, própria da gestão

gerencial. Para a educação superior como política de sistematização de avaliação desse

nível de ensino, merece destaque o Sistema Nacional de Avaliação da Educação

Superior (Sinaes), visando assegurar o processo nacional de avaliação das instituições

de educação superior, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico de seus

estudantes, nos termos do art. 9º, da Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996

(BRASIL, 2004). Esse Sistema defende o uso dos recursos metodológicos de forma

combinada, ou seja, as ações da avaliação interna e externa combinadas e

complementares.

No entanto, é com o lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação –

PDE (2007) que o governo brasileiro sedimenta o modelo de gestão gerencial

fundamenta na eficiência e na aferição de resultados baseados em cumprimento de

metas estabelecidas em contratos de desempenho. Segundo Castro e Pereira (2014, p

290), o contrato de gestão é o instrumento de planejamento que permite o

acompanhamento das metas acordadas entre as instituições. Para os autores,

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401013

O contrato de gestão constitui um instrumento que permite tanto umaaferição mais rigorosa da eficiência, da eficácia e da efetividade, bem comoum aumento considerável, bem como um aumento da transparência daadministração pública [...]. É um instrumento normativo, uma ferramenta queauxilia o planejamento e pode ser utilizado na administração pública comomeio para formalizar o compromisso das partes contratantes com a obtençãodos resultados.

No processo de implementação das estratégias gerenciais merece destaque a

institucionalização do Plano de Desenvolvimento de Educação (2007) que tinha como

objetivo integrar um conjunto de Programas e Ações, que já vinham sendo

desenvolvidos pelo Ministério da Educação de forma fragmentada, objetivando a uma

melhor organicidade ao sistema educacional. Como estratégia para implementar o PDE

(2007) nos sistemas municipais o governo criou o Plano de Ações Articuladas (PAR)

pelo qual os municípios aderiram voluntariamente ao Programa por meio do Contrato

de Gestão no qual estabeleciam as metas a serem atingidas no seu Planejamento Anual

sempre atreladas ao financiamento a ser recebido. O PAR, no entendimento de Ferreira

e Fonseca (2013, p. 289), é,

uma ferramento de planejamento, de operacionalização e avaliação daspolíticas educacionais criada dentro dos moldes de um Estado Federativo.Opelanejamento é centralizado pelo Ministério de Educação, que, oferecendoapoio técnico e financeiro, induz os entes federados a assumiremresponsabilidades na gestão da educação.

No campo da educação superior e integrando as ações do PDE, merece destaque

a instituição do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais –

Reuni ( Decreto nº 6.096/2007). Com esse programa, o governo brasileiro reestruturou

as universidades públicas e instituiu a gestão gerencial. O programa procurou estimular

a eficácia e a eficiência das instituições de ensino superior públicas federais como forma

de expandir o acesso às universidades federais brasileiras.

Verifica-se, dessa forma, que a gestão gerencial predomina na atualidade na

condução da gestão das políticas educacionais, no discurso, objetivando a modernização

da gestão das instituições, no entanto, é possível evidenciar que, nesse processo, o que

se estabelece é a busca pela racionalização dos serviços públicos, impregnando uma

lógica que subordina a educação a conceitos econômicos, realçando as noções de

empregabilidade, produtividade e competitividade transvestidos pelo discurso da

qualidade e da excelência. É uma lógica que introduz o sentido da mercadorização dos

direitos no interior da sociedade de forma sutil e gradativa, mudando o foco das

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401014

políticas sociais universalistas fundamentadas no princípio da igualdade, para políticas

focalizadas baseadas na competitividade, na meritocracia, na diferença.

3. Gestão Gerencial e repercussões no trabalho docente

As mudanças ocorridas, principalmente, a partir dos anos de 1990 nas políticas

públicas educacionais brasileiras privilegiam a transformação produtiva com equidade e

trouxeram uma nova organização para as instituições, referenciadas em critérios de

flexibilidade, eficiência e eficácia, próprias de uma gestão empresarial. No campo

educacional as orientações do modelo gerencial com novas características – como

responsabilização, transparência e critérios mais rígidos de acompanhamento, avaliação

e controle – intensificaram a atividade do trabalhador docente, passando, pois, a exigir

um trabalhador com características multifacetadas e polivalentes, capaz de se adaptar a

diferentes tipos de ocupação.

Ao discutir as especificidades do trabalho docente, é necessário compreender

que a docência é uma profissão com características próprias e faz parte de um processo

histórico, cultural que se organiza dentro da lógica do sistema capitalista. No entender

de Flores e Tirado (2010), toda profissão é um trabalho que implica modalidades,

particularidades e especificidades e, nessa perspectiva, a natureza do trabalho docente

encontra-se vinculada à divisão social do trabalho, sem contudo, deixar de se organizar

de modo fragmentado, própria da divisão do trabalho, no sistema capitalista, devendo

portanto, ser analisado como qualquer outro tipo de trabalho.

Para Kuenzer (2009, p. 240), há uma estreita articulação entre a divisão social

do trabalho e a divisão do trabalho. Para a autora, “essas duas concepções não se

opõem, e sim guardam uma relação dialética entre si, em que ao mesmo tempo, se

negam, se afirmam, configurando a dupla face do trabalho: qualificador, prazeroso e,

simultaneamente, desqualificador, explorador, causador de sofrimento”. Segundo a

autora, para se discutir as questões do trabalho no sistema capitalista, deve-se considerar

a sua dupla face, enquanto produtor de valores de uso e de valores de troca; essa é uma

relação dialética que compõe uma totalidade. No caso do trabalho docente, essa

característica é acentuada, devido à natureza não-material2 do seu trabalho.

2A definição de trabalho imaterial não é algo simples. Trabalho imaterial pode ser entendido, segundo, Camargo (2013) como aquelas atividades que

possuem como conteúdo principal a comunicação, a cooperação, o conhecimento e o saber. São as qualificações subjetivas que passam a ter um papel

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401015

Corroborando o pensamento de Kuenzer (2009), Flores e Tirado (2010)

assinalam que a força do trabalho dos mestres é considerada uma mercadoria e que

facilita a continuidade do processo de acumulação. Essa constatação tem permitido

afirmar que, por um lado, o trabalho do docente incide sobre o processo de valorização

do capital; por outro lado, cria as condições para a capacitação de mão-de-obra que é

consumida pelo capital e pelo Estado. Nessa mesma linha de raciocínio, o trabalho

efetivado pelos docentes, forma e instrui tanto ideologicamente como em

conhecimentos a mão de obra para que ela adquira habilidades e destrezas necessárias

ao capital, convertendo-a em uma mão de obra, qualificada com possibilidades de

aumentar a sua capacidade produtiva o que contribui para perpetuar a sociedade

burguesa.

Isso significa dizer que a análise do trabalho docente ultrapassa a análise de

técnicas e procedimentos pedagógicos, do conhecimento como fonte do trabalho e da

relação professor-aluno. Na sua configuração, deve levar em consideração as relações

sociais capitalistas e sua lógica organizativa que se estendem a todas as atividades

sociais existentes, inclusive à escola, embora essa instituição não produza mercadorias,

e, por isso, não seja possível falar em paridade entre escola e produção. Por isso, para se

compreender o trabalho docente, é, necessário ter a clareza de que ele se institucionaliza

com base em várias dimensões, ou seja, a organização, os sujeitos, os objetos, os

processos os conhecimentos, as tecnologias e os seus resultados.

Nesse sentido, o trabalho docente apresenta-se, apenas como mais uma

especificidade no contexto do trabalho no sistema capitalista. Isso porque, para ambos,

são exigidos determinados padrões de comportamento compatíveis com a

racionalização crescente do processo produtivo e da vida social (KUENZER, 2009). Em

consonância a esse pensamento (TARDIF; LESSARD, p. 24, 2008), destacam ainda que

“o conjunto de tarefas cumpridas pelos agentes escolares, inclusive os alunos é, ele

próprio, padronizado, dividido, planificado e controlado”, assim a ligação da

organização do trabalho no sistema produtivo acaba se estendendo até a forma de

organização das escolas e do trabalho docente. Para Kuenzer (2009), o trabalho docente

é complexo e não consiste, apenas, em cumprir ou executar uma ação, mas também

central no processo de valorização das mercadorias. Uma mercadoria, cuja produção resulta de trabalho imaterial, pode ser quanto a sua forma física, materialou imaterial; mas a questão principal está no tipo de trabalho, ou de ação, empregado para sua produção. A noção de “saber” é provavelmente o que melhordefine, em um sentido quase didático, o trabalho imaterial, pois diz respeito ao fato de que o valor de uma mercadoria não resulta necessariamente dodispêndio de tempo de trabalho empregado na sua produção (trabalho abstrato), mas sim dos saberes mobilizados por aqueles que a produzem.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401016

numa atividade que envolve pessoas o que vai exigir que esse trabalhador atribua

sentido a sua ação o que determina uma especificidade própria.

Assim, pode-se considerar que o trabalho docente é parte da totalidade

constituída pelo trabalho no capitalismo sendo, portanto, inerente a esse e estando

submetido, à sua lógica e às suas contradições. Nessa perspectiva, a docência pode ser

analisada como qualquer outro tipo de trabalho humano.

No contexto das atuais reformas educacionais e da implementação de um

modelo de gestão no seio das instituições escolares, as reformas passaram a atribuir à

escola múltiplos e diferenciados papéis além das suas funções normais, contribuindo,

assim, para ampliar o raio de atuação docente, consequentemente, provocando

modificando na realização do trabalho. Como bem destaca Oliveira (2004, p. 19), “[...]

el modelo de gestión escolar adoptado combina formas de planejamento y controle

central em la formulación de políticas com la descentralización administrativa en la

ejecución de lãs mismas (p. 19). Tais consequências ocorrem pela flexibilidade

administrativa presente no modelo de gestão vigente que se deriva da descentralização

administrativa, modificando a organização do trabalho, que passa a ser realizado

pautado em um modelo mais flexível.

Segundo Brito e Castro (2013), com as reformas implementadas nos sistemas de

ensino a partir de 1990, o trabalho docente foi reconfigurado. Nos últimos anos, têm

sido observadas novas formas de organização do trabalho docente, associadas também

a uma nova forma de reorganização do sistema escolar, que passou a incorporar um

modelo de regulação educativa, com base nas demandas contextuais do mundo

globalizado. A regulação das políticas educacionais repercute diretamente no trabalho

docente, haja vista que modifica a estrutura e composição da organização escolar

influenciando no seu funcionamento, que segundo Oliveira (2004), se dá em função,

[...] da centralidade atribuída à administração escolar nos programas dereforma, elegendo a escola como núcleo do planejamento e da gestão;financiamento per capita, com a criação do Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério(FUNDEF), por meio da Lei n. 9.424/96; a regularidade e a ampliação dosexames nacionais de avaliação (SAEB, ENEM, ENC), bem como a avaliaçãoinstitucional e os mecanismos de gestão escolares que insistem naparticipação da comunidade (OLIVEIRA, 2004, P.1130).

Tais mudanças modificam o trabalho escolar já que passam a implementar

medidas que alteram a configuração das redes públicas de ensino. Com isso, é possível

observar que as orientações norteadoras das políticas educacionais ocasionam uma

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401017

maior autonomia para as escolas, principalmente no que se refere à gestão e realização

do trabalho docente; em contrapartida, estes acabam intensificando seu trabalho para

atender às exigências e obrigações postas.

Segundo Oliveira (2004), o professor, em face das variadas funções que a

escola pública assume na atualidade deve responder às exigências que ultrapassam a sua

formação. Para a autora, o trabalho docente não é definido mais apenas como atividade

em sala de aula; ele compreende a gestão da escola no que se refere à dedicação ao

planejamento e à elaboração de projetos específicos, bem como à discussão coletiva

sobre o currículo e da avaliação em geral e específica do ensino. Semelhante às novas

exigências do processo produtivo, o professor passa agora a ser responsável por

múltiplas funções que deve desempenhar de forma mais efetiva, participativa e flexível.

Pesquisas realizadas pelo Gestrado (2007), intitulada Trabalho docente na

educação básica no Brasil3 e posteriormente comprovada no Rio Grande do Norte por

Brito e Castro (2013), indicam que a nova forma de organização escolar tem repercutido

no trabalho docente, principalmente na intensificação, na precarização e flexibilização

do trabalho docente.

No Dicionário do Trabalho Docente, Duarte (2010) utiliza-se da ideia de Apple(1995) para explicitar o que seja o conceito de intensificação do trabalho. Para esseautor,

[...] a intensificação do trabalho docente representa uma das formas pelasquais os privilégios de trabalho dos(as) trabalhadores(as) da educação sãodeteriorados. Isso ocorre de forma trivial e mais complexa, pois inclui desdea falta de tempo de tomar um cafezinho e relaxar, ou seja, a falta de tempopara o descanso, que cada vez mais se comprime, até uma ausência total detempo para se manter em dia com o próprio campo profissional, comoatualizar-se (Apple, 1995, p. 48).

A intensificação do trabalho docente pode ser comprovada por diversos fatores;

dentre eles, merecem destaque: o aumento da jornada de trabalho em mais de uma

escola, em geral para complementar o salário; a extensão da jornada de trabalho no

próprio estabelecimento de ensino, sem remuneração extra e pela incorporação de novas

funções no interior do próprio trabalho. Para Brito e Castro (2013), o fato de o docente

ter que distribuir o seu tempo de trabalho em mais de uma unidade, compromete o

trabalho escolar e traz consequência para o trabalhador que tem de se deslocar para mais

de uma unidade, com perda de tempo e horas que deveriam ser dedicadas ao lazer ou ao

3 Pesquisa desenvolvida pelo GESTRADO/UFMG. A pesquisa do tipo survey foi realizada em seteestados brasileiros: Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Norte, Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo eGoiás.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401018

descanso para a recomposição da sua força de trabalho. Discutindo essa tendência,

também comprovada por Tardif e Lessard, (2008, p. 25), os autores apontam que uma

das consequências da intensificação do trabalho escolar reside no fato de que,

[...] os governos, pressionados por contextos econômicos, consideram mais emais a educação escolar como um investimento que deve ser rentável, o quese traduz por uma racionalização das organizações escolares e enxugamentossubstanciais nos orçamentos. Eles visam simultaneamente a aumentar suaeficácia e sua “imputabilidade” através de práticas e normas de gestão e deorganização do trabalho provenientes diretamente do ambiente industrial eadministrativo.

Assim, as exigências e as responsabilidades direcionadas aos sistemas de ensino

público principalmente a partir da década de 1990, acabam por repercutir diretamente

no trabalho efetivado pelos gestores, professores, supervisores entre outros que

integram o processo de ensino de aprendizagem. Esse novo contexto leva a um modelo

de organização pautado na descentralização administrativa, acarretando

consequentemente, responsabilização por parte dos docentes e uma participação mais

efetiva da comunidade nas instituições por meio de Conselhos e incentivos ao

voluntariado, reconfigurando, dessa forma, o trabalho docente.

Quanto à precarização do trabalho docente, esta ocorre nas relações de

emprego como decorrência de sua flexibilização e do contrato provisório, da ausência

de um piso salarial e de um plano de cargos e salários e as perdas de garantias de

trabalho. Para autores, como Antunes (2006), Pochamann (2011), as mutações no

mundo do trabalho, provenientes da reestruturação na base de produção, em vez de

proporcionar a melhoria qualitativa do trabalho, complexificou as relações trabalhistas,

reduzindo os direitos conquistados pelos trabalhadores no período do estado de bem

estar e estabelecendo relações mais fragilizadas que têm levado à precarização do

trabalho em todas as profissões. Para Ricardo Antunes (2006), a precarização do

trabalho significa o desmonte dos direitos trabalhistas, ou seja, é o conjunto de

mudanças econômicas e sociais no mundo do trabalho, geralmente caracterizado pela

desqualificação nas relações de contrato trabalhista. Nesse entendimento, a precarização

do trabalho docente, e também do trabalhar escolar, não se constituem em algo recente,

mas se apresentam de forma histórica e constante, pois, acompanham as profundas

mudanças políticas, econômicas e sociais ocorridas no âmbito internacional e nacional.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401019

Outros motivos também podem causar precarização a exemplo das condições de

formação e de trabalho dos professores, a organização do ensino e as condições

materiais do atendimento escolar.

No que se refere à flexibilidade do trabalho docente, esse fator está associado à

exigência de um novo perfil do trabalhador para atender à transversalidade dos

currículos, às avaliações formativas, as exigências pedagógicas e administrativas em um

ambiente sem condições de trabalho adequadas (OLIVEIRA, 2004). Isto implica que a

profissão docente mal estruturada e, em condições de formação precária, contribuirá

para o desenvolvimento intelectual e consciente deficitário das pessoas na sociedade.

Vale ressaltar, também, que a ação docente formal tem, como característica, o trabalho

flexível e codificado, autônomo e controlado, composto de uma combinação variada de

elementos contraditórios e diversificados .

Na atualidade, o contexto sócio-histórico e cultural acaba por suscitar muitas

incertezas aos educadores e educandos: aos professores, que cumprem ordens advindas

de instâncias superiores, cumprindo tarefas, muitas vezes, sem muita segurança.

Chegam a se sentir desvalorizados profissionalmente, sendo encarados como pessoas

que estão em salas de aulas para testar o que foi simplesmente mudado. Os alunos,

também são submetidos a incertezas, pois, o processo de formação educacional não está

sintonizado com as demandas da vida social, tampouco com a formação de espírito

crítico, necessário a uma vida cidadã autônoma e ativa.

Em um movimento dialético, autores, como (Libânio 1984), (Melo, 2010),

(Freire 1996), definem a prática docente para além da formação e da reprodução da

força de trabalho e apresentam conceitos que comprovam a complexidade do trabalho

docente, mas apontam para uma possibilidade de transformação e de mudança. Entre

essas concepções, destacamos a de Libânio (1984, p.137) que define e ressalta que o

trabalho docente “é um processo simultâneo de transmissão/assimilação ativa, onde o

professor intervém trazendo um conhecimento sistematizado onde o aluno é capaz de

reelaborá-lo criticamente com os recursos que traz para a situação de aprendizagem”.

Esse fazer deve pautar-se na realidade do aluno e na contextualização histórica e social

a que estão inseridos.

Melo (2010, p.2) descreve a atividade docente como “uma prática social

concreta, dinâmica, multidimensional, interativa, invariavelmente inédita e imprevisível.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401020

Um processo atravessado por influências de múltiplos aspectos – políticos, econômicos,

sociais, entre outros”.

Freire (1996, p.98) destaca, ainda, que “[...] a educação é uma forma de

intervenção no mundo. Intervenção que, além do conhecimento dos conteúdos bem ou

mal ensinados e/ou aprendidos, implica tanto o esforço de reprodução da ideologia

dominante quanto o seu desmascaramento”. Isso implica que a profissão docente mal

estruturada e formada poderá contribuir para um desenvolvimento deficitário da

sociedade.

O trabalho docente se enaltece quando deixa de ser, apenas, cumpridor e ou

executor de ações, e passa a ser uma atividade de interação com outras pessoas,

imprimindo, assim, sentido ao que fazem. No atual contexto das reformas educacionais,

essa dimensão tem sido secundarizada; a ação docente formal tem adquirido

características do trabalho flexível e codificado, autônomos e controlados, composto de

uma combinação variada de elementos contraditórios e diversificados entre si. Essas

características do trabalho, em geral, estão presentes no trabalho docente, quer seja no

cenário educacional em âmbito nacional, quer seja no âmbito internacional.

Considerações finais

As reformas que se processaram no final do século XX, no campo da educação

em âmbito mundial, vinculam-se às mudanças impostas pelo processo de globalização

econômica que caracterizam o mundo contemporâneo. Essas transformações

provocaram uma ampla reestruturação e reorganização da economia e das relações

políticas mundiais. É nesse contexto, que adquire centralidade a redefinição do papel do

estado, induzido por uma nova agenda econômica global veiculada e ampliada pelas

tecnologias da comunicação e da informação. O antigo modelo de organização social, o

Estado do Bem-Estar-Social, passou a ser visto como um impedimento ao

desenvolvimento das nações por ser considerado como ineficiente e ineficaz, ganhando

destaque as teses do Estado-mínimo, e do mercado como instituição eficiente, ágil e

capaz de oferecer produtos e serviços de qualidade. Em função desses fatores, há uma

nova reorganização da vida social, com base na revalorização da racionalidade

econômica e empresarial, na procura de vantagens competitivas, no protagonismo das

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401021

organizações produtivas e dos seus respectivos critérios de gestão tais como a eficácia e

a eficiência, tornando-se prioridade a substituição do modelo de gestão burocrático por

uma gestão gerencial.

Os sistemas educacionais, para se ajustarem às novas diretrizes da reforma do

estado, necessitaram ser reformulados e regulamentados; e contou para isso, com a

orientação de organismos internacionais, que, nas suas diretrizes, apontavam para a

necessidade de tornar os sistemas de ensino mais flexíveis e modernos, com uma gestão

mais eficiente e baseadas em resultados. Dessa forma, a gestão da educação sofreu

profundas modificações, de um modelo patrimonialista e burocrático para uma gestão

democrática definida em Lei ou para uma gestão gerencial imposta pela necessidade de

reformar o estado, tornando-o mais ágil e flexível. Assim, se evidencia uma grande

distância entre a gestão democrática que é definida na Constituição Federal de 1988,

referendada na Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/96 e os programas que são gestados

no Ministério da Educação que apostam no modelo gerencial, como forma de

modernizar a gestão da educação e da escola, permitindo o estabelecimento de um

modelo híbrido de gestão que não tem contribuído para a sistematização de uma prática

democrática nas instituições escolares.

Ademais, o trabalho docente vem sendo reconfigurado no interior das

unidades escolares. As mudanças ocorridas com a gestão, as novas formas de

acompanhar e avaliar o trabalho docente, bem como novas exigências para os

trabalhadores da educação, têm alterado a formação dos trabalhadores da educação,

flexibilizando a sua forma de contratação, aumentando a carga horária de trabalho e

suas atribuições, contribuindo, sobremaneira, para a precarização e a intensificação do

trabalho.

Esse novo modelo de organização educacional tem evidenciado, cada vez

mais, o docente como um trabalhador que presta um serviço técnico e instrumental,

muito associado a questões burocráticas o que tem impedido as chances de realização

do real objetivo da escola: a produção e sistematização do conhecimento e a formação

de indivíduos mais conscientes, atuantes e críticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA

ABRÚCIO, Fernando Luiz. Os avanços e os dilemas do modelo pó-burocrático: areforma da administração pública à luz da experiência internacional recente. In:

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401022

BRESSER PEREIRA. Luiz Carlos; SPINK, Peter (Orgs). Reforma do Estado eAdministração Pública Gerencial. Rio de Janeiro. FGV, 2003. p 173 a 199.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaios sobre a afirmação e anegação do trabalho. 6. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases daeducação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF,23 dez. 1996.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto nº 6.094, de 24 de abril de2007. Que dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todospela Educação. Disponível em < Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acessoem maio de 2012.

BRITO, Fabiana Erica de. CASTRO, Alda Maria D. Araújo. As condições do trabalhodocente em tempo de reestruturação produtiva. In: CABRAL NETO, Antônio;OLIVEIRA, Dalila Andrade; VIEIRA, Lívia Fraga (Orgs.). Trabalho Docente:desafios no cotidiano da educação básica. São Paulo, Mercado de Letras, 2013.

CENTRO LATINO-AMERICANO DE ADMINISTRAÇÃO PARA ODESENVOLVIMENTO (CLAD). Uma nova gestão pública para a América Latina.1998. Disponível em: <http//www.bresserpereira.org.br>. Acesso em: 15 jul. 2010.

CASTRO, Alda Maria Duarte Araújo. Gerencialismo e educação: estratégias decontrole e regulação da gestão escolar. In: CABRAL NETO, Antônio et al. (Orgs.).Pontos e contrapontos da política educacional: uma leitura contextualizada deiniciativas governamentais. Brasília: Líber Livros, 2007. ( p. 115 a 141).

CASTRO, Alda Maria Duarte Araújo; PEREIRA, Raphael Lacerda de Alencar.Contratualização no ensino superior: um estudo à luz da nova gestão pública. ActaScientiarum. Maringá, v. 36, n. 2. p. 267-296. July-Dec, 2014.

DUARTE, Adriana Maria Cancela. Intensificação do trabalho docente. In: OLIVEIRA,Dalila Andrade; DUARTE, Adriana Maria Cancela; VIEIRA, Lívia Maria Fraga (Orgs).Dicionário : trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte.UFMG, 2010.

FERREIRA, Eliza Bartolozzi; FONSECA, Marília. Plano de Ações Articuladas (PAR):discutindo dados da pesquisa em rede. In: FERREIRA, Eliza Bartolozzi; FONSECA,Marília. (Orgs.) Política e planejamento educacional no Brasil no século 21. Brasília,Liber Livro, 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. SãoPaulo, Paz e Terra, 1996.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401023

FLORES, Maria dos los Ángeles Castilho; TIRADO, Maria Del Carmen Montero. Lanaturaleza Del trabajo docente dos profesores de la Escuela Primaria Pública. In:OLIVEIRA, Dalila; FELDFEBER, Myriam. Nuevas regulaciones educativas emAmérica Latina: políticas y procesos del trabajo docente. Peru, UCH, 2010.

KUENZER, Acácia Z.; CALDAS, Andréa. Trabalho docente: comprometimento edesistência. In. FIDALGO, Fernando; OLIVEIRA, Mª Auxiliadora M.; FIDALGO,Nara L. R. (orgs.). A intensificação do trabalho docente: tecnologias e produtividade.Campinas, SP: Papirus, 2004.

GETE, Olías de Lima, Blanca. La evolución de la gestión pública: la nueva gestiónpública. In: GETE, Olías de Lima, Blanca. La nueva gestión pública. Madrid: PearsonEducación S.A., 2001. ( p. 1 a 33).

LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da Escola Pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São Paulo: Loyola, 1984.

LIMA, Licínio C.; AFONSO, Almerindo Janela. Reformas da educação pública:democratização, modernização, neoliberalismo. Porto: Edições Afrontamento, 2002.

MELO, Savana D.G. Trabalho, resistência e organização dos docentes. Disponível emhttp://nupet.iesp.uerj.br. 2010.

OLIVEIRA, Dalila Andrade. A Reestruturação do Trabalho Docente: precarização eflexibilização. Educação & Sociedade, Campinas, SP, n.89, 2004.v.25

OLIVEIRA, Dalila A. Política educacional e a re-estruturação do trabalho docente:reflexões sobre o contexto latino-americano. In. Dossiê: O trabalho docente no contextolatino-americano: algumas perspectivas de análise. Revista Educação e Sociedade.Campinas: v. 28 n. 99 Maio/Ago. 2007. Disponível em www.cedes.unicamp.br, acesso:05/04/10.

OLIVEIRA, Dalila Andrade. Mudanças na organização e na gestão do trabalho naescola. In: OLIVEIRA, Dalila Andrade; ROSAR, Maria de Fátima Felix. (Orgs).Política e Gestão da Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.13-18.

POCHMANN, Márcio. O trabalho no Brasil pós-neoliberal. Brasília. Liber Livro, 2011.

SAMPAIO, Mª das Mercês F.; MARIN, Alda J. Precarização do trabalho docente e seusefeitos sobre as práticas curriculares. Educação & Sociedade, Campinas, SP, n 89, 2004.v 25.

TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O Trabalho docente: elementos para umateoria da docência como profissão de interações humanas. Tradução de João BastistaKreuch. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401024

TRAGTENBERG, Maurício. Relações de Poder na Escola. In: OLIVEIRA, DalilaAndrade; ROSAR, Maria de Fátima Felix. (Orgs). Política e Gestão da Educação. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.13-18.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos de uma sociologia compreensiva.Brasília, UNB, 1994.

Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade

EdUECE - Livro 401025