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I SEMINÁRIO ARTE E CIDADE - Salvador, maio de 2006 PPG-AU - Faculdade de Arquitetura / PPG-AV - Escola de Belas Artes / PPG-LL - Instituto de Letras
UFBA
Grelhas. Notas sobre o expressionismo
e a neutralidade em arquitetura Douglas Vieira de Aguiar
Vazio conceitual
O termo expressionismo é utilizado no presente contexto para descrever
estratégias arquitetônicas que, ao deixarem de lado a preocupação com o
equilíbrio entre as categorias Vitruvianas, mergulham na exploração
gratuita do reino da forma; uma situação na qual a arquitetura chega perto,
e mesmo freqüentemente coincide, com o domínio da escultura. Há, no
entanto, que ser reconhecido que a matéria é complexa visto que a
arquitetura é sempre, por sua própria natureza, uma manifestação em
algum grau expressionista. É sabido que a arquitetura em forma de
caixote, de grelha e livre de ornamentos do movimento moderno provocou
forte impacto em sua primeira aparição no início do século passado. No
entanto, na medida em que o enfoque modernista difundiu-se sua
arquitetura foi crescente e naturalmente privada do poder de expressão
original.
Nas últimas décadas do século vinte a arquitetura dita modernista sofreu
uma série de reações; majoritariamente em razão de sua reconhecida
discrição e imagem de neutralidade. A primeira dessas reações – as quais
podem ser interpretadas como buscas inconseqüentes de expressão –
está naquela atitude ou tendência que veio a ser denominada como pós-
modernismo, uma tendência que trouxe de volta à cena arquitetônica uma
variedade de estilos recuperados aleatoriamente da história. O pós-
modernismo foi rapidamente consumido a medida em que a arquitetura
comercial adotou-o como estilo oficial. Simultaneamente a esse declínio se
observa a emergência do que veio a ser chamado deconstrutivismo, uma
tendência ao que parece ideologicamente comprometida com o papel da
arquitetura dentro da descontinuidade e fragmentação da metrópole
contemporânea. A expressão arquitetônica desse estilo – em muito
assemelhada ao construtivismo soviético – tornou-se moda e, conforme o
esperado, foi consumido e descartado ainda mais rapidamente que o estilo
pós-moderno. Na seqüência, quase que simultaneamente à decadência do
deconstrutivismo como estilo o cenário arquitetônico é assolado, no início
dos anos noventa, pelo que veio a ser denominado, de modo em princípio
equivocado, como tendência topológica ou arquitetura digital.1 Esse estilo
tem como expressão dominante as superfícies e espaços curvos e,
segundo os arautos, formas surgidas de um processo de ‘deformação
contínua’ dessas linhas e superfícies. Teóricos dessa tendência parecem
estar em busca de uma arquitetura que se mova, que se desloque;
possibilidade essa que se tornou facilmente realizável na tela do
computador, mas que de fato tem pouco, ou nenhum, impacto em
edificações reais. De fato, os esforços de construção surgidos dessa
tendência são bastante ambíguos. Exemplo emblemático é o já não tão
novo museu de Bilbao que exibe uma pirotécnica demonstração de ‘high
technology’ em suas superfícies curvas de titânio as quais, em anti-climax,
são apoiadas em estrutura absolutamente convencional desde o ponto de
vista dos princípios da estática. Outro representante dessa tendência
introduz uma espécie de arquitetura em origami na qual formas são
arbitrariamente produzidas a partir de ‘malhas deslocadas’; malhas
sobrepostas de modo desencontrado sem qualquer razão aparente. Nessa
linha o Aronoff Center of Arts, recentemente construído em Cincinatti,
mostra uma imagem de destruição; uma espécie de cenário pós-terremoto
ou quem sabe um terremoto em andamento. A Federation Square em
Melbourne sucumbe a essa postura arquitetônica (fig.1).
A situação acima descrita apenas confirma o permanente estado de crise
vivido pela disciplina arquitetônica. Tal cenário parece reviver a discussão
teórica de meados do século dezenove a respeito do pinturesco - ou o
‘picturesque’, como dizem os ingleses – um estilo que ‘emergiu como uma
revolta contra a idealidade da tradição acadêmica . . . e . . . foi
simultaneamente um culto do remoto e do local, do específico e altamente
pessoal’’. Nessa linha a busca de uma expressão característica foi ‘um
corolário da consciência romântica a respeito da natureza e da história, da
1 Uma coleção de teorias nessa linha é dada em Cristina, G. (Ed.) (2001). ‘Architecture and Science’, Chichester : Wiley-Academy.
liberdade e da individualidade 2. A história parece repetir-se com a
diferença que nos tempos atuais a mídia e as tecnologias de informação
vieram a substituir a natureza e a história como modelos nesse novo
pitoresco digital; um estilo que, na linha do original, tende a ser
predominantemente voltado para o impacto de superfície que as formas
causam ao olho. De qualquer modo o culto do caráter – modo como esse
fenômeno foi descrito por Colin Rowe – ou a necessidade de expressar
caráter a qualquer custo parece ser um ponto em comum entre o presente
momento da disciplina arquitetônica e o pinturesco de meados do século
dezenove.
Originalidade e criatividade
Em um de seus textos sobre arquitetura e ‘disjunção’ o arquiteto e teórico
Bernard Tschumi se refere ao mundo material como ‘o labirinto da
experiência’ e ao mundo dos conceitos como ‘a pirâmide’; um campo no
qual à arquitetura seria permitido ser autônoma 3. Nas últimas duas
décadas a pirâmide conceitual identificada por Tschumi vem sendo, de
modo crescente, materializada no trabalho de arquitetos ditos de
vanguarda os quais defendem a autonomia da arquitetura, sua total
dissociação do mundo das necessidades e usos e, sobretudo, seu fazer
como pura manifestação artística. Nessa linha, o arquiteto e teórico
americano Peter Eisenman declara: ‘. . . meu trabalho não trata da
conveniência, trata da arte . . . meus melhores trabalhos não tem
propósito’.4 Essa provocativa declaração pode até de certo modo contribuir
para a cultura arquitetônica ao promover a disciplina a um status de arte
autônoma, no entanto certamente não é uma contribuição positiva ao
ensino de arquitetura, uma área onde o principal agente, o estudante,
tende naturalmente a buscar originalidade, independentemente de um
insólito aval da academia. De qualquer modo, ao final, essa postura de
distanciamento do mundo da experiência tende a produzir resultados
desastrosos desde o ponto de vista da prática arquitetônica.
Nesse cenário os estudantes de arquitetura são freqüentemente
confrontados com o trabalho de arquitetos famosos que excedem no
inesperado, com exageros, distorções, pirotecnia formal, etc., etc., tudo em
2 Rowe, C. ‘Character and Composition’ in ‘The mathematics of the ideal villa, and other essays’ Cambridge, Mass. : MIT Press, 1976, p. 69 and 74 . 3 Tschumi, B. (1975). Questions of Space: The Pyramid and the Labyrinth. In Studio International, Sept-
Oct. 1975. London, Medical Tribune Group. 4 Cuff, Dana. Through the looking glass: Seven New York architects and their people. In Russell Ellis
and Dana Cuff eds. Architects’ People. New York: Oxford, University Press, 1989.
busca do impacto emocional através do objeto arquitetônico. Estudantes
freqüentemente tomam o trabalho desses profissionais como um
parâmetro de criatividade – ou originalidade? – e, sobretudo, de um
ambicionado sucesso profissional. É oportuno a essa altura do argumento
esboçar, ainda que de modo tentativo, uma distinção entre originalidade e
criatividade em arquitetura. De certo modo originalidade e criatividade
parecem coincidir. No entanto a noção de originalidade parece ser explícita
em sua referência a algo nunca antes visto ou feito. Resta saber por outro
lado se a originalidade completa seria algo alcançável. Nesse aspecto a
história mostra que a originalidade pode sim ser alcançada; ainda que seja
pelo gênio. E isso ocorre de quando em quando nos diferentes campos do
conhecimento, são ocorrências excepcionais e provavelmente dependam
pouco de processos de educação formal. Seria o talento de um Salieri,
uma vez adequadamente treinado, capaz de aproximar-se ao talento de
um Mozart? Ou, de outro modo, seria Mozart, uma vez formalmente
educado, um gênio em tão tenra idade? Ninguém sabe exatamente, mas
para ambas as questões a resposta parece ser não. Parece, ao contrário,
que quanto mais o gênio vier a ser contaminado por informação prévia ou
circundante menor será a probabilidade de que ele produza material
original. Tanto quanto a evidência histórica mostra não há treinamento
para originalidade; há a circunstância . . .
Já a criatividade parece acontecer de outro modo na medida em que está
afeta à cultura; quanto mais o agente estiver inserido em uma cultura mais
será ele capaz de interagir criativamente. O ato criativo se assemelha à
colagem; no sentido utilizado pelo antropólogo francês Claude Levi-
Strauss5. A criatividade depende de conhecimento prévio, conhecimento
sobre possíveis relações entre os elementos que se está lidando, colando,
sejam eles notas musicais ou elementos de arquitetura; e isso não tem
qualquer relação com uma ambição de originalidade. Ao contrário, a
criatividade se baseia em estruturar conhecimento, em relações
perceptíveis entre os elementos de uma cultura. Por isso a criatividade
pode ser formalmente aprendida e treinada. O gênio não parece ser feito
para isso. No entanto, curiosamente, a ambição de originalidade em
arquitetura é uma característica bastante comum entre estudantes. E o
expressionismo gratuito é, freqüentemente, bem acolhido por orientadores
alheios à distinção entre criatividade / originalidade. Nesse contexto o
5 Lévi-Strauss, C. Structural anthropology. Harmondsworth, England : Penguin, 1972.
argumento ora perseguido não tem a ambição de fornecer receita para o
trabalho criativo em arquitetura. Porém, alimenta uma ambição, ainda que
singela; aquela de reafirmar o papel da tradição – tanto a clássica quanto a
moderna – no ensino e na prática da arquitetura; uma proposição que nos
dias que correm soa conservadora. Esse não é, no entanto, o caso, na
medida em que a tradição está lá, na cidade, que em meio à onda de
pirotecnia arquitetônica vem se mantendo, onde é possível, como um
digno pano de fundo.
Presença e ausência
O reconhecimento do papel das tradições clássica e moderna no presente
cenário de confusão teórica abre oportunidade para enfocar, e especular, a
respeito da condição de neutralidade em arquitetura; suas peculiaridades,
sua performance, sua potencialidade. Expressionismo e neutralidade são,
senso comum, reconhecidos como pólos opostos. Neutro significa não
envolvido, ou imparcial ou ainda, algo sem um caráter ou peculiaridade
que o distinga. No entanto, conforme sugere a experiência, neutralidade
parece ser uma condição utópica. Em arquitetura neutralidade pode ser
considerada como a qualidade de permanecer como pano de fundo, não
interferindo ou interferindo o mínimo na cena principal; algo que está lá,
mas não é imediatamente percebido, algo quase ausente. Expressionismo,
ao contrário, é a busca de presença; e freqüentemente de uma presença
forte. A arquitetura é então colocada na linha de frente. Presença e
ausência são um modo sinônimo de descrever a polarização entre
expressionismo e neutralidade. Há, no entanto, a considerar que essa
condição de ausência, de pano de fundo, tomada de modo positivo,
confere à arquitetura um papel subsidiário e, paradoxalmente,
fundamental; o papel de enquadrar, estruturar as situações, criando
condições para que sejam enfatizadas características particulares do
ambiente; tanto ambientes construídos quanto naturais e, sobretudo, o
ambiente social i.e. a vida espacial das pessoas, a arquitetura como um
pano de fundo para a vida espacial das pessoas. Em tempos ancestrais,
muito antes dos arquitetos virem à existência, esse era provavelmente o
modo natural de lidar com situações / assuntos espaciais. E ainda hoje o
tradicional, o modo senso comum de lidar com demandas espaciais é
buscar abrigo sob a racionalidade de panos de fundo mais neutros.
Grelhas
O reconhecimento da polaridade entre expressionismo e neutralidade em
arquitetura traz naturalmente ao argumento o papel da repetitividade e,
sobretudo, da malha, ou grelha, na morfogênese da tradição arquitetônica;
tanto a clássica quanto a moderna. Nos cursos de arquitetura estudantes
tendem a associar as grelhas e o ângulo reto com rigidez, falta de
flexibilidade e de um certo modo, falta de criatividade. As razões para isso
parecem estar na recorrente presença da grelha no ambiente
contemporâneo: ‘O esqueleto de aço, ou a estrutura de concreto, é o tema
mais recorrente na arquitetura contemporânea e está dentre aqueles que
Sigfried Giedion teria apontado como seus elementos constituintes’ 6. Na
mão contrária, as grelhas também tem sido vistas como as configurações
mais abertas ao exercício da criatividade. Essa abertura, um atributo que
parece ser inerente às grelhas, acontece tanto em termos operativos
quanto simbólicos: ‘ . . . a grelha veio a possuir um valor para a arquitetura
contemporânea equivalente ao da coluna para a antiguidade clássica e
Renascença. Assim como a coluna, a grelha estabelece por todo o edifício
uma razão comum à qual todas as demais partes se reportam; assim como
o arco ogival na catedral gótica, ela dita um sistema ao qual todas as
demais partes se submetem’ 7. O operativo é naturalmente seguido pelo
simbólico: ‘Aparentemente a neutra malha especial que é abrigada pelo
esqueleto estrutural nos fornece um símbolo particularmente convincente,
e por essa razão a grelha estabelece relações, define uma disciplina e
gera formas. A grelha tem sido o catalizador de uma arquitetura; e se
verifica também que a grelha também tornou-se ela própria arquitetura, e
sobretudo que a arquitetura contemporânea seria quase inconcebível na
sua ausência’ 8.
Vestígios de grelhas, ou padrões em grelha, são encontrados em grande
número nos registros mais antigos da história humana. É provável que o
recurso configuracional mais utilizado pelo homem – os primeiros
arquitetos – através da história seja o padrão em grelha. A simples
intersecção e seu caso particular, o ângulo reto, estão na origem da
malha. Ainda que o ângulo reto seja usualmente considerado como uma
evidência explícita de racionalidade – e artificialidade – ele carrega
também, paradoxalmente, uma característica bastante natural; em muitas
espécies vivas desse planeta, aí incluídos os humanos – os corpos
humanos – tendem a materializar naturalmente ângulos retos em relação
ao horizonte e, como corolário, em relação ao plano horizontal sob nossos
pés. Essa verticalidade é natural nos humanos, em muitos animais e na
maioria das árvores. O ângulo reto, apesar de sua aparente artificialidade,
pode ser considerado como um elemento natural na cultura, talvez o mais
difundido, o mais tradicional, o mais neutro e, paradoxalmente, o mais
expressivo, especialmente quando confrontado com os arranjos mais livres
da natureza, aqueles reconhecidos pelo senso comum como naturais.
Ângulos retos são naturais geradores de malhas e padrões regulares em
6 Rowe, C. ‘The mathematics of the ideal villa, and other essays’ op.cit.p.90. . 7 Ibid. p.90. 8 Ibid. p.90.
geral e, de volta ao ponto inicial, geradores naturais de padrões de
neutralidade. Nessa linha as intersecções, o caso genérico, são geradoras
naturais de malhas deformadas 9.
O símbolo de cidade utilizado pelos egípcios é uma cruz dentro de um
círculo10: ‘. . . esse hieróglifo . . . sugere duas das mais simples, mais
duradouras imagens urbanas. O círculo é uma única ininterrupta linha
fechada; ele sugere fechamento, uma parede ou um espaço como uma
praça; dentro desses limites a vida acontece. A cruz é a mais simples
forma de diferentes linhas se agregarem; ela é talvez o objeto mais antigo
no processo ambiental . . . linhas que se cruzam representam um modo
elementar de fazer ruas, seguindo o padrão em grelha’11. O modo como os
antigos gregos construíram suas cidades através de uma configuração em
grelha é bem conhecido. Isso foi repetido pelos romanos e por sucessivas
culturas em diferentes períodos da história da cidade; de Mileto a Nova
Iorque e Barcelona (fig. 2). Ao longo dos tempos a grelha tem sido de
modo recorrente tomada como um padrão teoricamente neutro que vem a
permitir diferentes modos de ocupação; diferentes tamanhos e formas para
os quarteirões, diferentes tamanhos e formas para os lotes, diferentes tipos
de edificação, diferentes tipos de atividade, diferentes padrões de
movimento. Nessa condição de pano de fundo para múltiplas finalidades a
grelha foi tomada sem questionamento e, em tempos mais recentes
banalizada.
No entanto, a constatação da grande variedade de situações urbanas em
grelha sugere que esta, em princípio reconhecida como um instrumento
radical na canalização de pessoas e ordenamento de atividades, é também
vista por muitos como um agente efetivo de liberdade especial. O fundo
aparentemente neutro permite o desenvolvimento dos mais diversos e
contrastantes comportamentos espaciais, todos acomodados na suposta
neutralidade do padrão especial em grelha. A malha parece fornecer a
ausência de um esforço configuracional. Nessa linha a relação das
configurações em grelha, ângulos retos e linhas retas com rigidez e falta
de criatividade parece ser um falso axioma e até um limitador, desde o
ponto de vista do treinamento em arquitetura, visto que esses elementos
parecem ser justamente aqueles mais abertos ao exercício da criatividade.
9 As given in Hillier B. and Hanson J, The Social Logic of Space, CUP, Cambridge, 1984. 10 Rykwert, J. (1976). The idea of a town:The anthropology of urban form n Rome, Italy and the ancient world. London : Faber and Faber, p. 192. 11 Sennet, R. (1990). The Conscience of the Eye: the design and social life of cities. New York : Random House, pp. 46-47.
Sobre a neutralidade
No capítulo da arquitetura que trata das propriedades da malha urbana um
tópico relevante é o da neutralidade; o argumento toma as grelhas
regulares em geral e a malha urbana regular como um tipo de organização
espacial absolutamente homogênea, vazia de expressão e, portanto
aberta, de modo irrestrito, a qualquer conteúdo. Esse tópico parece ser
particularmente oportuno no estágio do treinamento em arquitetura
quando, é sempre oportuno relembrar, os estudantes freqüentemente
tendem a considerar a adoção da grelha como elemento operativo na
atividade de projeto, como um limitador no drive criativo. Duas questões
emergem daí. A primeira; seria um padrão especial em malha regular, uma
vez utilizado na configuração de um assentamento urbano, um instrumento
de neutralidade ou algo dotado, na origem, de neutralidade? A segunda;
considerando a prática da arquitetura de um modo geral, pode o uso de
padrões espaciais em grelha – como base operativa (um substrato) para o
desenho arquitetônico - ser considerado como uma técnica neutralizante?
O enfoque trazido por Richard Sennet em A Consciência do Olho parece
trazer alguma luz sobre o assunto. A tese de Sennet, em um capítulo
intitulado ‘a cidade neutra’, é a de que a adoção da urbanização em grelha
seria responsável por uma falta de identidade pública tanto nas cidades
americanas e, ampliando o argumento, no povo americano de um podo
geral. O argumento de Sennet vai na linha do determinismo arquitetônico;
ele considera os efeitos da malha regular como um subjacente fator
espacial negativo a incidir sobre o modo de vida americano.12 O tema é
ambíguo e é na ambigüidade que se encontram as oportunidades de
avançar nessa discussão. Sennet considera que na urbanização do novo
mundo a malha se tornou a expressão de um comportamento protestante;
uma vez chegados à América os Puritanos, em sua condição de refugiados
e na busca de realização do desejo de deixar o cenário europeu totalmente
para trás, teriam reconhecido na neutralidade da grelha regular o padrão
espacial ideal a partir do qual poderiam iniciar uma nova vida a partir do
zero. Deixar o passado para trás significava deixar para trás o opressivo
cenário urbano medieval. Nessa linha o autor sugere que ‘as igrejas nos
centros dos tradicionais tornavam evidente ao olho onde estava Deus.
Esses centros eram um espaço de reconhecimento. Deus é legível; ele
está dentro, dentro do santuário assim como dentro da alma. No exterior
12 Sennett, R. (1990), The Conscience of the Eye : the design and social life of cities. New York : Random House.
só há exibição, desordem e crueldade’.13 Ao contrário, o lugar ambicionado
pelo Puritano ‘devia ser tratado como uma tela branca buscando atender a
dupla compulsão de exaurir-se; para que o homem, ou a mulher, tenham
mais auto controle para o recomeçar em outro lugar’. Além disso ‘o olho do
Puritano só podia ver dentro de si próprio. Do lado de fora não havia nada.
Ele existe, esse interior selvagem, no espaço onde Beckett imaginou
Esperando Godot, um espaço vazio em um tempo sem narrativa’ 14.
Comparado com a cidade européia o ambiente ambicionado pelos
Puritanos incorporou objetivos políticos radicalmente distintos; ‘. . . a busca
por um santuário físico expressava o desejo de colocar-se nas mãos da
autoridade. A perspectiva puritana do espaço, ao contrário, expressava
uma ambição de poder’ 15.
Sennet oferece ao leitor um relato sobre a origem histórica dos padrões
espaciais em malha, se valendo para esse fim do trabalho do historiador
Joseph Rykwert que, em seu relato antropológico da forma urbana no
mundo antigo, é a todo o momento ciente do forte conteúdo simbólico
contido no padrão em grelha. Ainda que o autor em princípio reconheça
que em paralelo, senão sobreposto, à finalidade simbólica sempre tenha
havido um subjacente pragmatismo na a adoção do que ele denomina
como planejamento ortogonal; ‘. . . o planejamento ortogonal apareceu por
toda a parte, na América do Sul, na China, Índia, Egito, Mesopotâmia, e
por todo lugar onde formas de parcelamento foram desenvolvidas, e sob
qualquer estatuto da terra’16. O pragmatismo inerente ao planejamento
ortogonal transcende ao lado prático da simples divisão da terra e,
segundo Rykwert, ele estaria bastante ligado à dimensão operativa de
algumas sociedades antigas e, como tal, esse tipo de planejamento era
então uma novidade; ‘. . . a cidade Hipodâmica não é diferente de outras
(do seu tempo) só porque era ortogonal, mas sim porque ela é zoneada de
acordo com a classe de seus habitantes (guerreiros, fazendeiros, artesãos)
e de acordo com o estatuto da terra (sagrada, pública, privada)’17. A
suposta razão pragmática para a adoção generalizada dos padrões
espaciais em malha na antiguidade é, segundo Rykwert, superada pelos
conteúdos simbólicos, pois nas suas origens mais antigas a malha sempre
13 Ibid. p.44. 14 Ibid. p.45. 15 Ibid. p.45. 16 Rykwert, J. (1976).The idea of a town:The anthropology of urban form n Rome, Italy and the ancient world. London : Faber and Faber, p.72. 17 Ibid. p.86.
teria estabelecido, em um primeiro momento, um centro espiritual. Isso fica
claro, ainda segundo Rykwert, nas palavras do escritor Hyginus
Gromaticus, que acreditava que os antigos sacerdotes inaugurando um
novo vilarejo romano teriam colocado o primeiro eixo no cosmos visto que
‘os limites nunca são desenhados sem referência à ordem do universo, por
isso os decumanos são colocados em linha com o curso do sol, enquanto
os cardos seguem o eixo do céu’18. Essa evidência parece indicar de modo
claro que em sua origem a malha, em radical contraste com a tese da
neutralidade inicialmente posta, tem sido tomada, desde tempos ancestrais
e por diferentes sociedades, como um elemento dotado de forte conteúdo
simbólico.
Sennet reconhece essa primordial força simbólica ainda que seu
argumento sugira que a condição de neutralidade tenha sido perseguida
com sucesso no novo mundo na medida em que ‘os americanos tenderam
mais e mais a eliminar o centro público, o centro urbano, como mostram os
planos para Chicago de 1833 e aqueles para San Francisco de 1849 e
1856, que apresentam não mais que um punhado de pequenos espaços
públicos para as milhares de construções projetadas’19. O centro urbano,
ao contrário, foi um elemento essencial nas cidades americanas do assim
chamado lado espanhol. Isso decorre em grande parte da ‘Lei das Índias’,
um conjunto de regulamentos criados por Felipe II da Espanha, em 1573,
destinados a ordenar a criação de cidades no novo mundo. Sennet sugere
que ‘com a vinda das ferrovias e doses massivas de capital buscando um
porto, acontece uma mudança nas cidades de origem espanhola
enunciadas nas Leis das Índias. A praça deixa de ser um centro, ela não
mais é um ponto de referência na geração de novos espaços urbanos.
Praças urbanas passaram a ser pontos aleatórios em meio aos blocos
após blocos de lotes urbanos’.20 A conclusão de Sennet traz uma desilusão
determinista; ele culpa a grelha por muitas das falhas – por ele
reconhecidas – da sociedade Americana; desde a estéril vida social
suburbana até a insípida atmosfera por ele observada e vivida nos bares
de Manhattan. Nessa linha ele sugere que a grelha ‘pode ser vista como
uma arma usada contra a afirmação de um caráter ambiental, um espaço
para competição econômica a ser utilizado como um tabuleiro de xadrez;
18 Ibid. p.91. 19 Sennett, R. (1990), op.cit. p.48. 20 Ibid. p.50.
um espaço de neutralidade, uma neutralidade conseguida negando ao
ambiente qualquer valor vindo dele próprio’ 21.
O argumento é, por um lado, de reconhecimento ao forte conteúdo
simbólico inerente à malha urbana em sua origem e, por outro, de
reconhecimento à força da malha como instrumento de neutralidade. A
ambigüidade é evidente especialmente considerada a malha, como ele
próprio sugere, como um ‘signo protestante para a cidade neutra’ 22. Um
signo é por definição expressão; não pode ser, também por definição,
vazio, ou não será um signo. Por outro lado o desenho urbano em grelha
tem em geral vida curta, como fundo neutro, quando confrontado com o
comportamento espacial dos assuntos humanos. A confrontação da malha
com a situação existente, real, é sempre uma questão complexa; o sítio, a
natureza, a topografia, esses elementos estão sempre aí como elementos
perturbadores e contaminadores. Em sua relação com o mundo, a grelha
ganha vida, hierarquias, valores. Por meio desse mecanismo natural, a
grelha, em suas diferentes partes e porções, ganha identidade via
especificidade.
Ícone e índice
O trabalho do arquiteto alemão Mies van der Rohe é emblemático e
controverso no que diz respeito ao tópico da neutralidade na medida em
que ele liderou um modo de composição arquitetônica onde a repetição
tende a ser a regra (fig. 3). O arquiteto japonês Tadao Ando, após visitar
alguns dos edifícios de Mies durante os anos sessenta, sugeriu que ‘a
arquitetura de Mies pertence a todo o lugar e a lugar algum’, e prossegue;
‘tudo o que lembro é a frieza daqueles espaços uniformes. Me dei conta
que em Mies havia algo de trágico e cruel empurrando tudo para uma
conclusão lógica que ignora todas as considerações humanas . . . e ainda
que Mies não tivesse nascido ainda assim alguém teria produzido aqueles
edifícios entediantes, movidos pela necessidade de criar um espaço
homogeneizado capaz de absorver toda e qualquer diferença’ 23. O
discurso de Ando vem alinhado com a percepção de Sennet, vista acima,
de um zeitgeist neutralizante expresso no urbanismo americano em
xadrez, e reconhece a expansão dessa tendência na prática arquitetônica
contemporânea que tende a reproduzir esse modo homogeneizante de
21 Ibid. p.52 and 55. 22 Ibid. p.48. 23 Ibid. p. 476.
lidar com a produção do espaço; ‘. . . hoje temos que trabalhar com
tecnologias totalmente controladas por computadores e que apenas
entendem o que seja normal e não deixam margem para a diversidade’.24
Ao dar-se conta do quanto a padronização avançou no mundo
contemporâneo o arquiteto japonês já não parece tão certo do radicalismo
do mestre alemão, com o qual mostra, ao final, alguma complacência; ‘. . .
tentativas de humanização foram feitas pela introdução de eventos
informais em grelhas repetitivas. Em Mies, o espaço uniforme sempre
deixa essa margem para a liberdade e a diferença . . . ‘ 25.
O próprio trabalho de Ando foi sempre dotado de um explícito rigor
geométrico onde o papel da grelha tende a predominar. Nessa linha o
arquiteto sugere que uma geometria pura esteja entre os elementos
necessários para a cristalização da arquitetura; ‘uma estrutura que venha a
dotar de presença a arquitetura . . . o ponto de partida poderia ser um
volume tal como um sólido platônico, mas freqüentemente é uma estrutura
tridimensional; sinto que essa última seja uma geometria mais pura ’ 26.
Vê-se aí que o depoimento de Ando sobre o trabalho de Mies está
bastante distante de uma critica generalista sobre uma pressuposta
neutralidade dos padrões em grelha. Ando de fato não reconhece a grelha
em si própria um elemento de composição expressivo, mas sim um outro
elemento, ou procedimento, por ele apresentado que é o deslizamento
(slippage) entre grelhas; ‘dizem alguns que com o uso de grelhas o
resultado será apenas o espaço uniforme de um tipo ou de outro, mas eu
discordo. Quando dois espaços homogêneos, representados como
malhas, interferem um com o outro acontece um deslizamento entre eles o
qual provoca o incômodo, a rejeição de entidades idênticas que colidem.
Isso é o que considero ‘diferença’ e é isso o que procuro’ (fig. 4) 27. Esse é
o modo como Ando cria ‘lugares que abrangem a diversidade existente no
mundo e que dão expressão a quaisquer idéias que rejeitem
uniformidade’.28 De fato essa característica à qual Ando se refere é algo
bastante recorrente no meio urbano, em cidades de crescimento natural,
paulatino, onde grelhas pertencentes a diferentes estágios de
24 Ibid. p.476. 25 Maruyama, H. (1995). Interview with Tadao Ando. In Francesco Dal Co (Ed) Tadao Ando : Complete Works, London : Phaidon, p. 476. 26 Ando, T. (1995). Materials, Geometry and Nature. In Francesco Dal Co (Ed) Tadao Ando : Complete Works, London : Phaidon, p. 456. 27 Maruyama, H. (1995). Op.cit. p. 476. 28 Ibid. p. 476.
desenvolvimento colidem – em suas adjacências – de modo casual.
Nessas situações o caráter dessas grelhas em colisão tende a produzir
situações espaciais excepcionais – diferenças - estanhas aos padrões
originais (fig.3). Nesse sentido, e em comparação com as imaculadas
estruturas miesianas, o trabalho do arquiteto japonês parece assumir um
caráter bastante pitoresco ou, se quisermos, expressionista.
O arquiteto americano Peter Eisenman, em uma análise do trabalho de
Ando, sugere que ‘as linhas de Ando não são simplesmente uma grelha;
elas contém esse ‘outro’ que é simultaneamente índice e ícone . . . a
grelha tem secundariedade – uma qualidade de um índice sem
complexidade adjetival ou hierárquica, e não mais uma forma primária’ 29.
Eisenman se apóia em categorias – dadas pelo filósofo americano Charles
Peirce – que estabelecem diferença entre as condições do signo. Essas
categorias fornecem elementos que contribuem na compreensão da
dimensão oculta dos padrões em grelha.30 Um ícone, sugere Peirce, é um
signo que guarda uma relação primária e direta com um objeto. Exemplo
clássico de ícone são os números (um, dois, . . . , n) que se relacionam
diretamente a uma certa quantidade de algo. Um índice é um signo que
guarda uma relação secundária com o objeto. Um índice é o signo de um
conjunto de relações tais como os algoritmos, equações e sintaxes. Índices
descrevem ‘as complexas interações em um objeto que podem ser
conhecidas, mas não necessariamente vistas. São relações de
‘secundariedade’ na medida em que não se revelam a partir de uma visão
inicial’.31 Relações de secundariedade constituem uma espécie de
dimensão oculta da arquitetura, estão mais escondidas – no domínio da
forma espacial – enquanto o discurso arquitetônico trata, em geral, com a
aparência visual. Relações de secundariedade descrevem o modo como o
espaço, a arquitetura, de fato opera.
Seguindo essa tipologia, a grelha – os padrões em grelha em geral –
detém ambas as condições, ou seja, são simultaneamente ícones e
índices. Conforme Eisenman sugere, ‘ . . . quando se desenha a
intersecção de duas linhas, se produz uma cruz que é um óbvio ícone de
ponto, centro, foco, etc.. A repetição desse cruzamento produz uma grelha,
que não tem mais a ver com centro e foco, mas sim com superfície,
29 Eisenman, P. (1995). Indicencies: In the Drawing Lines of Tadao Ando. In Francesco Dal Co (Ed) Tadao Ando : Complete Works, London : Phaidon, p. 496-497. 30 Peirce, C. S. (1952). The Collected Papers of C. S. Peirce, ed. A. W. Burks, Cambridge: Harvard. 31 Ibid. p.496.
textura, etc. A grelha não é mais então primariamente icônica, mas
também um índice’.32 Isto é, a grelha carrega em si própria relações
espaciais que não podem ser vistas em sua totalidade, mas que serão
determinantes no uso do espaço em grelha resultante. Esse caráter de
secundariedade é bastante distinto do caráter icônico primário que pode
ser facilmente percebido em qualquer planta e em geral na iconicidade
utilizada pelos mestres do movimento moderno; ‘. . . (Mies e Le Corbusier)
ambos utilizaram a grelha como um ícone da arquitetura modernista; ela
representava as novas concepções de espaço como algo abstrato,
ilimitado e tectônico perseguindo uma imagem mecanicista ou de máquina
simplesmente’. A neutralidade da grelha, portanto, seguindo a tipologia
proposta por Sennet, parece ser apenas algo aparente, algo dado na
superfície, uma iconicidade aparente. Mais fundo, sob a superfície, imersa
na ‘secundariedade’, a grelha carrega uma essência espacial, uma
dimensão oculta que provém de sua sintaxe. Nesse sentido fica aparente
que Eisenman de certo modo perdeu o foco, ele próprio, ao sugerir que as
grelhas seriam não mais relacionadas com o ponto, ou centro(s), mas sim
com superfície e textura. A condição de acessibilidade espacial inerente a
qualquer padrão urbano em grelha é naturalmente dotada de centralidade.
Considerado o conjunto de relações espaciais inerentes a cada um se
seus segmentos de linha, a grelha, qualquer grelha, será naturalmente
dotada de um centro, um ponto focal, topológico (não geométrico). Como
tal a, acima teorizada, neutralidade da grelha mostra-se insustentável
quando confrontada como sua própria natureza sintática, sem falar de seu
confronto com o mundo real.
Um emblema da arte moderna
Esse caráter duplo, inerente aos padrões em grelha tem sido largamente
reconhecido e levado a seu limite pela arte moderna, especialmente na
pintura. Nessa linha a crítica de arte americana Rosalind Krauss sugere
que ‘se a separação entre espírito e matéria, presidida pela ciência do
século 19, é o legado deixado às crianças do século 20, esse não deixa de
ser também o legado deixado à arte do século 20, e a grelha é sua forma
emblemática’33. O forte conteúdo simbólico vinculado aos padrões em
grelha desde a antiguidade fica adormecido por um milênio de
obscurantismo e ressurge com força total nos tempos modernos; ‘a grelha
32 Ibid. p.497. 33 Krauss, R. ‘Grids : format and image in 20th century art’, New York : Pace Gallery, 1980, p. 1.
é um emblema da modernidade por ser apenas isso: a forma que está em
toda a parte na arte do nosso século, e em lugar algum na arte do século
passado’ 34. Essa transição do tradicional conceito de arte como imitação
(da natureza) na direção de um conceito explicitamente abstrato teve, ao
longo do século 20, o padrão em grelha como seu principal protagonista
(fig. 5). Na medida em que toda a tradição da imitação é deixada para trás,
a malha vem a representar por si própria a autonomia da obra de arte.
Curioso, no entanto, é que nos tempos atuais – tempos explicitamente
presididos pelo secularismo combinado com o materialismo – a dimensão
espiritual é freqüentemente vinculada ao uso de padrões em grelha. Nessa
cisão entre o sacro e o secular, típica do tempo em que vivemos, verifica-
se a força da grelha tanto como um emblema quanto como mito; ‘. . . a
força mítica da grelha está no fato de ela nos fazer pensar que estamos
lidando com materialismo e ao mesmo tempo nos liberar na direção de
algo a acreditar (ou ilusão, ou ficção) 35. A obra de artistas como Agnes
Martin, Malevitch, Mondrian e tantos outros mostra vestígios dessa força
subjacente.
As grelhas e o mundo lá fora
Desde o ponto de vista da suposta neutralidade da grelha, a pré-existência
tende a se comportar como um fundo orgânico. Isso parece corresponder
ao que ocorre tanto no ambiente natural quanto no artificial. A presença
ordenadora da arquitetura está em seu modo de contrastar esse cenário
complexo. O expressionismo arquitetônico freqüentemente tenta mimetizar
a complexidade ambiental. Essa atitude parece afastar-se da condição de
elemento ordenador inerente à arquitetura. A tentativa de imitar a
espontaneidade natural, mais que uma missão impossível, termina
produzindo um expressionismo inconseqüente. E a melhor arquitetura –
Palladio e Mies são exemplos – é configurada tendo a neutralidade como
origem, no conceito. Por partirem, na origem, de configurações neutras,
essa arquitetura se torna fortemente comunicativa, e mesmo
expressionista, em seu desenvolvimento, quando confrontadas com o
ambiente, com a vida das pessoas e com a passagem do tempo. Quando
isso é obtido a arquitetura se torna arte. Isso fica evidente na planta de
Mileto, nos bulevares parisienses, na obra de Mies e no monolito
prismático de 2001, a Odisséia Espacial; a pedra negra que assusta os
34 Ibid. p.2. 35 Ibid. p.4.
macacos, ícone de racionalidade. Essas obras de arte mostram a
realização do que pode ser considerado como o caráter correto; aquela
situação na qual a expressão emerge da neutralidade, simplesmente da
interface com o mundo real.
A expressão simultânea de caráter e finalidade dos bulevares parisienses
vem do modo como esses espaços se confrontam com os mil anos do
tecido urbano onde foram situados. A colisão entre a linha reta da avenida
e o tecido labiríntico da cidade medieval faz o papel de um instrumento de
comunicação. O bulevar é simplesmente um eixo e precisamente por isso
um comunicador eficiente (fig. 6). A arte, a obra de arte, está no modo –
como e onde – esse eixo é realizado, o modo como ele intersecta a pré-
existência. É provável que Haussmann não estivesse consciente desse
aspecto, no entanto o resultado obtido é eficiente e belo. A destruição de
boa parte da Paris medieval para torná-lo possível, incluídas aí as
implicações sociais, é outro tema. O que conta no presente argumento é a
força, a beleza e a efetividade de uma linha reta – um elemento neutro na
origem – quando confrontado com a complexidade da pré-existência. A
grelha de Hippodamus realizada em Mileto produziu um efeito similar. O
contorno natural da península é confrontado com a neutralidade da grelha.
E a grelha é afetada pelo ambiente natural. Ela deve acomodar-se e por
outro lado sofre a pressão dada pelo programa – o ágora, os foruns, a
acessibilidade desde e para esses locais – e desse modo uma natural
hierarquia de caminhos emerge. A malha se torna naturalmente
expressiva, comunicativa. Efeito similar ocorre em Manhattan quando a
Broadway atravessa a malha regular em diagonal. O resultado é um
pedaço de Nova Iorque fortemente expressionista; ainda que naturalmente.
Os antigos parecem ter manejado de modo automático com a transposição
mecânica da genérica neutralidade de um modelo à especificidade de cada
situação. As casas gregas e a domus romana reproduzem na escala do
edifício esse mesmo princípio. As casas antigas são freqüentemente em
grelha; um espaço central articula espaços periféricos que por sua vez se
comunicam. É a matriz de compartimentos conectados de Evans.36 E o
mecanismo de deformação opera de modo similar aquele que atua sobre
as malhas urbanas. Essas edificações ainda que similares nunca são as
mesmas; muito embora sejam baseadas em um padrão simples e
originalmente neutro eles se transformam ao acomodar os diferentes usos,
36 Evans, R. (1978). Figures, Doors and Passages, in Architectural Design 4/, pp.267 – 278.
atividades e o movimento das pessoas. Os edifícios de planta central do
Renascimento são variações desse ancestral padrão neutro encontrado
nas casas greco-romanas. A malha vem sendo através dos milênios um
natural gerador de diversidade.
O corpo e a malha
A relação entre ortogonalidade e o conceito mais geral de inteligibilidade
espacial merece atenção no contexto do presente argumento. Malhas são,
senso comum, reconhecidas como naturais provedores de orientação
espacial, naturais sistemas de referência. Coordenadas cartesianas são
um meio universal através do qual o homem é capaz de posicionar-se no
mundo físico e estão na base tanto do mais elementar mapa geográfico até
os mais sofisticados GPS. Um trivial exemplo de inteligibilidade espacial
dos padrões em grelha é dado por um observador deslocando-se ao longo
de uma rua que é atravessada por outras ruas em ângulo reto. A
percepção local de uma seqüência de esquinas assim configurada fornece
uma indicação sobre o padrão em malha desse entorno. A percepção local
opera como instrução para o reconhecimento do padrão global.37 Outro
exemplo banal é dado por um observador posicionado em um
compartimento tendo a sua frente paredes posicionadas em ângulo reto.
Ainda que esse não seja o caso há uma alta probabilidade que as paredes
nas costas desse observador descrevam padrão similar i.e. o observador
tende a concluir que está dentro de um compartimento retangular;
configurado por quatro paredes posicionadas em ângulos retos. Esses
exemplos não contêm julgamento de valor qualquer, porem, sugerem uma
relação instrumental entre ortogonalidade e a condição de inteligibilidade
espacial.
A ambição da arquitetura moderna de alcançar uma relação adequada
entre forma e função coincide e está sobreposta à ambição de alcançar
geometrias também adequadas; aquelas que sejam capazes de prover um
ambicionado padrão de uso e movimento. Esse objetivo pode ser buscado
pelo menos de dois modos diferentes. Um é através na canalização das
pessoas; a ‘promenade’ arquitetural. Outro é através da provisão de uma
estrutura espacial de referência que oriente o comportamento espacial das
pessoas. O movimento das pessoas no mundo parece ser em princípio
37 This concept is developed in Hillier, B. et al. Natural Movement in Environment and Planning B, volume 20, 1993, pp. 29 – 66.
naturalmente entrópico, ou seja, os corpos se moveriam aleatoriamente
sem a contenção arquitetônica que organiza o movimento. Isso tende a
ocorrer em diferentes escalas. Assim sendo, a arquitetura tende a ser por
definição ordenadora e, de certo modo, repressora. Diferentes graus de
restrição são introduzidos pelos objetos – barreiras – que atuam sobre o
movimento dos corpos no espaço. Nessa linha quanto mais neutra for a
arquitetura menos ela será um preventivo à ação livre das pessoas e
menor será o grau de violência – a violência espacial de Tschumi – que ela
irá impor à vida das pessoas. Por outro lado quanto mais a geometria dada
nas distribuições espaciais é complexa maior será a restrição imposta ao
movimento. Portanto pelo menos em teoria, quanto mais presente – ou
expressionista – for a organização espacial, mais limitadora ela tenderá a
ser ao movimento do(s) corpo(s). Na mão contrária as arquiteturas mais
neutras ou mais ausentes tendem a estabelecer apenas uma estrutura de
referência à vida espacial das pessoas.
No entanto, o partido em grelha não parece ser também uma garantia de
inteligibilidade espacial. Tanto a arquitetura moderna quanto a arquitetura
clássica fizeram, e tem feito, uso recorrente das grelhas em seus modos
de arranjo. E a promenade resultante é bastante contrastante se esses
dois modos de composição são comparados. Na arquitetura da
antiguidade a distribuição espacial tende a produzir em geral um padrão de
percursos claro e direto. A distribuição espacial é revelada de modo
explícito. Na arquitetura modernista, apesar da teoria em torno do passeio
arquitetônico, o padrão de percursos resultante é em geral mais complexo,
tortuoso e de difícil apreensão. A distribuição espacial é seguidamente não
explicitada. Na arquitetura moderna as distribuições espaciais em malha
freqüentemente configuram labirintos. Nessa linha um conhecido passeio
arquitetônico assim descrito por Colin Rowe é exemplar: ‘. . . no edifício da
Bauhaus enquanto se registra a apreciação mental tanto da planta quanto
da estrutura, o olho é confrontado com o perturbador problema do impacto
simultâneo de elementos amplamente dispersos. Um dominante elemento
central é eliminado; elementos subsidiários são por isso incapazes de
desempenhar um papel de apoio, e num estado de autonomia visual, eles
são dispostos em volta do vazio da ponte central que nem lhes fornece
orientação visual como um esquema consistente nem permite que eles
assumam independência como unidades autônomas . . . nessa estratégia
de perturbar, ao invés de fornecer prazer imediato ao olho, o elemento de
prazer da arquitetura moderna parece predominantemente enganar . . . um
esquema labiríntico é oferecido o qual frustra o olho ao intensificar o prazer
visual de episódios individuais’ 38. O passeio arquitetônico oferecido pela
distribuição espacial do edifício da Bauhaus mostra, na linha do argumento
ora perseguido, o modo como um padrão espacial em malha pode ser
fortemente expressionista e, sobretudo, um fator limitante à inteligibilidade
espacial.
Notas finais
As idéias acima apresentadas constituem uma incansável tentativa de
apresentar diferentes aspectos envolvendo o expressionismo e a
neutralidade em arquitetura. O principal objetivo é desmistificar a idéia de
que o uso de regularidades, e especialmente o uso de grelhas, seja um
fator limitante à criatividade em arquitetura. Procurou-se mostrar que a
grelha não é, em caso algum um instrumento projetual neutro e que de fato
ela pode ser, e freqüentemente é, um poderoso instrumento simbólico, e
expressionista, na atividade do desenho arquitetônico. O objetivo principal
aqui é o de encorajar a pesquisa sobre a potencialidade de padrões
espaciais em grelha como um modo efetivo de entrada no mundo da
arquitetura, especialmente os estudantes. Ao final, em contraponto, foi
também mostrado que o uso de grelhas não é uma garantia de que se
chegue a resultados seguros na obtenção de inteligibilidade espacial.
Nessa linha o caso do edifício da Bauhaus, estudado por Rowe, é
desconcertante. Finalmente há que reconhecer que o argumento
apresentado é de certo modo desestimulante ao uso de irregularidades e
configurações exóticas em arquitetura em geral. Há, no entanto, lugar para
tudo no presente contexto cultural e a proposição dada acima sugere
apenas que, em arquitetura, é sempre necessário que os primeiros passos
explorem, sintam o sabor e se habituem ao repertório dado, gratuitamente,
por uma tradição milenar.
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