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  • GEOGRAFARES, Vitria, no 4, jun. 2003 49

    MAPAS, MAPEAMENTOS E ACARTOGRAFIA DA REALIDADE

    Jrn SeemannDepartamento de Geocincias, Universidade Regional do Cariri (URCA).

    INTRODUO

    Os meios de comunicao, a veiculao de infor-maes pela mdia e as tecnologias do entretenimentocada vez mais sofisticadas representam fbricas gera-doras de imagens que esto transformando a nossa re-alidade em uma seqncia rpida de imagens virtuaisas quais, muitas vezes, no conseguimos processar nanossa mente. Computadores, multimdia e infoviasestimulam a digitalizao de textos, imagens, sons emensagens, levando a sociedade a uma intelignciacoletiva no ambiente de um ciberespao (Lvy,1998). Buoro (2002, p. 34) observa que as imagensocupam um espao considervel no cotidiano das pes-soas: Livros, revistas, outdoors, internet, cinema,vdeo, tev, para citar apenas as fontes mais comuns,produzem imagens incessantemente, quase sempre exausto e diante de olhares de passagem. Para a so-ciedade ps-moderna est sendo declarada a morteda imagem, porque o indivduo do terceiro milnioparece no mais acreditar o suficiente em suas ima-gens para chegar a entend-las (Debray, 1994, p. 13).

    Devido grande quantidade de informaes, estabele-cemos relaes visuais pouco significativas com asimagens (Buoro 2002, p. 34).

    H mais de vinte anos, o gegrafo humanstico Yi-Fu Tuan discutiu os benefcios e perigos de sermosexpostos magia dos mundos virtuais, constatando quea experincia visual pode dar prazer e conhecimentobem como enfeitiar, cativar, subjugar ou at escravi-zar (Tuan, 1979, p. 413). Ao mesmo tempo, Tuan le-vantou as seguintes questes: O que implica a nossadependncia na mdia para nossa compreenso domundo? Ser que estamos plenamente conscientes dovis e das limitaes dos recursos visuais?

    Os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) afir-mam que a Geografia uma cincia que procura ex-plicar e compreender o mundo por meio de uma leitu-ra crtica a partir da paisagem e suas imagens. Destamaneira, ela poder oferecer uma grande contribui-o para decodificar as imagens manipuladoras que amdia constri na conscincia das pessoas, seja em re-lao aos valores socioculturais ou a padres de com-portamentos polticos nacionais (Brasil, 1998, p. 29).

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    Para a Geografia, essa transio para uma socieda-de imagtica causa impactos mais profundos, porquea cincia geogrfica uma disciplina visual, isto ,como caso nico entre as cincias humanas, a viso quase indubitavelmente um pr-requisito para as suasbuscas. Recursos visuais caraterizam tanto as ativida-des na sala de aula e no gabinete quanto as aulas decampo, nas quais a observao e o treinamento do olharso essenciais. Pocock (1981, p. 385) afirma que poresta razo os gegrafos so (ou devem ser) fortementeinteressados na natureza da viso para descrever e com-preender as relaes entre o homem e o meio.

    A viso geradora de imagens e exerce um papelfundamental na apreenso do real, sobretudo no queconcerne ao ensino de Geografia. Devido a essas cir-cunstncias, preciso repensar as prticas do ensinode Geografia para uma sociedade imagtica, utilizan-do-se de novas tecnologias e (re)descobrindo diferen-tes linguagens. Esse resgate visual se torna ainda maisimportante diante das influncias ps-modernas nopensamento geogrfico que do preferncia s met-foras auriculares (dilogo, conversao, polifoniaetc.), em detrimento do discurso visual atravs deespelhos, leituras e olhares (Sui, 2000).

    A Geografia sempre vem associada aos mapas. Nodiscurso geral da disciplina, os mapas representam aGeografia, e a Geografia continua sendo um sinnimode fazer mapas. A prtica, portanto, mostra que o mapa,muitas vezes, no passa de mera ilustrao, isto , ima-gem, emblema ou logomarca sem contedos espaci-ais. Fonseca e Oliva (1999, p. 76), ao discutir a Carto-grafia como linguagem geogrfica, observam que aCartografia, em vez de se estruturar como linguagemprivilegiada, est se constituindo como tcnica repre-sentativa, derivada automaticamente das tecnologiasmodernas e por vezes tambm de imperativos peda-ggicos, numa trajetria de desenvolvimento autno-mo, alheia s discusses internas e de renovao daGeografia. A Cartografia parece ser o carro-chefeda Geografia, mas poucos gegrafos sabem dirigi-lo,isto , utiliz-lo! Esse problema se agrava com a apre-sentao miditica das imagens. O mapa, j bastantemenosprezado como documento de valor informativo,corre o risco de se perder no desfile de uma seqnciacontnua de imagens.

    Para no perder o espao na sua disciplina, osgegrafos precisam ver os mapas como linguagem

    (carto)grfica: uma forma de comunicao que devefazer parte do nosso pensar geogrfico. Vale salien-tar que esse paradigma de comunicao na Cartogra-fia no deve ser visto como mera comunicao de in-formaes do cartgrafo para o usurio dos mapas,erroneamente declarada como objetiva e imparcial, mascomo abordagem que leve em conta muitas outrasmaneiras de fazer e usar mapas e a contribuio daarte no processo cartogrfico (Sluter Jr., 2001, p. 29).

    Sob essa perspectiva, o presente artigo objetivapropor algumas vises alternativas da Cartografia comolinguagem, que no correspondem necessariamente aopensamento euclidiano do espao geogrfico e quevisam a uma Cartografia da Realidade (Wood, 1978)e uma Cartografia Social (Paulston e Liebman, 1994)na sociedade brasileira. Essa concepo da Cartogra-fia enfatiza menos o radical carto (isto , mapa no sen-tido tcnico e oficial do termo) e mais o radical grafia(mapeamento e uso de uma linguagem grfica), deacordo com a definio do mapa como representaogrfica que facilita a compreenso espacial de coisas,conceitos, condies ou acontecimentos no mundohumano (Harley e Woodward, 1987). O espao noseria expresso pela fria geometria das distncias fsi-cas estabelecidas pela escala de um mapa, mas confor-me fatores como tempo, decises, preferncias e ou-tras vises subjetivas.

    O PODER COMUNICATIVODOS MAPAS

    comum tratar a Cartografia como linguagem decomunicao que se fundamenta nas teorias lingsti-cas de Ferdinand de Saussure, responsvel por umagerao inteira de estruturalistas, no apenas na suaprpria rea, mas tambm na Antropologia (por exem-plo, Lvi-Strauss) e na Cartografia (Jacques Bertin).Essa viso concebe a linguagem cartogrfica como umalngua com seu prprio sistema de signos verbais (=vocabulrio) e regras para o emprego desses signos (=gramtica) para efeito de comunicao. Existe, por-tanto, uma diferena clara entre lngua e linguagem.Conforme qualquer dicionrio (por exemplo, Luft,1991, p. 390), linguagem a faculdade humana decomunicao, especialmente (mas no exclusivamen-te!) verbal e abrange tudo que serve para exprimiridias e sentimentos, isto , no apenas as palavras,

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    mas tambm outros recursos como grfica, gestos etc.,os quais no obedecem rigorosamente a regras grama-ticais.

    Os PCNs enfatizam a importncia que as lingua-gens diferentes (verbal, musical, matemtica, grfica,plstica e corporal) podem ter no ensino de Geografia.Entre os objetivos para o ensino fundamental consta queos alunos (e tambm os professores!) devem ser capa-zes de utilizar essas linguagens como meio para pro-duzir, expressar e comunicar suas idias, interpretar eusufruir das produes culturais, em contextos pblicose privados, atendendo a diferentes intenes e situaesde comunicao (Brasil, 1998, p. 7-8).

    A Cartografia, sem dvida, representa uma lingua-gem importante para a Geografia, mas no deve ser vis-ta com o rigor de uma gramtica da lngua portuguesa.

    No sentido convencional da Cartografia, tratamosos mapas como analogias, ou melhor, como meios deexplanao, enquanto o mapa, quando visto comometfora, pode representar um meio de expresso(Downs, 1981), levando-se em conta que os mapasdiretamente servem para o desejo ou at a necessidadede visualizar processos do pensamento humano(Muehrcke, 1978, p.254).

    Mapas, de certa forma, tambm so imagens, por-que eles tambm recriam ou reproduzem fenmenosou idias e representam uma maneira de ver (Berger,s/d, p. 9-10, Fremlin e Robinson, 1998). Como obser-va Tuan (1979, p. 417), essas imagens so meros indi-cadores de uma realidade subjacente que no direta-mente acessvel ao olho.

    Diante do problema da leitura de mapas, precisa-se perguntar se qualquer imagem pode ser lida e sepodemos criar uma leitura para qualquer imagem.Buoro (2002) utiliza expresses como olhar pensantee conscincia visual, afirmando que estamos perden-do a capacidade de pensar por imagens, de produzirimagens ligadas ao contato direto com aquilo que visto (p. 51). Por isso, preciso saber observar, por-que saber produzir imagens verbais e visuais plenasde significao, descries reveladoras de um envol-vimento direto e concreto com a realidade [so] rela-tos que jamais poderiam ser produzidos por leitores deolhares rpidos e descompromissados (p. 49).

    Neste sentido, mapas e imagens tambm podem servistos como pinturas. Alpers (1999), que analisou oimpulso cartogrfico na arte holandesa do sculo XVII,

    constata que desenhamos aquilo que vemos e, inver-samente, ver desenhar (p. 56) e que os espelhos,os mapas e [...] os olhos tambm podem figurar ao ladoda arte como formas de pinturas assim entendida (p.84). Substituindo a palavra pintura pelo termo mapa,podemos dizer que h dois modos diferentes de pintar(mapear) o mundo: (1) a pintura (mapa) consideradacomo um objeto no mundo, uma janela emolduradapara a qual dirigimos os nossos olhos e (2) a pintura(mapa) tomando o lugar do olho, com o enquadramentoe a nossa localizao assim deixada indefinida (p. 118).

    Falar de mapas sempre implica a bilateralidade dacomunicao: sempre h leitores e fazedores. A con-feco de um mapa, entretanto, se limita quase exclu-sivamente ao ambiente acadmico-cientfico-tecnol-gico, fazendo com que o cidado comum no partici-pe do processo de elaborao, que, alis, nem sequerconhece. Como resultado, a Cartografia se torna umrecurso inacessvel para os mortais. Cabe dizer quesaber fazer mapas no significa saber us-los e vice-versa! Crampton (2002, p. 14) complementa essa ob-servao, afirmando que a maneira como usamos osmapas provavelmente afeta a nossa compreenso de-les: Talvez se no soubermos como pr os mapas emprtica, ganharemos apenas uma compreenso limita-da deles!

    INTRODUZINDO A CARTOGRAFIADA REALIDADE

    O espao representado no mapa no correspondes propriedades do espao concebido pela mente hu-mana. Enquanto o espao convencionalmente repre-sentado no mapa contnuo, isotrpico e bidimensio-nal, o espao humano descontnuo, anisotrpico etridimensional e sofre mudanas em termos, principal-mente, de tempo e custo (Oliveira, 1978, p. 25). Mui-tas cincias, portanto, inclusive a Cartografia na suaconcepo como cincia exata, fundamentam-se nasidias do filsofo francs Ren Descartes, segundo oqual a matemtica seria a linguagem essencial e a ni-ca chave para desvendar a natureza, e o prprio espa-o poderia ser expresso por meio de frmulas algbri-cas. A matemtica seria considerada a cincia ideal e ageometria o espao ideal (Santos, 2002).

    Para introduzir uma viso no-cartesiana do espa-o, Muehrcke (1978, p. 255) utiliza o termo mapea-

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    mento funcional quando chega concluso de que omapeamento planimtrico alheio nossa concepocotidiana do ambiente: ns podemos saber a distnciafsica entre dois pontos, mas essa informao fornecepoucos indcios sobre a distncia funcional que depen-de de fatores como trnsito, condies das estradas oumeio de viagem. As subjetividades humanas, portan-to, se escondem atrs da aparncia bem ajustada edefinida que um mapa bem desenhado apresenta, em-prestando-lhe um ar de autenticidade cientfica quepode ter merecimento ou no (Wright, 1942, p. 527).

    Downs (1981, p. 291) afirma que existe uma dife-rena entre o que a mente mapeia e o que o mapa, defato, representa, e levanta trs questionamentos (queele mesmo responde logo em seguida):(1) A representao espacial da mente precisa ser se-melhante ao mapa cartogrfico? No necessariamente.(2) Seria o mapa cartogrfico a base apropriada paraavaliar as propriedades das representaes espaciaisda mente? Possivelmente.(3) Existe um mapa cartogrfico padro que servecomo medida para a comparao? Muito seguramenteno!

    Como j discutido em outro lugar (Seemann, 2003),a prpria cultura ocidental, muitas vezes, concebe comoobjeto o que de fato um processo. Mapas, por exem-plo, no so meros produtos finais, mas uma seqn-cia de aes, tanto para sua confeco quanto para sualeitura. Essa observao de suma importncia na horade mapear o espao vivo e dinmico cuja descrio eexplicao vem se tornando um desafio para a Geo-grafia e para a Cartografia (Oliveira, 1978, p. 25). Nodia-a-dia, as pessoas no agem com base nos mapasoficiais com suas distncias em quilmetros, mas se-gundo critrios como tempo, convenincia ou esfor-o, resultando nem sempre na escolha do caminho maiscurto.

    Wood (1978) introduz o termo Cartografia daRealidade, enfatizando a disjuno entre a percepocotidiana de distncias e do espao que conhecemosmuito bem atravs das nossas experincias e o padrocartogrfico para represent-la (Wood, 1978, p. 207).Como poderia ser feita esta traduo? Segundo Wood(idem, ibidem), os trs princpios seguintes devem serlevados em considerao:(1) a experincia individual a nica medio vlidado mundo real,

    (2) o mundo real apenas acessvel para cada um dens pessoalmente (todos ns temos a nossa prpriaautobiografia) e(3) a estrutura do mundo real deve ser uma geome-tria natural que se baseia na experincia humana in-dividual.

    Wood salienta que a Cartografia da Realidade nopretende questionar a Cartografia cientfica, porque eladeve ser considerada mais um mtodo do que um gera-dor de produtos como mapas. Para ilustrar melhor estasidias, seguem alguns exemplos tirados do mundo real.

    Exemplo 1: O tapete de lO primeiro exemplo diz respeito noo de escala queas pessoas tm. Wood (1978), de uma maneira nomuito convencional, narra a histria de um casal quedecide comprar um tapete de l e cuja noo da gran-deza do produto varia conforme as circunstncias. Afigura 1 mostra como o tamanho real aumenta e enco-lhe na percepo das pessoas. O tapete aparentementegrande, pelo menos a julgar pelo preo, pela propa-ganda da loja e pela forma facilitada do pagamento,encolhe dramaticamente na sala de estar do casal. Masquando a jovem mulher, numa mistura de raiva e de-cepo, comea a chorar e, para o desespero do casal,sua lente de contato cai em cima da mercadoria, ominsculo tapete milagrosamente assumiu proporesdo deserto do Saara (Wood, 1978, p. 209).

    Exemplo 2: O caminho do trabalho para casaAs figuras 2, 3 e 4 mostram um exemplo de um ma-peamento funcional do percurso da minha casa emFortaleza para o Campus da Universidade Estadual doCear, onde ensinei por quatro anos e meio. A figura2A mostra a distncia em linha reta entre os dois luga-res (como costuma-se medir nos exerccios de clculode escala), enquanto a figura 2B representa o percursode nibus seguindo a rede viria da cidade de Fortale-za. A distncia real chega a mais de 18 quilmetros,mas pode parecer muito maior aps um longo dia detrabalho ou no horrio de pico no trnsito fortalezense,quando h congestionamentos em quase todos os cru-zamentos e quando os semforos sempre fecham quan-do os carros comeam a arrancar. As figuras 3A e 3Bso desenhos que no apontam a distncia, mas o tem-po de viagem num dia tranqilo e sob condiesestressantes (muito trnsito, chuva, acidente etc.),

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    respectivamente. Conforme o meio de transporte (a p,de nibus), o tempo de espera nas paradas e no termi-nal e o fluxo do trnsito, o percurso casatrabalho podeparecer mais curto ou mais longo.

    Em vez de usar um grfico do tempo, tambm possvel traduzir essas informaes de uma maneiradiferente. Ao esticar ou encolher os trechos con-forme a sua demora e o seu tempo de viagem, pode serconfeccionada uma anamorfose do tema, representadana figura 4 ao lado dos mapas com a distncia real dopercurso e do tempo de viagem. Nesse exemplo, aanamorfose liga o espao ao tempo, tornando-se uma

    linguagem compreensvel e de alto potencial comuni-cativo, que permite escolher as melhores rotas e indi-car os trechos e horrios a ser evitados. Langlois eDenain (1996) observam que a Cartografia comoanamorfose tem como objetivo adaptar o mapa no realidade fsica, mas realidade percebida. Em vez deser considerado um modelo da realidade geogrfica, omapa se torna um documento de comunicao!

    Exemplo 3: Mapeamento sensorialA viso inquestionavelmente o sentido mais podero-so para a geografia. Como conseqncia, deixamos de

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    explorar o potencial dos outros sentidos como o olfa-to, a audio, o paladar e o tato. A figura 5 foi tirada deoutro trabalho da minha autoria (Seemann, no prelo)sobre questes da percepo ambiental e mostra ummapeamento da Praa da S da cidade de Crato (Cea-r) realizado por estudantes da Universidade Regionaldo Cariri (URCA). A tarefa deles era um mapeamentoda Praa da S pelo olfato. Esse levantamento direcio-

    nado permitiu detectar informaes que normalmenteno so visveis. As alunas registraram fedores de fu-maa, leo saturado, gasolina e urina e simbolicamen-te transferiram essas informaes para um croqui.Outros mapeamentos sensoriais atravs da audio edo ponto de vista de deficientes fsicos (cadeira de roda)e visuais resultaram em mapas que tinham em comumo mapeamento de informaes invisveis. O olhar, de

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    certa forma, favorece a observao, mas observaono necessariamente ao, como o filsofo francsRousseau j tinha afirmado no sculo XVIII: Viverno respirar, mas agir fazer uso dos nossos r-gos, de nossos sentidos, de nossas faculdades, de to-das as partes de ns mesmos que nos do o sentimentoda nossa existncia. O homem que mais viveu no oque contou maior nmero de anos, mas aquele que maissentiu a vida (Rousseau, 1995, p. 15).

    Exemplo 4: Cartografia e educao e arteConforme as definies muito simples nos dicio-

    nrios comuns, a Cartografia continua sendo a arte ecincia de fazer mapas, sem levar em conta que a cin-cia objetiva e analtica, uma reflexo da realidade,enquanto a arte subjetiva e intuitiva como resultadode uma indulgncia subjetiva (Krygier, 1995). O ladocientfico costuma ser destacado, como mostra Bakker(1968, p. 92) quando constata que a Cartografia ci-

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    ncia porque procura o apoio cientfico para alcanarexatido satisfatria, e arte, porque se subordina s leis(sic!) estticas da simplicidade, clareza e harmonia,procurando atingir o ideal artstico da beleza.

    Pela histria da Cartografia podem ser encontra-das muitas ligaes entre a arte e a Cartografia (Rees,1980; Alpers, 1999), mas a sua explorao nos temposatuais e em relao a uma parceria com a educao e aarte ainda aguarda a sua vez.

    A figura 6 outro exemplo j discutido em outraocasio (Seemann, no prelo) e mostra dois mapas men-tais do Estado do Cear que foram elaborados duranteas aulas da disciplina Geografia do Cear junto a

    professoras do magistrio em Caucaia/Cear. As pro-fessoras autoras foram capazes de traar o contornodo Estado, mas no conseguiram preencher o espaocom informaes espaciais, de modo que o desenhoservia apenas como receptculo de aspectos temticoscomo ndios, casas, coqueiros e lagoas e palavras-cha-ve como cultura, praias (no meio do serto!), riosou indstrias. Neste caso, os mapas mentais produzi-dos no mostraram informaes espaciais, mas lacu-nas de conhecimento!

    A figura 7, por sua vez, mostra um par de mapasmentais do Cear ao lado de um mapa oficial. O autordestes desenhos, um professor do municpio de Itarema/

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    Cear, utilizou o desenho para transmitir imagens sim-blicas da realidade cearense: o Cear alto astral doturista bem alimentado e acompanhado pela alegria dosol com caipirinha na mo (devidamente assinado) e oCear emagrecido e analfabeto (assinatura com o po-legar direito), flagelado pela misria e pela crueldadeda fora solar.

    Exemplo 5: Mapas como viso do mundoDesde 1993, a cada dois anos, a Associao Interna-cional de Cartografia (ICA) realiza, em homenagempstuma a sua ex-vice-presidente Barbara Petchenik,um concurso internacional para crianas e adolescen-tes. O tema do concurso para o ano 2003 foi Salve aTerra, tendo como objetivo a promoo da represen-tao criativa do mundo pelas crianas para melhorarseu conhecimento cartogrfico e sua conscincia so-bre o prprio ambiente. O concurso regional no Cariri(Cear) para a seleo nacional juntou 199 mapas, vin-

    dos de 18 escolas participantes. Os mapas foram jul-gados pelos critrios de ter uma mensagem reconhec-vel do tema, ter um contedo cartogrfico (a relativalocalizao dos continentes e dos oceanos e a propor-o entre guas e a massa terrestre) e mostrar qualida-de na sua execuo (clareza e legibilidade dos elemen-tos cartogrficos utilizados em coerncia com o tema).Os mapas obtidos no concurso no retratam apenas aviso do mundo que as crianas tm, mas tambm re-velam suas preocupaes, angstias e alegrias, contri-buindo investigao sobre relaes (inter)nacionais,esteretipos geogrficos, preconceitos e visesetnocntricas do mundo (Pinheiro, 1998), estimulan-do, ao mesmo tempo, a criatividade e a expresso ar-tstica nos alunos. A figura 8 apenas usa forma do glo-bo para retratar os problemas da humanidade, enquan-to na figura 9 a soluo sombria parece ser o suicdio.

    Atravs desta linguagem (carto)grfica, as crian-as manifestaram a sua viso do mundo (muitas vezes,

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    dominada pelo pessimismo e pela violncia cotidia-na), tornando os desenhos testemunhos de uma lingua-gem perfeitamente compreensvel para expressaridias, preocupaes e solues.

    RUMO A UMACARTOGRAFIA SOCIAL

    O objetivo deste artigo era apresentar algumas re-presentaes e mtodos alternativos paracartografar a realidade e fazer do mapeamento umaprtica integrada nas nossas aes cotidianas, inter-pretando o mapeamento como trao cultural com va-lidade universal, uma forma especializada de expres-so, desenvolvida para tratar dos complexos proble-mas distintivos e imensamente importantes do com-portamento macroambiental (Blaut, 1991, p. 64). Tra-balhar com mapas desse gnero no significa a subs-tituio dos mapas convencionais. Os mapas funci-onais apenas oferecem uma maneira diferente de vero mundo, e para ser mais teis funcionalmente osmapas precisam refletir mais atentamente nossa ima-gem do ambiente, fazendo com que a discrepnciaentre o mapa e o processo da cognio humana possaser reduzida (Muehrcke, 1978, p. 256).

    Deve-se frisar que a utilizao dessa linguagemcartogrfica e da Cartografia da Realidade no re-

    presenta uma mera forma de comunicao no-verbal,um ato individual irracional ou um passatempo men-tal, mas exerce um papel fundamental na formao decidados e leitores crticos do espao e das suas repre-sentaes, levando-se em conta, como afirma Passini(1994), que essas leituras permitem aprender os pro-blemas do espao e ao mesmo tempo conseguir pensaras transformaes possveis para aquele espao.

    Atualmente, as cincias sociais esto redescobrin-do o significado e a importncia do espao diante dequestes territoriais (movimentos sociais como os sem-terra e os sem-teto) e em face da (re)construo de iden-tidades culturais. Enquanto muitos autores utilizam opoder da Cartografia e dos mapas como metforas paracriar Cartografias do desejo (Guattari e Rolnik,1999), inventar Cartografias do trabalho docente(Geraldi, Fiorentini e Pereira, 1998) ou propor umaCartografia simblica para sistemas jurdicos (San-tos, 2000) ou para as polticas educacionais no Brasil(Seemann, 2001), h tambm uma preocupao com aCartografia Social do espao real que concretamenteemprega mapas, consistindo en utilizar la elaboracincolectiva de mapas para poder comprender lo que hocurrido y ocurre en un territorio determinado, comouna manera de alejarse de s mismo para poder mirarsee comenzar procesos de cambio (Andrade eSantamara, s/d). Em vez de se restringir aos mapas

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    tcnicos e ao apoio dos tecnocratas, a abordagemconsidera o planejamento participativo um princpiofundamental para a ao: os mapas servem como ins-trumento para aprender a ler e decifrar o territrio. Paraa elaborao coletiva dos mapas, os participantes dacomunidade recebem material cartogrfico (plantas),instrues do seu uso e uma lista de perguntas ou te-mas que precisam ser trabalhados. Paulston e Liebman(1994) consideram esses mapas um dilogo visual,uma forma de comunicar como vemos mudanas so-ciais que se realizam no espao que nos cerca. Nessesentido, mapear o espao social tanto mapeamentocognitivo quanto cartografia geogrfica (idem, ibidem),e os mapas gerados desta maneira sempre contm umaparte do conhecimento e da compreenso que as pes-soas tm sobre o sistema social. Conforme os mesmosautores, a Cartografia Social no seria uma sntese, masum dilogo entre diferentes atores sociais (indivduos,grupos culturais etc.), tendo potencial para se con-verter num estilo discursivo til para demonstrar osatributos e capacidades, assim como o desenvolvimentoe as percepes das pessoas e culturas que operam den-tro do meio social (idem, ibidem).

    Pensar a Cartografia de uma maneira menosdogmtica (e, quem sabe, menos cartogrfica e maiscartogrfica) exige mais conscincia, criatividade, ou-sadia, coragem e, sobretudo, uma postura mais humanaou at humanstica, porque uma concepo imaginati-va essencialmente uma viso nova, uma criao nova,e conseqentemente, quanto menos imaginativos somos,menos refrescantes e originais sero nossos textos enosso ensino e menos eficazes sero para estimular aimaginao de outros (Wright, 1947, p. 5).

    Longe de ver mapas como um mal necessriopara pesquisadores acadmicos, como instrumentos detortura para estudantes ou como um conjunto de ilus-traes sem sentido para os cidados comuns, precisa-mos conceb-los como uma parte indissocivel da nos-sa prtica social e uma forma prazerosa de encontrarnosso lugar no mundo (Crampton, 2002, p. 15). Mas,infelizmente, ainda sabemos muito pouco sobre o pra-zer de mapear.

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    ResumoEmbora a Geografia seja uma disciplina predominantementevisual que tem no mapa um dos seus recursos mais poderosos,as representaes do espao esto ameaadas de perder seusignificado numa sociedade sobrecarregada de imagens. Poresta razo, a Cartografia deve ser valorizada como uma lin-guagem de comunicao por excelncia para exprimir idias esentimentos sobre o mundo direta ou indiretamente experi-mentado. Sugere-se uma abordagem complementar Carto-grafia cientfica, enfatizando os mapeamentos funcionais e acriatividade e a imaginao espacial de cada pessoa, o queser ilustrado atravs de diversos exemplos concretos.

    Palavras-chaveLinguagem cartogrfica Mapeamento funcional Cartogra-fia Social.

    AbstractAlthough Geography is a predominantly visual discipline thatclaims the map as one of its most powerful tools, spatialrepresentations are threatened to lose their meaning in ourimage-laden society. For this reason, Cartography must beappraised as a communication language by excellence in orderto express ideas and emotions about the world that is directlyor indirectly experienced. It is suggested a complementaryapproach to scientific Cartography, laying emphasis onfunctional mapping and everyones spatial creativity andimagination, which will be illustrated by several concreteexamples.

    KeywordsCartographic language Functional mapping SocialCartography.

    Texto apresentado na mesa redonda Prticas de ensino para uma sociedade imagtica: diferentes linguagens enovas tecnologias, no 7 Encontro Nacional de Prtica de Ensino de Geografia (Vitria, setembro de 2003).