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42 | FIA | Março 2007 GENTE QUE FAZ | Geraldo Mayrink petitosos e baratos, os petiscos e tira-gostos dos bares e botequins brasileiros já não são mais os mesmos. Pejorativamente cha- mada até algum tempo atrás de “baixa gas- tronomia”, a comida de boteco vem se transformando num negócio de dar água na boca. Uma tendência nacional em fran- ca expansão nas principais cidades do país e turbinada por um fenômeno recente, os eventos centrados no assunto, já incluídos no calendário anual de algumas delas. Pioneira no ramo, Belo Horizonte, a me- trópole brasileira por excelência dos bares e botequins, detentora do título de possui- dora do maior número deles por habitante em termos percentuais, foi escolhida para ser o palco de provas da referida efeméri- de. Batizado de “Comida di Buteco” por seus idealizadores, Eduardo Maya e Maria Eulália Araújo, ele começou a delinear seus contornos meio por acaso. Remonta a 1999, época em que Eduardo, um carioca que trocou o Rio de Janeiro por BH em meados da década anterior “fugindo da violência”, coman- dava um programa de gastronomia, Momento Gourmet, numa emissora de rádio FM local onde sua futura parceira trabalhava. Coincidentemente, no mesmo ano em que outras duas cariocas, Laura Reis e Marta Ribas, criadoras do guia Rio Botequim, realizavam algo equivalente ao que ele viria a concretizar em seguida: uma eleição popular dos melhores petis- cos, forma de servir as cervejas e chopes, garçons, atendimento e higiene dos bote- quins da Cidade Maravilhosa. No seu caso, municiado por sugestões enviadas pelos ouvintes, saía a campo para pesquisar, conferir e montar a seleção final de convi- dados. Foram apenas dez em 2000, marco zero do evento, dezessete no ano seguinte e 31 no terceiro, consagrando a fórmula que se mantém até hoje, com base na argumentação de que os participantes terão um dia para cada estabelecimento a ser visitado, posto que ele dura um mês exato. Um autêntico tour de force proposto aos que se habilitarem à façanha. Início discreto, bem ao feitio mineiro, o “Comida di Buteco” viu seu ibope disparar num piscar de olhos. “No segundo ano do evento, conseguimos que em apenas um mês (abril, período fixado para sua realiza- ção) a audiência do programa equivalesse à de todo o ano anterior.” Elevado à condi- ção de must do calendário turístico de Belo Horizonte, com amplo respaldo da mídia e presença garantida no Jornal Nacional, da Rede Globo, tornou-se foco de atenção generalizada da população, agregando públicos dos mais heterogêneos que, durante o transcorrer da saudável disputa, superlotam os espaços internos e externos dos botecos concorrentes. Atenta ao fato, a Companhia de Bebidas das Américas (AmBev), que através de Eventos gastronômicos em vários pontos do país firmam um novo status para a comida de boteco CONVERSA SÉRIA DE BOTEQUIM A

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GENTE QUE FAZ | Geraldo Mayrink

petitosos e baratos, os petiscos etira-gostos dos bares e botequinsbrasileiros já não são mais osmesmos. Pejorativamente cha-

mada até algum tempo atrás de “baixa gas-tronomia”, a comida de boteco vem setransformando num negócio de dar águana boca. Uma tendência nacional em fran-ca expansão nas principais cidades do paíse turbinada por um fenômeno recente, oseventos centrados no assunto, já incluídosno calendário anual de algumas delas.Pioneira no ramo, Belo Horizonte, a me-trópole brasileira por excelência dos barese botequins, detentora do título de possui-dora do maior número deles por habitanteem termos percentuais, foi escolhida paraser o palco de provas da referida efeméri-de. Batizado de “Comida di Buteco” porseus idealizadores, Eduardo Maya e MariaEulália Araújo, ele começou a delinearseus contornos meio por acaso.

Remonta a 1999, época em queEduardo, um carioca que trocou o Rio deJaneiro por BH em meados da décadaanterior “fugindo da violência”, coman-dava um programa de gastronomia,Momento Gourmet, numa emissora derádio FM local onde sua futura parceiratrabalhava. Coincidentemente, no mesmoano em que outras duas cariocas, LauraReis e Marta Ribas, criadoras do guia RioBotequim, realizavam algo equivalente aoque ele viria a concretizar em seguida:

uma eleição popular dos melhores petis-cos, forma de servir as cervejas e chopes,garçons, atendimento e higiene dos bote-quins da Cidade Maravilhosa. No seu caso,municiado por sugestões enviadas pelosouvintes, saía a campo para pesquisar,conferir e montar a seleção final de convi-dados. Foram apenas dez em 2000, marcozero do evento, dezessete no ano seguintee 31 no terceiro, consagrando a fórmulaque se mantém até hoje, com base naargumentação de que os participantesterão um dia para cada estabelecimento aser visitado, posto que ele dura um mêsexato. Um autêntico tour de force propostoaos que se habilitarem à façanha.

Início discreto, bem ao feitio mineiro, o“Comida di Buteco” viu seu ibope dispararnum piscar de olhos. “No segundo ano doevento, conseguimos que em apenas ummês (abril, período fixado para sua realiza-ção) a audiência do programa equivalesseà de todo o ano anterior.” Elevado à condi-ção de must do calendário turístico de BeloHorizonte, com amplo respaldo da mídia epresença garantida no Jornal Nacional, daRede Globo, tornou-se foco de atençãogeneralizada da população, agregandopúblicos dos mais heterogêneos que,durante o transcorrer da saudável disputa,superlotam os espaços internos e externosdos botecos concorrentes.

Atenta ao fato, a Companhia de Bebidasdas Américas (AmBev), que através de

Eventos gastronômicos em vários pontos do país firmamum novo status para a comida de boteco

CONVERSASÉRIA DE

BOTEQUIMA

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Dentro do novo conceito,petiscos elaborados e ambientes maiscuidados sem perda devínculos com as raízes ea lógica do bom e barato

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uma de suas cervejas, a Bohemia, transfor-mou-se na marca oficial do evento, deci-diu replicá-lo em São Paulo a partir de2004, mantendo o modelo, estrutura, equi-pe e comando e rebatizando-o para“Boteco Bohemia”. Além de optar por outradata, o mês de outubro. “Percebemos umagrande identificação entre as característi-cas do nosso produto e os ingredientes cui-dadosamente selecionados na elaboraçãodo Comida di Buteco”, justifica o gerentede marketing da marca, Cristiano Scher-nadi, complementando: “Os processos deambos – produção artesanal, um mestreexclusivo que cuida passo a passo da pro-dução – coincidem”.

As estatísticas, em todo caso, se encar-regam de mostrar as sutis diferenças nocomportamento dos brasileiros em relaçãoà propalada cultura e paixão nacionais porbotequins. Segundo os números aferidospelo Instituto Vox Populi, responsável pelaapuração e auditoria do concurso, votarameste ano em BH, nada menos do que100.397 eleitores, enquanto na Paulicéiaeles estacionaram em 48.960. Pelas regrasrelativamente simples do evento, divulga-da a lista anual dos selecionados, tarefapara a qual Eduardo e Maria Eulália con-tam atualmente com uma pequena equi-pe, incluindo três jornalistas, se espalhamurnas e cédulas em cada estabelecimentoconcorrente, devidamente identificadocom material promocional, que no 31º diaapós a largada são recolhidas, para duassemanas depois terem seus resultadosdivulgados durante uma mega “Festa daSaideira”, com duração de três dias em quetodos os participantes se instalam emespaços que reproduzem seus ambientesoriginais com fotos e objetos, servindo osrespectivos petiscos e tira-gostos acompa-nhados de cervejas geladas, é claro, comdireito a shows musicais de DJs, bandas egrandes nomes da MPB.

Na de São Paulo, tradicionalmente rea-lizada no Moinho Santo Antônio, era pos-sível encontrar em 2006 com chefs comoAlex Atala e Ana Soares, entre outros, ates-tando e dando fé de que a “baixa gastrono-mia” caminha a passos largos rumo à con-dição de nouvelle cuisine, dentro de umalinha evolutiva adotada por bares e bote-

cos. E que tem, por exemplo, a mineiraAlaíde Carneiro, de Pirapora, autora dasinvenções culinárias e uma das razões dosucesso de outro mito, o carioquíssimoBracarense, considerado por muitos omelhor da cidade, onde, indiscutivelmen-te, está preservada a grande tradição debotequins do país. “Junto com o Jobi, nazona sul, são marcos da gastronomia deboteco”, assinala Eduardo. O que, prova-velmente, poderá ser conferido este ano,quando o evento fincará sua bandeira emterritório carioca junto com Brasília.

Essas cidades vão se incorporar a Poçosde Caldas, Uberaba, Montes Claros eIpatinga, todas mineiras, que ao curso doano já possuem o seu similar, que tambémse estenderá ao cognominado “Buteco –Estrada Real”, acoplando outros quatromunicípios do estado vinculados ao alenta-do projeto do circuito turístico em tornodos caminhos centenários do ciclo do ouroe dos diamantes. Sem esquecer que – gló-ria máxima – existem possibilidades con-cretas de um butequim for export, em razãode sondagens para sua operação emMiami, Lisboa e Londres.

Independentemente da geografia e dacultura, deverão se manter os princípiosnorteadores do bem-sucedido empreendi-mento, que, em sua gênese, pugnava por“melhorar a qualidade da comida oferecidapelos bares de Belo Horizonte”. Nessa mis-são civilizadora, da qual Eduardo se consi-dera uma espécie de cruzado a favor docomer bem e barato, a máxima dominanteé de que “não existe baixa gastronomia;existe a boa e a má gastronomia”.

Eduardo e Maria Eulália:missão civilizadoraatravés de um festivalde sabores e estilos paratodos os gostos

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Pelo andar da carruagem, isto é, pelosbicampeões (2005-2006) de Belo Hori-zonte e São Paulo, não há como refutarsua colocação. Da mesma forma que oBar do Zezé, localizado no periférico epopular bairro do Barreiro, na capitalmineira, o Bar do Luiz Fernandes, situadono modesto Mandaqui paulistano, secaracteriza pela total simplicidade e despo-jamento. Familiares, eles têm no comandode seus fornos e fogões a mulher ou a mãedos proprietários, artífices dos acepipescapazes de atiçar a gula de uma legião deadeptos da botequinice.

Empreendimento rentável em escalaprogressiva, ao custo mínimo de R$ 1,5 mi-lhão cada evento, o “Comida di Buteco” sefirmou como um reencontro dos brasilei-ros com uma instituição secular do país, osbotecos e botequins, contribuindo para afixação desses espaços democráticos emum novo patamar, com seus repastos –imprescindíveis no acompanhamento deuma bebida e de uma conversa sem com-promisso – dignos da expressão “é de darágua na boca”. Obra de um carioca de 49anos que morou em diversos lugares domundo acompanhando o pai, funcionáriodo Banco do Brasil, formado em matemáti-ca e estatística em Londres, sem nuncaexercer a profissão, professor autodidatade culinária e que se diz predestinado a“passar a vida mastigando”, fato que jácomprovou sobejamente ao promoveruma degustação em série por catorze esta-belecimentos numa só noite brasiliense.Como companhia e fiel escudeira, contacom a parceira Maria Eulália, 35, mineirae publicitária cujo código de posturasprevê “sair sempre com fome e sede”.

Juntos, eles vêm promovendo uma legí-tima festa de sabores, ambientes e estilospara todos os gostos, sexos e idades. E,como se nota, eqüidistante de outras eras,como a que o notável compositor NoelRosa compôs, com o parceiro Vadico, suaConversa de Botequim, na qual conclama ogarçom a lhe “trazer depressa uma boamédia que não seja requentada/um pãobem quente com manteiga à beça/umguardanapo e um copo d’água bem gelada”.É que, queiram ou não, a conversa de bote-quim tornou-se um papo sério.

Garimpados em regiõesmenos nobres, botequinsque oferecem tira-gostoscom padrão e qualidadereverenciados por chefscomo Alex Atala

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