geografia e as relações internacionais

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GEOGRAFIA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Professor Paulo Jonas Grando * 1. Introdução Este artigo discorre sobre conhecimentos em geografia que podem ser importantes para a formação intelectual dos estudantes e do profissional de relações internacionais (RI). Dado seu objeto de investigação, o espaço geográfico, a geografia contribui para auxiliar o processo de formação dos internacionalistas, pois o espaço se constitui num dos elementos quase sempre presentes na análise dos profissionais de RI, seja como meio, seja como teatro, seja como objetivo das ações (ARON, 2002). Decorrente deste intuito, o texto, a seguir, procura apresentar alguns elementos sobre a evolução das principais escolas desta área do conhecimento e também os principais conceitos com que a ciência geográfica procura tratar a sua especificidade, o estudo do espaço geográfico. Busca-se, ainda no tópico final, apresentar ao estudante de relações internacionais, algumas temáticas em que conhecimentos de geografia contribuem para seu processo de formação acadêmica. O trabalho não se aprofunda na discussão do debate conceitual sobre a complexidade epistemológica da conceituação utilizada. As fontes utilizadas cumprem esta função. Sua finalidade é, no espaço disponível, introduzir o diálogo entre dois campos de conhecimentos, que afirma-se: são complementares e, como ocorre em outras áreas do saber são interdependentes em muitos aspectos. * MSc, em geografia e professor da disciplina no curso de Relações Internacionais da Univali, campus de São José. E.mail: [email protected].

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Resumo feito pelo Profº Grando

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Page 1: Geografia e as Relações Internacionais

GEOGRAFIA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Professor Paulo Jonas Grando*

1. Introdução

Este artigo discorre sobre conhecimentos em geografia que podem ser importantes para

a formação intelectual dos estudantes e do profissional de relações internacionais (RI). Dado

seu objeto de investigação, o espaço geográfico, a geografia contribui para auxiliar o processo

de formação dos internacionalistas, pois o espaço se constitui num dos elementos quase

sempre presentes na análise dos profissionais de RI, seja como meio, seja como teatro, seja

como objetivo das ações (ARON, 2002). Decorrente deste intuito, o texto, a seguir, procura

apresentar alguns elementos sobre a evolução das principais escolas desta área do

conhecimento e também os principais conceitos com que a ciência geográfica procura tratar a

sua especificidade, o estudo do espaço geográfico. Busca-se, ainda no tópico final, apresentar

ao estudante de relações internacionais, algumas temáticas em que conhecimentos de

geografia contribuem para seu processo de formação acadêmica.

O trabalho não se aprofunda na discussão do debate conceitual sobre a complexidade

epistemológica da conceituação utilizada. As fontes utilizadas cumprem esta função. Sua

finalidade é, no espaço disponível, introduzir o diálogo entre dois campos de conhecimentos,

que afirma-se: são complementares e, como ocorre em outras áreas do saber são

interdependentes em muitos aspectos.

2. Breve retrospecto sobre a evolução da Geografia Moderna.

As raízes da geografia são muito remotas. Alguns chegam afirmar que a geografia tem

origem com os primeiros hominídeos, pois estes necessitavam, para sua sobrevivência,

dominar alguns conhecimentos fundamentais sobre o ambiente em que viviam. Contudo, este

conhecimento era apenas instrumental e pragmático. Tentativas de produzir um conhecimento

geográfico sistematizado aparecem na Grécia antiga com Heródoto que estudou o rio Nilo no

Egito. Ele procurou analisar a influências das enchentes no uso que as pessoas faziam do solo

para a prática da agricultura. Destaca-se ainda o trabalho de Ptolomeu, autor que produziu

uma das primeiras formulações do sistema planetário geocêntrico. Todavia, preocupações com

uma ciência geográfica, específica e autônoma, é produto da época moderna (ANDRADE,

1989).

* MSc, em geografia e professor da disciplina no curso de Relações Internacionais da Univali, campus de São José. E.mail: [email protected].

Page 2: Geografia e as Relações Internacionais

2.1. A Geografia Tradicional: Determinismo e Possibilismo.

No período moderno, a Geografia estabeleceu-se como ciência autônoma a partir dos

esforços, sobretudo, de pensadores alemães no fim do século XVIII. Merecem destaque

Immanuel Kant que ensinou Geografia em Koenisberg e elaborou “o primeiro sistema

filosófico capaz de definir o papel e o valor da geografia moderna” a partir de suas reflexões

sobre a questão do espaço (GOMES, 1996, p. 138). Outros alemães são deveras importantes.

Merecem destaque nomes como Alexandre von Humboldt (considerado o pai da geografia e o

produtor da primeira cosmografia de fôlego), Karl Ritter e Friederich Ratzel. Este autor

contribuiu para criar a visão de que a geografia explicava os fenômenos sob sua órbita de

investigação sob uma roupagem determinista, ou seja, o homem era produto do meio que

habitava (ANDRADE, 1989). Para Ratzel a noção de espaço vital foi essencial ao Estado

Nacional, pois a soberania de um estado estaria vinculada à gestão do espaço territorial do

próprio Estado. Essas noções propostas por Ratzel, cujas raízes estão na biologia

representariam, teoricamente, as necessidades territoriais de uma sociedade em função das

condições naturais, sócio-econômicas e tecnológicas que um determinado povo seria capaz de

alcançar conforme sua capacidade cultural de compreender o meio natural e de modificá-lo

fossem evoluindo.

Contrapondo-se à visão alemã, país que fazia da ciência geográfica uma filosofia do

“dever ser” na luta das suas elites para unificarem e construírem seu Estado Nacional,

despontava a geografia de matriz francesa. A Europa da época vivia sob o impacto dos

nacionalismos e do colonialismo, e opondo-se à visão alemã, a França também usaria a

geografia para justificar suas disputas políticas de poder no Velho Mundo. Naquele contexto,

a geografia adquiria colorações de discurso ideológico voltado para a legitimação do

imperialismo (conquista de novas terras e da dominação dos povos que as habitavam),

segundo o pensamento da época, baseado na visão da superioridade racial dos povos brancos

de origem européia (MAGNOLI, 1999).

No contexto daquela época, a polêmica entre o prussiano Friedrich Ratzel e o francês

Vidal de La Blache foi encarada como contraposição entre duas escolas do pensamento

geográfico que marcaram profundamente os caminhos trilhados pela disciplina. A geografia

de Ratzel, elaborada no curso do movimento de unificação nacional da Alemanha, procurava

enraizar o Estado e o território na própria natureza, ao mesmo tempo em que fazia do

expansionismo daquele Estado uma virtude da civilização e da cultura. Delineavam-se naquele

momento as fundações da geografia política de matriz determinista e, também, os argumentos

de ordem geográfica que o nazismo manipularia politicamente, mais tarde a partir dos

trabalhos de Ratzel e seus seguidores.

Page 3: Geografia e as Relações Internacionais

Por outro lado, a geografia proposta pelo francês Vital de La Blache pretendia ser a

antítese das políticas ratzelianas. O francês propunha uma geografia baseada em regras estritas

de “cientificidade”, extirpando a política e a ideologia que se consolidara na geografia de

matriz alemã. Para Moraes (2000), o avanço da Geografia Francesa, significou a

despolitização da reflexão geográfica, pois implicava em tratar de temas “perigosos e

inoportunos em face da perspectiva não ideológica” (Op. Citp. p. 19-20). Mas

contraditoriamente, na época, as disputas entre aqueles Estados apontavam para a importância

da competição política. Por exemplo, La Blache utilizou seus conhecimentos de geografia

atuando politicamente para justificar as reivindicações francesas de devolução da Alsácia e da

Lorena ocupadas pela Alemanha, assim como os interesses franceses no Amapá, polemizando

com o brasileiro Barão do Rio Branco. Assim, a geografia possibilista, proposta por La

Blache, destinava-se a sustentar uma cientificidade que não deixava de representar um

argumento de legitimação do colonialismo francês (MAGNOLI, 2001). Mesmo assim, sua

visão possibilista criou um novo modo de fazer geografia que representava uma ruptura com a

tradição alemã.

Partindo da visão proposta por Ratzel, sobre o estudo das influências do ambiente

sobre o homem, La Blache se preocupou em incorporar, nos seus estudos, o conjunto de

técnicas e utensílios que as sociedades utilizariam para transformar o ecúmeno. Para o autor

francês, a geografia teria a missão de explicar os lugares. Nesse sentido, La Blache criou e

desenvolveu o conceito de gênero de vida para explicar que a partir dos processos de evolução

cultural os grupos humanos seriam capazes de atuar sobre os ambientes e modificá-los.

(CLAVAL, 2001) Para La Blache, o gênero de vida representando o acervo de técnicas e

hábitos gerados pelo relacionamento entre grupos humanos e o meio é o centro de sua teoria

possibilista. Nesta visão, cada espaço apresentaria traços diferenciadores que lhe confeririam

uma singularidade. Decorrente desta visão, o progresso resultava do contato transformador

entre distintos gêneros de vida. O domínio da cultura permitia aos povos mais avançados

alcançar níveis crescentes de progresso e se imporem sobre “povos inferiores” . Dessa forma,

a geografia oferecia sua contribuição para explicar, no início do século XX, a atuação do

colonialismo europeu. Essa é, em grandes linhas, a visão possibilista proposta por La Blache

para contraditar a observação do alemão Friederich Ratzel de que as influências do ambiente

determinariam a vida das sociedades, ou seja o determinismo do ambiente condicionaria a

existência humana. Assim, para o francês, a visão possibilista decorre de que movido pelas

técnicas disponíveis, seu back ground cultural, “o homem age sobre seu meio, ao mesmo

tempo em que sofre sua ação” (GOMES, 1996, p. 200).

Apresentando uma explicação sobre a necessidade dos conhecimentos geográficos

terem surgido no período focalizado na Europa, Porto Gonçalves (1993) destaca que a ciência

geográfica foi fundada pela necessidade de demarcação dos territórios. Nesse sentido,

Page 4: Geografia e as Relações Internacionais

geografia significa etimologicamente grafar a terra (marcar, mapear, instituir territórios,

definir os limites territoriais dos Estados e gerar conhecimentos sobre o espaço). O autor

citado destaca que o geógrafo foi, ao mesmo tempo, parte e protagonista do processo de

reorganização espacial que caracterizou a organização societária centralizada espacial e

politicamente, primeiro no poder monárquico, depois na figura do Estado-Nação. Com o

surgimento do Estado Moderno, servos, camponeses e senhores perderam o poder de

determinar sua organização espacial que foi centralizada no poder dos Estados, a partir do

Tratado de Westfalia, quando se consagrou o princípio da soberania do Estado Moderno sobre

seu território, no século XVII. O autor continua e destaca que o poder dos Estados Nacionais

foi inicialmente ampliado pelas revoluções burguesas (Inglaterra-1688, França-1789, EUA-

1776) que reduziram as relações medievais de lealdade pessoal e de poder na escala do espaço

local, fortalecendo sua centralização na figura do Estado Territorial Moderno.

2. 2. A Geografia Quantitativa: Contribuições da escola norte americana

Decorrente do que foi apontado acima, pode-se observar que a geografia moderna,

inicialmente, foi uma construção das necessidades européias. Por outro lado a geografia norte

americana, mais preocupada com a busca de conhecimentos e informações sobre a “nova

terra”, pouco contribuiu para o debate epistemológico da disciplina nos seus primórdios.

Deste modo, o legado desta disciplina é predominantemente europeu. Mas, a partir da

contribuição de geógrafos europeus, a escola norte americana também se expandiu.

Inicialmente, os nortes americanos adotam a visão da escola determinista alemã, a qual

contribuiu para justificar a expansão territorial do país.

Contudo, em meados dos anos de 1950, com a vitória aliada na Segunda Guerra, a

escola norte americana de geografia produziu o que se denominou de geografia quantitativa.

Resultante, dos processos de planejamento estratégico, implementados pelo país durante a

guerra, a geografia norte americana incorporou um conjunto de técnicas estatísticas e

matemáticas a fim de possibilitar estratégias de planejamento territorial. A partir de um

elevado nível de abstração que considerava o espaço como homogêneo em todas as direções,

a escola quantitativa pressupunha um espaço relacional, entendido a partir da relação entre

objetos, onde haveria custos em tempo, energia e recursos para se vencer distâncias entre

objetos localizados em pontos diferentes do espaço. Refletindo segundo uma visão

economicista de custo-benefício, a geografia quantitativa, através do uso de matrizes

estatísticas e equações, procurava explicar a diferenciação espacial como resultado de ações e

mecanismos determinados pela distância entre diferentes localizações espaciais. As críticas

feitas a essa concepção de fazer geografia, é que ao privilegiar sempre um presente eterno não

são consideradas as contradições sociais e a história das transformações espaciais. Por outro

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lado, como meio de conhecimento sobre localizações espaciais, fluxos, hierarquia e

especialização funcional dos lugares constitui-se numa técnica avançada para processos de

planejamento e organização do espaço (LOBATO CORRÊA, 1995).

Observando as formulações teóricas propostas pela escola quantitativa é significativo

apontar que estas técnicas também foram utilizadas nas RI pela escola behaviorista, embora

com menor preponderância. Nas RI, buscava se trabalhar elementos de estatística e equações

para se produzir séries históricas matematizáveis sobre determinados comportamentos dos

Estados, opção que se mostrou de pouca eficiência prática. Por outro lado, observando a

aplicação das ferramentas propostas pela escola quantitativa de geografia, estas técnicas

podem ser necessárias à atuação dos profissionais de RI no caso destes se envolverem em

atividades práticas ou negociações que impliquem em estimar procedimentos que aproximem

lugares e/ou mercados. Seria o caso de negociações internacionais que se relacionem com

projetos comuns de infra-estruturas de transportes, energia, etc. Ou ainda pesquisas

diagnósticas ou aplicadas na área de logística internacional ou estratégias militares que

dependam de deslocamentos de tropas e materiais.

2.3. A Geografia Crítica e os Problemas do Subdesenvolvimento

A instalação de cursos de geografia em universidades da periferia, inicialmente

absorvendo as formulações teóricas produzidas nos países centrais, levou esta ciência,

gradualmente, a se preocupar com os problemas resultantes dos desníveis de desenvolvimento

entre os países. Assim, surgiu em meados dos anos de 1960, uma escola do pensamento

geográfico que procura explicar as diferenciações espaciais entre países desenvolvidos e

subdesenvolvidos, segundo observações oriundas do Marxismo e aportes da teoria da

dependência. Incorporando à análise, elementos da economia, das ciências sociais e da

política, a escola que foi dominada de Geografia Crítica viria a se constituir numa escola de

pensamento bastante influente, sobretudo nos países periféricos.

A geografia crítica teve grande receptividade nos países subdesenvolvidos e em alguns

locais do primeiro mundo. Os escritos de Marx exerceram influência sobre a geografia a partir

da idéia de que o capital, sobretudo na fase do capitalismo industrial, revolucionou as

condições produtivas e os relacionamentos sociais, constituindo-se numa influência

homogeneizante e centralizante, também sobre a dinâmica da organização espacial. Com isso,

os geógrafos adeptos da escola crítica absorvem a idéia de que, dado os processos de

colonização e desenvolvimento desiguais entre os países, resultado da penetração desigual do

capitalismo em cada espaço, explicar-se-iam as desigualdades dos processos de

desenvolvimento e das diferenças na organização espacial dos lugares. Para isso, introduziram

o conceito de divisão espacial do trabalho cuja asserção básica é que diferentes níveis e

Page 6: Geografia e as Relações Internacionais

técnicas de produção exigem diferentes qualidades de mão-de-obra e produzem diferentes

maneiras de organizar o processo produtivo, do qual derivaria organizações espaciais

diferenciadas.

Tal situação seria resultado de um processo histórico complexo que teria, pelo menos,

as seguintes características: a) O espaço foi reduzido a uma mercadoria qualquer e passou a

ser apropriado de forma desigual. Isto ocorre porque a sociedade capitalista é desigual e

organiza o espaço sob a lógica do capital, ou seja, sua função não é a sobrevivência humana e

sim produzir lucros. b) A revolução industrial acelerou o crescimento das cidades que

comandam o mundo moderno. Isso ocorreu pela necessidade de mão-de-obra, de mercados e

matérias primas, fator que estimulou a expansão de infra-estruturas, o crescimento urbano e o

êxodo rural. c) O capitalismo se instalou inicialmente nos países desenvolvidos onde ocorreu

a integração do território nacional visando a criação do mercado interno que viabilizasse a

geração de lucros e para isso, modificando o espaço pela construção de ferrovias, rodovias e

estradas de rodagem para facilitar a circulação de pessoas e mercadorias. Nas antigas

colônias, as atividades econômicas foram localizadas próximas ao litoral e a integração do

território e do mercado interno não foram estimuladas. Ocorreu apenas a produção de

matérias primas e de produtos agrícolas tropicais para os mercados externos, ao mesmo

tempo, que eram obrigadas a importar manufaturas. Com isso, o subdesenvolvimento foi

imposto de fora para dentro, devido ao controle externo do processo produtivo pelas

metrópoles. d) Atualmente, a partir do momento que o mundo entrou na era do capitalismo

baseado no poder das corporações multinacionais apoiadas por enormes estruturas de crédito

e poder, produz-se uma nova ordem espacial. Trata-se da nova ordem do capital, a que está

produzindo mais heterogeneidade: lugares que permitem a expansão dos lucros crescem

enquanto aqueles que necessitam de recursos para se desenvolver são abandonados. Desta

forma, o fenômeno da exclusão avança, é o caso da África e grande parte da América Latina.

No Brasil, a denominada Geografia Crítica é hegemônica e deriva, em grande medida,

dos esforços do professor Milton Santos. Em livros como “Espaço e Sociedade: ensaios

(1982); Por uma Geografia Nova (1986); Metamorfoses do Espaço Habitado (1988);

Pensando o Espaço do Homem (1992); Problemas Geográficos de um Mundo Novo (1995); A

Natureza do Espaço (1996) e O Brasil – Território e Sociedade no início do século XXI

(2003)” entre outros, este autor produziu um amplo e qualificado acervo teórico para se

pensar a realidade brasileira. E mais, a atuação profissional deste professor contribuiu com a

organização de obras coletivas, artigos, ensaios e como orientador de novos mestres e

doutores, Milton Santos contribuiu para colocar a geografia brasileira entre as mais

importantes do mundo.

Page 7: Geografia e as Relações Internacionais

Por exemplo, no livro “A natureza do espaço” (1996, p. 187-197), a partir de suas

pesquisas sobre a importância da “tecnociência”, o professor Milton Santos propôs uma nova

maneira de periodizar a evolução das transformações espaciais. Pela observação das

transformações na sociedade, nas técnicas, no espaço e na cultura, ele apresenta uma nova

proposta teórica, propondo uma periodização em três momentos, denominados de Meio

Natural, Meio Técnico – científico – informacional. Essa proposta foi utilizada em sua última

obra (O Brasil – Território e Sociedade no início do século XXI de 2003), concluída no fim da

vida, na qual o autor nos deixou um enorme legado sobre os processos de construção do

Território Brasileiro.

A importância da obra citada é que ela permite o entendimento do que é Brasil a partir

da idéia que na contemporaneidade o espaço e a sociedade são transformadas pela técnica,

pela ciência e pela informação, meios e vetores de existência de boa parte da humanidade e

dos processos sociais e econômicos. Como as técnicas são, economicamente, cada vez mais

necessárias, os elementos técnico-informacionais que surgem como informação, constituem a

energia principal da artificialização do meio natural. Com isso, as transformações espaciais se

subordinam à ciência, à tecnologia e à informação, sob a égide do mercado se globaliza. Desta

forma, os territórios estão sendo equipados para facilitar a circulação material e imaterial em

nível global e o meio natural tende a recuar, passando a dominar, espacialmente, um ambiente

artificial. Ao mesmo tempo em que o discurso ambiental e preservacionista se agudiza, a

cultura tende a ser virtual, dada a massa de informações produzidas e difundidas por atores

hegemônicos dos centros de produção, onde são criadas e difundidas novas técnicas e as

decisões mundiais.

Embora este processo não aconteça instantaneamente em todas partes, o conhecimento

passa atuar como recurso fundamental das transformações sócio-espaciais. As porções

instrumentalizadas pela ciência e pela técnica são capazes de oferecer uma melhor relação

produto por investimento em relação àquelas que não detém esse recurso. Isso gera uma nova

seletividade espacial e sócio-econômica entre os lugares. A lucratividade dos investimentos

capitalistas será maior e constante, onde os recursos técnicos-científicos do conhecimento

estiverem disponíveis. Com isso, os atores hegemônicos, principalmente transnacionais,

armados do arsenal da ciência, da tecnologia e da informação atuam sobre todos os territórios

e, utilizando o arsenal tecnológico, disposto sobre os espaços nacionais, tendem a criar uma

erosão da noção de soberania nacional. Desta forma, a velocidade das transformações atuais

que o meio-técnico-científico-informacional imprime sobre os territórios faz com que as

diferenciações espaciais, culturais, históricas, sociais e econômicas, circunscritas aos espaços

geográficos, sofram rápidas mudanças de conteúdo e sejam incorporadas e redefinidas no

contexto global sob novos arranjos.

Page 8: Geografia e as Relações Internacionais

Os aspectos apontados por Milton Santos (1996) nos permitem entender melhor a

lógica que comanda a ordem espacial das coisas, os quais também são destacados por

GOMES (1996). Para esse autor, a geografia apresenta o compromisso de produzir uma

cosmovisão sendo entendida, pelo autor, como a compreensão das imagens mentais que

constroem um ordenamento ou coerência espacial em cada época a partir dos instrumentos

conceituais disponíveis. Desta forma. o desenvolvimento da reflexão geográfica na busca da

“ordem espacial” que preside os fenômenos geográficos implica em se pensar os sentidos e

significados do seu objeto de estudo: o espaço geográfico, assunto tratado a seguir.

3. Espaço: o conceito central para pensar a geografia.

Da leitura do item anterior, observa-se que a geografia se torna ciência a partir do ato

de estabelecer limites, colocar fronteiras, fundar objetos espaciais, orientá-los e de pensar

estas ações dentro de um quadro lógico de se refletir sobre esta ordem e seu sentido. Desta

forma, o objeto da geografia é o espaço: sua arrumação, a disposição física das coisas e das

praticas sociais. Essa discussão importa ao profissional de RI, pois ao utilizar conhecimentos

desta ciência é necessário compreender que ao pensar e utilizar o conceito de espaço e noções

auxiliares, a geografia pensa este conceitos com significados distintos, dependendo das

escolas de pensamento que os formularam.

Na visão crítica, adotada neste trabalho, a geografia é definida como ciência que se

preocupa em estudar as relações entre os processos históricos, sociais, políticos e econômicos

que regulam a formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza, através do

estudo do espaço geográfico. A geografia pode ser, dessa forma, entendida como uma

“gramática do mundo”. O espaço geográfico surge como um texto a ser decifrado e

interpretado, que traz informações essenciais sobre a sociedade que os produziu. O espaço

geográfico é, historicamente, produzido pela sociedade segundo aspectos sociais e culturais,

situados além e através das perspectivas econômica e política, e que imprimem seus valores

no processo. Do espaço geográfico fazem parte, ainda os fenômenos que não são

imediatamente observáveis pelos sentidos: os fluxos de matéria, energia e informação, mas

que lhe dão conteúdo. (MAGNOLI & SCALZARETTO, 2001)

Gomes (1997) contribui para esta discussão ao apontar que a análise geográfica deve

examinar o espaço como um texto, onde formas são portadoras de significados e sentidos: é

uma linguagem, que se expressa na maneira como as coisas estão postas no espaço, pelo seu

sentido, sua coerência e seus elementos. Gomes vai além e aponta que esse saber (o

conhecimento geográfico) não se resume ao inventário das coisas sobre o espaço, é necessário

que sejam construídos os instrumentos analíticos para isso. Na busca da “ordem espacial” dos

Page 9: Geografia e as Relações Internacionais

fenômenos geográficos, a lógica que se busca depende dos princípios que presidem as causas

e seus significados, estes perpassaram todas as escolas do pensamento geográfico das quais

receberam diversas influências. Assim, nesse processo implica em buscar, continuamente,

respostas para a seguinte questão, proposta Gomes (1997): todo fenômeno geográfico

implicaria descobrir o por que do onde?

Para dar conta deste questionamento é necessário que se construa as ferramentas

conceituais para se pensar o objeto. Neste sentido, Lobato Corrêa (1995) aponta que o objeto

de estudo da geografia é a sociedade através da sua dimensão espacial. Empiricamente, isto é

objetivado via cinco conceitos-chave: paisagem, região, espaço, lugar e território. Estes

conceitos guardam entre si grande parentesco, pois todos se referem a ação humana

modelando a superfície terrestre.

Cada conceito apontado por Corrêa exprime a escala espacial e analítica da amplitude de

fenômeno em estudo. Contudo, esses conceitos possuem várias acepções (significados)

segundo as diversas correntes de pensamento (formas e maneiras de explicar a realidade e que

ocorrem em função da evolução da ciência ou da ideologia de um grupo de cientistas). A

partir disso e com base no texto de Lobato Corrêa (1995), procura-se mostrar como cada

escola tratou esta discussão.

A geografia tradicional, escola que incorpora a matriz alemã e francesa e que

predominou desde a segunda metade do século XIX, período de fundação da geografia como

ciência, até 1950, apresenta uma visão de mundo historicista e positivista. Esta escola

privilegiou os conceitos de paisagem e região e, em torno deles construiu uma visão de

mundo que tem como noções-chave as idéias de região natural, região paisagem, paisagem

cultural, gênero de vida e diferenciação de áreas.

Ainda segundo Lobato, o conceito de espaço aparece de forma marginal estando

presente em autores como Ratzel. Com raízes na biologia, ele apresenta a noção de espaço

vital e de território. O espaço vital representaria as necessidades territoriais de uma sociedade

em função das condições naturais, sócio-econômicas e tecnológicas, e atuaria como a base

indispensável à vida humana. Já a noção de território, quando apropriado pela ação política de

uma sociedade, se transforma na dimensão espacial do Estado soberano, seu território, sua

base espacial. Outro autor a discutir o conceito de espaço é o Norte Americano Richard

Hartshorne. Este autor trabalhava com a noção de espaço absoluto, ou seja, o espaço seria o

receptáculo de coisas e era empregado no sentido de diferenciação de áreas. Para Hartshorne

cada área é única e a geografia deveria identificá-las, estudá-las, descrevê-las e analisá-las. É

uma visão absoluta: o local onde as coisas se encontram.

Na escola quantitativa, o espaço aparece como conceito-chave para a geografia sendo

considerado sob duas formas que levam em conta a distância, a orientação e a conexão. A

Page 10: Geografia e as Relações Internacionais

primeira implica na noção de planície isotrópica. Partindo da teoria do valor-utilidade e da lei

dos rendimentos decrescentes, elementos fundamentais da economia neoclássica, esta é uma

construção teórica que parte de uma superfície uniforme em que a diferenciação espacial

resultaria de ações e mecanismos econômicos determinados pela distância entre diferentes

localizações espaciais. Essa noção de espaço é econômica e relacional, ou seja, o espaço é

entendido a partir da relação entre objetos, havendo um custo em tempo, energia e recursos

para se vencer distâncias entre objetos localizados em pontos diferentes do espaço. A segunda

noção de espaço é pensada sob a noção de representações matriciais, aspecto que implicou na

matematização da geografia através do uso de matrizes estatísticas e equações.

As críticas que os geógrafos fazem a essa concepção de espaço, é que ao privilegiar

sempre um presente eterno as contradições sociais e a história das transformações espaciais

não são consideradas. Mas, por outro lado, como meio de conhecimento sobre localizações

espaciais, fluxos, hierarquia e especialização funcional dos lugares constitui-se numa técnica

avançada para processos de planejamento e organização do espaço.

O conceito de espaço se torna central na geografia crítica (pós 1970). Sua interpretação

das mudanças espaciais, das contradições sociais, econômicas, históricas e culturais que

afetam as diferentes sociedades e a maior necessidade de controlar os processos de produção

do espaço geográfico em todos os níveis trouxe novos significados para o conceito de espaço

geográfico. O espaço passa a ser considerado como o local da reprodução das relações sociais

de produção, desempenhando um papel decisivo na existência e manutenção de todas as

sociedades. Nesta visão não é possível entender uma formação sócio-econômica sem recorrer

ao espaço ocupado e produzido por uma dada sociedade. Uma sociedade só se torna concreta

através do espaço que ela produz e por outro lado, para entender o espaço produzido por uma

determinada sociedade, é necessário compreender como essa mesma sociedade produz seu

espaço geográfico e se reproduz coletivamente. Isso ocorre porque o espaço organizado pelo

homem condiciona a existência e a reprodução social de cada sociedade em função da sua

organização tecnológica, social e cultural.

Na geografia humanista e cultural (pós 1970), corrente calcada nas ciências do

significado como a fenomenologia e o existencialismo e de matriz lógico-positivista é

retomado o viés historicista. Assentada na subjetividade, na intuição e na contigência social,

que privilegia o singular e não o universal, os conceitos de paisagem e região são

revalorizados e o de lugar passa a ser o conceito-chave. Isso é pensado, porque as pessoas

produzem seu espaço no lugar onde vivem e trabalham... Já, o conceito de espaço tem o

significado de espaço vivido. Este enfoque destaca que cada ator social constrói sua relação

com o espaço geográfico de maneiras diferentes durante sua vida cotidiana. Nesta escola, o

lugar se manifesta diferentemente, segundo a vivência e percepção do espaço vivido por cada

ser humano.

Page 11: Geografia e as Relações Internacionais

Assim, esta escola entende que para compreender a dinâmica e o funcionamento do

espaço geográfico, devem ser considerados os sentimentos de um povo ou grupo social

sempre partindo da sua experiência sobre espaço ocupado. Nesse sentido, existiriam vários

tipos de espaço num mesmo lugar: o espaço pessoal, o grupal, o ritual.... Por exemplo, no

espaço vivido das sociedades industriais, a técnica elimina as dificuldades impostas pelo

ambiente e a distância é medida em unidades quilométricas, neutras em função do tempo. Nas

sociedades tradicionais é diferente: espaço e tempo aparecem de forma descontínuas e com

cortes brutais. O espaço seria marcado por três concepções de distância: a estrutural que

amplia ou reduz distâncias entre lugares diferentes; a afetiva ligada ao sentido de

pertencimento a um mesmo grupo étnico e a distância ecológica, relacionada à dinâmica do

meio ambiente.

Na atualidade, a ampliação dos espaços organizados segundo a lógica capitalista tende

a minimizar essas distinções na medida que novas práticas sócio-espaciais são criadas e

originam espaços vividos dotados de atributos da modernidade (LOBATO CORRÊA, 1995).

2.4. Observações sobre a maneira de se fazer geografia

Este tópico procura destacar como os geógrafos atuam ao produzir conhecimentos que

serão definidos como geografia, ou seja, como este profissional raciocina para pensar sua

atuação profissional. Tendo por base o texto de Gomes (1997), relata-se a seguir algumas das

principais maneiras como os geógrafos atuaram e atuam para produzir o conhecimento dito

geográfico.

Inicialmente, destaca-se a idéia de geografia como ciência de síntese. Muito utilizado

pela geografia tradicional e pouco aplicado na atualidade, esse procedimento buscava

recuperar as grandes cosmologias do passado, segundo princípios que congregam o

conhecimento a partir de grandes matrizes de reflexão, capazes de explicar o todo e a parte, o

detalhe e o global, indo do simples ao complexo. Essa opção metodológica implica na opção

de localizar os fenômenos singulares e descrevê-los sem mediação da teoria, principalmente a

partir do “método regional” (empirismo). Esta forma de fazer geografia está bastante presente

em almanaques, enciclopédias e revistas geográficas onde o inédito, o diferente, ou o singular

são ressaltados, juntamente com um conjunto de informações básicas sobre população, tipo de

produtos cultivados, industrias e dados estatísticos.

A geografia como ciência do empírico busca definir os fenômenos que ocorrem sobre a

superfície da terra segundo a idéia de mundo máquina, a partir dos princípios de equilíbrio e

do organicismo e pela inter-relação dos elementos físicos e humanos, via recortes da

superfície como a região, a paisagem, a cidade. Sua descrição implica colocar em relevo os

Page 12: Geografia e as Relações Internacionais

fenômenos físicos e humanos que estruturam o espaço e sintetizar o processo. É um

procedimento muito usado para construir os mapas físicos onde são expostas, em linhas

gerais, as principais características do terreno.

A geografia pensada como ciência encarregada da classificação morfológica se traduz

em outra forma de se produzir conhecimento geográfico. Decorrente do conhecimento

produzido sem mediação da teoria, a generalização das classificações e dos tipos ideais

implica na transformação das formas espaciais em um objeto do conhecimento em si mesmo:

a “ilusão da forma” segundo o método da descrição. Esse procedimento foi muito usado para

fazer classificação dos aspectos que a natureza apresenta num dado recorte territorial. Por

exemplo, as formas de relevo ou os tipos de cultivos, existentes no território brasileiro e que

os alunos precisam decorar nas escolas fundamentais e secundárias.

Nascido nos anos 50 com a escola quantitativa, o objetivismo estatístico também adota

os aspectos visíveis da forma. Segundo esta visão, a forma apresentaria expressão espacial

passível de ser cartografada a partir de categorias como localização e distância. A critica é que

a preocupação, apenas, com a forma do fenômeno geográfico não pode dar conta dos

fenômenos, significados e práticas sócio-culturais que a própria forma encerra. Com isso, a

forma não pode ser pensada como objeto epistemológico, pois esta não é questionada em

relação com seus usos e significados. Como já apontado, é utilizada pragmaticamente para

fins de diagnósticos e planejamento para organizar a variável espacial a fim de reduzir custos

e maximizar benefícios, como o traçado de uma estrada ou ferrovia que ligaria dois ou mais

pontos de produção e consumo, por exemplo.

A Geografia como ciência da natureza parte de reflexões sobre a integração isonômica

entre a natureza (geografia física) e o humano (geografia humana) produzindo a síntese a

partir do discurso das ciências naturais. Seria uma revitalização da relação homem (enquanto

espécie) e meio. Gomes, crítica a objetividade positivista que buscava construir a síntese entre

aspectos físicos e sociais. Para o autor, sua complementaridade, mantida pela aproximação da

matemática e das ciências naturais, seria “indemonstrável”, pois os objetivos, os instrumentos,

as dinâmicas da sociedade e da natureza não são as mesmas. É encontrada, sobretudo, nos

livros didáticos mais antigos, onde numa parte da obra se explica a atuação do homem sobre o

meio e noutra a dinâmica dos elementos da natureza. Como a junção destes dois elementos é

difícil de ser feito na prática, eles aparecem em partes isoladas, pois cada qual tem uma lógica

de atuação e comportamentos diferentes.

A geografia como ciência da causalidade histórica observa que os fenômenos

geográficos poderiam ser explicados pela reconstrução do passado a partir de marcos

fundamentais e nexos causais que encadeariam os eventos. Ocorre que o verdadeiro nexo

causal se situa entre o presente a ser explicado e a reconstituição dos fatos que selecionamos

para dar o sentido. O recuo temporal depende da reconstituição que se faz, pois é possível

Page 13: Geografia e as Relações Internacionais

fazer diferentes leituras ao se resgatar o passado. A reconstrução dos fatos, devido as

diferentes narrativas produzidas, não apresenta objetividade necessária para explicar os

fenômenos. Este tipo de procedimento é bastante utilizado para se compreender a dinâmica

histórica de um dado espaço como em processos de planejamento e gestão do território.

Após a apresentação, simplificada, de como os geógrafos atuam, apontam-se a seguir

os princípios fundamentais que este profissional aplica para estudar seu objeto de estudo. A

idéia de princípios implica em observar que cada fenômeno apresentaria uma ou várias

origens ou causas primárias que predominariam na busca das explicações de dado fenômeno.

Portanto, para responder a questão sobre o porque do onde, um estudo geográfico iniciaria

elencando alguns princípios fundamentais.

Entre aqueles que os geógrafos deveriam aplicar, segundo Manuel Correia de Andrade

(1989) destacam-se: a) Princípio da extensão: usado para localizar e delimitar espacialmente

todo fenômeno geográfico. b) Princípio da analogia: aplicado para estabelecer as semelhanças

e diferenças entre fenômenos estudados e os que ocorrem em outros lugares.c) Princípio da

causalidade: usado para identificar e esclarecer as causas que geraram o fenômeno. d)

Princípio da conexidade: como vários fatores respondem pela ocorrência de um dado

fenômeno geográfico, ao se buscar as causas deve-se atentar que estas resultam de ações

interdependentes, seja por parte do ser humano seja da natureza ou outra. e) Princípio da

atividade: como o espaço geográfico está em permanente transformação, deve-se atentar para

o caráter dinâmico dos processos espaciais.

Após, apresentar e discutir as principais questões sobre o objeto, método, limites e

importância do conhecimento geográfico, Gomes (1997) destaca que estas discussões têm

sido recorrentes e são bastante positivas. Isso fez com que a geografia tivesse se mantida

atenta a sua especificidade e permitiu aos geógrafos participar dos debates acadêmicos dentro

de recortes temáticos cada vez mais amplos como o que esta sendo proposto neste trabalho.

Desta forma, preocupada com a maneira como se constrói o conhecimento na sua área de

especialidade, a geografia tenta contribuir no processo de explicar a dimensão espacial da

humanidade.

4. Conhecimentos em geografia e o profissional de Relações Internacionais

Decorrente destas observações iniciais sobre a evolução da geografia, esta terceira

parte do texto trata dos conteúdos em geografia que seriam necessários aos profissionais de

RI. Para isso, tomou-se como referência o edital do concurso de 2003, do instituto Rio

Branco, órgão encarregado pelo Estado para atuar na formação dos diplomatas brasileiros. O

documento apresenta em seus programas de ingresso à carreira diplomática, os conhecimentos

necessários em Geografia que os futuros candidatos precisam dominar. Os programas

Page 14: Geografia e as Relações Internacionais

destacam como campo de reflexão da Geografia a relação entre Sociedade e Espaço, e desta

matriz epistemológica derivam uma série de conhecimentos envolvendo o conceito de espaço.

A partir dos conteúdos solicitados pelo Instituto Rio Brando, aborda-se nos parágrafos

seguintes os principais conhecimentos em geografia que os graduandos de RI precisam

dominar.

4.1. Geografia Política e Relações Internacionais

Na área de geografia Política são solicitados conhecimentos para o especialista em RI

trabalhar as relações entre espaço e poder. Um rápido apanhado em livros clássicos mostra

isso. Dizia Raymond Aron no célebre clássico “Paz e Guerra entre as Nações” (2002, p. 254)

que “o espaço pode ser considerado como meio, teatro e objetivo (motivo) da política

externa” dos Estados. Nesta obra o autor citado destaca ainda que “a terra não deixou de

constituir motivo de disputa entre as coletividades”. No mesmo sentido outro livro clássico,

“A Geografia serve antes de mais nada para fazer a Guerra”, escrito pelo francês Yves

Lacoste, sustenta que a geografia serve e serviu, para preparar, sustentar e legitimar a

expansão territorial e os empreendimentos imperiais, atuando como instrumento intelectual

para o domínio sobre o espaço e, portanto, para o gerenciamento do território (espaço) pelos

Estados e de suporte nas operações bélico-militares.

Paralelamente, esta ciência serve às estratégias empresariais, que envolvem decisões

de localização e integração de fluxos no espaço globalizado, mas recortado por fronteiras

nacionais. Neste sentido, nos alerta Moraes (2000, p.22): “as Relações Internacionais

contemporâneas e a chamada globalização pressupõem a existência de Estados e de países, e

estes tem por pressuposto a delimitação de espaços em cujos contornos vivem seus habitantes

[...] expressando-se e relacionado-se através de instituições em sua maioria originárias e/ou

circunscritas a cada território estabelecido.” Estes exemplos mostram a necessidade de se

dominar conceitos como espaço e território e não apenas em relação a sua significação, mas

também em relação a sua operacionalização empírica.

As observações de Moraes são importantes e foram trabalhadas também por

MAGNOLI (1999). Para este autor, o conceito de território está ligado ao de fronteiras

políticas, e estas são legitimadas por Tratados internacionais. O Estado nacional define-se pelo

domínio que exerce sobre o território. O pensamento geográfico desempenhou funções

cruciais na cristalização dessa identidade entre nação e território e gerou mitos territoriais que

formaram os arcabouços ideológicos do nacionalismo contemporâneo.

O território é o espaço delimitado por fronteiras, sobre o qual se exerce a soberania do

poder político, ou seja, o espaço político (território) está ligado ao poder do Estado que exerce

o poder de controle, utilizando-se de meios democráticos ou autoritários, em nome da nação.

Page 15: Geografia e as Relações Internacionais

É da geografia política que se origina o conceito de território, aspecto que Ratzel apontou com

propriedade. Trata-se de uma dimensão especial do espaço geográfico que expressa a vigência

de um conjunto de leis e da legitimidade fundada pelo consentimento ou pela força. O

território nacional expressa, ainda, o patrimônio da nação, elaborado ao longo da sua história e

de suas lutas. No mundo contemporâneo, a nação e o território estão subordinados à soberania

do Estado. (MAGNOLI, 2002).

O território é uma construção social e histórica, um produto de opções políticas e

estratégias dos Estados e as fronteiras constituem as linhas divisórias entre soberanias onde se

criam verdadeiros espaços fronteiriços. Nesse movimento, as linhas de fronteira são

estabelecidas através de um processo que envolve, sua definição, delimitação e, depois, a sua

demarcação sobre o terreno. Mas o controle político das linhas de fronteiras envolve ações do

Estado nos espaços contíguos a elas, gerando as faixas de fronteira (MAGNOLI, 1999). Esse

processo exige além dos conhecimentos de história, direito e geografia, a atuação do

profissional de relações internacionais, pois a definição e a delimitação das linhas de fronteiras

dependem do trabalho deste profissional para negociar os tratados que irão definir

concretamente onde o como se dará a demarcação. Nesse mister, a história do Barão do Rio

Branco, no processo de demarcação das fronteiras brasileiras, e dos técnicos com que se

cercou ilustraria o que estamos destacando.

4.2. Geografia histórica e Relações Internacionais

Outro tema importante destacado pelo Instituto Rio Branco trata das teorias e conceitos

da Geografia Histórica. Sua importância está ligada aos conteúdos para se trabalhar as

transformações que o espaço geográfico e os territórios vão sofrendo com o passar do tempo.

Por exemplo, como tratar do processo de formação territorial de um país sem recorrer às

informações disponibilizadas pela geografia e pela história? Como entender um processo de

transformação econômica que gera um sem número de mudanças espaciais, num entorno mais

ou menos vasto, sem observar seus processos geradores, construídos ao longo do tempo. O

planejamento urbano, por exemplo, depende da compreensão da dinâmica histórica que

produziu determinada concentração de pessoas, de atividades econômicas, das dinâmicas

sociais internas e das relações de poder, entre outras e, é óbvio, da dinâmica dos elementos da

natureza que são potencializadas na área do sítio urbano e suas adjacências.

As paisagens são qualificadas pela história e os seus atributos são conferidos pela

atividade transformadora dos homens organizados em sociedade. As circunstâncias

econômicas e políticas, as técnicas e as idéias que envolvem essa atividade humana

transferem-se para o espaço transformado e podem ser observadas nas construções que o ser

humano produz. Nesse percurso de produção do espaço geográfico, a natureza original e a

Page 16: Geografia e as Relações Internacionais

herança das gerações anteriores funcionam como suporte, limitação objetiva e recurso para a

geração presente.

4.3. Geografia cultural e Relações Internacionais

Outro ponto, também solicitado pelo edital do Rio Branco, está relacionado com a

dimensão cultural e a representação que cada sociedade faz de si própria. Muitos dos

processos que geram transformações espaciais tem origem nas diferenças culturais de cada

povo. Desta forma, como compreender a organização de um dado espaço sem atentar para a

forma como cada povo produz sua cultura e dela deriva ou adota as técnicas que são utilizadas

nesta função? Isso implica que os alunos de RI, conheçam os conteúdos sobre espaço e

representação tratados pelas teorias e conceitos da Geografia Cultural. Deve-se atentar para

aspectos como a maneira de produzir e consumir e como estas atividades são estruturadas, não

apenas pelo uso da técnica, mas como culturalmente as pessoas se relacionam com a técnica,

com os ambientes, suas relações sociais, barreiras culturais que implementam e outros

aspectos. Por exemplo, como se relacionar com japoneses, chineses, árabes? Para que a

aproximação seja passível de sucesso é necessário entender os códigos culturais e também

como esta relação se dá internamente entre os membros daquela própria sociedade e que tipos

de imagem fazem de outros povos.

Na contemporaneidade, as migrações internas e internacionais motivadas por diferentes

motivos, a integração econômica do espaço nacional, a globalização e a difusão dos meios

modernos de comunicações romperam a segmentação cultural dos lugares e das regiões. Esses

fenômenos integradores tendem a enriquecer culturalmente todas sociedades. Eles também,

por outro lado, amplificaram preconceitos e discriminações. Uma das funções da geografia

consiste em promover o reconhecimento do valor intrínseco das manifestações culturais

diversas do país, e compreender sem preconceitos aquelas produzidas por outros povos, de

forma a combater preconceitos e discriminações. Cultura é, numa situação análoga, cultura

material. Nesse sentido as diversidades das atividades econômicas e das paisagens socialmente

construídas sintetizam a produção de diferentes culturas materiais sobrepostas aos aos

ambientes naturais transformados pelo trabalho de gerações.

4.4. A Relação Sociedade/natureza na produção do espaço Geográfico

As teorias geográficas da relação sociedade-natureza são outro ponto destacado pelo

referido instituto. O assunto é extenso e os conteúdos do Instituto Rio Branco abordam essa

discussão de maneira ampla: Os temas seguintes retirados do Edital do Rio Branco dão uma

boa idéia disso: a questão ambiental no Brasil e o desenvolvimento sustentável; meio

Page 17: Geografia e as Relações Internacionais

ambiente e políticas de ocupação do território, degradação dos ecossistemas brasileiros, meio

ambiente urbano e rural. Como se vê a abordagem é ampla...

Os conteúdos necessários estão ligados à forma com que as diferentes sociedades

imprimem suas marcas aos ambientes naturais ou construídos e aos procedimentos para

transformar os ambientes, explorar e utilizar os recursos naturais. Essa temática é atualmente

significativa para as Relações Internacionais, haja vista as discussões e protestos sociais, de

grupos ambientalistas e até de Estados pela recusa de alguns países não participarem nos

acordos que culminaram no protocolo de Kioto. Nesta temática é importante ter em mente que

o ser humano vai absorvendo os estímulos que advém do ambiente natural e do ambiente

social, ambos em progressiva evolução e transformação.

De acordo com o geógrafo Porto Gonçalves (1998), toda sociedade cria, inventa e

institui significados do que seja natureza. O primeiro marco evolutivo da história da

humanidade foi a revolução neolítica, momento em que o homem passou da coleta para

agricultura, iniciando a luta para dominar a natureza, tornando-se sedentário. Para o autor

citado, dominar a natureza é dominar a inconstância, o imprevisível; é dominar o instinto e as

paixões humanas que nos retiram do estado de natureza. O antropocentrismo estimulou o

sentido prático-utilitarista da natureza e este não pode ser desvinculado da estrutura

econômica erigida para dominá-la. O século atual é o triunfo deste paradigma, com a ciência e

a técnica adquirindo maior importância na vida humana e a natureza passando a ser vista

como um objeto a ser possuído e dominado. A ciência reflete estes aspectos erigindo áreas do

conhecimento para compreender e entender o homem e a natureza separadamente. Para

entender o homem surgem conhecimentos destinados a explicar as relações, ações e

contradições que os indivíduos produzem em sociedade, enquanto as ciências da natureza

estudam o homem como um ser biológico. Desse aspecto metodológico que busca estudar o

homem e a natureza, resulta um conhecimento dicotomizado e parcial, pois ao mesmo tempo

em que o homem é um ser social é também um ser natural.

O parágrafo anterior foi, intencionalmente, colocado para que se atente para a

importância deste debate e a complexidade da temática. Neste assunto, a interdisciplinaridade

se destaca, pois envolve questões complexas como as relações de trabalho e suas contradições

na maneira como os grupos humanos se relacionam com a natureza em diferentes lugares etc.

O domínio destes conhecimentos é importante, pois como já foi apontado, essa discussão está

na pauta dos grandes debates internacionais. Por exemplo, os acordos que surgirem como no

caso dos créditos sobre a redução de emissões que causam o efeito estufa gera reflexos no

Brasil. Ainda, têm-se as discussões sobre a da proteção na camada de ozônio contra os

malefícios causados pelos raios solares, a poluição dos oceanos, dos rios, desflorestamentos,

etc.

Page 18: Geografia e as Relações Internacionais

4.5. Geografia Econômica e Relações internacionais

O Instituto Rio Branco também se preocupou com os conteúdos de geografia

econômica. Nesta área trabalha-se a relação entre espaço e valor buscando, com isso, a

compreensão de como estas duas categorias se inter-relacionam. De acordo com as idéias

apresentadas por Rui Moreira uma das interpretações possíveis nesta relação aponta para a

seguinte idéia: as atividades produtivas necessárias à sobrevivência humana significam a

alteração da natureza. Conforme esta vai sendo modificada, humanizada, as sociedades vão

impondo ao espaço as suas características que refletem, em parte, as leis econômicas que

organizam uma dada sociedade.

A evolução dos sistemas econômicos e principalmente com o advento do capitalismo

que surgiu nas cidades e lentamente evoluiu na Europa a partir do séc. XIII, gerou-se uma

série de contínuas transformações no modo de se produzir os bens. Esse processo transformou

o próprio espaço geográfico e alterou as relações do ser humano com os ambientes naturais

numa dinâmica mais ampla do que acorria em sistemas sócio-econômicos anteriores. Por

exemplo, com a libertação do domínio feudal e a eliminação da servidão, o estabelecimento

de uma classe de comerciantes e banqueiros preparou o terreno para a Revolução Comercial,

no séc. XVI. No período anterior, o poder econômico e a vida social eram restritos ao campo

e ao feudo, estrutura social e produtiva que apresentava uma organização espacial particular:

características locais e menor alteração no ambiente natural.

Mas outra evolução, a Revolução Industrial no final do séc. XVIII, que teve por palco

a área urbana alterando o modo de produção, modificou ainda mais os processos produtivos.

Até então os instrumentos de produção eram propriedade dos artesões. Com a expansão da

manufatura, foi inserida a divisão do trabalho e a produção econômica foi reduzida a um

conjunto de funções interdependentes sob uma nova lógica de relações sociais, o

assalariamento. Nesse processo, não era necessário um longo aprendizado anterior, pois as

pessoas eram adestradas para fazerem apenas uma parcela do produto, portanto diferente do

que ocorria no processo artesanal. Esse processo separou o trabalhador das condições de

produção e o subordinou ao capital. Surge o fabricante, cuja meta é a valorização do capital e,

para isso, a aplicação de novas técnicas tende a proporcionar lucros crescentes, ao mesmo

tempo os ambientes sofreram maior alteração, tanto de forma como na utilização e consumo

de recursos naturais. Este processo foi evoluiu conforme a industrialização se expandia

vertical e horizontalmente.

Como resultado desse processo, a indústria exige em sua proximidade um grande

número de trabalhadores e seu grande volume de produção requer serviços de infra-estruturas

(estradas, centros de armazenamento, energia, matérias primas, mercados, cidades...) que

constituem o elemento central da organização espacial numa “sociedade moderna”. Nesse

Page 19: Geografia e as Relações Internacionais

processo, as transformações por que passou a geografia dos lugares mostra uma grande

diferenciação espacial. Onde o capitalismo apresenta maiores graus de desenvolvimento

verifica-se que a distância entre ser humano da natureza original foi ampliada.

No campo, a indústria urbana revolucionou a tecnologia agrícola, passando a fornecer

ao campo, arados de ferro, tratores, fertilizantes, colhedeiras, energia elétrica, etc. Esse

processo elimina gradualmente, onde se expande, a agricultura de subsistência, estimula a

monocultura e separa a agricultura da pecuária, do extrativismo, etc. Desse modo, embora

produzida no campo, a cidade ficou sendo o lugar onde se concentra a produção agrícola que

é comercializada para ser transformada, industrialmente, em artigos de consumo, tanto urbana

como rurais.

Ainda, a relação entre espaço e valor na geografia econômica pode ser ilustrada por

uma metáfora imaginada pelo geógrafo Ruy Moreira (1996), autor que incorpora a dimensão

social ao processo apresentado. O autor citado destaca que se observarmos uma quadra de

futsal notar-se-á que o arranjo do terreno (linhas que demarcam a quadra) reproduz as regras

deste esporte. Basta aproveitarmos a mesma quadra (o mesmo espaço) e nela superpormos o

arranjo espacial de outras modalidades: o vôlei, o basquete... Cada esporte apresenta leis

próprias e pode-se notar que o arranjo espacial será diferente para cada modalidade. Diferirá

porque cada arranjo espacial reproduz as regras do jogo e estas regras diferem para cada

modalidade selecionada. Se fossem as mesmas leis, o arranjo espacial seria homogêneo.

Assim é também, o espaço geográfico em relação a sociedade, diferenciado. A

organização do espaço geográfico exprime o “modo de socialização” da natureza: a maneira

como os homens se relacionam para produzir as condições de sua existência e a reprodução

das suas famílias. O processo de socialização da natureza pelo trabalho social implica uma

estrutura de relações sob determinação do social e o espaço é a sociedade vista como sua

expressão material visível. A sociedade é a essência, de que o espaço geográfico é a aparência

diz este autor. Para cada organização social há arranjos espaciais específicos que reproduzem

o modo de vida, as leis, as lutas sociais, as disputas pelo poder, a organização da produção e

do consumo, as diferenças entre os bairros, entre as cidades, entre os países etc... Portanto,

sendo o modo de produção capitalista o elemento central de organização da nossa sociedade o

espaço geográfico expressará as leis deste sistema social e econômico que organiza ao mesmo

tempo a produção de mercadorias e as relações sociais nos países capitalistas (Op. Cit. 1996,

p 35-38).

O avanço da maneira capitalista em organizar os processos produtivos mostra que as

relações do homem com a natureza foram subordinadas pela racionalidade técnica e

econômica do capital. Assim, terrenos áridos são adubados e irrigados, pântanos são

drenados, insetos e pragas são exterminados, rios são retilinizados, terrenos são terraplanados,

não por determinações estéticas, mas pela lógica de acumulação de capital. Na guerra da

Page 20: Geografia e as Relações Internacionais

concorrência, a busca da produtividade e custos menores subordinou o tempo e o espaço a

uniformidade do ritmo da máquina, criada pela técnica. O domínio tecnológico foi essencial

para conquistar maiores produtividades e mercados, ao mesmo tempo em que se mobiliza

maiores quantidades de matéria e energia. (PORTO GONÇALVES, 1993)

Pelo exposto na síntese acima, observa-se que a organização dos diferentes lugares, ou

seja, do espaço habitado e transformado continuamente pelo trabalho das pessoas, obedece a

algumas regras instituídas socialmente. Estas podem convencionadas por processos culturais

ou, em muitas situações, impostas às coletividades por processos políticos ou econômicos.

Nas sociedades contemporâneas, observa-se que a organização espacial dos diferentes lugares

passa a ser condicionada em sua maior expressão pela força das relações do econômico sobre

as necessidades sociais. Neste processo, a política, na maior parte das vezes, se subordina às

necessidades da economia para determinar os regramentos que passarão a estruturar os

diferentes espaços geográficos.

Para o profissional de Relações Internacionais, acostumado a refletir sobre as

dinâmicas nacionais em confronto com as grandes questões internacionais, está temática pode

parecer que tem pouca importância, mas um exemplo a título de ilustração permite mostrar

que isso não simples assim. Por exemplo, as discussões tratadas no âmbito dos poderes

executivo e legislativo em Brasília sobre a liberação ou não, do cultivo da soja transgênica no

Brasil, afeta interesses de milhões de pessoas no Brasil e fora do país. São plantadores,

consumidores, importadores e exportadores, governos, ambientalistas, empresas nacionais e

multi(trans)nacionais, bancos que financiam o plantio e a compra do produto entre outras. No

mesmo sentido, a dinâmica espacial é influenciada, e incorpora ainda o aspecto ambiental.

Em 2004, o Brasil se tornou o maior exportador deste produto o que implica em

constantes gestões da diplomacia brasileira em fóruns internacionais para viabilizar a luta do

agronegócio nacional contra os subsídios agrícolas dos pais ricos. Mas o avanço desta cultura

no Brasil, não poderia ter sido alcançado sem a expansão da área cultivada (lembrar do

desfloramento, sobretudo na Amazônia), do uso de tecnologias compatíveis com a cultura,

dos milhares de trabalhadores envolvidos no plantio, no esmagamento do produto, na geração

de tecnologia, na construção das agroindústrias, na produção de máquinas, caminhões para o

transporte, adequação de portos e rodovias, ferrovias, hidrovias, etc... etc. Feita a

apresentação, bastante resumida, da cadeia da soja e dos interesses envolvidos, uma decisão

como a autorização para o plantio de soja transgênica pode ou não gerar um sem número de

transformações sociais, econômicas, espaciais e outras. Mas uma coisa é clara, o foco

econômico da questão tende a predominar em função dos interesses envolvidos.

Novamente trabalho com exemplos neste assunto, mas agora são apenas questões, pois

as respostas não seriam objetivas e isentas. Os europeus, chineses e japoneses importariam

soja transgênica? O meio ambiente seria alterado? (as pesquisas não são conclusivas).

Page 21: Geografia e as Relações Internacionais

Centenas de empresas que produzem semente de soja no Brasil se subordinariam a Monsanto?

(empresa norte americana que detém a patente da soja transgênica). Os agricultores pagariam

royalties à Monsanto? Haveria mais ou menos contaminação do solo? O aumento da

produtividade, se de fato aconteceria, diminuiria a quantidade de terras (espaços) para o

cultivo desta oleaginosa? E as remessas de lucros à Monsanto como ficariam? O maior

negócio da agricultura brasileira seria controlado por uma empresa multinacional, através do

controle das sementes? Quantas questões podem ser levantadas, algumas a geografia

econômica pode contribuir com respostas, outras dependem de outras áreas do conhecimento

como economia, política, direito, e as RI, entre outras. Por isso, o Instituto Rio Branco

também coloca os conhecimentos de geografia econômica como importantes ao profissional

de RI. É óbvio que este profissional não precisa dominar todas as questões, ninguém poderia,

existem especialistas e assessorias, contudo alguma visão do assunto é necessária de se ter.

4.6. Outras questões envolvendo Geografia e Relações Internacionais

O Instituto Rio Branco aponta outros conteúdos como necessários. São eles a

formação, definição e ocupação do território brasileiro e os assuntos referentes à

industrialização, urbanização e a modernização da agricultura brasileira.

Trataremos primeiro da formação, definição, ocupação do território e iniciamos com

uma pergunta. O território brasileiro sempre foi assim e sempre será, poderá haver secessão,

poderemos entrar numa guerra e perder parcela do território? A resposta é sim. Por isso, o

profissional de RI precisa dominar conhecimentos a respeito da construção, manutenção e

integridade do território. A geografia tem muito para oferecer nesta área, juntamente com a

historia e os conteúdos de política externa e estratégia, pois novamente relembrando Aron

(2000, p. 255), as questões envolvendo o espaço sempre foram fonte de Guerras. Diz Aron, “a

violação da linha que separa o território das unidades políticas e um casus belli por excelência

e prova de agressão”.

Além disso, este conhecimento precisa estar acoplado aos processos de ocupação do

território e a sua utilização, ou seja, como a dinâmica produtiva do território está estruturada.

Aqui entram as atividades econômicas, capazes de dar sustentação e definir o uso dos recursos

que o território proporciona e também identificar as deficiências. Desta forma conteúdos como

a industrialização, a urbanização e a modernização da agricultura ajudam a pensar estratégias

de integração econômica e territorial ao mesmo tempo em que possibilitam tratar dos

interesses que se manifestarão, tanto no cenário nacional como internacional. Por exemplo,

como negociar acordos regionais como a ALCA sem ter conhecimentos, tanto ao nível dos

setores econômicos como nas áreas ou aspectos o país será competitivo e onde pode enfrentar

dificuldades. Novamente é obvio, consultores podem ser contratados, mas se alguns forem

Page 22: Geografia e as Relações Internacionais

favoráveis ao acordo e outros contrários. Por isso, é necessário ter conhecimentos razoáveis

sobre os conteúdos abordados. Outra dedução óbvia seria que este é assunto dos governos.

Engano, um internacionalista atuando no setor privado também teria que ter conhecimentos

nestas questões, a(s) empresa(s) em questão poderá (ao) ter ganhado ou perdido num acordo

como a ALCA ou Mercosul. Por isso, o especialista precisa antecipar-se aos fatos.

4.7. Geopolítica e Relações Internacionais.

Por fim o Rio Branco aponta os conhecimentos específicos sobre o Brasil no Contexto

Geopolítico Mundial. Nesse tópico merecem destaque a globalização da economia, a

reorganização da Divisão Internacional do Trabalho e as tendências geopolíticas na formação

de blocos geoeconômicos, UE, ALCA, MERCOSUL...

Numa época de internacionalização crescente dos fluxos econômicos e das

informações, as explicações mudam. No mundo em que se vive a organização espacial dos

lugares já não se explica por si mesma. Isso acontece porque o centro de decisão das

atividades desenvolvidas em determinado lugar situa-se, muitas vezes, a milhares de

quilômetros dali. O processo de globalização da economia reforça esse quadro. Todavia, à

medida que esse processo suscita resistências e novas formas de afirmação de identidades,

ligado a lugares, e religiões e culturas refratárias aos processos em curso, fazem com que

novas formas de organizar o espaço geográfico sejam estimuladas.

Essa discussão envolve as novas relações de poder que se estabelecem no sistema

global, onde novas dinâmicas territoriais desafiam as explicações geopolíticas clássicas como

nos esquemas de Mackinder sobre o world island e heartland, ou as visões de Kjellén e

Aushofer sobre o espaço e a sua posição, ou ainda os modelos sobre as grandes ilhas

continentais do norte americano Spykman. Depois dos foguetes intercontinentais carregados

com múltiplas ogivas atômicas e disparados por submarinos atômicos, quase invisíveis, e que

podem atingir qualquer ponto do planeta, a lógica é outra. Ocorre, com isso, um deslocamento

geopolítico que incorpora a questão da tecnologia capaz de viabilizar a expansão econômica e

os acordos regionais ou negociações multilaterais que implicam em perdas ou em ganhos

relativos para os países.

Por outro lado, com a crise do modelo keynesiano-fordista em meados da década de

70, devido a redução da extração da mais valia social pela via do aumento na produtividade

do trabalho, decorrente da crise do paradigma tecnológico, limitou-se a capacidade de

crescimento econômico. Isso abriu espaços para o questionamento do Estado Nacional e da

ordem internacional gestada a partir dos esquemas de confrontação leste-oeste. Com isso, o

capitalismo do tipo liberal se expandiu e vêm sendo geradas novas formas de territorialidades.

Hoje, num mundo globalizado, de Estados fragilizados, precarização de relações trabalhistas,

Page 23: Geografia e as Relações Internacionais

mercados transnacionalizados, tecnologias geograficamente flexíveis, menor uso de matéria e

energia e maior uso do conhecimento e de informações, a capacidade de reprodução material

e simbólica se desloca do Estado Nacional para o espaço global sob a lógica dos mercados.

(PORTO GONÇALVES, 1993)

No mesmo sentido se observa uma desvinculação geográfica e social entre os locais de

produção e consumo. A mediação social ocorre pelo mercado, instituição que determinará o

valor das mercadorias e do lucro. Assim, novas escalas geográficas se inscrevem na

organização social do espaço geográfico e a divisão territorial do trabalho implica novas

inserções sócio-produtivas de cada lugar em função de vantagens comparativas, fator que

elimina sazonalidades causadas pela dinâmica da natureza. Com isso, novos valores são

estimulados. Estes implicam na conquista de mercados, na competição, na concorrência, e

negociações para o acesso a fontes de energia e matérias primas (PORTO GONÇALVES,

1993). A título de exemplo, estes são alguns destes pontos que a geografia pode contribuir

para fornecer uma “cosmovisão” a partir dos referenciais da geopolítica aplicada aos

problemas internacionais.

5. Considerações finais:

A geografia trata da ordem espacial das coisas. Seu campo de investigação e atuação

continua valorizado e apresenta o compromisso de produzir uma cosmovisão. Esta é

entendida como ciência da compreensão de uma ordem ou coerência espacial. Esse

conhecimento não se resume ao inventário das coisas sobre o espaço, é necessário se construir

os instrumentos analíticos para isso. Na busca da “ordem espacial” tanto dos fenômenos

físicos como humanos, a lógica que se busca depende dos princípios que presidem as causas e

seus significados.

Para Magnoli & Scalzaretto a geografia é o ato de estabelecer limites, colocar

fronteiras, fundar objetos espaciais, orientá-los, qualificar o espaço e para os geógrafos o ato

de pensar estas ações dentro de um quadro lógico, de refletir sobre esta ordem e seu sentido.

O objeto da geografia é o espaço: sua arrumação, a disposição física das coisas e das praticas

sociais. A análise geográfica deve examinar o espaço como um texto, onde formas são

portadoras de significados e sentidos. Esta é uma linguagem que se expressa na maneira como

as coisas estão postas no espaço, pelo seu sentido, sua coerência e seus elementos.

A linguagem de captar os nexos e a ordem espacial das coisas implica num processo

de conceber o espaço como uma composição de formas em permanente e contínuo processo

de produção de sentido e ações. O espaço não é um dado fixo, imóvel, é um processo em

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permanente, construção e reconstrução. A geografia procura compreender a ordem espacial

das coisas pela busca de significados e sentidos.

Ainda, a geografia é uma ciência social que apresenta interfaces com as questões

ambientais, sociais, econômicas etc, de um lado, e com a problemática política de outro.

Dominar conhecimentos em geografia potencializa as pessoas na formação dos valores numa

sociedade democrática e pluralista, pois a cidadania requer um acervo de informações

variadas e, sobretudo, o exercício da habilidade de decifrar os discursos sociais. A geografia,

entendida como “gramática do mundo” tem um papel insubstituível a desempenhar na

construção dessa habilidade, pois o pensamento geográfico acompanhou toda a aventura

histórica da humanidade, refletindo-se na produção de discursos sobre as características das

sociedades e dos lugares que elas habitam, respondendo às necessidades dos soberanos, dos

chefes militares e dos comerciantes, prefigurando e preparando o estabelecimento de uma

gestão mais eficaz sobre os territórios. (MAGNOLI, 1998)

Nesta busca, os documentos que apresentam os Parâmetros Curriculares Nacionais, de

1997 destacam que adquirir conhecimentos básicos em geografia é algo importante para a

vida em sociedade: cada cidadão ao conhecer as características sociais, culturais e naturais do

lugar onde vive, bem como as de outros lugares, pode comparar, explicar, compreender e

espacializar as múltiplas relações que diferentes sociedades estabelecem(ram) com a natureza

na construção de seu espaço geográfico. A aquisição de conhecimentos em geografia permite

maior consciência dos limites e responsabilidades da ação individual e coletiva com relação

ao lugar em que se vive e em contextos mais amplos, tanto em escala regional como nacional

e mundial.

6. Fontes consultadas:

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pensamento Geográfico. São Paulo: Ed. Atlas, 1987

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